Penhor Ou Penhores
Penhor Ou Penhores
Penhor Ou Penhores
1
“(…)
Recordações de calor
E das saudades o gosto eu vou procurar esquecer
Numas ginjinhas
2
Introdução
3
Não surpreende, por isso, que nos vários ordenamentos se tenha assistido a um
fenómeno de suavização de algumas destas exigências, embora as soluções adoptadas
não sejam inteiramente coincidentes, passando, ora por uma reformulação geral do
regime tradicional do penhor (direito francês), ora pela simples criação de regimes
especiais que afastam algum ou alguns dos aspectos mais nefastos do regime tradicional
(direito italiano, espanhol e português), ora pelo recurso sistemático à propriedade com
fins de garantia (direito alemão), ora pela funcionalização do próprio conceito de
garantia mobiliária, nele incluindo todas as figuras, independentemente da sua
configuração e do seu modo de constituição, utilizadas com um desiderato garantia
(direito norte-americano).
A esta diversidade não é alheia a dificuldade sentida, especialmente no que
respeita à natureza imperativa do desapossamento material do empenhante, em
descortinar soluções alternativas às tradicionais, porquanto as diversas opções (sujeição
a registo, aposição de marcas físicas ou outras formas de tradição não material
atenuada) não só não possuem apetência para todo o tipo de bens potencialmente
empenháveis, como colocam problemas adicionais, designadamente quanto à sua
própria integração das garantias não possessórias no seio do penhor.
Noutro plano e em termos mais amplos, importa considerar em que medida os
mecanismos de adaptação do regime do penhor com desapossamento, convencionais ou
legais, ao afastarem-se de algumas das notas caracterizadoras do tipo legal do instituto,
não induzirão à integração dessas figuras no âmbito de outras garantias (em especial, da
hipoteca) ou à sua qualificação como atípicas ou, noutro plano, se o próprio penhor será
integrável na categoria dos direitos reais.
Partindo destas constatações, propomo-nos, no Capítulo I, realizar uma análise
do regime civilístico do penhor (essencialmente um estudo de direito positivo), partindo
da sua constituição, passando pela delimitação dos objectos empenháveis e das
obrigações garantidas, não esquecendo algumas notas definidoras do penhor enquanto
garantia, prosseguindo com a decomposição dos principais direitos e deveres dos
sujeitos envolvidos na relação de garantia e culminando com um exame das causas de
extinção do penhor.
Desta exegese, para além da constatação da necessidade sentida pelo legislador
de criar regimes especiais de modo a consentir a dação em penhor de determinado tipo
de coisas, ressalta desconformidade de alguns aspectos daquele regime face às actuais
exigências das relações jurídico-económicas, em especial, manutenção da exigência de
4
desapossamento do empenhante da garantia como requisito de validade da constituição
da garantia, a necessidade de determinação do crédito assegurado e dos bens onerados, a
(aparente) impossibilidade de substituição do objecto empenhado durante a vigência da
relação de garantia e o alcance potencialmente indeterminado da interdição do pacto
comissório.
Ora, a dissecação destes aspectos, conjuntamente com as tentativas, legais,
doutrinais, jurisprudenciais e convencionais, encetadas para os adaptar ou suprimir, nos
diversos ordenamentos, constitui o objecto do Capítulo II.
Em seguida, no Capítulo III, averiguar-se-á da compatibilidade destes
ajustamentos introduzidos na disciplina codicística do penhor (em particular, o
surgimento da garantia prescindindo do desapossamento material do constituinte) com o
tipo legal do instituto.
Finalmente, no Capítulo IV, indagaremos da inclusão do penhor na categoria dos
direitos reais e/ou das garantias reais (procurando distinguir, para o efeito, estes dois
conceitos), perspectivando em que medida a diversidade de objectos empenháveis
impelirá ou não a conclusões diversas a este respeito.
Nota: Por expresso desejo do Autor, a presente dissertação não foi redigida ao abrigo do
acordo ortográfico
5
Principais abreviaturas
6
Rev. Dir. Com. - Rivista di Diritto Commerciale
Rev. Jur. Comm – Revue de Jurisprudence Commercielle
RNGCC – Rivista la Nuova Giurisprudenza Civile Comentata
ROA – Revista da Ordem dos Advogados
RTDC – Revue Trimestrielle de Droit Civil
RTDCDE - Revue trimestrielle de droit commerciale et de droit économique
RTDPC - Rivista Trimestrale de Diritto e Procedura Civile
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
7
Capítulo I – Regime do penhor tradicional (com desapossamento)
1 - Noção de penhor
8
Em primeiro lugar, falamos de penhor para designar a própria coisa empenhada,
ou seja, o objecto da garantia.
Depois, por vezes ao aludir ao penhor estamo-nos a referir ao direito do credor
pignoratício (o chamado ius pignoris), isto é, a segurança particular que esta garantia
confere ao credor e que se traduz, essencialmente, no direito de ser pago, sobre o
produto da venda dos bens empenhados, com preferência sobre os demais credores do
devedor.
Ao invés, noutros casos ao referirmo-nos ao penhor pretendendo indicar a
própria garantia real.6
Noutras ocasiões ainda, o termo “penhor” significa o próprio contrato através do
qual se constitui a garantia pignoratícia.
Finalmente, há quem utilize a expressão para se referir à relação jurídica que
brota da criação da garantia e que implica um conjunto de direitos e deveres para ambas
as partes.7
A tudo isto acresce que, em alguns ordenamentos jurídicos, se designa por
“penhor comum” dos credores a responsabilidade geral do património do devedor pelas
respectivas dívidas, consagrada entre nós no art.º 601.º (é o que sucede com o art.º
2093.º do CCF)8 ou se usa a expressão penhor como sinónimo de direito real de
garantia.9
según su origen etimológico significa: passar una cosa a poder del acreedor o (…) Cosa mueble que se
sujeta especialmente a la seguridad o cumplimiento de una obligación”.
5
Salientam este aspecto, entre outros, Gabrielli, Il pegno anomalo, Cedam, Padova, 1990, págs. 59 e
segs., admitindo que esta pluralidade de significados origina problemas, nomeadamente de ordem
sistemática, relativamente ao local onde regular o instituto (o anterior CCI italiano regulava este instituto
na parte relativa aos contratos, enquanto o actual optou por fazê-lo no título relativo à responsabilidade
patrimonial e às causas de preferência, solução esta que merece o aplauso do Autor, na medida em que se
deve atender mais ao efeito produzido do que ao contrato do qual aquele emana, para além de, deste
modo, se colocarem em evidência as analogias com a hipoteca – regulada no mesmo título – e de se
realçar a circunstância de o penhor poder nascer de outras fontes para além da contratual), Veiga Copo,
La prenda de acciones, Civitas, 2002 pág. 59, Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil:
Direito das coisas, Editora Saraiva, 2003 (37.ª Edição), pág. 355 e Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil,
Vol. V (Direitos reais), Editora Atlas, 2011 (11.ª Edição), pág. 555 (alertando este último, contudo, para a
expressão penhor, quando aplicada ao contrato, se presta a equívocos, uma vez que “o que habitualmente
se chama de contrato de penhor nada mais é do que um contrato de mútuo, com constituição acessória
de penhor, ou seja, de garantia real”).
6
De acordo com Hugo Ramos Alves, Do penhor, Almedina, 2010, pág. 53, esta é a acepção puramente
técnica do termo “penhor”.
7
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 59.
8
Que afirma textualmente que “les biens du débiteur sont le gage commun de ses créanciers”. Para uma
crítica da utilização da expressão penhor neste último sentido, vide Marcel Planiol (George Ripert e
Emile Becqué), Traité pratique de droit civil français, Vol. XII, Librairie générale de droit et
jurisprudence, Paris, 1927, pág. 69 e Henri Mazeaud, Léon Mazeaud, Jean Mazeaud e François Chabas,
Leçons de droit français, Tomo III, Vol. I, Sûretés: publicité foncière, 7.ª Edição (Yves Picod),
Montchrestien, 1999, pág. 142 (esclarecendo que «Ont dit également, mais aussi abusivement, que les
créanciers chirographaires ont un droit de gage général sur le patrimoine du débiteur (…), alors que sa
situation se caractérise, au contraire, par l’absence de toute sûreté; l’expression signifie seulement que
l’ensemble des biens existant dans le patrimoine du débiteur au moment des poursuites, répond de la
dette»). No direito italiano e apesar de a lei não fazer apelo a este significado, alguns autores também dão
conta do uso da expressão “pegno generico”, contraposto ao penhor propriamente dito – neste sentido,
Alberto Montel, Pegno (diritto vigente), in Novissimo Digesto Italiano, Vol. XII, 3.ª Edição, 1957, pág.
773 e Sebastiano Ciccarello, Pegno (diritto privato), in Enciclopedia del Diritto, Vol. XXXII, Giuffrè,
Milano, 1982, págs. 682.
9
Faz alusão a este uso Gino Magri, Il pegno di un’azienda commerciale, Tipografia Ditta Garagnani e
Figli, Bologna, 1904, pág. 13, alertando para a circunstância de a expressão penhor, quando usada neste
9
De ora em diante e salvo casos excepcionais, empregaremos a expressão no
terceiro dos aludidos sentidos – como garantia real -, procurando encontrar uma
definição que nos permita distingui-lo das demais figuras que integram essa mesma
categoria.
Percorrendo a doutrina nacional,10 deparamo-nos com noções não muito
diversas, algumas enfatizando o aspecto de garantia conferida ao credor pignoratício,11
outras o modo de constituição ou os respectivos objectos potenciais.12
Procurando conjugar todos estes aspectos, ousamos também nós propor uma
definição de penhor (que funcione, pelo menos, como ponto de partida, uma vez que os
seus contornos mais precisos apenas se revelarão ao longo do presente trabalho),
considerando-o uma garantia real, prestada pelo devedor ou por terceiro, que recai sobre
coisas móveis não hipotecáveis, que se constitui, em regra,13 com a entrega do
respectivo objecto ao credor ou a terceiro e cujo principal efeito consiste na atribuição
ao seu titular o direito de ser pago, relativamente ao produto da venda dos bens
empenhados, com preferência sobre os demais credores.
Tomando por base esta noção, poderemos, em seguida, analisar os seus
principais traços característicos.
sentido, ser sinónimo de direito real de garantia em geral, seja sobre coisa móvel ou imóvel, abrangendo o
penhor propriamente dito e a hipoteca.
10
No direito brasileiro, Afonso Dionysio Gama, Do penhor civil, mercantil e agrícola, Livraria
Académica, São Paulo, 1919, pág. 13, entende estarmos perante um contrato de penhor “sempre que o
responsável por dívida ou obrigação, ou um terceiro, entrega ao credor ou a quem o represente, coisa
móvel, susceptível de alienação, para o fim de sujeitá-la por um vínculo real ao pagamento dessa dívida
ou desempenho da obrigação, desde que se resolva em prestação pecuniária” e, no direito espanhol,
Salinas Adelantado, El régimen jurídico de la prenda de valores negociables, Tirant lo blanch, Valencia,
1996, pág. 93, define-o como “aquel derecho que del deudor o un tercero concede sobre una cosa mueble
(entendida en sentido amplio), para que ésta permanezca especialmente reservada para la futura
satisfación del acreedor, y así, en caso de incumplimiento de la obligación, pueda utilizarla para cobrar
su crédito con preferencia frente a los otros acreedores del constituyente, incluso si la cosa ha passado a
la propriedad de un tercero” ou, mais simplesmente, “la situación de prevalencia erga omnes del
acreedor pignoraticio sobre la cosa mueble dada en garantía, para la satisfación de su crédito, en caso
de incumplimiento del deudor”.
11
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor, in BMJ n.º 58, págs. 17 e 18, afirma que “o penhor é um direito real
de realização do valor de uma coisa móvel para garantia de um crédito”, acrescentando que “pelo
penhor constitui-se, sobre uma coisa móvel (ou sobre um direito), a favor de um credor, para garantia do
seu crédito, um direito real que, entre outras vantagens, lhe confere preferência sobre os demais
credores”.
12
Joaquim Bastos, Do penhor mercantil, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1943, pág. 7,
entende que “o penhor consiste na entrega feita ao credor pelo devedor, ou por terceiro, duma coisa
mobiliária, para garantir o cumprimento da obrigação a que o devedor se achava adstrito.”. Também
Paulo Cunha Da garantia nas obrigações, Apontamentos das aulas do 5.º ano da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa no ano lectivo de 1938-1939, coligidas por Eudoro Pamplona Côrte-Real, Tomo
II, pág. 175, define o penhor como “a garantia real que consiste em o devedor ou um terceiro se
desapossarem voluntàriamente de certa cousa mobiliária, para que fique especialmente afecta à
segurança de determinado crédito, e que por êle responde preferencialmente, no caso de não
cumprimento da obrigação por parte do devedor.”.
13
Dizemos em regra porque, como veremos (vide infra n.º 1.2.8 do Capítulo II), existem no nosso
ordenamento casos em que o objecto do penhor não tem que ser entregue ao credor ou a terceiro, seja
porque essa entrega é substituída por uma entrega simbólica (cfr. art.º 398.º § único do Código
Comercial), seja porque nem sequer há lugar a esta última, constituindo-se a garantia com recurso à figura
do constituto possessório (como sucede com o regime do penhor bancário, nos termos do Decreto-Lei n.º
29833, de 17 de Agosto de 1939).
10
2.1 - A lei
Ao contrário do que sucede relativamente à hipoteca, a nossa lei não prevê, nem
regula, a figura do penhor legal, isto é, uma garantia pignoratícia que decorra
directamente da lei,14 ao invés do que sucede noutros ordenamentos, como o brasileiro15
e o alemão,16 muito embora também aí se suscitem dúvidas relativamente à respectiva
natureza jurídica.17
14
O mesmo se passa no direito espanhol (constatando a generalidade da doutrina a inexistência de
penhores legais neste ordenamento – neste sentido, entre outros, Jose Enrique Bustos Pueche, Teoria
general de los derechos reales de garantia con especial atención al patto comissorio, in ADC, Tomo XIII,
Vol. 2, 1990, pág. 552, Luís Diez-Picazo, Sistema de derecho civil, 5.ª Edição, Vol. 3, Civitas, Madrid,
2008, pág. 482 e Jose Puig Brutau, Fundamentos de derecho civil, 3.º Edição, 1983, Tomo III, Bosch,
Volume III, págs. 5 e 6) e italiano (Giuseppe Martino, Il pegno rotativo, in
http://www.diritto.it/materiali/civile/martino.html, pág. 32).
15
Cfr. art.º 1467.º do actual Código Civil Brasileiro, afirmando expressamente que são credores
pignoratícios, independentemente de convenção, os hospedeiros ou fornecedores de pousada ou de
alimento, pelas despesas que os clientes houverem efectuado (recaindo sobre as bagagens, móveis, jóias e
dinheiro que aqueles clientes transportarem para aqueles estabelecimentos) e também os senhorios dos
prédios rústicos ou urbanos pelas rendas em atraso (incidindo bens que constituam o recheio dos imóveis
e sejam propriedade dos inquilinos: todavia, o locatário poderá impedir o surgimento deste penhor
prestando caução idónea – art.º 1472.º). Merecem particular realce o facto de a garantia poder recair sobre
vários bens (art.º 1469.º) e, sobretudo, de os credores se poderem apoderar dos bens onerados, antes de
recorrer às autoridades judiciais, em caso de perigo na demora (art.º 1470.º, que apenas impõe ao credor
pignoratício a entrega ao devedor de um documento comprovativo dos bens de que se apossou), embora
tenham o dever de requer a posterior homologação judicial dessa apropriação (art.º 1471.º). Segundo
Silvio Rodrigues, Direito civil, Vol. V (Direito das coisas), 28.ª Edição, Editora Saraiva, 2009, pág. 356 e
segs., esta garantia destina-se a proteger certos credores (embora tenha subjacente um interesse social),
mais concretamente, os hospedeiros (“pessoas que, em virtude de sua profissão ou atividade, têm de
tratar com desconhecido, não podendo, no mais das vezes, certificar-se da solvabilidade dos seus
clientes, antes de procederem ao fornecimento que lhes é solicitado”) e os proprietários de prédios
rústicos ou urbanos (Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 363 e 364, alude a uma controvérsia,
entendendo alguns que a garantia abrange apenas as mobílias do devedor que se encontrem no imóvel,
enquanto outros alargam o âmbito a qualquer bens móveis existentes no imóvel e que sejam propriedade
do inquilino: o Autor inclina-se para a segunda alternativa, afirmando que, se assim não for, fica frustrada
a protecção que a lei pretendeu conferir aos credores, até porque dela já exorbitam os bens que não
pertençam ao devedor, mas que este possua a outro título, como de empréstimo, bem como outros bens do
devedor que não se encontrem no imóvel locado). Resulta do regime legal, que o credor, uma vez na
posse dos bens sobre os quais recai o seu direito, deverá obter a homologação judicial do mesmo, sendo
que, para esse efeito, apresentará uma petição judicial (instruída, no caso do hospedeiro, com a tabela dos
preços e a descrição pormenorizada das despesas do devedor e dos objectos retidos em garantia da dívida;
no caso do senhorio, deverá fazer prova do seu direito de propriedade e o valor dos alugueres em débito:
em qualquer hipótese, o devedor terá sempre que ser ouvido antes de tomar uma decisão, podendo este
defender-se alegando que a dívida se encontra extinta ou, no caso do viajante, que a tabela de preços não
se encontrava afixada nos termos legais e, no caso do locatário, a inexistência de contrato de locação),
solicitando a citação do devedor para que este, em 24 horas, pague ou apresente a sua defesa (sendo que
esta apenas pode consistir na arguição da nulidade do processo, na extinção da obrigação ou na
circunstância de a dívida garantida ou os bens executados extravasarem do âmbito da previsão legal -
Sílvio Salvo Venosa, ob. cit., pág. 567): perante a recepção deste pedido, pode o juiz deferir a
homologação (caso em que se seguirá a execução pignoratícia) ou, ao invés, recusar tal pedido (e, então,
os objectos apreendidos serão devolvidos ao devedor). Um outro penhor legal foi criado por lei a favor
dos artistas e técnicos de espectáculo, recaindo sobre todo o equipamento do empregador usado na
realização do programa, espectáculo ou produção e garantindo todas as obrigações incumpridas pelo
empregador para com aqueles credores - Sílvio Salvo Venosa, ob. cit., pág. 566.
16
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, (tradutores Ana
Cañizares Laso e outros), Sachenrecht (Derechos reales), Vol. II, Fundación Cultural del Notariado, D.L.,
2008, pág. 1484, esclarecem que tais garantias “Sirven para garantizar automáticamente una pretensión
obligacional, que la ley protege con un derecho real sobre una cosa basándose precisamente en la
relación física entre crédito e cosa. También garantizan las impensas hechas en la cosa” (apontam como
11
Importa, antes de mais, deslindar o verdadeiro significado de uma garantia legal,
porquanto esta expressão pode abranger diversos sentidos.
Desde logo, não pretendemos aqui referir-nos àqueles casos em que a garantia se
encontra prevista na lei, ainda que efectivamente só venha a nascer a partir do momento
em que se produza um determinado facto a que a lei atribua o efeito de criar uma
garantia (como sucede na generalidade das garantias de origem contratual ou judicial18),
mas sim àqueles outros nos quais a lei funciona como fonte directa e imediata do
surgimento da segurança real.19
Contudo, mesmo que adoptemos este segundo entendimento, resta ainda
esclarecer se garantias legais serão apenas aquelas em que a lei seja condição necessária
e suficiente para o seu surgimento (como sucede com os privilégios creditórios20) ou
exemplos, o disposto nos §559, 581, 592, 647 e 704 do BGB, bem como outras disposições avulsas).
Segundo estes Autores e apesar de a lei mandar aplicar a tais penhores o regime geral do BGB (§1257
deste diploma), tal regra sofre diversas excepções (motivadas muitas vezes pela própria relação jurídica
que origina o seu nascimento), não apenas no que concerne à desnecessidade de desapossamento
constituinte que caracteriza algumas delas, como também na impossibilidade de aquisção a non domino
(excepto quando os penhores legais implicarem o desapossamento do empenhante): em suma, o traço
comum aos penhores legais e convencionais residirá na sua função de garantia, no modo de execução e na
sub-rogação sobre o produto da alienação.
17
Sílvio Rodrigues, Direito civil, Vol. V (Direito das coisas), Editora Saraiva, 2003 (28.ª Edição), pág.
356 e segs., entende estarmos perante um meio directo de defesa, que consente aos credores “fazer
efectivo o penhor, apreendendo a coisa pertencente ao devedor, para sobre ela fazer recair seu direito
real, independentemente de prévia autorização judicial. Em rigor, a apreensão não constitui o penhor.
Ela representa apenas uma pretensão à constituição do penhor. Este só se aperfeiçoará após a
legalização”, traduzida na homologação judicial daquela apreensão (até lá, o credor é mero detentor de
um bem alheio), a qual “legaliza a posse tomada pelo credor e ultima a constituição do direito real de
garantia”. Já Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 364 e 365, menciona as dúvidas
relativamente à natureza pignoratícia ou de direito de retenção deste instituto (reforçadas pela
circunstância de, antes do CCB de 1916, os casos actualmente qualificados como penhor serem direitos
de retenção), justificando a solução legal com a diferença entre ambas as figuras (no penhor legal o credo
apossa-se de um bem que se encontra em poder do devedor – enquanto no direito de retenção o bem
retido já se encontra em poder do retentor; o direito de retenção, contrário do penhor legal, prescinde de
qualquer intervenção judicial; o direito de retenção é um simples meio de defesa, enquanto o penhor,
mesmo legal, deverá ser executado; o direito de retenção é mais amplo – cabendo a qualquer credor que,
embora obrigado a restituir um bem, seja credor por uma quantia conexa com essa retenção - enquanto o
penhor legal só assiste aos credores especialmente indicados na lei; finalmente, o direito de retenção pode
recair sobre bens imóveis, ao passo que o penhor legal incide apenas sobre bens móveis). Por seu turno
Sílvio Salvo Venosa, ob. cit., pág. 564, alerta para a existência prévia de um contrato, de cujo
incumprimento gera, ope legis e sem prejuízo da necessidade de homologação judicial, o surgimento do
penhor legal. Finalmente, de acordo com Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, Vol. IV
(Direitos reais, Editora Forense, 2006 (19.ª Edição), pág. 347, o penhor legal comporta uma dimensão de
natureza privada (um resquício de justiça pelas próprias mãos), complementada por uma homologação
judicial.
18
Adoptando esta noção de garantias legais, poderemos dizer que todas as garantias previstas e reguladas
num determinado ordenamento jurídico são legais, apenas extravasando deste domínio as chamadas
garantias atípicas, com todas as dúvidas que esta categoria suscita.
19
Distinguindo estas duas acepções em que se pode entender o conceito de garantia legal (com
considerações expandidas a propósito da generalidade das garantia reais, mas perfeitamente aplicáveis ao
penhor), Jacques Ghestin (direcção) e Jacques Mestre, Emmanuel Putman et Marc Billiau, Droit commun
des sûretés réelles, LGDJ, 1996, pág. 213, afirmando que no primeiro entendimento a lei funciona como
acte-règle, ao passo que no segundo constitui um autêntico acte-condition.
20
Como tivemos oportunidade de realçar noutra sede (vide Miguel Lucas Pires, Dos privilégios
creditórios: regime jurídico e sua influência no concurso de credores, Almedina, 2004, pág. 31), no caso
dos privilégios a lei é condição “suficiente, no sentido em que a simples constituição do crédito determina
o carácter privilegiado do mesmo, sem necessidade de o credor adoptar qualquer comportamento (por
isso são apelidados de garantias legais), necessária, porque nenhum crédito poderá ser considerado
privilegiado sem que a lei lhe confira tal qualidade (“pas de privilège sans texte”, como bem se afirma
12
igualmente aqueles outros casos em que a lei será pressuposto necessário, mas não
suficiente para a sua criação, ou seja, quando a garantia resulte directamente da lei, mas
não prescinda de uma conduta activa da parte do beneficiário da garantia para que esta
se constitua efectivamente (como acontece com as hipotecas legais).21
Entendemos que garantias legais em sentido estrito – no sentido em que a lei
seja condição necessária e suficiente – se resumem aos privilégios creditórios,22 pois
apenas neste caso o crédito se encontra munido de garantia desde a sua nascença, sem
que o respectivo titular tenha qualquer obrigação ou ónus complementar, assim
concluindo pela ausência de qualquer penhor legal com estas características.23
Resta, por isso, indagar acerca da existência de um penhor legal em termos
análogos aos da hipoteca, ou seja, que possa surgir com fundamento num dado preceito,
mas pressuponha um determinado comportamento activo por parte do respectivo titular.
No caso da hipoteca legal, o credor deverá proceder ao respectivo registo sobre
algum dos bens indicados por lei como potenciais objectos desta garantia, assim se
observando o princípio da especialidade ou individualização dos bens.24
na doutrina francesa).”. No entanto, mesmo relativamente aos privilégios creditórios, existem casos
excepcionais em que a mera previsão legal é insuficiente para o nascimento da garantia, podendo ser
ainda necessário um acto unilateral do devedor, uma decisão governamental ou até mesmo uma decisão
judicial – para uma enumeração destes casos, vide o nosso Dos privilégios cit., págs. 32 e 33.
21
Como realça Chironi, Tratatto dei privilegi, delle ipoteche e del pegno, Vols. I, Fratelli Bocca Editori,
Torino, 1894, págs. 558 a 560, cumpre distinguir entre a criação da garantia (ou título para a sua criação
que, neste caso, é a lei) e sua constituição, que se traduz no respectivo registo (isto é, “nella creazione per
opera della legge, il momento in cui si detemina efficacemente il rapporto è quello dell’iscrizione (…). La
legge non crea, a parlare propriamente, il rapporto di garanzia: essa attribuisce in generale ad una data
posizione giuridica la virtù di produrre l’ipoteca, e la creazione vera dipende della voluntà della persona
che intende di far valere quella virtù, e lo dimonstra con la iscrizione“) ou, nas palavras de Pires de Lima
e Antunes Varela, Código Civil Anotado, com a colaboração de Henrique Mesquita, Vol. I, Coimbra
Editora, 1987, pág. 726) “Estas hipotecas não têm, portanto, como fonte imediata a lei. Resultam dela,
mas carecem, posteriormente, de ser constituídas. O acto de constituição é o registo. Elas estão sujeitas,
como quaisquer outras hipotecas, à disposição do art.º 687.º, que torna a eficácia desta garantia, mesmo
em relação às partes, dependente do registo. Mas, neste caso de hipotecas legais, nãos se trata apenas de
um problema de eficácia. Antes do registo, elas não podem considerar-se constituídas, não têm existência
legal. Há apenas, por parte do credor, o poder legal de as constituir mediante um acto de registo, que
será o título de especificação dos bens e determinação do crédito”.
22
Eventualmente poderemos acrescentar o direito de retenção, na medida em que também este resulta
directamente da lei. No entanto e para além da discussão acerca da sua consideração como garantia real
(neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 27 de Dezembro de 2008, in www.dgsi.pt), o direito de retenção
pressupõe a posse da coisa objecto do direito pelo seu beneficiário, além de exigir (excepto em alguns
casos especiais previstos no art.º 755.º) que as despesas efectuadas pelo retentor apresentem uma ligação
com o objecto retido (cfr. art.º 754.º), circunstâncias que não são exigidas para o nascimento dos
privilégios (excepcionalmente, o art.º 742.º limita a eficácia do privilégios a determinados bens do
devedor que se encontrem em seu poder). Para uma reflexão sobre os requisitos e a natureza jurídica do
direito de retenção vide, por todos, Júlio Gomes, Do direito de retenção (arcaico mas eficaz), in Cadernos
de direito privado, n.º 11 (2005), pág. 3 e segs..
23
Convém igualmente ter presente que os privilégios creditórios e as hipotecas legais se distinguem
também pelo facto de os primeiros serem outorgados por lei a determinados créditos, ao passo que as
segundas são atribuídas a determinados credores.
24
Desta forma, ainda que a lei determine que uma determinada hipoteca legal pode ser constituída sobre
todo e qualquer bem do devedor (cfr. art.º 708.º), esta nunca será uma hipoteca genérica, no sentido em
que abarca automaticamente todos eles, pois será sempre necessário efectuar o registo relativamente a
cada um deles, o qual tem efeitos constitutivos (art.º 687.º). Para uma análise meramente exemplificativa
de credores a quem são atribuídas hipotecas legais, vide o art.º 705.º, o art.º 195.º do CPPT, o art.º 11.º do
Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Junho e o art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro.
Chironi, ob. e cit., pág. 554 e segs., salienta, a este propósito, que a lei constitui um título idóneo a
constituir a garantia sobre a generalidade dos bens, mas a sua constituição assume necessariamente um
carácter de especialização ou individualização daqueles.
13
Apesar da ausência de normas na lei civil no que criem ou regulem o penhor
legal, deparamo-nos no nosso ordenamento com um preceito – o art.º 195.º do CPPT –
que parece consagrar um penhor legal.25
De facto, nos termos do n.º 1 da mencionada disposição legal, “quando o risco
financeiro o torne recomendável, o órgão da execução fiscal, para garantia dos
créditos tributários, poderá fundamentadamente constituir hipoteca legal ou penhor, de
forma que assegure o pagamento da totalidade da dívida exequenda e acrescido.”,26
acrescentando o n.º 5 que “o penhor será constituído por auto lavrado pelo funcionário
competente na presença do executado ou, na ausência deste, perante funcionário com
poderes de autoridade pública, notificando-se, nesse caso, o devedor nos termos
previstos para a citação”.
Parece-nos, claramente, estarmos perante uma garantia cuja constituição se
processa em termos idênticos aos da hipoteca legal,27 com uma única diferença atinente
à natureza dos bens abarcados por uma e outra garantia: na medida em que a hipoteca
incide sobre bens registáveis, o comportamento a adoptar para o nascimento da garantia
traduz-se na inscrição da mesma, enquanto no penhor, atenta a inexistência de um
registo abrangendo a generalidade dos bens móveis,28 se impõem outros mecanismos
alternativos de constituição.29
Conforme se analisará adiante, o modo de constituição tradicional do penhor
traduz-se na entrega do objecto da garantia ao credor (ou, quando muito, a terceiro) – o
chamado penhor com desapossamento do devedor -, tendo, porém, surgido mecanismos
alternativos a este, com o intuito de eliminar os inconvenientes associados ao aludido
desapossamento (os chamados penhores sem desapossamento do devedor).
Coloca-se, por isso, a questão de saber se neste penhor – a constituir para
garantia das obrigações de que seja titular o Fisco - se exige, ou não, o desapossamento
do devedor e duas são as respostas possíveis.30
25
Do mesmo modo, o Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, (que regula a cobrança das dívidas
fiscais ou à Segurança Social ao abrigo do chamado Plano Mateus), no seu art.º 6.º, n.º 2, permite, quando
estiver em causa dívida superior a 100000000$00 ou o risco financeiro envolvido o torne recomendável, a
constituição de penhor ou hipoteca legal, a favor da Fazenda Pública ou da segurança social (o n.º 3
atribui a competência para a constituição destas garantias aos Ministros das Finanças e da Solidariedade e
Segurança Social, que poderão delegar, e que regulamentarão, por despacho conjunto, as formas de
articulação entre os serviços competentes). Por outro lado, o n.º 4 do mesmo art.º 6.º acrescenta que
mesmas entidades poderão, a todo o tempo, efectuar nova penhora ou constituir nova hipoteca ou penhor
em substituição dos que tenham recaído sobre bens desaparecidos, deteriorados ou desvalorizados.
26
Também o art.º 50.º da LGT concede à administração tributária “o direito de constituição, nos termos
da lei, de penhor ou hipoteca legal, quando essas garantias se revelem necessárias à cobrança efectiva
da dívida ou quando o imposto incida sobre a propriedade dos bens”. Considerando que este preceito e o
mencionado no texto consagram excepções à natureza contratual do penhor, asseverando traduzirem a
consagração do penhor legal no nosso ordenamento (consentindo a constituição da garantia pela
administração tributária quando o entenda necessário para a cobrança de dívidas fiscais), vide Pestana de
Vasconcelos, Direito das garantias, 2.ª Edição, Almedina, 2011, pág. 233.
27
Não é por acaso que o próprio n.º 1 do art.º 195.º fala conjuntamente de “hipoteca legal ou penhor”,
parecendo que também esta segunda garantia deverá ser qualificada como legal.
28
Isto não obstante a aprovação do Código de Registo de Bens Móveis pelo Decreto-Lei n.º 277/95, de 25
de Outubro, diploma que, nos termos do seu art.º 7.º, n.ºs 1 e 2, (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei
n.º 311-A/95, de 21 de Novembro) apenas entrará em vigor quando for aprovado o respectivo
regulamento (cfr. art.º 4.º), o que não aconteceu até à data.
29
Poder-se-á levantar a questão de saber se, naqueles casos excepcionais em que o penhor se encontra
sujeito a registo, bastará a inscrição para a constituição do penhor.
30
Vide a este respeito o nosso Dos privilégios cit., págs. 100 e 101.
14
A primeira consiste em recorrer ao regime geral do penhor contido no Código
Civil (não excepcionado pelo CPPT), que consagra o desapossamento do devedor como
condição do nascimento da garantia pignoratícia.
A segunda, que temos por preferível, passa por considerar este um penhor que
prescinde (ou pode prescindir) do desapossamento do devedor, apoiando-se esta solução
no facto de o n.º 5 do art.º 195.º do CPPT admitir explicitamente a possibilidade de o
penhor ser constituído sem a presença do devedor, ou seja, mesmo antes ou
independentemente da entrega do objecto da garantia.
Outro caso em que se poderá apelas à figura do penhor legal encontra-se no
Decreto-Lei n.º 222/99, de 22 de Junho, que regula, entre outras matérias, o sistema de
indemnização aos investidores no mercado de valores mobiliários.
De acordo com o n.º 1 do art.º 6.º deste diploma, as entidades participantes31
assumem a obrigação irrevogável de entregar ao sistema, em caso de accionamento
deste por parte dos investidores, os montantes necessários para pagamento das
indemnizações devidas a estes últimos, obrigação esta de carácter irrevogável e
necessariamente garantida por penhor de valores mobiliários (cfr. n.º 2 do art.º 6.º).
Em confronto com o regime vertido no art.º 195.º do CPPT, duas diferenças de
monta podem ser assinaladas: por um lado, a delimitação dos possíveis objecto da
garantia (apenas valores mobiliários) e, por outro, a obrigatoriedade de prestação da
garantia (que, no caso da lei fiscal, apenas será concedida caso o credor entenda que as
circunstâncias o justificam).
De penhor legal se poderá falar também no caso previsto no n.º 1 do art.º 623.º,
por força do disposto no n.º 2 do art.º 666.º, ou seja, quando alguém for autorizado ou
obrigado por lei a fornecer caução e esta for prestada através de depósito, este será
considerado como um penhor constituído em favor do beneficiário da caução.32
De lege ferenda, nada obsta à criação de penhores legais, mas não podemos
esquecer, como bem refere VAZ SERRA,33 que muitas dessas figuras se encontram
reguladas na nossa lei como privilégios creditórios ou direitos de retenção.
Assim sendo, quando o legislador pretende conferir directamente uma garantia
ou um título para a sua constituição a um determinado credor ou a certo crédito, poderá
fazê-lo através da criação de um privilégio (caso em que o credor nada mais terá que
fazer para beneficiar da garantia), de uma hipoteca ou penhor legais (hipótese em que o
credor deverá proceder à constituição de uma destas garantias nos moldes previstos na
lei para cada uma delas) ou de um direito de retenção (situação que se traduz na
atribuição de efeitos jurídicos a uma situação de facto – a posse de um determinado
bem).
Sucede, porém, que alguns dos privilégios creditórios previstos em legislações
estrangeiras34 e no Código Seabra35 exigiam, como pressuposto da manutenção da
31
Nos termos do art.º 4.º, para além de outras eventuais integrantes, as entidades que obrigatoriamente
pertencem a este sistema são as empresas de investimento com sede em Portugal e as instituições de
crédito com sede em Portugal autorizadas a efectuar operações de investimento.
32
Neste sentido, Neves de Oliveira, O penhor de créditos: contributo para a compreensão da figura no
contexto das garantias especiais das obrigações, Biblioteca da FDUL, págs. 30 e 31. Todavia, Pestana de
Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 235 e 236, nota 666, entende ser necessário distinguir
consoante o dinheiro seja entregue a terceiro ou ao próprio credor: no primeiro caso, existirá um penhor
do crédito à restituição do dinheiro; no segundo, estamos perante um penhor irregular – isto é, um
negócio fiduciário “que tem por objecto dinheiro que passa a integrar o património do credor. Este terá
que o restituir, caso o devedor/constituinte dessa garantia, cujo objecto é dinheiro, cumpra. Tem assim
um crédito condicional à restituição da soma. O evento condicional é o cumprimento pelo devedor” – e,
por isso, o sentido da remissão legalmente aludida se refira apenas ao depósito nas mãos de terceiro.
33
Penhor cit in BMJ n.º 58, pág. 148.
15
garantia, que o bem se encontrasse e permanecesse em poder do credor ou que se
mantivesse numa determinada localização.36
34
Como sucede com os privilégios previstos nos art.ºs 2756.º, 2757.º, 2761.º e 2764.º do CCI. Daí a
discussão acerca da natureza destas figuras: não serão estes privilégios verdadeiros penhores legais?
Responde afirmativamente Ettore Protettí, Il pegno nella giurisprudenza, Cedam, 1970, pág. 21 e
negativamente, Gino Gorla e Zanelli e Pietro Zanelli, Del pegno, delle ipoteche, in Comentario del
Codice Civile Scialoja-Branca, 4,ª Edição, Zanichelli Editore, 1992, pág. 53. Pelas razões aduzidas
adiante no texto, consideramos que, nestes casos, estamos perante autênticos privilégios. Um outro caso
considerado por alguns Autores (Rubino, La responsabilitá patrimoniale: il pegno, in Tratattto di Diritto
Civile Italiano (diretto da Filippo Vassalli), 2.ª Edição, 1949, Vol. XIV, Tomo I, pág. 239) como penhor
legal é o previsto no art.º 2742.º do CCI (semelhante ao art.º 692.º – aplicável ao penhor por força da
remissão do art.º 678.º - onde se consagra a possibilidade de, em caso de perda, deterioração ou
diminuição de valor da coisa e se o dono da coisa tiver o direito de ser indemnizado, os titulares da
garantia conservam sobre as indemnizações, as preferência que detinham sobre a coisa onerada), mas este
fenómeno pode ser explicado através do recurso ao fenómeno da sub-rogação real (sobre este instituto,
vide infra n.º 3.2.5 do Capítulo II), para além do facto de, como nota Protettí (ob. e loc. cit.), não se poder
falar de penhor porquanto as quantias indemnizatórias não são entregues ao credor e, como salienta
Enrico Gabrielli in Il pegno, in Trattato di Diritto Civile (diretto da Rodolfo Sacco), I diritti reali (Vol. V):
Il pegno, UTET, 2005 pág. 100, a esta garantia não se deverão aplicar as normas relativas ao penhor, não
se tratando de um penhor de crédito, mas sim de uma causa de preferência atípica. No direito francês,
Troplong, Le droit civil expliqué – De la contraint par corps, Du natissement, du gage et de l’antichrèse,
Bruxelles, 1848, págs. 26 e 27, qualifica estes privilégios como “gages tacites”, precisamente por
dispensarem qualquer formalidade destinada à sua constituição. Também a propósito do direito espanhol,
Olivencia Ruiz, Introducción al estudio de las garantias mobiliarias en el derecho mercantil, in Tratado de
garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996, págs. 28 e segs., fala de “prenda
legal” que seria uma espécie de privilégio, ou seja, “no todos los privilegios de Derecho mercantil gozan
de esa calificación (…) quando están especialmente obligados a la responsabilidad y el acreedor puede
exigir la venta judicial (…) puede hablarse de una “prenda tácita o legal”, cuya eficacia se prolonga
hasta en caso de quiebra sobrevenida del deudor”.
35
Vide os art.ºs 882.º e 883.º do Código de Seabra.
36
Segundo Ferrara, L’ipoteca mobiliare, Foro Italiano, Roma, 1932, pág. 105, em tal caso estaremos
perante penhores legais ou tácitos (tanto mais que a lei integra o penhor na lista dos privilégios
creditórios), sempre que a lei exija que o bem permaneça em poder do credor (afirmando que “In questi
casi infatti il diritto di pegno è subordinato alle regole che la cosa oppignorata resti in potere del
creditore. Soltanto che questo pegno, invece che per volontà delle parti, nasce per volontà di legge”),
enquanto naqueles casos em que se imponha que o bem permaneça num local pertença do credor ou
naquele em que teve origem e com fundamento no qual surgiu o crédito garantido considera estarmos
perante hipotecas mobiliárias. Também Hardel, Étude de la notion de dessaisement en matière de gage en
droit français, Sirey, 1933, pág. 110 e segs., adopta a terminologia de “gage tacite”, para hipóteses em
que a constituição da garantia resulta de situações de facto, como sucede com alguns privilégios cuja
condição de funcionamento reside na manutenção do bem numa determinada localização pré-existente ao
surgimento da garantia (por exemplo, o hoteleiro sobre os bens que o cliente deposite em seu poder ou do
transportador sobre os bens por ele transportados) ou nos casos de desapossamento simbólico (aos quais
se fará referência mais à frente no texto). De acordo com Simon Quincarlet, La notion de gage en droit
privé français: ses diverses applications, Bordeaux, Imp. Ségalas-Bérou, 1937, pág. 238 e segs., os
penhores tácitos ou legais são os atribuídos a “certains créanciers qui se trouvent en possession d’une
chose mobilière appartenant a leur débiteur sans qu’il y ait eu entre les parties convention expresse de
gage”: todavia, ao entendimento clássico e seguido pela jurisprudência dominante que qualifica estes
penhores como tácitos (considerando, por exemplo e a propósito da garantia do proprietário de albergues
sobre os bens dos seus hóspedes, que na medida em que aquele recebe em sua casa pessoas que não
conhece “la loi suppose qu’il intervient entre lui et chaque voyageur une convention tacite aux termes de
laquelle les effets transportes dans l´hôtellerie seront spécialement affectés à titre de gage à la garantie
de l’aubergiste pour le payment dês fournitures faites au voyageur pendant son séjour (…) inspirée par
des motifs d’intérêt général (…) facilite l’exercice de la profession d’aubergiste qui autrement
deviendrait fort périlleuse”), contrapõe-se outro, minoritário, que o apelida de garantia legal (entendendo
que as fontes dos negócios jurídicos e das obrigações são a lei e a vontade das partes, pelo que, neste caso
e perante a ausência desta última, o fenómeno será enquadrável no âmbito das garantias legais).
16
Daí que alguns autores, como GUILHERME MOREIRA,37 os considerassem
verdadeiros penhores legais, por entender que quando os privilégios recaiam sobre
coisas móveis e, além do direito de preferência, o credor também disponha do direito de
retenção, existirá um penhor (legal).38
Apesar de, no nosso ordenamento actual, não existir nenhum privilégio com
estas características, sempre diremos que, salvo o devido respeito por opinião contrária,
nestes casos estamos ainda perante privilégios creditórios, cuja única especificidade
reside na circunstância da sua operatividade se encontrar dependente de uma
circunstância fáctica, qual seja a posse do bem por parte do devedor ou uma localização
determinada por lei.39
De facto, nestes casos, a garantia resulta directamente da lei, sem necessidade de
qualquer comportamento activo por parte do seu beneficiário destinado à sua
constituição, a não ser o de impedir o desapossamento do bem ou a alteração da sua
localização.40
No ordenamento espanhol, vozes se erguem a favor da denominação dos
embargos de bens móveis como verdadeiros penhores legais, muito embora tal
entendimento seja alvo de severos reparos.41
37
In Instituições de direito civil português, Vol. II (Das obrigações), Imprensa da Universidade, 1925,
Coimbra, págs. 351 e 363. No último destes locais, o referido Autor afirma que estes privilégios deveriam
considerar-se “um penhor legal, visto que o credor tem não só o direito de preferência enquanto detiver
os objectos em seu poder, mas o direito de os reter até que seja pago, atribuindo-lhe a lei expressamente
o direito de retenção (…). Ora êste direito só pode explicar-se pelo penhor.” Em face do direito espanhol,
estes casos são explicados por Guillarte Zapatero, Comentario aos art.ºs 1857.º a 1873.º, in Comentarios
al Código Civil y compilaciones forales, Vol. XXIII (art.ºs 1822.º a 1886.º), Dirigidos por Manuel
Albaladejo, Editorial revista de derecho privado (2.ª edição), 1990, pág. 488, como direitos de retenção,
aos quais, por vezes, se associa a concessão de um direito de preferência, excluindo o Autor tratar-se de
verdadeiros penhores legais.
38
Existe, por outro lado, outra garantia qualificada por alguma doutrina francesa (Gabriel Marty, Pierre
Raynaud e Philippe Jestaz, Les sûretés; la publicité foncière, Sirey, 2.ª Edição, 1987, pág. 297, Marie-
Noelle Jobard-Bachelier, Droit civil: sûretés, publicité foncière, 13.ª Edição, Dalloz, 2000, pág. 55) como
penhor legal (e até como hipoteca mobiliária legal), que é o penhor sobre veículos automóveis (vide o
Decreto de 30 de Setembro de 1953), na medida em que esta garantia é associada, por imposição de lei, a
qualquer contrato de venda a crédito ou de financiamento para aquisição de automóveis, operando através
de um desapossamento fictício que consiste na entrega ao credor do recibo da matrícula do veículo. No
entanto, seguindo o entendimento de Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés, 5.ª Edição, Litec, 1999, pág.
565, não estamos perante uma garantia legal, na medida em que “sa constitution requiert une formalité –
l’écrit enresgistré – qui dépend de la volonté des parties” (no mesmo sentido, acrescentando que, para
além do registo, é necessário um acto escrito que pressupõe um consentimento mútuo das partes, vide
Jacques Ghestin, (direcção), Jacques Mestre, Emmanuel Putman, et Marc Billiau, Droit special des
sûretés réelles, LGDJ, 1996, pág. 313). Acerca das regras actuais sobre esta garantia, vide infra n.º 1.2.2
do Capítulo II.
39
Como bem nota Chironi, ob. cit., págs. 554 e 555, os apelidados penhores legais, os quais resultam “da
favore verso la causa del credito, e perciò, meglio che del pegno, avrebbe la ragion di essere del
privilegio”.
40
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 57 e segs., dá conta que a doutrina francesa ora qualifica este tipo de
penhores como tácitos (considerando, mesmo na ausência de qualquer convenção, que o credor que se
encontra em poder de um bem do seu devedor pretende que lhe seja atribuído um direito de preferência
sobre tal coisa), ora os considera como legais (posição à qual o Autor adere, escrevendo que esta garantia
“naît immédiatement de la loi et médiatement du fait juridique que constitue la possession par un
créancier d’un meuble de son débiteur dans certaines conditions”).
41
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 489, refuta esta equiparação entre um instrumento processual
e uma instituição de direito substantivo, desde logo porque o penhor pode operar mesmo antes do
incumprimento da obrigação garantida (enquanto o embargo, salvo casos excepcionais, apenas funciona
uma vez verificado aquele incumprimento), para além de o embargante não se tornar possuidor dos bens
embargados (e, por isso, não beneficiar das prerrogativas que, por força dessa posse, são atribuídas ao
credor pignoratício).
17
2.2 - Decisão judicial
Nos termos do n.º 1 do art.º 710.º, a decisão judicial (ainda que não transitada
em julgado) que condene o devedor à realização de uma prestação em dinheiro ou outra
coisa fungível constitui título suficiente para o registo de uma hipoteca sobre qualquer
bem do obrigado.42
Tal como referido a respeito da hipoteca legal, também aqui a decisão judicial
não opera, por si só, a constituição da garantia, funcionando apenas como título que
legitima a posterior constituição.
A principal vantagem, para o credor, da constituição de uma hipoteca nestas
circunstâncias, reside em não ter de aguardar pela fase executiva (rectius, pela penhora
que aí venha a ocorrer) para obter uma preferência sobre determinados bens do devedor,
conseguindo, assim, suplantar em sede de concurso os demais credores que tenham
obtido a sua garantia depois do registo da referida hipoteca judicial.
Mais uma vez, a lei civil geral omite qualquer referência ao penhor judicial mas,
ao contrário do exposto acerca do penhor legal, não existe qualquer consagração em
legislação avulsa de uma garantia desta índole.43
Nesta conformidade, resta concluir pela inexistência de um penhor judicial, pelo
que o credor munido de uma decisão judicial condenatória que pretenda obter uma
garantia judiciária sobre determinados bens do devedor deverá aguardar pela penhora ou
outro acto de apreensão equivalente.44 45
42
Se a prestação não for líquida, a hipoteca pode ser registada pela quantia provável do crédito (n.º 2), ao
passo que se o devedor for condenado a entregar uma coisa ou a prestar um facto, a hipoteca só poderá ser
registada havendo conversão da prestação numa indemnização pecuniária (n.º 3).
43
Acerca da questão de saber se, em caso de substituição do objecto onerado (cfr. art.ºs 701.º, aplicável
ao penhor por remissão do art.º 678.º), a nova garantia pode ser qualificada como judicial ou legal, vide
infra n.º 9 do Capítulo I.
44
O arresto, por exemplo, produz efeitos legalmente equiparados aos do penhor e, tendo os bens
penhorados sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto, podendo
aquela ser convertida neste por simples despacho judicial (cfr. art.ºs 622.º, n.º 2 e 822.º, n.º 2 e art.º 846.º
do CPC)
45
A generalidade dos ordenamentos estrangeiros também desconhece o penhor judicial. Por exemplo, no
direito italiano, Montel, Pegno cit., pág.794 e, mais recentemente, Barbara Cusato, Il pegno, Giuffrè,
Milano, 2006, págs. 159 e 160 (que considera não fazer parte dos poderes das autoridades judiciárias
determinar a constituição de penhores), Enrico Gabrielli, Il pegno, in Trattato di Diritto Civile (diretto da
Rodolfo Sacco), I diritti reali (Vol. V): Il pegno, UTET, 2005, pág. 100 (com base na inexistência de
norma expressa que consagre tal hipótese) e Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 32. No direito francês
encontram-se previstas três hipóteses diversas: uma primeira no art.º 2075-1 do CCF (introduzido pela
Lei de 5 de Julho de 1972), outra relativa ao penhor judicial de estabelecimento comercial e outra de
carácter geral (estas duas últimas reguladas nos art.ºs 77.º e segs. da Lei de reforma dos processos de
execução – Lei de 9 de Julho de 1991). De acordo com Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 531,
o primeiro dos citados preceitos apresentava os inconvenientes de apenas permitir que a garantia incidisse
sobre dinheiro e títulos de crédito e, por outro lado, requerer o concurso do devedor para a sua
constituição. Por isso, na opinião destes Autores, a previsão da Lei de 1991, ao permitir a sua constituição
sem a colaboração do devedor e ao alargar o âmbito dos possíveis objectos da garantia (nomeadamente às
acções, quotas, partes sociais e valores mobiliários), constitui uma inovação relevante. Porém, Jacques
Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 229 a 247, procedem a uma análise detalhada das várias
modalidades de garantias judiciais consagradas no direito francês, distinguindo entre as garantias judiciais
conservatórias (que correspondem àquelas a que já se fez referência nesta nota) e as garantias judiciais
forçadas (subdividindo estas em garantias convencionais impostas pelo juiz, em garantias constituídas por
contrato judiciário e verdadeiras garantias judiciais). Mais simples é a classificação proposta por Legeais,
Sûretés et garanties du crédit, 7.ª Edição, LGDJ, 2009, págs. 397 e 398, distinguindo as garantias
judiciárias em conservatórias (cujo principal efeito é o de tornar indisponíveis os bens a que respeita) e
judiciais propriamente ditas (que, não produzindo a indisponibilidade, conferem ao beneficiário um
18
Questão diversa é a de saber se, tendo o empenhador um crédito que resulta de
uma decisão judicial favorável, poderá empenhá-lo em favor de um seu credor, à qual
habitualmente se responde de modo afirmativo.46
direito de sequela e de preferência), podendo estas últimas recair, não só sobre bens hipotecáveis ou o
estabelecimento comercial, mas também sobre valores mobiliários (desde que seja notificada a entidade
gestora ou o intermediário financeiro onde os mesmos se encontrem inscritos, como condição de
oponibilidade da garantia) e participações sociais (desde que seja notificada a sociedade emitente, como
condição de oponibilidade da garantia), requerendo-se posteriormente uma publicidade definitiva da
garantia. O efeito principal da decisão judicial é o de produzir o bloqueio desse tipo de bens, o que não
significa a sua indisponibilidade, pelo que o constituinte poderá alienar os bens em questão (porém,
mesmo que o faça antes da publicidade definitiva, o credor beneficiará dos mesmos direitos do titular de
uma garantia convencional ou legal) e, tratando-se de valores mobiliários inscritos numa conta, se o
credor os alienar, a garantia passará a incidir, sem necessidade de convenção nesse sentido, sobre os
valores mobiliários adquiridos em substituição daqueles, efeito este que o Autor enquadra no âmbito da
sub-rogação real (em termos semelhantes, Simler e Delebecque, Droit civil: les sûretés, la publicité
foncière, 5.ª Edição, Dalloz 2009, págs. 634 e 635). No direito alemão, por seu turno, encontra-se
consagrada uma figura chamada penhor em garantia de uma penhora, conferindo ao seu titular um direito
de preferência oponível a terceiros (quer através do exercício de acções possessórias ou de reivindicação),
considerando Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob.
cit., págs. 1561 e 1562, que se trata de uma figura de natureza mista (pública e privada) “diferenciándolo
de los derechos de prenda convencionales o contratuales por su modo de constitución – un acto de
derecho público, como es el embargo, es el que provoca la constitución del derecho -, y a la que se aplica
la regulación del BGB, salvo las matizaciones que haya que introducir a consecuencia de los fines y las
particularidades del procedimiento de ejecución forzosa”.
46
Assim, Colaço Canário, O penhor de créditos e a eficácia externa das obrigações, in RJ, n.º 1 Out/Dez
1982, pág. 60, afirmando que “não há fundamentos a opor a tal possibilidade, uma vez que o crédito,
tendo por base um título válido e eficaz, pode servir os ditames do seu novo proprietário. A fonte, neste
caso, deixa de ser relevante, atendendo ainda a que o crédito em causa pode ser executado em acção
posterior: como tal, não poderia deixar de ser empenhável”. O mencionado Autor apenas excepciona os
créditos inexigíveis, como sejam os já prescritos.
47
Questão diversa prende-se com a aptidão do negócio unilateral enquanto acto apto a dar vida a uma
promessa de concessão de penhor, hipótese esta que se nos afigura válida – no mesmo sentido, Jacques
Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 254 e 255.
48
No direito italiano, o art.º 1987.º do CCI prescreve, igualmente, a natureza excepcional dos negócios
unilaterais, enquanto o art.º 2821.º, n.º 2, interdita a constituição de hipotecas por via testamentária: em
face deste regime, Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 33, admite a constituição de penhor através de negócio
unilateral (considerando que o preceito ditado para a hipoteca deverá ser aplicado também ao penhor,
resultando do mesmo apenas a impossibilidade de, entre as várias modalidades que os negócios
unilaterais podem assumir, a garantia se constituir por via testamentária) enquanto Chironi, ob. cit., págs.
527 a 529, nega a admissibilidade dos negócios jurídicos unilaterais enquanto títulos para a criação de
penhores. Para o direito espanhol, vide Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 485, alegando que “la
simple voluntad del presunto constituyente no es bastante para suplir el requisito de la transmisión
posesoria que, en todo caso, impone Código Civil y requiere la cooperación del acreedor, incluso
tratándose de entrega al tercero”.
19
Todavia, este carácter excepcional da norma que indica o negócio unilateral
como fonte de constituição de hipotecas pode ser refutado, argumentando que a norma
em questão (art.º 712.º) constitui uma norma geral em matéria de garantias reais - uma
vez que o legislador traçou com particular detalhe o regime da garantia hipotecária –,
podendo, por isso, ser alvo de aplicação analógica à garantia pignoratícia, ainda que tal
preceito não conste da remissão para o regime da hipoteca efectuada pelo art.º 678.º.49
Como bem nota VAZ SERRA,50 esta discussão assume um carácter
essencialmente teórico, não apresentando o penhor constituído com fundamento num
negócio jurídico unilateral grande interesse prático, pois “Desde que a entrega é
necessária para o penhor, é preciso, em regra, pelos menos, o consentimento do
credor”, considerando, por isso, duvidosa a constituição de penhor nestes termos, pelo
menos ao abrigo do regime tradicional do penhor de coisas com desapossamento do
devedor.51
49
É a posição de Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 92 e segs., destacando como da consagração legal da
possibilidade de constituição da consignação de rendimentos e, sobretudo, de hipotecas, através de
negócio jurídico unilateral se pode retirar um princípio geral de “validade de constituição de garantias
reais por declaração unilateral, já que em ambos os casos estamos perante afectações preferenciais e
específicas de bens” (sustentando, em conformidade, a possibilidade de aplicação analógica do art.º 712.º
ao penhor – negando a natureza excepcional desta norma - assim afastando o princípio geral vertido no
art.º 457.º). Noutras latitudes, partilham este entendimento Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 54 e 55 (que,
por isso, admitem a constituição de penhor com base em negócio jurídico unilateral), Francesco
Realmonte, Il pegno, in Tratatto di diritto privato (diretto da Pietro Rescigno), Vol. XIX, UTET, Torino,
1985, págs. 653 e 654, Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 101 e Ruscello, Il pegno sul credito.
Costituzione e prelazione, Edizioni Scientifiche Italiane, Jovene, 1984, pág. 115 e segs. (argumentando
que a razão de ser da norma prevista para a hipoteca – “normalmente chi ha un credito, cioè chi vuol
essere pagato, vuole anche i mezzi per ottenere il pagamento o che gli assicurano il pagamento, e
nessuno rifuta questi mezzi senza rinunciare in certo senso al valore o alla efficacia del suo credito” - é
perfeitamente extensível ao penhor e, em particular ao penhor de créditos, no qual a unilateralidade
constituiria até a regra, acrescentando que esta solução é válida “tanto per il legato obbligatorio quanto
per il legato reale, se è vero che in nessuna delle due ipotesi si costituisce autonomamente il diritto di
garanzia ma soltanto il titolo per la sua costituzione” (cfr. págs. 124 a 127). À mesma conclusão chega
Protettí, ob. cit., pág. 21, aduzindo dois argumentos suplementares: por um lado, afirmando que o
ordenamento jurídico italiano associa alguns efeitos jurídicos às declarações negociais unilaterais e, por
outro, alegando que o penhor (ao contrário da hipoteca que requer, para a sua formalização, um
documento público ou privado) se constitui apenas com a entrega da coisa, sendo irrelevante que a
vontade do concedente do penhor seja manifestada através de negócio uni ou bilateral. Este último Autor
acrescenta que, por se tratar de declarações receptícias, a vontade do constituinte deve ser comunicada ao
credor e, a partir desse momento, torna-se vinculante e irrevogável. Em face do direito espanhol e mais
concretamente da lei sobre hipoteca mobiliária e penhor sem desapossamento, García-Pita y Lastres, La
hipoteca mobiliaria e la prenda sin desplazamiento, en el derecho mercantil, in Tratado de garantias en la
contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996, pág. 181, enumera um caso em que este diploma
expressamente reconhece o negócio jurídico unilateral como fonte da nascimento de uma destas figuras,
quando constituídas em garantia de títulos-valores emitidos à ordem ou ao portador (tendo em conta o
carácter circulante destes títulos e a mutabilidade e indeterminação ab initio do credor), enquanto Mejias
Gomez, La prenda de acciones, Aranzadi, 2002, págs. 128 e 129, sustenta a admissibilidade da
constituição do penhor de acções através de negócio jurídico unilateral, embora considera que o negócio
permanecerá incompleto até à entrega das acções ou ao seu registo (consoante se trate de valores titulados
ou escriturais), para além de aludir ao caso específico da constituição mortis causa (acrescentando que,
nesta hipótese, nem sequer será necessária a inscrição no registo das acções tituladas): na jurisprudência,
Lerena Cuenca e Martinez Imizcoz, Hipoteca, prenda y anticresis, Thomson-Aranzadi, 2007, págs. 524 a
526, noticia que a sentença da Audiência Provincial de Gipuzkoa de 4 de Março de 2003, reconhece a
possibilidade de constituição de penhor através de negócio unilateral.
50
Penhor cit in BMJ n.º 58, págs. 147 e 148. Não confundir a questão analisada no texto com outra,
distinta, relativa à possibilidade de constituição por negócio jurídico unilateral da obrigação de empenhar,
problema este que, de acordo com o Autor, deve ser solucionado nos termos gerais da admissibilidade dos
negócios unilaterais.
51
No mesmo sentido, Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág.101.
20
No entanto, a questão assume particular relevância para aqueles penhores para
cuja constituição a lei dispense a formalidade da entrega material do bem ao credor,
como sucede com o penhor de créditos e outros direitos (cfr. art.º 681.º), importando
determinar se, nestes casos, bastará notificar o credor ou registar o acto unilateral do
devedor.52
Um caso particular respeita à possibilidade de constituir um penhor por via
testamentária, admitida para a hipoteca de modo implícito pelo art.º 714.º.53
52
É o que sucede também, no direito espanhol, com o penhor de valores mobiliários representados
através de anotações em conta, por força da legislação especial que rege esta matéria – neste sentido,
Barrada Orellana, Las garantias mobiliarias en el derecho civil de Cataluña, Valência, Tirant lo Blanch,
2005, págs. 83 e 84. Com efeito e como salienta De la Santa Garcia, Prenda de valores en garantía de
operaciones crediticias: prenda telemática, Marcial Pons, 2002, pág. 182 e segs., este tipo de penhor
poderá ser inscrito no registo “mediante la manifestación unilateral del que figure en registo como titular
de los valores, debiéndose entender producida la aceptación de la prenda por parte del acreedor
pignoraticio desde que el titular de los valores comunique a la entidad encargada del registro contable
dicha manifestación unilateral, siempre que así se haya previsto en el Reglamento del mercado o del
sistema de compensación y liquidación o se haya previsto expresamente por las partes”, devendo a
entidade registadora comunicar, a posteriori, ao credor pignoratício, a inscrição e os seus detalhes, de
modo a que este possa comprovar a autenticidade dos mesmos: todavia, o Autor ressalva que esta
modalidade de constituição de penhor sobre valores mobiliários escriturais apenas vale para os admitidos
a negociação em mercado secundário, por ser relativamente a estes que mais se faz sentir a necessidade
de criação de mecanismos mais expeditos de constituição de garantias.
53
O mesmo sucede, de acordo com Diez-Picazo, ob. e loc. cit., no direito espanhol, onde também se
admite expressamente a hipoteca testamentária, mas não se vislumbra qualquer referência ao penhor
constituído com o mesmo fundamento (admite igualmente a constituição de penhor por via testamentária
Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 422, nota 7, alegando que tal possibilidade é tão viável como o é a
constituição de qualquer outro direito real pela mesma via: assim, A, conhecedor que B, seu herdeiro, é
devedor de C, introduz uma cláusula testamentária nos termos da qual um determinado bem da herança
passe a garantir pignoraticiamente o crédito de C: em tal caso, uma vez aceite a herança por B, este
deverá entregar o bem a C, embora este adquira o direito de penhor desde a morte de A e sem necessidade
de entrega do bem e mesmo antes da aceitação da herança por parte de B, justificando a desnecessidade
de entrega com o facto de “la tradición es necesaria para adquirir los derechos reales sólo cuando se
trata de enajenación pr contrato, pero no por sucesión mortis causa” e, ainda, que aquela imposição de
entrega prevista para o penhor contratual “no es debida a que (independientemente de la trdición y teoria
del título e del modo) el derecho de prenda requiera la entrega para nacer, sino a que ésta es requerida
para la perfección del contrato, por ser el constitutivo de la prenda, contrato real”). Pelo contrário, no
direito italiano o art.º 2821.º, n.º 2 do CCI proíbe expressamente a constituição de hipoteca por via
testamentária, divergindo as opiniões relativamente à aplicação analógica deste preceito ao penhor:
Rubino, Il pegno cit., pág. 238, rejeita esta aplicação, advogando que existe aqui um caso em que um
negócio unilateral produz efeitos (porquanto o legado se adquire ipso jure, sem necessidade de aceitação
– cfr. art.º 648, n.º 1) e admite, por isso, o penhor testamentário (também Montel, Pegno cit., pág. 794 e
Faggella, Il pegno commerciale, in Commentario al Códice di Commercio, Vol. VII, Casa Editrice Dottor
Francesco Vallardi, Milano, 1924, pág. 70 e Protettí, ob. cit., pág. 56, o fazem). Pelo contrário, Gorla e
Zanelli, ob. cit., págs. 53 e 54, inclinam-se para a aplicação analógica ao penhor da proibição de hipotecas
testamentárias, uma vez que a razão de ser desta (evitar que o credor altere ocultamente a par conditio
creditorum com um vínculo destinado a nascer apenas após a sua morte) será perfeitamente extensível à
garantia pignoratícia, posição esta também subscrita por Ruscello, ob. cit., pág. 128 e segs. (afirmando
que aquela norma é reflexo de um princípio geral de preferência, em matéria sucessória, dos credores do
defunto sobre os legatários, pelo que o legado de penhor deve aguardar a satisfação dos credores do
defunto) e por Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 33. Em face do regime do anterior CCI, Il pegno dei
crediti, Cedam, Padova, 1939, pág. 43, nota 1, entende que, a circunstância de a lei se referir unicamente
à constituição do penhor por via contratual não é argumento bastante para excluir a sua constituição de
outro modo, nomeadamente por testamento, pelo menos desde que o legatário se encontrasse já na posse
do bem, a outro título (v.g. depósito), no momento da outorga do testamento (caso contrário, “la
disposizione testamentaria varrebbe solo a creare in capo all’erede l’obbligo di costituire il pegno,
trasmettendo il possesso della cosa al legatario”).
21
Ainda que se admita o penhor testamentário, com a abertura da sucessão o
credor pignoratício adquire, não o direito de penhor propriamente dito, mas apenas o
direito pessoal à entrega do bem por parte do herdeiro, surgindo a garantia apenas se e
quando tal transmissão tenha lugar.54
Pelo contrário, ainda que não se aceite o penhor testamentário, dever-se-á
admitir que, por vontade do testador, se crie uma obrigação a cargo do herdeiro de
conceder um penhor (isto é, a criar um título para a constituição do penhor).55
Diga-se, por fim, que a circunstância de o bem que o testador pretende ver
empenhado já pertencer ao herdeiro é irrelevante, havendo apenas algumas
especificidades quando a coisa objecto da garantia pertencer a terceiro.56
Tomando posição em relação ao ordenamento pátrio, em face do direito
constituído e muito em particular do carácter excepcional dos negócios jurídicos
unilaterais, parece-nos muito duvidoso que tais negócios se assumam como título
idóneo para a constituição de penhor.57
No que ao testamento atine, VAZ SERRA58 pronuncia-se, de jure condendo, a
favor da sua admissibilidade como título para a constituição de penhor, circunstância
reforçada pelo facto de os legados e as heranças não produzirem os seus efeitos
automaticamente,59 ou seja, carecerem sempre de aceitação por parte dos herdeiros e
legatários (cfr. art.ºs 2249.º e 2051.º a 2061.º), para que estes assumam o encargo
pignoratício (pelo que não se constituirão devedores contra a sua vontade).
54
Tratando-se de penhor de créditos ou de penhor sujeito a registo, parece que o penhor se poderia
constituir, respectivamente, com a notificação ao devedor do crédito empenhado ou com a inscrição
efectuada pelo credor. No que especificamente concerne ao penhor de valores mobiliários escriturais,
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 208, deixa no ar a questão se saber se o credor pignoratício
adquire o seu direito em virtude da inscrição ou, pelo contrário, na data da morte do testador (embora
ressalvando que, antes da inscrição no registo, “el nuevo titular prendario no se encuentrará legitimado
frente a la entidad emisora para el ejercicio de los derechos anotados, u oponer frente a terceros su
titularidad”).
55
A este propósito, as opiniões de Rubino e Gorla e Zanelli, últs. obs. cits., são convergentes. Já Ruscello,
ob. cit., pág. 131 e segs., admite um legado de crédito que, na mesma disposição testamentária, preveja
um penhor (embora considere que, caso o legatário concorra com os credores do defunto, estes preferirão
àquele; se, ao invés, não existirem credores do defunto, o legatário concorre com outros legatários ou será
o único a beneficiar deste tipo de sucessão). Também Ballarín Marcial, Prenda de acciones y de
participaciones de sociedad de responsabilidad limitada, in Estudios sobre a sociedad anonima (dirigido
por Víctor Manuel Garrido de Palma), 2.º Vol., Civitas, Madrid, 1991, pág. 214, admite esta
possibilidade, nomeadamente quando o testador ordena a um dos seus herdeiros que garanta com um bem
da herança uma determinada dívida e, uma vez aceite a herança, deverá o herdeiro proceder à constituição
da garantia.
56
Neste caso, Rubino, ob. e loc. cit., entende que, sendo válido o legado, o herdeiro assume a obrigação
de adquirir a coisa ao actual proprietário ou depositar uma soma correspondente ao justo valor do bem
(caso não seja viável a aquisição, será forçoso recorrer à outra alternativa).
57
Ao invés, no direito francês Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 255 enumeram alguns
casos de penhores criados por acto jurídico unilateral (como sejam o endosso pignoratício de letras de
câmbio ou a respectiva entrega pelo portador ao seu credor, assim, como no endosso de um warrant que
titule um penhor sobre mercadorias). De acordo com estes Autores, o endosso traduz uma manifestação
unilateral de vontade e a obrigação de cumprir este compromisso resulta do facto de este ter sido
conhecido por terceiros, que assim adquiriram a legítima expectativa de cumprimento do mesmo.
58
Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 148.
59
Ao contrário do que sucede noutros ordenamentos como o italiano (cfr. o citado art.º 648.º, n.º 1, do
CCI) e o direito catalão. No entanto, neste último caso, existe um conflito entre o carácter automático da
aquisição do legado com eficácia real (art.º 267.º do Código das Sucessões da Catalunha) e o art.º 12.º da
Lei catalã dos direitos reais de garantia, que exige a entrega do bem objecto do penhor ao credor, o qual,
de acordo com Barrada Orellana, ob. cit., págs. 91 e 92, deve ser resolvido dando prevalência à segunda,
destarte negando a criação de penhores por via testamentária.
22
Resta, porém, o inconveniente da necessidade da entrega do bem ao credor como
requisito da constituição de penhor (pelo menos em regra),60 pelo que entendemos
apenas ser possível falar de penhor testamentário nos casos de penhor sem
desapossamento (e desde que cumpridas as formalidades exigidas como alternativa
àquele) ou, nos penhores com desapossamento do devedor, entendendo que o credor
adquire apenas o direito pessoal à entrega do bem (à imagem do que sucede com a
celebração de um contrato-promessa de penhor).61
Todavia, vozes se erguem no nosso ordenamento preconizando a viabilidade de
constituição da garantia pignoratícia com base num negócio jurídico unilateral,
fundamentalmente com base numa analogia com o regime da hipoteca,62 posição esta
também seguida por algumas decisões judiciais.63
60
Em termos semelhantes para o direito espanhol, Diaz Moreno, La prenda de anotaciones en cuenta, in
RCDI, 1991, pág. 396, nota 75, recusa que o penhor tradicional com desapossamento se possa constituir
por acto unilateral (uma vez que “la tradición de la cosa al acreedor requiere su cooperación y si de pone
en poder de un tercero su designación ha de hacerse de mutuo acuerdo”), mas aceita tal possibilidade
relativamente a penhores não possessórios, como o que incida sobre valores mobiliários escriturais
(porquanto “la entidad encargada del registro debe dar curso a la orden de inscripción de la prenda
emitida por quién, apareciendo como titular según su contabilidad, restituye al mismo tiempo el
certificado que se hubiera expedido. Que tales instrucciones vengan precedidas (…) de un acuerdo con el
acreedor o deriven de la voluntad exclusiva del constituyente es algo que no debe influir sobre la
actuación de dichas entidades”, admitindo, quando muito, que na segunda hipótese se atribuísse ao credor
um prazo razoável para este aceitar ou não o penhor).
61
Quanto à constituição do direito de penhor por via de usucapião e a non domino, vide infra n.º 2.4.2.1
do Capítulo I.
62
Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 21 e 32, acrescentando que o princípio da tipicidade dos negócios
jurídicos unilaterais deve ser entendido em termos restritivos, de acordo com diversos Autores que cita
(um deles restringe a aplicação do dito princípio aos negócios abstractos, não sendo invocável
relativamente aos negócios causais).
63
Admitindo a constituição de penhor com base num negócio jurídico unilateral, vide o Acórdão do STJ
de 8/7/1997, in www.dgsi.pt. A fundamentação da decisão radicou, essencialmente, no repúdio do
suposto carácter excepcional dos negócios unilaterais, considerando que o sistema normativo do Código
Civil acabou por “instituir um sistema que generaliza os actos unilaterais como forma de constituir
obrigações”. Prosseguindo, consideram que “Só há tipicidade normativa estrita nas áreas em que a lei
estatua, apenas, com recurso a tipos normativos, isto é, prevendo categorias delimitadas de eventos a
que associe, depois, os efeitos jurídicos. Essas categorias devem vir referenciadas por forma
determinada, com descrição precisa dos seus traços específicos. Quando, numa série pretensamente
típica, surjam categorias de tal forma abstractas que lhes sejam recondutíveis eventos qualitativamente
diferentes em quantidades indetermináveis, a tipicidade é meramente aparente. (…) O artigo 457 do
Código Civil pretendeu instituir uma tipicidade de actos unilaterais; estes seriam apenas viáveis quando
expressamente permitidos por lei, derivando daí o seu numerus clausus. O sistema só ficaria, porém,
completo, caso o Código tivesse, em todo o complexo normativo consagrado tipos estritos de negócios
unilaterais. Porque, caso surja alguma possibilidade genérica de celebrar actos unilaterais, o Código
vem destruir depois, mediante uma excepção total, aquilo que tão laboriosamente comunicara no seu
artigo 457. Sabemos já que isso sucede por força de proposta contratual. Esta não pode deixar de ser
considerada como negócio unilateral; e como o seu conteúdo é totalmente livre não é possível falar de
proposta como um tipo. Pelo contrário, ela integrará um número indeterminado de tipos negociais
(proposta de compra e venda, de locação, de sociedade, etc.) meramente exemplificativos.” Este
entendimento, sempre na óptica dos Exmos. Conselheiros, resulta mais evidente ao analisar as figuras
pacificamente consideradas como negócios jurídicos unilaterais, designadamente o testamento, pois “esse
negócio é totalmente atípico, uma vez que, por seu intermédio, pode ser conseguido um número
indeterminado de efeitos (…) O mesmo se poderá concluir do artigo 459 (promessa pública) e do artigo
463 (concurso público) (…) ”. Concluindo, “há que contestar, no nosso direito, o entendimento clássico
do princípio invito non datur beneficum (a ninguém pode ser imposto um benefício contra vontade). De
inúmeras disposições Código Civil resulta que as pessoas podem ser beneficiadas por outro,
independentemente de acordo; só que, naturalmente, podem, também, recusar o benefício. Assim sucede
no caso do destinatário da proposta contratual; assim sucede, também, na hipótese do beneficiário de um
contrato a favor de terceiro. A única ideia útil que se poderia retirar de uma eventual limitação aos
23
2.4 - Contrato
Se, relativamente aos possíveis títulos idóneos para a constituição do penhor até
agora dissecados, muitas dúvidas se suscitam, o mesmo não acontece com o contrato, na
medida em que este é pacificamente aceite, desde logo pelo próprio legislador, como
apto para esse efeito.
Contudo, há quem entenda que o direito real de penhor não decorre directamente
do contrato, traduzindo-se antes num efeito directo da lei, sob o impulso de um facto
jurídico – a posse pignoratícia – e de um acto ou facto jurídico, aos quais a lei faz
corresponder a afectação directa de um bem em garantia.64
Importa, todavia, analisar mais em pormenor determinados aspectos do contrato
enquanto título para a constituição da garantia pignoratícia, designadamente para nos
apercebermos até que ponto a doutrina geral dos contratos encontra aqui aplicação.
negócios unilaterais é a de que as pessoas podem obrigar-se unilateralmente, mas não podem obrigar
outras, sem o consentimento destas.”.
64
Assim, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 249 e segs., esclarecendo que no penhor convencional o acto
jurídico que acresce à posse é o acordo de vontades (embora este apenas produzirá efeitos quando o bem
for entregue ao credor), enquanto no penhor tácito ou legal o penhor nasce da posse do bem a onerar por
parte do credor, associado à existência de um crédito a favor do mesmo sujeito ao qual a lei atribui aquela
garantia (ou seja, um mero facto jurídico ao qual a lei atribui efeitos diversos – mais vastos – do que os
pretendidos pelas partes). Finalmente, no caso das garantias judiciais “la décision judiciaire n’intervient
que pour déclencher en quelque sorte l’application à un cas particulier des dispositions légales;
l’ordonnance du juge des référés qui doit nécessairement intervenir lorsque les conditions fixés par la loi
sont remplies ne peut en rien modifier les droits du créancier sur la somme consignée qui sont déterminés
par la loi”. Nesta conformidade, o Autor conclui ser incorrecto dizer que o contrato cria o direito real de
penhor (ou que este constitui em efeito daquele), sendo antes mais exacto referir que “le droit de gage
découle de la loi qui parfois en fait dériver l’application des conventions intervenues entre les parties
(…) mais qui dans tous les cas en subordonne l’existence au fait juridique de la possession par le
créancier de la chose”, como aliás se comprova pelo limitado poder que as partes têm para afastar o
regime legal do penhor (não apenas por força da proibição do pacto comissório, mas igualmente pela
natureza imperiosa do desapossamento do devedor)
65
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 236, considera que as outras obrigações do credor
pignoratício (como o dever de conservação da coisa empenhada) assumem carácter acessório
relativamente à obrigação principal de restituição. Convergentemente, Paz-Ares Rodriguez, Comentario
del codigo civil, Secretaria General Tecnica del Ministerio de Justicia, Centro de Publicaciones Madrid,
1993, Tomo II, pág. 1874 (escrevendo que “del mismo sólo surgen obligaciones para el acreedor
consistentes en devolver la cosa entregada, sin que los posibles derechos que a éste pueden
corresponderle sean efetos del contrato, sin facultades derivadas del derecho real de prenda”), Guillarte
Zapatero, Comentario cit., pág. 487 e De la Santa García, ob. cit., pág. 59.
24
Pelo contrário, a opinião inversa pode ser sustentada argumentando que, além da
mencionada obrigação que impende sobre o credor pignoratício, do contrato de penhor
também resultam deveres para o concedente do penhor, nomeadamente o dever de não
diminuir a garantia.
Esta segunda posição pode ser rebatida, desde logo duvidando da consagração
legal deste dever a cargo do constituinte da garantia,66 e, ainda, considerando que a
obrigação de manutenção do valor da garantia será sempre secundária e nunca poderá
assumir qualquer carácter de bilateralidade relativamente à obrigação de custódia do
credor.
Outros ainda falam de um contrato sinalagmático imperfeito, porque, apesar de
produzir efeitos para ambas as partes, a única obrigação principal – a restituição do bem
onerado – pesa sobre os ombros do credor.67
Noutra ordem de considerações, a mesma conclusão se alcança recusando o
sinalagma entre a obrigação de restituir a cargo do credor e o dever de entrega que recai
sobre o devedor, porquanto este último pode não existir (quando a entrega ocorra
simultaneamente com a celebração do contrato ou quando a coisa objecto do penhor já
se encontrava, a outro título, em poder do credor ou, ainda, quando o penhor possa ser
constituído sem desapossamento do devedor) ou, quando exista, é uma obrigação
preliminar apenas subsistente durante a fase de perfeição do contrato (ao passo que o
sinalagma pressupõe obrigações decorrentes de contratos concluídos e perfeitos).68
Inclinamo-nos para a consideração do contrato constitutivo de penhor como
unilateral,69 pois, ao lado da inegável obrigação de restituição que recai sobre o credor,
apenas se vislumbram obrigações a cargo do concedente meramente eventuais (como a
de entregar a coisa ao credor, de reembolsar este pelo valor das benfeitorias necessárias
e úteis por este realizadas ou de proceder ao reforço e/ou substituição da garantia – art.º
670.º, alíneas b) e c)).
66
Em nosso entender, este dever terá a sua fonte no n.º 1 do art.º 780.º, ao determinar a perda do benefício
do prazo em caso de diminuição das garantias da obrigação (mas também no art.º 701.º, aplicável ao
penhor por força da remissão contida no art.º 678.º), embora se possa admitir que, em razão do
desapossamento do empenhante, este dever se encontra atenuado, por comparação com outras garantias,
no penhor.
67
Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 158 (destacando como o contrato de penhor “ne crée obligations qu’à la
charge du créancier gagiste, obligation de consever la chose et de la restituer. Cependant, en cours
d’éxécution, des obligations sont susceptibles de naître à la charge du constituant”) e Afonso Dionysio
Gama, ob. cit., pág. 17.
68
Por último, Rubino, ob. e loc. cit., acrescenta que as demais obrigações relacionadas com o penhor não
decorrem do contrato, mas constituem acessórios do direito real de penhor, como se comprova pela
circunstância de existirem mesmo quando o penhor haja sido constituído com fundamento noutro título
diverso do contrato.
69
No mesmo sentido, ao menos implicitamente, Montel, Pegno cit., pág. 794 e expressamente Joaquim
Bastos, ob. cit., pág. 11, para quem o contrato de penhor é unilateral “no sentido em que só o credor
assume uma obrigação principal, que consiste em restituir a cosia empenhada logo que se cumpra
inteiramente a obrigação garantida (…). É certo que o devedor tem de indemnizar o credor pelas
despesas que, porventura, faça com a coisa empenhada (…), mas êsse facto, acidental e posterior ao
contrato, não afasta a sua unilateralidade.” e Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 22 (“O devedor pode
constituir-se em responsabilidade no decurso do contrato, mas essa responsabilidade resulta não ex
natura negotii, mas de factos supervenientes. Isto é, as obrigações do devedor são obrigações que podem
nascer”), Baudry-Lacantinerie (et P. de Loynes), Traité théorique et pratique de droit civil, Vol. XXV,
Paris, 1906, pág. 5 (afirmando que o facto de o devedor poder ter de, posteriormente, assumir obrigações
relacionadas com a constituição do penhor é eventual e, por isso, não influencia a na qualificação do
contrato como unilateral) e Guillouard, Traité du nantissement et du droit de retention, 2.ª Edição, A.
Pedone Editeur, Paris, 1896, págs. 29 e 30 (referindo que as obrigações do devedor, além de eventuais,
não nascem do contrato propriamente dito).
25
Quando muito poderemos, seguindo o ensinamento de um ilustre Autor
clássico70 e atendendo à diferente natureza e relevância das obrigações que impendem
sobre o credor e o devedor, classificar este contrato como sinalagmaticamente
imperfeito.
70
Referimo-nos a Troplong, ob. cit., pág. 25 (afirmando que do contrato de penhor resulta “une seule
obligation principale et dominante, celle de rendre la chose lorsque le payment a été efectue. Les autres
obligations ne sont qu’accessoires et tacites; elles ne jouent pas un rôle assez éminent pour faire du
contrat de nantissement un contrat parfaitement synallagmatique”), mas também a Simon Quincarlet, ob.
cit., pág. 29 e segs. (salientando que a obrigação principal se encontra a cargo do credor – de conservar o
bem e de o restituir após o pagamento do crédito garantido – embora possam, posteriormente, surgir
outras a cargo do devedor, como a de reembolsar as despesas de conservação adiantadas pelo credor:
nesta conformidade, o Autor apela à categoria dos contratos sinalagmáticos imperfeitos, nos quais “ne
faisant naître immédiatement d’obligation qu’à la charge de l’une des parties peuvent ultérieurment
donner lieur à des obligations à la charge de l’autre”) e, indirectamente, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit.,
pág. 109.
71
A questão pode assumir igualmente relevância em sede falimentar, nomeadamente para efeitos de
eventual anulação dos negócios em questão, mais concretamente porque o Código da Insolvência e
Recuperação de Empresas (CIRE), no seu art.º 121.º, n.º 1, alínea b), comina a invalidade dos negócios
celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de
insolvência, apesar de o mesmo artigo possuir normas específicas para a concessão de garantias (alíneas
c) e e)). A este propósito o Tribunal de Apelo de Roma (cfr. aresto de 30/10/1994, in BBTC, n.º 49, Tomo
II, pág. 186), decidiu que “ove la garanzia non risulti correlata ad un corrispectivo economicamente
apprezzabile proveniente dal debitore principale o dal creditore garantito, l’atto di costituzione di
garanzia è qualificabile come atto a titolo gratuito”.
72
Seguimos muito de perto, na crítica a estas duas teorias, os argumentos de Montel, Pegno cit., pág. 794.
Defendendo o carácter sempre oneroso do contrato de penhor (alegando, sem mais, que a sua celebração é
efectuada no interesse de ambas as partes), vide Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 6, Guillouard, ob. cit.,
pág. 34, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 29 (alegando que qualquer das partes recebe alguma coisa da
outra, o credor recebe um direito real e a posse do bem empenhado, enquanto o devedor um crédito),
Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 17 (falando de contrato acessório de um contrato oneroso) e, entre
nós, Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 23.
26
concessão da garantia, o negócio poderá ser oneroso ou gratuito, consoante a
contraparte tenha ou não obtido alguma vantagem.
Uma outra linha de pensamento, assente no carácter acessório do penhor,73
classifica o contrato de penhor em gratuito ou oneroso consoante a natureza da
obrigação principal garantida, mas também ela é passível de reparos, na medida em que
a acessoriedade influi sobre a função e o objectivo da garantia, mas não sobre a
autonomia e natureza jurídica do negócio de atribuição do penhor.
A doutrina largamente maioritária propõe como critério geral (válido para os
casos em que o penhor seja constituído pelo próprio devedor) o de considerar como
negócio a título oneroso aquele em que o garante recebe uma compensação do credor74
(ou, noutra perspectiva, quando a concessão da garantia envolva algum custo para o
credor) e a título gratuito nas hipóteses em que nenhum sacrifício do credor seja
vislumbrável.75
Mais complexa se afigura a resposta quando o concedente do penhor tenha sido
um terceiro estanho à relação obrigacional principal, ou seja, no caso do penhor
constituído por terceiro.
Se o terceiro tiver obtido um benefício para si76 ou para o próprio devedor, o
negócio deve considerar-se a título oneroso, mas caso não tenha sido estipulado
qualquer benefício RUBINO77 considera dever distinguir-se consoante o contrato de
penhor tenha sido ou não precedido da celebração de um contrato-promessa ou de outro
negócio preliminar.
Neste último caso, considera o negócio constitutivo do penhor como a título
gratuito, uma vez que apenas atribui uma vantagem ao credor, enquanto o concedente,
73
Como bem salienta Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 29, a acessoriedade reporta-se ao direito real de
penhor e não ao contrato de penhor.
74
Por exemplo, uma dilação do prazo ou uma redução dos juros.
75
Neste sentido, Montel, Pegno cit., pág. 795, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 55 e Giuseppe Martino, ob.
cit., págs. 33 e 34. Rubino, Il pegno cit., págs. 234 e 235, assume uma posição mais nuancé, pois se aceita
que quando o devedor obtenha do credor uma vantagem como contrapartida da concessão da garantia o
negócio deva ser considerado como oneroso, já na hipótese inversa é mais cauteloso em qualificá-lo como
gratuito (em razão da inexistência do espírito de liberalidade por parte do devedor) e, na dúvida, acaba
mesmo por considerá-lo também oneroso (argumentando que este tipo de negócios constitui a regra a ao
qual devem ser reconduzidos todos os negócios que não podem ser considerados gratuitos). Em face do
direito francês, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 258 e 259, consideram os negócios de
constituição da generalidade dos penhores como onerosos (seja porque se trata de contratos necessários à
obtenção de crédito por parte do devedor – e que, por isso, evitam uma perda ou concedem uma vantagem
financeira em termos amplos – seja porque, em regra, garantem uma dívida resultante da própria
actividade do devedor, o que constitui um interesse material pessoal), salvo casos excepcionais (quando o
penhor seja concedido para garantir uma liberalidade ou, ainda, quando sirva para dissimular uma doação
fictícia – por exemplo quando a garantia seja acessória do reconhecimento de uma dívida fictícia,
destinada a transferir a propriedade de um bem a uma pessoa próxima, contra a vontade das pessoas
próximas do suposto devedor, sem ter de observar as formalidades de realização da garantia pignoratícia -
, mas, em ambos os casos, será ainda necessário demonstrar o espírito de liberalidade). Para o direito
espanhol, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 487, adopta igualmente este critério bipartido (embora
advertindo que a contraprestação recebida pelo devedor deve apresentar uma origem ou uma causa
relacionada com a prestação da garantia).
76
Poder-se-ia objectar ser estranho que a concessão da garantia pelo terceiro possa ser considerada como
onerosa (relativamente ao credor) quando o seu acto é gratuito (em relação ao devedor), mas importa
salientar que, ao lado da garantia, existe sempre a assunção de uma obrigação (embora em benefício do
devedor) contraída a favor do garante, como contrapartida da garantia – neste sentido, Montel, ob. e loc.
cit..
77
Il pegno cit., págs. 234 e 235. Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 487, propendendo para o
carácter oneroso do penhor constituído por terceiro, assegurando que este, normalmente, só aceitará a
prestação da garantia em contrapartida de um determinado benefício.
27
ao aceitar concluir o negócio, não pode não pretender atribuir ao credor tal benefício,
razão pela qual não devem subsistir dúvidas quanto ao seu espírito de liberalidade.
Verificando-se a hipótese inversa (isto é, a existência de um acordo prévio entre
o terceiro garante e o credor ou entre aquele e o devedor), cumprirá ainda distinguir
conforme neste negócio prévio haja sido acordada uma contrapartida a favor do terceiro
garante (ou até mesmo do devedor, caso o acordo tenha sido formalizado com o credor),
caso em que o contrato de penhor deve considerar-se oneroso, seja porque falta qualquer
ânimo de liberalidade da parte do terceiro, seja porque um contrato deve considerar-se
oneroso sempre que a respectiva celebração resulte do adimplemento de um contrato
prévio oneroso.
Ao invés, se no contrato preliminar o terceiro garante não tenha estabelecido
para si (ou para o devedor, caso o acordo haja sido celebrado com o credor) qualquer
vantagem, tanto este negócio como o negócio final de outorga do penhor deverão
considerar-se gratuitos.
Sufragamos, a este respeito, a posição de VAZ SERRA78 que, embora concorde
em termos gerais com o entendimento de RUBINO acabado de expor, formula duas
reservas, uma atinente àquela conjuntura em que o devedor-garante não recebe qualquer
contrapartida pela vantagem atribuída ao credor (embora não seja propriamente uma
liberalidade) e que deverá ser considerada como negócio gratuito.79
A outra reserva prende-se com a consideração do negócio de concessão de
penhor como oneroso ou gratuito em função da natureza do eventual acordo preliminar
celebrado, que poderá não ser rigorosa pois a lei, para determinados efeitos, poderá
considerar como oneroso um contrato celebrado em execução de um negócio prévio de
natureza gratuita.
Todavia, somos de parecer que, na aferição da existência ou não de uma
vantagem para o empenhante da celebração do contrato, se deverá analisar
integralmente a operação negocial idealizado pelas partes – incluindo, naturalmente, o
negócio do qual surge a obrigação garantida -, de modo que tais vantagens podem advir
da prestação recebida pelo garante em como contrapartida da celebração da operação
negocial no seu todo.80
Por ser assim e tendo em conta que a concessão de garantias assume, no âmbito
de diversas relações contratuais, condição para a sua conclusão (ou, pelo menos, para a
78
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 120 a 123.
79
Nomeadamente para efeitos de impugnação pauliana, uma vez que o credor obteve um benefício –a
concessão da garantia – sem qualquer sacrifício correspondente da sua parte, inexiste razão para ser
tratado como se de um adquirente a título oneroso se tratasse. No entanto e como nota o Autor citado, se a
constituição do penhor for anterior ou contemporânea à celebração do contrato do qual deriva o crédito
garantido, aquele negócio deverá ser considerado a título oneroso, pois o devedor obtém a vantagem da
concessão do crédito em troca da prestação do penhor (ou, dito de outra forma, o crédito foi concedido
em vista do penhor). Daí que, generalizando, Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 11, considere que o contrato
de penhor é sempre um negócio oneroso, “pois que existe no interêsse de ambos os contraentes. O credor
encontra no penhor a garantia que pretende e o devedor, por sua vez, não obteria o crédito de que
necessita se a êle não recorresse”.
80
É certo que, quando os dois negócios sejam contemporâneos, nem sempre é fácil operar esta destrinça
entre o carácter gratuito ou oneroso de um de outro. Parece perfilhar este entendimento Hugo Ramos
Alves, ob. cit., págs. 97 e 98, sustentando a natureza tendencialmente onerosa do negócio de constituição
do penhor (uma vez que o empenhante, ao oferecer uma garantia, recebe uma contraprestação, que pode
consistir na obtenção de condições mais favoráveis), na medida em que “o critério aferidor para
determinar a onerosidade do penhor será a relação de interdependência entre o próprio contrato de
penhor e o negócio que lhe subjaz, pelo que haverá que ter em consideração o complexo negocial gizado
pelas partes”.
28
sua conclusão em termos mais favoráveis para o garante), não repugna afirmar uma
presunção de onerosidade do contrato de penhor.
81
Embora, como adiante se precisará a propósito das letras e livranças, alguns desses preceitos se
encontrem revogados – cfr. n.º 5.2 do Capítulo I.
82
Assim, por todos, Salvador da Costa, O concurso de credores: sobre as várias espécies de concurso de
credores e de garantias creditícias, Almedina, 2009 (4.ª Edição), pág. 47.
83
Acerca dos diversos problemas suscitados por este preceito, vide, por todos, Coutinho de Abreu, Curso
de Direito Comercial, Vol. I (Introdução, Actos de Comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais
Distintivos), Almedina, 8.ª Edição, 211, pág. 43 e segs..
84
Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 13 e 14, coloca a dúvida nos casos em que um comerciante afecte a fins
civis uma quantia obtida através de empréstimo, apesar de haver declarado, no momento da concessão do
penhor, que a quantia em causa se destinava a fins comerciais, concluindo que o penhor tem natureza
mercantil sempre que o credor pignoratício consiga provar a razoabilidade da sua crença, em face da
declaração do devedor, na afectação a fins comerciais da quantia mutuada.
85
Em termos semelhantes para o direito francês (de acordo com o antigo Code de Commerce), Jacques
Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 261, assinalam ser a comercialidade da dívida garantida o factor
determinante para a comercialidade do penhor constituído em sua garantia (e, à semelhança do art.º 2.º do
nosso Cód. Com., também o art.º 91.º do Code de Commerce francês estabelece uma presunção de
comercialidade dos actos praticados pelos comerciantes).
86
Em face do direito francês, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 262, desvalorizam a
diferença de regime entre o penhor comercial e civil, refutando ainda a crítica ao critério da
comercialidade formulada por alguns (para quem tal critério conduziria a uma separação dos patrimónios
do mesmo sujeito, um respondendo apenas pelas suas dívidas civis, outro pelas comerciais), considerando
29
2.4.2 - Elementos do contrato87
que a qualificação de um acto como comercial apenas produz efeitos quanto à prova e à execução da
garantia.
87
Por outro lado, de acordo com Rubino, Il pegno cit., pág. 237, ao contrato de penhor podem ser apostas
quaisquer cláusulas acidentais (como termos ou condições, suspensivas ou resolutivas) não contrárias à
ordem pública e desde que não descaracterizem o instituto. Porém, como bem nota Vaz Serra, Penhor cit.,
in BMJ n.º 58, pág. 109, há que não confundir o contrato de penhor celebrado sob condição ou a termo
com o penhor incondicional em garantia de um crédito condicional ou a termo.
88
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., págs. 222 e 223, Ciccarello, ob. cit., pág. 695, Montel, Pegno cit.,
pág. 795, Gabrielli, Il negozi costitutivi cit., pág. 155 (acrescentando que o mandato geral não
compreende, salvo cláusula em contrário, o direito de conceder penhores), Barrada Orellana, ob. cit., pág.
103, Diez-Picazo, ob. cit., pág. 483, Cachón Blanco, La capacidad de obrar y los derechos reales de
garantia, in Tratado de garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996, pág. 104
(fundamentando a sua posição no facto de a oneração poder conduzir à alienação futura dos bens), Mejias
Gomez, La prenda cit., págs. 31 e 32 (distinguindo entre os negócios mortis causa – para os quais retém
necessária e suficiente a capacidade para testar - e os inter vivos, para as quais exige a capacidade para
dispor, porquanto a constituição do penhor pode conduzir à alienação dos bens empenhados, sendo assim
um acto de administração extraordinária) e Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 14 (embora estes autores
repudiem a consideração normalmente invocada para exigir capacidade de dispor na constituição de
penhor – a de que o penhor constitui uma alienação eventual do bem – uma vez que, se assim fosse, seria
necessária aquela capacidade para assumir qualquer obrigação, pois sempre existirá uma alienação
eventual dos bens do património do devedor. Por isso, o verdadeiro motivo reside na alienação do direito
real de penhor). Na nossa doutrina, vide Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 230, Joaquim Bastos, ob. cit.,
pág. 30 e, embora com algumas reservas, Vaz Serra, Penhor cit., in BMJ n.º 58, págs. 144 e 145
89
Perfilhando este entendimento, entre outros, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 72 e 73, Javier
Mejías Gómez, La prenda de acciones, Aranzadi, 2002, pág. 31 e Jacques Ghestin e outros, Droit
commun cit., pág. 264, salientando a constituição de penhor não pode ser considerada um acto de mera
administração, tendo em conta a respectiva gravidade e os resultados perniciosos que dele poderão advir
no futuro (apoiando o seu raciocínio no art.º 2124.º do CCF – versão anterior a 2006 – que afirmava
expressamente que as hipotecas apenas podem ser concedidas por quem tenha capacidade para alienar os
respectivos bens imóveis).
30
art.º 671.º), pelo que se aceita ser a constituição de penhor um acto conservatório ou de
mera administração.90
Ao invés, a capacidade exigida para o devedor consentir uma garantia
pignoratícia deve ser a capacidade de alienar (como expressamente se afirma no art.º
667.º, n.º 1) que, por seu turno, pressupõe que o constituinte da garantia seja, em regra,
o proprietário do bem:91 em suma, o constituinte do penhor deverá dispor da
propriedade do bem e, simultaneamente, da capacidade para o alienar.92
90
Neste sentido, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 54, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág.
538, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 267, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 14,
Guillouard, ob. cit., pág. 47, Mejías Gómez, Prenda cit., pág. 57 (que, aceitando em geral que a
capacidade requerida seja a de contratar, admite alguns desvios, em função das obrigações assumidas pelo
credor no título constitutivo do penhor e que requerem especiais aptidões, como poderá suceder no
penhor de acções), Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 31 e 32 (alertando para o facto de, por vezes, o
contrato de penhor ser subscrito por um terceiro, na qualidade de gestor de negócios de futuros credores,
cujos créditos ainda não surgiram) e, entre nós, Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 230 e 280, Jacinto Bastos,
ob. cit., pág. 20 e Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 25. Mais exigente parece Chironi, ob. cit., pág. 545,
ao exigir a capacidade de adquirir. Noutro plano, o exercício, a título profissional, da actividade de
prestação de empréstimos garantidos por penhor, requer uma autorização específica (cfr. art.º 2.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 365/99, de 17 de Setembro), daí que possamos dizer que, em face do nosso direito,
qualquer credor capaz de contratar pode aceitar um penhor, a menos que faça disso actividade
profissional. Também quando o credor seja uma pessoa colectiva, poderão existir situações de
incapacidade para aceitar o penhor, como a impossibilidade de as sociedades anónimas aceitarem em
penhor acções ou obrigações próprias (nos termos do art.º 316.º, n.º 1, do CSC, uma sociedade não pode
subscrever acções próprias, e, por outra causa, só pode adquirir e deter acções próprias nos casos e nas
condições previstos na lei, admitindo, porém, o art.º 317.º, n.º 2, do mesmo Código, que uma sociedade
possa adquirir e deter acções próprias representativas de até 10% do seu capital e até que, em certas
circunstâncias limitadas, possa adquirir acções próprias que ultrapassem os mencionados 10%) – acerca
deste último assunto, vide infra n.º 1.2.8.5 do Capítulo II.
91
Assim, expressamente, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 538, Marty, Raynaud e Jestaz, ob.
cit., pág. 55, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 57, Guillouard, ob. cit., pág. 52 e Joaquim Bastos, ob. cit.,
págs. 21 e 28 (afirmando que o garante “só poderá constituir penhor na medida em que possa alienar,
pois o penhor importa alienação dum direito real, o jus pignoris, e, ainda, a alienação eventual da coisa
empenhada. É, pois, necessário que o garante possa alienar a coisa e, consequentemente, que seja seu
proprietário, porquanto só quem é proprietário tem capacidade de alienar, em princípio geral, pelo
menos”) e Cachón Blanco, ob. cit., pág. 100 (escrevendo que “Aunque dicha enajenación no siempre
tendrá lugar, ha de calificarse la constitución de la prenda y la hipoteca como de acto de disposición,
dado que implican una possible modificación juridica de un bien o derecho (aunque se manifeste en un
momento futuro), y de ahí surge el principio general consistente en que para constitur prendas o
hipotecas hace falta tener la misma capacidad que para enajenar”). Menos assertivo quanto à
necessidade de o empenhante possuir capacidade de dispor dos bens dados em garantia se mostra Alex
Weil, Droit civil - les sûretés; la publicité foncière, Dalloz, Paris, 1979, págs. 80 e 81, afirmando que,
pelo menos no momento da constituição do penhor, o devedor apenas transfere a posse e não a
propriedade da coisa (embora considere, em seguida, que a exigência da capacidade de dispor se poderá
justificar admitindo que a concessão do penhor comporta riscos para o crédito do devedor e restringe as
suas prerrogativas em relação ao bem em causa). Curiosa é a decisão judicial do Tribunal de Terni citada
por Barbara Cusato, ob. cit., pág. 177, na qual os juízes rejeitaram um pedido de anulação de um contrato
penhor celebrado entre um surdo-mudo e uma instituição de crédito, apresentado pelo primeiro,
considerando que, para haver uma incapacidade natural, deve subsistir um estado psicológico absoluto
(ainda que inesperado e transitório), não bastando uma enfermidade mental típica ou um processo
patológico capaz de abolir (ou perturbar significativamente) as faculdades intelectuais ou volitivas, de
modo a impedir uma valoração séria dos próprios actos ou a formação de uma vontade consciente.
92
Neste sentido, Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 32 e 33 e Chironi, ob. cit., págs. 537 e 538 (adiantando
este último que “L’atto di dare a pegno è dispozione, e quindi eccede dai termini della semplice
amministrazione alla quale sia limitata la capacità (…) si può asserire la capacità di dare a pegno in
chiunque abbia capacità di alienare”, embora salientando, por vezes, que a capacidade de disposição de
alguns sujeitos não é retirada na totalidade, apenas se encontrando limitada relativamente a determinados
bens).
31
Esta capacidade de alienar não se identifica necessariamente com a capacidade
para contrair obrigações, não incluindo esta última a primeira, sendo unicamente certo
que a capacidade para alienar contém em si a disponibilidade para empenhar.93
Se assim é, bem se compreende não ser admissível a constituição de um penhor
por quem apenas detenha a qualidade de depositário do bem ou de adquirente com
reserva de propriedade do mesmo,94 nem tão pouco sobre direitos litigiosos.95
Todavia, nem sempre será suficiente a propriedade do bem empenhado para
poder dispor dos mesmos, na medida em que poderá faltar-lhe a capacidade para dispor
dos seus próprios bens.96
Poderemos reunir os casos de incapacidade97 - algumas absolutas, outras
relativas98 - em vários grupos: aqueles em que existe uma incapacidade para o exercício
de direitos que envolve a impossibilidade de constituir um penhor (é o que sucede com
os menores,99 os interditos,100 os inabilitados101 (nestes último caso, a medida da
93
Neste sentido, Afonso Dionysio Gama, ob. cit., págs. 30 e 31. No mesmo sentido depõe o actual
Código Civil Brasileiro, cujo art.º 1420.º sentencia que só aquele que pode alienar poderá empenhar
(acrescentando que apenas os bens que susceptíveis de alienação poderão ser empenhados).
94
Apontando estes dois exemplos, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial des sûretés réelles, LGDJ,
1996, pág. 200.
95
Sustentando a impossibilidade de dação em penhor, por carência de capacidade de alienar do
empenhante, de um bem relativamente ao qual se encontravam pendente, no momento da constituição do
penhor, embargos de terceiro, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 2/12/2002, in www.dgsi.pt.
96
Como bem salienta Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 31, além da propriedade do bem empenhado,
“es preciso que el constituyente de la prenda tenga la libre disponibilidad sobre las mismas, para lo cual,
debe disponer de la adecuada capacidad” Este poder de disposição dos bens objecto da garantia deve,
como bem refere Bustos Pueche, ob. cit., pág. 554, ser entendido em sentido jurídico e não em sentido
material, pelo que não se pode sustentar a falta daquele poder por parte do devedor para constituir um
segundo penhor sobre o mesmo bem, desde logo porque o primeiro penhor não implicou a perda da
propriedade do bem por parte do devedor e, por outro lado, por nem mesmo o desapossamento físico ser
sempre obrigatório (pois a lei espanhola também admite que o bem fique em poder de terceiro – cfr. art.º
1863.º do CCE).
97
Importa salientar que algumas dessas incapacidades são supríveis, seja através da representação legal,
seja da curadoria, seja de outras figuras. Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 31 e segs., enumera
algumas dessas situações incapacidade (embora o elenco se encontre desactualizado, conforme se alcança
da referência à incapacidade geral mulher casada), aludindo aos menores, aos pais quanto aos bens dos
filhos (salvo autorização judicial ou em caso de manifesta necessidade), aos tutores e curadores
relativamente aos bens dos tutelados e interditos, aos inventariantes sem o consentimento de todos os
herdeiros, aos gestores das sociedades civis ou comerciais (salvo concessão expressa de poderes para o
efeito), aos mandatários sem poderes especiais expressos e ao falido. Para uma análise exaustiva das
incapacidades no direito espanhol (de entre as quais se salientam os menores, os incapacitados, as pessoas
casadas, os ausentes e os falidos), vide Cachón Blanco, ob. cit., págs. 95 a 148.
98
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 446, alude a casos em que a ausência do poder de disposição
se refere a todos os bens e, inversamente, a hipóteses em que tal limitação é apenas relativa a alguns bens,
em função da sua natureza (como sucede com alguns bens comuns do casal).
99
Como salienta Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 95 e segs., para efeitos de suprimento das
incapacidades, a constituição do penhor deve ser considerada como um acto de disposição, pelo que será
necessária autorização judicial para a conclusão de tais negócios. Assim, nos termos do art.º 123.º e salvo
disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos, sendo esta
suprida, em regra, pelo poder paternal (art.º 124.º) ou excepcionalmente por tutor designado para o efeito
(art.º 1921.º e segs.). De entre as disposições que atribuem capacidade aos menores, resulta que estes
poderão constituir um penhor (bem como contrair um empréstimo garantido por esse mesmo penhor),
quando forem maiores de 16 anos e se o negócio for relativo a bens adquiridos com o produto do seu
trabalho (art.º 127.º, n.º 1, alínea a)), quando o negócio seja relativo à profissão, arte ou ofício que o
menor tenha sido autorizado a exercer, quando seja celebrado no âmbito de alguma dessas actividades
(art.º 127.º, n.º 1, alínea c) – por estes actos respondem apenas os bens de que o menor tenha a livre
disposição) ou, finalmente, se o penhor se enquadrar num negócio jurídico próprio da vida corrente do
menor que, estando ao alcance da sua capacidade natural, apenas implique despesas ou disposição de bens
de pequena importância (art.º 127.º, n.º 1, alínea b)). Todavia, nos termos do art.º 1889.º, n.º 1, alínea a),
32
incapacidade será fixada na decisão judicial que a declare)102 e os insolventes103 ou em
outras situações)104, outros em que apenas não se admite a constituição de penhor sobre
os pais, enquanto representantes dos filhos, carecem de autorização judicial para alienar ou onerar bens
(com excepção da venda de bens susceptíveis de perda ou deterioração), o mesmo valendo para o caso de
a representação do menor confiada a um tutor (art.º 1938.º, n.º 1, alínea a)). No direito espanhol, os pais
necessitam de autorização judicial (salvo quando se trate de bens de um menor com, pelo menos,
dezasseis anos e quando preste o seu consentimento em documento público, entendendo Mejias Gomez,
La prenda cit., págs. 38 e 39, que o consentimento deve ser prestado prévia ou simultaneamente à
formalização do negócio constitutivo do penhor – não sendo admissível um consentimento em termos
genéricos – e que cabe ao notário decidir se a operação é útil e necessária) para alienar ou onerar os bens
imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais, objectos preciosos (não parecendo que a lei queira
referir-se a certos objectos em particular, mas a qualquer um que tenha valor económico considerável,
admitindo mesmo Cachón Blanco, ob. cit., págs. 113 e 114, que neste conceito indeterminado possa caber
o dinheiro) e valores mobiliários (excepto quanto a estes últimos, o direito de subscrição preferente de
acções) e apenas o poderão fazer em caso de justificada utilidade e necessidade: segundo Cachón Blanco,
ob. cit., pág. 104 e segs., os bens não contidos nesta enumeração poderão ser alienados sem necessidade
de autorização judicial, bastando o consentimento dos pais. Para além disso, encontram-se excluídos da
administração dos pais – e, por maioria de razão, do poder de disposição – os bens adquiridos a título
gratuito quando o disponente assim o tenha determinado de forma expressa, os bens adquiridos por
sucessão na qual o pai ou a mãe tenham sido deserdados ou se encontrem numa situação de indignidade
sucessória e, finalmente, os bens que o filho maior de 16 anos tenha adquirido com o produto do seu
trabalho ou indústria (este último requisito, segundo Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 38, deve
entender-se em sentido amplo, isto é, compreendendo não apenas os bens procedentes directa ou
fisicamente do trabalho, mas também “los que se adquieren con el salario o sueldo que se obtenga por
razón del mismo”), assim como os adquiridos na sequência de reinvestimento dos bens obtidos em
alguma das circunstâncias anteriormente enumeradas (Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 38, ancora esta
última solução num princípio geral de sub-rogação real). Ainda relativamente ao direito espanhol, De la
Santa García, ob. cit., pág. 96 e segs., resume o regime legal, vertido essencialmente no art.º 166.º do
CCE, do seguinte modo: “la prenda sobre bienes no contemplados en el art. 166 CC no requiere
autorización judicial e será suficiente con el consentimiento de los padres. La prenda sobre bienes
contenidos en la enumeración requerirá autorización judicial además del consentimiento paterno”
(sendo que a generalidade dos bens do menor se encontram compreendidos nesse preceito, com excepção
dos direitos de subscrição preferentes de acções, de bens do menor com 16 ou mais anos, se este consentir
em documento público, e da venda de valores mobiliários para reinvestimento em bens seguros),
esclarecendo ainda que, como sucederá normalmente, o penhor se constitui em garantia de um
empréstimo e como este normalmente requer a intervenção dos progenitores, o mesmo valerá para a
outorga das garantias.
100
O art.º 139.º equipara, no que à capacidade de exercício de direitos diz respeito, o interdito ao menor,
sendo-lhes aplicáveis as normas relativas ao suprimento do poder paternal. Todavia, ao contrário da
incapacidade dos menores, a dos interditos terá que ser judicialmente declarada, nos termos dos art.ºs
944.º e segs., do CPC.
101
O art.º 156.º manda aplicar supletivamente o regime dos interditos, nomeadamente quanto à forma de
suprimento da incapacidade, muito embora o n.º 1 do art.º 153.º remeta para a decisão que declare a
incapacidade a fixação dos actos sujeitos a autorização do curador (a qual, nos termos do n.º 2, poderá ser
judicialmente suprida).
102
De acordo com o art.º 954.º, n.º 2, do CPC, a decisão judicial que decrete a inabilitação especificará
quais os actos que deverão ser praticados ou autorizados pelo curador. No direito espanhol, os art.ºs 199.º
e segs. estabelecem que a sentença que declare a interdição determinará a amplitude os limites desta, bem
como o regime de tutela a que o interdito fica submetido, ficando sujeitos a autorização judicial os
mesmos actos para os quais os pais, em representação dos filhos, dela necessitam (vide Cachón Blanco,
ob. cit., págs. 135 e 136), impondo o art.º 271.º, n.º 2, do CCE, um elenco de casos em que é necessária a
autorização judicial (não bastando a autorização do representante legal) para a dação em penhor de bens
dos incapazes muito similar à do correspondente preceito para os menores (cfr. art.ºs 166.º e art.º 271.º,
n.º 2, do CCE)
103
Estabelece o n.º 1 do art.º 81.º do Código da Insolvência que a declaração de insolvência priva
imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de
disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a caber ao administrador da
insolvência, a quem compete, nos termos do n.º 4, a representação do insolvente para todos os efeitos
patrimoniais relativos à insolvência (acrescentando o n.º 2 que ao devedor fica interdita a cessão de
33
determinados bens (como sucederá com os bens indivisos,105 assim como com as
pessoas casadas em determinados regimes de bens, nomeadamente a comunhão de
adquiridos),106 outros ainda em que o penhor apenas não pode ser concedido a favor de
determinados sujeitos (art.º 876.º),107 pelo menos sem o consentimento de terceiros
rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza,
mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento
do processo).
104
Por exemplo, em caso de ausência, haverá lugar à nomeação de um curador provisório e,
eventualmente, de um definitivo (cfr. art.ºs 89 e 99.º). No primeiro caso, o curador provisório apenas
poderá proceder à alienação ou oneração de bens imóveis, de objectos preciosos, de títulos de crédito de
estabelecimentos comerciais e de quaisquer outros bens cuja alienação ou oneração não constitua acto de
mera administração com autorização judicial (art.º 94.º, n.º 3), autorização esta que apenas será concedida
quando o acto se justifique para evitar a deterioração ou ruína dos bens, para solver dívidas do ausente, a
custear benfeitorias necessárias ou prover a outra necessidade urgente (art.º 94.º, n.º 4). Em face do direito
espanhol, Cachón Blanco, ob. cit., págs. 142 e 143, pese embora o reconhecimento da função
essencialmente preventiva do curador, admite a realização de actos de disposição com autorização
judicial, principalmente quando relacionadas com a actividade económica ordinária desenvolvida pelo
ausente.
105
De acordo com o art.º 1408.º, n.º 1, o comproprietário pode dispor de toda a sua quota na comunhão ou
de parte dela, mas não pode, sem consentimento dos restantes consortes, alienar nem onerar parte
especificada da coisa comum e, por maioria de razão, não pode onerar toda a coisa comum (a violação
desta norma implica que disposição ou oneração é havida como disposição ou oneração de coisa alheia –
cfr. art.º 1408.º, n.º 2).
106
Nos termos do art.º 1682.º, n.º 1, a alienação ou oneração de bens móveis comuns cuja administração
caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos. Pelo contrário, de acordo com o n.º 2, cada
um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar os móveis próprios ou comuns de que tenha a
administração (excepto quando se trate de bens móveis utilizados conjuntamente por ambos na vida do lar
ou como instrumento de trabalho ou de bens móveis pertencentes exclusivamente ao cônjuge que os não
administra, salvo tratando-se de actos de administração ordinária: nestas duas hipóteses, será necessário o
consentimento de ambos os cônjuges para a respectiva alienação ou oneração – cfr. art.º 1682.º, n.º 3). Por
último, a alienação ou oneração ou locação de estabelecimento comercial requer o consentimento de
ambos os cônjuges, salvo se vigorar o regime da separação de bens (art.º 1682.º-A, n.º 1, alínea b). Em
face do direito espanhol, Cachón Blanco, ob. cit., pág. 139 e segs., destaca como, no regime de comunhão
de adquiridos, a regra da necessidade do consentimento de ambos os cônjuges (o qual pode ser
judicialmente suprido em caso impedimento ou de negação por parte de um deles) para a administração e
disposição de bens comuns, encontra uma excepção relativamente aos actos de disposição de dinheiro ou
títulos-valor, os quais podem ser realizados exclusivamente pelo cônjuge em nome do qual tais bens se
encontrem (segundo o Autor, esta excepção consente a constituição de um penhor com este objecto
exclusivamente por parte do seu titular nominal), assim como quando, por decisão judicial fundamentada
em separação de facto, impossibilidade de prestar o consentimento ou abandono da família, os tribunais
confiram a administração desses bens a apenas um dos cônjuges (embora com alguns limites quanto à
capacidade para a prática de actos de disposição).
107
Segundo esta norma, não podem ser compradores de coisa ou direito litigioso, quer directamente, quer
por interposta pessoa, aqueles a quem a lei não permite que seja feita a cessão de créditos ou direitos
litigiosos (n.º 1): ora, nos termos do art.º 579.º, n.º 1, a cessão de créditos ou outros direitos litigiosos
feita, directamente ou por interposta pessoa, a juízes ou magistrados do Ministério Público, funcionários
de justiça ou mandatários judiciais é nula, desde que o processo decorra na área em que exercem
habitualmente a sua actividade ou profissão (sendo igualmente nula se efectuada a peritos ou outros
auxiliares da justiça que tenham intervenção no respectivo processo), entendendo-se que a cessão é
efectuada por interposta pessoa, quando é feita ao cônjuge do inibido ou a pessoa de quem este seja
herdeiro presumido, ou quando é feita a terceiro, de acordo com o inibido, para o cessionário transmitir a
este a coisa ou direito cedido (finalmente, considera-se litigioso o direito que tiver sido contestado em
juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado). Apesar de este preceito se referir
exclusivamente à alienação, poder-se-á sustentar a sua aplicação igualmente à oneração, tendo em conta
que a oneração pode conduzir, em caso de incumprimento, à alienação, para além de ser esta a posição
mais consentânea com a remissão do preceito para o regime da cessão, a qual encontra igualmente
fundamento no disposto no art.º 939.º, de acordo com o qual as normas ditadas para a compra e venda –
entre as quais se compreende o art.º 877.º - são aplicáveis aos demais contratos onerosos pelos quais se
34
interessados (art.º 877.º)108 e, finalmente, casos em que os efeitos de penhores
anteriormente constituídos podem ser afectados por um acontecimento superveniente,
como a insolvência do devedor empenhante (cfr. art.º 115.º do CIRE).109
Os exemplos apontados referem-se a incapacidades das pessoas físicas, mas
também as pessoas colectivas podem enfermar de determinadas incapacidades, algumas
de carácter específico (por exemplo a necessidade de autorização do conselho de
administração para a prestação de garantias por parte das sociedades anónimas e da
gerência para oneração das participações sociais por parte das sociedades por quotas –
art.ºs 406.º, alínea g) e 259.º, respectivamente, ambos do CSC),110 outras de natureza
alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre determinados bens, na medida em que sejam conformes
com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas (para além disso,
pode ainda invocar-se o elemento sistemático, porquanto se a lei impede a cessão e a transmissão dos
direitos litigiosos, não parece subsistir justificação – desde logo por motivos de coerência do sistema
jurídico - para admitir a sua oneração).
108
De acordo com o art.º 877.º, os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou
netos não consentirem na venda (o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou
seja recusado, é susceptível de suprimento judicial), sendo que a venda feita com quebra daquela
limitação é anulável, podendo a anulação ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu
consentimento, no prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da
incapacidade, se forem incapazes (n.ºs 1 e 2). Porém, a proibição não abrange a dação em cumprimento
feita pelo ascendente (n.º 3). Quanto à aplicação desta proibição também à oneração – e não apenas, como
decorre directamente da mesma, à alienação – vide os argumentos expandidos na nota anterior e, em
especial o decorrente do disposto no art.º 939.º (invocam este preceito para sustentar a aplicação do
regime do art.º 877.º às hipotecas, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, pág. 170) e, no que
diz respeito à ratio da interdição legal (obstar à prática de vendas simuladas em prejuízo das legítimas dos
descendentes, ou seja, de evitar que, através de doações encobertas, se lesassem essas legítimas, quando
fossem partilhados os bens dos simuladores alienantes – cfr. Acórdão do STJ de 27 de Novembro de
2007, in www.dgsi.pt), parece-nos que a mesma conclusão se impõe, uma vez que a constituição do
penhor pode redundar na sua aquisição por terceiro ou até pelo próprio credor pignoratício, especialmente
se for um penhor financeiro (contra, defendendo que a proibição do art.º 877.º é insusceptível de
aplicação a outros contratos, mesmo que onerosos – in casu, estava em causa uma partilha - que não a
compra e venda, vide o Acórdão do STJ de 15 de Fevereiro de 1977, in www.dgsi.pt). Para Ciccarello,
ob. cit., pág. 695, este não será um caso de carência de capacidade, mas sim de ausência de legitimação.
109
De acordo com esta norma, sendo o devedor uma pessoa singular e tendo cedido ou dado em penhor,
anteriormente à declaração de insolvência, créditos futuros emergentes de contrato de trabalho ou de
prestação de serviços (ou o direito a prestações sucedâneas futuras, designadamente subsídios de
desemprego e pensões de reforma), a eficácia do negócio ficará limitada aos rendimentos respeitantes ao
período anterior à data de declaração de insolvência, ao resto do mês em curso nesta data e aos 24 meses
subsequentes (n.º 1). A eficácia da cessão realizada ou de penhor constituído pelo devedor anteriormente
à declaração de insolvência que tenha por objecto rendas ou alugueres devidos por contrato de locação
que o administrador da insolvência não possa denunciar ou resolver, fica limitada às que respeitem ao
período anterior à data de declaração de insolvência, ao resto do mês em curso nesta data e ao mês
subsequente (n.º 2). Finalmente, diga-se que o devedor por créditos a que se reportam os números
anteriores pode compensá-los com dívidas à massa (n.º 3).
110
Importa, porém, distinguir as proibições dos sócios empenharem a sua participação no capital social de
uma empresa, das proibições ou limitações da colocação em penhor dessas participações por parte da
própria sociedade. Este último tipo de negócios (que normalmente se relaciona com situações de favor
relativamente a um dos sócios ou com motivos de relacionamento institucional ou pessoal entre o devedor
e a sociedade ou, finalmente, com a própria actividade normal da sociedade, designadamente quando esta
tenha por objecto a concessão de crédito), enfrenta limites legais, alguns privativos das sociedades
anónimas (cfr. art.º 322.º, n.º 1 - que proíbe, excepto nos casos previstos no n.º 2, a este tipo de sociedades
a prestação de garantias para a subscrição ou aquisição por terceiro de acções representativas do seu
capital social - e art.º 397.º, n.º 1 – que veda a prestação de garantias, por parte da sociedade,
relativamente a obrigações contraídas pelos administradores). Em face do direito espanhol, Mejías
Gómez, Prenda de participaciones sociales y de acciones representadas mediante títulos, in Tratado de
garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I., Civitas, 1996, págs. 601 e 602, limita-se a afirmar
35
mais genérica (cujo paradigma é a proibição de negócios contrários ao objecto social,
nomeadamente quando se trate de empenhar um bem social em garantia de um débito
estranho à actividade social – cfr. art.º 6.º, n.º 3, do CSC).111
Do exposto decorre que nenhum sujeito poderá constituir um penhor sobre um
bem de que não seja proprietário,112 113 mas, se o fizer (sem o consentimento ou o
que a concessão de penhor por parte de uma pessoa jurídica necessita da observância das faculdades de
disposição desta e das normas relativas à sua representação.
111
Decorre desta restrição de carácter geral, que se presume contrário ao fim da sociedade a prestação de
garantias a dívidas de outras entidades (art.º 6.º, n.º 3, do CSC), excepto se existir fundado interesse
próprio da sociedade garante ou quando se trate de sociedade em relação de domínio ou de grupo. Por
isso e de acordo com Tiago Soares da Fonseca, O penhor de acções, 2.ª Edição, Almedina, 2007, págs. 35
e 36, a garantia, fora dos estritos limites legalmente tipificados e atento o seu carácter normalmente
gratuito (porque, sendo onerosa, já será lícito fazê-lo), não poderá ser prestada, por a sua concessão ser
contrária ao fim mediato da sociedade, assim se tutelando a solvabilidade desta, em benefício dos seus
sócios e credores. Diga-se, porém, que as restrições à empenhabilidade de bens integrados no património
social variam em função configuração legal da sociedade, podendo ser de origem legal ou possuir fonte
estatutária (como se verá adiante ao tratar desta matéria). Considerando inválido o penhor sobre quotas
duma sociedade, cujos estatutos estabeleciam a proibição de alienação sem o consentimento da sociedade,
constituído por um dos sócios, vide o Acórdão do STJ de 10/3/1953, in BMJ n.º 36 (1953), pág. 202 e
segs.. Porém, no Acórdão do mesmo Tribunal de 18/12/1951, in BMJ n.º 28 (1952), pág. 290 e segs.,
decidiu-se que, quando seja necessária prévia deliberação da assembleia geral autorizando a constituição
do penhor, a ausência desta deliberação poderá ser sanada se todos os sócios e a própria sociedade
declarem, por escrito, concordar com tal contrato (considerando que o cumprimento de um contrato-
promessa de penhor sobre quotas sociais requer sempre o consentimento da sociedade, vide o Acórdão do
STJ de 16/2/1995, in www.dgsi.pt). No direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 53 e segs.,
entende que as limitações dos representantes orgânicos das sociedades para empenhar acções do seu
próprio património derivam da própria finalidade da garantia, ou seja, da “conexión de la operación de
garantía con el objeto social y la existencia de relaciones comerciales o de grupo entre las sociedades
garantizada y pignorante, que justifiquen la prestación de la garantía” (embora o Autor relativize o
obstáculo decorrente do objecto social, afirmando excluídos do poder de representação dos órgãos sociais
“no los actos ajenos al objeto, sino los claramente contrarios a él, es decir, los actos contradictorios o
denegatorios del objecto social”), negando que o pacto social possa conferir aos administradores ou
gerentes competência para praticar actos que excedam aquele objecto (se, porventura, isso acontecer tais
cláusulas devem interpretar-se como ampliadoras do objecto social ou como concedentes de meras
faculdades auxiliares para a prossecução do dito objecto). Em face do direito francês, Lisanti-Kalczynsky,
Les sûretés convencionelles sur meubles incorporels, Litec, 2001, pág. 99, relata que se coloca, em termos
latos, a questão da admissibilidade de um penhor por parte de um gerente ou administrador da sociedade a
que pertençam tais participações (uma vez que tal acto pode gerar um passivo social e provocar uma
diminuição do valor das próprias participações), mas a Autora dá o seu aval a este negócio, porquanto
nenhuma objecção técnica oferece esta fattispecie, sendo um risco que o credor assume ao contentar-se
com uma garantia porventura ilusória (noticia, ainda a querela acerca da eventual necessidade de
consentimento dos demais associados para a constituição de um penhor com tal objecto por parte de um
dos sócios, rejeitando a Autora tal necessidade, salvo se as participações sociais estiverem abrangidas por
um pacto de inalienabilidade e desde que o crédito garantido pelo penhor seja exigível antes do
levantamento da inalienabilidade).
112
Por vezes as dúvidas surgem mesmo quanto à comprovação da condição de proprietário do
empenhante, como poderá suceder com os valores mobiliários em geral e com as acções em particular –
realça este problema Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 32 e 33, asseverando que o mesmo deve
solucionado de modo diverso para as acções tituladas (através de um certificado emitido pelo registo
comercial ou órgão de administração da sociedade) e para as escriturais (mediante a exibição dos
certificados de legitimação emitidos pelas entidades competentes para o efeito).
113
Todavia, em face do art.º 1857.º n.º 2, do CCE – que expressamente impõe, como requisito para a
constituição de um penhor ou de uma hipoteca, que o onerante seja o proprietário -, Guillarte Zapatero,
Comentario cit., pág. 445, assegura que tal poderá não corresponder inteiramente à verdade, devendo
antes ser interpretada extensivamente no sentido de admitir a licitude da sua “constitución por el titular
de un derecho real susceptible, según sus características, de ser afectado por una carga de tal naturaleza
(p. ej., hipoteca de usufructo o del derecho de retracto)”, acrescentando que a expressão legal que impõe
que o bem empenhado “pertenezca en propriedad” não é a mais adequada, porquanto a garantia pode
36
conhecimento do verdadeiro titular), cumpre esclarecer que o credor pignoratício poderá
fazer valer o seu direito contra o proprietário.
Claro que esta hipótese não se confunde com a promessa que o devedor faça de
dar em penhor um bem de propriedade alheia (válida, embora constituindo uma
promessa de facto de terceiro e, desse modo, não constituindo título constitutivo do
penhor, o qual só surgirá quando a garantia for efectivamente prestada), apresentado
semelhanças, pelo menos em alguns casos, com a promessa do devedor adquirir um
determinado bem para, em seguida, o dar em penhor (ou, pelo menos, de envidar
esforços nesse sentido).114
Também não se confunde com a dação em penhor, por parte de um terceiro, de
um bem próprio em garantia de uma dívida alheia.115
A questão assume relevância substancial quando o verdadeiro proprietário não
ratifique a posteriori o negócio116 ou, noutro contexto, quando o concedente da garantia
não adquira, após o negócio de penhor, a titularidade do bem:117 nesta última
eventualidade, importa considerar a hipótese de o devedor não ter previamente
assumido a obrigação de desenvolver as actividades necessárias à aquisição da
propriedade do bem a onerar118 (pois, no caso inverso, estaremos perante a violação de
uma promessa de um facto próprio, com as inerentes consequências legais).
também ser constituída por quem seja titular de um direito que suporte a oneração pignoratícia, como
sucederá com o comproprietário que onere a sua quota.
114
Neste sentido, Maiorca, Il pegno di cosa futura e il pegno di cosa altrui, Società Editrice Libraria,
Milão, 1938, pág. 293, salientando tratar-se, nesta última hipótese, de uma promessa de uma prestação de
facto próprio.
115
Neste caso, como escreve Maiorca, ob. cit., págs. 376 e 377, o terceiro expõe o um bem seu à ameaça
de execução, permanecendo proprietário do bem onerado e, uma vez cumprida a obrigação garantida,
readquire todos os poderes inerentes ao direito de propriedade.
116
Para Afonso Dionysio Gama, ob. cit., págs. 29 e 30, os bens alheios não podem ser objecto de penhor
(podendo o seu proprietário reivindicá-las das mãos do credor pignoratício de má fé e mesmo do terceiro
de boa fé, em caso de perda ou furto), embora admita que este contrato produz efeitos inter partes e
mesmo “que o penhor de coisa alheia pôde revalidar-se pelo consentimento ou pela ratificação do
proprietário, e ainda pelo domínio superveniente que adquira o dador do penhor na coisa empenhada”
(acrescentando que no caso específico do domínio superveniente, este fenómeno “revalida, desde a
inscrição, o penhor constituído por quem possuía a coisa a título de proprietário”). Em termos
aproximados se exprime o actual CCB, em cujo 1420.º se afirma que “A propriedade superveniente torna
eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono”.
117
Nesta hipótese de aquisição posterior da propriedade por parte do constituinte, antes de extinta a
obrigação garantida, “il divieto importerà sospensione del ius vindicandi; e se la proprietà passerà ad
altri prima della scadenza, l’effetto legale della sospensione del potere seguirà anche nei successivi
acquirenti” – Maiorca, ob. cit., pág. 146. Porém, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1878, entende que
para a validade de um penhor constituído por um não proprietário “sería precisa la existencia de una
norma que permitiera tal efecto sanatorio; al no existir tal estimo que el contrato de constituticón de
prenda es nulo (…) y por tanto no susceptible de sanarse; legalmente no ha nacido el derecho de
garantía”, uma vez que a lei impõe, como condição do surgimento deste, a propriedade do bem por parte
do empenhante (contra, admitindo a validade de um penhor de coisa alheia, sempre que, no momento da
constituição da garantia o bem seja entregue ao credor e, posteriormente, o empenhante venha a adquirir a
propriedade do mesmo). No direito brasileiro, Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 340, noticia que,
por força do art.º 1420.º do CCB, o penhor constituído por um possuidor não proprietário se convalida
pela posterior aquisição da propriedade por parte do mesmo.
118
Maiorca, ob. cit., pág. 380 e segs., considera que o problema da garantia real sobre coisa alheia apenas
se coloca quando subsista uma esperança de uma sucessiva aquisição da propriedade por parte do
constituinte. Todavia, o Autor admite mesmo que não se considere o negócio constitutivo de penhor sobre
bem alheio como negócio condicional (caso que ocorrerá se o constituinte pretender que o direito real
apenas surja apenas se e quando adquirir tal propriedade), esclarecendo que “Se invece il sorgere della
garanzia non è espressamente rinviato, il diritto reale sorge senz’altro e neppure vi è bisogno di
ricorrere al concetto della conditcio iuris, com’è invece nel caso di pegno di cosa futura (inesistenti in
rerum natura)”, não fazendo sentido falar, aquando da aquisição da propriedade pelo constituinte, de
37
Dentro dos casos de ausência de uma prévia vinculação do constituinte, urge
considerar especialmente a hipótese em que o credor dispõe de uma expectativa
juridicamente tutelada de aquisição do bem onerado por parte daquele.119
Este problema da possibilidade de aquisição a non domino do penhor assume, no
nosso ordenamento, contornos radicalmente diversos daqueles outros nos quais se
encontra consagrada a regra “posse vale título” ou, noutros termos, a prescrição
aquisitiva é instantânea,120 ou seja, legislações nas quais a boa fé do terceiro adquirente
convalidação, não só porque o negócio não era ab initio inválido, mas antes da cessação da ameaça que
impende sobre o direito do credor (traduzida, essencialmente, no exercício do direito de reivindicação por
parte do proprietário), de modo que “Il terzo che non è più proprietario non può più rivendicare il
possesso dell’oggetto dado a pegno (…). Perdurando il possesso del pegno nel creditore (…) la base
della garanzia reale rimane intatta. Al contempo, il costitunte divenuto proprietario non può rivendicare
per l’effeto che è proprio alla costituzione di garanzia reale. Da tutto ciò è straneo un problema di
validità della garanzia: più che di convalida si potrebbe parlare di una valorizzazione della garanzia già
validamente costituita”.
119
De acordo com Maiorca, ob. cit., pág. 437 e segs., contam-se entre essas hipóteses as de a propriedade
do concedente da garantia sobre os bens a onerar estar dependente de um título anulável (caso em que a
concessão da garantia será igualmente anulável, nos mesmos termos, mas subsistindo a ameaça apenas
durante o prazo em que os sujeitos interessados possam impugnar tal título) de uma condição ou de um
termo (hipótese em que a garantia será válida, mas igualmente sujeita a condição - o que se verificará
quando sobre o bem em questão incida uma venda com reserva de propriedade, com propriedade
resolúvel ou pacto de resgate ou uma atribuição dependente de um título anulável - ou a termo) ou, noutra
ordem de considerações, a coisa a empenhar seja uma “res debita” (no duplo sentido de coisa devida pelo
constituinte a terceiro ou pelo terceiro ao constituinte, sendo que em ambos os casos o proprietário actual
do bem o poderá reivindicar até ao momento da sua venda na sequência de execução movida pelo credor
pignoratício), esteja integrada numa comunhão (caso em que a dação em penhor da respectiva quota por
parte de cada um dos comproprietários não suscita dúvidas, ao contrário da empenhabilidade dos próprios
bens em comunhão, a qual depende de circunstâncias estranhas à vontade do empenhante: não se tratando
de um bem próprio, nem de um bem alheio, o Autor admite que a dação em penhor seja válida, até porque
o proprietário não constituinte da garantia não poderá reivindicar o bem enquanto não for desfeita a
comunhão) ou seja incerta a sua titularidade (caso em que o credor poderá estar numa posição ainda mais
favorável, uma vez que até à determinação do proprietário – v.g., em processo judicial - estará a salvo do
exercício do poder de reivindicação).
120
É o que sucede nos ordenamentos espanhol (art.º 464.º, embora Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág.
1874, duvide da possibilidade de aquisição a non domino do direito de penhor, considerando “difícil de
superar la exigencia legal que la cosa que se entrega en prenda pertenezca en propriedad al que la
empeña, tal como se establece en art. 1.857.2º CC”; pelo contrário, Guillarte Zapatero, Comentario cit.,
pág. 484 e 485, entende que “la dación en prenda de un mueble corporal o de un título al portador es
válida por el solo hecho de que haya habido entrega de la cosa al acreedor prendario, aun cuando el
constituyente de la prenda no sea propietario, siempre que el acreedor prendario haya obrado de buene
fe, es decir, que haya creído recibir la posesión de manos del verdadero propietario y que la cosa no
haya sido perdida u hurtada”, rematando que a esta conclusão não se opõe o facto de o credor
pignoratício ser um mero detentor – e, por isso, não poder usufruir da tutela possessória -, uma vez que
“aunque respecto de la propiedad sea un simple detentador, respecto del derecho de prenda es un
poseedor”), italiano (art.º 1153.º), francês (art.º 2279.º) e alemão (§932 do BGB), embora o respectivo
alcance não seja idêntico em todos eles. Por exemplo, nos direitos francês e espanhol admite-se que o
legítimo proprietário possa reivindicar o bem quando o tenha perdido ou este lhe tenha sido roubado
(salvo no caso de o penhor ter sido constituído a favor dos Montes de Piedade que, por força de legislação
avulsa, gozam do direito de reter os bens dados em penhor até ao completo reembolso dos empréstimos
por si efectuados, mesmo que as coisas empenhadas tenham sido perdidas ou roubadas – neste sentido,
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 54) e, quando o possuidor actual tenha adquirido o bem numa feira
ou mercado, o proprietário apenas terá direito à restituição da posse se reembolsar o terceiro adquirente da
quantia por ele dispendida na aquisição do mesmo (art.ºs 2280.º do CCF e 464.º, n.º 2, do CCE), mas já o
não possa fazer em todas as outras situações, podendo assim o terceiro adquirente opor-se a uma eventual
acção de reivindicação interposta pelo verdadeiro proprietário (Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 144). Pelo
contrário, no direito italiano o princípio tem contornos mais amplos, omitindo a lei qualquer limitação à
protecção do terceiro de boa fé (de acordo com o art.º 1153.º, a aquisição exige apenas a boa fé – sendo
que o conhecimento da ilícita proveniência de um anterior proprietário impede, nos termos do art.º 1154.º,
38
a verificação deste pressuposto, mesmo que o terceiro demonstre que o transmitente ou outro precedente
possuidor tenha posteriormente adquirido a propriedade - e a existência de um título válido para a
transferência do direito, exceptuando apenas os casos das universalidades e dos bens sujeitos a registo –
art.º 1156.º - e remetendo para lei especial a aquisição de boa fé sobre títulos de crédito – art.º 1157.º),
encontrando-se já consagrado mesmo no direito anterior ao actual Código Civil de 1942 (como asseguram
Giuseppe Papa, Sagro sul pegno di cosa altura, in Il Direito Commerciale 1915, Vol. I, págs. 449 e segs. –
afirmando que o art.º 707.º do anterior CCI já consagrava semelhante princípio, em termos idênticos ao
disposto no CCF, ou seja, “il possesso di buona fede tutela tanto il diritto di colui che acquista a titolo di
proprietà quanto quello di colui che acquista a titolo di pegno” – e Maiorca, ob. cit., pág. 483 e segs.,
dando conta, porém, da excepção relativa às coisas “smarrite o rubate” e assinalando, por outro lado, que
o direito de reivindicação do proprietário claudicará sempre que a alienação tenha ocorrido numa feira ou
mercado, a comerciante ou numa venda pública – caso em que o sucesso da reivindicação do verdadeiro
proprietário estará sujeita ao pagamento do preço -, pelo que em caso de o constituinte do penhor ter
adquirido a non domino a propriedade do bem empenhado numa venda pública, o verdadeiro proprietário
poderá reivindicar o bem, mas o credor poder-lhe-á opor-lhe os mesmos factos que o seu constituinte – as
condições da alienação – fazendo assim valer o seu penhor sobre o preço que o proprietário reivindicante
deve depositar). A consagração deste princípio visa proteger as necessidades do comércio, facilitando a
circulação da riqueza mobiliária, eliminando espartilhos que poderiam resultar da imposição de
formalidades demasiado rígidas ou, como refere Mota Pinto (Direitos reais – apontamentos das lições ao
4.º ano jurídico de 1970-71, recolhidos por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Almedina, 1971, pág. 58),
funciona como alternativa à inexistência de um registo para a generalidade dos bens móveis que torne
cognoscível a sua apropriação, sendo a publicidade dada pela posse, entendida como indício de
propriedade, concluindo que este princípio implica, necessariamente, a imposição de limites à protecção
do direito de propriedade e, particularmente, ao exercício do direito de sequela por parte do titular de
qualquer direito real, pelo que a sua não consagração na nossa ordem jurídica significa que o proprietário
– rectius, titular de um direito real - pode sempre reivindicar a coisa de terceiro, ainda que este a tenha
adquirido de boa fé, ou seja, “a boa fé do terceiro adquirente de boa fé de bens móveis não constitui
obstáculo ao exercício do direito de sequela”, sendo essa boa fé assegurada, de modo indirecto através da
figura da usucapião e do disposto no art.º 1301.º - nos termos do qual o adquirente de boa fé, que este
tenha adquirido a propriedade a comerciante que negoceie em coisa do mesmo ou semelhante género,
pode exigir do reivindicante a restituição do preço, sem prejuízo do direito de regresso do reivindicante
contra aquele que culposamente tenha dado causa ao prejuízo, colocando a coisa no comércio contra a
vontade do respectivo proprietário (em termos concordantes Penha Gonçalves, Curso de direitos reais,
Universidade Lusíada, 1992, págs. 88 e 89, falando de “uma prevalência do titular verdadeiro titular
sobre o titular aparente”, decorrendo da posse unicamente a presunção ilidível de titularidade do
respectivo direito – cfr. art.º 1268.º, n.º 1). No direito espanhol, Mejias Gomez, ob. cit., pág. 129 e segs.,
destaca que o princípio se fundamenta na necessidade de assegurar segurança e fluidez do giro comercial
(ou seja, fazendo prevalecer a aparência do direito) e, no que especificamente respeita ao credor
pignoratício, proteger os que aceitam bens em garantia confiando na titularidade aparente do empenhante
(uma vez que o princípio deve ser alargado aos direitos reais limitados, consentindo “convertir en titular
de un derecho de garantía, a quienes adquieren su derecho de un titular aparente”): todavia, o Autor não
deixa de salientar que, ao contrário do entendimento germanísitico do princípio (que equipara a posse
adquirida de boa fé e o título, convertendo o possuidor em autêntico proprietário, mesmo que o
transmitente o não fosse), a jurisprudência dominante opta por uma leitura bem mais restrita (nos termos
da qual “el adquiriente de buena fe no consuma una adquisición del derecho a non domino, sino que
simplemente adquiere la propriedad o el derecho cuando lleva a cabo una usucapión ordinaria”, pelo
que “el verus dominus dispone de un plazo extraordinariamente largo para hacer valer su derceho, y, si
no lo hace, se presume inactivo frente al adquirente a non domino, por lo que el interés de éste primaría
sobre el de aquél”). Duvida da possibilidade da aquisição do penhor a non domino no direito espanhol,
López, Montés e Roca, Derecho civil, derechos reales y derecho inmobiliario registral, Tirant lo branch,
2001 (2.ª Edição), pág. 443, alegando que a mesma é contrária à exigência - ditada pelo art.º 1857.º, n.º 2,
do CCE - de os bens empenhados serem propriedade do sujeito empenhante (pelo contrário, aceita
expressamente ser este um dos modos possíveis de constituição do penhor Manuel Albaladejo, Derecho
Civil III cit., págs. 421 e 422, assegurando que tal será admissível nos mesmos termos em que o é a
aquisição do direito de propriedade a non domino – ou seja, mediante a obtenção da posse de boa fé, não
perdida ou não ilegalmente subtraída ao seu proprietário, do objecto do direito – de modo que o possuidor
adquirirá automaticamente o direito de penhor sobre o bem em questão). Finalmente, no direito alemão,
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1503
a 1507, esclarecem que a aquisição a non domino do direito de penhor se processa em termos análogos ao
39
de direitos de um titular aparente pode bastar para a aquisição desse mesmo direito (um
domínio em que, recentemente, se assistiu a uma consagração expressa desta forma de
aquisição de direitos – e não apenas da propriedade - foi o dos valores mobiliários).121
previsto para outros direitos reais (por remissão do §1207 para os §§932 e segs., todos do BGB), ou seja,
exige-se a posse do disponente capaz de criar uma situação de aparência de titularidade e a boa fé do
adquirente do direito (isto é, que o credor confie, sem culpa, na titularidade do direito por parte do
transmitente, no momento da constituição da garantia, embora no caso de penhor em garantia de um
crédito futuro, apenas se exija aquela boa fé no momento do surgimento de tal crédito; no caso de penhor
constituído por força da subscrição de cláusulas contratuais gerais, normalmente o constituinte da garantia
não se encontra plenamente consciente da realização de um acto de disposição sobre bens que, embora se
encontram na sua posse, não lhe pertencem, razão pela qual se exige um exame rigoroso acerca da
existência e validade de uma eventual cláusula de penhor naquelas condições gerais: a este respeito, os
Autores – em sintonia com a jurisprudência – rejeitam a validade de um penhor assim constituído sobre
objectos alheios à relação da qual brota o crédito garantido), não sendo invocável sempre que a coisa
empenhada tiver sido roubada ou perdida.
121
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 132 e segs., destaca que a resposta à questão varia consoante a
forma de representação dos valores, maxime das acções (não obstante, independentemente da modalidade
adoptada, o art.º 57.º da LSA determinar que a constituição de direito limitados sobre acções se regerá de
acordo com o direito comum). Com efeito, para os valores titulados o credor de boa fé (entendida, em
termos subjectivos, como crença que o empenhante – titular aparente – é o legítimo proprietário do bem e
se encontra em condições de o onerar, ou seja, quando “ignora que en su titulo existe vicio que lo
invalide”) que tenha obtido a posse do título apenas terá que suportar a reivindicação do verdadeiro
proprietário se as acções empenhadas resultam de furto ou roubo, ou se houvesse sido privado dos títulos
de modo ilegal (em caso de extravio, o credor terá que demonstrar que usou da diligência adequada a fim
de lograr a sua recuperação, nomeadamente provando ter seguido os procedimentos legais previstos para
o efeito): ”Fuera de estos casos, si el verus dominus desea liberar la prenda, ha de probar la falta de
buena fe del acreedor pignoraticio. En caso contrario, sólo podrá hacerlo, si satisface al acreedor
pignoraticio la deuda garantizada” (é o que sucederá nos chamados casos de apropriação indevida –
apropriação dos valores recebidos em depósito, comodato, administração ou outro título do qual decorra a
obrigação de os entregar ou devolver - em que se encontra assegurada a protecção do adquirente do
direito de garantia). Para aqueles outros representados através de anotações em conta, a protecção do
credor pignoratício apenas será assegurada se, cumulativamente, existir uma inscrição prévia a favor do
empenhante (ou seja, a aquisição terá que provir da pessoa que apareça nos registos como proprietária ou,
mais precisamente, como legitimada para constituir a garantia), não se verificar má fé ou culpa grave no
momento da aquisição do direito (avaliada em termos análogos ao exposto para os valores titulados, com
a nuance de o credor pignoratício poder solicitar, antes de obter o penhor, um certificado de legitimação
ao constituinte que ateste a sua qualidade de proprietário), se a operação for onerosa (não apenas do
negócio de constituição da garantia, mas, por força do carácter acessório desta, igualmente na obrigação
assegurada) e se o penhor for registado: todavia e em qualquer dos casos, se o negócio constitutivo do
penhor houver sido formalizado ante notário e existindo boa fé do credor pignoratício, os bens em questão
tornam-se irreivindicáveis por parte do seu verdadeiro titular, entendendo o Autor que o verdadeiro
proprietário mantém esse estatuto, mas vê o seu direito limitado por uma garantia validamente
constituída, apesar de a non domino. Admite igualmente a aquisição a non domino do direito de penhor,
nos mesmos termos previstos para o direito de propriedade, Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 205 (pelo
menos para os títulos ao portador). Diaz Moreno, ob. cit., pág. 425 e segs., enumera como requisitos da
aquisição a non domino de um penhor com este objecto que o adquirente seja um terceiro (alheio aos
actos que condicionem ou excluam a titularidade do tranferente), que o acto de constituição da garantia
seja válido (pois a lei sana apenas a falta de legitimidade do empenhante), que o penhor tenha sido
registado, que o empenhante se encontrasse legitimado de acordo com os dados constantes do registo, que
o contrato de penhor se configure como um negócio oneroso (constituído em troca de outra prestação ou
obrigação) e quando o terceiro tenha agido sem má fé ou culpa grave (isto é, “que nel desconocimiento o
la ignorancia de la ausencia de titularidad en el pignorante sean excusables de acuerdo con un standard
mínimo de diligencia, o sea, de acuerdo con el que cualquier persona se comporta”, considerando o
Autor que a lei, ao falar de ausência de má fé e ao não exigir a presença de boa fé, “se reduce el nível de
exigencia ético exigible en estado cognoscitivo del tercero; se amplía el campo de protección a todos
aquellos supuestos en que no siendo porpriameent de buena fe tampoco se pueda demonstrar que obrar
con pleno conocimiento del perjuicio del verdadero titular”, apontando como exemplo o do terceiro se
encontrar em dúvida acerca da titularidade do empenhante): verificando-se todos estes pressupostos,
ainda assim o proprietário prejudicado poderá recuperar os valores empenhados por quem não era o seu
40
Nestes ordenamentos, é pacífica a admissibilidade e validade de um penhor
constituído por um não proprietário, desde que o credor obtenha a posse do objecto do
seu direito e se encontre de boa fé (entendida como convicção legítima da qualidade de
proprietário do constituinte da garantia) e convicto da regular constituição do penhor,122
podendo assim repelir as pretensões reivindicativas do verdadeiro proprietário da coisa
empenhada.123
dono satisfazendo o credor pignoratício da dívida assegurada. A respeito dos valores mobiliários
escriturais, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 208 a 211, constata a substituição da confiança
na posse pela confiança na inscrição no registo, uma vez que “Si bien la inscripción no convalida el acto
o negocio que da lugar al proprio asiento, la nulidad o resolución que afectan a una trasmisión anterior
no privan de protección al que adquiere con amparo de la fe pública registral” (todavia, o Autor
esclarece que a aquisição a non domino não tem grande aplicação no caso de valores cotados em bolsa,
uma vez que a fungibilidade obrigatória desses valores faz com que “El verus dominus difícilmente puede
ejercer la acción de reivindicatoria porque falta el requisito de la especificación del objeto. Baste pensar
que quién da la orden de compra no puede ni siquiera imaginar quién podrá ser el oferente con el que se
concluya la operación”. Pelo contrário, quando se trate de valores não admitidos à cotação, já fará mais
sentido apelar à aquisição a non domino, especialmente “cuando estamos ante un tercero que haya
obrado de mala fe o con culpa grave, para reintegrar al verus dominus la misma cantidad de valores que
fueron objeto de la operación”). Finalmente, De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., admite a
aquisição a non domino da propriedade e de direitos menores (v.g. de penhor) sobre valores mobiliários
escriturais, esclarecendo que “De igual manera que cabe la adquisición a non domino en el sistema
clásico de hipoteca, en el que era posible la constitución de la garantía por quien, aun no siendo dueño
de la cosa, aparecía como tal en el registro, surtiendo plenos efectos frente al terecero de buena fe,
ocurre lo mismo en la constitución de esta modalidad de prenda. La entidad adherida vendrá únicamente
obligada a comprobar la titularidad formal de los valores en los asientos, dando por válidos los actos de
disposición que éste realice, sin que le afecten aquellos negocios jurídicos que se hayan realizado y que
no le hayan sido notificados” (embora, sempre segundo o mesmo Autor – ob. cit., pág. 240 - para que o
adquirente a non domino beneficie desta protecção deverá ser estranho aos contratos que determinam a
legitimidade do transmitente, o negócio de constituição da garantia deverá ser válido e ter sido inscrito no
registo – no caso de valores mobiliários escriturais – e ter sido o penhor constituído por quem apareça
legitimado pelos registos e exista ausência de má fé por parte do credor pignoratício no momento da
inscrição da sua garantia).
122
Neste sentido, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 19 e Guillouard, ob. cit., pág. 51. Porém, Maiorca,
ob. cit., pág. 476 e segs., precisa que “la buona fede del creditore pignoratizio non riguarderà la qualità
di proprietario nel constitunte: quantomeno l’attualità della proprietà nel costituente”, servindo a boa fé
para suprir a insuficiência do título de constituição do direito. Mas, segundo este último Autor, a boa fé
do credor poderá traduzir-se mesmo na crença de o constituinte se poder vir a tornar-se proprietário do
bem ou do produto da sua venda (mais concretamente, “Il creditore può immaginare e sperare che prima
della realizzazione, che potrebbe venire frustrata dalla rivendica del terzo, il costituinte acquisti la
proprietà del pegno, restando perciò vincolato – in quanto costitunte – a non richiederne il possesso”,
boa fé esta que permitira reprimir a reivindicação por parte do terceiro proprietário durante a vigência do
penhor e enquanto o credor mantiver a posse do bem) e pode até advir da boa fé do constituinte da
garantia (na medida em que um possuidor de boa fé tem legitimidade para empenhar, o credor
pignoratício poderá enfrentar a reivindicação por parte do proprietário alegando a boa fé do constituinte:
neste conformidade, “Talora sussisterà anche la buona fede nel creditore pignoratizio. Questi potrà far
valer ela buone fede del suo autore, oppure la propria (…). In un caso la buona fede (altrui) riguarderà
un titolo di proprietà; nell’altro caso la buona fede del convenuto riguarderà un titolo di pegno”).
123
Como salienta Giuseppe Papa, ob. cit., pág. 469 e segs., o credor pignoratício deverá considerar-se de
má fé apenas quando, apesar de saber que o constituinte do penhor não era o proprietário da coisa
empenhada, consentiu na constituição da garantia (em termos simples: ou o credor sabia que o seu
devedor era proprietário - e está de boa fé – ou, pelo contrário, sabia que ele não era proprietário – e então
está de má fé). O problema é mais complexo quando o credor, apesar de saber que o empenhador não era
proprietário, pensava que ele estivesse autorizado a conceder o penhor (por exemplo, em razão de um
mandato): neste caso, segundo o mesmo Autor, a protecção ao terceiro de boa fé não existe, tendo em
conta que “Colui il quale, conoscendo di ricevere il pegno dal non proprietário, non si cura di accertarsi
se quest’ultimo ne abbia l’autorizzazione, e si culla in una erronea credenza, non può essere protetto
dalle norme che tutelano la buona fede”.
41
Com efeito, nos sistemas jurídicos que reconhecem o princípio da posse vale
título, o penhor constituído sobre coisa alheia é plenamente eficaz, excepto
relativamente ao proprietário, uma vez que, sendo este estranho à relação jurídica da
qual brotou a garantia, o seu poder de reivindicação permanece intacto,124 excepto
quando o credor pignoratício esteja de boa fé,125 sendo ainda discutível se o princípio
também se aplica quando o penhor recaia sobre bens incorpóreos.126
Aliás, a legitimidade conferida ao credor pignoratício para invocar tal princípio
em seu benefício pode mesmo ser entendido como o reconhecimento implícito da sua
qualidade de possuidor, e não de mero detentor.127
Por isso mesmo – mas não só – no ordenamento italiano há quem se pronuncie
pela plena validade do penhor constituído por um não proprietário, colocando o acento
tónico no especial vínculo que brota da criação da garantia,128 mas não sem reconhecer
algumas especificidades em sede de execução.129
124
Deste modo se exprime Maiorca, ob. cit., págs. 245 e 246, concretizando que o vínculo pignoratício
não afecta o direito de propriedade do respectivo titular, ao passo que os poderes do constituinte da
garantia sobre o bem empenhado ficam suspensos enquanto vigorar a garantia: em conclusão, “il
contratto costitutivo di garanzia reale su cosa altrui è valido a ogni effetto, verso tutti meno uno: il
proprietário (…). Un effetivo ed efficace diritto reale di garanzia nasce, e il titolare di esso può a tutti gli
effetti affermare e difendere tale suo diritto erga omnes, quindi anche verso il costituente. Un solo
soggetto – il proprietario – ha un potere che vince il diritto del pignoratario”.
125
Como salienta Maiorca, ob. cit., pág. 471 e segs., o problema da aquisição do penhor por parte de um
terceiro de boa fé que obtenha a posse do bem onerado “non riguarda i rapporti interni fra costituente e
creditore pignoratizio; bensì i rapporti fra il proprietário e il creditore pignoratizio possessore di buona
fede. Nei confronti del proprietário, il possessore è un estraneo, un terzo. Lo stabilire pertanto che il
creditore pignoratizio sia o meno possessore di buona fede non tocca la validità dell’atto di costituzione
del pegno (nei rapporti fra costituente e creditore pignoratizio)”.
126
Dá conta de entendimentos contraditórios a este respeito Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 33 e 34,
embora saliente que a jurisprudência admite frequentemente a invocação do princípio relativamente a
bens incorpóreos. Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 538, por seu turno, advertem que o
alcance do princípio costuma ser circunscrito aos bens corpóreos, restringindo assim o alcance do art.º
2279.º CCF aos bens móveis corpóreos.
127
Assim, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 34, uma vez que tal princípio não pode ser invocado pelos
meros detentores ou possuidores em nome alheio, como os locatários, comodatários ou depositários.
128
É o caso de Maiorca, ob. cit., págs. 321 a 327, segundo o qual o carácter real do penhor se manifesta
independentemente das vicissitudes da propriedade do bem onerado e reside, essencialmente, na
possibilidade jurídica de o credor se satisfazer sobre o valor do bem empenhado, enquanto sub-rogado da
prestação devida e não cumprida. Este efeito real decorre do vínculo de segurança que surge no momento
da constituição da garantia e, até ao momento em que se transforma em direito de executar o bem
onerado, não contende com o direito de propriedade, uma vez que não existe qualquer limite à fruição
deste último direito: nesta conformidade, “nulla impedisce che il debitore costituisca un valido contratto
di pegno dando al creditore una cosa altrui. Egli – poniamo – si sente sicuro di poter adempiere. Dopo
aver pagato (…) richiederà la restituzione del pegno. La proprietà non è stata toccata, ma solo
minacciata e il diritto reale di garanzia è ben esistito, ha svolto la sua efficacia e, ove sia il caso, il
creditore pignoratario, nel periodo precedente il pagamento, avrà avuto raggione di difendere il suo
diritto di garanzia verso ogni offensore”. De acordo com esta posição, “il consenso del proprietário in
quanto proprietário non ha rilevanza per la costituzione del diritto reale di pegno, il quale si forma col
puro e semplice contratto reale (…) la dazione della cosa dal debitore al suo creditore è sufficiente per
realizzare il contratto costitutivo del diritto reale del pegno”, resultando da lei o poder de, em caso de
incumprimento, executar os bens onerados e se o fizer antes do exercício do direito de reivindicação por
parte do proprietário “lo può – in linea di massima – fare, poichè l’esercizio del ius distrahendi opera
indipendentemente dalla titolarità della cosa” (pelo contrário, a partir do momento da venda ou da
adjudicação, cessa a possibilidade de o proprietário não empenhante defender o seu direito - sem prejuízo
do direito ao ressarcimento dos danos causados pela conduta do empenhante não proprietário – como
aliás sucede quando o constituinte seja o proprietário do bem, o que, na óptica do Autor, confirma que “il
significato e la portata del diritto reale (…) si manifesta nel momento precedente all’attuazione del ius
distrahendi (…) non consiste cioè nel diritto di atto di farsi pagare con preferenza sulla cosa vincolata,
bensì ndella possibilità, ove sia il caso, di farsi pagare con preferenza sulla cosa vincolata. Nel caso in
42
Todavia e um tanto contraditoriamente, a recente reforma do direito das
garantias francês veio proclamar a nulidade do penhor constituído a non domino (art.º
2335.º), acrescentando o mesmo artigo que, nesse caso, o empenhante poderá ter que
indemnizar o credor, quando este ignorasse a falta de legitimidade daquele para
constituir a garantia, debatendo-se em que medida tal preceito derrogou ou não a regra
da posse vale título.130
Pelo contrário, na ordem jurídica nacional a posse, ainda que de boa fé, não
confere qualquer direito de propriedade (ou outro), mas apenas cria a favor do possuidor
uma presunção a favor do possuidor (cfr. art.º 1268.º, n.º 1).
A única possibilidade passaria por admitir a que o credor pignoratício pudesse
adquirir o seu direito através de usucapião.131 Porém, tal hipótese parece de afastar, na
cui il creditore prenda in pegno una cosa che sia altrui, egli non può avere la certezza di farsi pagare su
quella cosa”, mas sabe que, caso o proprietário não exerça tempestivamente o direito de reivindicação,
“Su quella cosa egli, in quanto legittimamente la possiede in pegno, sarà preferito, in un eventuale
procedimento esecutivo, a ogni altro creditore”).
129
Sempre de acordo com Maiorca, ob. cit., pág. 366 e segs. (depois de salientar que do efeito real
inerente ao penhor, mesmo adquirido a non domino, decorre uma vinculação que segue os bens onde quer
que se encontrem, a qual permite que o seu direito de preferência prevaleça sobre os credores do terceiro
dador do penhor, bem como sobre os credores do proprietário não constituinte, excepto, neste último
caso, se estes se sub-rogarem no exercício do direito de reivindicação de que é titular o proprietário até ao
momento da venda ou da adjudicação), realça que a execução movida por um qualquer credor
quirografário não pode incidir sobre bens que não sejam do devedor, ao contrário do que sucede com a
execução instaurada por um credor pignoratício cuja garantia haja sido adquirida a non domino,
porquanto neste último caso a garantia pode incidir sobre um bem que não seja do devedor, “sino almeno
al momento eventuale in cui il proprietário o chi per lui non rivendichi il possesso”, sendo que só o
poderá fazer até à data da venda ou da adjudicação em pagamento, pois a partir dessa data a posição do
credor torna-se intangível.
130
Com efeito, é discutível o alcance desta norma, porquanto se debate com ela se terá pretendido afastar
a regra da posse vale título e a protecção por esta conferida ao credor pignoratício cujo direito tenha sido
transferido por um constituinte não proprietário: em sentido negativo, Cabrillac e Mouly, Droit des
sûretés, Litec, 9.ª Edição, 2010, pág. 502 (entendendo que o preceito apenas será aplicável quando o
credor tome a iniciativa de restituir o bem ao verdadeiro proprietário), Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 362
(considerando que este preceito não afasta tal princípio – pelo que se mantém a protecção do credor
pignoratício de boa fé – significando apenas a norma em questão que “s’il prenait l’iniciative de restituer
le bien au véritable propriétaire, il aurait droit à des dommages et intérêts. La nullité ne pourrait ainsi
être invoquée que par le seul créancier gagiste”), Simler e Delebecque, Droit civil 2009, pág. 535
(salientando que, à semelhança da nulidade cominada para a venda de bens alheios, também esta é uma
nulidade de protecção e, por outro lado, que o preceito em exegese não poderá respeitar ao penhor sobre
bens futuros, o qual é agora expressamente admitido por lei) e Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág.
228 (realçando igualmente a inaplicabilidade aos bens futuros – dos quais o constituinte não é, por
definição, proprietário no momento do nascimento da garantia – e concluindo que o seu verdadeiro
sentido é o de dar ao credor pignoratício, que descubra a ausência de propriedade do bem por parte do
constituinte, o direito de se desfazer do penhor contra o pagamento de uma indemnização, sem ter que
aguardar uma eventual acção de reivindicação por parte do verdadeiro dono do bem). Por seu turno,
Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, El nuevo derecho de las garantías reales: estudio comparado de las
recientes tendencias en materia de garantías reales mobiliarias, Editoral Reus, 2008, pág. 295, chamam a
atenção para a contradição que reside na proclamação da nulidade do penhor de coisa alheia e na
admissibilidade do penhor de coisa futura (art.º 2333.º).
131
Admite a aquisição de um penhor sobre valores mobiliários escriturais Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 208 (concretizando que, para tal, “deberá existir una inscripción de un derecho de
prenda sobre unos determinados valores de los que sea titular un tercero ajeno al crédito garantizado,
que no es el deudor de la obligación principal. Es decir, deberá resultar inscrito a favor del acreedor del
crédito garantizado, una constitución limitativa sobre unos valores cuyo titular es distinto del deudor del
crédito garantizado”) e, em termos gerais, Manuel Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 421 e 422
(ilustrando com o caso em que A recebe de B um bem em garantia do cumprimento de uma determinada
obrigação, embora tal bem pertencesse a C: ora, decorridos que sejam os prazos legais, A transforma-se
em titular do direito de penhor sobre o bem em questão, o qual continua a garantir o seu crédito contra B)
43
medida em que o art.º 1287.º apenas admite a aquisição, por meio de usucapião, do
direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo, incluindo-se o penhor, pelo
contrário, no âmbito dos direitos reais de garantia.132
Nesta conformidade e atenta a absoluta disponibilidade da coisa por parte do seu
proprietário, não obstante a constituição de um penhor sobre ela por parte de um
terceiro, a boa fé do adquirente de qualquer direito sobre aquele bem deixa intacto o
direito de domínio, podendo o respectivo dominus reivindicá-la, mesmo que este se
encontre, por exemplo a título de penhor, em poder de um terceiro de boa fé.133
O único desvio a este regime poderia resultar do disposto no art.º 1301.º,134 nos
termos do qual o proprietário que reivindique de terceiro de boa fé um bem por este
adquirido a comerciante que negoceie em coisas do mesmo ou semelhante género, pois,
neste caso, apesar de o direito de reivindicação não ser atingido, o proprietário é
obrigado a restituir ao adquirente o preço por este pago (sem prejuízo do direito de
regresso contra o comerciante vendedor).
e, igualmente, em Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 713 (adicionando outros argumentos, como
sejam o facto de o art.º 1930.º do CCE admitir a aquisição, por usucapião, da propriedade e dos demais
direitos reais; e de o art.º 1936.º do mesmo Código declarar como susceptíveis de prescrição todas as
coisas que se encontrem no comércio: em suma, conclui que “pudiendo usucapirse el poder máximo de la
cosa – derecho de propriedad – y reuniendo el de prenda las condiciones necesarias para ser usucapible,
no se alcanza por qué tal poder, que és más reducido que el dominio, no pueda adquirirse por
usucapión”). No que especificamente respeita ao penhor de créditos, Cano Martínez de Velasco, La
posesión, el usufructo y la prenda de derechos, Bosch, 2005, pág. 90, admite a sua aquisição por
usucapião, quando “siendo ineficaz el título constitutivo de prenda, el poseedor, hasta el momento
natural, del crédito instó a su titular a exigirlo, sin reacción de éste; y, ante esta inactividad, reclamó
para sí el cumplimiento como acreedor pignoraticio. Desde este instante comienza a correr el plazo de
prescripción adquisitiva de la prenda sobre el crédito, pues la posesión de la prenda es, desde entonces,
animus res sibi habendi, osea una posesión civil (útil para la usucapión)”. Pelo contrário, Paz-Ares
Rodriguez, ob. cit., pág. 1874, não sem reconhecer a existência de posições em contrário (ancoradas na
posse do credor pignoratício enquanto titular do direito real de penhor), duvida da possibilidade de
aquisição do penhor por via de usucapião, alegando que “choca con la exigencia de voluntad de entrega
de la cosa por el deudor o el tercero que (…) es essencial para la constitución del derecho real de
prenda” (em termos aproximados, López, Montés e Roca, ob. cit., pág. 443, salientando que o art.º 1863.º
do CCE, ao impor como condição do nascimento do direito real de penhor a entrega do bem ao credor por
parte do devedor, impede tal modo de aquisição da garantia). Recusa igualmente que o direito de penhor
se possa adquirir por via de usucapião Serrano Alonso, Manual de derechos reales, Edisofer, 2.ª Edição,
2008, pág. 266 (uma vez que “al exigir el derecho de prenda la entrega de la cosa por parte del deudor o
de un tercero con voluntad expresa de constituir la garantía dificilmente puede admitirse que el acreedor
se convierta en titular del dercecho de prenda por la posesión de coisa con la intención de ser acreedor
pignoraticio sin que previamente haya habido la entrega”). Também Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 152,
rejeita a possibilidade de aquisição de penhor por usucapião, alegando que o credor pignoratício é mero
detentor no que concerne ao direito de propriedade do bem (sendo possuidor no que respeita ao direito
real de penhor).
132
Conclui nestes mesmo sentido, Luís Carvalho Fernandes Lições de direitos reais, 6.ª Edição, Quid
Juris, 2009, pág. 60.
133
O Código de Seabra admitia expressamente (cfr. art.º 860.º, n.º 4) a reivindicação, pelo proprietário, da
coisa empenhada por terceiro sem o seu consentimento. No domínio do actual Código, o direito de
reivindicação, apesar de regulado unicamente a propósito do direito de propriedade (art.º 1311.º), é
reconhecido pela própria lei à generalidade dos direitos reais (art.º 1315.º) e constitui uma das
manifestações (quiçá a mais relevante) do direito de sequela, conforme melhor de perceberá aquando da
análise dos direitos do credor pignoratício (vide infra n.º 9.1 do Capítulo I).
134
Preceito semelhante ao art.º 2280.º do CCF. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª Edição,
Principia, 2007, pág. 159, dá conta de uma interpretação restritiva deste preceito operada pela
jurisprudência dominante que reduz o campo de aplicação do preceito mencionado aos casos em que a
coisa não tenha saído das mãos do proprietário por meios fraudulentos e, por outro lado, descarta a sua
invocação quando estejam em causa bens móveis sujeitos a registo (o Autor concorda com esta última
restrição, mas rejeita a primeira).
44
Contudo, advogamos a inaplicabilidade deste preceito aos casos em que o
terceiro de boa fé, ao invés do direito de propriedade, invoque um direito de penhor, na
medida em que este último direito é, como salientámos, insusceptível de ser adquirido
por usucapião, nem sequer quando decorram os respectivos prazos, pelo que muito
menos o será de modo instantâneo em razão unicamente da posse de boa fé.135
Assim sendo, o proprietário do bem empenhado sem o seu consentimento
poderá, mesmo nestes casos, reivindicar a coisa nas mãos do terceiro credor
pignoratício, sem ter de indemnizar este, considerando-se que o penhor apenas produz
efeitos entre os outorgantes.136
Em suma, no nosso ordenamento e salvo o previsto em legislação especial, não
são admissíveis, como títulos de constituição de penhor, a usucapião, nem tão pouco a
aquisição a non domino.137
Noutra ordem de considerações, no que respeita à possibilidade de penhor
através de representante138 e partindo destes pressupostos, se alguém mandatar outrem
para administrar os respectivos bens,139 deve entender-se que o poder concedido não
abrange a legitimidade para constituir ou adquirir penhores - a não ser que tal
possibilidade seja especificamente consagrada no contrato de mandato – precisamente
porque estes actos, como se disse, não podem ser considerados de mera
administração.140
135
Defendendo a mesma posição, Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 24 a 28, sustentando que o legislador, no
art.º 534.º do Código de Seabra (correspondente ao actual art.º 1301.º), teve unicamente em vista a
transferência definitiva do bem, sendo, portanto, o dito insusceptível de aplicação analógica ao penhor,
facto comprovado – acrescentamos nós – pela própria inserção sistemática da norma, colocada na secção
relativa à usucapião de bens móveis, rectius, de certos direitos reais sobre bens móveis, entre os quais não
se inclui o penhor (cfr. art.º 1287.º). No mesmo sentido, para o direito francês e em face do art.º 2280.º do
CCF (semelhante ao art.º 1301.º do nosso Código), Alex Weil, ob. cit., pág. 80, considerando, por isso,
que, a este respeito, a posição do credor pignoratício é menos favorável do que a do comprador pois este,
ao contrário daquele, poderá recuperar as importâncias dispendidas.
136
Podendo o credor, quando muito, exigir do constituinte outro penhor ou o cumprimento da obrigação
(discutindo-se se deverá ou não informar o legítimo proprietário sempre que tome conhecimento da falta
de legitimidade do empenhante).
137
Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 230 e 231, advoga que o penhor constituído por não proprietário
apenas é nulo em relação ao verdadeiro proprietário, que poderá reivindicar o bem, sendo válido entre as
partes do contrato de penhor (por isso, o credor, depois de extinta a dívida, não pode recusar a restituição
ao devedor, a pretexto de que a coisa não lhe pertence e, por outro lado, o devedor não pode exigir a
entrega do penhor alegando que a coisa é alheia e deseja restitui-la ao legítimo proprietário) – no mesmo
sentido, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 20 a 22 e Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 27. Por outro
lado, o mesmo Cunha Gonçalves (apud Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 26 a 28) sustenta a admissibilidade
de um penhor comercial de coisa alheia, argumentado com base no art.º 467.º, n.º 2 e parágrafo único do
Cód. Com. (que admite a venda de coisa alheia). Porém, como bem nota Joaquim Bastos, ob. e loc. cit.,
aqueles preceitos apenas admitem a validade da obrigação assumida pelo alienante (daí a lei estabelecer a
obrigação do vendedor adquirir, por título legitimo, a propriedade da coisa vendida e fazer a entrega ao
comprador), que em nada afecta o direito de reivindicação do verdadeiro proprietário.
138
Estamos, naturalmente, a falar de representação voluntária, porquanto a representação legal foi já
abordada a respeito das incapacidades.
139
No direito espanhol, Cordero Lobato, Comentario aos art.ºs 1857.º a 1873.º, in Comentarios al Código
Civil, (Coord. Bercovitz Rodríguez-Cano), Aranzadi, 2.ª Edição, 2006, pág. 2137, reconhece que a
constituição de garantias reais por meio de representante exige mandato expresso.
140
Vide, em conformidade, Chironi, ob. cit., págs. 540 e 541, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 17,
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 206 e, entre nós, Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 30 e o n.º
1 do art.º 1159.º, que estabelece que o mandato geral só compreende os actos de administração ordinária.
Mas já será válido, de acordo com Rubino, Il pegno cit., págs. 223, um mandato a conceder penhores,
ainda que não sejam especificadas as obrigações a garantir, nem a as coisas a empenhar, uma vez que o
mandato expresso para praticar actos que excedam a mera administração também é admissível
(possibilidade que parece não ser afastada pelo n.º 2 do art.º 1159.º, ao admitir os mandatos especiais em
45
Mais discutível é saber se, conferido um mandato para alienar um dado
património (ou determinados bens nele incluídos), poderá o mandatário proceder à
correspondente oneração.
RUBINO, VAZ SERRA141 e CHIRONI142 propendem para uma resposta
negativa, considerando ser forçoso distinguir entre alienar e onerar143 e, por outro lado,
porque a inclusão da concessão de garantias reais no conceito de alienação tem carácter
científico e as partes, ao invés, utilizam uma linguagem corrente, não jurídica.
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos mais defensável a resposta contrária, ou
seja, entendemos que quando o mandante conceda uma autorização para alienar, deve
considerar-se implícita uma anuência para praticar actos menos gravosos144: quem
permite o mais, também deve permitir o menos.145
O Ilustre civilista luso, opina, relativamente aos administradores de pessoas
colectivas, que o mandato que lhes é concedido para o desempenho das suas funções
deverá compreender a capacidade para a prática da generalidade dos actos integrados no
objecto social daquela e, portanto, também para a concessão de penhores, salvos os
limites decorrentes da lei e de normas estatutárias internas.146
termos amplos, considerando que os mesmos abrangem, além dos expressamente referidos, todos os actos
necessários à sua execução). Admitindo que o gerente de uma sociedade, a quem a sociedade que
representa tenha conferido os mais amplos e ilimitados poderes, possa celebrar um contrato de penhor por
intermédio de procurador a quem haja transmitido os aludidos poderes, vide o Acórdão do STJ de
18/12/1951, in BMJ n.º 28 (1952), pág. 290 e segs..
141
Obs. e locs. cits..
142
Este Autor, ob. cit., págs. 540 e 541, apesar de reconhecer que na dação em penhor está implícita uma
alienação condicional do bem – e que, por isso, se poderia defender a inclusão da oneração pignoratícia
no âmbito de um mandato para alienação - sustenta que deverá presumir-se “che il mandante non voglia
spogliarsi di facoltà maggiori di quelle espresse nell’atto”.
143
Argumentando que esta distinção, inclusive, é assumida pela lei, o que nos parece carecido de
fundamento, ao menos no que concerne ao ordenamento luso, na medida em que nada no regime legal do
mandato (cfr. art.ºs 1157.º a 1184.º) aponta nesse sentido, podendo até retirar-se do art.º 1159.º, n.º 2 (de
acordo com o qual o mandato especial abrange, além dos actos nele referidos, todos os demais
necessários à sua execução – interpretam este preceito de modo mais restritivo Pires de Lima e Antunes
Varela, ob. cit., Vol. II, pág. 712, considerando que apenas se encontra implícita na autorização conferida
para a prática de certo acto, a realização “dos actos acessórios necessários à execução do acto principal”,
apontando como exemplo da inclusão, no mandato para vender, dos poderes para o recebimento do preço
e a quitação) apoio para sustentar a posição inversa, na medida em que se o mandante autorizou o
mandatário para alienar um determinado bem, esse negócio, nos termos da lei, permite a este último a
realização de outros não directamente previstos, mas acessórios, do mencionado no mandato,
nomeadamente onerá-lo tendo em vista uma futura alienação.
144
Mesmo o argumento da inclusão das garantias reais no conceito de alienação ter carácter científico e as
partes, ao invés, utilizarem uma linguagem não jurídica poderá ser rebatido, considerando que as partes
(admitindo que estas desconhecem o vocabulário legal, o que nem sempre será verdade, sobretudo
quando de trate de negócios de grande envergadura, onde a assessoria jurídica é cada vez mais comum)
ao autorizar a “alienação” pretendem conceder ao mandatário o poder de realizar todos os actos de
disposição do bem, seja a venda propriamente dita, seja a constituição de garantias sobre os mesmos bens
(oneração esta que, em última análise, poderá conduzir à alienação, em caso de incumprimento da
obrigação garantida pelo penhor). Neste sentido aponta Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2137, ao
menos no domínio comercial entendendo que “bastará poder general para entender que el representante
está facultado para constituir garantías reales si este negocio está comprendido en el giro o tráfico de la
empresa”.
145
Já a hipótese contrária (a alienação de bens pelo mandatário, quando o mandato apenas lhe conferia
poderes para onerar), será de excluir, uma vez que o acto expressamente permitido pelo mandante é
menos grave do que aquele levado a cabo pelo mandatário.
146
O aludido Autor advoga, em apoio da sua teoria, a inaplicabilidade das limitações ao conteúdo do
contrato de mandato previstas na lei civil, na medida em que estas seriam apenas aplicáveis às pessoas
físicas (conforme aludido supra e desenvolvido infra, os administradores das sociedades anónimas e os
gestores das sociedades por quotas dispõem, em regra, de poderes para autorizar a constituição de
46
A constituição de um penhor por intermédio de representante que não disponha
de poderes para o efeito será ineficaz relativamente ao verdadeiro proprietário do bem
onerado, a menos que seja por este ratificada (art.º 268.º, n.º 1).
Temos, até aqui, analisado os requisitos da constituição do contrato de penhor no
pressuposto que o bem objecto da garantia seja propriedade do devedor. Todavia, do
próprio conceito legal de penhor (cfr. n.º 1 do art.º 666.º147) resulta que o bem
empenhado pode pertencer a terceiro,148 assumindo este o papel de garante do débito do
devedor.149
Neste caso, as partes do contrato de penhor serão o terceiro e o credor
pignoratício (não sendo de atribuir a qualidade de parte ao devedor),150 muito embora o
devedor e o terceiro possam acordar entre si os termos e condições da prestação da
garantia:151 todavia e apesar de, tendo em conta a conexão que existe entre estes pactos
e o contrato pignoratício, as vicissitudes deste último podem reflectir-se naqueles
acordos.152
No entanto, as considerações expandidas acerca da garantia pignoratícia são
aplicáveis também nesta última hipótese, muito embora a lei, ocasionalmente, distinga
garantias por parte dessas mesmas sociedades). Resta, todavia, averiguar uma eventual responsabilidade
dos administradores para com a sociedade, caso a outorga do penhor tenha sido danosa - neste mesmo
sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 224 e Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 28. No entanto, no direito francês
e de acordo com Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 206, a constituição de garantias sobre
um bem da sociedade encontra-se sujeita, em geral, a uma deliberação social ou a uma delegação de
poderes nos representantes da mesma (para além disso, nas sociedades anónimas é necessária a
autorização do conselho de administração)
147
O mesmo sucede na generalidade dos demais ordenamentos (vide o art.º 1857.º, n.º 3, do CCE, o art.º
2784.º, n.º 1, do CCI e art.º 2334.º do CCF - anteriormente à reforma de 2006, vide o art.º 2077.º).
148
Não confundir a hipótese em averiguação com aquela em que o terceiro, ao invés de prestar a garantia,
surge como a pessoa encarregue de guardar a coisa, pois, neste último caso, o terceiro é estranho ao
contrato de penhor (sobre este assunto, vide infra n.º 5.1.2 do Capítulo I). Claro que as duas situações
poderão coexistir, isto é, o penhor pode ser prestado por um sujeito estranho à relação obrigacional
garantida e, aquando da sua constituição, ser entregue a um outro sujeito ainda (que não poderá ser o
prestador da garantia, pois assim não haveria o desapossamento exigido por lei).
149
Segundo Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 65, quando o penhor seja outorgado por terceiro,
realizam-se dois actos jurídicos: um, entre o terceiro que fornece o penhor e o devedor (qualificado como
um contrato de mandato ou quase gestão de negócios) e outro, entre o terceiro e o credor (que constitui
verdadeiramente um contrato de penhor, com os efeitos que lhe são próprios). Daí que os tribunais
italianos (vejam-se as decisões mencionadas por Barbara Cusato, ob. cit., págs. 172 e 173) tenham
decidido não poder o credor pignoratício utilizar o penhor para extinguir os créditos que detenha sobre o
terceiro garante.
150
Assim, Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2137.
151
Nestes termos se expressam Realmonte, Il pegno cit., pág. 654, Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág.103
e Rubino, Il pegno cit., pág. 222 (apontando como exemplos aqueles acordos em que o terceiro se limite a
assumir a obrigação de concluir um contrato de penhor com o credor ou, pelo contrário, o terceiro
obtenha do devedor um benefício como contrapartida da concessão da garantia). Naturalmente que estes
pactos entre devedor e concedente do penhor não terão de ser necessariamente subscritos (aliás, o Código
de Seabra admitia semelhante hipótese - cfr. art.º 859.º - , acrescentando que o penhor poderia ser
constituído por terceiro, mesmo sem o consentimento do devedor. Esta referência foi omitida no actual
Código Civil, muito embora não existam, a nosso ver, obstáculos à susceptibilidade de o penhor de
terceiro ser constituídos nestes termos – do mesmo modo, para o direito francês, Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 207).
152
Nas elucidativas palavras de Barrada Orellana, ob. cit., pág. 96 “En este caso, la relación obligatoria
tiene unos sujetos y la relación pignoratícia otros, porque, aunque la titularidad del crédito y la del
derecho real coincidan en una misma persona, las condiciones de deudor y de pignorante recaen sobre
personas distintas. Acreedor y deudor se encuentran vinculados por una relación de naturaleza personal
que se desenvuelve con independencia de la existencia de cualqiuer garantia real; mientras que aquél y
el pignorante están ligados por el negocio de prenda, cuyas vicisitudes dependen de las de la obligación
garantizada”.
47
consoante o garante seja o próprio devedor ou um terceiro alheio à relação obrigacional
garantida.153
A posição do terceiro garante é, por vezes, comparada à do fiador, na medida em
que ambos prestam uma garantia para assegurar o cumprimento de uma obrigação
alheia, pelo que as duas situações seriam enquadráveis no âmbito da chamada
responsabilidade sem débito (do próprio responsável).154
Porém, esta analogia não se afigura integralmente aceitável, porquanto a
responsabilidade assumida pelo terceiro empenhador é diversa relativamente à assumida
pelo fiador.155
153
Assim, expressamente, Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág.103 e Rubino, Il pegno cit., pág. 222. É o
que sucede no direito pátrio, por exemplo, com o disposto no n.º 2 do art.º 667.º, n.º 2, nos termos do qual
o penhor constituído por terceiro se extingue (em termos análogos ao previsto para a extinção da hipoteca
constituída por terceiro – cfr. art.º 717.º, n.º 1) quando, por facto positivo ou negativo do credor, não
possa ocorrer a sub-rogação do terceiro nos direitos daquele (importa salientar que, nos termos do n.º 1 do
art.º 592.º, o terceiro que cumpra uma obrigação cujo cumprimento houvesse assegurado fica sub-rogado
nos direitos do credor). Uma outra especificidade diz respeito ao momento da execução, uma vez que,
devendo esta começar pelo bem onerado (cfr. art.º 835.º do CPC), não é menos verdade que, sendo este
insuficiente para pagamento do crédito garantido, deverão ser excutidos bens, não do terceiro garante,
mas do devedor da obrigação principal.
154
Considera o terceiro prestador de garantia real como “un garante análogo al fiador” Cordero Lobato,
Comentario cit., págs. 2137 e 2138, afirmando que “ninguna de las reglas de fianza se fundamenta en la
técnica de esta garantía (responsabilidad personal del fiador), ni tampoco puede decirse que la técnica
de las garantías reales (la afección del valor de una cosa al pago preferente de un crédito) impida la
aplicación de normas que protejan al hipotecante tercero como garante”. No direito francês a distinção
entre ambas as figuras é ainda dificultada pelo uso da expressão “cautionnement réel” para designar o
penhor concedido por terceiro, sendo que a fiança, no direito gaulês, é apelidada precisamente de
“cautionnement”.
155
Dada a existência destas diferenças, Rubino, ob. e loc. cit., pág. 221, entende que as normas relativas à
fiança apenas devem ser aplicadas por analogia ao penhor prestado por terceiro e somente desde que a tal
não se oponham as diferenças essenciais entre as duas figuras (e desde que as referidas normas não
possuam natureza excepcional). Neste contexto, discute-se se o terceiro empenhante também usufruirá do
benefício da excussão reconhecido ao fiador (cfr. art.º 638.º), dando conta Enrico Gabrielli, Il pegno cit.,
pág. 102, nota 132, de uma decisão judicial indeferindo o reconhecimento daquele benefício. Em face do
nosso direito e tendo em conta a obrigatoriedade de as execuções de dívidas asseguradas por garantia real
se iniciarem pelos bens onerados (cfr. art.º 835.º do CPC) e o diferente âmbito da responsabilidade real do
terceiro empenhante e pessoal do fiador, sustentamos igualmente não ser de atribuir ao terceiro autor do
penhor o direito de excussão, solução defendida igualmente, embora sem recorrer a este argumento, por
Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 229, Almeida Costa, Direito das obrigações 12.ª Edição, Almedina, 2009,
pág. 924 (ressalvando a possibilidade de tal benefício poder ter sido convencionado, mas esclarecendo
que, quando assim não for, dele não gozará – apesar da lei não o dizer expressamente - até por confronto
ente o penhor e a fiança “enquanto o fiador se obriga com todo o seu património, o terceiro que constitui
o penhor vincula-se apenas com certo ou certos bens – o que faz presumir intenções diferentes de um e de
outro”), Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 99 e 100 (porquanto a responsabilidade do terceiro
empenhante se cinge à coisa em si, não se verificando uma responsabilidade pessoal análoga à do fiador)
e, no direito francês, por Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 9 (argumentando tratar-se de uma limitação
dos direitos de credor não defensável em face da ausência de norma expressa nesse sentido, muito embora
aceite que as partes possam acordar o contrário) e Troplong, ob. cit., pág. 107 (sustentando que o terceiro,
ao ser desapossado do bem, havia renunciado ao direito de excussão pois, a partir desse momento, o
credor passava a exercer a sua preferência e o direito de retenção sobre o objecto da garantia sem
necessidade sequer de accionar o proprietário). Nega igualmente a equiparação do terceiro dador de
penhor ao fiador Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 447 e 448 – mesmo para quem aluda, no caso
do penhor, a uma fiança real limitada – contrapondo a responsabilidade limitada a determinados bens do
empenhante à responsabilidade genérica do fiador, para além de este, mas não aquele, poder invocar o
benefício da excussão, concluindo que “entre ambas situaciones no hay sino una analogia por la función
que desempeña la fianza real y la personal y por la nota común de garantizar la deuda ajena. Pero las
discrepancias son estructuralmente profundas entre una y otra institución, revelándose inequívocamente
por el modo de desplegar tal función auxiliar de garantía, lo que se traduce en un régimen proprio para
48
De facto, enquanto este assume uma responsabilidade de tal modo ampla que
abrange a generalidade do seu património, aquele outro circunscreve o âmbito do
encargo por si assumido a um determinado bem e ao valor que este possua.156
Existe, depois, uma situação em que a fiança e o penhor se podem entrelaçar,
qual seja a concessão de um penhor por quem houvesse já consentido uma fiança em
garantia do mesmo débito. Independentemente da questão de saber se a garantia se
destinava a assegurar o cumprimento da obrigação principal ou da fideiussória, não
estamos perante um penhor outorgado por terceiro, precisamente porque, neste caso, o
fornecedor da garantia pignoratícia não é estranho à relação obrigatória.157
Outra questão prende-se com a admissibilidade de o terceiro empenhante
invocar, contra o credor, as excepções que o devedor eventualmente tenha contra
aquele, nomeadamente as decorrentes da relação obrigacional garantida.158
A este propósito, deparamos com uma concepção mais ampla, que responde
afirmativamente à questão colocada, ressalvando apenas as excepções de natureza
marcadamente pessoal, ancorando tal entendimento na circunstância de o terceiro
garantir a obrigação do devedor nos precisos termos em que esta exista.159
Pelo contrário, há quem consinta que o terceiro garante se possa valer das
excepções pessoais que o devedor eventualmente possua contra o credor (por não ser de
presumir que o empenhador ou proprietário tenham querido garantir a pretensão do
credor mesmo contra a falta de capacidade ou os vícios da vontade do devedor), mas,
paradoxalmente, advogue que as excepções da prescrição e da limitação da
responsabilidade do herdeiro, devem depender exclusivamente da vontade do devedor
(o qual poderá preferir, por motivos válidos, não as invocar).160
Cumpre, ainda, para estabelecer qual a sanção aplicável nos casos em que o
concedente na garantia não se encontrasse em condições legais de o fazer, distinguindo
consoante o constituinte não fosse o proprietário do bem ou, pelo contrário, sendo-o,
não dispusesse de legitimidade para o empenhar.161
cada una de ellas” (em conformidade, o Autor recusa, na ausência de norma expressa, a aplicação ao
terceiro prestador de penhor em garantia de dívida alheia da norma, prevista para a fiança, que permitiria
ao garante que houvesse pago a dívida principal reclamar do fiador a totalidade ou parte de tal pagamento
– até porque a fiança pressupõe uma confiança pessoal entre os sujeitos garante e garantido, decorrente da
assunção conjunta da dívida, que não se verifica nos mesmos termos nas garantias reais - julgando
equitativa a solução acolhida no art.º 2871.º do CCI, de acordo com o qual o terceiro empenhante que
liquide o crédito garantido pode repetir contra os fiadores do devedor ou contra outros terceiros
prestadores de garantias, na respectiva proporção) – acerca dos efeitos da cumulação, para efeitos de
execução, de uma fiança e de um penhor em garantia do mesmo crédito, vide infra n.º 8 do Capítulo I.
156
Outra diferença, realçada por Rubino, Il pegno cit., pág. 222, prende-se com a natureza real (e a
protecção do credor a ela associada) do penhor, em contraste com a natureza pessoal da fiança. Em suma,
poderemos afirmar que a fiança – por comparação com o penhor - constitui uma garantia mais abrangente
no que respeita aos bens abrangido mas, paradoxalmente, menos intensa no que concerne à protecção
conferida ao respectivo titular.
157
Com efeito, se o fiador empenhar um bem para garantir o mesmo crédito relativamente ao qual prestou
fiança, não estaremos perante um penhor constituído por terceiro, na medida em que o empenhante não é
estranho face à relação obrigacional principal. Partidários deste entendimento são Enrico Gabrielli, Il
pegno cit., pág.102, Rubino, Il pegno cit., pág. 222, Realmonte, Il pegno cit., pág. 654 e Ciccarello, ob.
cit., pág. 693.
158
Sobre esta questão, vide infra n.º 4 do Capítulo I.
159
Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 229 e Marques de Carvalho, pág. 17.
160
É a posição de Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 93.
161
Distinguindo estas duas situações, Alex Weil, ob. cit., págs. 79 e 81 e, sobretudo, Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs. 201 a 205 e Candido Paz-Ares Rodriguez., ob. cit., págs. 1860 e 1861
(com base, aliás, nos próprios n.ºs 2 e 3 do art.º 1857.º do CCE, que se ocupam separadamente da
pertença do bem a onerar ao proprietário e à existência de um poder de disposição sobre o mesmo ou, em
alternativa, ao suprimento legal de tal indisponibilidade: todavia, o texto legal não comina qualquer
49
Na primeira hipótese, o negócio é nulo, nos termos previstos para a alienação de
bens alheios (art.º 892.º, aplicável ex vi do art.º 939.º)162 163 164, embora tal nulidade não
possa ser oposta pelo empenhante ao credor pignoratício (pelo menos admitindo que o
contrato de penhor é um negócio oneroso) de boa fé, nem tão pouco pelo credor
pignoratício doloso ao transmitente de boa fé,165 sem prejuízo da convalidação do
contrato caso o empenhante adquira entretanto a propriedade do bem (art.º 895.º):166
todavia, este regime apenas se aplica se o bem for empenhado como sendo próprio (art.º
904.º).167
Mais ainda, em caso de boa fé do credor pignoratício, o empenhante é obrigado
a sanar a nulidade da venda, adquirindo a propriedade da coisa ou o direito vendido
(art.º 897.º, n.º 1) e a indemnizá-lo dos danos sofridos, quer tenha agido dolosamente
sanção para o não cumprimento desses requisitos, opinando o Autor que a carência do direito de
propriedade corresponde à ausência de “un presupuesto esencial de validez, determinante la ineficacia
del gravamen, sin perjuicio de la protección registral o de la adquisición a non domino”).
162
Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 685 e Vaz Serra, Penhor cit. in
BMJ n.º 58, págs. 130 e 131 (este último referindo que solução a dar à questão do penhor constituído por
um não proprietário será a mesma adoptada para a alienação de bem alheio).
163
Qualificando o contrato de penhor como nulo nestes casos em face do direito francês, Alex Weil, ob.
cit., pág. 79 e Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 538 (contra Simler e Delebecque, Droit civil:
les sûretés, la publicité foncière, 3.ª Edição, Dalloz, 2000, pág. 452 e Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág.
304, consideram tratar-se de uma nulidade relativa, apenas invocável pelo credor, circunstância que, na
óptica da última Autora citada, torna a sanção ineficaz, “car le véritable propriétaire ne peut demander la
nullité du gage, et il est peu probable qu’elle será remise en cause par son bénéficiaire”). Simon
Quincarlet, ob. cit., pág. 33, alude unicamente à acção de reivindicação por parte do proprietário, mas não
qualifica o vício do penhor.
164
Contra, Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2136, para quem, quer a propriedade, quer a faculdade
de disposição do bem “no son requisitos de validez de los contratos de prenda e hipoteca sino
condiciones de eficacia del gravamen frente a terceros. El contrato otorgado por un no propietario o por
quien carece de facultades para establecer gravámenes no es nulo, pero si es inhábil para producir el
efecto de constituir un derecho real de garantía, salvo que éste se adquiera a non domino”.
165
Cfr. art.º 892.º, n.º 1, 2.ª parte. Em face do direito italiano, Mirabelli, Il pegno, in Il diritto civile
italiano secondo la dottrina e la giurisprudenza (diretto da Pasquale Fiore e Biagio Brugi), Vol. XII,
Napoli, 1915, pág. 415, considera que, nem o devedor, nem o terceiro dispõem de legitimidade para
arguir a nulidade do penhor, argumentando, a fortiori, com a validade da venda de bens alheios. Em face
do direito francês, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 151, entende que o penhor de coisa alheia está ferido
de nulidade relativa, a qual apenas poderá ser invocada pelo credor (embora a Autora sugira, de iure
condendo, a aplicação do regime previsto para a hipoteca, nulidade absoluta, atendendo ao facto de a
nulidade relativa ser ineficaz, uma vez que o verdadeiro proprietário não poderá reivindicar o bem).
166
Gabrielli, I negozi costitutivi di garanzie reali, in BBTC, 1996, I, pág. 149 e segs., págs. 155 e 156,
defende que o título constitutivo da garantia produzirá efeitos a partir do momento em que o concedente
venha a adquirir a propriedade daquele bem (justificando esta posição com as normas dos art.º 1478.º e
1479.º, que consagram solução idêntica para a venda de bens alheios), enquanto Chironi, ob. cit., pág.
477, advoga a plena validade da convalidação do penhor quando o objecto onerado venha a ser adquirido
pelo empenhante. No entanto, no nosso direito e nos termos do n.º 1 do art.º 896.º, o contrato não adquire,
porém, validade, se entretanto ocorrer algum pedido judicial de declaração de nulidade do contrato,
formulado por um dos contraentes contra o outro (alínea a)); a restituição do preço ou pagamento da
indemnização, no todo ou em parte, com aceitação do credor (alínea b)); uma transacção entre os
contraentes, na qual se reconheça a nulidade do contrato (alínea c)); uma declaração escrita, feita por um
dos estipulantes ao outro, de que não quer que o contrato deixe de ser declarado nulo (alínea d)).
167
Caso o bem seja alienado como alheio, o adquirente do direito não merece qualquer protecção
especial, pelo que se aplicará unicamente o regime geral da nulidade (no mesmo sentido, Pires de Lima e
Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, pág. 196, afirmando que o regime vertido nos art.ºs 892.º e segs.,
pressupõe a boa fé de uma das partes, facto esse que justifica a atribuição de alguns efeitos jurídicos a um
negócio nulo), que implica a pura e simples devolução de tudo o que houver sido prestado (art.º 289.º, n.º
1), a possibilidade do vicio poder ser invocado por qualquer interessado (art.º 286.º) e a inviabilidade de
convalidação (art.º 288.º, a contrario).
50
(art.º 898.º), quer tenha actuado sem culpa (art.º 899.º),168 para além de ser responsável
pelo não cumprimento da obrigação de sanar a nulidade da venda ou pela mora no seu
cumprimento (art.º 900.º, n.º 1)169 e de ser solidariamente responsável pelo pagamento
das benfeitorias que devam ser reembolsadas ao adquirente de boa fé (art.º 901.º).
Nesta conformidade e de acordo com o regime geral da nulidade (cfr. art.º 289.º,
n.º 1), esta sanção implicará a não produção de efeitos do negócio de garantia, devendo,
por isso, cada um das partes restituir à outra aquilo que houver prestado em execução do
contrato invalidado, o que significa, no caso do penhor, pelo menos a obrigação do
credor pignoratício (ou do terceiro encarregue da custódia do bem) devolverem o bem
recebido em garantia.
Contudo, a aplicação ao penhor do regime ditado para a alienação de bens
alheios deve ser realizada com as devidas adaptações, nomeadamente porque, como se
verá adiante, a invalidade do contrato de garantia, não obstante a sua acessoriedade, não
afecta a validade do negócio do qual brota a obrigação garantida: todavia, esta regra
poderá comportar uma excepção quando se demonstre que (pelo menos) uma das partes
não o teria concluído sem a concessão daquela, ou seja, a incindibilidade desta
concessão e daquela obrigação, de modo que sem aquela esta não teria nascido (cf.
argumento ex art.º 292.º).
Por outro lado, a circunstância de o contrato de penhor apenas implicar,
normalmente, uma obrigação para o empenhante – a entrega do bem ao credor ou a
terceiro – torna problemática a aplicação da disposição (art.º 894.º, n.º 1)170 que confere
ao adquirente de boa fé o direito de exigir a restituição integral do preço, ainda que os
bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer
outra causa: a nosso ver, a atribuição de um efeito útil a tal disposição, no âmbito da
aquisição de um penhor, relevará sobretudo nos casos em que se demonstre a existência
de uma incindibilidade entre o negócio de constituição de garantia e a obrigação
garantida.
Quando assim for e quando o credor pignoratício tenha, por força desta última
obrigação, fornecido algum bem ao empenhante (v.g., a quantia mutuada, em caso de
mútuo garantido por penhor), a invalidação do negócio constitutivo da garantia
permitir-lhe-á reaver o que prestou, desde que se encontre de boa fé (com fundamento
no mencionado art.º 894.º, n.º 1); caso contrário, se o credor ainda não tivesse procedido
a qualquer entrega no âmbito da obrigação assegurada com penhor, cessará a obrigação
de o fazer.
Claro está que esta invalidade da garantia pode ainda produzir efeitos caso o
próprio processo de constituição da mesma ainda não se encontre concluído, isto é, se o
empenhante ainda não havia entregue o bem a onerar ao credor ou a terceiro, a não
produção de efeitos da garantia significará que tal desapossamento não se venha a
verificar (ao invés, se tal entrega ao credor ou a terceiro já houver sido efectuada, a
invalidade do negócio origina a sua devolução ao empenhante).
168
Embora o quantum indemnizatório seja diverso, porquanto em caso de dolo a indemnização abarca
todos os prejuízos que não teria sofrido se o contrato fosse válido desde o começo, ou não houvesse sido
celebrado, conforme venha ou não a ser sanada a nulidade (art.º 898.º), enquanto que não havendo dolo
nem culpa, compreende apenas os danos emergentes que não resultem de despesas voluptuárias (art.º
899.º).
169
Porém, em caso de dolo por parte do transmitente, o adquirente do direito escolherá entre a
indemnização dos lucros cessantes pela celebração do contrato nulo e a dos lucros cessantes pela falta ou
retardamento da convalidação (art.º 900.º, n.º 2).
170
Porém, se o adquirente houver tirado proveito da perda ou diminuição de valor dos bens, será o
proveito abatido no montante do preço e da indemnização que o transmitente tenha de pagar-lhe (art.º
894.º, n.º 2).
51
Confrontado, então, com a oneração de um bem seu por terceiro, o legítimo
proprietário dispõe da possibilidade de lançar mão de uma acção de reivindicação,
assim impedindo a produção de efeitos do negócio de penhor,171 embora tal acção possa
ser repelida pelo credor pignoratício naqueles ordenamentos que consagrem a regra da
posse vale título.172 173
Pelo contrário, tratando-se de penhor constituído por um proprietário sem
capacidade para o fazer, dever-se-á averiguar, caso a caso, qual a sanção que a lei
preconiza, sendo que a sanção tradicional para a disposição de bens por parte de quem
carece de legitimidade para o efeito é a anulabilidade (v.g., os art.ºs 125.º, 139.º e
156.º),174 cuja invocação é restringida às pessoas em benefício das quais a mesma foi
estabelecida (cfr. art.º 287.º, n.º 1).175
171
O direito de reivindicação, consagrado no art.º 1311.º para o direito de propriedade, vale para a
generalidade dos direitos reais, por força da remissão contida no art.º 1315 do mesmo Código (porém,
essa aplicação não se faz sem nuances, nomeadamente a que respeita ao carácter imprescritível deste
direito – cfr. art.º 1313.º - o qual não será de aplicar a alguns direitos reais menores, tendo em conta a
natureza temporária destes: daí que se possa afirmar que o direito e a acção de reivindicação duram
enquanto durar o direito real). Em termos adjectivos, à acção de reivindicação não corresponde qualquer
meio processual específico, pelo que deverá ser interposta uma acção declarativa comum, consoante os
casos ordinária sumária ou sumaríssima (cfr. art.º 462.º do CPC): em face da anterior distinção entre as
várias acções declarativas, Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 271 e segs., entendia deve propor-se uma
acção declarativa de condenação, que apenas se demarca das demais devido a alguns aspectos
particulares, como sejam o facto de o pedido ser duplo – reconhecimento da titularidade do direito e
devolução do bem, sendo esta uma consequência daquele reconhecimento - , de apenas poder ser
recusado quando o possuidor ou detentor for titular de algum direito que legitime a sua posição e, por
último, de o seu autor estar sujeito a um ónus de prova particularmente exigente (com efeito, não lhe
basta provar a licitude do seu título de aquisição – que apenas comprova a última aquisição havida - pois
tal não demonstra a bondade do título de aquisição do alienante e dos anteriores adquirentes), excepto
quando possa invocar em seu favor o usucapião ou as presunções possessórias ou registais (que invertem
o ónus da prova, fazendo com que seja ao réu que incumba o seu afastamento). Já para Oliveira Ascensão,
Direito Civil Reais, 5.ª Edição (reimpressão), Coimbra Editora, 2000, págs. 426 e segs., deveria ser
proposta uma acção de condenação à entrega da coisa (pois entende que o principal objectivo visado pelo
autor é a restituição do bem, podendo nem sequer estar interessado na proclamação do seu direito),
embora a entrega efectiva apenas possa ser alcançada num posterior acção executiva destinada a fazer
cumprir aquela primeira decisão condenatória. Para além da acção de reivindicação, o titular de um
direito real dispõe ainda de outros meios processuais destinados a tutelar o seu direito, como sejam as
acções de simples apreciação – positiva e negativa – e as providências cautelares (sobre estes assuntos,
vide infra n.º 9.1 do Capítulo I).
172
Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 452 e Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 304, consideram que
este facto, associado à natureza relativa desta nulidade, fazem com que esta sanção não seja muito
perniciosa para os direitos do credor pignoratício.
173
Questão interessante é a de saber se, obtendo o proprietário ganho de causa na acção de reivindicação,
o credor pignoratício que esteja na posse do bem empenhado poderá fazer valer contra aquele um direito
de retenção (admitindo encontrarem-se verificados os requisitos legais de que depende a existência deste
poder). Para Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 208 a 13, torna-se forçoso distinguir entre
os casos em que a acção de reivindicação haja sido proposta pelo proprietário simultaneamente
constituinte da garantia (mas carecido de legitimidade para o fazer) e, por outro lado, as situações em que
o reivindicante seja o proprietário e a garantia tenha sido constituída por outrem, acordando o direito de
retenção ao credor pignoratício na primeira hipótese e negando-o na segunda (esta segunda conclusão é
também sufragada por Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 453).
174
No direito italiano, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 61, sustentam a anulabilidade do penhor constituído
por quem careça de capacidade para o efeito, embora admitam que a sucessiva constituição do penhor
com a participação do devedor, nomeadamente através da entrega, pode traduzir a ratificação do acto de
concessão (para além disso, os Autores entendem que, uma vez formado o título para a constituição do
penhor – normalmente o contrato – a eventual incapacidade superveniente, embora anterior à entrega e
constituição da garantia, não afecta a validade do penhor).
175
Assim, para o direito francês, Alex Weil, ob. cit., pág. 81. Pelo contrário, Cabrillac e Mouly, Droit des
sûretés cit., pág.538, consideram, sem mais, estarmos perante uma nulidade relativa, posição que parece
52
Finalmente, existem normas avulsas que se afastam, em determinados aspectos,
do regime geral do penhor, tendo em conta a qualidade dos sujeitos – normalmente do
credor pignoratício financiador -, seja na ordem jurídica lusa,176 seja noutros países,
como Itália,177 Espanha178 ou Alemanha.179
obter igualmente o beneplácito de Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 33 (uma vez que este Autor qualifica o
contrato como nulo, mas atribui legitimidade para arguir essa invalidade apenas ao incapaz).
176
Por exemplo, o regime especial instituído pelo Decreto-Lei n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939 (cujos
principais desvios, face ao regime geral, consistem na desnecessidade de entrega do bem empenhado ao
credor e, noutro plano, na necessidade de redução a escrito do contrato de penhor) é apenas aplicável
quando o penhor tenha sido constituído “em garantia de créditos de estabelecimentos bancários
autorizados”, advertindo Rui Pinto Duarte, ob. cit., pág. 236, nota 637, que uma interpretação actualista
impõe que a expressão usada pela lei - “estabelecimentos bancários” - seja entendida como abrangendo,
pelo menos, todas as instituições de crédito (este regime foi posteriormente alargado às seguradoras, pelas
garantias obtidas como contrapartida dos seguros de créditos à exportação por elas efectuados ao abrigo
do Decreto-Lei n.º 214/99, de 15 de Junho - cfr. art.º 22.º, n.º 1), muito embora Salvador da Costa, ob.
cit., págs. 57 e 58, mencione decisões judiciais que tenham excluído as Caixas de Crédito Agrícola (as
quais podem conceder crédito, obtendo como garantia penhores – cfr. o Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de
Janeiro, em especial o art.º 33.º, atribuindo o art.º 1.º a estas mesmas instituições legitimidade para a
prática de dos demais actos inerentes à actividade bancária) do âmbito de aplicação do regime do penhor
em garantia de estabelecimentos bancários (retirando dessa exclusão a desnecessidade de redução a
escrito dos contratos de penhor celebrados por aquelas entidades, em homenagem ao preceituado no
regime geral do penhor). Também o regime consagrado Decreto-Lei n.º 365/99, de 17 de Setembro, cinge
o seu âmbito à actividade de prestamista, entendido esta como “o exercício por pessoa singular ou
colectiva da actividade de mútuo garantido por penhor” (cfr. art.º 1.º, n.º 2), traduzindo-se as principais
especificidades no facto de o contrato estar sujeito a forma escrita (art.º 11.º), de, em regara, o acesso à
actividade de prestamista estar sujeita a licenciamento (art.ºs 2.º a 9.º), de existirem determinados
objectos sobre os quais o penhor não pode incidir (art.º 10.º), de a lei fixar os montantes máximos dos
juros e comissões a cobrar pelo prestamista (art.ºs 12.º e 13.º), para além de disciplinar outras vicissitudes
contratuais (art.ºs 14.º a 16.º), e de, por último, a venda do objecto empenhado obedecer a regras
particulares (art.º 19.º a 31.º, especialmente o art.º 20.º, nos termos do qual a venda pode ocorrer através
de carta fechada, leilão ou venda directa a entidades legalmente habilitadas a adquirir determinados bens).
No Acórdão da Relação de Lisboa de 10/11/2009, in www.dgsi.pt, decidiu-se que o prestamista credor
pignoratício não pode recusar a devolução do bem ao portador da cautela de penhor (uma vez que se trata
de um título de crédito à ordem, transmissível por endosso), dispondo deste de uma pretensão à entrega de
uma coisa certa e determinada (e, caso tal entrega não possa ser efectuada, disporá do direito a ser
indemnizado a título de lucro cessante que o requerente pudesse vir a obter, resultante da frustração da
comercialização dos bens em virtude do perecimento do direito ao resgate).
177
Em Itália, por exemplo, os “Monti di Pietà” gozam de um regime específico de concessão de
empréstimos contra a prestação de penhor (Lei n.º 745, de 10/5/1938 e r.d. n.º 1279, de 25/5/1939),
embora Serafino Gatti, Il credito su pegno, 2.ª Edizione, Giuffrè, 2002, pág. 3 e segs., realce que, desde
1993, qualquer banco pode exercer esta actividade e gozar deste regime especial (cfr. art.º 48.º do Texto
Único em matéria bancária e creditória). Merecem especial referência, por representarem desvios ao
regime geral do penhor, a enumeração dos bens sobre os quais a garantia pode recair (jóias, relógios,
peles, tapetes, máquinas fotográficas e outros bens similares); a limitação da responsabilidade do
empenhante ao valor dos bens dados em penhor; a emissão, por parte da entidade credora, de um
documento específico - “polizza di pegno” – contendo todos os elementos da operação, que é
transmissível nos mesmos termos dos títulos ao portador (embora Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 73,
não a considere como um título de crédito “dato che manca il requisito caratteristico ed essenziale di
questi titoli, cioè la destinazione alla circolazione”), o que garante o anonimato das operações seguintes à
inicial (a sua função é a de legitimar o seu portador a exigir, contra o pagamento do capital mutuado, a
restituição das coisas empenhadas e, por outro lado, de permitir ao financiador a restituição da coisa
empenhada com efeitos liberatórios); o mais elevado grau de diligência imposto ao credor depositário, em
razão da natureza da actividade profissional por ele desempenhada, na custódia da coisa empenhada
(embora, em caso de responsabilidade leve da sua parte nos danos produzidos no bem, esta tenha como
limite o valor de avaliação aumentado de um quarto, mas deduzido o montante do capital e dos juros em
dívida), sem que, pelo contrário, exista responsabilidade do credor em caso de depreciação do bem por
causas naturais ou em resultado de defeitos intrínsecos ou de perda, total ou parcial, decorrente de caso
fortuito ou de força maior (sendo mais duvidosa a isenção de responsabilidade em caso de perda do bem
53
motivado por “smarrimento ”, “rapina” ou furto, noticiando Serafino Gattti, Il credito cit., pág. 11, que a
jurisprudência impõe, como condição da isenção da responsabilidade do credor, que este prove ter
adoptado todas as cautelas necessárias ao exercício da sua actividade ou a impossibilidade de o fazer por
causas que não lhe sejam imputáveis); o dever do credor assegurar os bens empenhados contra o risco de
incêndio e de danos provocados por raios (por um valor igual ao valor de avaliação do bem, acrescido de
um quarto); a impossibilidade de o empréstimo ser concedido sem uma prévia avaliação, por parte de
peritos, do bem empenhado e de o montante a mutuar não poder ultrapassar o montante dessa avaliação; e
o facto de a venda, em derrogação do regime geral, ter que decorrer em hasta pública (e, caso, após duas
tentativas, não haja adquirentes ou não seja atingido um valor suficiente para cobrir o montante
emprestado, o bem será adjudicado ao perito avaliador pelo valor da avaliação, pelo que, em última
análise, cabe a este “garantire alla banca erogante l’integrale recupero del credito nel caso in cui
l’operazione non vada a buon fine e l’oggetto pignorato debba essere venduto” - Serafino Gatti, La
peculiare natura dei contratti dei monti di credito su pegno nell’ordinamento giurdico italiano, in Rivista
di Diritto Commerciale e delle obbligazioni, ano 92, n.ºs 3-4, pág. 157) e conduzida pelos próprios
concedentes ou por entidades terceiras por aqueles contratadas para o efeito. Conforme resulta do
exposto, esta avaliação é decisiva (devendo basear-se no valor de mercado do bem no momento da
avaliação e, ainda, na previsão de futuras oscilações de valor durante o período de duração da obrigação
assegurada), desempenhando o perito avaliador um papel fulcral pois, em última análise, garante o
ressarcimento do credor (salvo em caso de força maior, nomeadamente quando se demonstre a existência
de alterações extraordinárias e imprevisíveis das condições de mercado do bem – neste sentido, Serafino
Gatti, Il credito cit., pág. 156 e segs.): ora, para se precaver, o avaliador tenderá a realizar uma estima
prudencial (legítima e traduzida numa avaliação cautelosa, precavendo-se contra eventuais oscilações
futuras de valor) ou até a subavaliar o bem onerado (conduta ilegítima, através da qual o avaliador atribui
ao objecto um valor claramente inferior ao seu valor comercial, em claro prejuízo do empenhante, que
obtém um crédito inferior ao que lhe consente o valor do bem empenhado – para evitar esta prática,
Serafino Gatti, Il credito cit., págs. 166 a 168, sugere estabelecer uma franquia até ao limite da qual a
responsabilidade pela perda do bem seria imputada ao credor, impor uma avaliação colegial e aumentar o
preço a pagar pelas avaliações). Porém, este regime suscita dúvidas de constitucionalidade – em particular
o art.º 11.º do diploma de 1938, ao estabelecer que o proprietário das coisas empenhadas roubadas ou
“smarrite” pode obter a sua restituição apenas depois de reembolsar o credor das somas mutuadas,
acrescidas dos juros – embora o acórdão da Corte Costituzionale n.º 408, de 31/7/2000, tenha decidido
não existir qualquer desconformidade com a lei fundamental (mas não sem ressalvar que a presunção de
boa fé do possuidor não é absoluta, caindo quando os representantes da entidade credora procedam com
dolo ou negligência, designadamente ao violar o dever de recusar a concessão de empréstimos quando
tenham fundado motivo para suspeitar da ilícita proveniência dos objectos empenhados – sobre este
assunto, Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 207 e segs.). Para um elenco dos vários países que consagram
regimes especiais de penhor em função da natureza do credor, vide Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 227
e segs..
178
Curto Polo, Los préstamos pignoraticios en el monte de piedad: una realidad vigente en Europa, in
Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons,
Madrid, 2006, pág. 316 e segs., destaca como o próprio art.º 1873.º do CCE remete para a regulamentação
específica aprovada por estas instituições, consubstanciadas no Regulamento das Caixas de Empréstimos
e Estabelecimentos Similares, de 1909, do Estatuto das Caixas de Poupança (categoria em que se
integram os Montes de Piedade), datado de 1933, e sobretudo das normativas internas aprovadas por estas
instituições, em especial o Regulamento-Tipo dos Montes de Piedad, aprovado em 1983 e que, por serem
incluídas nos empréstimos concedidos por estas entidades, vinculam os mutuários. Dada a escassez do
conteúdo destas normas, a Autora sustenta a aplicação subsidiária do Código Civil, bem como das normas
legais sobre transparência bancária e de combate à usura. Da conjugação de todas estas disposições,
decorre a empenhabilidadede um conjunto vasto de bens (desde jóias, a máquinas fotográficas, relógios e
obras de arte) que é sujeito a uma avaliação por parte de peritos dos Montes de Piedade (sendo que,
normalmente, o valor do empréstimo não pode exceder 80% do valor da avaliação), presumindo-se serem
os mesmos propriedade do empenhante e sem que este tenha sequer que apresentar qualquer
comprovativo desse direito (o que pode originar que o bem seja empenhado por um não proprietário, caso
em que o verdadeiro dominus poderá reclamar o seu direito e exigir a devolução do bem, devendo para
isso apresentar decisão judicial reconhecendo o seu direito e, ainda, liquidar ao Monte de Piedade o
montante do empréstimo em dívida), devendo a operação constar de documento escrito (contendo a
identificação do mutuário, a descrição do bem onerado, a quantia mutuada e o valor de avaliação do bem
empenhado), não existindo normas expressas sobre a sua execução (embora a regra seja o recurso a hastas
públicas, a Autora admite o recurso a outros meios judiciais e extra-judiciais, consentindo mesmo a
54
2.4.2.2 - Forma
entrega dos bens onerados em pagamento ao credor, faculdade que entende não contender com a
proibição do pacto comissório, uma vez que a faculdade de apropriação só é conferida no momento do
vencimento da obrigação garantida e, por outro lado, “existe la posibilidad de contrastar el valor de la
cosa en la medida en que la apropriación por parte del Monte de Piedad viene precedida de dos subastas
públicas anteriores enlas que se habrá determinado su valor”). Um aspecto problemático deste regime
prende-se com o facto de a transmissão da propriedade do bem a terceiro, por parte do empenhante após a
constituição da garantia, ter de constar de escritura pública, sob pena de não ser oponível ao Monte de
Piedade (solução que o Autor entende ser uma sobreprotecção do credor, especialmente quando associada
à sub-rogação necessária do adquirente na posição do empenhante e, por isso, que o terceiro apenas
poderá exigir a entrega do bem depois de satisfeita a dívida contraída pelo empenhante).
179
No direito alemão, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter
Eickmann, ob. cit., págs. 1565 e 1566, enumeram, para além do regime geral ditado para as instituições
que se dediquem à celebração de contratos de comerciais de empréstimo garantido por penhor, uma
pluralidade de normas regionais relativas à actividade das instituições públicas (montes de piedade).
Daquele regime geral, decorre que a responsabilidade do empenhante se cinge ao valor do bem onerado
(pura responsabilidade real), constituindo-se o penhor mediante a entrega de um documento – certificado
de penhor -, e, em caso de execução, o prestamista apenas a poderá levar a cabo um mês depois do
vencimento da obrigação garantida (salvo acordo do empenhante), mas terá que o fazer no prazo de 6
meses a contar dessa mesma data (sendo que o prazo mínimo de vencimento da obrigação garantida não
poderá ser inferior a 3 meses a contar da concessão do empréstimo).
180
O termo “consensual” é aqui utilizado com antónimo de solene, ou seja, como qualificando um
negócio para o qual a lei não exige formalidade específica (art.º 219.º) e não naquele outro sentido de
negócio para cuja perfeição basta o consentimento das partes, sem necessidade da entrega do objecto de
negócio (art.º 408.º, n.º 1) pois, neste segundo sentido, o penhor não é geralmente considerado um
negócio consensual, mas antes um negócio real quanto à sua constituição, sendo a entrega do bem ao
credor ou a um terceiro um elemento essencial (daí não se poder afirmar que, para a constituição do
penhor, seja suficiente o consenso das partes, mesmo que manifestado de forma solene).
181
Neste aspecto o actual Código Civil afastou-se do Código de 1867, em cujo art.º 857.º se exigia, para a
eficácia do penhor em relação a terceiros, que constasse de documento autêntico ou autenticado a soma
devida e a espécie e natureza do objecto do penhor. Do mesmo modo, o Código Civil Brasileiro de 1916
já previa que a constituição do penhor civil ocorresse através de instrumento particular (no qual se
identificasse o valor do débito, e o objecto empenhado – quando fosse um bem fungível, bastaria indicar a
qualidade e quantidade dos bens -, o prazo para pagamento e a taxa de juro) e sujeito, para a sua
oponibilidade a terceiro, a inscrição no registo especial de títulos e documentos (sobre este assunto, vide
Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 35 e segs.).
182
Januário da Costa Gomes, Assunção fidejussória de dívida: sobre o sentido e o âmbito da vinculação
como fiador, Almedina, 2000, pág. 414 e segs., noticiando ser a redução a escrito uma exigência comum
aos diversos ordenamentos, sendo destinada a alertar o fiador para os perigos da sua vinculação.
183
Embora a publicidade possa assumir diversas classificações, importa aqui sobretudo a chamada
publicidade declarativa ou de oponibilidade, sem a qual o negócio produz efeitos entre as partes, mas não
relativamente a terceiros (neste sentido, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 102, nota 319, aludindo ainda à
55
enquanto a segunda se prende com a celebração do próprio negócio: ora, no caso do
penhor, nenhum requisito formal específico é imposto, com excepção de uma
formalidade extrínseca, a entrega (podendo, por isso, a celebração do contrato de penhor
ser provada através do recurso a qualquer meio), a qual, porém, é considerada como
condição para a produção de efeitos do negócio, mesmo entre as partes signatárias.
Por outro lado, esta ausência de forma coloca reticências no que toca à
necessidade de determinação do objecto dos negócios jurídicos (cfr. art.º 280.º), quer no
que concerne ao crédito garantido, quer no que respeita ao bem empenhado,184
especialmente para quem admita o chamado penhor tácito.185
Porém, esta liberdade de forma comporta algumas excepções, merecendo
especial referência as respeitantes ao penhor de direitos (que, nos termos do n.º 1 do
art.º 861.º, está sujeito às exigências de forma prescritas para a transmissão do direito
empenhado), ao penhor comercial (o qual, se celebrado entre comerciantes186 por
quantia excedente a duzentos mil réis apenas produz efeitos com relação a terceiros se
constar de documento escrito – cfr. art.º 400.º do Cód. Com.)187 ao penhor efectuado a
prestamista (que, por força do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 365/99, de 17 de
Setembro, terá de ser reduzido a escrito)188 e ao penhor concedido em garantia de
créditos de estabelecimentos bancários (nos termos conjugados do art.º 2.º do Decreto-
Lei n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939 e do art.º único do Decreto-Lei n.º 32032, de 22
de Maio de 1942189).
publicidade notícia – respeitante a todos os actos que já produziram os seus efeitos, destinando-se a dar
conhecimento geral de tais actos - e a publicidade constitutiva, sem a qual o negócio não produz qualquer
efeito, nem mesmo entre as partes).
184
Acerca desta problemática, vide infra n.º 2 do Capítulo II.
185
Defende esta figura Chironi, ob. cit., pág. 549, afirmando que “Avviene tacitamente la manifestazione
della volontà, per mezzo di fatti nei quali è indubbiamente contenuta: come s’avverte nel caso di un terzo
il quale abbia firmato lo scritto della sicurità, riferindosi in modo manifesto alla cosa spettnte a lui; nel
silenzio, sta la certeza del suo consenso di sottoporre ad onere la cosa propria per debito altrui”.
186
Parece, assim, que nem todos os penhores mercantis se encontram sujeitos a esta exigência de forma,
na medida em que nem sempre ambos os sujeitos intervenientes no contrato de concessão da garantia
serão comerciantes, ou seja, o critério que preside à qualificação de um penhor como comercial é mais
amplo por comparação com aquele outro que impõe de forma escrita para os mesmos, porquanto este
último se cinge aos penhores comerciais celebrados entre comerciantes.
187
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 259, nota 726, realça como a desactualização
desse valor (equivalente, sensivelmente, a 200 escudos ou 1 euro) tem levado alguns Autores (cfr.
Salvador da Costa, ob. cit., págs. 50 e 51) a sugerir uma aplicação analógica dos coeficientes de
desvalorização fixada nos art.ºs 43.º CIRS e 47.º do CIRC, solução desdenhada pelo Autor, tendo em
conta as inseguranças que acarretaria. Por outro lado, Engrácia Antunes, Direito dos contratos comerciais,
Almedina, 2009, pág. 375, entende que este documento escrito será suficiente para tornar a garantia
válida entre as partes e perante terceiros: salvo melhor juízo, parece decorrer da letra da lei uma
interpretação ligeiramente diversa, no sentido em que aquele documento é apenas condição da
oponibilidade do penhor a terceiros, podendo a garantia ser válida inter partes a partir do momento em
que exista o mero consentimento não solene entre elas.
188
Importa esclarecer que tal exigência é imposta independentemente do valor do bem onerado e/ou do
crédito garantido. Para além disso, a aludida norma estabelece a necessidade de o contrato conter dois
exemplares (ficando um deles na posse do mutuante, que se designará «termo de penhor», e o outro,
denominado «cautela de penhor», destinar-se-á ao mutuário) e ser assinado por ambas as partes. Os
números 2 e 3 do citado art.º 11.º impõem ainda a inclusão no contrato de uma série de menções, de entre
as quais merece destaque a necessidade de descrição pormenorizada das coisas dadas em penhor e do
valor mutuado.
189
A primeira disposição impõe a obrigatoriedade de o contrato ser celebrado através de documento
autêntico ou autenticado (contando-se os seus efeitos, no primeiro caso, a partir da data do documento e,
no segundo, da data do reconhecimento notarial), exigências estas que vieram atenuadas pelo segundo
preceito, ao admitir a formalização do penhor através de simples documento particular. Coloca-se, por
isso, a questão de saber se este segundo regime (válido para a generalidade dos penhores bancários)
56
Poderemos questionar-nos acerca da razão que terá levado a esta opção de exigir
formalidades especiais para os penhores constituídos no âmbito comercial e, ao invés,
conceber o penhor civil como um negócio submetido ao princípio da liberdade de
forma, ao arrepio da tradição de sujeitar os negócios comerciais, em comparação com os
de natureza civil, a menores exigências formais.190
Para responder à questão cumpre, desde logo, indagar o porquê da não sujeição
do penhor civil a qualquer tipo de formalidade, até porque a solução se encontra em
oposição com a orientação seguida pela maioria dos ordenamentos jurídicos
estrangeiros mais próximos do nosso.
De facto, nos direitos espanhol,191 italiano192 (embora com nuances),193
francês e brasileiro195 é exigida a formalização do contrato de penhor em documento
194
também será aplicável aos penhores bancários sem desapossamento (previstos no diploma de 1939) –
respondendo negativamente, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 110, o Acórdão da Relação do
Porto de 20/6/1996 (declarando nulo um penhor constituído sem observância das formalidades prescritas
pelo diploma de 1939 – documento autêntico ou autenticado - , com fundamento na necessidade de
acautelar os legítimos interesses de terceiros, particularmente quando não haja entrega dos bens ao
credor), Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 265, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 53
(esclarecendo que decorre do preâmbulo do diploma de 1942 que a exigência de documento autêntico
apenas deverá ser imposta quando o bem empenhado permaneça em poder do empenhante) e Romano
Martinez e Fuzeta da Ponte, Garantias do cumprimento, 5.ª Edição, Almedina, 2006, pág. 178, nota 432
(invocando o ponto 5 do preâmbulo e o parágrafo único do art.º único do Decreto-Lei de 1942, no qual se
ressalva o preceituado no art.º 2.º do Decreto-Lei de 1939, precisamente o que estabelece a
obrigatoriedade dos penhores regulados nesse diploma constarem de diploma autêntico ou autenticado,
valendo as exigências mais leves de forma preconizadas pelo diploma de 1942 apenas para os penhores
com desapossamento) e Giuseppe Trapani, Il c.d. pegno mediante compossesso e il pegno senza
spossessamento, Giuffrè, Milano, 1963, pág. 64, nota 2, (concluindo que “per il pegno senza
spossessamento si richiede l’atto autentico o autenticato”, tendo em conta a necessidade de assegurar um
mínimo de publicidade para a garantia). Em sentido contrário, ao menos aparentemente, Joana Dias,
Mecanismos convencionais da garantia do crédito: contributo para o estudo da garantia rotativa mobiliária
no ordenamento jurídico português, Universidade de Lisboa, 2005, pág. 24.
190
Tomando como paradigma o caso francês, a lei sempre dispensou (quer nos art.ºs 91.º e 109.º do
anterior Código de Comércio, quer nos actuais art.ºs L521-1 e L110-3 do actual Código de Comércio) a
observância de quaisquer formalidades para a constituição de penhores comerciais (não apenas para a
produção de efeitos entre as partes, mas também para a respectiva oponibilidade a terceiros),
precisamente para tornar estas operações mais simples e menos onerosas (acerca das consequências que
resultam da não exigência de qualquer formalidade no domínio mercantil – nomeadamente a
admissibilidade de o penhor comercial, rompendo com o princípio da especialidade, garantir créditos
indeterminados ou futuros e mesmo de um penhor tácito, resultante de uma convenção à qual as partes
não tenham atribuído a qualificação expressa de penhor – vide Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit.,
pág. 541. Para uma crítica da não sujeição do penhor comercial à redacção de um documento escrito,
designadamente pelas fraudes e dificuldades de regular os conflitos entre diversas garantias sobre os
mesmos bens, vide Stefan Piedelièvre, Les sûretés, 3.ª Edição, Armand Colind, 2001, pág. 178). Ao invés,
no penhor civil a forma escrita apenas foi exigido, até à reforma do Code de 2006, como condição de
oponibilidade a terceiros da garantia.
191
Vide o art.º 1865.º do CCE, nos termos do qual o contrato de penhor não produzirá efeitos
relativamente a terceiros se não constar de documento público a data da sua celebração. Perante esta
redacção, a doutrina maioritária considera que aquela formalidade constitui apenas um requisito de
oponibilidade do direito a terceiros, não afectando a validade do contrato entre as partes, para a
celebração do qual não é exigida qualquer formalidade específica, para além do desapossamento do
constituinte (conforme afirmam, entre outros, Gómez-Salvago Sánchez, Cuestiones en torno al privilegio
del acreedor con garantía real mobiliaria y otros supuestos asimilados, in Garantías reales mobiliarias en
Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 511 –
esclarecendo que a entrega do bem tem carácter constitutivo, ao passo que o documento escrito é
condição da concessão ao credor do direito de preferência -, Diez-Picazo, ob. cit., pág. 488, Barrada
Orellana, ob. cit., pág. 133, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 78 – este último concretizando
que, sem o cumprimento desta formalidade, o credor goza simplesmente de um direito de retenção),
embora com vozes em sentido contrário, como Puig Brutau, ob. cit., págs. 32 e 33, (entendendo que,
57
embora à primeira vista a constância do penhor em documento público pareça ser uma mera condição de
oponibilidade do penhor a terceiros – não impedindo, assim, a constituição da garantia mediante
documento particular ou mesmo acordo verbal - , na prática opera como condição de surgimento do
próprio direito real, pois este não opera senão perante terceiros, nomeadamente no que se refere ao direito
de preferência assegurado pela garantia) e, embora em termos não tão enfáticos, Mejias Gomez, La
prenda cit., pág. 158 e segs. (este Autor, depois de afirmar que a eficácia erga omnes do contrato de
penhor depende da sua formalização em documento público com data certa – sem o qual “es impossible
decir que el derecho real de garantía se ha constituido de forma plena, en tanto que no produzca efectos
frente a terceros” – ou seja, que “Frente a los terceros, la prenda sólo será eficaz desde el momento en
que el documento público acredite la fecha”, acaba por concluir que “los efectos proprios de un derecho
real de prenda debidamente constituido, no se ha de producir, si la garantía no se formaliza en
documento público”). Alude igualmente a estas duas posições diferentes quanto ao papel a atribuir ao
documento público Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 139 e 140, considerando que as mesmas
são reflexo da contraposição entre o contrato de penhor e o direito real de penhor. No entanto, apesar
deste princípio geral existem dois tipos de excepções a este princípio vertido na lei geral civil: uma,
respeita aos casos em que a necessidade de documento público é erigido como condição de validade do
contrato de penhor mesmo entre as partes (ou, se quisermos, casos em que o penhor se torna oponível a
terceiros desde o seu nascimento); a outra é relativa às hipóteses em que nem a constituição, nem a
oponibilidade da garantia requerem a existência de documento escrito (Barrada Orellana, ob. cit., págs.
136 e 137 aponta como exemplos da primeira excepção o penhor de participações sociais e da segunda o
penhor de valores mobiliários escriturais, no qual o documento público é substituído pelo registo). Noutra
ordem de considerações e apesar de o teor literal do preceito apenas fazer referência à certeza da data,
Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 169, defende uma interpretação correctiva da norma,
entendendo ser mister indicar igualmente o crédito garantido, assim como o objecto da garantia “porque
si la finalidad de esta previsión es la de proteger a los terceros, sería muy fácil defraudar sus interesses
modificando fraudulentamente la cuantía o el objeto al que se refería la prenda”.
192
No direito italiano, o n.º 3 do art.º 2787.º do CCI estabelece, como condição de exercício da
preferência resultante do contrato de penhor sempre que o valor do crédito garantido exceda 5000 liras
(aproximadamente €2,58), a existência de um documento com data certa contendo indicação suficiente do
crédito garantido e da coisa empenhada.
193
Com efeito, n.º 4 do art.º 2787.º do CCI admite, quando o penhor resultar de documento escrito, que a
prova da data do contrato por qualquer meio, sempre que a garantia tenha sido constituída por entidades
legalmente habilitadas a exercer a actividade profissional de concessão de empréstimos garantidos por
penhores. Em face da redacção deste preceito, coloca-se a questão de saber se o seu âmbito de aplicação
se restringe às entidades autorizadas especificamente a efectuar operações de concessão de crédito
garantidos penhor ou, ao invés, se alarga a todas as instituições titulares de autorização genérica para o
exercício da actividade bancária. A segunda alternativa parece ser a que reúne maior consenso da doutrina
(vide, a propósito, Pierpaolo Marano, Pegno bancario e fallimento, in BBTC, 2000, I, págs. 120 a 123 -
dando conta que se encontra superada a tese mais conservadora, sendo hoje praticamente unânime a
aplicação desta norma a todas as instituições bancárias - Stefano Ambrosini, Pegno di titoli di credito,
mandato fiduciario e insolvenza della società fiduciaria, in Giurisprudenza Commerciale, n.º 21 (1994),
II, pág. 318 e Carla Carrassi, Il pegno omnibus, in La nuova giurusprudenza civile commentata, ano 2, n.º
4 (Jul/Ago 1986), II, pág. 316) e da jurisprudência (vide o Acórdão do Tribunal de Milão de 9/1/1997, in
BBTC, Vol. 52, n.º 1, pág. 69 e segs., com nota de Diego Rufini, Considerazioni sull’acertamento della
data nel pegno bancari, anche alla luce della disciplina contenuta nel testo unico in materia creditizia). Em
especial o último Autor citado socorre-se de diversos argumentos, nomeadamente o facto de a autorização
dada às instituições para levar a cabo operações de crédito compreender, naturalmente, a concessão de
crédito garantido por penhor (pois, nos termos da lei vigente, reentra na actividade bancária a concessão
de crédito sob garantia e, portanto, contra a prestação de penhor); por outro lado, entende não ser razoável
duvidar que tal actividade seja desenvolvida pelas instituições bancárias “a título profissional” (pois esta
expressão deverá ser interpretada como sinónimo de “non occasionalità, ovverosia di svolgimento
dell’impresa in modo stabile e non sporadico”), concluindo não ser legítimo distinguir entre “enti
creditizi in genere ed enti che svolgono prevalentemente o esclusivamente attività di credito su pegno”
para o efeito de aplicar apenas a estes últimos um regime probatório menos rigoroso.
194
No direito francês, a evolução é curiosa. O art.º 2074.º sujeitava a eficácia do direito de preferência
reconhecido ao credor pignoratício, em relação a terceiros, à redacção de um documento autêntico ou
particular, devidamente registado, contendo a identificação do crédito, bem como da espécie e natureza
dos bens empenhados (ou, pelo menos, um anexo indicando a respectiva qualidade, peso e medida).
Perante esta redacção (diga-se, en passant, que na redacção originária e vigente até 1948, a redução a
58
escrito, do qual deverão constar indicações196 relativas à data da celebração do
contrato,197 ao crédito garantido198 e ao bem objecto do penhor,199200 reconhecendo-se
escrito apenas era exigida “en matière excedant 150 francs”), a doutrina era unânime em considerar o
contrato de penhor como não subordinado a qualquer formalidade para a sua validade inter partes,
surgindo os requisitos do art.º 2074.º como condição da existência do direito de preferência (pelo que
apenas os terceiros e não o devedor poderiam opor esta falta de forma ao credor pignoratício), isto é, face
a terceiros credores do concedente (neste sentido, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 26, 27 e 30, Planiol,
Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 78, Guillouard, ob. cit., pág. 81 e Troplong, ob. cit., pág. 42 e, mais
recentemente, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 539 e 540 – embora estes Autores salientem
que a noção de terceiros não engloba apenas os credores do concedente da garantia, mas todos os que são
estranhos à convenção pignoratícia, posição igualmente defendida por Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 57
– e Henri Mazeaud, ob. cit., págs. 148 e 149). Com a reforma operada em 2006, o novo art.º 2336.º passa
a dispor que “Le gage est parfait par l’etablissement d’un écrit contenant la désignation de la dette
garantie, la qualité des biens donnés en gage ansi que leur espèce ou leur nature”, acrescentando o art.º
2337.º que o penhor será oponível a terceiros através da publicidade (que, nos termos do art.º 2338.º será
assegurada através da inscrição num registo especial, a regular num futuro diploma) e do desapossamento
do devedor. Do confronto deste novo regime com o anterior ressaltam duas diferenças: antes de mais,
omite-se a referência ao documento público como meio de formalização do penhor; por outro lado, a
inovação mais relevante prende-se com a função desempenhada pelo documento escrito, uma vez que
antes de 2006 este era mera condição de eficácia face a terceiros (ou, se quisermos, mera condição de
exercício do direito de preferência do credor pignoratício), ao passo que desde esta data o documento
passa a ser condição de existência e validade do contrato de penhor, mesmo entre as partes, pois
pensamos dever ser esse o significado a atribuir ao art.º 2236.º quando este afirma que o contrato de
penhor apenas é “parfait” com a redução a escrito (de facto, se o documento escrito fosse apenas
condição de oponibilidade o contrato estaria perfeito com o simples consentimento das partes, ainda que
não formalizado) e, por outro lado, porque a eficácia do penhor relativamente a terceiro – nomeadamente
através da sua publicidade – é assegurada pelas formas estabelecidas nos art.ºs 2237.º e 2238.º, isto é,
desapossamento ou registo.
195
De acordo com o art.º 1424.º do CCB, o contrato de penhor deve, sob pena de ineficácia, ser reduzido
a escrito, contendo referência ao valor do crédito garantido (ou, em alternativa, ao seu valor estimado ou
máximo), ao prazo de cumprimento, à taxa de juro (se as partes a fixarem) e ao bem dado em garantia
(com as respectivas especificações) – nesta conformidade e de acordo com Sílvio Rodrigues, ob. cit.,
págs. 352 e 353, o penhor é um contrato solene, para cuja formalização se exige, no mínimo, um
documento particular (o qual deve ser assinado pelas partes e lavrado em duplicado, ficando um exemplar
para cada um dos contraentes). Segundo Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 358 e 359, exige-
se ainda a identificação das partes (através dos respectivos nomes, nacionalidades, estados civis,
profissões e domicílio), mas não exige a avaliação do bem onerado (e, quanto à especificação deste, “deve
o penhor enunciar com clareza a coisa dada em garantia. Urge, portanto, se individuem ou se
identifiquem de modo completo as coisas empenhadas”, embora, no que toca aos bens fungíveis, “bastará
declarar-lhe a qualidade e quantidade. Tais bens não possuem existência individual, integram-se no
género a que pertencem e comportam por isso substituição por outros da mesma qualidade e
quantidade”). Mais ainda, o contrato de penhor deve ser registado, no caso do penhor comum, junto no
cartório de títulos e documentos, a requerimento de qualquer dos contraentes (art.º 1432.º).
196
O CCE afasta-se, porém, dos demais, na medida em que o art.º 1865.º apenas alude à obrigatoriedade
de o contrato de penhor constar de documento público, contendo a indicação precisa da data de
celebração – cfr. Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 516 a 518 (precisando que de tal exigência
não decorre a necessidade de a data do contrato ter que coincidir com a respectiva formalização nos
termos impostos pelo preceito, muito embora apenas a partir data do cumprimento desta última
formalidade o contrato possa produzir efeitos face a terceiros), embora o Autor, de lege ferenda, sustente
que “se hubiera garantizado mejor a los terceros imponendo expresamente la constancia de los extremos
fundamentales del convenio por el que se constituía la prenda, y sobre todo el objeto de ésta”.
197
A exigência de data certa do contrato de penhor destina-se a evitar riscos de conluio entre o devedor e
o credor pignoratício, evitando que um devedor em situação de falência ou prestes a cair nesse estado
pudesse antedatar a constituição do penhor, assim defraudando as normas que invalidam este tipo de
negócios celebrados depois de declarada a falência ou determinado período de tempo antes desta (da
mesma forma que consente, quando o mesmo bem seja empenhado a favor de diversos credores,
determinar a ordem de preferência de cada um deles – Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 149). No entanto, o
Código de Napoleão admitia que a data certa fosse provada através de documento público ou privado,
embora nesta segunda hipótese não impusesse qual o momento até ao qual o escrito privado poderia
59
adquirir data certa, momento este que teria que ser sempre anterior à aquisição por parte de terceiros de
direitos conflituantes com o do credor pignoratício - neste sentido, vide Baudry-Lacantinerie, ob. cit.,
págs. 32 e 33, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 81, Guillouard, ob. cit., pág. 81 e Troplong, ob. cit.,
págs. 42 e 69. Alex Weil, ob. cit., pág. 85, acrescenta que se pretende igualmente combater a ante datação
para beneficiar alguns credores em prejuízo de outros. Já para Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 153,
o requisito da data certa não constitui um mecanismo publicitário, mas um elemento necessário para
tornar o direito de penhor e a indisponibilidade do bem que dele decorre oponíveis aos demais credores
do empenhante, ao mesmo tempo que resolve os conflitos entre os diversos credores e, por fim, defende
os terceiros de eventuais fraudes entre o constituinte e o credor pignoratício. Para aqueles penhores
abrangidos pelo n.º 4 do art.º 2787.º do CCI – relativamente aos quais a lei dispõe que a data certa pode
ser demonstrada por qualquer meio de prova – Pierpaolo Marano, ob. cit., págs. 122 e 123, dá conta da
existência de duas orientações distintas: uma mais liberal, aceitando que “la regolare tenuta delle scriture
contabili ed i controlli amministrativi che accompagnono l’attività bancaria inducono a ritentere che le
annotazioni ivi contenute siano state effettivamente eseguite nella data indicata”; e outra, mais restritiva,
não consentindo, tendo em conta a necessidade de evitar fraudes entre o credor e o constituinte da
garantia, que essa prova seja feita unicamente com base naqueles documentos (adoptam este segundo
entendimento Stefano Ambrosini, ob. cit., págs. 318 e 319, escrevendo que esses elementos “devono
presentare carattere di obiettività e non possono farsi risalire al soggetto stesso che gli invoca, neppure
ove si tratti di una banca. Non è dato riscontrare siffatti requisiti in caso di semplice annotazione della
scrittura nei libri contabili alla cui tenuta tale soggetto sia obbligato per legge, salvo che di essi vi sia
stata vidimazione da parte di publico ufficiale (…) attestante la regolarità dei libri stessi”, Gabrielli, Il
pegno anomalo cit., pág. 208 e segs., alegando que, quando a norma em questão fala de “qualquer meio
de prova” apenas se refere a meios que possam constituir prova relativamente a terceiros, o que não
sucede com a contabilidade interna das instituições credoras, excepto se as mesmas forem visadas pelas
entidades competentes e, por último, Sílvia Lovisatti, Osservazioni in tema di limiti del pegno rotativo, tra
“valori originari” e “beni originari”, in BBTC, 2002, I, pág. 703, assegurando ser esta a posição
claramente dominante na jurisprudência). Giovanni Colombo, Pegno bancario: le clausule di estensione,
la prova della data, in BBTC n.º 45 (1982), pág. 210, por seu turno, admite que entre esses elementos se
poderão incluir o carimbo dos serviços postais (demonstrando esse carimbo a anterioridade da data do
documento face à do carimbo, embora ser duvidoso que este meio de prova assegura o mesmo grau de
certeza do registo, pelo que admite que admite ser o mesmo ilidível), a prova testemunhal e o livro onde o
penhor esteja inscrito (mas apenas depois de visados pelas entidades competentes), mas não a
contabilidade do credor pignoratício (argumentando que tais documentos apenas podem ser invocados
contra terceiros, neste caso contra os credores quirografários do empenhante, concluindo que apenas
poderão servir de meio de prova depois de visados e a partir dessa mesma data).
198
Esta exigência destina-se a permitir aos terceiros, nomeadamente aos demais credores do empenhante,
saber exactamente até que valor responde o bem empenhado - Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 149). Rubino,
Il pegno cit., págs. 225, Puig Brutau, ob. cit., pág. 32, Troplong, ob. cit., pág. 68, Baudry-Lacantinerie,
ob. cit., pág. 37 e 226. Guillouard, ob. cit., págs. 84 e 85 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 112,
concordam que a individualização do crédito garantido se dirige, essencialmente, ao respectivo montante
(e não tanto à sua data, natureza, causa e vencimento), nomeadamente evitando o seu incremento
falacioso. Divergem, porém, quanto às menções necessárias quando o crédito for ilíquido, optando o
primeiro pela indicação do montante aproximado (remetendo-se o montante definitivo para a execução e
para a decisão do juiz, enquanto os demais opinam no sentido da obrigatoriedade de indicação de um
montante máximo pelo qual responderia a garantia). Guillouard, ob. cit., págs. 85 e 86, entende que a
fixação do montante do crédito assegurado se mantém ainda que o penhor haja sido constituído em
garantia de uma obrigação de facere, argumentando que a imposição tem carácter geral e, embora
admitindo a dificuldade de avaliação pecuniária nestes casos, sugere que tal não representa um
impedimento absoluto, podendo o credor salvaguardar-se declarando uma importância relativamente
elevada.
199
Esta referência tem como desiderato individualizar o bem objecto da garantia, evitando que seja
substituído por outro mais valioso, em detrimento dos demais credores – assim, Rubino, Il pegno cit., pág.
226 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 113, Puig Brutau, ob. cit., pág. 34 e Guillouard, ob. cit.,
pág. 83 (este último Autor critica a redacção do art.º 2074.º do CCF por considerar que este preceito
inculca a ideia – errónea em seu entender – que a descrição dos bens deverá ser lavada a cabo com maior
minúcia quando efectuada num documento separado do contrato de penhor). Baudry-Lacantinerie, ob.
cit., págs. 29 e 37 a 39, defende que o intuito desta obrigatoriedade de indicação do objecto da garantia
(associada à necessária menção do crédito garantido) visa ainda dar cumprimento ao princípio da
especialidade (sustentando ainda que, sendo individualizadas apenas uma parte das coisas empenhadas, o
60
mesmo que tal formalidade, associada à entrega do bem ao credor, se afigura
indispensável.201
É discutível, porém, se a redacção de tal documento escrito é mera condição de
oponibilidade do direito a terceiros202 (e a que terceiros)203 ou, ao invés, constitui
direito de preferência do credor pignoratício se circunscreve àquelas que o tiverem sido – perfilham este
entendimento também Guillouard, ob. cit., págs. 87 e 88 e Troplong, ob. cit., pág. 68, embora ambos
citem decisões judiciais em contrário). Para Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 130, a observância deste
requisito cumpre uma dupla função: para além da necessidade de proteger terceiros credores do
empenhador (evitando possíveis fraudes entre o credor e o empenhador), igualmente a de consentir aos
credores adquirentes aperceber-se da efectiva disponibilidade dos bens empenhados.
200
Estas menções podem resultar de documento separado a anexar ao contrato de penhor, mesmo que
anterior ou posterior a este, desde que também aquele outro documento tenha data certa – neste sentido
Rubino, Il pegno cit., pág. 226, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 97, Troplong, ob. cit., pág. 69, Baudry-
Lacantinerie, ob. cit., pág. 35, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 82, Guillouard, ob. cit., pág. 88 e, no
domínio do Código de Seabra, Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 234. Em particular Gabrielli, Il negozi
costitutivi cit., pág. 154, sustenta que o documento exigido como condição da existência do direito de
preferência não tem que ser, obrigatoriamente, o negócio constitutivo do penhor, nem tão pouco deve
impreterivelmente consistir num único documento, podendo antes resultar da conjugação de uma série de
documentos com data certa (em termos aproximados Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 118, afirmando que
o documento com data certa não “si identifica necessariamente con il negozio costitutivo del pegno,
perché questo può anche essere costituito oralmente, o con scrittura priva della data certa”).
201
Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 515 e 516, entende não ser viável optar por um ou outro
mecanismo, pois só a cumulação de ambos permite proteger os interesses do credor (através da entrega,
que impede a dissipação do bem ou a sua entrega liberatória a terceiro) e terceiros (protegendo-o contra
condutas ilícitas ou fraudulentas do devedor, traduzidas na constituição dissimulada de penhores, desse
modo entregando bens de sua propriedade a outros credores).
202
A posição largamente dominante na doutrina (vide, entre outros, Rubino, Il pegno cit., pág. 224, Gorla
e Zanelli, ob. cit., pág. 89, Realmonte, Il pegno cit., pág. 655, Francesco Caringella, (Francesca Della
Valle e Sandra Della Valle), Codice Civile annotato con la giurisprudenza, Giuffrè Editore, 2006, págs.
3552 e 3553 e Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 34 e segs.) e na jurisprudência aponta no sentido de estes
requisitos apenas serem exigidos para o credor poder exercer o direito de preferência (ou seja apenas em
relação a terceiros credores) e não para a validade do penhor entre as partes (que não se encontra, por
isso, sujeito a qualquer formalidade, podendo inclusivamente ser concluído oralmente e, na opinião de
alguns, mesmo tacitamente – Rubino, Il pegno cit., pág. 225 – pois “la scritura non deve necessariamente
identificarsi con il negozio costitutivo di pegno, dovendo contenere (…) come unico requisito ulteriore la
sottoscrizione delle parti o, almeno, del debitore costituente il pegno”, ou seja, o documento “possa
essere predisposto anche in un momento successivo (a partire dal quale si produrrà l’effetto di
prelazione) a quello configurativo della funzione di garanzia, senza per questo sminuire il connotato
unitario dell’operazione”– Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 204 e segs.). No mesmo sentido, para o
direito espanhol, vide Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 513 e 514 (“cualquiera que sea su forma,
la prenda existe y adquiere validez entre las partes que celebran el contrato una vez producida la
transmisión posesoria de la cosa gravada al acreedor o a un tercero, con el ánimo o acuerdo previo de
constituir la garantia. Esta nace como derecho real, pero para que pueda tener virtualidad de tal frente a
los terceros se exige, además (…), que conste por instrumento público la certeza de la fecha”) e De la
Santa Garcia, Prenda de valores cit., págs. 127 e 128 (“No creemos que el Código otorgue efectos
constitutivos a la instrumentación en documento público de la prenda. De la propia redacción del propio
art. 1865: “No surtirá efecto la prenda contra tercero si no consta por instrumento público la certeza de
la fecha” parece poder deducirse que se está refiriendo únicamente a la eficacia erga omnes, no inter
partes, la cual existirá desde que las partes han consentido y se ha entregado el objeto de la prenda, y
podrán posteriormente, por mutuo acuerdo, elevarla a documento publico surtiendo desde entonces
efectos frente a terceros (…). Para que un derecho real limitado tenga eficacia frente a terceros es
necesario dotarlo de publicidad, y el medio más adecuado para ello es el de utilizar un instrumento
publico, puesto que de la mera posesión no se desprende la existencia de ningún tipo de prenda, sino que
puede, en todo caso, darse la aparencia de poseedor a título de propietario, con lo que en lugar de dar
publicidad a la prenda, se estaría creando una aparencia falsa, que llevaría a confusión”). Todavia, no
que respeita à preferência, o documento escrito constitui uma formalidade ad substantiam, sendo
inadmissíveis outros meios de prova como a prova testemunhal, as presunções e a confissão (neste
sentido, Montel, Pegno cit., pág. 796, Ciccarello, ob. cit., pág. 695, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 58,
61
mesmo um requisito indispensável para o surgimento do próprio penhor,204 não faltando
até quem considere a distinção entre a relevância interna e externa da garantia como
Realmonte, Il pegno cit., pág. 655, Gabrielli, Il pegno cit., págs. 95 e 96, Protettí, ob. cit., pág. 37 e,
principalmente, Rubino, Il pegno cit., págs. 224 a 226 e, ao nível judicial, as decisões citadas por Barbara
Cusato, ob. cit., págs. 183 e 184).
203
É discutível se o cumprimento de tais formalidades será condição de oponibilidade do direito face a
terceiros não credores do concedente. A questão coloca-se, sobretudo, a respeito dos futuros adquirentes
do bem (responde negativamente Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 196 e segs., afirmando que o
“diritto di seguito, opera indipendentemente dall’esistenza di un diritto di prelazione, poiché trova la
ragione e la misura della sua rilevanza nel fatto costitutivo del rapporto di garanzia”). Mas coloca-se,
igualmente, em relação ao terceiro proprietário reivindicante de um bem empenhado por outrem,
detectando-se decisões em sentido afirmativo (cfr. o Acórdão da Corte de Cassação de 17 de Maio de
1962, in Rivista di Diritto Commerciale, 1964, Vol. II, pág. 1 e segs., no qual se afirma que “La
mancanza dell’atto scritto di data certa (…) può essere opposta non solo dagli altri creditori concorrenti,
ma anche dal terzo proprietario reivindicante, estraneo alla costituzione del rapporto, a nulla rilevando
la buona fede del creditore pignoratizio al momento della consegna della cosa” e Acórdão da Corte de
Cassação de 31/3/1950, in Rivista Trimestrale de Diritto e Procedura Civile, 1950, pág. 1098 – no qual se
assevera que “il pegno di cosa rubata non risultante da scrittura con data certa non può essere opposto
al proprietario derubato dal creditore pignoratizio possessore di buona fede”, alegando que o penhor se
encontra indissociavelmente ligado ao direito de preferência, de modo que, faltando esta sobre um mero
direito pessoal oponível unicamente ao constituinte e, quando muito, aos seus “aventi causa”), muito
embora esta última decisão mereça a reprovação de Paolo Forchielli, Opponibilità al proprietario del
pegno non scritto di cosa rubata, in Rivista Trimestrale de Diritto e Procedura Civile, 1950, pág. 1098 e
segs.. De acordo com este Autor, a posição subscrita no aresto (inspirada na interpretação de preceitos
semelhantes efectuada pela doutrina francesa, de acordo com a qual o penhor não escrito apenas
produziria efeitos inter partes – ou, eventualmente, também face aos adquirentes de direitos do
constituinte - e, sendo o proprietário espoliado um terceiro, a garantia ser-lhe-ia inoponível, posição esta
que, segundo o Autor, não corresponde aos ditames da lei, na medida em que esta apenas se refere aos
terceiros credores, sendo omissa quanto aos adquirentes: ora, atendendo à ratio da norma – evitar a
subtracção fraudulenta de bem empenhado à garantia universal de todos os credores, tornado o credor
pignoratício um mero quirografário – “Il fatto però che il creditore pignoratizio non abbia la prelazione
non esclude in linea astratta la possibilità che il pegno spieghi ugualmente una sia pur ridotta efficacia
reale nei confronti del creditore chirografario, purchè non si tratti di opporgli un privilegio che la legge
vuole inesistente”) desconhece que a existência de um “pegno reale senza prelazione”, ou seja, a
produção de determinados efeitos – maxime a sequela (aliás, como bem sublinha, mesmo a oponibilidade
ao proprietário dos penhores munidos de preferência não se justifica com este atributo, o qual releva
apenas em sede de concurso de credores) – que são independentes da existência da preferência, pelo que a
identificação que faz entre atributo de preferência e direito real será de refutar (“La realità, comunque,
non può ricavarsi dalla prelazione, giacchè la prelazione deve considerarsi, sempre sotto il profilo della
struttura, come un effetto accessorio rispetto a quello principale della costituzione del diritto reale di
pegno. Diritto, questo, il cui contenuto essenziale ci pare dato dal potere di ritenere la cosa oppignorata
fino alla completa soddisfazione del credito”). Se assim é, na hipótese de aquisição do direito de penhor a
non domino, o accipiens de boa fé e com título idóneo poderá – em homenagem à regra da posse vale
título – adquirir um direito real de penhor, oponível ao proprietário espoliado. No direito espanhol,
Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 518 e 519, entende que se deve “considerar tereceros a quienes
han adquirido algún derecho concreto de carácter personal sobre la cosa gravada. Es decir,
fundamentalmente a los acreedores del pignorante que por la existencia de la prenda ven frustradas sus
expectativas actuales de cobrar su crédito con cargo a la cosa empeñada al sustraerse del patrimonio del
deudor a los efectos de la responsabilidad general” (recusando que os terceiros protegidos pelo preceito
possam ser o próprio devedor – quando a garantia for prestada por outrem – ou os adquirentes ou
presumíveis titulares de direitos reais sobre o bem em questão, uma vez que, neste último caso, “retenida
la posesión de la cosa por el acreedor pignoraticio, ni aquel ni éstos pueden consolidar su pretendido
derecho al no consumarse la tradición”).
204
Em Itália, uma tese minoritária defende ser o documento escrito condição de existência do próprio
direito de penhor, alegando que, constituindo a preferência o aspecto essencial da garantia pignoratícia,
sem ela não fará sentido falar de penhor (vide os autores citados por Realmonte, ob. e loc. cit., nota 30 e o
Acórdão da Corte de Cassação de 17 de Maio de 1962, in Rivista di Diritto Commerciale, 1964, Vol. II,
pág. 1 e segs., onde se pode ler que “non si disconosce che la norma riguarda il diritto di prelazione, ma
il rilievo appare trascurabile perché il contenuto essenziale del diritto di pegno consiste nella prelazione,
62
meramente heurística,205 quem admita que o direito real de penhor se constitui mesmo
na ausência de tal documento206 e quem restrinja o cumprimento desta exigência formal
ao penhor de origem contratual.207
la quale trasforma la garanzia generica, ordinaria, limitata ai soli beni del debitore, in garanzia
specifica sulla cosa costituita in pegno dal debitore o del terzo… Se non è assistito di prelazione
mobiliare, detto creditore non può rientrare che nella categoria dei creditori chirografari”, embora com
nota crítica de Giuseppe Stolfi, Appunti sulla costituzione del pegno, in Rivista di Diritto Commerciale,
1964, I, pág. 1 e segs., para quem “il pegno assolve bene alla sua funzione specifica se, fin dalla sua
costituzione e comunque anteriormente alla scadenza del debito, vincola durevolmente la cosa a
vantaggio del creditore e pertanto offre a quest’ultimo la sicurezza di contare su un oggetto determinato
da fare vendere o da farsi assegnare quando l’obbligato non tenesse fede ai propri impegni”, pelo que “il
diritto esclusivo di possedere l’oggetto costituisce il contenuto essenziale e costante del pegno. Adopero il
termine “essenziale”, per sottolineare che l’esistenza del diritto del creditore è subordinata al
trasferimento e alla conservazione del possesso”, até porque desde que o credor pignoratício fique em
poder do bem assistem-lhe uma série de direitos – como o direito de sequela face a terceiros adquirentes
do objecto da garantia – enquanto o direito de preferência constitui uma faculdade que o titular do penhor
poderá invocar numa fase posterior e eventual da relação pignoratícia, isto é, em sede de alienação do
bem empenhado: em suma, “sarebbe assurdo che l’art. 2787, al. 3, redatto in vista dell’ultima
conseguenza eventuale del pegno, dovesse regolare sinanche la formazione del rapporto”. O mesmo
Autor sublinha, ainda, que o carácter essencial do título (que pode ser oral) e, sobretudo, da entrega – e
não da preferência – para a constituição do penhor resulta bem claro quando a garantia for constituída por
quem não for o proprietário do bem: neste caso, o credor pignoratício de boa fé adquire o direito de
penhor, uma vez que “il proprietario di cosa mobile non può mai essere tutelato – nemmeno sotto il
pretesto della mancanza d’uno scritto con data certa (richiesto, se del caso, non per la validità della
costituzione de pegno ma per far valere il diritto di prelazione che interesserà i creditori concorrenti) –
contro il possessore di buone fede al quale l’oggetto sia stato consegnato da chi ne aveva comunque la
disponibilità”). Este argumento é refutado por este último Autor, argumentando que nas relações entre o
credor e os adquirentes do bem o primeiro poderá sempre invocar o contrato de penhor, ainda que
desprovido do direito de preferência, muito embora, por força da regra “posse vale título”, seja
necessário, para que o direito do credor vença o direito do terceiro adquirente, que aquele obtenha a posse
do bem antes deste (neste caso, poderá ainda invocar o direito de retenção contra o constituinte da
garantia). Refira-se, por último, que esta mesma doutrina é aplicável ao penhor de créditos (cfr. art.º 2800
do CCI que, para além do documento escrito, impõe, como condição de existência do direito de
preferência, a notificação do penhor ao devedor do crédito empenhado ou a sua aceitação por este em
documento com data certa).
205
Albina Candian, Le garanzie mobiliari, Giuffrè, 2001, págs. 314 e 315, asseverando que um penhor
amputado do direito de preferência não possui qualquer interesse prático (“ad un pegno privo di diritto di
prelazione nessuno è soverchiamente interessato”), até porque o direito de retenção (único potencial
efeito atribuível a um penhor sem direito de preferência é “inopponibile al fallimento fuori dai casi in cui
sia munito anche della prelazione”).
206
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs. 1780 e 1781, entende que os únicos requisitos legais para o
nascimento do direito real de penhor são que este se destine a assegurar uma obrigação principal, que a
coisa empenhada seja propriedade do constituinte e este possua a liberdade de disposição dos seus bens
(art.º 1857.º do CCE) e que o bem seja entregue ao credor ou a um terceiro (art.º 1863.º do CCE), sem que
a formalização em documento público seja um deles (tanto mais que o art.º 1857.º expressamente impõe a
redução a escrito do contrato constitutivo da hipoteca, pelo que o surgimento da hipoteca se submeterá ao
regime previsto para a generalidade dos direitos reais no art.º 609.º do CCE, isto é, mediante contrato
seguido de tradição do bem). O Autor contesta o entendimento, que admite maioritário, segundo o qual a
redução a escrito do contrato de penhor é condição de oponibilidade do direito a terceiros, alegando que a
justificação normalmente apresentada em seu favor (proteger os demais credores do constituinte, que
poderiam ser prejudicados pela constituição fraudulenta de penhores) não colhe pois, se a finalidade do
preceito fosse essa, “la consecuencia lógica debió ser la de requerir la forma escritura pública para la
constitución del derecho de prenda lo que no establece el precepto”, o que a norma em questão não faz,
consentindo “constituir el derecho real de prenda en cualquier forma y posteriormente otorgar
instrumento público en le que se haga constar la fecha de su constitución a partir de cuyo momento es
eficaz frente a terceros”. Mais ainda, o Autor retira do regime legal do penhor que, uma vez entregue o
bem ao credor ou a terceiro, nasce o direito real de penhor, pelo que, a partir dessa data, dispõe o credor
das acções de defesa do seu direito contra o constituinte e mesmo contra terceiros, embora o
entendimento contrário conduza a recusar o exercício deste direito contra outros credores do mesmo
63
Noutro plano, quando o penhor seja constituído por terceiro, a não observância
destes requisitos formais pode ser invocada pelos demais credores deste, mas já não
pelos outros credores do devedor da obrigação principal.208
As justificações normalmente invocadas para sustentar esta exigência
relacionam-se com a necessidade de evitar constituições fictícias de penhor ou aquelas
em que se adultera fraudulentamente o montante do crédito garantido, deste modo
prejudicando os demais credores do constituinte da garantia.209
Por outro lado, a entrega do bem ao credor ou a terceiro não seria suficiente para
alertar terceiros que contratassem com o devedor, pois as aparências poderiam ser
enganosas, na medida em que muitas vezes o credor voltava a colocar o bem em poder
do devedor (em resultado, por exemplo, de contrato de locação), assim fazendo crer aos
terceiros que esse bem ainda pertenceria ao devedor livre de qualquer encargo (quando,
na realidade, se encontravam já empenhados).210
Não ignorando a pertinência destas considerações (reconhecendo mesmo que a
exigência de documento escrito se destina a evitar fraudes em prejuízo de terceiros,
quanto à data do penhor, ao crédito garantido ou ao bem empenhado), VAZ SERRA211
sustenta a posição contrária, entendimento este que veio a ser adoptado, na esteira dos
seus ensinamentos, pelo nosso Código Civil.212
Partindo do pressuposto que a necessidade de formalização do contrato de
penhor se destina, essencial senão exclusivamente, à protecção de terceiros, o citado
Autor procede a uma destrinça dentro destes entre os aqueles que adquiriram (ou
devedor enquanto não exista a redacção do documento público, o que representa uma séria limitação da
eficácia erga omnes do penhor, ao privá-lo do atributo da preferência (concluindo, em conformidade, que
o direito real de penhor nasce aquando da entrega do bem ao credor ou a terceiro, de modo que o
exercício dos direitos a ele inerentes – maxime a preferência e o ius distrahendi – não se encontram
dependentes da redução a documento escrito do contrato). Menos taxativo se mostra Guillarte Zapatero,
Comentario cit., págs. 514 e 515, embora reconheça ser dificilmente admissível que um direito real não
possa produzir efeitos relativamente a terceiros, aceita que o direito real nasça mesmo sem a redacção do
documento escrito, tendo em conta “no sólo la relación de inmediatividad que se instaura entre el
acreedor y la cosa, en virtud de la tranmisión posesoria operada, dela que indudablemente deriva una
seguridad cierta para áquel, sino, además, porque, incumplida la obligación garantizada, el acreedor
está ligitimado para instar la realización de valor de la cosa gravada por el procedimiento especifico y
proprio que la ley establece para las garantías reales, facultad que no corresponde al simple acreedor no
asistido de una garantía de la expresada naturaleza”.
207
Assim, para o direito espanhol, Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 712, alegando que o preceito
que consagra tal exigência (art.º 1865.º do CCE), se refere unicamente ao contrato de penhor.
208
Francesco Caringella, ob. cit., págs. 3552 e 3553, citando jurisprudência neste mesmo sentido.
209
Nestes precisos termos Rubino, Il pegno cit., pág. 224. Prosseguindo o seu raciocínio, este Autor
conclui que se esta é a razão de ser da exigência de documento escrito, bem se compreende que não
assuma qualquer relevância para os chamados aventi causa do concedente da garantia (isto é, sujeitos a
favor dos quais este haja constituído algum tipo de direitos que não de preferência), pois o acto escrito
não possui função de publicidade preventiva (a qual será assegurada, embora em termos rudimentares,
pelo desapossamento do constituinte, até porque os documentos escritos não teriam desideratos
publicitários) e não tem por objectivo dar a conhecer com segurança a constituição de um penhor (nem
tão pouco o montante do crédito garantido), pois esta é uma questão de prova e não justificaria a
imposição de uma formalidade para cuja inobservância a lei prescreve a nulidade. Em termos
aproximados, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 78 e Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág.
513.
210
De acordo com Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 28 e 29, estes expedientes constituíam um meio
relativamente simples através do qual um devedor de má fé poderia facilmente subtrair alguns dos seus
bens aos seus credores e, também, beneficiar alguns deles em detrimento de outros - daí a necessidade de
um documento escrito, imposta pela primeira vez em 1599 e incorporada no art.º 2074.º do CCF.
211
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 113 a 120.
212
Afirmando que as propostas de Vaz Serra influenciaram, a este propósito, as soluções consagradas no
Código Civil, vide Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, , pág.688.
64
pretendam adquirir) o bem empenhado (ou um direito sobre ele) e, por outro lado, os
terceiros credores do empenhante.
No que aos primeiros diz respeito (e depois de admitir que, sem o documento
escrito, se poderá demonstrar com recurso a qualquer meio de prova a existência de um
penhor anterior ao direito do terceiro), conclui que o mesmo efeito se poderá produzir
quando o bem tiver sido o bem alienado a outrem, uma vez que alienação de coisas
móveis também não se encontra sujeita a qualquer formalidade (não se descortinando,
por isso, razões para não estender este regime ao penhor).213
Poder-se-ia pensar que a imposição da redução a escrito se fundamentaria na
necessidade de evitar dúvidas acerca do objecto empenhado, mas VAZ SERRA alega
que essas dúvidas são dissipadas pela entrega do bem214 e, uma vez mais, socorre-se da
hipótese de alienação (ou constituição de outro direito real sobre a coisa), para a qual a
lei também não impõe documento escrito, não obstante se possam colocar idênticas
interrogações.
O argumento que parece mais convincente, sempre na perspectiva do mesmo
Autor, tem a ver com a premência de determinação do crédito garantido, com o
objectivo de defender terceiros quanto ao seu montante e de fornecer ao credor um meio
seguro de prova não só do crédito, mas também do objecto da garantia, assim
favorecendo o crédito em geral.
No entanto, contrapõe a estas vantagens o entorpecimento da constituição do
penhor resultante da necessidade de formalização do contrato, com os prejuízos para os
interesses não apenas das partes, mas mesmo do comércio.215
Relativamente aos terceiros credores do concedente da garantia, ou seja, como
condição do exercício do direito de preferência, VAZ SERRA216 entende que a
necessidade de redução a escrito será de descartar “pois os outros credores, anteriores
ou posteriores ao penhor, estão sujeitos à preferência do credor pignoratício, não
interessando, portanto, a data do penhor para o efeito de saber se este lhes é ou não
oponível”.
Em suma, o Ilustre Autor advoga a desnecessidade de formalização escrita do
negócio constitutivo de penhor, quer para a produção de efeitos entre as partes,217 quer
mesmo para produzir efeitos em relação a terceiros, até porque o documento – ainda que
213
Ou seja, na óptica deste Autor, a exigência de forma escrita não se justificará enquanto meio de prova
da data da celebração do contrato. Esta comparação com a venda de coisas móveis é, aliás, o argumento
decisivo que perpassa toda a posição de Vaz Serra e fica bem patente no seguinte trecho: “Desde que
terceiros adquirentes estão expostos a que lhes seja oposta uma alienação, embora não documentada,
não parece de exigir, para que lhes seja oponível um penhor, que este se constitua por documento. Além
disto, o adquirente de uma coisa móvel empenhada não será tão facilmente lesado pelo penhor como o
poderia ser uma alienação anterior ou por uma anterior constituição de usufruto, pois a entrega da
coisa, necessária para o penhor, representa já um meio de publicidade para o penhor, publicidade que
não existe no caso de alienação ou de constituição de usufruto.”.
214
Pelo que, ao menos implicitamente, reconhece a utilidade do documento escrito como modo de
determinação do objecto do penhor quando este não implique o desapossamento do devedor.
215
Por último, o Autor alude ainda que a exigência de documento escrito, se pode contribuir para a
protecção de terceiros, poderá redundar num prejuízo para o credor pignoratício, sempre que este não
cumpra aquelas finalidades (e poderá sê-lo mesmo perante posteriores adquirentes que, no momento da
aquisição, conhecessem a existência do penhor).
216
Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 115.
217
Neste caso, o temor de fraudes será menor e a obrigatoriedade de redução a escrito traduzir-se-ia num
obstáculo muitas vezes decisivo à celebração do contrato, sobretudo quanto estejam em causa créditos de
reduzido montante e sejam bens empenhados bens de diminuto valor.
65
com data certa – não evita que o penhor seja fictício ou o montante do crédito
fraudulentamente alterado.218 219
Em nosso entender, a interrogação acerca da eventual necessidade de um
documento escrito – ainda que apenas para o exercício do direito de preferência – como
requisito da garantia pignoratícia, deve ser respondida com base aptidão daquele
formalismo para a protecção de terceiros credores (nomeadamente para evitar os riscos
de fraude acima assinalados), mas não invocando um suposto intuito publicitário
daquele documento.
Diremos, então, que o documento escrito tem como finalidades essenciais
identificar o crédito garantido e o bem empenhado, facilitar a prova da data da
celebração do contrato, evitando prejuízos para terceiros.
Ou seja, a função do documento escrito não é (ou apenas o é acessoriamente) a
de dar a conhecer a constituição da garantia, até porque essa missão é atribuída, em
regra, à entrega do bem ao credor ou a terceiro.220
Com efeito, de entre os objectivos normalmente associados ao carácter solene
dos negócios jurídicos em geral não se inclui o de dar a conhecer o negócio a
terceiros,221 desiderato esse que é alcançado através do recurso a mecanismos diversos,
como sejam os registos ou seus sucedâneos (como o desapossamento do empenhante,
no caso do penhor), uma vez que, conforme salientado anteriormente, uma coisa é a
publicidade do negócio, outra é o seu carácter formal ou solene.
218
Quando muito, admite que se poderia, por força do recurso à data certa do penhor, obstar à simulação
de um penhor numa época em que o devedor se encontrasse prestes a cair num estado de insolvência (ou
mesmo quando já estivesse nesta situação), mas considera esta vantagem pequena em comparação com os
inconvenientes que resultam da necessidade de documento escrito.
219
Não deixa, contudo, de admitir, como alternativa viável, a consagração legal da necessidade de
documento escrito como condição da existência do direito de preferência (ou seja, como condição de
oponibilidade do penhor face a terceiros). Se assim fosse, indica como modelo a seguir o italiano, no qual
se exige a redacção de um documento, mesmo privado (repudiando o sistema do Código de Seabra que
exigia documento autêntico ou autenticado), com data certa, sempre que o crédito garantido seja de valor
superior a €2,58 e onde se estabelece, ainda, a necessidade de indicação suficiente do crédito garantidos e
dos bens empenhados, embora dele se afaste ao sustentar que o documento escrito deveria ser exigido
sem limite de valor, isto é, para todos os contratos (alegando que, devendo aquele limite reportar-se ao
valor do crédito – e não à coisa empenhada, em razão da dificuldade em proceder à avaliação desta – esta
quantia não ser muitas vezes decisiva, com sucede sempre que em garantia de um crédito de diminuta
soma seja empenhado um bem consideravelmente mais valioso) ou, quando muito, impondo um limite a
partir do qual o documento escrito seria exigível tendo em conta, simultaneamente, o valor do bem
empenhado e do crédito garantido (muito embora este sistema, como o próprio Autor reconhece, enfrente
o mesmo obstáculo resultante da dificuldade de avaliação do bem). Também e à semelhança do sistema
italiano, Vaz Serra é apologista de desnecessidade de um documento com data certa – podendo, assim, a
data do penhor ser provada por qualquer meio legalmente admitido - quando a garantia fosse constituída
em benefício de entidades financeiras legalmente autorizadas a realizar operações de crédito sobre penhor
(fundamentando a sua posição na necessidade de rapidez, acentuada neste caso pela qualidade do credor
e, por outro lado, na fiscalização a que estas entidades credoras estão sujeitas).
220
Contudo, há quem defenda (cfr. Barrada Orellana, ob. cit., pág. 134) que o documento escrito se
destina a publicitar a constituição da garantia, precisamente porque a entrega do bem não desempenha
cabalmente esta função.
221
Neste sentido, Mota Pinto, ob. cit., pág. 119 e segs., sublinhado que a publicidade da constituição ou
transferência de direitos sobre bens imóveis e móveis a estes equiparados é assegurada pelo registo e, no
caso dos demais bens móveis é, nalguns ordenamentos, logrado através da protecção da posse de boa fé,
mas no ordenamento luso “não só falha uma sujeição ao registo, como até esse papel sucedâneo que a
posse pode representar em relação ao registo não é valorizado nos termos de outros sistemas”,
salientando, precisamente, ser o penhor a principal, senão mesmo a única, excepção a tal constatação,
uma vez que neste “a lei atribui à posse, à transferência da coisa, um papel fundamental, de tal maneira
que o direito real não surge sem a tradição”.
66
De facto, um terceiro credor do constituinte da garantia mais facilmente se
aperceberá (ou, pelo menos, suporá) da presença de uma garantia sobre o bem pela
posse do mesmo por alguém que não o seu proprietário do que pela existência de um
documento escrito, a não ser que este seja registado.
Daí que apenas se a convenção escrita das partes se encontrar sujeita a registo (o
que já sucede actualmente com alguns penhores) poderá desempenhar uma função
publicitária indirecta (uma vez que decorre, não do documento em si, mas da sua
posterior inscrição no registo), assim permitindo aos terceiros que pretendam contratar
com o garante dirigir-se àquele cadastro. Simplesmente, deparamo-nos com um
obstáculo, qual seja o da necessidade de criar um registo para este efeito, uma vez que,
como é sabido, não existe um registo geral dos bens móveis.222
Em suma, advogamos a necessidade de documento escrito (de natureza
particular, autêntica ou autenticada), com o intuito de determinar o crédito garantido e o
bem onerado,223 mas não com intuitos publicitários, razão pela qual a esta formalidade
deverá ser atribuído um carácter de condição de nascimento do direito real de penhor,
mesmo inter partes e não de requisito de oponibilidade, à imagem da solução
consagrada no direito francês saído da reforma de 2006 e que será esmiuçada no
Capítulo II.
Associado à redução a escrito e com desideratos publicitários, advoga-se, como
condição de oponibilidade da garantia pignoratícia a terceiros, a instituição de um
registo (solução que logrou consagração legal noutros ordenamentos)224 ou, quando este
seja inviável – designadamente por força da natureza dos bens -, da verificação do
desapossamento do devedor, novamente seguindo as pisadas da recente remodelação do
direito gaulês das garantias (cfr. art.ºs 2336.º a 2338.º CCF, introduzidos aquando da
reforma de 2006), não sendo a solução virgem no nosso ordenamento, porquanto já o
art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 365/99, de 17 de Setembro e o regime do penhor em
garantia de estabelecimentos bancários, impõem tais exigências (e fazem-no,
independentemente do valor da quantias mutuadas e do objecto onerado).225
No entanto, concede-se que tal obrigatoriedade de redução a escrito possa ser
circunscrita, em termos gerais, aos contratos cujo valor o justifique, impondo a lei um
222
Nos termos do art.º 10.º do Código de Registo de Bens Móveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 277/95,
de 25 de Outubro, estariam sujeitos a inscrição neste registo os veículos automóveis e seus reboques (na
acepção ínsita no Código da Estrada), os navios mercantes e as aeronaves. O intuito primacial deste
diploma era o de unificar as regras relativas aos registos automóvel, aeronáutico e marítimo, disseminadas
por diversas normas. Todavia e conforme referido anteriormente, nos termos do art.º 7.º, n.ºs 1 e 2,
daquele diploma (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 311-A/95, de 21 de Novembro), este
Código apenas entrará em vigor quando for aprovado o respectivo regulamento (cfr. art.º 4.º), o que não
aconteceu até à data.
223
Pronuncia-se no mesmo sentido Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 103, nota 323, sugerindo a adopção
de um preceito similar – ao menos quando o valor da garantia assuma um valor considerável - ao vigente
noutros ordenamentos, com o intuito de evitar fraudes por parte dos intervenientes no contrato. Mais
concretamente, o Autor defende que “apesar de não existir nenhum requisito de forma relativamente à
constituição do penhor, somos do entendimento que, aquando da conclusão do contrato, deverão ficar
expressamente identificados o crédito garantido e o objecto do penhor, devendo igualmente ser indicados
todos os elementos necessários para a sua identificação, porquanto, sem tais elementos, o empenhador
não poderá efectuar uma avaliação prévia relativamente ao objecto do contrato. Dito de outro modo,
sem que tais elementos sejam identificados, estaremos perante um contrato com objecto indeterminado”
224
Por exemplo, pelo actual Código Civil Brasileiro, no seu art.º 1432.º, ao dispor que o contrato de
penhor (do qual deverá constar o valor do crédito, a sua estimação ou o seu valor máximo, o prazo para
pagamento, a eventual taxa de juro e o bem dado em garantia com as suas especificações – cfr. art.º
1424.º) deverá ser registado no Cartório de Títulos e Documentos.
225
Vide supra n.º 2.4 do Capítulo I.
67
tecto acima do qual tal necessidade seja exigível, limite esse que deve ser aferido em
função do valor do bem empenhado e/ou do crédito garantido.
A título meramente sugestivo, tal limite poderia situar-se nos €500, ou seja,
desde que o montante garantido226 ou o objecto empenhado ultrapassassem tal
montante: para este efeito e para além da sujeição a forma escrita, seria ainda imperiosa
a discriminação da quantia assegurada e a descrição – e avaliação – do objecto
empenhado.227
Em abono da sujeição a forma escrita do contrato de penhor poderá, ainda,
aduzir-se a consideração respeitante ao facto de a constituição da garantia ser um
negócio acessório de um outro (obrigação principal ou garantida), o qual, não raras
vezes, também se encontra submetido a um formalismo negocial.228
Aliás, a relação quase umbilical entre a obrigação garantida e o negócio de
constituição de garantia, traduz-se, em regra, na circunstância de concretização da
primeira se encontrar dependente da formalização simultânea da segunda, destarte
compelindo as partes a formalizarem a garantia em termos análogos ao efectuado com o
negócio garantido (muito embora nada se oponha à formalização da garantia em
momento posterior ao da obrigação assegurada).229
Poderá inclusivamente suceder que o negócio principal não se encontre
submetido a qualquer formalismo (podendo até ser celebrado por via electrónica),230
226
O actual art.º 2787.º §3.º, do CCI apenas atende, para efeitos de obrigatoriedade de redacção de um
documento escrito, ao valor do crédito assegurado: porém e tendo em conta que, normalmente, o valor do
bem empenhado excede, por vezes amplamente, o daquele crédito, inclinamo-nos para a solução exposta
no texto.
227
Acerca destes aspectos, vide infra n.º 2 do Capítulo II.
228
Veja-se a título meramente exemplificativo, a norma relativa ao mútuo civil (art.º 1143.º), nos termos
da qual – sem prejuízo do disposto em lei especial - é condição de validade do negócio, quando a quantia
mutuada exceder €2500, um documento assinado pelo devedor e, quando ultrapasse o €25000, impor-se-á
mesmo a celebração de uma escritura pública.
229
De la Santa García, ob. cit., pág. 63 e segs., realça que este desfasamento temporal entre os dois
contratos (o qual se pode justificar pelo aumento superveniente do risco da operação ou de um
reescalonamento da dívida original) é particularmente evidente no caso das operações de crédito para a
aquisição de valores mobiliários privados e públicos (muitas vezes através de ofertas públicas de venda),
os quais, uma vez adquiridos, ficarão onerados em benefício do mutuante. Esta operação apresenta, para o
mutuante, diversos riscos relacionados, por um lado, sobre o limite final do crédito (uma vez que,
normalmente, a quantia mutuada corresponde ao preço de todos os valores que o mutuário pretende obter,
embora, por força do rateio que usualmente caracteriza tais operações, venha obter um número inferior ao
pretendido: para fazer face a este condicionalismo, muitas vezes os bancos inserem uma cláusula
determinando que o montante definitivo do empréstimo fique condicionado ao resultado final da oferta
pública de venda e ao preço total a pagar pelo mutuário) e, por outro, à oneração de um bem que, no
momento da concessão do empréstimo, ainda não pertence ao mutuário (face ao qual os bancos se
procuram precaver impondo, no momento da concessão do crédito, a celebração de um contrato-promessa
de penhor, comprometendo-se o mutuário a formalizar o negócio definitivo no momento da aquisição dos
valores: ainda assim, persiste o risco de o mutuário incumprir esta promessa – designadamente não
comparecendo no acto de formalização do penhor -, razão pela qual os bancos procuram assegurar a sua
posição, ora recebendo uma procuração do mutuário para realização de todas as operações relacionadas
com a constituição do penhor – embora enfrentando o risco de criação de um negócio consigo mesmo -,
ora apondo uma condição resolutiva no empréstimo, de acordo com a qual se conceda um prazo curto ao
mutuário para, após a aquisição, formalizar o contrato definitivo de penhor), sendo certo que à
formalização contemporânea do contrato de penhor se opõe a falta dos requisitos legalmente exigidos, ou
seja, a ausência de propriedade dos bens onerados por parte do constituinte, o empossamento do credor ou
de um terceiro e a identificação suficiente das coisas empenhadas.
230
No nosso ordenamento, a chamada Lei do Comércio Electrónico (Lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro,
alterada pelo Decreto-Lei n.º 62/2009, de 10 de Março), consente, nos termos do seu art.º 21.º, n.º 1, uma
ampla liberdade de utilização deste meio de formalização de negócios jurídicos – ao permitir a livre
celebração de contratos por via electrónica, sem que a sua validade ou eficácia possa ser comprometida
68
pela utilização deste meio (já depois de o art.º 20.º dispor que este regime se aplica a todo o tipo de
contratos, comerciais ou não) -, com excepção daqueles que digam respeito às matérias enumeradas no n.º
2 (a saber, familiares e sucessórias; que exijam a intervenção de tribunais, entes públicos ou outros entes
que exerçam poderes públicos, nomeadamente quando aquela intervenção condicione a produção de
efeitos em relação a terceiros e ainda os negócios legalmente sujeitos a reconhecimento ou autenticação
notariais; reais imobiliários, com excepção do arrendamento; de caução e de garantia, quando não se
integrarem na actividade profissional de quem as presta). Por outro lado, quando para um determinado
negócio a lei imponha a forma escrita, esta encontra-se preenchida as declarações emitidas por via
electrónica se encontrem em suporte que ofereça as mesmas garantias de fidedignidade, inteligibilidade e
conservação, nos termos da legislação sobre assinatura electrónica e certificação (art.º 26.º, n.ºs 1 e 2 e
Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de Agosto, objecto de diversas alterações e republicado pelo Decreto-Lei
n.º 88/2009, de 9 de Abril). No direito espanhol, De la Santa García, ob. cit., pág. 27 e segs., evidencia
como não se erguem obstáculos significativos à constituição de algumas modalidades de penhor por via
electrónica (maxime o penhor de valores mobiliários), surgindo maiores dúvidas quanto à possibilidade da
formalização, por essa via, dos contratos (nomeadamente empréstimos) garantidos por aquele penhor.
Com efeito e embora partindo da regra geral da liberdade de forma para os contratos comerciais (cfr. art.º
51.º do Código de Comércio) e, por outro lado, do postulado geral da inexistência de qualquer entrave
jurídico à formalização electrónica de empréstimos (no sentido em que os negócios formais devam,
obrigatoriamente, revestir a forma escrita), porquanto a lei do comércio electrónico apenas exclui do seu
âmbito as matérias relativas ao direito de família e das sucessões (aliás, no que especificamente respeita à
prestação de serviços bancários e no seguimento da legislação comunitária, o Banco de Espanha – através
da Circular n.º 3/2001, de 24 de Setembro – admite expressamente que as instituições de crédito possam
formalizar electronicamente operações de crédito de montante inferior a 10 milhões de pesetas), as
dúvidas prendem-se com as excepções (cfr. art.º 52.º do Código de Comércio), ou seja, com aqueles
contratos que a lei qualifica como solenes, no sentido em que se encontrem sujeitos a um determinado
formalismo (como sejam os créditos abrangidos pela lei de defesa do consumidor, a venda de bens
móveis a prestações, os empréstimos hipotecários). Ora, quanto a estes, a questão é se esse formalismo
terá que ser, imperiosamente, a forma escrita ou, ao invés, poderão os mesmos ser celebrados
electronicamente, sobretudo porque algumas dessas normas parecem impor, inelutavelmente, a primeira
opção: todavia, o Autor, depois de verberar a utilização de expressões como “forma escrita” ou “por
escrito” por parte do legislador (argumentando que “la escritura, no es cosa distinta a la utilización de
una serie de signos o símbolos que, combinados entre sí según unas reglas o normas establecidas, somos
capaces de descifrar y a los que otorgamos un determinado significado, permitiéndonos comunicarnos”,
pelo que “no creemos pueda deducirse que el concepto “escrito” lleve implícito el requisito o la
necesidad de que se realice en soporte de papel. La escritura es y a sido desde su origen susceptible de
recogerse en cualquier tipo de soporte, como, por ejemplo, telas de fibra vegetal o animal, piedras,
tabillas de madera, tabillas de barro, muros o paredes, etc.”), conclui que, se o intuito da sujeição a
escrito é, normalmente, a protecção do mutuário, dever-se-á permitir a este que “elija el medio o soporte
en el que quiere que se formalice la operación” (até porque a sanção preconizada para o incumprimento
da forma imposta por lei é a nulidade, o que conduziria, por absurdo, a que o próprio mutuante pudesse
invocar a não redução a escrito do contrato, em prejuízo da parte que a imposição do formalismo negocial
visa proteger, o mutuário), até porque as inovações tecnológicas – baseadas em chaves fechadas e
assimétricas - asseguram “la determinación de la identidad de los clientes, de la veracidad, integridad,
contenido objetivo, confidencialidad, y ejecución de los contratos (…). Asímismo, la prueba de las
operaciones descansa en suportes duraderos (…) cuyas garantías de autenticidad, integridad, e
inalterabilidad son, en nuestra opinión, similares, cuando no mayores, que las de los documentos escritos
en papel autorizados con firma manuscrita o autógrafa, donde la suplantación de personalidad,
falsificaciones y estafas en general se suceden en la práctica con mayor frecuencia a la deseada. Por
otra parte, y aunque resulte paradójico, en virtud de las copias de seguridad que se alimentan en los
sistemas informáticos y los volcados diarios de información que diariamente se realizan con el objeto de
proteger todos los datos almacenados, podría afirmarse que hoy en día el riesgo de pérdida o
destrucción de los documentos formalizados en soporte papel puede ser superior a los documentos
electrónicos”. Em abono da sua posição, o Autor (Prenda de valores cit., pág. 196 e segs.) invoca decisões
judiciais que deixaram de identificar o conceito de documento com o de “escrito físico em papel”, o
Decreto-Lei n.º 14/1999, de 17 de Setembro (que atribuiu à assinatura electrónica o mesmo valor da firma
manuscrita) o Decreto n.º 1906/1999, de 17 de Dezembro (que regula a contratação telefónica ou
electrónica), os quais se inserem numa tendência global de generalização, especialmente no sector
bancário e financeiro, do uso da Internet para formalização deste tipo de operações, considerando o Autor
que a possibilidade de formalização de contratos à distância será perfeitamente legítima, desde que seja
69
mas o mesmo não aconteça com o penhor, em razão da necessidade de entrega material
do bem onerado, excepto quando esta seja substituída por outra formalidade em ordem
ao surgimento daquela garantia, como sucede com os valores mobiliários escriturais.231
Relativamente ao registo, bem se compreende que a sujeição ao mesmo apenas
valha para bens que, pela sua própria natureza, sejam susceptíveis de identificação e
diferenciação dos demais, restando, para os demais, a entrega efectiva ou alguma das
demais formas que a tradição dos bens pode assumir (v.g. a tradição simbólica ou até o
desapossamento material), desde que, neste último caso, seja salvaguardada a
cognoscibilidade de tais garantias perante terceiros.
Haverá, ainda, que ponderar se este registo valeria apenas para os negócios de
constituição de garantias ou, pelo contrário, também para os de compra e venda que
recaíssem sobre os mesmos bens: embora esta segunda solução pudesse apresentar a
vantagem de tornar o registo condição de oponibilidade de qualquer direito constituído
sobre os bens móveis – ou, ao menos, sobre os empenháveis -, implicaria uma
transformação substancial do nosso ordenamento jurídico, razão pela qual a primeira se
afigura mais facilmente concretizável, na esteira do sucedido, por exemplo, no direito
espanhol, a respeito da hipoteca mobiliária e do penhor não possessório.
identificado o cliente (através do respectivo documento de identidade), que este dê o seu consentimento,
que o conteúdo do contrato seja guardado em suporte fiável e duradouro (que garanta a autenticidade dos
contratos e ordens dadas pelo cliente) e se ofereça ao cliente a possibilidade de impressão imediata dos
documentos recebidos por via electrónica (bem como de exigir a entrega física de tais documentos junto
da entidade co-contraente): verificados estes requisitos, “podría admitirse perfectamente la incorporación
del clausulado del contrato a la web de la Entidad en Internet y que la firma electrónica o por claves de
seguridad del mismo sustituya a la suscripción mediante firma autógrafa de los contratos”.
231
Acerca da forma de constituição de penhor sobre estes objectos, vide infra n.º 1.2.8.3 do Capítulo II.
No direito espanhol, De la Santa García, ob. cit., pág. 129, aponta como o exemplo o penhor de valores
mobiliários (incluindo as participações em fundos de investimento), cuja formalização por via electrónica
apenas será possível quando estes se encontrem representados através de anotações em conta ou quando,
sendo titulados, os títulos ainda não tenham sido impressos e/ou entregues (utilizando-se o mesmo
mecanismo para comunicar à sociedade emitente a oneração das participações), embora, em qualquer dos
casos, “La eficacia de la prenda será únicamente inter partes y frente a la sociedad, pero no frente a
otros terceros (…). En cualquier caso, en algunos supuestos puede ser suficiente este tipo de garantía, a
juicio de la entidad de crédito, en atención a las características de la operación o del propio cliente”.
Mais concretamente no que respeita ao penhor de valores mobiliários representados por anotações em
conta, o Autor (ob. cit., pág. 215 e segs.) admite a sua formalização electrónica, desde que se cumpram os
requisitos exigidos para a generalidade dos contratos (vide nota anterior) ou seja, identificação do cliente,
manifestação da sua vontade com garantias de fiabilidade, clareza e autenticidade, através de chaves ou
códigos secretos que consintam a identificação inequívoca do titular, nomeadamente através do recurso à
assinatura digital), uma vez que as regras civilísticas ditadas para o contrato de penhor não impõem, como
condição de validade da garantia, a redução a escrito do contrato (sendo esta exigência imposta
unicamente como condição de oponibilidade a terceiros – cfr. art.º 1865.º do CCE), nem tão pouco as
regras específicas da oneração de valores mobiliários inviabilizam a formalização electrónica do contrato
(excepto se, no momento da constituição da garantia, existirem certificados de legitimação emitidos, uma
vez que, neste caso, a operação não pode ser concretizada enquanto tais certificados não forem
devolvidos: assim sendo, quer se trate de formalização em papel ou por via electrónica, “la operación no
se podría perfeccionar hasta en tiempo real, por lo que la entidad de crédito, a pesar de que el titular de
los valores haya emitido su consentimiento a través de la firma electrónica correspondiente, no podrá
proceder a la inscripción en el registro correspondiente y al desglose de la cuenta hasta que no se le
restituyeran los certificados existentes”), de modo que “se podrá formalizar el contrato de prenda a
través de sistemas electrónicos, en especial Internet, sin que sea necesaria la intervención de fedatario
público ni de Sociedad o Agencia de Valores, con plena eficacia frente a terceros” (especialmente
quando o titular dos valores disponha de assinatura electrónica e o credor seja a própria entidade
registadora).
70
Todavia, ainda que se opte por um mero registo de ónus, o credor pignoratício
que inscreva a sua garantia poderá opô-la, não só aos demais credores do empenhante,
mas igualmente aos posteriores adquirentes de outros direitos sobre os mesmos bens.
Importa, por último, frisar que no domínio comercial não nos repugna a
manutenção destas exigências de forma, sobretudo tendo em conta os montantes
envolvidos nestas transacções, normalmente mais avultados do que no domínio civil,
não constituindo, por isso, um entrave assinalável à fluidez do comércio em geral.232
232
Um autor italiano (Faggella, ob. cit., pág. 71) comentando as críticas que à época se faziam
relativamente ao facto de o Código de Comércio então vigente ter mantido os requisitos formais previstos
na lei civil para a oponibilidade do penhor a terceiros, apoiava a opção legislativa argumentando que o
documento escrito não se encontrava sujeito a formalidades especiais (e que, portanto, qualquer pessoa
minimamente capaz estaria apta a subscrevê-lo) e, sobretudo, que tais formalidades não se traduzem num
empecilho à constituição de penhores (pois considera que a redacção de um simples escrito não leva mais
de uns minutos e, em contrapartida, torna consideravelmente mais fácil a prova do direito, protegendo os
direitos e a boa fé de terceiros) e porque, mesmo podendo tratar-se de um documento privado, depois de
registado e ter adquirido a certeza da data se torna apto a proteger os terceiros.
233
Aceitam inequivocamente esta possibilidade, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., págs. 61 e
62 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 142 e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág.
689 (considerando não serem extensíveis ao penhor as razões que justificam a inadmissibilidade do
contrato-promessa quanto aos contratos reais de carácter liberal ou assentes numa base de confiança,
como o comodato e o mútuo).
234
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág.1873.
235
Aliás, o mesmo sucede com o contrato definitivo de penhor, para cuja constituição se requer, em regra
a entrega do coisa, razão pela qual aquele que celebre um contrato de penhor sem que tenha havido a
entrega da coisa nos termos previstos na lei será preterido por quaisquer outros direitos entretanto criados
sobre o mesmo bem até ao momento em que se verifique a entrega.
236
No direito espanhol, o art.º 1862.º do CCE dispõe que a promessa de constituição de penhor apenas
confere uma acção pessoal - e não real - entre os contraentes (sem prejuízo da eventual responsabilidade
penal, em caso de dação em penhor de bens como livres quando os mesmos estivessem previamente
oneradas ou quando o empenhante simule ser dono das coisas a onerar e estas não lhe pertençam): Paz-
Ares Rodriguez, ob. cit., págs. 1872e 1873, considera que ausência de eficácia real deste contrato é o
corolário do facto de o direito real de penhor apenas surgir aquando do cumprimento de todas as
formalidades legalmente prescritas para o efeito (maxime, no caso do penhor, a entrega do bem ao credor
ou a um terceiro) e, por isso, se mesmo o contrato definitivo desprovido do cumprimento daquelas
formalidades não produz efeitos reais, por maioria de razão também os não poderá produzir um mero
contrato-promessa. Em termos aproximados, Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 476 e 477,
entende que a promessa atribui apenas ao promissário o direito de exigir a celebração do contrato
71
Por outro lado, também se poderão colocar problemas no que concerne ao
incumprimento do contrato-promessa e aos direitos que ao promitente fiel assistem
nestas circunstâncias, designadamente caso este opte pelas normas específicas
reguladoras da violação destes pactos (cfr. art.ºs 442.º e 830.º).237 238
O primeiro destes preceitos não será muito frequentemente invocado, pois não
será muito comum as partes num contrato-promessa desta índole acordem na prestação
de sinal, mas já o segundo poderá ser mais amiúde chamado à colação pairando, então, a
dúvida se “a natureza da obrigação assumida” (cfr. art.º 830.º, n.º 1,) se opõe à
execução específica.
Em nosso entender, a execução específica do contrato-promessa de penhor
poderá ser prejudicada, por um lado e nos mesmos termos em que o é qualquer negócio
similar, quando o promitente-empenhador aliene o bem a terceiro (uma vez que, neste
caso, a execução específica conduziria à oneração de um bem alheio)239 e, por outro e
em razão da exigência da entrega do bem onerado ao credor ou a terceiro, tendo em
definitivo (e, em caso de incumprimento, o consentimento pode ser substituído pela correspondente
decisão judicial, porquanto não se trata de uma obrigação pessoalíssima do promitente faltoso cujo
cumprimento não possa ser judicialmente suprido) e, apenas depois da conclusão deste, será possível
cumprir os demais requisitos (v.g., a entrega do bem ao credor) indispensáveis para o surgimento do
direito real. Já para Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho civil: derechos reales, Bercal, 2005,
pág. 300, a execução específica deste contrato-promessa apenas poderá ter lugar quando o bem onerado e
a obrigação assegurada se encontrem perfeitamente identificados e aquele bem pertença ao promitente
incumpridor (quando tais requisitos não se verifiquem, restará ao credor pignoratício obter uma
indemnização pelos danos e prejuízos sofridos). Segundo Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2143, do
mesmo modo que, incumprido um contrato definitivo de penhor, fica o empenhante obrigado a adoptar
todos os comportamentos destinados à efectiva constituição da garantia (nomeadamente, empossando o
credor ou um terceiro do bem onerado), podendo, caso tal não se verifique, o credor obter a execução
forçosa do mesmo (desde que cumpridos os requisitos legais exigidos para esta garantia e para aquela
execução), também o promitente fiel de um contrato-promessa de constituição de penhor poderá lograr o
mesmo efeito, por via da execução específica (desde que a promessa contenha os elementos essenciais do
negócio prometido): em qualquer caso, não se verificando tais requisitos (por exemplo, se o bem já não
pertencer ao promitente empenhador), restará ao promitente fiel o ressarcimento por via indemnizatória.
237
Problemas que, pelo contrário, se não suscitam caso o promitente fiel opte pelas regras gerais do
incumprimento dos contratos. Se assim for, cumpre distinguir consoante haja mora (caso em que há lugar
a indemnização moratória) ou incumprimento definitivo (caso em que o promitente cumpridor poderá
resolver o contrato e exigir uma indemnização). Neste último caso, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58,
pág. 143 e Rubino, Il pegno cit., pág. 228, entendem perder o concedente o benefício do termo, por não
ter dado a garantia prometida (e o Autor italiano acrescenta que se a coisa se perder ou deteriorar, mesmo
por caso fortuito, de modo a tornar insuficiente a garantia insuficiente, pode o credor requerer a prestação
de garantia sobre outros bens e, se isso não suceder, exigir o cumprimento imediato da obrigação – ou
seja, defende a aplicação da norma análoga ao art.º 701.º do nosso Código Civil).
238
Em face do direito espanhol, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1873, opina que o promitente fiel pode
optar pelo suprimento judicial do consentimento do promitente incumpridor (embora o Autor relate a
existência de algumas decisões judiciais negando esta via) ou, em alternativa, pedir a rescisão da
obrigação principal (invocando a natureza essencial da garantia para a conclusão do negócio), sem
prejuízo de eventuais indemnizações pelos danos sofridos. Por seu turno, López, Montés e Roca, ob. cit.,
pág. 442, destaca como, em caso de incumprimento, o promitente fiel poderá apenas reclamar uma
indemnização pelos danos sofridos, mas já não a execução específica do contrato.
239
Defendendo a mesma solução a propósito da promessa de compra e venda, mas com aplicação, mutatis
mutandis, à promessa de penhor, Almeida Costa, Direito das obrigações cit., págs. 424 e 425. Outra
hipótese normalmente apontada como impedindo a execução específica dos contratos-promessa, prende-
se com a natureza infungível da prestação prometida (cfr., por todos, Antunes Varela, Das obrigações em
geral, 10.ª Edição, Almedina, 2000, Vol. I, págs. 366, dando como exemplos os contratos de trabalho,
empreitada, ou sociedade), mas esta, salvo melhor juízo, não assume relevância no âmbito das garantias
reais, em que o elemento relevante para as partes, nomeadamente para o credor, é o bem onerado e não a
pessoa que o onera.
72
conta que a declaração negocial emitida pelo tribunal não é bastante para a produção de
efeitos do negócio.240
Ainda assim, não falta quem reconheça a legitimidade do recurso à execução
específica do contrato-promessa de penhor, declarando que a natureza da obrigação
assumida apenas constituirá obstáculo à respectiva execução específica nos termos
gerais,241 isto é, desconsiderando a questão atinente à necessidade de entrega do bem,
posição esta que subscrevemos, porquanto embora o suprimento judicial da declaração
de vontade do promitente empenhante não baste para o nascimento do direito real de
penhor, o seu desapossamento pode ser obtido por outra via (v.g., execução para entrega
de coisa certa).
Claro está que, para aqueles penhores cuja constituição não se exija tal entrega, é
inequívoco que a recusa da execução específica da promessa de outorga daquela
garantia apenas poderá advir do regime ditado para a generalidade dos negócios da
mesma natureza.
Questão interessante é a de saber se, tendo o vindouro credor pignoratício obtido
a tradição do bem, tal facto determinará automaticamente a conclusão do contrato
definitivo de penhor, porquanto este negócio não se encontra sujeito a qualquer
exigência de forma, mas tão somente à entrega do bem ao credor ou a terceiro.
Daí que, nestes casos, RUBINO considere, na dúvida,242 estarmos perante um
contrato único de formação progressiva (e não perante dois contratos distintos, o
promessa e o prometido), que apenas se torna completo pela entrega do bem, mas sem
efeitos retroactivos.243
240
Almeida Costa, Direito das obrigações cit., pág. 423, declara, com base neste argumento, a
insusceptibilidade de execução específica do contrato-promessa de penhor. Em termos aproximados,
Antunes Varela, Das obrigações em geral cit., Vol. I, págs. 366 e 367, uma vez que, embora não se refira
expressamente ao penhor, afirma: “Há casos, como acontece nos contratos reais (mútuo, comodato,
depósito), em que à perfeição do contrato não basta o mútuo consenso das partes. Ao mútuo consenso
tem que acrescer ainda um acto material de entrega da res, que a lei capricha em deixar entregue à livre
decisão de uma das partes até à consumação do acto”.
241
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 143 (considerando que “A obrigação de dar em garantia
deve poder ser executada especificadamente mediante sentença judicial, nos termos gerais em que se
admitir para as obrigações de contratar” e, embora aceite que o contrato prometido apenas se
perfecciona com a entrega da coisa, se o promitente não cumprir a obrigação de concluir o contrato
definitivo, além da decisão judicial que supra a sua declaração de vontade, pode ainda obter-se “a entrega
da coisa mediante execução para entrega de coisa móvel”) e Rubino, Il pegno cit., pág. 227, (recorde-se
que, no entendimento deste último Autor forma um todo unitário com o contrato definitivo, pelo menos
presumivelmente) admitem a execução específica do contrato-promessa de penhor (o Autor italiano
ressalva, todavia, casos em que tal execução se torne impossível, apontando como exemplo a destruição
do bem objecto da promessa). A jurisprudência nacional encontra-se dividida, sendo a execução
específica reconhecida no Acórdão do STJ de 16/2/1995, in www.dgsi.pt (em causa estava um penhor de
quotas de uma sociedade), mas recusada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/3/1994
(considerando, precisamente, que a tal se opõe a natureza da obrigação assumida). Quando, porém, o
promitente empenhante seja um terceiro relativamente à obrigação principal, a acção de execução
específica do contrato-promessa de concessão de penhor deverá ser proposta apenas contra este terceiro,
por ter sido este o único sujeito a assumir, perante o credor, a obrigação de prestação futura de garantia
(salvo quando o devedor tenha assumido, conjuntamente com o terceiro, perante o credor essa obrigação,
hipótese na qual ambos deverão ser demandados).
242
Especialmente caso já haja sido redigido o documento escrito erigido pela lei transalpina como
condição de oponibilidade do direito de penhor.
243
Il pegno cit., págs. 227 e 228. Considera este Autor que, antes da entrega, o contrato apenas produz
efeitos preliminares (traduzidos, essencialmente, na irrevogabilidade da obrigação assumida e na
necessidade de entregar o bem) que fazem surgir na esfera jurídica do credor um direito pessoal à entrega.
Por outro lado e perante a objecção que esta obrigação de entrega transformaria o contrato de penhor num
contrato consensual, Rubino responde que tal apenas se verificaria se o próprio penhor nascesse por mero
efeito do consenso, o que não sucede (sendo, por isso, perfeitamente admissível que, durante a fase de
73
VAZ SERRA,244 entende ser este um problema a resolver de acordo com a
interpretação das declarações negociais das partes, embora concorde que, antes da
entrega, o contrato de penhor produz apenas efeitos obrigacionais.
3 - Objecto do penhor
formação de um contrato real quoad constitutionem, possam surgir efeitos preliminares de natureza
obrigatória, sem que isso lhes retire aquela natureza). Uma vez que antes da entrega não existe ainda o
direito de penhor, não pode o (pretenso) credor pignoratício exercer as faculdades associadas a esse
direito, nomeadamente o direito de preferência, de sequela e de venda do bem.
244
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 142 a 144.
245
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, , pág. 685, a não susceptibilidade de
hipoteca refere-se tanto aos direitos, como às coisas.
246
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58 págs. 72 a 74 parece admitir o penhor sobre bens móveis para os
quais a lei admita a hipoteca (nomeadamente os automóveis e os navios), defendendo que “É certo que
um navio ou um automóvel, entregues ao credor, não ficarão muitas vezes susceptíveis de navegação ou
circulação, pois o empenhador nem sempre quererá autorizar o credor a usar assim essas coisas. Mas,
se ele prefere que a coisa seja entregue ao credor, como penhor manual, por que razão se há-de impedir
que o faça? Acresce que bem pode o empenhador, entregando o automóvel ou o navio ao credor,
autorizá-lo a fazer navegar ou circular essas coisas (…). A circunstância de, não obstante a entrega do
navio ou do automóvel ao credor pignoratício, poder o empenhador hipotecá-los, com inscrição no
registo, não é suficiente para excluir a possibilidade daquele penhor. Que este não prevaleça então
contra a hipoteca, embora registada depois, compreende-se (…).” No entanto, o próprio Autor manifesta,
mais adiante, algumas reticências relativamente ao penhor de bens legalmente hipotecáveis “podendo
estas coisas ser hipotecas e defendendo a hipoteca melhor, pelo registo, os interesses de terceiros, talvez
seja preferível não admitir o penhor. Se o proprietário quiser entregar a coisa ao credor hipotecário,
pode fazê-lo, podendo mesmo a hipoteca ser acompanhada de um pacto anticrético (…).”
247
Neste sentido, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 105 e 106, realçando que a noção de coisa, apesar de
potencialmente abranger tudo o que não seja a pessoa, deve pressupor a existência de certos elementos
comuns, como sejam a existência autónoma ou separada, a possibilidade de apropriação individual
exclusiva por parte de alguém e a aptidão para satisfazer necessidades ou interesses humanos.
248
Sobre esta problemática, vide infra n.º 2.1 e 2.2 do Capítulo II.
249
Negando a possibilidade de dar em penhor um imóvel (mais precisamente a prestação de caução
através do penhor de um imóvel), veja-se do Acórdão da Relação de Lisboa de 25/11/1993, in
www.dgsi.pt.. Dando conta da existência da figura do penhor imobiliário no direito comparado, vide
Almeida Costa, Penhor imobiliário, in Temas de história do direito, Separata do BFDUC, 1970, pág. 300
e segs..
250
Almeida Costa, Direito das obrigações cit., págs. 921 e 922, nota 4, esclarece que a não
hipotecabilidade é um requisito válido, tanto para as coisas, como para os direitos, considerando, porém,
que a deficiente redacção do n.º 1 do art.º 666.º possa inculcar a ideia, errada, que tal requisito se
reportaria apenas a estes últimos.
74
os meios de transporte,251 tais como veículos automóveis,252 os navios253 e as
aeronaves,254 à imagem do que sucede noutras latitudes,255 embora tenham sido
equacionadas outras alternativas para a dação em garantia de alguns destes bens.256
251
De acordo com Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 465, estes bens possuem determinadas
características que permitem afastar a tradicional renitência à consagração de hipotecas sobre bens
móveis, como sejam a sua fácil identificação e o relativamente reduzido número de negócios de
disposição e oneração sobre os mesmos, o que possibilita a organização de um sistema de publicidade
capaz de afastar a regra da posse vale título e conceder ao seu titular um verdadeiro direito de sequela (em
termos aproximados, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 289).
252
Recusando expressamente esta possibilidade, vide o Acórdão da Relação de Évora de 4/10/19777, in
CJ 1977, pág. 907 e segs, considerando esta garantia como nula por ser contrária à lei. Todavia, Rui Pinto
Duarte, ob. cit., pág. 230, assevera que “são empenháveis bens que, embora pertencentes a uma categoria
de bens sujeitos a registo, não preencham (já não preencham ou ainda não preencham) os requisitos
necessários para que os direitos sobre eles sejam registáveis (como sucede com os automóveis antes de
cumpridas as formalidades administrativas prévias ao seu registo)”.
253
Na vigência do Código de Seabra foi discutida a possibilidade de o navio ser dado em penhor,
inclinando-se a doutrina maioritária (cfr. Joaquim Bastos, págs. 34 a 38 e Marques de Carvalho, ob. cit.,
págs. 34 a36) para uma resposta negativa (os fundamentos desta recusa residiam na consideração dos
navios como coisas móveis de natureza peculiar ou artificial, na inexistência de norma expressa que o
admita - de estranhar tendo em conta a minúcia com que o legislador comercial regulou a matéria do
comércio marítimo -, na irrazoabilidade da coexistência de penhores e hipotecas sobre um mesmo bem e
na preferência do Código Comercial por esta última garantia, tendo em conta os inconvenientes que a
imobilização do navio, imposta pelo penhor, acarretaria). Também em face do direito espanhol Vallet de
Goystisolo, Estudios sobre las garantias reales, 2.º Edição, Madrid, Montecorvo, 1984, pág. 207 e segs.,
alude ao facto de em alguns ordenamentos (v.g. a lei francesa de 1874 sobre penhor do navio) se falar de
um penhor registado quando, efectivamente do que se trata é de verdadeiras hipotecas mobiliárias,
destacando que a diferença entre estas duas garantias reside essencialmente na ausência ou premência da
entrega da coisa ao credor (no direito espanhol, desde as Partidas que a hipoteca poderia recair sobre
móveis e imóveis: porém, por influência francesa, a lei hipotecária e o próprio Código Civil apenas
permitem a hipotecabilidade de imóveis, tornando assim necessário o recurso a uma fictio iuris para
admitir a hipoteca naval e aérea).
254
O regime legal destas garantias consta, respectivamente, do Registo Automóvel (constante do Decreto-
Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 242/82, de 22 de Junho e pelo Decreto-
Lei n.º 182/02, de 20 de Agosto – este último diploma prevê, nos art.ºs 27.º e 27.º-D, a organização do
registo automóvel em ficheiro central informatizado, podendo qualquer interessado obter os dados
relativos à situação jurídica de um veículo), do Regulamento da Náutica de Recreio (aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 329/95, de 9 de Dezembro, que revogou o anterior regime constante do Decreto-Lei n.º
439/75, de 16 de Agosto) e o Registo Internacional de Navios da Madeira (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
96/89, de 28 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 393/93, de 23 de Novembro) e, por último, do
Registo Aeronáutico Nacional (nos termos do art.º 6.º, alínea i), dos Estatutos do Instituto Nacional de
Aviação Civil, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 133/98, de 15 de Maio). No direito francês, Cabrillac e
Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 537, negam a possibilidade de dar em penhor barcos, navios e
aeronaves (precisamente porque estes bens podem ser objecto de uma outra garantia sem desapossamento
prevista na lei com carácter geral, pelo que a admissibilidade do penhor traduzir-se-ia num potencial
prejuízo para os terceiros), mas admitem o penhor de automóveis, pois consideram que as garantias
previstas especificamente na lei sobre este bem têm uma vocação específica (financiamento da aquisição
desses bens) e o seu regime deverá, por isso, ser moldado de acordo com o direito comum.
255
Por exemplo em França, desde tempos remotos existe a hipoteca marítima (que tem como objecto os
navios destinados a circulação no mar, embora, em face do regime actual, Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 467, a garantia pode incidir sobre outro tipo de embarcações – como dragas – e até sobre
as próprias plataformas de exploração, abrangendo também os melhoramentos introduzidos na
embarcação, assim como as indemnizações devidas ao proprietário da mesma), fluvial (recaindo sobre
barcos de recreio que circulem nos demais cursos de água) e sobre aeronaves – sobre este assunto, vide
Hardel, ob. cit., pág. 166 e segs., defendendo, de iure condendo, a mesma solução relativamente aos
automóveis, tendo em conta a sua perfeita individualidade e a facilidade de organização de um registo,
tendo por base, por exemplo, a carta verde destinada a permitir a sua circulação. Actualmente e de acordo
com Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 635 e segs., a primeira destas garantias consta dos
art.ºs 43.º a 57.º de uma Lei de 3/1/1967, da qual merecem especial referência a impossibilidade de a
garantia recair sobre a totalidade da frota, a admissibilidade de, em caso de uma viagem de navegação
75
Este tipo de garantias, à imagem das suas congéneres imobiliárias, caracterizam-
se pela necessidade de inscrição num registo, embora não raramente este não seja o
76
mesmo para a totalidade dos bens hipotecáveis,257 muito embora por vezes surjam
entraves adicionais, como sucede, no direito espanhol, com a impossibilidade de um
bem ser empenhado quando, previamente, este tenha sido onerado com um penhor sem
desapossamento (art.º 5.º da LHMPSD).258
Nalguns direitos, é particularmente interessante a possibilidade de estas
hipotecas recaírem sobre bens futuros259 e de alguns destes bens serem entendidos como
bens compostos, o que facilita a possibilidade de recurso à sub-rogação real:260 não
obstante, o regime legal padece de algumas deficiências no que respeita à protecção do
credor face ao perigo de desvalorização261 ou de deslocalização dos bens.262
257
No direito francês, por exemplo, a hipoteca marítima é inscrita no registo gerido pelas entidades
aduaneiras, enquanto a hipoteca fluvial será registada no tribunal do comércio do local da matrícula da
embarcação.
258
Assim, Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 711, pois seria irrazoável negar a posse do bem ao
primeiro credor pignoratício e atribuí-la ao segundo (embora esclarecendo que, quando tal
circunstancialismo não se verifique, os bens passíveis de penhor sem desapossamento podem ser
empenhados de acordo com o regime civilístico geral).
259
De acordo com Vallet de Goystisolo, ob. cit., págs. 186 e 19, a garantia pode constituir-se sobre navios
em construção, desde que “este invertido en ella la tercera parte de la cantidad en que se haya
pressupuestado el valor total del casco” e sobre aeronaves em construção “cuando de hubiere invertido
un tercio de la cantidad total pressupuestada, a cuyo fin se inscribirán provisionalmente en el Registro
Mercantil para passar a definitiva su inscripción una vez terminada la construcción” (cfr. art.º 38. da lei
sobre hipoteca mobiliária e penhor sem desapossamento). Também em face do direito francês, Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 467 e segs. realçam a licitude de hipotecas marítimas e fluviais
sobre barcos ou navios em construção (destacando como a oneração deste tipo de bens futuros exige a
apresentação de uma declaração do proprietário que identifique o quid a hipotecar), assim como de uma
aeronave nas mesmas circunstâncias (ressalvando, contudo, que tal facto deve ser declarado no registo).
260
Sempre segundo Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 191 e segs., a lei determina que as aeronaves e as
embarcações sejam consideradas como coisas compostas (ou seja, como “Conjugación física de cosas
que forma una unidad económica de destino, que permanece, aunque cambien sus partes componentes,
en sucessivas repareciones hasta el punto de no quedar ni una sola de las primitivas”), ao estabelecer,
para os navios, que, juntamente, com o casco, responderão pela dívida hipotecária, salvo pacto em
contrário, “el aparejo, respetos, pertrechos, y máquinas, si fuere de vapor, que se hallen e la sázon en el
domínio de la nave hipotecada; los fletes (…) y las indemnizaciones que al buque correspondan por
abordaje u otros accidentes que den lugar a quéllas, y por la del seguro, caso de siniestro” e, para as
aeronaves, que a garantia compreenderá “la célula, los motores, hélices (hoy, en su caso,
turborreactores), aparatos de radio y navegación, herramientas accessorias, mobiliario y, en general,
pertrechos y enseres destinados al servicio de la aeronave, aunque sean separables de esta”,
considerando esta enumeração não taxativa). Com base nesta natureza composta, o Autor defende a
separabilidade das partes componentes e integrantes, isto é, em caso de compra de alguns desses bens por
terceiros, a hipoteca não continuará a onerá-los (embora admita algumas excepções quando esses bens
desafectados sejam identificáveis – v.g., peças de navios a aeronaves – ou quando, não obstante a
alienação, a relação de pertinência com o bem originariamente hipotecado se mantenha), considerando o
Autor que assiste ao credor o direito de se opor à substituição de elementos do bem hipotecado por parte
do devedor, especialmente quando tal operação represente uma diminuição da garantia (para além disso, a
lei sobre hipoteca naval admite expressamente a sub-rogação do credor, em caso de sinistro, na
indemnização devida pelo seguro, o qual é obrigatório, desde que o credor hipotecário notifique a
seguradora da existência da garantia).
261
Como salienta Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 196 e segs., este tipo de bens, além de algumas das
suas partes integrantes serem fungíveis e consumíveis (o que contribui para que o período de vida útil
destes bens seja curto), encontra-se sujeito a rápida depreciação em razão da constante evolução
tecnológica. Como solução alternativa, o Autor propõe, de lege ferenda, a hipoteca de toda a frota naval
ou aérea no momento da execução da garantia (à imagem do floating charge britânico) ou de toda a
empresa de transporte aéreo (à semelhança da hipoteca de empresa de transporte aéreo mexicana), de
modo a que os novos bens venham suprir a desvalorização total ou parcial dos mais antigos. Todavia, esta
solução não se coaduna com a lei espanhola, fiel ao princípio da especialidade, pelo que, em face do
direito vigente, a alternativa proposta pelo Autor é “que se hipotequen, conjuntamene con la nave o
77
Algumas destas coisas, apesar da sua qualificação como bens móveis,
encontram-se sujeitas a um regime parcialmente diverso, em especial naqueles
ordenamentos em que vigora o princípio da posse vale título.263
No entanto, para ser objecto de penhor, não basta que o bem em questão seja
insusceptível de hipoteca, existindo alguns requisitos adicionais que devem ser
observados.264
Desde logo, os bens em questão deverão estar no comércio265 (destarte excluindo
aqueles bens que não sejam susceptíveis de comércio jurídico ou relativamente aos
quais a lei exclua a sua transmissão).266
Esta exigência compreende-se, porquanto, em sede de execução do penhor, a
coisa empenhada poderá vir a ser vendida ou adjudicada,267 por isso mesmo se exigindo
que os potenciais objectos da garantia sejam alienáveis268 e cedíveis.
78
A insusceptibilidade de alienação dos bens pode resultar da própria natureza da
coisa – na medida em que a mesma seja incapaz de fazer parte do património individual
de qualquer sujeito -, bem como da circunstância de, não obstante serem passíveis de
apropriação individual, não poderem ser objecto de alienação.269
Por seu turno, de acordo com o art.º 577.º, n.º 1, a impossibilidade de cessão de
um bem pode ter origem legal (como sucede, em regra, com os créditos e direitos
litigiosos – art.º 579.º - e com os salários e outros créditos laborais na medida em que
não possam ser penhorados - cfr. art.º 280.º do Código do Trabalho)270, convencional
(embora, neste caso, a convenção não seja oponível ao cessionário, salvo se este a
conhecia no momento da cessão – cfr. art.º 577.º, n.º 2)271 ou estatutária (quando, por
exemplo, os estatutos das sociedades comerciais prevejam que as acções não podem ser
cedidas em determinadas circunstâncias – cfr. art.º 328.º, n.º 2, do CSC),272 ou resultar
da natureza incindível do crédito face à pessoa do credor (como acontece com o direito
a alimentos – cfr. art.º 2008)273 ou das próprias circunstâncias do negócio.274
268
Em face do direito espanhol, Candido Paz-Ares Rodriguez et. al., ob. cit., págs. 1861 e 1862,
esclarecem que, tratando-se de bens abrangidos por uma proibição temporária ou condicional (legal ou
contratual), de alienação, a aptidão dos mesmos para constituir objecto de uma garantia deve ser aferida
apenas no momento do vencimento da obrigação garantida e não na data da constituição da garantia ou do
surgimento da obrigação. Por seu turno Albaladejo, Comentário cit., págs. 454 e 455, distingue as coisas
totalmente fora do comércio jurídico, daquelas cuja inalienabilidade resulta de disposição legal ou
convencional, embora esclareça que qualquer destas causas deve ser aferida no momento da execução da
garantia e não da sua constituição. Finalmente, Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2138, entende que a
inalienabilidade superveniente do bem onerado determina a extinção da garantia, apontando como
exemplo a expropriação do bem.
269
Adopta esta distinção Chironi, ob. cit., págs. 451 a 454, incluindo na primeira categoria os bens do
domínio público e os bens eclesiásticos.
270
No mesmo sentido para o direito italiano, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 28. Para uma enumeração
exaustiva dos impedimentos legais à cessão de créditos, vide Menezes Leitão, Cessão de créditos,
Almedina, 2005, pág. 294 e segs., indicando, para além dos aludidos no texto, a cessão de créditos sobre
incapazes aos seus pais, tutor, curador, administrador legal de bens ou produtor que exerça as funções de
tutor (art.º 1892.º, n.º 1), a cessão onerosa de créditos a filhos ou netos (art.º 877.º) e entre cônjuges (art.º
1714.º, n.ºs 1 e 2), a cessão gratuita de créditos entre cônjuges sujeitos obrigatoriamente ao regime da
separação de bens (art.º 1762.º) ou a favor de médicos, enfermeiros ou sacerdotes (art.º 2194.º), notários,
intérpretes ou testemunhas que tenham intervenção no acto (art.º 2195.º), a favor do cúmplice do doador
adúltero (art.º 2196.º, n.º 1) e de partidos políticos (art.º 8.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 19/2003, de 20 de
Junho), bem como a cessão que possa colocar em causa o sigilo profissional (exemplificando com as
prestações de serviços de médicos e advogados).
271
Pestana de Vasconcelos, A cessão de créditos em garantia e a insolvência, Coimbra Editora, 2007.,
pág. 381 e segs., alerta para o perigo de estes pactos de non cedendo limitarem seriamente a liberdade
económica da contraparte – especialmente quando se trate de créditos pecuniários a curto prazo - “uma
vez que o credor não o poderá mobilizar para obter crédito, quer transferindo-o para um facto, no seio
de um contrato de cessão financeira ou factoring, quer cedendo-o a um banco em garantia de um
empréstimo” (equacionando mesmo a possibilidade de as cláusulas gerais que impeçam a transmissão dos
créditos adquiridos sobre uma determinada empresa, poderem ser considerados inválidos, por violação do
dever geral de boa fé – cfr. art.º 15.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro).
272
Acerca destas limitações, vide infra n.º 1.2.8.5 do Capítulo II.
273
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 594, apontam como outras hipóteses
enquadráveis nesta excepção, os contratos de prestação de serviços e de mandato “em que a prestação
debitória, por sua natureza, se encontra de tal modo ligada à pessoa concreta do credor, que seria
manifestamente desrazoável impor ao devedor, nos termos admitidos pelo art.º 577.º, a sua vinculação
perante outra pessoa”. Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., pág. 378, inclui também aqui os créditos
resultantes do contrato de trabalho, mesmo na parte em que, nos termos da lei, possam ser cedidos,
enquanto Antunes Varela, Das obrigações cit., Vol. II, pág. 303, aceita tal limitação à cessão unicamente
quando se trate de um perito ou de um trabalhador especialmente qualificado em termos profissionais,
cujas características pessoais tenham sido decisivas para a sua contratação (este último Autor acrescenta
outros casos de incedibilidade decorrentes da indissociabilidade do crédito ao credor, como sejam o
79
Relativamente aos casos de inalienabilidade ou incedibilidade temporária, poder-
se-á entender que tal facto não constitui um entrave à concessão de penhor sobre esses
bens, mas a respectiva execução apenas será admissível após a cessação de qualquer
daquelas duas situações.275
É certo que sempre se poderá objectar ser da essência do penhor a possibilidade
de o credor executar a garantia desde o momento da respectiva constituição, mas não
deixa de ser menos verdade que a livre disponibilidade do bem empenhado deverá ser
aferida apenas na data do vencimento do crédito garantido276 (ou até da sua execução),
por só a partir dessa data o credor poder exercer o ius distrahendi.
Apesar de a noção de penhor não fazer qualquer alusão a este facto,277 a
necessidade de os bens a empenhar se encontrarem no comércio, ou seja, serem
susceptíveis de relações jurídicas privadas resulta da própria noção de coisa (cfr. art.º
202.º), nos termos da qual os bens fora do comércio não poderão ser objecto de direitos
privados (cfr. n.º 2 do art.º 202.º).278
Por falta deste requisito, não serão, assim, empenháveis os bens do domínio
público, aqueles que são, por natureza, insusceptíveis de apropriação individual279 (cfr.
direito resultante de um pacto de preferência – cfr. art.º 420.º - e a quota numa sociedade civil – art.º
995.º, n.º 1 -, a qual, porém, pode ser cedida com o consentimento dos demais sócios). Já Menezes Leitão,
Cessão cit., pág. 311, aponta ainda o caso dos créditos respeitantes a uma prestação de facere infungível,
como sejam a elaboração de um quadro por um pintor afamado.
274
Esta classificação é igualmente apresentada por Jacques Ghestin e outros, ob. cit., págs. 222 e 223,
embora os próprios reconheçam que a última categoria assume uma importância residual.
275
Neste sentido, Jacques Ghestin e outros, ob. cit., pág. 223. Admitindo também a empenhabilidade de
bens afectados por uma inalienabilidade transitória, Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 232 e 233 (mesmo
considerando que este penhor seria invendável, apontando como exemplo as acções de uma sociedade
ainda não negociáveis) e Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1879 (considerando que esta limitação
temporária não coloca os bens fora do comércio jurídico e admitindo mesmo, quando se trate de
proibições de dispor estabelecidas pelo proprietário – v.g., quando alguém receba um objecto a título de
legado, com a expressa proibição de dispor do mesmo - que o credor possa executar o bem onerado
mesmo quando a proibição de disposição ainda vigore no momento da execução, alegando que o credor
“es un tercero ajeno a la prohibición establecida en su día entre el dueño inicial de la cosa y el deudor
que la adquirió con la prohibición de disponer y que posteriormente la entrega en garantía”). Lerena
Cuenca e outros, ob. cit., págs. 520 e 521 citam a sentença do Supremo Tribunal Espanhol n.º 957/2003,
de 21 de Outubro, na qual se afirma que a susceptibilidade de alienação do bem se deve reportar ao
momento do vencimento da obrigação garantida e não ao do seu nascimento ou da constituição da
garantia (in casu, tratava-se de acções de uma sociedade que, no momento da sua oneração, estavam
abrangidas por uma proibição estatutária de alienação, posteriormente retirada). Questão diversa diz
respeito às coisas que apenas podem ser vendidas juntamente com outras (as quais apenas poderão ser
dadas em penhor nos mesmos termos – Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 65).
276
Embora não se ignore que, ocorrendo o vencimento antecipado do crédito (designadamente por culpa
do devedor – cfr. art.º 780.º), o credor apenas poderá executar o bem dado em penhor depois de ser
possível a respectiva alienação ou cedência.
277
O Código de Seabra, no seu art.º 856.º, determinava expressamente que apenas podiam ser dados em
penhor os objectos móveis que pudessem ser alienados e Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 232, entendia
que a expressão utilizada pela lei era sinónimo de coisas “que estejam em comércio”. O CCE, no seu art.º
1864.º, dispõe que “Pueden darse en prenda todas las cosas muebles que están en el comercio, con tal
que sean susceptibles de possessión.”.
278
Uma vez que, de acordo com o art.º 202.º, n.º 1, do Código Civil, apenas reentram na noção de coisas,
aquilo que pode ser objecto de negócios jurídicos. Em face do direito espanhol e perante a exigência,
postulada especificamente pelo art.º 1864.º do CCE para o contrato de penhor, que os bens objecto deste
negócio se encontrem no comércio, De la Santa García, ob. cit., págs. 62 e 63, considera tal disposição
supérflua, uma vez que tal imposição decorre já do preceito genérico do art.º 1271.º do CCE, nos termos
do qual podem ser objecto de contrato todas as coisas que não se encontrem fora do comércio dos
Homens, incluindo as futuras. Sustentando a mesma conclusão para o direito francês, Guillouard, ob. cit.,
pág. 55.
279
Em sentido análogo, Protettí, ob. cit., pág.128.
80
art.º 202.º, n.º 2), os créditos resultantes de obrigações naturais280 e as coisas declaradas
inalienáveis por força da lei.
De facto, por vezes, é a própria lei declara a impossibilidade de o penhor recair
sobre determinados bens, como sucede com as partes de capital dos sócios das
sociedades de revisores oficiais de contas (cfr. art.º 106.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º
487/99, de 16 de Novembro)281 e com as acções das sociedades gestoras de mercado
regulamentado282 (cfr. art.º 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 394/99, de 13 de Outubro),283284
constituindo aquilo que poderemos designar de impossibilidades objectivas de
disposição de bens – independentemente de quem seja o respectivo titular –, por
contraposição às (subjectivas) respeitantes às incapacidades do empenhante.285
Em especial no que concerne às participações sociais em geral e às acções em
particular, não faltam restrições relativamente à sua dação em penhor, alguma de origem
legal (como quando se trate de acções de sociedades não inscritas no registo comercial
ou cujo aumento de capital aí não tenha sido registado, com as acções próprias ou com
prestações acessórias e com as não liberadas)286 outras de fonte estatutária.287
Questão diversa, mas conexa, é a de saber se as proibições legais de alienar
envolvem ou não, verificados os mesmos pressupostos, uma correspondente proibição
de empenhar os mesmos bens, parecendo que a resposta afirmativa se impõe, embora
admitindo algumas excepções.
De facto, da própria natureza do penhor resulta, ou pelo menos pode resultar, a
necessidade de uma futura venda do bem dado em garantia, pelo que se deve concluir
que a proibição de alienar contém ínsita uma análoga interdição de empenhar (não
parecendo descabido falar de uma proibição presumida de empenhar contida na
interdição de alienar), sem prejuízo de conclusão diversa quando se comprove ser
manifesto que a lei entendeu restringir a proibição à alienação.288
280
Como bem refere Marques de Carvalho, ob. cit., págs. 54 e 55, não havendo reconhecimento do
devedor da obrigação natural, uma vez incumprida a obrigação garantida o credor pignoratício não
poderia exigir o pagamento do crédito empenhado, uma vez que nem mesmo o seu devedor (credor do
crédito natural) o poderá fazer e, assim sendo, tal penhor constituiria uma “expectativa insegura do
nascimento ulterior do penhor sobre a prestação voluntariamente feita pelo devedor.”. Contra, Almeida
Costa, Das obrigações cit., pág. 184, aceitando que o penhor possa recair sobre os créditos decorrentes de
uma obrigação natural (alegando que tal conclusão se impõe por força de tendencial equiparação entre as
obrigações naturais e civis, porquanto a constituição de uma garantia que assegura o respectivo
cumprimento não se enquadra em nenhuma das excepções a tal equiparação – cfr. art.º 404.º, o qual
apenas excepciona a realização coactiva da prestação).
281
Idêntica restrição resultava também do anterior regime jurídico do revisor oficial de contas (cfr. art.º
97.º do Decreto-Lei n.º 442-A/93, de 30 de Dezembro).
282
A missão principal destas sociedades consiste em gerir mercados bolsistas ou outros mercados
regulamentados (art.º 2.º)
283
A lei comina mesmo a sanção de nulidade para os negócios celebrados em contravenção desta
proibição (art.º 5.º, n.º 4). No entanto, a proibição de dar em penhor estas acções não é absoluta, na
medida em que o n.º 5 do mesmo art.º 5.º admite esta operação se a mesma tiver como objecto acções que
o contrato de sociedade permita sejam detidas por quaisquer entidades.
284
Também noutros direitos se nega a possibilidade de dar em penhor determinados bens. Por exemplo, o
direito francês nega a empenhabilidade das cadernetas de poupança populares, bem como dos créditos
pertencentes aos seus titulares - vide Jacques Ghestin e outros, pág. 220.
285
Sobre estas, vide supra n.º 2.4.2.1 do Capítulo I.
286
Para um elenco destas hipóteses no direito espanhol, vide Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 71 e
segs., incluindo ainda outras restrições legais relacionadas com o objecto social de determinadas
sociedades, como sejam as concessionárias de televisão privada, as sociedades de navegação marítima, as
sociedades de jogo, as sociedades anónimas laborais e as desportivas, as entidades de crédito e as
sociedades de seguros.
287
Sobre estas, vide infra n.º 1.2.8.5 do Capítulo II.
288
No mesmo sentido, Chironi, ob. cit., págs. 455 e 456.
81
Se a característica da alienabilidade é aceite pela esmagadora maioria da
doutrina,289 já é mais discutível a necessidade de os bens empenhados serem
penhoráveis, fundamentando alguns290 essa obrigatoriedade no carácter público das
normas que determinam a impenhorabilidade e outros na necessidade eventual de venda
dos bens no âmbito da execução do penhor.291
Todavia, tal entendimento não unânime, sustentando outros, pelo contrário, a
susceptibilidade de serem dados em penhor bens impenhoráveis.292 293
Esta segunda posição poderá alicerçar-se na ratio legis da proibição de a
penhora recair sobre determinados bens, ou seja, na necessidade de evitar que o devedor
se veja deles privado contra a sua vontade. Ora, dir-se-á, na constituição do penhor não
restam dúvidas que o devedor prescindiu desses bens intencionalmente, sobretudo tendo
em conta o desapossamento inerente a esta garantia.294
Mas, poder-se-á contrapor, a norma que estabelece a impenhorabilidade de
certos bens é de ordem pública e não pode ser afastada, nem mesmo por vontade
daquele cujos interesses visa tutelar, redundando a constituição de penhor,
precisamente, numa forma de o devedor se despojar de um bem de subsistência que a lei
pretendeu conservar nas suas mãos.
A nosso ver, em suma, a característica da empenhabilidade surge como um óbice
à dação em penhor dos bens sujeitos a tal restrição, não tanto em razão da (eventual)
natureza cogente das normas que os qualificam como tal, mas sobretudo porque a
oneração pignoratícia é susceptível de conduzir a uma alienação futura do bem: por ser
assim, um bem impenhorável poderá ser dado em penhor, mas no momento (futuro e
289
Troplong, ob. cit., pág. 33, relembra que, no direito romano e ainda no decurso do século XIX em
algumas colónias francesas, o penhor podia incidir sobre escravos.
290
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 64, nota 91.
291
Rubino, ult. ob. e loc. cit. e Gabrielli, ult. ob. e loc. cit..
292
Neste sentido, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann,
ob. cit., pág. 1482, alegando que “el deber de entegar la posesión del §1205 sirve como precaución
suficiente frente al peligro de una pignoración irreflexiva” (acrescentando que alguns penhores legais
abrangem expressamente bens impenhoráveis) e, por isso, sustentando a não equivalência entre a
impenhorabilidade e a empenhabilidade, salientando que a proibição de cessão não impede a penhora,
mas sim a dação em penhor e, no plano oposto, que há bens que sendo impenhoráveis são susceptíveis de
penhor (v.g. a quota legítima para efeitos sucessórios).
293
Questão diversa é a de saber se poderá ser constituído um penhor sobre uma coisa já penhorada por
outro credor. Rubino, Il pegno cit., pág. 207, entende que esta hipótese será de verificação rara, tendo em
conta a dificuldade de o segundo credor obter a posse do bem. Ainda assim, se a obtiver o penhor apenas
nascerá se o credor pignoratício ignorar a penhora anterior (concordantemente, Protettí, ob. cit., pág. 129).
294
Neste sentido, Puig Brutau, ob. cit., pág. 28 e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 29, argumentando estes
últimos que tais bens continuam a ser alienáveis e, por outro lado, a sua entrega voluntária ao credor ou a
terceiro (em consequência do penhor) retira-lhes a destinação que se encontra na base da sua
impenhorabilidade (sustentando a posição contrária apenas se o penhor tiver sido constituído de modo
não voluntário). Também Baudry-Lancantinerie, ob. cit., págs. 25 e 26, entende não ser a
impenhorabilidade um obstáculo insuperável à dação em penhor dos bens, porquanto apenas impede a sua
penhora ou arresto, mas não o seu desapossamento voluntário por parte do devedor (para os dar em
penhor), nem tão pouco impede que o credor desencadeie a execução quando não tiver sido pago na data
do vencimento da obrigação garantida (para completar o seu raciocínio, o Autor entende que a
impossibilidade de cessão de um bem ou de um direito, essa sim, constitui um óbice à concessão de
penhor). Comungam também deste entendimento, Realmonte, Il pegno cit., pág. 640, Montel, Pegno cit.,
pág. 788, Ciccarello, ob. cit., pág. 685 e Sílvio de Salvo Venosa, ob. cit., pág. 560, para quem “Se o
devedor oferece os bens em penhor, de forma livre e espontânea, em princípio está renunciando à
impenhorabilidade, que é benefício instituído pela lei em seu favor, diferentemente do que ocorre nas
hipóteses de inalienabilidade, quando então o impedimento decorre de lei de ordem pública, sendo
inderrogável por vontade das partes” (concluindo que o seu entendimento sai reforçado pela
possibilidade aberta pela lei – cfr. art.º 1433.º do CCB – de venda amigável do bem empenhado, o que
pressupõe o abrir mão do devedor quanto à impenhorabilidade do bem).
82
eventual) da execução o mesmo não poderá ser apreendido caso esteja incluído no leque
de bens insusceptíveis de penhora (ocorrendo a execução extrajudicial da garantia, nos
termos do art.º 675.ºe apesar da desnecessidade de penhora, será sustentável que a
execução não possa abarcar um bem qualificado por lei como impenhorável, uma vez
que o fundamento desta limitação é o de impedir a respectiva alienação).295
Assim sendo, não será de negar, a priori, a possibilidade de dar em penhor os
bens considerados impenhoráveis pela lei substantiva296 e/ou pela lei processual civil,
embora seja forçoso dissociar os bens total ou absolutamente impenhoráveis (art.º 822.º
do CPC),297 os que o são apenas relativamente (art.º 823.º do CPC)298 e os que o são
parcialmente (art.º 824.º do CPC),299 - para além de outras situações específicas (art.ºs
824.º-A a 827.º do CPC)300 – do mesmo modo que são impenhoráveis as quantias em
dinheiro ou o depósito bancário resultantes da satisfação de crédito impenhorável, nos
mesmos termos em que o era o crédito originariamente existente (art.º 824.º-A, do
CPC).
Referência especial merecem algumas participações sociais,301 relativamente às
quais a lei admite a sua dação em penhor, mas recusa que a execução, em caso de
295
De facto, se o intuito subjacente à inadmissibilidade de penhora é do evitar a subtracção do bem à
disposição do executado, será de todo coerente aplicar tal restrição também às execuções que prescindam
da penhora - como normalmente sucederá com as extra-judiciais – pois, também aí, o bem executado
terminará por sair da esfera jurídica do executado.
296
Vide, por exemplo, o art.º 2008.º, n.º 2, respeitante ao crédito por alimentos.
297
Aqui se incluem, além de outras assim declaradas por lei especial, as coisas ou direitos inalienáveis; os
bens do domínio público do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas; os objectos cuja apreensão
seja ofensiva dos bons costumes; os objectos cuja apreensão careça de justificação económica, pelo seu
diminuto valor venal; os objectos especialmente destinados ao exercício de culto público; os túmulos; os
bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na residência permanente do
executado (salvo se se tratar de execução destinada ao pagamento do preço da respectiva aquisição ou do
custo da sua reparação); os instrumentos indispensáveis aos deficientes e os objectos destinados ao
tratamento de doentes (cfr. alíneas a) a g) do art.º 821.º).
298
De acordo com o n.º 1 desta norma, estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para
pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de
entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas colectivas de utilidade pública, que
se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública. Acrescenta o n.º 2 que
estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalhos e os objectos indispensáveis ao exercício
da actividade ou formação profissional do executado, salvo se o executado os indicar para penhora, a
execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação ou forem
penhorados como elementos corpóreos de um estabelecimento comercial.
299
Nos termos do n.º 1, são impenhoráveis dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de
natureza semelhante, auferidos pelo executado, bem como dois terços das prestações periódicas pagas a
título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda
vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante e, no caso de penhora de dinheiro ou de
saldo bancário de conta à ordem, é impenhorável o valor global correspondente a um salário mínimo
nacional (n.º 3). Todavia estas percentagens de bens declarados impenhoráveis podem ser aumentadas
com base em diversos factores (n.ºs 4 a 7), tendo como limite mínimo, quando o executado não tenha
outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário
mínimo nacional e como limite máximo o equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada
apreensão (n.º 2).
300
Como sejam as respeitantes à penhora de bens comuns do casal (art.º 825.º) ou de bens em regime de
comunhão ou de compropriedade (art.º 826.º) ou de execuções movidas contra o herdeiro (art.º 826.º) ou
em que exista um devedor principal e um subsidiário (art.º 827.º).
301
Relativamente às acções e às quotas, não parecem existir dúvidas quanto à susceptibilidade de as
mesmas serem executadas e penhoradas, nos termos, respectivamente, dos art.ºs 328.º, n.º 5 (ao
determinar que as cláusulas estatutárias limitativas da transmissão e/ou oneração das acções não podem
ser invocadas em processo executivo ou de liquidação de patrimónios) e 239.º (cujo n.º 2 impede que a
transmissão de quotas em processo executivo ou de liquidação de patrimónios seja proibida ou limitada
pelo contrato de sociedade ou esteja dependente do consentimento desta, admitindo, porém, que o
83
incumprimento da obrigação garantida, possa incidir sobre o quid previamente onerado,
desta forma negando a sua penhorabilidade: é o que se passa com o penhor de partes de
sócios de sociedades em nome colectivo (art.º 183.º, n.º 1, do CSC),302 relativamente às
quais nos deparamos com a situação inversa de um bem ser empenhável, mas não
penhorável (rectius, não executável), destarte fornecendo mais um argumento no
sentido da autonomia conceptual e não equiparação de efeitos entre as duas figuras.
Enfim, não falta quem negue a empenhabilidade dos bens de valor irrisório ou
desprovidos de valor, por se considerar incompatível com a noção de garantia que um
bem de cuja alienação não se possa retirar uma quantia minimamente razoável assegure
verdadeiramente o cumprimento de uma obrigação.303
Salvo o devido respeito, não se nos afigura ser este um motivo suficiente para
negar a constituição de penhor, tendo em conta que a valoração acerca da
susceptibilidade de a coisa em causa servir de garantia competir exclusivamente ao
credor, sem que seja lícito, à partida, excluir algum bem a esse juízo particular.
Por outro lado, seria sempre difícil conceber, em geral, uma lista dos bens
considerados como de valor exíguo (e, por isso, não empenháveis), sobretudo tendo em
conta que alguns desses bens têm grandes flutuações de preços no mercado (veja-se o
que sucede com algumas matérias primas) e outros aparentemente pouco valiosos
podem, em virtude de circunstâncias futuras mais ou menos anómalas, ver a sua
avaliação aumentar (por exemplo, a correspondência de um determinado indivíduo
anónimo que, posteriormente, se tornou uma celebridade).
Outro requisito por vezes indicado como necessário para a dação em penhor
reside na susceptibilidade de os mesmos serem objecto de posse, requisito este exigido,
por exemplo, pelo art.º 1864.º do CCE,304 obstáculo este contornado por alguma
contrato possa atribuir à sociedade o direito de amortizar quotas em caso de penhora, atribuindo o n.º 5
um direito de preferência aos demais sócios e à sociedade na venda ou adjudicação judicial e
determinando o n.º 3 a sub-rogação da sociedade ou do sócio que tenha satisfeito o exequente), ambos do
CSC – no mesmo sentido, Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial, Vol II (Das sociedades), 4.ª
Edição, Almedina, 2011, págs. 403 e 404.
302
Nos termos desta norma, o credor do sócio não pode executar a parte deste na sociedade, mas apenas o
direito aos lucros e à quota de liquidação, acrescentando o n.º 2 que o credor pode requerer que a
sociedade seja notificada para (em prazo não superior a 180 dias) proceder à liquidação da parte, sendo
que a sociedade pode demonstrar que o sócio devedor possui outros bens suficientes para satisfação da
dívida exequenda, caso em que a execução continuará sobre esses bens (n.º 3). Se a sociedade provar que
a parte do sócio não pode ser liquidada – se, por força dessa liquidação, a situação líquida da sociedade se
tornasse por esse facto inferior ao montante do capital social -, prosseguirá a execução sobre o direito aos
lucros e à quota de liquidação, mas o credor pode requerer que a sociedade seja dissolvida, o que
permitirá o apuramento da quota de liquidação do sócio (n.º 4 e art.º 188.º, n.º 1).
303
Assim, Jacques Ghestin e outros, ob. cit., pág.233, apontando como exemplos a prática de dação em
penhor dos cartões de crédito, sendo que ao seu exíguo valor acrescia, como fundamento de concessão da
garantia, a impossibilidade da respectiva execução (todavia, os Autores aditem o penhor sobre bens
desprovidos de valor actual, mas susceptíveis de ter um contra-valor pecuniário no futuro). No mesmo
sentido, Medina de Lemus, Derecho civil de bienes, derechos reales e inmobiliario registral, Tomo II –
Derechos reales limitados e del registro de la propriedad, Dykinson, 2003, pág. 144.
304
Com efeito, esta norma dita que apenas podem ser empenhadas coisas móveis susceptíveis de posse,
requisito este que Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs. 1876 a 1879, justifica, por um lado, com a
circunstância de, sem a sua natureza mobiliária, “se privaría a dicho contrato de su contrato de su
principal garantía, la cual estriba en que la cosa dada en prenda salga de manos de su dueño y pase a
las del acreedor o de un tercero previamente designado” (qualificando como bens móveis, de acordo com
o art.º 335.º do CCE, os que sejam passíveis de transporte de um lado para o outro sem prejuízo da sua
integridade) e, por outro, com o facto de “si para que nazca el derecho de prenda es preciso que se ponga
la cosa entregada en posesión del acreedor, sólo pueden cumplirse tal exigencia si la cosa puede
poseerse”. Do mesmo modo se exprime a Lei catalã – vide Barrada Orellana, ob. cit., pág. 209
(considerando que a eficácia do penhor resulta da posse efectiva da coisa empenhada por parte do credor).
84
doutrina que aceita serem os bens incorpóreos e os direitos susceptíveis de posse,305 mas
invocado por outros para, na ausência de regulamentação especial, negar a
empenhabilidade dos direitos de crédito, desse modo inviabilizando a constituição de
um penhor de créditos.306
305
Nesta conformidade, Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 330 e 331, assegurando que da letra da
lei (cfr. art.º 430 e segs. do CCE) resulta a admissibilidade de posse sobre coisas (corpóreas e)
incorpóreas e sobre direitos: relativamente às primeiras, entende ser possível exercer sobre elas um poder
de facto – independentemente de quem seja o titular do direito sobre as mesmas - o que significa possuí-
los; no que toca aos direitos, desde que se entenda como posse o poder de facto correspondente ao direito
em questão (apontando como exemplo a posse do direito de usufruto, a qual cabe à pessoa que usa o bem
e dele desfruta enquanto usufrutuário, apesar de não ser o seu proprietário), ou seja, que o titular de um
direito será a pessoa a quem pertença o poder jurídico em que tal direito se traduz, enquanto possuidor do
mesmo direito será aquele que, de facto, tem e exerce um poder correspondente a um direito.
306
Assim, Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho civil cit., pág. 305, escrevendo que “sólo
pueden darse en prenda los bienes suceptibles de posesión, esto es, los bienes corpóreos”, constatando
ser este um obstáculo à admissibilidade do penhor de créditos (pelo menos quando este não se encontrem
incorporados num título). Também para Aranda Rodríguez, La prenda de créditos, Marcial Pons, Madrid,
1996, pág. 71 e segs., embora os créditos cumpram os outros dois requisitos exigidos pelo art.º 1864.º do
CCE - ou seja, possuam natureza mobiliária (uma vez que a noção de coisa, ditada pelos art.ºs 333.º e
segs. do CCE, deve entender-se em sentido amplo, abrangendo coisas e direitos: em suma, “Si los
derechos reales sobre cosas inmuebles se consideran inmuebles (…) y todos los demás bienes son
muebles (…), tanto los derechos reales sobre cosas muebles como los derechos de crédito con valor
patrimonial han de considerarse cosas muebles”) e sejam alienáveis (na medida em que, normalmente, se
permite a alienação dos créditos, em termos análogos aos das coisas) – não são susceptíveis de posse,
requisito este imposto, em razão da natureza real do contrato de penhor, como constitutivo da garantia (de
modo que sem o desapossamento do constituinte, a garantia não surgirá, mesmo inter partes), assegurando
ainda a posse funções de garantia (impedindo que o constituinte possa perder, destruir ou dispor do bem
onerado, o que implica uma detenção material, o que se comprova pelo facto dos direitos e deveres do
credor pignoratício – direito de retenção, dever de conservação - pressuporem essa mesma detenção
material), de manutenção do direito de preferência do credor pignoratício (uma vez que o processo de
execução da garantia exige que o credor entregue ao tribunal ou ao notário encarregue da dita execução o
bem empenhado, o que requer que aquele o detenha em seu poder) e de uma suposta publicidade da
própria garantia, que o Autor contesta (alegando que, por um lado, a posse constitui a protecção de uma
situação de aparência de um direito que pode ou não corresponder à verdadeira titularidade deste; que, ao
menos nos sistemas onde vigora o princípio consensualista, a transmissão dos direitos opera por mero
efeito do contrato, não assumindo a transmissão possessória qualquer significado e, finalmente, que a
publicidade possessória perde cada vez mais sentido com o advento de novas garantias que prescindem da
transmissão da posse do bem onerado, como sejam a reserva de propriedade ou os penhores sem
desapossamento: todavia, o Autor atribui à posse uma publicidade negativa, de modo que “La falta de
posesión en manos del pignorante, indudablemente, expresa hacia los terceros que quieran contratar con
él la existencia de un límite de su poder de disposición, que les puede afectar”). Com efeito, o Autor (ob.
cit., pág. 85) afirma que “La posesión en la prenda supone la aprehensión material de la cosa, de manera
continuada, por el acreedor pignoraticio. La posesión del acreedor cumple las funciones de legitimación
y protección interdictal. No cabe tal forma de posesión sobre un derecho de crédito. Ningún derecho es
susceptible de aprehensión material”, recusando que a posse sobre um direito de crédito possa basear-se
na admissibilidade legal da quase-posse e na sua equiparação à quase-tradição das coisas incorpóreas
(alegando que a posse de coisas e de direitos a que se refere o CCE – cfr. art.ºs 430.º a 432.º e 437.º - são
duas formas de uma mesma instituição, assinalando que a posse sobre direitos apenas respeita aos direitos
reais e não aos de crédito; que o facto de um crédito ser um bem incorpóreo não significa que o mesmo
possa ser objecto de posse, como se comprova pelos efeitos da posse no penhor, destinados a proteger o
credor pignoratício contra ameaças à sua garantia – uma vez que “El acreedor pignoraticio de un derecho
de crédito no puede ser despojado del derecho de crédito, ni protegido interdictalmente (…). Si un
tercero actúa aparentemente como titular del derecho de crédito, puede al acreedor pignoraticio
ejercitar un interdicto de recobrar o retener? No”; finalmente, ao contrário do entendimento que critica,
analisa separadamente a tradição – enquanto modo de aquisição de direitos reais – e a cessão, alegando
que tal equiparação foi fruto da necessidade de encontrar um sucedâneo da entrega material do bem para a
constituição do penhor de créditos, sucedâneo esse que se buscou no regime da cessão de créditos,
negócio para o qual era necessária – para além da notificação do terceiro devedor do crédito cedido – a
85
Esta problemática entronca numa outra respeitante à própria noção de posse e à
possibilidade de esta recair unicamente sobre bens corpóreos ou, pelo contrário, poder
incidir também sobre bens ou direitos incorpóreos: a opção pela primeira alternativa
reduz significativamente o leque de bens empenháveis ou, pelo menos, obriga a que o
surgimento de semelhante garantia sobre os mesmos obedeça a uma forma de
constituição diversa.
Entre nós e apesar de a lei não oferecer uma resposta cabal a este respeito, pode
negar-se a susceptibilidade de posse sobre bens incorpóreos com o argumento que tal
instituto pode recair unicamente sobre coisas corpóreas, enquanto o entendimento
contrário poderá advir da interpretação segundo a qual a restrição contida no art.º 1302.º
(no qual se afirma que unicamente as coisas corpóreas podem ser objecto do direito de
propriedade regulado naquele Código) valeria, quando muito, para o direito de
propriedade, mas não para a posse.
Assim sendo e de acordo com esta segunda perspectiva, o regime legal da posse
não permite concluir pela sua não aplicação aos bens incorpóreos, tendo em conta que
“a actuação por forma correspondente ao exercício de um direito real é, acima de tudo,
um poder empírico sobre uma coisa, há que entender que poder empírico não é
necessariamente poder físico: é, sim, poder não jurídico, isto é, não simplesmente
formal-jurídico, possível e só possível mediante a intervenção reguladora da norma
(…) mesmo as coisas em sentido amplo (os direitos coisificados) podem ser susceptíveis
de posse em termos de direitos que sobre elas podem incidir, isto é, de usufruto e de
penhor”).307
Partindo desta perspectiva, é possível admitir a dação em penhor de bens
incorpóreos simples ou mesmo compostos, como o estabelecimento comercial.308
entrega dos títulos comprovativos do crédito, funcionando esta como instrumento publicitário da
constituição da garantia face a terceiros e como um meio de prova da constituição da mesma: todavia, o
Autor descarta tal equiparação actualmente, considerando que, ao menos no direito espanhol, a forma de
aquisição de direitos reais e de crédito é distinta – porquanto para os primeiros exige-se um título e um
modo; enquanto os direitos de crédito se adquirem apenas por mútuo consentimento, ou seja, apenas
requerem um título e, por outro lado, porque “la tranmisión del derecho de crédito se produce mediante
el intercambio de voluntades, porque el titular del derecho de crédito como acreedor no tiene por objeto
ninguna cosa, sino unicamente la conducta del deudor. La entrega de los documentos, caso de que
existan, sólo supone la obligación del cedente poner al nuevo acreedor en las condiciones necesarias
para ejercitar su derecho” ou seja e em suma “En la prenda de créditos no es posible, de ningún modo,
hablar de traspaso posesorio. El acreedor es titular de un derecho de crédito; no posee nada, en sentido
propio, porque el objeto del derecho de crédito es una conducta. Sobre una conducta no se puede ejercer
un derecho de posesión”. Também Serrano Alonso, ob. cit., pág. 264, nega a empenhabilidade dos
direitos de crédito, “porque no son susceptibles de ser poseídos por quien no es su titular”. Pelo
contrário, Cano Martínez de Velasco, ob. cit., pág. 27, acredita que os créditos sejam possuíveis,
indubitavelmente os duradouros (“por ser su pago de tracto sucesivo o diferido, oferecen posibilidades
evidentes de poseibilidad”), mas mesmo os de pagamento instantâneo (alegando que todo o crédito de
pagamento instantâneo é susceptível de durar, desde que nasça até que se vença – podendo este prazo ser
bastante longo – e, no que concretamente respeita ao penhor, “El acreedor pignoraticio posee por sí
mismo el crédito pignorado y, en calidad de auténtico poseedor y administrador del derecho, percibe los
intereses del crédito. Se da, en estos casos, la exigencia para la posesión de derechos de que el poseedor
del crédito (usufructuario, acreedor pignoraticio) no sea el titular del mismo”).
307
A respeito das participações sociais, vide Soveral Martins, Cláusulas do contrato de sociedade que
limitam a transmissibilidade das acções: sobre os arts. 328.º e 329.º do CSC, Almedina, 2006, pág. 289.
308
Em termos afirmativos, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 4/11/2004, in www.dgsi.pt,
(admitindo, consequentemente, a restituição provisória da correspondente posse), Gravato de Morais,
Alienação e oneração de estabelecimento comercial, Almedina, 2005, págs. 68 a 70 (considerando
decorrer esta posse da unidade jurídica que o estabelecimento representa, mas ressalvando que “não é
natureza corpórea dos bens que compõem o estabelecimento que justifica a sua posse. Até porque, no
limite, podem encontrar-se casos em que esses bens são escassos ou até nem existirem”, para além de a
86
Num plano diverso, o entendimento segundo o qual o objecto da posse serão os
direitos e não as coisas em si mesmas consideradas - de modo que o possuidor do
direito será aquele que, de facto, tem e exerce um poder correspondente a esse direito -,
acaba por consentir a dação em penhor de bens incorpóreos.309
Esclareça-se, ainda, que este suposto entrave à constituição de penhor sobre
determinados bens – especialmente os incorpóreos – apenas colhe relativamente àquelas
garantias que se constituam pela via tradicional do empossamento do credor
pignoratício ou de terceiro, não assumindo relevância quando o surgimento do penhor
se encontre dependente da observância de outros formalismo que em nada contendam
com o instituto possessório.
Relativamente aos acessórios do bem empenhado,310 importa determinar se a
garantia pignoratícia também os abarca.
mesma conclusão resultar, por maioria de razão, do confronto com a posse dos direitos de propriedade
intelectual, escrevendo que “a incorporalidade que caracteriza o estabelecimento porque não pura –
sendo nesse aspecto um minus em relação àquela – não põe mais dificuldades, muito pelo contrário, em
relação ao que sucede naquele campo”, citando, em abono da sua posição, as vozes de, entre outros,
Menezes Cordeiro, Orlando de Carvalho e Lebre de Freitas), Menezes Leitão, Direitos reais, Almedina,
2011 (2.ª Edição), pág. 127 (alegando que, para além de uma universalidade de direito, é também uma
universalidade de facto), Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 64 (advertindo, porém, que tal
decorre da qualificação do mesmo como universalidade de facto) e, ao menos implicitamente, Paula
Costa e Silva, Posse ou posses?, Coimbra Editora, 2.ªEdição, 2005, pág. 57 e segs. (com efeito, ao discutir
qual o regime possessório a aplicar às universalidades – concluindo, por analogia com o art.º 1256.º, n.º 2,
que, em caso de integração de coisas adquiridas na universalidade a título diverso, “à posse da
universalidade se devem comunicar as características da pior posse das coisas que nela vêm a ser
integradas” - a Autora admite que aquelas são susceptíveis de posse). Contra, rejeitando a posse do
estabelecimento, Durval Ferreira, Posse e usucapião, 3.ª Edição, Almedina, 2008, pág. 79 e segs. (por
entender que a posse, na sua génese, é um instituto privativo das coisas corpóreas e singulares – “a posse
é um instituto genuíno das coisas corpóreas e singulares, objecto do direito de propriedade” ou de outro
direito real – admitindo, porém, o seu alargamento a coisas incorpóreas e a outros direitos de domínio na
presença de disposição legal nesse sentido, como sucede com os direitos de autor, de propriedade
intelectual e as participações sociais de sociedades comerciais: o estabelecimento comercial, atendendo à
sua natureza de universalidade, não será passível de posse, apenas o sendo as coisas que o integram,
escrevendo o Autor que “quanto ao estabelecimento, as coisas corpóreas-singulares, como também as
imateriais objecto dos direitos de autor e de propriedade industrial, a ele afectas, estarão (…)
protegidas, suficientemente pela posse: mas consideradas em si e sem desvirtuar o instituto”: quando
muito, o Autor concede que caso “o titular do estabelecimento quiser considerá-lo como uma
universalidade de direito, e for de assumir sobre ele um correspondente “direito de domínio” – também
nessa perspectiva dele se poderá valer “como direito”, e dentro dos respectivos condicionalismos
processuais, para deduzir embargos de terceiro (…) ou lançar mão de providência cautelar não
especificada (…). Mas, então, dogmáticamente, com base “nesse direito” e não na “posse””), Manuel
Rodrigues, A posse: estudo de direito civil português, Almedina, 1996, pág. 141 (alegando que “As
universalidades são efectivamente constituídas por pluralidades de coisas móveis distintas, com uma
individualidade própria, mas ligadas por um destino económico comum de maneira a constituírem um
todo; mas este não forma uma coisa corpórea ou intelectual daquelas distintas (…) a universalidade não
suprime a individualidade das coisas que a constituem e que sobre cada uma delas continua a incidir um
direito de propriedade (…). Se há dois direitos – um sobre o agregado, outro sobre as coisas
isoladamente – é lógico concluir que eles podem existir em titulares diversos (…). Na universalidade são
ainda as coisas isoladamente que constituem o objecto das relações jurídicas, e que portanto constituem
o objecto da posse”) e, na jurisprudência, os Acórdãos do STJ de 15/2/1977 (in BMJ n.º 264, pág. 199) e
da Relação de Lisboa de 12/4/1984 (in CJ, Tomo II, pág. 130) e outros citados por Gravato de Morais
(Alienação cit., págs. 69 e 70, notas 141 e 142). No direito italiano, Gino Magri, ob. cit., entende que
“l’azienda non suscettiva di essere oggetto di diritti, non può nemmemo essere oggetto di possesso in
senso giuridico!”.
309
Para mais desenvolvimentos acerca da susceptibilidade de posse dos bens incorpóreos, vide infra n.º 5
do Capítulo I.
310
Relativamente à extensão do penhor aos acessórios do crédito, nomeadamente aos juros, vide infra n.º
4 do Capítulo I.
87
Numa primeira abordagem, parecem não existir objecções à extensão da garantia
aos acessórios do bem dado em garantia, compreendendo os frutos civis e naturais, as
benfeitorias, outras pertenças e as coisas que àquela se juntaram por via de acessão
(desde que, neste último caso, se trate da junção de duas coisas móveis e o objecto
permaneça na propriedade do devedor),311 mesmo no caso de penhores sem
desapossamento.312
No entanto, importa aqui escalpelizar melhor esta questão.
Parece indiscutível que, constituído o penhor sobre uma dada coisa móvel, a
garantia abrangerá as partes essenciais dela, sendo apenas discutível se a separação de
determinadas partes importará que sobre elas o penhor deixe de incidir.313
Quanto às coisas acessórias ou pertenças, cumpre invocar o n.º 2 do art.º 210.º -
nos termos do qual os negócios jurídicos que tenham por objecto a coisa principal não
abrangem, salvo convenção em contrário, as coisas acessórias – pelo que o penhor
311
Perfilham esta opinião, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 209 (em face do direito catalão, muito embora
admita a existência de pacto em contrário), Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 503 (declarando a
extensão do penhor a todos os acessórios do bem empenhado, desde que não sejam expressamente
excluídos pelas partes, com excepção dos bens móveis considerados imóveis por destinação), Chironi, ob.
cit., pág. 504 e segs. (escrevendo que “Le mutazioni avvenute nella cosa, e nei limiti da cui era
originariamente circoscrita comme oggetto del diritto del costituente, diano esse o tolgano valore da quel
che aveva, non inducono cangiamento nell’entità del pegno: il valore alienato non sopporta variazioni
alcuna”, salvaguardando apenas os eventuais melhoramentos efectuados pelo terceiro possuidor, uma vez
que este tem direito a separá-los do bem onerado, prevalecendo o seu direito sobre o do credor
pignoratício), Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 31, Realmonte, Il pegno cit., pág.639, Ciccarello, ob. cit., pág.
685 e Montel, Pegno cit., pág. 788 (que considera abrangidos pelo penhor mesmo os acrescentos
jurídicos, apontando como exemplo o penhor constituído por um comproprietário sobre a sua quota que
se estende a todo o bem comum quando os demais consortes renunciem à respectiva parcela). Em sentido
idêntico, Marques de Carvalho, ob. cit., págs. 33 e 34, Faggella, ob. cit., págs. 28 e 43 (incluindo nos
acessórios os frutos, juros e dividendos da coisa, embora admitindo que o penhor não se estende aos bens
que venham a substituir esses acessórios) e Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 339 (escrevendo
que “Constituído penhor sobre uma coisa, nele estão compreendidos todos os seus acessórios não
expressamente excluídos”). Rubino, Il pegno cit., págs. 202 e 203, por seu turno, afirma que o penhor
compreende todos os acessórios da coisa empenhada existentes no momento da sua constituição que
sejam propriedade do empenhante, mas, relativamente àqueles acessórios não pertencentes ao concedente
da garantia, o penhor só os abrangerá se o credor pignoratício se encontrar de boa fé (em sentido idêntico,
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 148 e I negozi costitutivi cit., pág. 156, socorrendo-se da aplicação analógica
do art.º 2811.º do CCI, ao qual, em matéria de hipoteca, prevê o alargamento da garantia às benfeitorias e
a outras acessões do bem onerado). Em termos concordantes, a respeito da hipoteca, Meneres Campos,
Da hipoteca: caracterização, constituição e efeitos, Almedina, 2001, pág. 61.
312
Quando o valor dos bens inicialmente onerado for significativamente aumentado, nos penhores sem
desapossamento, em razão da actividade de conservação desenvolvida pelo devedor, Christian Atias, La
valeur engagée (sur l’object du gage), in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11, pág. 82,
entende que tal aumento de valor não deverá aproveitará ao credor, nomeadamente por força do instituto
da acessão, advogando que se trata de despesas de conservação que devem ser suportadas pelo devedor
que, em compensação, será o beneficiário exclusivo do aumento de valor dos bens resultantes de tais
despesas (sem que o credor possa, paralelamente, aumentar o valor onerado).
313
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 65 e 66 sustenta que o penhor continua a recair sobre as
coisas separadas (pois o credor contava com essas partes), não sendo sequer de exigir, para que o penhor
não cesse, que as coisas, com a separação, entrem na posse do credor ou na propriedade do empenhador.
No entanto, se um terceiro adquirir a propriedade do bem empenhado e, sobretudo, se também obteve a
respectiva posse, o citado Autor entende que o direito de penhor deve ceder. Analogamente, em face do
direito alemão, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob.
cit., pág. 1482 (porém, os Autores advogam que o penhor abrange as partes integrantes, as quais
permanecem sujeitas à garantia, ainda que se separem da coisa empenhada, salvo se quando se trate de
partes integrantes aparentes ou passageiras – não essenciais –, as quais poderão ser empenhadas
antecipadamente, antes da separação da coisa principal).
88
constituído sobre o bem principal não deverá, excepto na hipótese referida na parte final
do preceito transcrito, abranger as coisas acessórias.314
Pelo contrário, VAZ SERRA315 entende que o penhor deverá estender-se às
pertenças ou coisas acessórias entregues com o bem empenhado (excepto se as
circunstâncias permitam concluir a vontade de as excluir do penhor), indo mesmo ao
ponto de considerar presumivelmente incluídas aquelas que forem entregues
posteriormente.
Por nossa parte, aderimos ao entendimento primeiramente veiculado, por ser o
mais consentâneo com o direito vigente - sem prejuízo do que se dirá em matéria de
acessão - 316 muito embora, de jure condendo, concordemos com a sujeição à garantia
das coisas acessórias entregues conjuntamente com o bem empenhado, por ter sido esse
bem compósito que o empenhante entregou ao credor e que este recebeu e avaliou como
suficiente para sua garantia.
No direito italiano, admite-se que o penhor possa recair sobre as pertenças
mobiliárias e imobiliárias,317 enquanto no direito alemão o penhor estende-se aos
produtos que sejam separados da coisa empenhada (§1212 do BGB).
E, em face do nosso direito, poder-se-á constituir um penhor apenas sobre as
pertenças mobiliárias ou imobiliárias?
No que às primeiras diz respeito, se a relação de pertença surgir em momento
posterior ao da constituição do penhor, aplicar-se-á o regime previsto para as acessões.
Se, ao invés, a relação de pertença já existir na data da constituição do penhor
sobre a coisa principal, a garantia apenas poderá abranger exclusivamente as pertenças
mobiliárias se concluirmos, em homenagem ao disposto no n.º 2 do art.º 210.º, que a
garantia constituída sobre a coisa principal não abrange a coisa acessória pois, se tal
suceder (ao menos por força da estipulação em contrário admitida pelo citado preceito),
aquelas pertenças estarão incluídas no penhor sobre a coisa principal.
Em face do nosso direito anterior à actual codificação, admitia-se a qualificação
como móveis dos bens incorporados num imóvel ou no solo, tendo em vista uma futura
separação e a consequente natureza mobiliária vindoura, pelo menos quando fosse este
o seu fim previsível.318
Actualmente, as pertenças imobiliárias ou partes integrantes, como sucede com
os frutos não separados de uma árvore, apenas quando destacadas do imóvel a que se
encontrem adstritas vêm cessar a relação de pertença (cfr. art.º 204.º, n.º 3), pelo que só
314
Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 685, Almeida Costa, Direito das
obrigações cit., pág. 923, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 236 e, para a hipoteca,
Meneres Campos, ob. cit., pág. 61.
315
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 66 e 67.
316
Relativamente às coisas acessórias que se juntem à coisa principal após a constituição do penhor, vide
infra no texto a respeito da acessão.
317
Neste sentido, Gabrielli, Il pegno cit., págs. 152 e 153 e, entre nós relativamente aos frutos pendentes,
Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 34.
318
Na doutrina, Guilherme Moreira, ob. cit., Vol. I, pág. 345, entende plausível que certos bens possam
ser considerados móveis, num dado contrato, quando, em virtude dele, devam ser separados do solo,
desde que seja esse o estado em que os contraentes os supuseram e Cunha Gonçalves, ob. cit., Vol. II,
pág. 305, fala de “bens móveis por antecipação”, apontando como paradigma os produtos dos prédios
rústicos, quando sejam considerados pelas partes na sua condição futura de coisas separadas. A título de
exemplo, o Acórdão do STJ de 12/3/1957, in BMJ n.º 65 (1957), pág. 518 e segs., admite que um penhor
possa ter como objecto, não apenas os minérios já extraídos do solo, mas também os ainda incorporados
neste, declarando que a cláusula contratual em análise “podia referir o penhor também ao minério ainda
em jazigo, não obstante a sua natureza de imóvel enquanto incorporado no solo. Podia o contrato tornar
o penhor desde logo extensivo aos minérios incorporados mas tornados móveis por antecipação, já que
pela concessão mineira são destinados à separação”.
89
a partir dessa data poderão ser considerados como bens móveis e, assim, objecto de um
penhor.319
Por outro lado, importa ainda compatibilizar os direitos do credor com um
penhor sobre os ditos bens com os de terceiros detentores de garantias sobre o bem
imóvel em questão: em nosso entender, a preferência deve ser dada a estes últimos, se
tal garantia for de constituição anterior à do penhor (até porque, nos termos do art.º
691.º, n.º 1, alíneas a) e b), aquelas coisas se encontram compreendidos no âmbito da
hipoteca): caso, ao invés, o penhor seja de constituição anterior à hipoteca, aquele
prevalecerá, mesmo que o objecto da garantia pignoratícia ainda não exista
autonomamente no momento do nascimento do ónus.
Em face do direito vigente, afigura-se, assim, que a constituição de penhor sobre
tais bens será válida nos termos em que o for o nascimento de semelhante garantia sobre
bens futuros, uma vez que o objecto do direito visado pelas partes não é o bem na sua
configuração actual, mas antes naquela que virá a ter se e quando se verificar a
separação relativamente ao bem a que se encontram incorporados.320
Relativamente às benfeitorias (e apesar de a lei, ao invés do que sucede na
hipoteca – cfr. art.º 691.º, n.º 1, alínea c) - não as incluir directamente no âmbito da
garantia) e independentemente de terem sido efectuadas pelo constituinte da garantia ou
pelo credor pignoratício, advogamos, em tese geral, a sua inclusão na órbita da garantia
pignoratícia.321
No caso de benfeitorias realizadas pelo credor pignoratício, a alínea b) do art.º
670.º atribui-lhe o direito de ser indemnizado das benfeitorias necessárias e úteis, bem
como de levantar estas últimas.
Importa, assim, distinguir as benfeitorias necessárias – relativamente às quais o
credor pignoratício tem o direito de ser indemnizado relativamente ao seu valor, mas
sem que as possa levantar, tendo em conta a sua indispensabilidade para a conservação
do bem onerado (art.º 1273.º, n.º 1, 1.ª parte) – das úteis, que o credor pignoratício
poderá levantar, mas apenas desde que o possa fazer sem prejuízo para o bem
empenhado: se assim não for, assiste-lhe o direito de ser indemnizado do valor dessas
benfeitorias, segundo as regras do enriquecimento sem causa (art.º 1273.º, n.ºs 1, 2.ª
parte, e n.º 2).322
Assim, quando se verifique o levantamento das benfeitorias, nenhum problema
decorre, pois o valor do bem empenhado é reduzido na exacta medida dos arranjos
operados e retirados.
319
Assim, expressamente, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 198 (esclarecendo que
apenas se consideram partes integrantes as coisas móveis ligadas materialmente a um prédio e, ainda, que
“a imobilização das partes integrantes cessa apenas com a separação material, não bastando a mera
distracção jurídica”), Realmonte, Il pegno cit., pág. 639, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 153, Gorla e
Zanelli, ob. cit., pág. 28 e Ciccarello, ob. cit., pág. 685 (muito embora este último Autor alerte para o
potencial conflito, quando os proprietários da coisa principal e da pertença não coincidam, entre um
terceiro que adquira a coisa principal e a pertença depois da celebração do contrato de penhor, mas antes
da entrega, e o credor pignoratício). Ghestin (dir.), Mestre, Putman e Billiau, ob. cit., pág. 215 apontam
como exemplo o penhor de um estabelecimento comercial por parte do seu proprietário que,
simultaneamente, seja proprietário do imóvel em que esse estabelecimento funcione, caso em que o
penhor não poderá abranger o material “attaché” ao imóvel, pois este tornou-se um bem imóvel por
destino (pelo que apenas poderá ser alvo das garantias que recaiam sobre o próprio imóvel).
320
Acerca da constituição de penhor sobre bens futuros, vide infra n.º 3.3 do Capítulo I.
321
No mesmo sentido, para o direito espanhol, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1885, para além de
reconhecer ao credor um direito de retenção sobre o bem até integral satisfação do crédito por
benfeitorias.
322
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 690 e Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 305.
90
Obtendo o credor pignoratício uma indemnização pelo montante das benfeitorias
realizadas - porque são necessárias ou, sendo úteis, não podem retirar-se sem prejuízo
para a coisa onerada (cfr. art.º 1273.º, n.ºs 1 e 2) -, o valor do bem que lhe serve de
garantia será aumentado em razão desses melhoramentos, com benefícios óbvios para o
empenhante (que permanece proprietário do bem) e para os seus credores.
Se, ao invés, as benfeitorias houverem sido executadas pelo constituinte –
embora pressuponham, pelo menos na maioria dos casos, o consentimento do credor
pignoratício, por ser este quem detém o objecto – não vislumbramos qualquer motivo
válido para excluir que o valor do bem onerado seja aquele que resultar de tais
melhoramentos.323
Ou seja, poderemos até enunciar um princípio geral, segundo o qual a coisa
onerada assegura o crédito garantido nos termos em que aquela se encontre no momento
da execução da garantia, com a única ressalva de as transformações operadas
desvirtuarem o objecto onerado,324 originando, então, a extinção do penhor, aplicando-
se este princípio independentemente de quem tenha sido o autor das benfeitorias.
Em suma, ou as benfeitorias podem ser separadas do bem onerado, não sofrendo
com isso o credor pignoratício danos significativos ou, ao invés, este não as poderá
levantar e, então, acrescerão ao bem onerado, ficando por isso submetidas ao ónus
pignoratício que sobre este incide, sem prejuízo do direito do credor pignoratício a ser
delas indemnizado (eventualmente beneficiando, para o efeito, do direito de preferência
conferido pelo penhor).325
Noutra ordem de considerações, cumpre indagar se o penhor abrange igualmente
as acessões326 (união e incorporação de outra coisa alheia – art.º 1325.º) verificadas na
coisa empenhada, sendo certo que, como bem observa RUBINO,327 é difícil que tais
acessões sejam levadas a cabo por outros sujeitos sem o consentimento do credor, tendo
em conta que a coisa se encontrará normalmente em poder deste (ou, quando muito, de
terceiro).328
323
E isto independentemente de se tratar de benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias. De facto,
tendo sido empenhado um determinado bem, os melhoramentos que o mesmo sofra (salvo casos
excepcionais que serão analisados a respeito da extinção do penhor) não implicam transformação do bem,
pelo que a garantia deve abrangê-lo no estado em que ele se encontre (mormente no momento da
execução). Aliás, ocorrendo a situação inversa – a deterioração do bem – a garantia também continua a
onerar o bem nos precisos termos em que este se encontre (sem prejuízo dos direitos que a lei confere ao
credor para remediar a diminuição da sua garantia).
324
Sobre este assunto, vide n.º 10.2 do Capítulo I.
325
Acerca desta última questão, vide infra n.º 9.1 do Capítulo I.
326
A respeito da hipoteca, o art.º 691.º, n.º 1, alínea b), apenas menciona as acessões naturais, com
exclusão das industriais (o que justifica, segundo Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág.
712, em razão dos conflitos que origina, podendo resultar na atribuição do todo – imóvel e acessões – ao
proprietário do prédio ou ao autor da acessão).
327
Il pegno cit., pág. 203.
328
Chironi, ob. cit., pág. 512 e segs., distingue consoante a adjunção tenha sido obra do proprietário do
bem empenhado (por exemplo, a título precário, caso em que o bem empenhado, se for o principal,
permanece onerado, conjuntamente com a acessão verificada – “perché l’oggetto della proprietà e però
del pegno non è giuridicamente mutato”; se, ao invés, o bem empenhado se une a outro e este assume
carácter principal, a propriedade sobre aquele extingue-se, não tendo o credor pignoratício qualquer
direito sobre o bem principal, restando-lhe recorrer às medidas legais de conservação da garantia), do
credor pignoratício (devendo este restituir o bem ao empenhante, no caso de o bem onerado ser o
principal, nos termos em que este se encontre em resultado da acessão – salvaguardado um eventual
direito de indemnização – ou, caso o bem empenhado aceda a outro principal e tendo em conta a extinção
do penhor, deverá devolver ao empenhante o valor do bem, podendo efectuar-se uma compensação entre
este montante e o da obrigação garantida) ou de terceiro, por exemplo aquele a quem o bem empenhado
houvesse sido confiado para guarda (caso em que a solução será similar à exposta para as acessões por
obra do credor, apenas com duas ressalvas: por um lado, sendo a coisa onerada a principal na sequência
91
Também a respeito da acessão importa distinguir diversas conjecturas,
consoante, por um lado, estejamos perante uma acessão natural (resultante
exclusivamente das forças da natureza) ou industrial (quando, por facto do homem, se
confundem objectos pertencentes a diversos donos, ou quando alguém aplica o trabalho
próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com
propriedade alheia) – cfr. art.º 1326.º - e, noutro plano, entre a união ou confusão do
objecto empenhado se produza com coisas pertencentes ao credor, a terceiro ou ao
próprio concedente da garantia.
Verificando-se a acessão natural, rege o princípio segundo o qual pertencerá ao
dono da coisa tudo o que a esta acrescer (art.º 1327.º), pelo que, salvo melhor juízo, a
garantia onerará o bem inicialmente onerado com a configuração que este assumir após
tal acessão.
Relativamente à acessão industrial, será necessário invocar a distinção
respeitante à propriedade do bem que se vai unir ao empenhado, importando analisar
separadamente as hipóteses em que este pertença ao credor pignoratício, a terceiro ou ao
próprio empenhante.
Assim sendo, na primeira hipótese, desde que a propriedade do conjunto ou da
coisa transformada pertença ao empenhador (o que sucederá quando as coisas
resultantes da união ou mistura pertençam ao empenhador329 ou quando, tendo ocorrido
uma especificação levada da cabo pelo credor, a propriedade da coisa transformada
da cessão, a garantia extinguir-se-á se o empenhante requerer a restituição do seu valor ou de outro bem
equivalente – atendendo que a modificação do objecto da garantia conduz à sua extinção; por outro lado,
se o bem onerado for secundário, em resultado da acessão, a extinção da garantia não se verificará se for
pedida a separação do bem onerado). Analogamente, verificando-se a especificação, será igualmente
necessário distinguir consoante o seu autor tenha sido o proprietário do bem onerado (hipótese na qual,
em princípio, o penhor subsiste - mas em caso de utilização de matéria não separável, a garantia abrange
apenas a quota correspondente ao valor da coisa onerada -, excepto se a mão de obra for considerado o
bem principal, uma vez que, sendo assim, nasce um novo bem e o penhor se extingue), o credor
pignoratício (permanecendo a propriedade do bem no empenhante e a garantia do credor – embora,
quando este use matéria própria inseparável, a garantia seja acantonada à quota na comunhão -, salvo se a
mão de obra for considerado o bem principal, uma vez que, sendo assim, nasce um novo bem e o penhor
se extingue, sem prejuízo do eventual direito de indemnização do empenhante) ou um terceiro (seguindo,
nesta hipótese, o penhor o destino do direito de propriedade do empenhante).
329
Para determinar a atribuição da propriedade sobre os bens objecto de acessão industrial por via de
união ou confusão, é forçoso distinguir consoante o autor da acessão tenha actuado de boa ou má fé: na
primeira hipótese (cfr. art.º 1333.º, n.ºs 1 a 4) e se a separação deles não seja possível (ou, sendo-o, dela
resulte prejuízo para alguma das partes) fará seu o objecto adjunto o dono daquele que for de maior valor,
contanto que indemnize o dono do outro ou lhe entregue coisa equivalente (se ambas as coisas forem de
igual valor e os donos não acordarem sobre qual haja de ficar com ela, abrir-se-á entre eles licitação,
adjudicando-se o objecto licitado àquele que maior valor oferecer por ele; verificada a soma que no valor
oferecido deve pertencer ao outro, é o adjudicatário obrigado a pagar-lha. Se os interessados não quiserem
licitar, será vendida a coisa e cada um deles haverá no produto da venda a parte que deva tocar-lhe: em
qualquer dos casos, o autor da confusão é obrigado a ficar com a coisa adjunta, ainda que seja de maior
valor, se o dono dela preferir a respectiva indemnização). Em caso de má fé e nos termos do art.º 1334.º,
n.ºs 1 e 2, se a coisa alheia puder ser separada sem padecer detrimento, será esta restituída a seu dono
(sem prejuízo do direito que este tem de ser indemnizado do dano sofrido): se, porém, a coisa não puder
ser separada sem sofrer deterioração, deve o autor da união ou confusão restituir o valor da coisa e
indemnizar o seu dono, quando este não prefira ficar com ambas as coisas adjuntas e pagar ao autor da
união ou confusão o valor que for calculado segundo as regras de enriquecimento sem causa. Finalmente,
em caso de confusão causal (art.º 1335.º, n.ºs 1 e 2), se as coisas adjuntas ou confundidas não puderem
separar-se sem detrimento de alguma delas, ficam pertencendo ao dono da mais valiosa, que pagará o
justo valor da outra (se, porém, este não quiser fazê-lo, assiste idêntico direito ao dono da menos valiosa):
se nenhum deles quiser ficar com a coisa, será esta vendida, e cada um haverá a parte do preço que lhe
pertencer e, se ambas forem de igual valor, observar-se-á o disposto a respeito da união e confusão de boa
fé.
92
pertencer ao empenhador),330 o penhor continua a onerar esse conjunto ou essa coisa
transformada, dado que o acessório segue a sorte da coisa principal, também para
efeitos do penhor (se, ao invés, o conjunto ou a coisa transformada passar a ser do
credor, o penhor extingue-se por confusão).331 E, se for possível separar os bens unidos
ou misturados sem deterioração significativa, sobre eles não incidirá a garantia, pois o
bem empenhado mantém a sua identidade face àqueles.
As mesmas conclusões serão aplicáveis quando a união, mistura ou
especificação se dêem com coisas ou por obra de terceiro – circunstância
particularmente plausível caso a este seja atribuída a custódia do bem empenhado -, com
a ressalva que o penhor também se extingue se a propriedade do bem se transferir para o
terceiro.332
Se, por último, a união mistura ou especificação se dá com outras coisas do
concedente da garantia, cabe ainda analisar separadamente os casos em que resulta
prevalente a coisa previamente dada em penhor, daquelas em que a predominância seja
conferida às coisas adicionadas ou à obra realizada.
Ocorrendo a primeira situação, não parecem subsistir dúvidas que o penhor
continua a onerar o novo conjunto ou a coisa transformada. Já na hipótese oposta, há
quem advogue que o penhor se extingue (salvo se a união, mistura ou especificação
tiver sido realizada pelo concedente com a intenção de manter o penhor também sobre a
coisa empenhada),333 defendendo outros a subsistência da garantia.334
Note-se, assim, que o penhor não se estende às coisas unidas ou misturadas com
o objecto do penhor, após a constituição da garantia, desde que aquelas sejam
separáveis sem deterioração apreciável do bem empenhado (conservando, deste modo,
cada uma a respectiva identidade), independentemente de quem seja o seu proprietário
de tais bens (a não ser que o respectivo dono manifeste a vontade de a fazer incluir no
âmbito do penhor): com efeito, mantendo o bem empenhado a sua autonomia jurídica,
deverá continuar ser ele – e só ele – o objecto da garantia.335
330
Verificando-se uma especificação (ou seja, quando alguém der nova forma, por seu trabalho, a coisa
móvel pertencente a outrem), cumprirá igualmente separar a actuação de boa fé e a de má fé: na primeira,
fará sua a coisa transformada, se ela não puder ser restituída à primitiva forma ou não puder sê-lo sem
perda do valor criado pela especificação (neste último caso, porém, tem o dono da matéria o direito de
ficar com a coisa, se o valor da especificação não exceder o da matéria) e, em qualquer caso, o que ficar
com a coisa é obrigado a indemnizar o outro do valor que lhe pertencer (cfr. art.º 1336.º, n.ºs 1 e 2). Se a
especificação tiver sido feita de má fé, será a coisa especificada restituída a seu dono no estado em que se
encontrar, com indemnização dos danos, sem que o dono seja obrigado a indemnizar o especificador, se o
valor da especificação não tiver aumentado em mais de um terço o valor da coisa especificada; se o
aumento for superior, deve o dono da coisa repor o que exceder o dito terço (art.º 1337.º).
331
Não podendo este sequer exigir uma nova garantia com base no art.º 701.º.
332
Assim, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 68.
333
De acordo com Rubino, Il pegno cit., pág. 203, tal intenção será frequente, tendo em conta que o bem
se encontra em poder do credor e que a união, mistura ou especificação apenas poderão realizar-se com o
consentimento deste. Acrescenta o mesmo Autor que, quando se comprove tal intenção, não será
necessário um novo acto formal de constituição de penhor, uma vez que a vontade das partes aponta no
sentido de a coisa adstrita ou a nova obra são consideradas anexadas ao bem originariamente dado em
penhor.
334
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 69, assegurando que, neste caso e uma vez
que a propriedade do conjunto ou da coisa transformada permanece no concedente da garantia, o penhor
não se deverá extinguir, pois será de admitir a vontade deste sujeito em onerar o conjunto ou a coisa
transformada e, por outro lado, por não considerar razoável que o empenhador possa (praticando a obra
ou efectuando a união ou a mistura) prejudicar o direito de penhor. Acrescentamos nós que, verificando-
se tal prejuízo, o credor pignoratício poderá mesmo invocar o art.º 701.º, ex vi do art.º 678.º.
335
Em sentido convergente, Rubino, ult. ob. e loc. cit. e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 68 e
69.
93
Pelo contrário, a garantia pignoratícia deverá expandir-se de modo a atingir
igualmente os acrescentos jurídicos da coisa onerada.336
Um outro aspecto importante diz respeito aos frutos do bem empenhado: estarão
eles compreendidos no âmbito do penhor que incida sobra a coisa de onde aqueles
provêem?
O nosso Código, no art.º 672.º, n.º 1,337 estabelece uma presunção de convenção
anticrética de penhor ou pacto anticrético mobiliário,338 nos termos da qual se entende,
336
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 204 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 69
(apontando como exemplo o penhor de uma quota, defendendo a extensão deste a todo o bem, em caso de
renúncia ao seu direito por parte dos demais comproprietários). Partilhando este entendimento genérico
relativamente às acessões, vide Gabrielli, Il pegno cit., págs. 148 a 150.
337
Disposições análogas constam do art.º 2791.º do CCI (já anteriormente à entrada em vigor deste
Código, Chironi, ob. cit., pág. 584, admitia que o credor pignoratício pudesse ter direito aos frutos do bem
onerado, não apenas quando houvesse convenção expressa nesse sentido, mas também “per la natura
stessa della cosa data in pegno proprio una cosa destinata a dar frutti, e che richiede per tal fine la cura
e l’amministrazione del detentore, si deve indurre la volontà del costituente d’investire il creditore
pignoratizio delle facoltà ocorrenti al bisogno. In questi casi i frutti s’intendono attribuiti al creditore”) e
do §1213 do BGB (cujo n.º 2, dispõe que, sendo a coisa frutífera por natureza, presume-se que o credor
pignoratício com a posse exclusiva tenha direito à percepção dos frutos, acrescentando o §1214, n.º 1,
que, tendo o credor pignoratício o direito a usar a coisa empenhada, fica obrigado a cuidar dos proveitos
desses frutos e a prestar contas – a respeito deste regime, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann,
Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1485, esclarecem que não é possível que as partes
acordem em circunscrever a garantia apenas aos frutos). Já o Código de Seabra (cfr. art.º 867.º) continha
uma norma semelhante. No direito espanhol, porém, o art.º 1868.º, fala apenas de “interesses”, ou seja, ao
juros enquanto rendimento de um capital, sendo a norma interpretada, pela doutrina maioritária, de modo
restritivo, negando a sua aplicação a outro tipo de frutos, como os naturais, desta forma se resumindo o
âmbito de aplicação do preceito aos casos em que o bem onerado seja um crédito que produz juros (cfr.
Lídia Arnau Raventós, La imputación del artículo 1.868 del Código Civil, in Garantías reales mobiliarias
en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 464 e segs.,
alertando para uma interpretação ainda mais restritiva, de acordo com a qual os frutos abrangidos seriam
apenas os rendimentos de um crédito a obter uma prestação em dinheiro, posição contestada pela Autora,
para quem, embora essa seja a hipótese mais usual, “tampoco puede descartarse su aplicación a intereses
consistentes en bienes fungibles distintos al dinero”), deste modo excluindo o penhor de dinheiro (por
configurar um penhor irregular e, por isso, a propriedade do bem se transferir para o credor), mas
abrangendo os juros moratórios e os que se produzam em resultado da conversão dum penhor de créditos
regular num irregular (em caso de vencimento do crédito empenhado antes do crédito garantido, hipótese
na qual a garantia passa a recair sobre o objecto da prestação – normalmente dinheiro -, podendo o credor
colocá-lo a render juros). Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1886, destaca como o projecto de Código
Civil continha uma referência, não apenas aos juros, como também aos frutos, tendo esta última parte sido
eliminada na versão final, embora permaneçam na doutrina dúvidas quanto à circunstância de a norma em
questão abranger ou não os frutos, defendendo uns a solução afirmativa (argumentando que “dentro de
los intereses se incluyen tanto los frutos civiles o intereses en sentido estricto como los frutos naturales y
los industriales”, presumindo que “el término empleado lo está en un sentido amplio, equivalente a
frutos, mismo naturales que civiles”), enquanto outros, nos quais se inclui o Autor, excluem os frutos da
órbita do preceito (restringindo a norma aos penhores sobre créditos ou valores que os incorporem, uma
vez que “Mantener la equiparación de la palabra “intereses” con “frutos” es contraria a los
antecedentes inmediatos del proprio Código y por ello no es comprensible que se pretenda utilizar tal
precedente para sostener la tesis extensiva”, tanto mais que “no parece aceptable ampliar su significado,
cuando además el mismo va en contra de la propria esencia de las faculdades concedidas en el art. 1.870
al acreedor; lo excepcional de la norma lleva a considerar más adecuada la tesis restrictiva”), embora
aceitando a possibilidade de as partes estipularem a convenção anticrética a outro tipo de bens frutíferos;
esta posição é igualmente subscrita por Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 539 (desde logo tendo
em conta os antecedentes históricos – e, em concreto, a supressão da parte da norma que, no projecto, se
referia expressamente aos frutos – e depois considerando que tal interpretação é a mais congruente com a
proibição de uso do bem empenhado, até porque a convenção anticrética não parece ser – ao invés do que
sucede com a consignação de rendimentos ou a anticrese – da natureza do penhor: em suma, entende o
Autor que “el legislador ha querido mantener la relación prendaria entre los vinculados por ella con la
mínima complejidad posible, que, incuestionablemente, se veria incrementada de admitirse la
94
salvo estipulação em contrário, que o credor pignoratício tem direito aos proventos da
coisa onerada.
Quanto ao destino a dar a esses frutos, os mesmos serão imputados,
sucessivamente, ao pagamento das despesas realizadas com o bem empenhado,339 dos
juros vencidos e do capital devido.340
Por outro lado e no que especificamente respeita ao penhor de créditos, o art.º
683.º obriga o credor pignoratício a cobrar os juros e demais prestações acessórias
compreendidas na garantia.341
compensación en el caso de prenda de cosas fructíferas, desprovista, por otra parte, de cualquier
disposición necesaria para fijar los criterios de valoración de los frutos, a efectos de la compensación y
del régimen mismo de ellos”); também Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho civil cit., pág. 306,
acata igualmente a restrição do pacto anticrético aos frutos naturais, sendo o entendimento mais lato, não
confinando a aplicação do preceito aos juros, mas antes sustentando a sua aplicação a qualquer
rendimento do bem onerado (ou seja, “Aunque el precepto se refire sólo a intereses, están sujetos a
compensación todos los rendimientos de la cosa dada en prenda que sean percibidos por el acreedor. Lo
que el acreedor compensa es siempre la ganacia resultante del fruto obtenido”, concedendo esta norma
ao credor “la facultad implicita de negociar el producto obtenido y atribuirse la ganancia en pago”). Para
Garcia Vicente, La prenda del crédito, Madrid, Thomson-Civitas, 2006, pág. 118, o preceito em questão
“Es aplicable no sólo a intereses sino a cualesquiera frutos o ganâncias que deriven de la cosa
pignorada”. Em face do direito brasileiro (cfr. art.ºs 1433.º, V e 1435, IV, do CCB, que dispõem,
respectivamente, que o credor tem direito a apropriar-se dos frutos do bem empenhado que se encontrem
em seu poder e, por outro lado, que o mesmo credor é obrigado a imputar o valor dos frutos de que se
aproprie, sucessivamente, nas despesas de conservação, nos juros e no capital da obrigação garantida),
Sílvio Salvo Venosa, ob. cit., pág. 563, alega que “Permanecendo o devedor como proprietário da coisa
empenhada, continua com direito aos frutos e acessões. No entanto o contrato pode estipular que os
frutos servirão para amortizar ou abater a dívida. Há necessidade de cláusula expressa, contudo”.
338
Utiliza esta segunda expressão Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 239,
salientando que, deste modo, se obtém um resultado análogo ao da consignação de rendimentos.
339
A lei espanhola, ao invés da nossa, não estabelece a imputação dos frutos (rectius, juros) cobrados ao
pagamento das despesas de conservação do bem empenhado, apesar de, lá como cá, o credor ter direito ao
reembolso destas despesas. Em face deste silêncio e apesar das dúvidas acerca do alargamento do penhor
de modo a cobrir tais despesas, defendendo Arnau Raventós, ob. cit., pág. 479 e segs., que,
independentemente da resposta a esta última interrogação, deve consentir-se a imputação dos juros
cobrados ao pagamento, não só dos juros do crédito garantido e do seu capital, mas também das despesas
de conservação, sob pena de o credor que tenha recebido juros em quantidade suficiente para liquidar a
dívida de capital e os respectivos juros não poder continuar a cobrá-los para extinguir o seu crédito por
despesas.
340
No direito espanhol, a lei estabelece que os juros produzidos pelo crédito empenhado servirão para
compensar os gerados pelo crédito garantido e, quando estes últimos não existam ou na parte em que o
montante dos primeiros exceda o valor destes, será imputado ao capital do crédito garantido (art.º 1868.º
do CCE). De acordo com Arnau Raventós, ob. cit., pág. 476 e segs., a compensação de juros com juros
não é uma verdadeira compensação, entendida como causa se extinção das obrigações (preferindo falar
antes de “un supuesto de apropriación de la titularidad de unos bienes (…) con y por su percepción a
cambio de la extinción de la deuda garantizada en la cantidad concurrente; dirsíase, más gréficamente,
que se sigue el esquema de propriedad por deuda”), enquanto a imputação de juros a capital equivale ao
pagamento antecipado e progressivo da dívida garantida (e, caso os juros do crédito empenhado se
vençam antes do crédito garantido, tal imputação será efectuada unicamente aquando do vencimento
deste último, admitindo que os juros do crédito empenhado superam os produzidos pelo crédito
garantido).
341
No direito espanhol e na medida em que a lei não regula especificamente o penhor de créditos, importa
determinar a quem assiste a legitimidade para cobrar e receber (podendo, cada uma delas, corresponder a
sujeitos diversos) os juros do devedor do crédito empenhado, parecendo que o art.º 1868, ao estabelecer a
presunção antricrética apenas se refere a esta última faculdade de percepção dos frutos, mas, de acordo
com Lídia Arnau Raventós, ob. cit., pág. 472 e segs., deve também ser atribuído ao credor o poder de
exigir os juros, configurando mesmo a existência de um poder-dever exclusivo (direito porque a principal
utilidade da reclamação é para o credor, que poderá aplicar a quantia cobrada ao pagamento do seu
crédito e dever porque o devedor terá, também ele, interesse nessa reclamação pois verá, desse modo,
diminuir proporcionalmente o montante da sua dívida). Porém, importa distinguir a legitimidade para a
95
Tal convenção presumida constante do n.º 1 do art.º 672.º oferece benefícios
para o credor, permitindo-lhe o reembolso gradual do montante que lhe é devido sem ter
de aguardar pelo vencimento da obrigação garantida (podendo até evitar uma futura
execução do bem onerado), do mesmo passo que concede vantagens ao devedor,
possibilitando-lhe o pagamento faseado da dívida com menor esforço.342
A concessão ao credor pignoratício de um direito sobre os frutos do bem
empenhado pode ser justificada como uma manifestação da função satisfatória do
penhor, podendo aquele vender os frutos ou proceder à respectiva apropriação até ao
valor do seu crédito.343
O preceito acabado de enumerar, aparentemente linear ao atribuir ao penhor a
natureza de uma (presumida) anticrese mobiliária, suscita algumas questões.
Desde logo, parece que o pacto antricrético apenas será de presumir quando a
coisa for frutífera344 pois, caso contrário, não será de admitir ter sido intenção das partes
conceder ao credor pignoratício a faculdade de fazer frutificar a coisa:345 em suma, caso
a coisa empenhada já produzisse frutos na data da celebração do contrato de penhor, o
pacto de anticrese deverá presumir-se, recusando-se a operatividade da presunção na
hipótese inversa.346
Uma vez assente que o penhor se espraia de modo a envolver também os frutos
que se vencerem em consequência de uma relação jurídica existente na data da
constituição do penhor, coloca-se a dúvida de saber se os frutos abrangidos serão apenas
os que se vencerem enquanto subsistir o penhor ou aqueles que forem pagos durante
esse mesmo período (caso possam ser pagos antecipadamente).
Para esclarecer esta interrogação, urge recorrer aos critérios gerais de repartição
dos frutos consagrados no art.º 213.º, nos termos do qual o direito aos frutos naturais se
adquire no momento da percepção ou colheita dos mesmos (n.º 1),347 enquanto a
cobrança do capital do crédito empenhado (defendendo alguns que tal poder cabe apenas ao credor
pignoratício, ao passo que outros entendem assistir, conjuntamente, ao credor pignoratício e ao
constituinte da garantia) e dos juros do crédito empenhado (que, como se viu, é atribuída, em exclusivo,
ao credor pignoratício), sendo de concluir que a convenção anticrética consagrada no art.º 1868.º do CCE
não abrange a cobrança do capital, com a consequente impossibilidade de imputação do capital cobrado
ao montante da dívida de que é titular o credor pignoratício (mesmo na eventualidade de o crédito
empenhado se vencer antes do crédito garantido).
342
Salientando estes aspectos, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 28.
343
Neste sentido, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 150.
344
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 33, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit.,
Vol. I, pág. 692. Contra, Realmonte, Il pegno cit., pág. 641.
345
Aliás, a possibilidade de fazer frutificar uma coisa não frutífera (Vaz Serra, ult. ob. e loc. cit., dá o
exemplo do credor alugar a coisa objecto do penhor) não se deve presumir, uma vez que tal acto traduzir-
se-ia num uso da coisa empenhada, proibido, salvo casos excepcionais, pela alínea b) do art.º 671.º.
346
Citando Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 32, “No entanto, se é dada em penhor uma coisa,
que não é, por sua natureza, frugífera, mas que produz frutos (porque, por exemplo, está alugada e o
locatário fica depositário dela em nome do credor pignoratício), parece ser de presumir também que se
quis que os frutos da coisa servissem para satisfação do credor. Afigura-se, todavia, que só os frutos
constituídos podem ser afectados ao pagamento do credor, por só quanto a esses poder presumir-se que
se quis que ele de tais frutos se aproveitasse. Não lhe será, portanto, permitido dar a coisa em aluguer, a
fim de conseguir, assim, frutos civis dela. Esta faculdade só a terá, se se convencionar que o credor fica
com o direito de se pagar com os rendimentos da coisa dada em penhor (…). Se a coisa empenhada com
anticrese produz frutos civis, em consequência de uma relação jurídica (v.g., aluguer) existente na data
da constituição da anticrese, o credor tem, pois, direito a esses frutos.”. Contra, Gabrielli, Il pegno cit.,
pág. 151, ao admitir que também os bens frutíferos poderão ser também aqueles que assumam essa
natureza após a celebração do contrato de penhor.
347
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, págs. 205 e 206, os frutos pertencerão a
quem for titular do direito de fruição no momento da colheita. Antes dessa data, os frutos carecem de
autonomia, acompanhando a coisa que os produz.
96
partilha dos frutos civis é operada de forma proporcional à duração do direito, ou seja,
como se estes se vencessem e percebessem dia a dia (n.º 2).
Aplicando estas considerações gerais ao penhor, diremos que o credor
pignoratício com pacto anticrético terá direito aos frutos naturais que sejam colhidos
durante a vigência do seu direito, bem como aos frutos civis que se vençam durante o
mesmo período.348
Por outro lado e como ressalta das considerações anteriormente expandidas, não
distinguindo a lei, a respeito do penhor, entre frutos civis e naturais, dever-se-á
considerar que a presunção operará relativamente a uns e outros.349
Cumpre salientar, noutro âmbito, que o direito de apropriação dos frutos pelo
credor pignoratício abarca apenas os frutos provenientes directamente da coisa ou
direito empenhados, não incidindo sobre aqueles que resultem de relações jurídicas de
atribuição do gozo daqueles bens a terceiros por parte do credor ou do devedor.350
Cumpre, ainda, mencionar duas outras supostas restrições, sugeridas por VAZ
SERRA,351 à operatividade da presunção de pacto anticrético (quando o penhor tiver
sido constituído por terceiro ou quando o bem não seja entregue ao credor), adiantando
que nenhuma delas parece ter consagração legal.
Na primeira hipótese, acompanhamos o Ilustre Autor quando afirma ser
duvidoso presumir-se que o terceiro pretendeu afectar (também) os frutos à satisfação
gradual do crédito garantido (como que substituindo, desde logo, o devedor), devendo
antes considerar-se ter sido sua intenção tão somente conceder uma garantia ao credor
pignoratício, não sendo, por isso, o penhor constituído por terceiro assistido, em regra,
de anticrese.352
Pelo contrário, se o bem tiver sido entregue a um terceiro, não detectamos
qualquer impedimento à operatividade do pacto anticrético, uma vez que, para este
efeito, apenas assume relevância a determinação do sujeito que constituiu a garantia e
não daquele a quem foi concedida a guarda do bem empenhado.
Nem se objecte que a guarda da coisa pelo terceiro impede a percepção dos
frutos por parte do credor, pois aquele será forçado a permitir a recolha directa por parte
deste último.353
Conforme decorre do exposto, as partes são livres de afastar, através de acordo
expresso, a natureza anticrética presumida do penhor,354 estabelecendo o n.º 2 do art.º
348
Em termos semelhantes para o direito italiano, Rubino, Il pegno cit., pág. 248, afirmando que o credor
pode apropriar-se de todos os frutos ainda não recolhidos no momento da entrega da coisa, incluindo os
maturados antes de tal momento e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 150.
349
Do mesmo modo, Vaz Serra, ult. ob. e loc. cit.. Contra, Ciccarello, ob. cit., pág. 685, argumentando ser
necessário, para os frutos civis, uma manifestação de vontade das partes nesse sentido.
350
Assim, Realmonte, Il pegno cit., pág. 642, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 31 e Gabrielli, ob. cit., pág.
150 e 152 que dá o exemplo das licenças concedidas pelo constituinte sobre um direito de propriedade
previamente empenhado.
351
Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 31.
352
Vide Penhor in BMJ n.º 59, págs. 203 e 204. Deste modo, duas hipóteses seriam admissíveis: ou
estabelecer que os frutos continuarão a pertencer ao empenhador e só estarão afectados ao penhor aqueles
que estiverem em curso na data da realização do penhor e os posteriores - “Os frutos ou juros
continuariam a pertencer, livres do penhor, ao empenhador, até ao momento da realização do penhor e
só os frutos então fazendo parte da coisa e os posteriores (tratando-se de penhor de coisas) e os juros
correspondentes ao tempo posterior (tratando-se de penhor de créditos) seriam abrangidos pela garantia
pignoratícia” – ou, pelo contrário, os frutos seriam cobrados e ser-lhes-ia dado o mesmo destino do bem
empenhado (“autorizando-se o credor pignoratício a cobrar os frutos e constituindo-se com eles um
valor que oportunamente poderá servir para a satisfação do credor pignoratício”). O Autor inclina-se,
embora com dúvidas, para a segunda alternativa.
353
Assim para o direito italiano, Rubino, Il pegno cit., pág. 248, acrescentando que, em caso de inércia do
credor, o depositário tem a obrigação de recolher os frutos e de os entregar ao credor.
97
672.º que, salvo convenção em contrário, os frutos restituídos ao devedor não se
encontram abrangidos pelo penhor.355
VAZ SERRA, ao invés, propôs a solução oposta, considerando que os produtos
da coisa empenhada continuam onerados pelo penhor, conservando-os o credor
pignoratício como acessórios daquela coisa e sujeitos ao mesmo destino dela.356
Se de iure condito a posição de VAZ SERRA357 não pode obter acolhimento, de
iure condendo merece todo o nosso aplauso, pois não será de admitir que a renúncia
expressa do credor ao pacto anticrético seja de molde a admitir a renúncia presumida ao
exercício da garantia sobre partes do bem empenhado.
Nem se diga que, raciocinando desta forma, o penhor com pacto anticrético e o
penhor simples se confundiriam, uma vez que naquele o credor faz seus os frutos e
paga-se pelo seu valor e no penhor simples – acolhendo o entendimento de VAZ
SERRA e por nós sufragado – limita-se a conservá-los, juntamente com a coisa mãe,
com garantia até ao eventual vencimento e incumprimento da obrigação principal,
momento em que os executará nos mesmos termos em que lhe seja lícito excutir o bem
principal onerado.358
Noutra ordem se considerações, refira-se que a recolha dos frutos pelo credor
pignoratício constitui não apenas um direito, mas igualmente um dever, cuja fonte
reside na obrigação de administração do bem empenhado (cfr. art.º 671.º, alínea a)) e
que existe independentemente da resposta a dar à questão acerca do destino dos
frutos.359
Por outro lado, coloca-se a questão de saber se será necessária uma avaliação
dos frutos recolhidos pelo credor, sobretudo tratando-se de frutos naturais, parecendo
que essa avaliação se impõe com base nos mesmos motivos de protecção do devedor
que justificam a proibição do pacto comissório.360
354
Admite, no direito espanhol, o afastamento do pacto anticrético por vontade das partes, Arnau
Raventós, ob. cit., págs. 480 e 481, consentindo pactos que excluam a faculdade de imputação ou outros
que permitam apenas a compensação de juros com juros ou de juros com capital.
355
Para aqueles que, no direito espanhol, recusem a existência de um pacto anticrético presumido no que
toca aos frutos (restringindo o âmbito da presunção legal aos juros), coloca-se, em termos ainda mais
amplos, o mesmo problema de saber qual o destino a dar a esses frutos. Guillarte Zapatero, Comentario
cit., pág. 540, embora relatando opiniões em contrário (entendendo que o credor deve conservar tais
frutos, encontrando-se os mesmos abarcados pelo penhor enquanto acessórios do bem onerado, devendo
prestar conta deles no momento da extinção da garantia), opina que tais frutos deverão ser entregues ao
devedor, a quem os mesmos pertencem (sem prejuízo de eventual ressarcimento do credor pelos danos
decorrentes da sua colheita).
356
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 36 a 38. Se os frutos não puderem ser conservados devido ao risco de
deterioração, deverá o credor vendê-los e conservar o preço (no mesmo sentido, Baudry-Lacantinerie, ob.
cit., pág. 99).
357
Sustentando a mesma posição em face do direito francês, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 99
(posição esta que, ao não existir qualquer presunção do carácter anticrético, se aplica à generalidade dos
penhores, salvo no caso do penhor de créditos – cfr. art.ºs 2081.º CCF).
358
Diga-se, aliás, que a solução consagrada no n.º 2 do art.º 672.º vem, na prática, eliminar qualquer
direito do credor pignoratício aos frutos do bem empenhado, em claro contraste com as regras gerais em
matéria de atribuição daqueles (cfr. art.º 213.º).
359
Admitindo que, mesmo quando o penhor não seja acompanhado de anticrese, o credor não se pode
considerar eximido da sua obrigação de cobrar os frutos com diligência (excepto aqueles que o
empenhante possa colher) e responde mesmo por aqueles que se perderem por negligência sua, vide Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 36.
360
Afirmando a necessidade desta avaliação, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 150 e Realmonte, Il pegno cit.,
pág. 642 (que invoca o art.º 2798.º do CCI que estabelece que a adjudicação em pagamento dos bens
empenhados aos credor exige uma prévia avaliação destes, a realizar por peritos ou de acordo com o
preço corrente, caso a coisa tenha um valor de mercado).
98
Por último, VAZ SERRA nota que os frutos separados poderão ser objecto
autónomo de penhor,361 mas o mesmo não sucederá com aqueles não separados,362 uma
vez que relativamente a estes não poderá o credor obter a respectiva posse (excepto
quando tomar posse dos frutos separados). Se, pelo contrário, o credor tiver a posse da
coisa principal não parece haver obstáculo à constituição de penhor mesmo sobre estes
últimos, ao menos termos em que for admissível o penhor de coisa futura.363
Em nosso entender, o penhor sobre os frutos não separados será aceitável nos
precisos moldes em que o for o penhor de coisa futura, mesmo que o bem principal não
se encontre em poder do credor pignoratício.364
361
Caso esses frutos estejam compreendidos no penhor que recai sobre o bem principal, por força da
existência de um pacto anticrético, um direito autónomo de penhor sobre eles incidente apenas será
admissível nos termos em que o seja a constituição de mais de um penhor sobre o mesmo objecto.
362
Faggella, ob. cit., pág. 45, admite mesmo a dação em penhor dos frutos tendo em vista o momento
posterior da sua separação e recolha.
363
Partidário deste entendimento é Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 75. Negando a
empenhabilidade dos frutos pendentes, por força da sua consideração como imóveis, Puig Brutau, ob. cit.,
pág. 27, admitindo apenas que um contrato de penhor com este objecto produza apenas efeitos pessoais
entre os contraentes (nascendo o penhor apenas com a separação dos frutos - caso o credor seja já
possuidor da coisa principal – ou com a sua entrega ao credor)
364
Vide infra n.º 3.3 do Capítulo I.
365
Neste sentido, Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 30 e 31 e Marques de Carvalho, ob. cit., págs. 30 e 31.
366
A expressão é de utilizada por Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 215.
367
Designadamente Realmonte, Il pegno cit., pág. 639 e, principalmente, Rubino, Il pegno cit., pág. 201,
a propósito do art.º 2784.º do CCI, em tudo semelhante ao nosso art.º 666.º. Prosseguindo o seu
raciocínio, o Autor transalpino sustenta que as coisas incorpóreas poderão ser objecto de penhor se forem
direitos. Caso contrário, apenas serão empenháveis se constituírem objecto de um direito (citando como
exemplo a propriedade industrial), pois, tratando-se de coisas não objecto de um direito, não será
admissível o penhor, até porque estes bens são insusceptíveis de desapossamento.
99
Dentro dessa categoria, poderão ser objecto de penhor tanto as coisas não
consumíveis e infungíveis, consumíveis e fungíveis, como as consumíveis e
fungíveis,368 havendo até ordenamentos jurídicos, como o francês, após a reforma de
2006, que expressamente reconhecem e regulamentam as garantias sobre bens fungíveis
(art.º 2341.º)369 e sobre stocks de bens, sendo que, sobre estes últimos, a garantia podes
ser constituída nos termos do regime civilístico geral370 ou da lei comercial (cfr. art.ºs
L527-1 a L527-11, do Code de Commerce).371
368
No mesmo sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 64, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit.,
pág. 52, Puig Brutau, ob. cit., pág. 25 e Barrada Orellana, ob. cit., pág. 210 (admitindo que o penhor sobre
bens fungíveis não é tanto um penhor sobre um objecto, mas antes um penhor que recai sobre o valor
desses mesmos bens). Relativamente aos bens fungíveis, a sua individualização opera-se através da
entrega do bem ao credor, apenas permanecendo como fungíveis na medida em que o empenhante esteja
autorizado a dispor desse mesmo bem, formando o chamado penhor irregular – neste sentido, Cabrillac e
Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 537 (salientando igualmente a função de identificação dos bens
fungíveis empenhados desempenhada pela entrega do bem e realçando que apenas a partir dessa data de
deverá considerar constituído o penhor, Legeais, Sûretés et garanties du crédit, 2.ª Edição, LGDJ, 1999,
pág. 258). Admite também que o penhor possa recair sobre bens fungíveis e/ou consumíveis, Henri
Mazeaud, ob. cit., págs. 145 e 146, esclarecendo que, neste último caso, o credor “devient propriétaire de
l’object engagé et doit restituer une chose equivalente, non la chose elle-même, à moins que la loi ou le
contrat ne décident le contraire, auqul cas la chose perd son caractère de consompibilité“.
369
De acordo com o Groupe de travail relatif a la reforme du droit des sûretés – Rapport au Ministre de la
Justice, in http://www.ladocumentationfrancaise.fr/var/storage/rapports-publics/054000230/0000.pdf,
pág. 11, esta solução não põe em causa o princípio da especialidade do penhor (quanto aos créditos
garantidos e aos bens onerados). Em relação aos bens fungíveis, duas outras regras inovadoras foram
consagradas: por um lado, em caso de penhor sem desapossamento, o constituinte pode, existindo
convenção nesse sentido, alienar os bens onerados, desde que os substitua por outros idênticos e na
mesma quantidade (art.º 2342.º, embora não tenha sido acolhida na totalidade a proposta do grupo de
trabalho citado no início desta nota que previa, em caso de venda dos bens onerados, que “les droits du
créancier gagiste s’exerceraient sur le bien qui en serait la réprésentation”, solução esta mais explícita
quanto à consagração legal de uma verdadeira sub-rogação real); para além disso, nos penhores com
desapossamento (já nos penhores sem desapossamento e como notam Aynès e Crocq, Les sûretés 2009
cit., pág. 227, o constituinte mantém a propriedade dos bens onerados, mas deve conservá-los, excepto se
o credor autorizar a respectiva alienação, caso em que deverá substituí-los por outros da equivalentes e na
mesma quantidade) o credor tem o dever de manter separados os bens empenhados dos seus próprios bens
da mesma natureza (e, não o fazendo, empenhante tem o direito de reclamar a restituição do bem) e, caso
o contrato dispense o credor deste dever, este adquire a propriedade das coisas empenhadas, sem prejuízo
da obrigação de devolução de outras do mesmo valor e quantidade, ou seja, nesta última hipótese
estaremos perante um penhor irregular (cfr. art.º 2341.º) - este último inciso fornece, segundo Legeais,
Sûretés 2009 cit., pág. 364, um argumento a favor da qualificação do penhor de coisas fungíveis como um
verdadeiro penhor (embora dotado de um regime particular, uma vez que o credor adquire, pela própria
natureza dos bens onerados, poderes similares aos de um proprietário) e não como uma transferência da
propriedade com fins de garantia (menos convictos são Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., págs. 227 e
230, para quem, nesta hipótese, “Le gage se distngue alors difficilement du transfert de proprieté
fiduciaire, comme montre le cas du gage-espèces”, perguntando até se “le gage translatif de la propriété
décrit dans ce texte n’est pas le gage-espèces qualifié naguère de cession fiduciaire?”, acabando por
concluir que a diferença reside no modo de constituição (requerendo-se um documento escrito para o
penhor, mas não para a cessão). Em sede de execução, cada uma destas garantias obedece a um
procedimento distinto, porquanto o penhor, ao contrário da cessão, requer o recurso a uma das
modalidades (venda ou atribuição) previstas na lei: dada a similitude entre estas duas garantias, os
Autores entendem que as partes deverão esclarecer cabalmente qual das duas pretendem constituir.
370
A possibilidade de o penhor poder recair sobre conjunto de bens (vide infra n.º 3.5 do Capítulos I) e
sobre bens fungíveis torna viável a oneração de um stock de bens, pelo que parece desnecessária a
consagração, na lei comercial, de um penhor especial sobre esta categoria de bens - Legeais, Sûretés 2009
cit., pág. 375.
371
Nos termos do art.º L527-3, podem formar objecto deste penhor os stocks de matérias primas e
aprovisionamentos, produtos intermédios, residuais e finais, bem como as mercadorias que pertençam ao
devedor, sendo a respectiva natureza e valor determinados de acordo com a data do último inventário
(excepto se sujeitos a uma cláusula de reserva de propriedade). Semelhante possibilidade é igualmente
100
Este último regime, pelo seu carácter exaustivo,372 merece algumas
considerações adicionais, podendo ser concedido por qualquer pessoa colectiva ou
singular no exercício da sua actividade profissional, em garantia de financiamentos
outorgados por estabelecimentos de crédito,373 devendo a garantia tem que constar de
documento particular, conter, sob pena de nulidade, determinadas menções374 (art.º
L527-1) e ser inscrita, também sob pena de nulidade, num registo público (art.º L527-
4);375 os stocks empenhados não poderão tornar-se, mesmo em caso de incumprimento
prevista a propósito dos warrants constituídos pelos armazéns gerais, uma vez que o art.º L522-34 do
mesmo Code de Commerce dispõe que, quando tenham sido depositadas mercadorias fungíveis
relativamente às quais tenha sido entregue um recibo e um warrant, aquelas podem ser substituídas por
outras da mesma natureza, espécie e qualidade (devendo a substituição ser mencionada no recibo e no
warrant), transferindo-se o direito dos portadores daqueles documentos para as mercadorias substitutas.
372
Importa, porém, sublinhar que o conflito desta garantia com outras sobre os mesmos bens não se
encontra cabalmente resolvido pelo legislador. Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 379, enumera o conflito
com a reserva de propriedade (que, teoricamente, não se poderá dar, uma vez que o bem objecto de uma
reserva de propriedade não é passível de um penhor sem desapossamento: porém, na medida em que nem
sempre a reserva de propriedade é publicada, o conflito surgirá e deverá ser, segundo o Autor, resolvido
em benefício do proprietário reservado, sem prejuízo de um direito de indemnização a favor do credor
pignoratício contra o constituinte que não o tenha advertido da existência da reserva de propriedade), com
um penhor com desapossamento (resolvido pelo art.º 2340.º, n.º 2, do CCF, nos termos do qual o credor
titular de um penhor sem desapossamento anterior prevalece sobre um credor posterior, mesmo que este
seja detentor de um penhor com desapossamento) e com outro penhor com desapossamento (à partida
resolvido com base na prioridade de inscrição das diversas garantias, embora o facto de as diversas
garantias não serem inscritas no mesmo registo originar conflitos de difícil resolução).
373
Em termos mais gerais e de acordo com o art.º L521-1 do mesmo Código (também introduzido pela
reforma de 2006), o penhor comercial (considerando-se como tal o concedido por um comerciante ou não,
tendo em vista um acto de comércio) constitui-se e torna-se oponível a terceiros nos termos do art.º L110-
3 (de acordo com o qual, entre comerciantes e salvo disposição em contrário da lei, os actos de comércio
podem provar-se por qualquer meio). No entanto, o alcance geral destes preceitos não impede a
necessidade de observância de formalidades alternativas para os títulos de crédito (art.º L521-1, n.º 2, nos
termos do qual o penhor com este objecto pode, alternativamente, constituir-se através de um endosso
regular dos mesmos, indicando que os ditos valores foram dados em garantia), para as participações
sociais (art.º L521-1, n.º 3, norma que permite a constituição da garantia, sempre que a transmissão desses
bens se encontre sujeita a inscrição no registo da sociedade, através de uma transferência a título de
garantia a inscrever nesse mesmo registo) e, para os créditos empenhados, do cumprimento das regras
civilísticas do penhor de créditos (art.º L-521-1, n.º 4). Outra norma aplicável à generalidade dos
penhores comerciais respeita à execução da garantia (art.º L521-3) – sobre este último aspecto, vide infra
n.º 8 do Capítulo I.
374
A saber: a denominação “acte de gage des stocks”; a designação das partes; a menção que os actos se
encontram sujeitos a este regime específico contido nos art.ºs L527- 1 a L527-11 do Code de Commerce;
o nome da seguradora que garante os riscos de incêndio e destruição dos bens onerados (cfr. art.º L527-6,
n.º 2); a identificação do crédito garantido; a duração da relação de garantia; e, especialmente, “une
description permettant d’identifier les biens présents ou futurs engagés, en nature, qualité, quantité et
valeur ainsi que l’indication du lieu de leur conservation”.
375
Mais precisamente no registo existente na secretaria do tribunal do local no qual o devedor possua o
seu domicílio ou sede social, inscrição esta que (sob pena de nulidade do penhor) deverá ser efectuada no
prazo de 15 dias a contar da formação do acto constitutivo da garantia. É com base na data de inscrição
que se resolve o conflito entre os diversos credores pignoratícios (em caso de inscrição no mesmo dia, os
credores concorrem proporcionalmente). A inscrição da garantia obedece ao disposto nos art.ºs R527-1 a
R527-11 do mesmo Código (nos termos deste regime, para inscrever a sua garantia, o credor envia ao
secretário do tribunal de comércio da sede do constituinte ou do seu domicílio um dos originais do acto
constitutivo do penhor – sendo comprovado através da inscrição num registo especial, que pode assumir a
forma electrónica, mediante a atribuição de um número especial -, juntamente com um requerimento, em
duas vias, do qual devem constar a identificação das partes, a data da constituição do penhor, o facto de
incidir sobre um stock, o montante do crédito garantido – a data da respectiva exigibilidade e taxa de juro
e, para os créditos futuros, a indicação dos elementos que consintam a sua identificação -, uma descrição
dos stocks presentes ou futuros empenhados – com referência à sua natureza, qualidade, quantidade e
valor, bem como, se for o caso, a menção que a quantidade de stocks empenhados diminui na proporção
101
da obrigação garantida, propriedade do credor (art.º L527-2);376 a garantia transfere-se,
de pleno direito, dos stocks alienados para aqueles que os substituírem (art.º L527-5, n.º
2);377 o devedor obriga-se a conservar os stocks, em quantidade e qualidade (art.º L527-
6, n.º 1)378 e, caso o estado dos stocks aparente uma diminuição de 20% do seu valor, o
credor pode intimar o devedor para, em alternativa, restabelecer o montante da garantia,
ou pagar uma parte do débito proporcional à diminuição da garantia379 (e, em caso de
incumprimento da intimação, exigir imediatamente o pagamento total da dívida, ainda
que não vencida – art.º L527-7, n.º 3).380
Como facilmente se compreende, quando o penhor recaia sobre bens fungíveis e
consumíveis surgem determinadas interrogações, designadamente no que concerne à
legitimidade do credor para substituir ou dispor do bem empenhado381 ou aos termos em
que se processa o cumprimento, por parte do credor pignoratício, do dever de
conservação do bem onerado que sobre ele impende.382
Relativamente às coisas fungíveis, nomeadamente quando o objecto da garantia
consista em dinheiro,383 coloca-se o problema de saber se existirá aqui um verdadeiro
da liquidação do crédito garantido - e o local de conservação dos stocks empenhados e, se for o caso, a
designação do custode: a menção da constituição da garantia será inscrita nos duplicados – com indicação
do número de inscrição e da data em que foi efectuada – ficando uma das vias para o registo e sendo a
outra remetida ao requerente, devendo ainda o registador possuir um ficheiro geral electrónico, ordenado
alfabeticamente com o nome dos devedores e a indicação dos respectivos números das inscrições
respeitantes a cada um deles. As inscrições, regularmente efectuadas, produzem efeitos na data em que
forem realizadas, por um período de 5 anos, renovável)
376
Não deixa de parecer incongruente que o legislador, na mesma reforma, levante a proibição do pacto
comissório no regime geral do penhor (cfr. art.º 2348.º do Code Civil) e a mantenha para o penhor de
stocks, tanto mais atenta a natureza fungível dos bens que integram estes stocks (salientam esta
incongruência Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 379 e Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010, cit., pág.
519).
377
No que constitui, ao menos no juízo de alguns, uma consagração legal inequívoca da sub-rogação real
– neste sentido, Legeais, Sûretés 2009 cit., págs. 377 e 378 e Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit.,
pág. 623.
378
Outras obrigações do devedor são as de segurar os bens empenhados contra o risco de incêndio e
destruição (n.º 2 do mesmo preceito); consentir, a qualquer momento, a inspecção do estado dos stocks
por parte do credor, a expensas deste (art.º L527-5, n.º 3); ter à disposição do credor um documento
atestando as condições dos stocks empenhados e a relação das operações que sobre os mesmos incidam
(art.º L527-7, n.º 1); e não diminuir o valor dos stocks (art.º L527-7, n.º 2).
379
Independentemente de qualquer incumprimento por parte do devedor, as partes podem acordar, ab
initio, que uma parte dos stocks empenhados diminua em medida proporcional à da liquidação da dívida
garantida (art.º L527-8). Por outro lado, em caso de pagamento antecipado do crédito garantido, o
devedor não terá que pagar os juros que se vencessem até à data acordada para o cumprimento da
obrigação (art.º L527-9, n.º 1). Pelo contrário, se o credor recusar as ofertas de pagamento do devedor,
este pode liberar-se consignando em depósito a sua prestação (art.º L527-9, n.º 2). Para além disso, a
protecção do credor é ainda assegurada pela necessidade de segurar bens contra os riscos de incêndio e
destruição, pela possibilidade que a lei lhe confere de verificar o estado dos stocks e pelo dever imposto
ao constituinte de manter à disposição do credor a contabilidade dos stocks dados em garantia.
380
No que respeita à execução da garantia, aplicam-se as regras previstas para o penhor civil (cfr. art.º
L527-10), com excepção do preceito que levanta a proibição do pacto comissório.
381
Admitindo que o credor pignoratício possa substituir um bem empenhado fungível ou consumível por
outro, passando a garantia a recair sobre este último, Jobard-Bachellier, ob. cit., pág. 57 e Philippe Théry,
Sûretés et publicité foncière, 2.ª Edição, PUF, 1998, pág. 295.
382
Sobre este assunto, vide infra n.º 9.2.3 do Capítulo I.
383
Aludia já esta modalidade de penhor Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 30, noticiando que a mesma era
geralmente apelidada de “cautionnement” (naturalmente que o problema do penhor irregular - e da sua
distinção face ao penhor regular - apenas se coloca relativamente às espécies monetárias com curso legal
e não quanto àquelas fora de circulação, as quais apenas poderão ser objecto do penhor regular, nos
termos comuns). Posição sui generis, a este respeito, é a de Finez Ratón, Garantías sobre cuentas y
depósitos bancários. La prenda de créditos, Bosch, 1994, págs. 19 e 20, para quem o dinheiro, na maior
102
penhor, atendendo à faculdade ordinariamente reconhecida ao credor pignoratício de
dispor dos concretos bens onerado.384
Este tipo de garantias – sobretudo quando incidam sobre dinheiro - é
normalmente constituído para assegurar obrigações de natureza não pecuniária – até
porque, para as outras, o mais provável é que o dinheiro seja utilizado para extinguir a
obrigação principal e não para garantir o seu cumprimento -, podendo até servir para
balizar a responsabilidade máxima de eventuais danos, ficando o incumprimento da
obrigação principal, até esse limite, assegurado pela quantia previamente entregue.385
Resumidamente, no regime comum do penhor (a que podemos chamar regular),
o credor, uma vez cumprida a obrigação pelo seu devedor, assume o dever de devolver
ao constituinte precisamente o objecto dado em garantia (cfr. art.º 671.º, alínea c)), daí
poder afirmar-se que existe uma restituição de coisa específica.386
Ora, quando a garantia recaia sobre um bem fungível387 – cujo exemplo
paradigmático é o dinheiro – o credor, uma vez cumprida a obrigação por parte do seu
devedor, normalmente não irá restituir exactamente os bens que lhe foram entregues,
mas antes outros da mesma natureza e quantidade, pelo que, neste caso assistimos a
parte dos casos, constitui uma unidade de medida e valor dos demais bens, não passando de uma inscrição
numa conta bancária (sendo impróprio falar de propriedade de dinheiro), nem fazendo sentido qualificá-lo
como bem fungível ou infungível, mas sim como “un bien juridicamente concebido como una unidad
ideal, cuya capacidad de sustitución no viene determinada por un criterio cualitativo, como sucede en las
demás cosas o bienes fungibles, sino que dicha potencia de sustitución es la más absoluta al serlo de
todas las demás cosas, bienes y servicios”.
384
Acerca da natureza jurídica do apelidado penhor irregular, vide infra Capítulo IV. Apesar de
normalmente a questão se centrar nos casos em que o objecto originário do penhor seja um bem fungível,
a distinção entre penhor regular e irregular também poderá colocar-se a respeito daqueles casos em que o
penhor sobre dinheiro resulte de sub-rogação (como sucederá, por exemplo, quando após a venda do bem
empenhado, o direito do credor pignoratício se transfere para o produto dessa alienação ou quando, no
penhor de créditos, o credor pignoratício cobrar o crédito empenhado e este tiver por objecto dinheiro).
Nestas hipóteses, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 104, sustenta estarmos perante um penhor
regular, não se transmitindo a propriedade do dinheiro para o seu detentor, muito embora (ao contrário do
que sucede no regime geral do penhor de coisas) o credor não tenha que realizar o valor da garantia
através da venda, operando-se a satisfação do seu direito através da apropriação do dinheiro (no entanto, o
mesmo Autor defende que esta apropriação apenas será automática – no sentido de a única condição para
a sua admissibilidade ser o vencimento do penhor – quando o penhor haja sido constituído pelo próprio
devedor. Tendo sido constituído por terceiro, o devedor deverá ser alertado de que, não pagando a dívida,
o credor se pagará com o penhor).
385
Realça este aspecto, Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 724.
386
Enfatizando o facto de as garantias que incidam sobre bens infungíveis e/ou consumíveis obrigar à
conservação daqueles efectivamente entregues, vide Puig Brutau, ob. cit., pág. 25. Precisamente tendo em
vista a eventual restituição ao constituinte da garantia, a alínea b) do mesmo art.º 671.º veda ao credor
pignoratício o uso da coisa sem o consentimento do autor do penhor, excepto se o uso for indispensável à
respectiva conservação.
387
Não se nega, embora a hipótese seja menos frequente, a possibilidade de constituição de um penhor
regular sobre bens fungíveis, através da individualização dos concretos bens empenhados –
designadamente por via da sua inscrição numa conta, como sucede com os valores mobiliários - muito
embora também neste caso se suscitem dúvidas acerca da natureza jurídica desta garantia (penhor de
créditos ou penhor de bens escriturais: a favor desta segunda alternativa, Aynès e Crocq, Les sûretés: la
publicité foncière, Defrénois, 2004, pág. 202). Segundo Artuto Dalamertello, Pegno irregolare, in
Novissimo Digesto Italiano, Vol. XII, 3.ª Edição, 1957, pág. 800, a diferença principal entre o penhor
regular e o irregular assenta no respectivo objecto, ou melhor, “nella diversa considerazione che parti
fanno dell’oggetto stesso: che deve essere un bene infungibile o considerato in specie invidua se
fongibile, nel pegno regolare; mentre deve essere un bene fongibile e considerato come tale, coiè,
sostituibile con il tantundem eiusdem generis, nel pegno irregolare”.
103
uma devolução de coisa genérica,388 sendo até legítimo presumir-se o carácter irregular
das garantias que incidam sobre este tipo de bens.389
Costuma afirmar-se, por isso, estarmos perante um “penhor irregular”,390
precisamente porque os bens entregues em garantia ao credor pignoratício confundir-se-
ão com outros existentes no respectivo património, sendo a eventual obrigação de
restituição do equivalente cumprida com outros de quantidade e valor equivalentes.391392
388
De facto, não tendo o credor a obrigação de devolver ao concedente da garantia os concretos bens que
lhe foram entregues, poderá usá-los – neste sentido, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 28 e 29.
389
Apenas existindo obrigação de restituir as concretas espécies entregues se tal tiver sido expressamente
estipulado - neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 102 e Marques de Carvalho, ob. cit.,
pág. 46. No entanto, quando exista tal convenção, o penhor (regular) será válido, muito embora possam
surgir dúvidas relativamente ao modo de satisfação do credor (designadamente porque, sendo o dinheiro
um bem invendável por natureza, se questiona até que ponto será legítimo ao credor pagar-se com o
dinheiro que lhe foi entregue em garantia, pois esta auto-satisfação pode chocar com a proibição do pacto
comissório – admite este modo de satisfação o Autor primeiramente citado, considerando que a venda é
apenas um dos meios ao dispor do credor para a satisfação do seu crédito, até porque o Código de Seabra
já permitia ao credor ficar com a coisa empenhada, mediante avaliação). Negando a existência de tal
presunção e considerando que a natureza regular ou irregular do penhor deve ser averiguada através da
interpretação do contrato e das circunstâncias que rodearam a sua celebração, vide Puig Brutau, ob. cit.,
págs. 25 e 26 (pelo contrário, admitindo tal presunção no direito espanhol, Jordano Fraga, Prenda regular,
prenda irregular y prenda de créditos, in ADC, 1990, págs. 315 e 316 e Albaladejo, Derecho Civil III cit.
cit., pág. 724, (ressalvando ambos a possibilidade de tal presunção ser ilidida em resultado da
interpretação das declarações negociais das partes).
390
Neste sentido, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 235 e 236 (afirmando mesmo
que “Não podem ser objecto de penhor, coisas fungíveis, como o dinheiro, a não ser que por via
convencional se estabeleça a individualização (…). Quando assim é estaremos perante um penhor
irregular (… ) que, mau grado a denominação (…) não constitui um verdadeiro penhor”), definindo esta
figura como a “um contrato de garantia, qualificado pelas partes como penhor, que tem por objecto bens
fungíveis cuja titularidade passa para o credor, obrigando-se este a retransmitir o objecto da garantia,
logo que a obrigação for cumprida, ou, então, executando-o (…) na eventualidade de incumprimento”
(ob. cit., pág. 301), Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, ob. cit., pág. 100 (escrevendo que “Tanto el dinero
como los instrumentos financieros son en general fungibles. La entrega de los títulos en garantia no es
posible, en el sentido de que esa entrega dé lugar al nacimiento de un derecho menor de garantía, porque
al consistir en bienes fungibles, la transmisión de la tenencia traspasa la propiedad. Se cumple entonces
con la función de garantía, pero mediante el traspaso de la propriedad”) e Harry Westermann, Harm
Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1481 e 1482 (depois de
declararem a empenhabilidade de coisas consumíveis e fungíveis, os Autores sustentam que “quando se
entrega dinero en garantía se hace transmitiendo la propiedad, y con la obligación de devolver la misma
cantidad una vez que el crédito garantizado quede satisfecho (es la llamada prenda irregular”),
mandando aplicar a esta figura – salvo no que toca à distinção entre a acção real de devolução e a acção
obrigacional repetitória – o regime geral do penhor, embora, em alternativa à execução do penhor, o
credor pignoratício possa “apropiarse simplemente de la cantidad necesaria para satisfacer su crédito”).
391
Negando a autonomia, face ao regime geral do penhor, da figura do penhor irregular, Jacques Ghestin
e outros, ob. cit., págs. 216 a 219. Para estes Autores, a necessidade de protecção do constituinte da
garantia impõe a sujeição do penhor de bens fungíveis (maxime de dinheiro), ao regime geral do penhor,
deste modo impedindo a produção do efeito translativo da propriedade dos bens concedidos em penhor,
assim como a sua apropriação automática e definitiva no momento do incumprimento da obrigação
garantida (muito embora os Autores admitam que a jurisprudência reconhece, em determinados arestos, a
produção do efeito translativo da propriedade – Acórdão da secção civil da Corte de Cassação de 16 de
Junho de 1936 e, mais explicitamente, no Acórdão de secção comercial da Corte de Cassação de 17 de
Maio de 1994 – bem como o afastamento da proibição do pacto comissório, assim admitindo que o credor
se aproprie das coisas dadas em penhor em caso de incumprimento da obrigação garantida – Acórdão da
secção comercial da Corte de Cassação de 9 de Abril de 1996). Assim, consideram o penhor irregular
como um mito, que nem o carácter fungível do seu objecto poderá justificar, fundamentando a não
passagem da propriedade para o credor com o facto de este não deter o poder de usar a coisa empenhada:
“Ce n’est pas parce que le créancier n’entrave pas l’exécution des obligations mises à sa charge en usant
de la chose gageé voire, si elle est fongible, en en disposant qu’il acquiert de doit d’user, de disposer. Le
droit réel accessoire du créancier gagiste n’a pas pour finalité de permettre à ce dernier de retirer
104
Importa, contudo, salientar que nem sempre a entrega de bens fungíveis
determinará, por si só, a constituição de um penhor irregular e, inversamente, a entrega
de bens determinados apenas implicará o nascimento de tal garantia quando assim for
expressamente previsto pelas partes (fungibilidade convencional).393
São incluídas, tradicionalmente, no âmbito do penhor irregular os bens dotados
de uma fungibilidade absoluta, cujo exemplo paradigmático é o dinheiro, sendo diversas
as utilizações práticas da figura, como seja no caso de a garantia incidir sobre depósitos
bancários, cauções ou a entrega de quantias em dinheiro a outro título.394
Naturalmente que o dinheiro e outros bens fungíveis podem ser objecto de um
penhor regular, bastando para tal se individualizem ou especifiquem os concretos bens
sobre os quais a garantia incide, assim os transformando em convencionalmente
infungíveis.395
immédiatemente tout ou partie des utilités potentielles de la chose. Il s’agit bien plutôt d’un droit sur la
valeur du bien qui est appelé à s’exercer ultérieurment, lorsque la creánce garantie deviendra exigible.”
(negando também que no penhor irregular se produza a transferência da propriedade do bem empenhado
para o credor, Piedlièvre, Les sûretés, 3.ª Edição, Armand Colind, 2001, pág. 177)..
392
A jurisprudência italiana define o penhor irregular como “quel contratto con cui il garante consegna e
atribuisce in proprietà al creditore denaro o beni aventi un prezzo corrente di mercato, e per ciò reputati
fungibili con il denaro, dei quali l’accipiens deve restituire il “tantundem” (solo) se e quando interviene
l’adempimento della obbligazione garantita; restringendosi altrimenti l’obbligazione restitutoria alla
eventuale eccedenza del valore dei beni transferiti in proprietà, rispetto al valore della prestazione
garantita rimasta inadempiuta.” – Gabrielli, Il pegno cit., pág. 176. Já para Arturo Dalmartello, Il pegno
irregolare (o cauzione in senso stretto), in BBTC, 1950, pág. 317, estaremos perante um penhor irregular
“ogni qual volta il debitore consegna al creditore danaro, merci o titoli che non son stati individuati o
per i quali sia stata conferita al creditore la facoltà di disporre”, considerando como elemento
caracterizador do instituto a transferência da propriedade do bem empenhado para o credor e contornando
as diversas dúvidas a esse respeito, seja por considerar que a lei apenas atribui ao credor pignoratício o
direito de dispor dos bens empenhados e não a propriedade dos mesmos (contrapondo que o poder de
disposição, salvo casos muito excepcionais, pertence ao titular do direito e que, no caso do penhor
irregular, nada levará a concluir que as partes pretendam transmitir apenas o poder de disposição), seja
por entender que a transferência da propriedade consubstancia um negócio fiduciário ou, caso assim não
se entenda, um penhor de coisa própria, este último legalmente inadmissível (argumentando que esta
crítica cai numa petição de princípio), seja, finalmente, notando estarmos perante um penhor regular,
porquanto o empenhante não perde o direito de propriedade sobre os bens empenhados, sofrendo apenas
esse direito uma conversão objectiva, no caso de o credor dispor desses bens, passando a incidir sobre o
tantundem e sendo o objecto do penhor sobre esse crédito à restituição (salientando que tal conversão do
direito pressuporia a separação da porção do tantundem objecto de devolução, separação essa impossível
quando se trate de dinheiro). O mesmo Autor salienta ainda que esta transferência da propriedade (e do
correspondente poder de disposição) dos bens empenhados para o credor pignoratício se produz como um
efeito directo do contrato de penhor e não que deste resulte uma mera autorização para que o credor
possa, em razão da confusão no seu património, apropriar-se dos bens em questão sem cometer qualquer
ilícito (não só por ser a solução que melhor corresponde à vontade presumível das partes, como também
porque a alternativa conflituaria com a proibição do pacto comissório, pois a propriedade poderia ser
adquirida pelo credor “solo in forza di un successivo e unilaterale atto di appropriazone, autorizzato dal
cauzionante”).
393
Neste sentido, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 196. Em nosso entender, ao menos quando se trate de
bens objectivamente fungíveis, a entrega do bem onerado ao credor fará presumir a natureza irregular da
garantia constituída. Em face do direito espanhol, Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 506 e 507,
entendem que a natureza regular ou irregular de um penhor que recaia sobre bens fungíveis deve ser
solucionada mediante interpretação da real intenção das partes, no momento da constituição da garantia
394
Enumera estas utilizações da figura do penhor irregular Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 186
(aludindo, no âmbito das cauções, às que sejam prestadas por inquilinos ou por empreiteiros de obras
públicas e, no que respeita a outras situações, ao chamado penhor de garrafas - Flaschenpfand – através
do qual se garante a devolução das garrafas usadas pelos clientes de cervejeiros e hoteleiros no âmbito da
sua actividade, através da entrega, a título de garantia, de pequenas quantias em dinheiro).
395
Mencionam esta possibilidade Jordano Fraga, ob. cit., pág. 307 e segs. (salientando que a
especificação do dinheiro se poderá fazer através da sua colocação num recipiente selado, da referência
105
Relativamente às garantias ditas irregulares, a principal interrogação que se
suscita prende-se com a verificação ou não de uma transferência da propriedade dos
bens onerados para o credor pignoratício, o que influirá a própria qualificação da figura,
contrapondo-se o entendimento de uma parte da doutrina que nega a verificação de tal
transmissão da propriedade396 (chamando alguns à colação o regime do usufruto - cfr.
art.º 1451.º, n.º 1 e 2 -,397 qualificando outros a fattispecie como um penhor de
créditos).398
numérica das notas ou da respectiva marcação), Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1877 (exemplificando
com a hipótese de o devedor entregar ao credor, num envelope fechado e contendo a sua concreta
identificação, uma quantidade de dinheiro, com a obrigação de, em caso extinção da garantia, serem
devolvidas as exactas notas ou moedas que haviam sido entregues) e Serrano Alonso, ob. cit., pág. 264
(falando de uma fattispecie em que “se entrega una determinada cantidad de dinero sobre cerrado y
claramente identificada de forma que el acreedor cumplida la obligación principal debe devolver
exactamente lo recibido y que da lugar a una prenda ordinaria”). No mesmo sentido, Arturo
Dalmartello, Pegno irregolare cit., pág. 800.
396
Entre nós, Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 24 a 30, por entender que, não obstante o legislador
reconhecer a fungibilidade do dinheiro, não parte desse facto para abstrair da propriedade sobre o mesmo
(sem prejuízo de se concluir do título constitutivo da garantia que o objecto empenhado é a própria
quantia depositada). À objecção segundo a qual o depositante, apesar de ter transferido o dinheiro para a
instituição bancária, continua a deter de um poder disposição sobre esse bem (apenas subordinado à
exigência da respectiva restituição), assim permitindo que o penhor tivesse por objecto um bem futuro
certo (além de, no caso do penhor bancário e em razão da desnecessidade de entrega do bem, desaparecer
o obstáculo do desapossamento, normalmente invocado como obstáculo à constituição de penhores sobre
bens futuros, ou seja, permitindo-se a constituição de um penhor sobre o dinheiro que o depositante venha
a dispor quando exerça o seu direito à restituição do depositado), responde o Autor argumentando que a
necessidade de o empenhante possuir legitimidade para empenhar o bem dado em garantia (art.º 667.º, n.º
1) se funda na susceptibilidade de execução do bem, mas, tratando-se de bens fungíveis como o dinheiro,
a existência de uma equivalência total entre o objecto empenhado e o valor da venda impede o assegurar
da satisfação do crédito garantido através dessa venda (saliente-se que o Autor aplica estas conclusões,
quer no caso de o credor pignoratício ser um terceiro estranho ao depósito, quer no caso de ser a própria
instituição bancária depositária). Ainda mais longe vai Leduc (apud Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il
pegno cit., págs. 100 e 101), para quem está na natureza do penhor que o credor tenha que devolver o
objecto inicialmente empenhado, ainda que este seja fungível (apenas se excepcionando os bens
perecíveis ou consumíveis, mas, neste caso, a possibilidade do credor dispor do bem onerado tem uma
natureza cautelar e não translativa), concluindo que o penhor de coisas genéricas apenas produz a
transferência dos bens onerados quando a vontade das partes assim o determine (o que sucederá quando,
incidindo sobre coisas genéricas, o credor disponha de coisas idênticas no seu próprio património e não se
acorde nenhum modo específico de armazenamento dos bens empenhados), caso em que estaremos
perante uma propriedade-garantia e não perante um penhor (pelo que um penhor translativo da
propriedade é, na sua opinião, um mito).
397
De acordo com este preceito, quando o usufruto recaia sobre coisas consumíveis, pode o usufrutuário
servir-se delas ou aliená-las, ficando obrigado a, findo o usufruto, restituir o seu valor, no caso de as
coisas terem sido estimadas; ou, se tal não se verificar, a entregar outras do mesmo género, qualidade e
quantidade ou do valor destas na conjuntura em que se terminar o usufruto (n.º 1), não implicando, em
qualquer caso, a transferência da propriedade dos bens para o usufrutuário (n.º 2). Nega que este
argumento possa ser utilizado para negar a transferência da propriedade no penhor irregular Hugo Ramos
Alves, ob. cit., pág. 200, nota 637, alegando que neste último caso e à semelhança do depósito irregular “é
a própria fungibilidade do objecto, traduzida na sua confundibilidade com o património do accipiens que
dita a transmissão da propriedade. Esta opera com a celebração do contrato, enquanto no usufruto de
coisas consumíveis estamos perante uma situação em tudo idêntica até ao momento em que a coisa é
consumida (…). Acresce ainda que o escopo de ambas é diferente: o penhor irregular persegue fins de
garantia e o quase usufruto visa oferecer o gozo da coisa. A própria natureza das coisas dita regimes
diferentes”.
398
Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 24 a 30, depois de qualificar o penhor de depósitos bancários como
um penhor de créditos, esclarece que o elemento característico do depósito bancário é a transferência da
propriedade dos bens depositados, pelo que “o penhor que incide sobre saldos bancários não pode
juridicamente constituir um penhor irregular, pois por mais fiabilidade que a instituição de crédito possa
ter, o dinheiro e um crédito que tenha por objecto dinheiro não são realidades iguais”.
106
Pelo contrário, os que advogam a existência de tal transferência tendem a
agrupar as garantias sobre dinheiro (e bens fungíveis em geral) em duas categorias,
consoante a propriedade dos bens onerados seja ou não transmitida ao credor,
apelidando as primeiras de “sûreté-proprieté” e enquadrando as segundas no domínio
do penhor.399
399
Dá conta deste entendimento, Dominique Doise, Nantissement de monnaie, de comptes et de valeurs
mobilières, in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11, pág. 30 e segs., especificando que, de
acordo com esta concepção, a transferência da propriedade implicaria que as prerrogativas do credor
pignoratício seriam absorvidas pelos mais amplos poderes conferidos pela propriedade e, no plano
inverso, a transferência para o credor da posse dos bens empenhados sem a respectiva propriedade
consentem a conjugação do penhor com o direito de propriedade, que permanece no devedor. O Autor,
porém, sustenta que a dificuldade de qualificação (decorrente das dúvidas quanto à natureza jurídica do
dinheiro: se quanto ao dinheiro fiduciário poucas dúvidas restam quanto à sua natureza corpórea, o
mesmo não se poderá dizer da moeda escritural, relativamente à qual é defendido o seu carácter corpóreo
– dado que a sua fungibilidade absoluta permite a assimilação à moeda fiduciária, efectuando-se a entrega
através do mecanismo da tradição ficta, nomeadamente mediante a transferência de uma conta para outra
- e incorpóreo, como um saldo de conta bancária, ou melhor, como o crédito do depositante face ao banco
depositário) não pode ser solucionada unicamente através do critério da transferência dos elementos
materiais da propriedade, cumprindo também analisar a natureza corpórea ou incorpórea do objecto
onerado: nesta conformidade, conclui que as garantias que recaiam sobre bens corpóreos produzem
normalmente como consequência a transferência da respectiva propriedade (em razão da sua natureza
fungível e consumível); ao invés, quando incidam sobre bens incorpóreos (como no caso de contas
bancárias e valores mobiliários desmaterializados), não existirá transferência material e, por isso, não
estaremos perante “propriétes-sûretés”. Apesar disso, o Autor reconhece que o legislador consentiu a
constituição de um penhor sobre moeda fiduciária, contornando as críticas de acordo com as quais tal
figura originaria a transferência da propriedade para o credor, o que faria extravasar a figura do âmbito do
penhor, não só porque (já para não falar o argumento que o penhor seria um depósito nas mãos do credor
e, por isso, este teria que devolver os concretos bens que lhe houvessem sido entregues, argumento este
que cai pela base a partir do momento em que a lei admite o depósito irregular, em que o depositário
adquire a propriedade do bem depositado, sem prejuízo da obrigação de restituir ao depositante uma
quantidade idêntica de bens da mesma espécie) esta garantia pressupõe que o seu constituinte permaneça
proprietário do bem onerado (contrapondo-se que o terceiro depositário do dinheiro apenas vê transferido
o corpus relativo ao direito de propriedade – decorrente da sua natureza fungível -, faltando-lhe o animus
de proprietário e tendo apenas o animus detinendi: simplesmente, em razão do carácter consumível e
fungível do dinheiro, o detentor tem um direito de disposição típico do direito de propriedade – em
termos análogos ao que assiste ao mutuário de bens consumíveis ou, em geral, ao credor com penhor
sobre bens fungíveis - insuficiente para lhe conferir um direito de propriedade absoluto), mas também
porque a produção de juros eliminaria o alcance de um penhor sobre dinheiro (alegando que “s’agissant
d’une somme d’argent qui devait être rendue, non dans les mêmes espèces, mais en même valeur, les
stiupulations accessoires relatives au payment des intérêts (…) n’étaint pas contraíres à l’essence du
contrat de nantissement”, nem sequer constituindo um contra-senso o pagamento de juros a alguém que já
não é proprietário do bem, uma vez que “la rémunération consentie au constituant d’une somme remise
par provision n’étais pas incompatible avec le carctère de paiement par provision reconnu au versement
litigieux”) e, finalmente, em razão da proibição do pacto comissório (afasta pela jurisprudência
dominante, porquanto não se detecta qualquer dificuldade quanto à fixação do preço, assim eliminando os
riscos de aproveitamento do devedor subjacentes àquela interdição). Cumpre, ainda, esclarecer que a
entrega de dinheiro pode configurar um pagamento antecipado com finalidade solutória (destinado a
extinguir uma dívida) – quando estejamos perante uma dívida actual ou a termo – ou a constituição de um
penhor, caso a dívida a garantir seja meramente eventual ou futura (isto é, “la dette que le versement de la
somme d’argent est censé acquitter par anticipation est future et éventuelle. Sa naissance dépend (…)
d’un élément intrinsèque à la convention, essentiel à cette dernière, à savoir l’inexécution par le débiteur
de ses propres engagements”): a diferença entre a qualificação como pagamento antecipado condicional
ou constituição de garantia produz uma consequência importante, dado que no primeiro caso o credor
adquire o preço desde o dia do pagamento (em virtude da eficácia retroactiva da condição), enquanto no
segundo o pagamento apenas se torna efectivo no momento do incumprimento contratual do devedor. Em
termos análogos, para o direito espanhol, Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 723 e 724, qualificando
como penhor comum aquele em que o bem onerado, embora fungível, seja entregue ao credor em
garantia, com a obrigação de restituição desse mesmo objecto em caso de extinção da obrigação
107
Mas ainda que se admita a existência de tal transferência, importa determinar se
essa transmissão da propriedade se produz como consequência directa da entrega dos
bens ao credor (ou seja, como efeito imediato do negócio constitutivo da garantia) ou,
pelo contrário, resulta da mera confusão dos bens onerados com o património do credor
(isto é, como consequência apenas indirecta do negócio de garantia e, mais
precisamente, dos efeitos que ele produz).400
E, sobretudo, a adopção deste entendimento, tendo em conta a inadmissibilidade
dos negócios abstractos e a incapacidade da mera vontade das partes para justificar tal
transferência,401 obriga à averiguação de qual a causa dessa transmissão,402 sendo
diversas as respostas a esta interrogação, limitando-nos a enumerar as principais.
Uma das que obtém maior aprovação é a chamada causa credendi (segundo a
qual a transferência da propriedade das coisas empenhadas será efectuada pelo devedor
no intuito de adquirir um contra crédito face ao seu credor e, em caso de incumprimento
da obrigação principal, compensar-se-ia com o crédito à restituição do tantundem,
adquirido pelo devedor principal aquando da entrega do bem no momento da
constituição do penhor irregular403 (dúvidas surgindo relativamente ao carácter
convencional ou legal da compensação),404 posição esta que não está isenta de
assegurada (objecto esse que terá de ser devidamente identificado); e reputando de uma garantia (não
pignoratícia) com recurso à transferência da propriedade do bem onerado os casos em que se convencione
a restituição de um objecto equivalente ao inicialmente onerado.
400
Adopta o primeiro entendimento Artuto Dalmartello, Pegno irregolare cit., pág. 801 (mesmo quando
os bens já se encontrassem em poder do credor pignoratício em momento anterior ao da constituição da
garantia, alegando que, neste caso, a transferência da propriedade operou em momento anterior, pelo que
“il pegno irregolare utilizza e assorbe in sè un trasferimento di proprietà che già si era verificato e che
resta fermo in base al nuovo titolo”), advertindo que “Dando a cauzione una somma di denaro, o una
quantità di cose generiche, o di titoli fungibili, non si ha la sensazione (…) di conservarne la proprietà e
di concedere al cauzionato un semplice permesso di appropriazione. É chiaro, invece, l’intento pratico di
abbandonare la cosa, come oggetto di un diritto assoluto, e quindi di trasferirne la proprietà col fatto
stesso della consegna”.
401
Artuto Dalmartello, Pegno irregolare cit., pág. 802, realça que, para além da vontade das partes, é
imperioso estabelecer qual a causa que constitui o título justificativo da transmissão da propriedade, ou
seja, “ocorre che l’attibuzione patrimoniale, cui porta il trasferimento della proprietà delle cose date a
cauzione, sia fronteggiata (poichè è da escludere la causa di liberalità) da un’attribuzione patrimoniale
inversa, che realizzi l’incontestabile onerosità dell’operazione”.
402
Para Jordano Fraga, ob. cit., pág. 311, a questão da identificação da causa do contrato coloca-se em
termos ligeiramente diversos, tendo a ver com busca da justificação para a criação de um novo contrato
“por no ser obtenibles los fines que se pretenden cumplor con él, a través de ninguno de los contratos
(típicos) regulados por el ordenamiento” (acrescentando que a questão não deixa de se colocar quando o
penhor irregular é um contrato típico, residindo em saber o porquê da regulação autónoma face aos
demais). No actual panorama, o Autor sustenta a necessidade de autonomização do penhor irregular face
ao mútuo e ao depósito irregular (com os quais comunga uma estrutura semelhante) e ao penhor regular
(com o qual compartilha a função de garantia): ora, é precisamente esta função de garantia que permite
distingui-lo do depósito irregular e do mútuo, uma vez que nestes “la restitución del tantundem habrá de
producirse necesariamente por quien recibe la propiedad de las cosas fungibles entregadas”, enquanto
no penhor irregular o credor “sólo eventualmente está obligado a restituir el tantundem de las cosas
apropriaas desde su entrega: cuando el deudor cumpla, llegado el momento de su vencimiento, le
obligación garantizada” (acrescentando que esta eventual restituição do tantundem “es el equivalente
económico de la retención posesoria de la cosa ajena, en la prenda regular”).
403
Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 211 e 212, acrescenta que “o nascimento do crédito restitutório tem
lugar com a entrega dos bens, não ficando condicionado ou sujeito a qualquer condição resolutiva,
existindo ainda um pactum de non petendo que é resolvido no momento do vencimento do crédito
garantido, pelo que, se nesse momento o crédito não se satisfaz, o credor garantido poderá proceder à
compensação com o crédito restitutório que o empenhador tem contra si.”.
404
Isto é, pré-constituindo entre as partes “una situación de futura compensabilidad convencional de dos
créditos, de la que ambos puedan prevalerse en caso de incumplimiento de la obligación garantizada”
(ou, numa outra perspectiva, esta tese explica o penhor irregular como aquele que “oferece al acreedor
108
reparos,405 especialmente para quem configure o penhor irregular como um penhor de
créditos.406
Outra teoria é a da causa solvendi407 (nos termos da qual o devedor transferiria a
propriedade dos bens ao credor para que este impute o respectivo valor à satisfação do
109
seu crédito em caso de incumprimento da obrigação garantida, ou seja, o penhor
irregular traduzir-se-ia numa satisfação antecipada relativamente ao vencimento do
crédito garantido, mas sujeita à condição resolutiva do pagamento desse mesmo
crédito),408 embora assuma diversas formulações409e, também ela, não seja imune a
reparos.410
garantia (ao contrário do que sucede na fiducia, na qual “la disponibilità della cosa viene ad essere
obbligatoriamente interdetta o limitata”). Também Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 39, propendem para esta
posição.
408
Ou, como escreve Jordano Fraga, ob. cit., pág. 313, o intuito do constituinte do penhor irregular é o de
efectuar um pagamento ou uma datio in solutum “anticipados y resolutoriamente condicionados al
cumplimiento de la obligación garantizada: si llegado el momento del vencimiento de ésta, el deudor
paga, lo que anticipadamente se entrego sobreviene indebido, y, por tanto, el constituyente de la prenda
irregular tiene acción personal contra el acreedor pignoraticio, para exigirle el tantundem de lo por él
recibido”.
409
Como salienta Pietro Abbadessa, Pegno irregolare a garanzia di debito scaduto, in BBTC, n.º 51,
Tomo II, pág. 213 e segs., na formulação mais simples o penhor irregular produziria uma extinção
antecipada da relação obrigatória, sujeita à condição resolutiva do sucessivo cumprimento da dívida, no
seguimento do qual nasceria o dever do credor pignoratício satisfeito restituir o tantundem (como
precisam Realmonte, Il pegno cit., pág. 647 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 171, a extinção do débito
surgiria enquanto forma de pagamento – se o penhor tivesse por objecto dinheiro – ou datio in solutm –
no caso de a garantia incidir sobre outro tipo de bens). Todavia, perante as críticas segundo as quais tal
teoria não explicaria o sucessivo adimplemento de um débito que se assume já extinto, surgiu uma
formulação mais elaborada, segundo a qual a constituição do penhor irregular transformaria a obrigação
simples numa obrigação com faculdade alternativa, podendo o constituinte extinguir automaticamente a
obrigação através da prestação alternativa – prestação do penhor – mas poderia igualmente cumprir a
obrigação garantida, assim tornando sem causa a prestação alternativa – prestação do penhor -
anteriormente efectuada, fazendo assim surgir a obrigação do credor de restituir o tantundem (neste
sentido, Arturo Dalmartello, Il pegno irregolare cit., pág. 336 e segs.).
410
Contra esta teoria, mesmo na sua formulação mais sofisticada, são dirigidas as seguintes críticas (vide,
a propósito, Pietro Abbadessa, ult. ob. e loc. cit. - para quem a pertinência de tais críticas conduziram ao
abandono, doutrinal e jurisprudencial, de tal solução – e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 171): antes de mais,
por tal solução trair a intenção típica do credor, pois este, apesar de aceitar o penhor irregular, mantém
intacto o seu interesse na obtenção da prestação principal (enquanto o entendimento criticado considera
ser indiferente para o credor o modo de extinção do seu crédito, deixando a liberdade de escolha ao
devedor: como salienta Realmonte, Il pegno cit., pág. 647, existe uma incompatibilidade entre o fim
solutório e a função de garantia do penhor irregular); em seguida, a equiparação das duas prestações
oblitera, sem justificação, o carácter acessório da relação de garantia relativamente ao crédito principal;
depois, constatando que a tese da causa solvendi cai numa contradição lógica – “com’é possibile
affermare che la prestazione principale, intervenendo per seconda, sia sorretta da una regolare causa
solvendi, allorché si è, in pari tempo, costretti ad ammettere che il primo adempimento perde tal
carattere, lasciando aperta la via ad una nuova solutio, solo dopo che la prestazione principale è
regolarmente adempiuta?”- e, finalmente, porque a lei – cfr. art.º 1851.º do CCI - dispõe que o eventual
excedente é determinado relativamente ao valor dos bens empenhados no momento do vencimento dos
créditos e não no momento da constituição destes – recaindo sobre o devedor o risco de um sucessivo
aumento de valor do objecto da garantia, tanto mais que poderia readquirir o bem empenhado cumprindo
a obrigação garantida - , como aconteceria se o penhor tivesse natureza solutória). Em face do
ordenamento espanhol, já Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 252 e segs., depois de apelidar esta
tese de pagamento antecipado (“cuando el garante hace el traspaso de la propriedad del bien fungible
ojeto de la prenda irregular, lo que realiza es un pago anticipado de la obligación del deudor
garantizado sujeto a la condición resolutoria del cumplimiento de la obligación garantizada. En
consecuencia, el crédito se extingue total o parcialmente, pero de forma provisional. De ello se infiere
también que el incumplimiento del crédito garantizado determina automáticamente el carácter definitivo
del pago, sin que sea posible al acreedor pignoraticio exigir el cumplimiento al deudor”), dirige-lhe
diversas objecções (não parece que as pares queiram realizar um pagamento antecipado da dívida, mas
antes a criação de uma garantia; a impossibilidade de o credor exigir o cumprimento da obrigação põe em
causa a acessoriedade da garantia; e, por último, deixa de fora os penhores irregulares em que o
adquirente dos bens não seja o próprio credor pignoratício).
110
Não falta, ainda, quem se pronuncie no sentido de o fundamento da transferência
de propriedade residir, directa e exclusivamente, na garantia (teoria da causa exclusiva
de garantia),411 enquanto outros consideram que tal efeito resulta, pura e simplesmente,
da inevitável confusão dos bens fungíveis no património do credor pignoratício.412
411
Realmonte, Il pegno cit., pág. 646 e segs.. Para este Autor, o penhor irregular pode ser enquadrado no
âmbito do penhor regular, “comme suo sottotipo, in quanto ne condivide la causa di garanzia,
ralizzandola anzi più intensamente”, podendo o modus operandi daquele ser explicado à luz dos
princípios gerais deste, pois “quando il debitore non adempie, il creditore può fare espropriare il bene
avuto in pegno e incamerare il risultato della vendita a titolo di satisfamento coattivo, restando
naturalmente al debitore l’eventuale eccedenza rispetto al valore del credito. Esattamente la stessa sorte
potrebbe allora ritenersi che tocchi nel pegno irregolare, con la sola differenza che non è necessaria la
vendita (…) in quanto il creditore ha sin dall’inizio acquistato la proprietà delle cose”, pelo que se
poderá “attribuire al pegno irregolare la stessa causa che sta alla base del pegno regolare e quindi ad
amettere che l’effetto traslativo (…) sia giustificato unicamente dalla causa di garanzia, senza necessità
di integrare o sorregere tale causa con quella credendi o con quella solvendi”. Esta tendencial
equiparação entre o penhor regular e irregular serve de fundamento a que Pietro Abbadessa, ob. cit., pág.
217 e segs., admita a concessão de um penhor irregular em garantia de uma dívida já vencida, recusando
o efeito solutório da dação em penhor e também o carácter automático da compensação, rematando que
“il peculiare meccanismo estintivo dall’obblegazione garantita in caso di pegno irregolare non
rapprasenta ostacolo alcuno per la costituzione di tale forma di garanzia anche con riferimento ad un
debito già scaduto”.
412
Vide os Autores citados por Realmonte, Il pegno cit., pág. 646, nota 38 e por Gabrielli, Il pegno cit.,
pág. 170, nota 210 (estes Autores criticam esta posição, alertando para a circunstância de qualquer coisa
genérica poder ser, através de procedimentos de individuação, transformada em coisa específica – pelo
que a natureza fungível do bem empenhando não comporta, obrigatoriamente, a aquisição da propriedade
por parte do beneficiário da garantia; para além disso, a simples confusão, sem o consentimento do
empenhante, constituiria uma apropriação indevida, pelo que a passagem da propriedade pressupõe uma
manifestação de vontade). Parece ser esta a posição seguida por Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 190, ao
escrever que “a diferença entre o penhor irregular e o penhor regular assenta, apenas, na fungibilidade
ou infungibilidade do objecto, sendo que a transmissão da propriedade que se verifica no penhor
irregular mais não seria do que uma decorrência da obrigação de custódia que incumbe ao devedor.
Dito de outro modo, é, apenas, o resultado do carácter fungível do seu objecto”, acrescentando o Autor
que bens fungíveis são aqueles que, de acordo com os usos do comércio, são consideradas substituíveis
(fungibilidade objectiva), susceptíveis de avaliação a qualquer momento, com um valor de mercado ou
corrente (ou cujo valor possa ser fixado de acordo com critérios objectivos e equitativos, de modo a evitar
a colisão com a proibição das convenções comissórias) e aptos a uma rápida execução (a reunião destes
requisitos, na óptica das partes, ainda quando não se trate de bens objectivamente fungíveis, fará com que
os bens sejam considerados subjectivamente fungíveis, de modo que seja indiferente a detenção de uma
ou outra coisa da mesma espécie): de acordo com estas coordenadas, poderão ser considerados bens
fungíveis o dinheiro (como sucede nos chamados depósitos irregulares, em que não existe qualquer
interesse das partes na devolução das concretas espécies que foram depositadas), admitindo ainda a
inclusão nesta categoria das mercadorias e dos títulos de crédito. Em face do direito espanhol, assume
uma posição similar Finez Ratón, ob. cit., págs. 141 a 143, para quem a explicação da transferência da
propriedade do bem (dinheiro) onerado reside na “caracterización del dinero, su ultrafungibilidad”,
explicando que, nos direitos reais de garantia, a relação com a coisa assume um valor instrumental,
destinando-se unicamente a permitir a execução do respectivo valor em benefício do credor: ora, se assim
é, “no debe haber obstáculos para conceder plena eficacia a la prenda de dinero. El que la
ultrafungibilidad del dinero conduzca a transmitir su titularidad al acreedor o al tercero en quien se
constituye la prenda no puede desvirtuar la eficacia de la garantía (…). No se respecta el esquema
formal del derecho real de garantía (derecho real limitado sobre cosa ajena). En esto consiste la
irregularidad. Tampoco en la prenda de crédito no documentado es posible el efectivo traslado
posesorio. Su constitución se articulará por otros médios que aseguren igualmente al acreedor
garantizado (…). Tratándose de dinero, el traslado posesorio y, por ende, la transmisión de su
titularidad, aseguran al acreedor garantizado (…). No hay creación de ningún privilegio al margen de la
ley. Consiste únicamente en observar las modificaciones que el esquema formal del derecho real de
garantía experimenta cuando tiene por obeto dinero” (o Autor esclarece, por fim, que esta figura não
viola a proibição do pacto comissório, porquanto não existe possibilidade de aproveitamento do devedor,
atento o valor objectivo do dinheiro).
111
A opção por uma ou outra das posições principais não é isenta de consequências,
designadamente no que toca à viabilidade da constituição de um penhor irregular por
terceiro.413
Em face do nosso direito, a tese da compensação de créditos – do crédito
garantido com o crédito à restituição dos bens dados em garantia - é recusada por
HUGO ALVES414 e por PESTANA DE VASCONCELOS (a menos que tal tenha sido a
intenção das partes, fazendo estas coincidir o momento de vencimento de ambos os
créditos:415 a não ser assim, os bens dados em garantia “passam a desempenhar uma
413
Jordano Fraga, ob. cit., pág. 313, coloca em evidência o facto de a teoria da causa credendi impedir tal
hipótese, dado que “presupuesto subjetivo de toda compensación (legal o voluntaria), es que dos
personas sean principal y reciprocamente deudoras”, possibilidade esta admitida pelos partidários da
causa solvendi, “por las mismas razones que ese tercero puede realizar un pago directa, inmediata,
definitivamente liberatorio”: o Autor admite que o penhor irregular possa ser constituído por terceiro,
argumentando que a função de garantia do instituto consente postular a viabilidade de tal solução (pelo
contrário, realça como ambas as teorias recusam que o contrato de penhor irregular possa ser celebrado
com um terceiro em vez do credor – isto é, que seja o terceiro a adquirir a propriedade do bem dado em
garantia – para a causa credendi, pelos mesmos motivos acima expostos nesta nota e, para a causa
solvendi, porque em caso de pagamento condicional, esse terceiro não credor carece de legitimidade para
receber o pagamento: a única alternativa será “pignorar en favor del acreedor el crédito a la restitución
del tantundem, que nace, de dicha entrega transmisiva y credendi causa (mutuo, depósito regular),
contra el tercero y en favor del deudor”, ou seja, através da via do penhor de créditos). Em termos
análogos, Arturo Dalmartello, Pegno irregolare cit., pág. 804, realça que os defensores da tese da causa
solvendi consentem a licitude do penhor irregular constituído por terceiro, por ser igualmente lícito o
pagamento por parte de terceiro, embora ressalvando que, em caso de cumprimento da obrigação
garantida, a restituição do objecto recebido em garantia deve ser efectuada ao terceiro e não ao devedor
“perchè la solutio (o datio in solutum) che, per ragioni sopravvenute, è divenuta indebita era stata
eseguita dal terzo e non dal debitore”.
414
Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 210 e 211, exclui a compensação, “dado que a atribuição inicial
não poderia funcionar apenas para proceder à extinção do crédito, salvo se considerarmos que foi
constituída uma datio in solutum condicionada” (o que não sucede no penhor irregular, o qual, apesar de
a transferência inicial da propriedade poder ser concebida como uma datio antecipada, muitas vezes a ele
se encontram associadas condições resolutivas, designadamente o não cumprimento da obrigação
garantida). Por isso, o Autor defende que esta tese não logra justificar a finalidade de garantia da figura
do penhor irregular (ao não se centrar na transferência da propriedade e no mecanismo de satisfação da
garantia, aspectos fulcrais do instituto), por ser “altamente duvidoso admitir que um pagamento
condicional extinga uma obrigação, mormente quando a verificação de tal condição depende de um facto
do empenhador. Mais importante, não se logra justificar a realização da prestação objecto da relação
garantida”. Em suma, esta orientação deve ser rejeitada uma vez que um pagamento “não pode ter uma
função extintiva da obrigação quando o devedor ainda tem a faculdade de anular, accionando um evento
do qual depende a resolução e caducidade do acto” e porque “resulta uma incongruência lógica afirmar
que o empenhador pode obter o direito à restituição do tantundem cumprindo, já que o seu débito –
garantido pelo penhor irregular – é o próprio débito que fundamenta o postulado fundamental desta
construção teórica”. Na óptica do Autor e partindo do elemento central do crédito restitutório, o aspecto
nuclear do penhor irregular radica numa configuração específica do dever de indemnizar, de fonte
contratual, de tal modo que “a partir do momento em que se verifique um dano, teremos que não se
verificará o nascimento definitivo do crédito restitutório – na estrita medida do dano – e,
concomitantemente, actuará de forma imediata a responsabilidade, através de uma compensação ideal
do dano com o valor do tantundem” (ob. cit., pág. 213): mais correcto do que falar de compensação será
chamar à colação a figura da dedução, uma vez que não existem dois créditos recíprocos que se possam
extinguir mutuamente, mas somente um cujo montante tem que ser diminuído de certas dívidas
(concluindo, por isso, que o mecanismo de satisfação do credor no penhor irregular não se distingue
sensivelmente do vigente no penhor comum – no qual o credor pode requerer a atribuição judicial do bem
onerado em pagamento – residindo a principal diferença na desnecessidade de recurso à via judicial).
415
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 303 e segs. (indicando o regime do penhor
financeiro como um caso de acolhimento legal desta solução), assegurando que o crédito à restituição dos
bens dados em garantia apenas se constituirá depois do incumprimento por parte do devedor da obrigação
garantida (e, havendo cumprimento, nem sequer se chega a constituir), isto é, “antes do cumprimento, o
devedor tem um direito condicional à retransmissão do crédito dado em garantia. O facto constitutivo
112
função solutória, sendo através deles que o credor irá obter a satisfação do seu crédito,
extinguindo-o”).416
Segundo este Autor, a extinção da obrigação opera através de um mecanismo de
auto-tutela equiparável ao da cessão de um crédito pecuniário em função do
cumprimento (cfr. art.º 840.º), após a cobrança deste.417
Regressando à delimitação dos contornos essenciais do penhor irregular e
partindo do confronto com o seu congénre regular, cabe esclarecer que, para além da
diversa natureza dos bens dados em garantia (necessariamente fungíveis no caso do
penhor irregular), a diferença entre as duas modalidades de penhor – regular e irregular
- traduz-se no diverso modus operandi da oponibilidade e da preferência atribuídas por
cada uma daquelas garantias.418
Com efeito, estas características manifestam-se, no penhor regular, no poder do
credor reter o bem empenhado (que permanece propriedade do concedente) até integral
pagamento do seu crédito e de se satisfazer com preferência sobre o produto da
alienação desse mesmo bem, em caso de inadimplemento da obrigação principal.
No penhor irregular, aqueles atributos exteriorizam-se, de acordo com a opinião
maioritária, através da imediata aquisição da propriedade dos bens onerados419
(excluindo até o concurso de credores)420 considerando a função de garantia idónea a
produzir aquela transferência e a proporcionar a satisfação do credor pignoratício.421 422
desse direito é não só o contrato como o cumprimento da obrigação por parte do cedente, também ela
decorrente do mesmo negócio jurídico”.
416
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 305 e segs., entendendo que, nada dizendo as
partes no contrato, se deverá concluir que “o que se pretendeu foi colocar nas mãos do credor o bem pelo
qual ele pode obter a satisfação do seu crédito em caso de incumprimento da outra parte”, embora,
havendo um excedente, este deva ser entregue ao constituinte da garantia (do mesmo modo que, se o
montante do bem for inferior ao da dívida, esta será apenas parcialmente extinta).
417
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 306 e segs., distingue, todavia, consoante o
objecto da garantia seja dinheiro (hipótese na qual “podem as partes celebrar um acordo com vista a
simplificar os pagamentos, evitando que o devedor pague ao garantido quando este depois – em seguida
– terá de lhe entregar a quantia objecto da garantia”, mas não sem alertar que não se trata de
compensação, uma vez que o crédito à restituição do bem só nasce após a extinção da obrigação
garantida) ou outro tipo de bens (caso em que “os bens integrados no património do credor terão que ser
transaccionados no mercado nas melhores condições para que o credor se possa satisfazer com o
montante dessa forma obtido e restituir o que sobejar ao devedor”, sendo a apropriação – isto é, a
manutenção dos bens, a título definitivo, na esfera jurídica do credor – por parte do credor possível
unicamente se os bens onerados forem avaliados por um terceiro independente).
418
Assim, Gabrielli, Il pegno. cit., pág. 174 e, sobretudo, Arturo Dalmartello, Pegno irregolare cit., pág.
804 (este último, descarta a aplicação do preceito que impõe a redacção de um documento escrito
contendo a identificação do crédito garantido e dos bens onerados, uma vez que tal exigência se destina a
proteger os demais credores do empenhante e, no penhor irregular, a transferência da propriedade exclui o
concurso de credores).
419
Propriedade essa que será plena (apenas limitada, do ponto de vista estritamente obrigacional, a
restituir o tantundem em caso de cumprimento por parte do devedor) e não temporária, residindo a única
especificidade no facto de ser constituída através de um negócio inominado (o que não contende com a
tipicidade dos direitos reais, a qual respeita apenas à criação e não aos factos constitutivos) – Hugo
Ramos Alves, ob. cit., págs. 224 e 225. Contra, Marques de Carvalho, ob. cit., págs. 43 e 44, por entender
que o penhor irregular é um direito sobre um bem alheio que não retira, após a sua constituição, a
propriedade do bem ao constituinte, uma vez que o objecto da garantia é o género (e não o indivíduo ou a
espécie) e esse continua na propriedade do garante.
420
Artuto Dalmartello, Pegno irregolare cit., págs. 806 e 807, alude à discussão acerca da admissibilidade
de uma via alternativa de execução do penhor irregular, que não passe pela apropriação dos bens
entregues em garantia ao credor, traduzida na exigência do cumprimento exacto da obrigação garantida
(inculsivamente com recurso às instâncias judiciais): apesar de noticiar ser distinto o entendimento da
jurisprudência maioritária (a qual afirma que o credor não tem o dever de se satisfazer com o objecto
entregue em garantia, podendo antes exigir o cumprimento, devolvendo aquele objecto), o Autor inclina-
113
A diferença entre estas duas modalidades de penhor manifesta-se igualmente na
posição dos outros credores do constituinte de cada uma delas (nomeadamente nos
meios de que dispõem para fazer frente ao direito do credor pignoratício),423 assim
como na especial configuração que o dever de custódia ou de conservação assume424 e
na inexistência da proibição de uso do bem empenhado por parte do credor.425
Cumpre, porém, esclarecer que, à semelhança do dito penhor regular, também o
penhor irregular não prescinde, à partida, da entrega426 dos bens onerados ao credor,
se para negar tal possibilidade (baseado na natureza voluntária da garantia, atribuindo ao devedor o
direito de se opor à acção de condenação ao cumprimento interposta pelo credor, invocando a excepção
da compensação, do mesmo modo que este último pode recusar um incumprimento tardio da obrigação
garantida e uma eventual pretensão de restituição, opondo a mesma excepção da compensação).
421
Segundo Jordano Fraga, ob. cit., pág. 319 e segs., em caso de incumprimento, a função de garantia do
penhor irregular não se traduz, como no penhor regular, na atribuição de um direito de preferência sobre o
bem onerado, pois tal se torna inviável e desnecessário face à transferência da propriedade do bem para o
credor pignoratício. Assim sendo, no penhor irregular a função de garantia manifesta-se através de uma
compensação automática e imprópria, ou seja, “de la imputación que hace el acreedor garantizado del
valor de su obligación restitutoria por el tantundem, al de la obligación garantizada y incumplida” (de
modo que apenas terá que restituir ao devedor o eventual excesso ou, na hipótese inversa, reclamar deste
a parte do valor do crédito garantido não coberto pelo valor do tantundem), compensação esta que se
acentua quando a obrigação de restituição do tandundem e a obrigação garantida têm objecto idêntico –
v.g. dinheiro – pois “no tiene ningún sentido que, habiéndose entregado, por ejemplo, dinero al acreedor
garantizado, se le pague la deuda dineraria garantizada, para recuperar…la cantidad de numerario
inicialmente entregada”. Em termos análogos, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 203 (destacando como
“a noção de preferência na satisfação do crédito é estranha ao penhor irregular, porquanto a
propriedade do objecto da garantia é transferida directamente para o credor pignoratício, com exclusão
dos restantes credores do empenhador”) e López, Montés e Roca, ob. cit., pág. 446 (concluindo pela
desnecessidade de recurso aos processos comuns de execução do penhor tradicional, ou seja, “no es
necesario realizar el valor del bien, procediendo a su venta en pública subasta”). Albaladejo, Derecho
Civil III cit., pág. 424, realça que, em caso de incumprimento, nem sequer se verifica a aquisição da
propriedade por parte do credor – uma vez que tal efeito já se produziu aquando da constituição da
garantia – funcionando a garantia “simplemento no devolviendo el todo o parte (según el montante del
incumplimiento de su deudor) de lo recibido”.
422
Cabe, todavia, relembrar que, não obstante estas diferenças, também existem afinidades inegáveis
entre o penhor regular e irregular, para além do já mencionado papel decisivo de a entrega do bem para a
sua constituição, designadamente a função de garantia que desempenham e a natureza real de ambas, bem
como a presunção da natureza anticrética das duas garantias (salienta este último efeito Hugo Ramos
Alves, ob. cit., pág. 206).
423
Jordano Fraga, ob. cit., pág. 324, salienta como esses outros credores do constituinte do penhor
irregular não podem, por força da transferência da propriedade do bem onerado para o credor, executar o
bem empenhado: todavia, é-lhes consentido, antes do vencimento da obrigação garantida pelo penhor
irregular, penhorar o crédito eventual à restituição do tantundem (para além de poderem pagar o crédito
garantido e se sub-rogarem na posição do constituinte para poder reclamar do credor pignoratício a
restituição do tantundem: porém, uma vez vencida e incumprida a obrigação garantida, os credores do
constituinte do penhor irregular “sólo pueden embargar el crédito de éste, contra el acreedor
garantizado, por el exceso de valor del tantundem sobre el crédito garantizado”).
424
Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 202 e 203, entende que, no penhor irregular, o objectivo deste dever
não se destina tanto a evitar que os bens onerados se deteriorem, mas principalmente a assegurar a
possibilidade de restituição de outros equivalentes, em caso de cumprimento por parte do devedor (o
Autor assegura até ser “forçado erigir a necessidade de restituição do tantundem a reflexo da obrigação
de custódia, dado que o tantundem, pelo contrário, é, apenas, o corolário da fungibilidade dos bens
depositados”).
425
Uma vez que o credor se torna seu proprietário, poderá delas dispor, assumindo apenas a (eventual)
obrigação de restituição do equivalente - Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 207.
426
Arturo Dalmartello, Pegno irregolare, in Novissimo Digesto Italiano, Vol. XII, 3.ª Edição, 1957, págs.
799 e 800, esclarece que tal entrega, à semelhança do que se passa no penhor regular, apenas pode ser
dispensada quando os bens a onerar “siano già stati preventivamente consegnati al creditore e quando
quest’ultimo abbia già assunto un debito di restituzione nei riguardi del debitore (costituinte il pegno): il
che si verifica, tipicamente, quando inter partes già sussista un deposito irregolare” (todavia, nesta
114
surgindo dúvidas adicionais quanto à qualificação jurídica da figura quando os bens
fungíveis onerados já se encontrassem em poder do credor em momento anterior ao da
constituição da garantia.427
Diga-se, ainda, que também no denominado penhor irregular o objecto do direito
poderá ser entregue a terceiro428 (normalmente uma instituição financeira), obrigando-se
este a restituir o bem ao credor, se o crédito se vence e não é cumprido, ou ao devedor,
se o crédito é pago ou se extingue de outra forma:429 neste caso, existirá um penhor
acompanhado de um depósito irregular celebrado entre o empenhante e o terceiro.430
Do mesmo modo e apesar da posição contrária de alguns Autores,431 não se nos
afigura erguerem-se obstáculos intransponíveis à constituição de um penhor irregular
por terceiro, mesmo para quem ancore esta fattispecie no âmbito da compensação
(maiores dificuldades surgirão para aqueles que radiquem a figura no âmbito da causa
credendi),432 uma vez que a maioria dos partidários desta tese admitem que, no domínio
do penhor irregular, estaremos perante uma compensação convencional, a qual não tem
última hipótese, subsiste uma diferença entre o penhor regular e irregular, uma vez que no primeiro se
opera uma transformação da situação possessória do depositário – que passa a deter o bem também no seu
próprio interesse -, no penhor irregular verifica-se uma alteração na causa de restituição, a qual se passa a
fundar na satisfação do crédito grantido pelo penhor irregular).
427
Arturo Dalmartello, Pegno irregolare cit., págs.799, considera que, nesta hipótese, “non avremmo la
figura del pegno irregolare, ma quella del pegno del credito (sia pure di un credito verso lo stesso
creditore) e, più precisamente, del credito che il debitore ha ex deposito irregolare verso lo stesso
creditore (debitore della restituzione) (…) vale a dire un pegno regolare e non già irregolare” (o Autor
esclarece que a diferença não é significativa quando se trate de um crédito pecuniário – por força da
possibilidade de extinção do crédito garantido por via de compensação, no momento em que ambos os
créditos se vencem -, mas assume maior relevância quando o objecto é diverso, uma vez que o crédito
empenhado conserva a sua autonomia e, por isso, o credor pignoratício não pode apropriar-se do crédito
onerado, restando-lhe executá-lo nos termos gerais previstos para o penhor, ou seja, através de venda ou
adjudicação em pagamento).
428
Contra, Ciccarello, ob. cit., pág. 688, por entender que o terceiro, depois adquirir a propriedade dos
bens entregues, não teria legitimidade para se apropriar definitivamente deles em caso de incumprimento
da obrigação principal por parte do devedor. No mesmo sentido, Arturo Dalmartello, Pegno irregolare
cit., pág. 804, negando que, no penhor irregular, o bem possa ser entregue a terceiro (pois não se poderia
justificar a aquisição da propriedade, por parte do terceiro, em caso de incumprimento da obrigação
garantida, uma vez que o terceiro não é credor), considerando que, se assim for, “il debitore viene a
procurarsi, innanzitutto, un credito verso un terzo e a dare, poi, tale credito in garanzia al proprio
creditore”, pelo que qualifica a figura como penhor de créditos. A favor, implicitamente, Pierpaolo
Marano, ob. cit., págs. 159 e 160, dando ainda conta de uma divergência quanto aos efeitos da falência do
devedor (uns afirmando que o administrador da massa falida apenas poderá exigir do credor a eventual
diferença entre o valor do crédito garantido e do bem empenhado; outros, defendendo estarmos perante
um penhor de créditos, exigem, como condição da atribuição da preferência pignoratícia, que a
constituição do penhor tenha sido notificada antes da declaração de insolvência do devedor e que o credor
reclame o seu crédito no processo), enquanto no caso de insolvência do terceiro depositário se afigura
pacífico que o credor possa executar o restante património do devedor, recaindo sobre este último o risco
de insolvência do depositário. Admite igualmente esta possibilidade Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 229
(esclarecendo que, se o terceiro se apoderar dos bens que lhe foram entregues, o credor deverá lançar mão
de uma acção declarativa de restituição da posse).
429
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 112, que acrescenta que até à verificação de qualquer destes
eventos, o terceiro não deverá restituir o bem ao credor ou ao depositante isoladamente.
430
Assim, expressamente, Rubino, Il pegno cit., pág. 216 e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 43.
431
Designadamente Ciccarello, ob. cit., págs. 688 e 689, nota 64, alegando que a constituição de penhor
irregular por terceiro briga com a construção teórica do instituto, quando assente na compensação entre a
obrigação principal e a de restituição (por falta de um dos pressupostos desta compensação, uma vez que
“l’obbligo di restituire si riferisce al terzo, mentre l’obbligazione principale non adempiuta è del debitore
principale”.
432
Vide supra no texto a influência que a posição adoptada sobre o fundamento da suposta transmissão da
propriedade produz sobre a admissibilidade de um penhor irregular constituído por terceiro.
115
que observar todos os requisitos legais do instituto: ora, na eventualidade de penhor
prestado por terceiro, resulta da própria relação negocial que as três partes envolvidas
pretenderam que a obrigação principal se compensasse, em caso de incumprimento,
com a obrigação de restituição, não ao devedor daquela, mas sim ao terceiro dador da
garantia.433
Por último, importa esclarecer que, à imagem do que sucede no penhor comum,
nada impede que as coisas dadas em penhor sejam de género diverso daquelas que são
objecto do crédito garantido, havendo apenas que ter alguma atenção no caso de as
coisas empenhadas se encontrarem sujeitas a oscilações de valor, caso em que a
respectiva avaliação deverá ocorrer no momento do incumprimento e não no da sua
entrega ao credor pignoratício.434
Para além das questões atinentes à natureza jurídica,435 esta garantia suscita
outros problemas,436 como sejam o potencial contraste com a proibição do pacto
comissório437 e do tratamento a dar em sede falimentar (não apenas no que toca à
possibilidade ou não de actuação o mecanismo de execução específico desta garantia -
através de imputação ou compensação -,438 mas especialmente, considerando as
433
A adoptar-se a tese da causa solvendi, os obstáculos são ainda de menor monta, em homenagem ao
princípio geral segundo o qual qualquer terceiro pode cumprir uma obrigação alheia, mesmo não estando
interessado no seu cumprimento, contra a vontade do credor, salvo em casos excepcionais – cfr. art.º
767.º.
434
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 111 e 112, fundamenta esta posição no facto de ser na data
do incumprimento (e não na da constituição da garantia) que o credor vai aplicar o valor do bem
empenhado para o pagamento do seu crédito.
435
Relativamente a estas, vide infra Capítulo IV.
436
Outro problema, mais específico, em caso de incumprimento da obrigação principal, reside em saber
se o credor poderá exigir o cumprimento daquela obrigação ou, pelo contrário, não gozará dessa
possibilidade, restando-lhe apenas pagar-se através do bem que lhe foi entregue em garantia (a este
respeito, Ciccarello, ob. cit., pág. 689, relata a existência de duas posições distintas, uma negando tal
veleidade ao credor pignoratício – argumentando ser esta uma consequência da especificidade do
funcionamento do penhor irregular – e outra, pelo contrário, reconhecendo tal possibilidade): em nosso
entender, a particularidade do regime do penhor irregular não deve tolher a liberdade do credor
pignoratício (e de qualquer credor, garantido ou não) exigir o pontual e exacto cumprimento da obrigação
assegurada (mesmo que se aceite a transferência da propriedade do bem empenhado para o credor
pignoratício, tal não obsta a que este exija o pontual cumprimento da obrigação, até porque esta pode ser
uma obrigação de prestação de facto, porventura infungível, sendo legítimo que o credor prefira vê-la
satisfeita do que apropriar-se definitivamente do objecto onerado).
437
Vide infra n.º 4 do Capítulo II.
438
Desde logo, o facto de o penhor irregular pressupor, ao menos na opinião de alguns, uma compensação
(legal ou convencional, consoante as diversas opiniões), pode conflituar com a proibição destas operações
durante o período posterior à insolvência, porquanto, de acordo com o art.º 99.º, n.º 1, do CIRE, uma vez
declarada aquela, os titulares de créditos sobre a insolvência só podem compensá-los com dívidas à massa
desde que, alternativamente, o preenchimento dos pressupostos legais da compensação for anterior à data
da declaração da insolvência ou, então, o crédito sobre a insolvência tenha preenchido antes do contra-
crédito da massa os requisitos estabelecidos no artigo 847.º do Código Civil. Porém, de acordo com o n.º
4 do mesmo artigo, a compensação não é admissível se a dívida à massa se tiver constituído após a data
da declaração de insolvência (designadamente em consequência da resolução de actos em benefício da
massa insolvente); se o credor da insolvência tiver adquirido o seu crédito de outrem, após a data da
declaração de insolvência; com dívidas do insolvente pelas quais a massa não seja responsável; entre
dívidas à massa e créditos subordinados sobre a insolvência. Por outro lado, tal compensação, mesmo
verificada em momento anterior à declaração de insolvência, pode ser resolvida em benefício da massa
falida, seja de acordo com o art.º 121.º, n.º 1, alínea f), do Código da Insolvência (segundo o qual são
resolúveis, em benefício da massa falida e sem dependência de qualquer outro requisito, os pagamentos
ou outros actos de extinção de obrigações cujo vencimento fosse posterior à data do início do processo de
insolvência, ocorridos nos seis meses anteriores à data do início deste processo, ou depois desta mas
anteriormente ao vencimento) ou com base na cláusula geral do art.º 120.º, n.ºs 1 e 2 (nos termos da qual
podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados ou
116
consequências que decorrem da transferência da propriedade dos bens empenhados para
o credor.439
Finalmente, cabe ressalvar que o penhor irregular apresenta alguns
inconvenientes específicos, o maior dos quais residirá, porventura, no risco de o credor
pignoratício, findo o contrato e cumprido este, não restituir o tantundem ao empenhante,
para além da impossibilidade de do empenhante emanar instruções quanto à gestão dos
bens onerados.440
Noutra ordem de considerações, questiona-se se o depósito de dinheiro constitui
ou não um penhor441 e, em caso afirmativo, se deverá ou não submeter-se às normas que
regulam o penhor dito regular.
Poder-se-á, desde logo, considerar como argumento a favor da susceptibilidade
de o depósito de dinheiro constituir um penhor (ainda que irregular, mas sujeito às
regras gerais do penhor) o teor do n.º 2 do art.º 666.º, que expressamente qualifica como
omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência, considerando-se
como tal os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos
credores da insolvência: todavia, esta resolução exige a demonstração da má fé do terceiro, decorrente do
conhecimento da situação de insolvência do devedor ou do carácter prejudicial do acto e de que o devedor
se encontrava à data em situação de insolvência iminente ou, finalmente, do início do processo de
insolvência - cfr. art.º 120.º, n.º 5 – embora tal má fé se presuma a quanto a actos cuja prática ou omissão
tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha
participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a
relação especial não existisse a essa data).
439
Quando se verifica a insolvência do devedor empenhante, se essa falência ocorrer apenas após o
vencimento e incumprimento do crédito garantido, parece que, tendo a propriedade dos bens empenhado
passado, desde a data da constituição da garantia, para a propriedade do credor (e tendo este, por força do
incumprimento do devedor, compensado este seu crédito com o seu débito de restituição do equivalente),
“l’esercizio della prelazione effettuato dalla banca mediante lo strumento della compensazione sarà
opponibile agli altri creditori nel caso in cui il fallimento venga dichiarato succesivamente (a tale
scadenza); a nulla rilevando che l’incameramento delle somme da parte della banca sia avvenuto nel
período sospetto” – Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 157 (admitindo, quando muito, que o administrador
da insolvência possa intentar uma acção para forçar o credor pignoratício satisfeito a devolver o eventual
excesso do valor do bem empenhado relativamente ao crédito garantido); se, ao invés, a falência se
produzir antes do vencimento do crédito garantido, em Itália discute-se se o credor pignoratício deverá
reclamar o seu crédito assistido de preferência (para que fosse averiguada a existência do crédito e da
garantia, posição defendida argumentando que “la prelazione esercitata dal creditore nel caso di pegno
irregolare viene a realizzarsi non sulla somma tranferita in pegno, ma sulla somma diversa della quale il
debitore avrebbe altrimenti diritto alla restituzione; il creditore, cioè, opera la prelazione riducendo
l’ammontare di quella somma che altrimenti dovrebbe restituire al debitore e per esso al fallimento, e
cioè di quella somma – totale o parziale – che con il ricevimento del pegno egli há assunto l’obbligo di
restituire. Poiché il creditore esercita la prelazione non sulla somma della quale è divenuto proprietario
ma sulla somma della quale il debitore, e quindi il fallimento, è creditore, esercita la prelazione – al pari
del creditore nel pegno regolare – su cosa che appartiene (nel caso del pegno irregolare, come oggetto di
restituzione) al fallimento” – Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 158) ou, pelo contrário, estará desobrigado
de tal ónus (considerando que o credor adquiriu a propriedade dos bens objecto de garantia, devendo
devolver à massa falida o eventual excesso do valor desses bens face ao crédito garantido, não gozando
de qualquer direito de preferência sobre os bens da falida, isto é, “il titolare della garanzia non há più
alcun diritto da far valerei n via privilegiata su beni specifici del fallito essendo quest’ultimo, al limite, a
vantare un credito (di restituzione) nei confronti del primo, se costui avrà ecceduto rispetto a quanto
spettantegli” – Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 159) e podendo até vender os bens recebidos em garantia
na pendência do procedimento falimentar, pois tais bens já não pertencem ao falido.
440
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 191.
441
Perante a mesma dúvida, no direito italiano, duas posições se confrontam. Uma primeira, tendo em
conta o disposto no art.º 1851.º do CCI, qualifica o penhor irregular como um instituto autónomo e
distinto do penhor convencional. Outra tese defende ser o penhor irregular um mero sub-tipo do penhor,
por isso enquadrável no âmbito deste (partidário deste ponto de vista é Realmonte, Il pegno cit., pág. 646)
– para mais desenvolvimentos, Gabrielli, Il pegno cit., págs. 174 a 176.
117
penhor a caução prestada por meio de depósito “de dinheiro, títulos de crédito, pedras
ou metais preciosos” – cfr. n.º 1 do art.º 623.º.
O entendimento da doutrina maioritária era, no domínio do anterior Código, o de
considerar o depósito de dinheiro para garantia de um crédito como um penhor, regular
ou irregular consoante o credor assumisse a obrigação de restituir os concretos bens
entregues ou outros do mesmo género, quantidade e valor.442
Esta posição alicerça-se na função de garantia desempenhada, nestes casos, pelo
depósito, sobretudo tratando-se do penhor irregular, uma vez que se coloca em poder do
credor uma importância com a qual ele se satisfará em caso de incumprimento da
obrigação garantida.
Actualmente, no entanto, alguns relativizam a questão, considerando que do art.º
666.º, n.º 2, não decorre a qualificação do depósito em dinheiro como penhor de coisas,
mas tão somente a aplicação do regime legalmente ditado para esta última garantia,443
442
Neste sentido, Paulo Cunha, ob. cit., págs. 236 e 237 (distinguindo consoante o dinheiro fosse tratado
como um bem não fungível – caso em que estaríamos perante um penhor de coisa - ou, ao invés, fungível,
caso em que nasceria um penhor de créditos, quer o bem seja colocado em poder de terceiro ou do próprio
credor) e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 105 a 109 depois de desvalorizar a questão de saber
se, incidindo o depósito sobre bem fungível, se trata de um penhor de créditos ou de coisa, o Autor
assevera que “o depósito com o fim de garantia é, substancialmente, um penhor, pois o que se pretende é
dar ao credor um direito de penhor sobre o dinheiro depositado, penhor que é regular ou irregular,
consoante o depositário não fica sendo proprietário do dinheiro entregue ou fica sendo proprietário dele.
Sob o nome de depósito, quer-se afinal constituir um direito de penhor: se o dinheiro é entregue ao
credor, haverá um penhor com entrega ao credor; se é depositado em poder de terceiro, haverá um
penhor com entrega a terceiro, que fica sendo, quanto ao penhor e sendo este regular, mediador
possessório do credor” e, sendo irregular, estaremos perante um penhor com entrega a terceiro, associado
a um depósito irregular, obrigando-se o terceiro a não restituir os bens depositados a nenhuma das partes
enquanto o crédito garantido se não vencer ou se extinguir, a devolvê-lo ao credor – quando o crédito se
vença e não se verifique uma situação de incumprimento – ou ao depositante, em caso de cumprimento.
No limite, o Autor consente que as partes possam convencionar a aplicação das regras do depósito, mas
com excepção das que forem incompatíveis com a finalidade de garantia do negócio. Em sentido
contrário, Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 232 (considerando que “a entrega de dinheiro constitui uma
caução por depósito e não um penhor. De contrário, vencida a dívida, seria preciso vender o dinheiro,
como qualquer outro penhor, o que é absurdo”).
443
Assim, Menezes Leitão, Garantias das obrigações, Almedina, 2006, pág. 199, nota 473 (em sentido
parcialmente divergente, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 110, considerando que “conquanto o
fim deste penhor irregular seja um fim pignoratício, o instituto não tem que ser regulado exclusivamente
pelas normas do penhor”, tendo em conta a especificidade decorrente de o credor depositário adquirir a
propriedade dos bens onerados, com a obrigação de os imputar ao crédito assegurado ou de restituir o
equivalente ao depositante: ora, no regime do penhor não se vislumbram normas que permitam fixar qual
o valor a atribuir quando as coisas entregues sejam de género diferente das objecto do crédito garantido –
entendendo o Autor que a imputação se dará pelo valor correspondente, ou seja, quando se entreguem
títulos para garantia de uma dívida pecuniária, apura-se o valor desses títulos e imputa-se à dívida
garantida esse valor - ou se, em caso de objectos de grande flutuação de valor, o respectivo montante deve
ser aferido no momento da entrega ao depositário ou no do não cumprimento – aderindo o Autor a esta
segunda alternativa, alegando que é nesta data que o credor pode aplicar o valor do bem onerado na
satisfação do seu crédito. Porém, quando à presunção de pacto anticrético, o Autor sustenta a aplicação da
mesma também para esta modalidade de penhor, por ser de presumir pretenderem as partes que o credor
vá imputando tais frutos ao pagamento da dívida garantida). Já Pestana de Vasconcelos, Direito das
garantias cit., págs. 302 e 303, assevera que “a função primária dos dois contratos é diversa: no penhor
irregular, a garantia; no depósito irregular, a guarda e restituição de certos bens. Por isso, no penhor é
sempre necessária a existência de um crédito assegurado (mesmo que este seja futuro ou condicional). A
garantia é acessória dele. Nada disto se verifica no depósito irregular”). Em termos jurisprudenciais,
vide o Acórdão do STJ de 10/5/1982, in www.dgsi.pt, onde se afirma que a constituição de um depósito a
prazo para garantia de uma livrança é considerado, nos termos do art.º 666.º, n.º 2, um penhor, o Acórdão
da Relação de Lisboa de 14/6/2007, in www.dgsi.pt (no qual se esclarece, ainda, que a “alteração da
propriedade sobre a coisa empenhada, no caso a titularidade do aludido depósito, não é causa de
extinção do penhor constituído anteriormente por quem tinha legitimidade para dar o bem em penhor”),
118
enquanto outros mantêm a tese da equiparação dos efeitos entre aquele depósito e o
penhor.444
Mais explícito, a este respeito, se mostra o Código Civil Italiano445 ao qualificar,
a respeito da antecipação bancária, como penhor irregular o depósito de dinheiro,
mercadorias ou títulos não individualizados ou relativamente aos quais seja concedida,
ao credor bancário, a faculdade de deles dispor (cfr. art.º 1851.º do CCI).446
Também na recente reforma do direito das garantias francês447 foi
expressamente consagrado um penhor de coisas fungíveis (cfr. art.º 2341.º, n.º 2, do
CCF), nos termos do qual, se as partes assim o estipularem, a propriedade se transmite
para o credor, ficando este obrigado a restituir o equivalente.448
O facto de, nosso direito, faltar uma norma contemplando directamente a figura
do penhor irregular não constitui um obstáculo insuperável à sua admissibilidade - até
porque no direito alemão a mesma ausência não obsta ao reconhecimento do instituto449
– podendo ser qualificado como um contrato inominado de garantia real,450
constituindo-se, sem necessidade de outra formalidade, com a entrega dos bens a onerar
ao credor ou, caso estes já se encontrassem em seu poder, por mera declaração ou pela
entrega dos documentos que confiram ao credor o poder de dispor dos bens em
questão.451
119
Nesta última hipótese, ou seja, quando os bens a onerar já se encontrarem em
poder do credor – como sucede amiúde com o penhor do saldo de uma conta bancária,
previamente existente no banco a favor de quem é constituída a garantia – debate-se se
existe uma efectiva transmissão da propriedade do bem ou se, pelo contrário, se opera
apenas uma conversão da obrigação de restituição, de necessária e incondicional para
meramente eventual e condicionada ao cumprimento por parte do devedor.452
No entanto e independentemente da inclusão ou não das garantias irregulares no
seio do penhor, parece aceitável a aplicação da disciplina genérica ditada para este,
excepto os que sejam incompatíveis com a estrutura e o modus operandi do penhor
irregular.453
Dentro das garantias que incidem sobre dinheiro, uma das modalidades mais
importantes é o penhor do saldo de uma conta bancária,454 no qual um sujeito que tem
120
uma quantia depositada num banco, normalmente prazo – e, nessa medida, é titular de
um crédito à sua restituição - dá em garantia esse mesmo crédito a favor do mesmo
banco ou de um terceiro:455 456 todavia, discute-se se estaremos perante um penhor de
um verdadeiro penhor, no sentido de um direito real de garantia; trata-se, antes, duma garantia pessoal
dobrada pela autorização de debitar, na conta garante, determinadas importâncias”. Contra, advogando
estarmos perante um penhor de créditos, António Pedro A. Ferreira, Direito bancário, 2.ª Edição, Quid
Juris, 2009, págs. 661 e 662 (asseverando que o objecto da garantia são os créditos que o garante detém
sobre o banco e, embora tenha um modus operandi específico – traduzido no débito das importâncias
garantidas na conta do depositante e na obrigação do garante manter a conta aprovisionada -, “não parece
justificar um entendimento diverso, relativamente à respectiva natureza jurídica, daquele que resulta da
sua própria designação: trata-se de um penhor de créditos (…) incidindo especificamente sobre um
objecto determinado (o saldo daquela conta e não de outra qualquer), de que o próprio garante é o
titular, e não um qualquer terceiro”, embora ressalve que o verdadeiro objecto da garantia não é a conta
bancária, mas antes o saldo dela constante “o qual reproduz, em cada momento, a conjugação entre os
movimentos do deve e de haver efectuados sobre o depósito a que a conta se encontra necessariamente
associada e que nela são sistematicamente transcritos”). Para Pestana de Vasconcelos, Direito das
garantias cit., pág. 288, nota 798, as dúvidas surgem, especialmente, a propósito das hipóteses em que o
depositante, não obstante a constituição da garantia, permanece no direito de movimentar a conta, mas
entende não estarmos perante qualquer garantia pessoal, desde logo porque a responsabilidade assumida
pelo garante se circunscreve a determinados bens e, por outro lado, porque a função económica desta
garantia é em tudo idêntica à do penhor comum (até porque a qualificação da garantia como pessoal
permitiria iludir a proibição do pacto comissório) – no mesmo sentido, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág.
226 e segs., concluindo, em conformidade, pela legitimidade da execução do penhor por meio de
compensação ou imputação de créditos.
455
Define o penhor de conta bancária nestes termos Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit.,
págs. 287 e 288, esclarecendo que, caso o banco depositário seja o credor, “torna-se dessa forma titular
de um penhor sobre um crédito de que é ele próprio devedor. Em caso de incumprimento da obrigação
garantida, o banco satisfaz-se pela própria quantia aí depositada”..
456
Em Espanha, esta modalidade de penhor começou por ser repudiada pela jurisprudência (alegando que
o quid empenhado não reunia os requisitos de um contrato de penhor, nomeadamente porque o depósito
do dinheiro numa instituição bancária se traduz num depósito irregular e, como tal, transfere a
propriedade do bem depositado para o depositário, pelo que este não poderia ser titular de um direito real
de garantia sobre um bem próprio), mas acabou por ser aceite na modalidade de penhor de crédito à
restituição dos bens depositados (desde que se verifique a indisponibilidade da quantia depositada por
parte do constituinte, subsistindo, contudo, a controvérsia acerca da qualificação da fattispecie como
penhor regular ou irregular) – sobre esta evolução, vide Gómez-Salvago Sánchez, ob. cit., págs. 515 a 518
e Ginebra Molins e Mateo Borge, La pignoración de depósitos bancarios a plazo fijo: eficacia de la
prenda frente a embargos posteriores: consideración especial del pignus debiti, in Garantías reales
mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 577
e segs. (considerando estes últimos que a garantia será normalmente executada através de compensação,
quando ambos os créditos sejam líquidos e exigíveis - sem prejuízo de, nos casos em que o crédito do
empenhante à restituição do equivalente se vença antes do crédito garantido, se dar um efeito de sub-
rogação real, passando a garantia a incidir sobre o dinheiro e transformando-se, então, num penhor
irregular – evitando ao credor o recurso ao procedimento de execução do quid empenhado, a qual não
faria qualquer sentido pois redundaria na obtenção de um soma em dinheiro, concluindo que “la
ejecución por compensación es inherente a la naturaleza de tal pignoración (…) desde el punto de vista
económico”). Também Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho civil cit., págs. 310 e 311, alude a
esta evolução jurisprudencial (salientando que a aversão inicial apoiou-se na exigência legal de que os
bens empenhados sejam passíveis de posse – cfr. art.º 1864.º do CCE), concluindo que hoje em dia não
oferece discussão a constituição de um penhor com este objecto (seja numa operação com duas partes –
banca depositária e credora e devedor – ou a três – banca depositária não credora, devedor e credor).
Finalmente, também De la Santa García, ob. cit., pág. 89 e segs., se ocupa deste volte face
jurisprudencial, especialmente no que se refere ao penhor sobre depósitos a prazo, criticando a posição
ancestral (ancorada na impossibilidade de dação em penhor da tais bens, em razão da não incorporação
num título-valor, com base numa análise demasiado formalista do requisito da indispensabilidade de
posse dos bens empenhados) e aderindo à orientação mais recente (iniciada com as duas sentenças do
Supremo Tribunal de 19/4/1997 e de 7/10/1997) que não só admite o penhor de depósitos a prazo, como
clarifica que “lo que se pignora no es el dinero en sí, sino el derecho de crédito a la restitución que el
depositante tiene contra el Banco”, assinalando ainda que esta garantia será executada através de simples
121
direitos (rectius, de um penhor sobre esse crédito à restituição) ou, pelo contrário,
perante um penhor irregular,457 não sendo indiferente a perspectiva adoptada.458
122
A opção pela qualificação como penhor irregular enfrenta a dificuldade em
justificar a compensação como forma de execução da garantia, tendo em conta a normal
ausência de verificação de todos os requisitos legais desta figura (nomeadamente a
exigibilidade de ambos os créditos), a qual é contornada mediante a inserção de
cláusulas que admitem a compensação convencional a favor dos bancos.459
Ao invés, o recurso à figura do penhor de créditos representa uma alternativa
face aos obstáculos e às dúvidas originadas pelo penhor irregular, especialmente quando
o depósito a onerar pré-existe relativamente ao crédito garantido.460
123
O penhor de depósitos bancários, corrente no giro comercial, caracteriza-se pela
afectação de determinadas quantias depositadas em instituições de crédito ao pagamento
de certas dívidas, pela obrigação dos depositantes não movimentar aqueles (enquanto
subsistirem as dívidas) e pela autorização concedida ao banco credor para debitar, na
conta de depósitos em causa, as dívidas que se forem vencendo (o que obriga o garante
a manter a conta provisionada), discutindo-se se o depositário adquire ou não a
propriedade dos bens depositados e, em caso afirmativo, se incide directamente sobre o
saldo da conta empenhada – traduzindo-se num penhor irregular – ou, ao invés, sobre o
crédito de restituição de que o depositário-empenhante é titular.461
objecto onerado ou a suposta insusceptibilidade de posse dos créditos: quanto a este último – ou, em
termos mais amplos, no que toca à constituição da garantia -, na ausência de um regime legal, o Autor
recusa que a notificação do devedor do crédito empenhado seja indispensável para o efeito, porquanto a
função desempenhada pela entrega no penhor de coisas (que não é de natureza publicitária – ou, quanto
muito, o é apenas em termos negativos – mas antes a de criar uma situação de indisponibilidade para
alienar ou onerar o bem onerado por parte do empenhante) não pode ser assegurada, no penhor de
créditos, por aquela notificação (pois “No hay indisponibilidad material porque tampoco hay en los
créditos auténtica posesión o detentación material. Normalmente la indisponibilidad del crédito como
consecuencia de la notificación viene referida a que el deudor se abstenga de pagar al constituyente.
Ahora bien, creo que este efecto no deriva de la notificación, sino de la misma eficacia real traslativa del
contrato de prenda de créditos. Resulta una excepción al principio general de transmisión del dominio y
constitución de derechos reales mediante título y tradición (…) O es que el deudor no notificado, pero
que tiene conocimiento de la prenda, queda liberado por el pago realizado al constituyente?”, rematando
que “La notificación al deudor no es un requisito de eficacia de la prenda, ni inter-partes, ni frente al
deudor”), tanto mais que a mesma também não é imposta em sede de cessão de créditos (o Autor acredita
que da falta de notificação nenhum prejuízo decorre para terceiros, sendo o credor pignoratício o único
eventual lesado, porquanto o pagamento efectuado pelo devedor do crédito onerado ao constituinte da
garantia será liberatório, sempre que aquele desconheça a existência do penhor: todavia e como paliativo
deste prejuízo, aceita que possa reclamar do empenhante o crédito por este recebido, para além de uma
indemnização pelos danos sofridos), considerando mesmo que, para a oponibilidade da garantia a
terceiros, não será necessária a redacção do documento público imposto pelo art.º 1865.º do CCE,
podendo a constituição da garantia provar-se por qualquer outro meio (o Autor ancora esta posição no
facto de aquela exigência ser ditada para o penhor de coisas e, não se encontrando o penhor de créditos
regulado na lei – sendo o seu regime decorrente, em conjunto, das normas do penhor e da cessão de
créditos – e considerando aquela imposição excepcional em face do regime geral de prova, “No se puede
extender la excepcionalidad a supuestos de prenda no previstos ni reguldos expresamente en el Título
dedicado a tal garantía em el Código”). Contra aqueles que se manifestam contra a ausência de
publicidade de um penhor concebido nestes termos, Finez Ratón, ob. cit., págs. 228 a 230, remete para o
direito alemão (em que existe uma total ausência de publicidade das garantias sobre bens móveis em geral
e sobre créditos em particular), considerando as finalidades publicitárias, no penhor de créditos, “quedar
en manos de elos terceiros, que deterá averiguar ena cada caso elos graváveis o limitadores que recaem
sobre gel crédito. Igualmente, pueden asegurarse los derechos de los terceros imponiendo la obligación
al constituyente de la garantía de declarar la situación en la que se encuentra el crédito”. Noticia ser esta
a concepção dominante no direito francês anterior à reforma de 2006 (num quadro legislativo em que a
figura não gozava de regulamentação legal) Dominique Doise, ob. cit., págs. 40 a 42, identificando como
objecto da garantia o crédito do constituinte sobre a entidade depositária, correspondente ao saldo
disponível da conta, devendo observar-se as formalidades legalmente impostas para a criação deste tipo
de garantias (nomeadamente a notificação do devedor do crédito empenhado): porém o Autor não deixa
de relatar a manutenção de algumas vozes divergentes, enquadrando um penhor com este objecto no
âmbito das garantias sobre coisas corpóreas (mais precisamente, os espécimes monetários
correspondentes ao crédito da conta, implicando a constituição da garantia a entrega do bem
desmaterializado que é a moeda escriturária, a qual implicará a criação de uma conta especial para o
efeito), posição esta contestada pelo Autor (pois se esta conta especial estiver aberta em nome do credor
ou de um terceiro detentor estaremos perante um penhor de dinheiro – uma vez que o dinheiro não se
encontra na conta do constituinte, não poderá ser empenhado -; ao invés, se a conta for aberta em nome
do constituinte, não existirá nenhuma entrega de moeda escriturária ao credor).
461
Entendendo que o objecto desta garantia é o próprio saldo da conta, vide Menezes Cordeiro, Direito
bancário cit., pág. 727, (considerando que a circunstância de o empenhante se obrigar a manter a conta
124
No direito italiano, a questão torna-se mais complexa quando o que é
empenhado é uma caderneta de depósito, distinguindo alguns consoante seja conferida,
ou não, ao banco a faculdade de dispor de tais bens, de modo a apenas integrar no
âmbito do penhor irregular a primeira hipótese.462
Cumpre, porém, distinguir consoante a conta bancária empenhada (ou à qual
pertencem as quantias oneradas) seja movimentável a qualquer momento463 ou, ao
invés, assuma a modalidade de depósito a prazo:464 nesta última hipótese, em princípio
o contrato de penhor atribui ao banco credor a faculdade de movimentação antecipada
em caso de incumprimento por parte do devedor; pelo contrário, tratando-se de um
depósito à ordem, ou se bloqueia a sua movimentação (de modo a evitar o esvaziamento
da conta) ou, em alternativa, se estipula que o penhor recai sobre o saldo da conta
bancária.465
Por outro lado, há quem distinga consoante a garantia seja constituída a favor do
depositário ou, pelo contrário, de um terceiro, fazendo reentrá-la na órbita do penhor
irregular apenas no primeiro caso.466
Este tipo de garantia costuma prestar-se para assegurar o cumprimento de
obrigações decorrentes de uma operação bancária (ou seja, a favor do credor), que pode
ser um simples empréstimo ou uma abertura de crédito.467
125
Por outro lado, a garantia pode igualmente incidir sobre uma conta corrente
bancária (cuja origem pode ser um depósito bancário ou uma abertura de crédito
concedida pelo banco), entendida como reflexo das diversas operações entre banco e
cliente, abrangendo o eventual saldo existente a favor do cliente no momento do
vencimento do crédito garantido (muito embora a mobilidade desta conta corrente a
torne pouco segura enquanto objecto de garantia).468
Contudo, poderá questionar-se a empenhabilidade da conta corrente,469 tendo em
consideração que, em rigor, parece não existir dívida nem crédito até ao encerramento
da conta, pelo que o objecto do penhor seria futuro e puramente eventual:470 uma
possível solução passará por admitir o penhor sobre o saldo provisório da conta numa
determinada data ou, em alternativa ou conjuntamente, pela criação de uma sub-
conta.471
Um outro tipo de garantia que, embora não incidindo directamente sobre
dinheiro, suscita dúvidas quanto ao seu carácter regular ou irregular é o penhor sobre
títulos de créditos, em particular quando a garantia seja constituída através de um
endosso pleno.472
límite pactado y mediante una comissión que percibe del cliente, a poner a disposición de éste, y a
medida de sus requerimientos, sumas de dinero por un cierto tiempo”, assumindo natureza consensual e
intuitu personae (de modo que o Banco se reserva o direito de, em certas circunstâncias, cortar a
concessão de crédito; o cliente não pode ceder a sua posição contratual a terceiro, sem o consentimento
do Banco; e, em caso de morte do cliente pessoa física ou de extinção da pessoa colectiva, o contrato
caducará).
468
Finez Ratón, ob. cit., pág. 14. De acordo com Meneres Campos, ob. cit., pág. 106, o contrato de conta
corrente bancária “caracteriza-se por proporcionar ao cliente bancário a disponibilidade, em qualquer
momento, de uma soma em dinheiro até um limite convencionado, sendo que as entregas que o devedor
realize na conta são imputadas no montante da dívida”.
469
Admitindo esta garantia e qualificando-a como um penhor sobre o crédito do titular da conta contra a
instituição bancária, Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 202.
470
Em face direito francês, Jacques Ghestin e outros, pág. 220. Também Dominique Doise, ob. cit., págs.
40 a 42, manifesta dúvidas, considerando a obrigatoriedade de determinação do objecto empenhado, da
legitimidade da dação em penhor de uma conta com estas características, considerando que a
possibilidade de movimentação da conta – e a falta de liquidez do crédito onerado - não afecta esta
determinação, embora diminuam a consistência da garantia, a qual recairá unicamente sobre o saldo da
conta pendente no momento da execução, isto é, a movimentação da conta não afecta a subsistência do
penhor, mas importa a não sujeição à garantia das quantias entretanto retiradas e, paralelamente, a
inclusão na órbita daquelas das importâncias eventualmente depositadas até ao momento da execução.
471
A primeira hipótese depara com um entrave, na medida em que, após a data indicada, a conta corre o
risco de se tornar apenas uma conta de depósitos, uma vez que as retiradas de dinheiro apenas seriam
admissíveis para montante que excedam o saldo provisório. Dadas estas dificuldades, Jacques Ghestin e
outros, ob. cit., pág. 420, advogam a criação de uma outra conta.
472
Para Alfonso Parisi, Costituzione di pegno: regolare o irregolare – diferenze, in
www.diritto.it/materiali/commerciale/parisi.html, pág. 2 e segs., quando o penhor de títulos de crédito se
constitua através de endosso, pignoratício ou pleno, existirá sempre um penhor regular. Pelo contrário,
quando seja acompanhado de um negócio subjacente constitutivo do penhor, importará analisar tal
negócio e averiguar se o constituinte pretende conceder ao credor apenas a legitimidade para o exercício
do direito (caso em que estaremos perante um penhor regular) ou, ao invés, também a titularidade do
direito incorporado no título (criando assim um penhor irregular): mais concretamente, “qualora il cliente
di una banca vincoli, a garanzia del proprio adempimento, un titolo di credito e non conferisca alla
banca medesima la facoltà di disporre del relativo diritto, si esula dall’ipotesi del pegno irregolare (…) e
si rientra nella disciplina del pegno regolare (…) in base alla quale la banca garantita non acquisisce la
somma portata dal titolo, con l’obbligo di riversare o scomputare il relativo ammontare, ma è tenuta a
restituire il titolo stesso (…) nel caso di pegno regolare i titoli di credito (…) non divengono di proprietà
dello stesso creditore (la banca), non essendo essi fungibili siccchè vanno restituiti e non possono da
quest’ultimo essere utilizzati”.
126
Como outros possíveis objectos da garantia pignoratícia, alude e regula o Código
o penhor sobre créditos473 e sobre outros direitos (cfr. art.ºs 679.º a 685.º),474 muito
embora a disciplina legal ditada para esta modalidade de penhor seja escassa,475
aplicando-se supletivamente os preceitos relativos ao penhor de coisas (cfr. art.º 679.º).
No que respeita aos outros direitos e atenta a multiplicidade e diversidade dos
potencialmente abrangíveis pelo penhor, a lei limita-se a remeter, quanto à sua
constituição, para o regime de transmissão desses mesmos direitos (cfr. n.º 1 do art.º
681.º), apenas limitando o âmbito dos direitos empenháveis àqueles que tenham por
objecto coisas móveis476 e sejam susceptíveis de transmissão (art.º 680.º).477 478
Nesta conformidade, a ausência de desapossamento não constitui entrava à
dação em penhor dos créditos (e de outros direitos), uma vez que é a própria lei que
consagra um sucedâneo do desapossamento do constituinte enquanto modo de
surgimento do penhor sobre tais bens.
A questão apresenta maior complexidade em ordenamentos, como o espanhol,
em que não se encontra consagrada na lei a figura do penhor de direitos (nem tão pouco
o penhor de créditos), sobretudo porque o art.º 1864.º do CEE impõe, como condição de
empenhabilidade dos bens, a susceptibilidade de posse sobre os mesmos.479
473
No domínio do Código de Seabra e dada a inexistência de normas específicas a este respeito, discutia-
se a admissibilidade do penhor de créditos, respondendo a doutrina em sentido afirmativo (vide Joaquim
Bastos, ob. cit., págs. 41 a 44 e Marques de Carvalho, ob. cit., págs. 50 a 54), apoiando-se na
empenhabilidadede dos títulos de crédito e de acções e, por outro lado, na aptidão dos créditos para serem
alvo da garantia geral (e, por isso, também de garantias especiais). Problema análogo ocorre, ainda hoje,
no direito espanhol, onde o respectivo Código não prevê nem regula o penhor de créditos – para mais
desenvolvimentos, vide infra n.º 5.2 do Capítulo I.
474
O Código Civil Brasileiro (cfr. art.º 1451.º), admite o penhor sobre direitos, susceptíveis de cessão,
sobre coisas móveis.
475
Para Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 141, a disciplina legal do penhor de direitos “não é apta para
satisfazer as exigências da praxis“.
476
Apesar de não ser possível a dação em penhor de créditos relativos à entrega de coisas imóveis, nada
obsta à empenhabilidade de créditos hipotecários, uma vez que o direito empenhado é a prestação e não o
imóvel hipotecado - Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 142.
477
Para além disso, o Código determina a obrigação do titular do direito empenhado entregar ao credor
pignoratício os documentos comprovativos desse direito que estejam na sua posse e em cuja conservação
não tenha interesse legítimo (art.º 682.º), força o credor pignoratício a praticar todos os actos
indispensáveis à conservação do direito empenhado e a cobrar os juros e demais prestações acessórias
compreendidas na garantia (art.º 683.º, muito embora se possa considerar que este dever já resultasse do
dever geral de conservação do bem empenhado previsto na alínea a) do art.º 671.º, aplicável ao penhor de
direitos por força do art.º 679.º) e manda aplicar o regime da cessão de créditos (no que respeita às
relações entre o devedor e o cessionário) às relações entre o obrigado e o credor pignoratício, sempre que
seja dado em penhor um direito por força do qual se possa exigir uma prestação, como sucede quando
seja dado em penhor um crédito (art.º 684.º).
478
No entanto, como bem realça Antunes Varela, Direitos das Obrigações cit., Vol. II, pág. 538), cumpre
distinguir o objecto do direito e o objecto da garantia, nada impedindo que um crédito que tenha por
objecto um bem móvel seja garantido por uma hipoteca sobre determinado imóvel (conforme se
comprova pela referência efectuada pelo Código do Notariado e pelo Código do Registo Predial ao
penhor de créditos hipotecários) e, inversamente, nada obsta a que um crédito que tenha por objecto um
imóvel seja garantido por outro que recaia sobre um móvel.
479
Com efeito, surgem sérias dúvidas acerca da empenhabilidade dos direitos em geral e dos créditos em
particular (manifesta estas reservas Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1878, concluindo que “cuando se
entregan derechos de crédito en garantía de una deuda no hay en rigor constitución de un derecho real,
sino una especial cotitularidad que afecta al lado activo del credito, sin alteración por lo demás de la
deuda (…) la situación es equivalente a una cesión de créditos a favor del acreedor principal”). Aceita,
pelo contrário, que o penhor possa recair sobre direitos, em geral, e créditos em particular, Albaladejo,
Derecho civil III cit., págs. 724 e 725, argumentando que a lei admite o penhor de “coisas” e que este
termo abrange coisas e direitos, que o art.º 1872.º alude a uma hipótese particular de penhor de créditos e,
por último, que “incluso los derechos no poseíbles (como, por ejemplo, el de crédito a cobrar una suma)
127
No entanto, a admissibilidade de um penhor sobre alguns direitos encontra-se
limitada por diversos factores, nomeadamente quando o objecto da garantia consista
num direito real.480
Desde logo, muitos destes direitos reais apenas podem ter por objecto bens
imóveis e, por isso e atenta a natureza imobiliária dos direitos inerentes aos bens
imóveis (cfr. art.º 204.º, n.º 1, alínea d)), não poderão ser dados em penhor (cfr. art.º
666.º, n.º 1, a contrario): é o que sucede com as servidões, o direito de superfície e a
hipoteca.481
128
Também a incindibilidade, face ao direito de propriedade a que se encontram
adstritos, condiciona inelutavelmente a constituição de penhor sobre alguns direitos
reais, como as servidões prediais, os direitos de aquisição preferente482 e o direito de
uso,483 o mesmo valendo para a empenhabilidade de autónoma de determinadas
faculdades compreendidas no âmbito de um determinado direito.484
Direitos existem cujo objecto compreende ou pode compreender,
simultaneamente, bens móveis e imóveis, sendo também muito duvidoso que tais
direitos possam ser dados em penhor.485
Por outro lado, a possibilidade de o credor pignoratício, por sua vez, dar em
penhor a coisa ou direito empenhado – o chamado sub-penhor - encontra-se vedada pelo
art.º 671.º, alínea b).486
Resta, por isso, o direito de usufruto sobre um bem móvel e, relativamente a este
não parece haver obstáculos à sua dação em penhor, tanto na modalidade de usufruto de
créditos, como de coisas.487
482
Por força desta restrição, Cano Martínez de Velasco, ob. cit., pág. 51, nega a empenhabilidade dos
direitos de aquisição preferente e das servidões prediais. Esta mesma inseparabilidade encontra
consagração legal, a respeito das servidões prediais, no art.º 1545.º, de acordo com o qual, salvas as
excepções previstas na lei, as servidões não podem ser separadas dos prédios a que pertencem, activa ou
passivamente (n.º 1), importando a afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios a
constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga (n.º 2), pelo que a mesma conclusão é
defensável em face do nosso direito constituído.
483
Cfr. art.º 1488.º, que proíbe o usuário de trespassar, locar e onerar o seu direito.
484
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág.
1569, aponta como exemplo a impossibilidade de constituição de um penhor apenas sobre o direito de
voto inerente a uma participação social.
485
Com base nesta consideração, Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 232 e Marques de Carvalho, ob. cit.,
pág. 57 negam a possibilidade de a garantia pignoratícia incidir sobre uma sucessão indivisa (no mesmo
sentido relativamente ao quinhão hereditário e a qualquer prestação de facto – positiva ou negativa - que
tenha por objecto um bem imóvel, Antunes Varela, Das obrigações cit., Vol. II, pág. 538). Admitindo esta
possibilidade apenas quando esta sucessão seja composta exclusivamente sobre bens móveis e exista um
título, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 23 e 24 e Jacques Ghestin e outros, ob. cit., págs. 220 e 221
(considerando como título válido o testamento, mas notando que a jurisprudência nega tal carácter à
notificação dos contratos do credor ao administrador da sucessão do devedor) e Planiol, Ripert, Becqué,
ob. cit., pág. 102 (embora reconheça que, na prática, apenas na sucessão testamentária será possível, em
virtude da existência de um título testamentário, o empossamento do credor; ao invés, na falta de
testamento torna-se impossível o empossamento do credor, quer por falta de título a entregar, quer porque
o herdeiro que pretenda empenhar a sua parte não poderia notificar os demais co-herdeiros, uma vez que
perante eles não é nenhum credor).
486
Sobre o sub-penhor e a sua admissibilidade, vide infra n.º 9.2.2 do Capítulo I. Também o art.º 2792.º,
n.º 1, parte final, do CCI proíbe esta prática. Admite-a, ao invés, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 228, em
face do direito catalão (não admite apenas a constituição de penhor sobre outro penhor comum, mas
também sobre penhores sem desapossamento, sobre hipotecas mobiliárias e sobre um direito de retenção
mobiliário) e Cano Martínez de Velasco, ob. cit., págs. 52 e 53 (embora esclarecendo que não se trata de
uma cessão do objecto previamente empenhado – negócio que configura uma sub-rogação subjectiva do
titular do direito de penhor, o qual se manteria intacto no seu conteúdo – mas antes a constituição de um
direito sobre outro).
487
Concluindo o mesmo em face do direito italiano, Realmonte, Il pegno cit., pág. 649 e Rubino, Il pegno
cit., pág. 213 (embora não admitindo, em razão da sua finalidade, a dação em penhor do usufruto legal
dos pais). No direito espanhol, De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 82 (reconhecendo, porém,
que o regime de tal garantia apresenta algumas especificidades, como sejam a impossibilidade de a
garantia ter um prazo superior ao de duração do usufruto) e Cano Martínez de Velasco, ob. cit., págs. 50 e
51 (argumentando com o expresso reconhecimento legal da possibilidade de o usufrutuário alienar o seu
direito, embora ressalvando que “La prenda de usufructo recae sobre los productos de la cosa y no sobre
ésta misma, ya que sobre elle incide el derecho de usufructo pignorado. Y nuestra fiura no es la de
prenda constituida sobre una cosa, sino de la prenda constituida sobre un derecho (de usufructo)”) e,
entre nós, Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 56. Contra, repudiando a oneração pignoratícia do direito
129
Já parece menos verosímil que o penhor possa incidir sobre a nua propriedade,
na medida em que tal pressuporia o consentimento do usufrutuário para possuir o bem
também por conta do credor488 ou, em alternativa, que aquele constituísse este como
detentor por sua conta.489
Incidindo o penhor sobre o usufruto, coloca-se a questão de saber o que sucederá
à garantia quando aquele direito se extinguir, parecendo que, à partida, o mesmo efeito
se produzirá relativamente ao penhor.490
Apesar de a regra geral apontar no sentido de a constituição do penhor de
direitos obedecer às mesmas regras vigentes para a transmissão do direito empenhado,
alguns Autores entendem que a constituição de penhor sobre o direito de usufruto
requer a entrega do bem objecto do direito onerado, já que o usufruto é um direito de
gozo que se projecta directamente sobre o uso do respectivo objecto.491
A nosso ver, tal entendimento choca com o disposto no art.º 1440.º, o qual, ao
estabelecer as formas de constituição do usufruto, se limita a indicar o contrato (para
além do testamento, da usucapião e da lei), omitindo qualquer referência à necessidade
de entrega do bem como condição para o nascimento do direito.
Aliás, a não ser assim todos os penhores incidentes sobre direitos reais de gozo
implicariam a entrega do bem ao credor pignoratício, o que significaria aniquilar o
de usufruto, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit.,
pág. 1569, ancorando a proibição na intransmissibilidade deste direito (pela mesma razão, nega que o
penhor possa recair sobre as servidões, a condição de membro de uma associação ou de sócio de uma
sociedade de pessoas), o mesmo sucedendo com aqueles direitos que se encontrem abrangidos por uma
cláusula contratual de intransmissibilidade. Nega igualmente a oneração pignoratícia do direito de
usufruto Salvador da Costa, ob. cit., pág. 42, mas com fundamento na circunstância de o usufruto ser
passível de hipoteca e o penhor apenas poder abranger coisas ou direitos não hipotecáveis (pela mesma
razão, exlui a empenhabilidade do direito de superfície).
488
Rubino, Il pegno cit., pág. 213, entende que, quando tal suceda e, em seguida, o usufruto se extinga, o
penhor deverá estender-se à plena propriedade (excepto se também sobre o usufruto incidisse outro
penhor e a causa de extinção não fosse oponível ao credor pignoratício), solução esta igualmente
consagrada, entre nós, para a hipoteca de usufruto (art.º 699.º, n.º 1) e no art.º 107.º, n.º 2, da Lei
hipotecária espanhola.
489
Prevendo esta possibilidade, Montel, Pegno cit., pág. 789 e De la Santa Garcia, Prenda de valores cit.,
págs. 81 e 82 (este último, afirma que “resulta indudable que el nudo propietario, a pesar de la existencia
del usufructo cuenta con derecho real sobre los bienes que, aunque reducido en su contenido tipico,
permanece inalterado en su facultad dispositiva, por lo que se encuentra capacitado para su
pignoración”, fundamentando a sua posição no facto de o art.º 489.º do CCE dispor que o proprietário dos
bens dados em usufruto pode aliená-los, entendendo, por maioria de razão, que os poderá também onerar:
todavia o Autor não deixa de reconhecer que “en virtud de la existencia de un derecho previo de
ussufructo con efectos erga omnes, no resultará excesivamente atractiva esta garantía para el acreedor
que tendrá que calcular el valor real del bien, para el caso de que se deba proceder a la ejecución de la
prenda, con un derecho de usufructo constituido a favor de un tercero que, sin duda, comportará una
mayor dificultad para localizar un adquirente interesado en su compraventa”). Admite igualmente a
prenda da nua propriedade Cano Martínez de Velasco, ob. cit., pág. 51, entendendo que o credor
pignoratício se converte em possuidor dessa nua propriedade – podendo exercer a acção de reivindicação,
em resultado da qual obterá a posse da coisa, embora a garantia continue a cingir-se ao direito, não
abarcando a coisa em si, mas apenas os proveitos desta desde a sua recepção.
490
No mesmo sentido para a hipoteca de usufruto, vide o n.º 2 do art.º 699.º. No entanto, Rubino, Il pegno
cit., pág. 213, admite que se o usufrutuário adquirir a nua propriedade (apesar de a garantia não se poder
extinguir à propriedade plena, pois o usufruto não poderá absorver a nua propriedade) o usufruto se
poderá manter vigente para protecção do credor pignoratício. Por seu turno, o n.º 3 do art.º 699.º também
admite a mesma solução neste caso, tal como nos casos de renúncia e de transferência dos direitos do
usufrutuário para o proprietário. Em termos semelhantes se exprime Barrada Orellana, ob. cit., pág. 224,
para quem, por aplicação analógica do art.º 107.º, n.º 1, da Lei Hipotecária, o se o usufruto se extinguir
por causas alheias à vontade do usufrutuário o mesmo acontecerá com o penhor; pelo contrário, cessando
o usufruto por causas imputáveis à vontade do usufrutuário a garantia pignoratícia subsistirá.
491
Neste sentido, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 223.
130
conteúdo económico do direito a onerar, os quais não poderiam usufruir das
prerrogativas inerentes ao gozo do bem, precisamente por dele ficarem privados em
razão da constituição da garantia.
Apesar de, conforme referido anteriormente, a ligação umbilical entre tais
direitos e a propriedade do bem sobre o qual incidem ser invocada como fundamento
para a inviabilidade da sua dação em penhor, em alguns ordenamentos jurídicos, como o
catalão, admite-se que o penhor possa recair sobre direitos de preferência de carácter
negocial e natureza real,492 sempre que incidam sobre bens móveis susceptíveis de
identificação, onerando o titular destes direitos a faculdade de adquirir um determinado
bem.
À luz do nosso direito, verificamos que a natureza predominantemente pessoal
do direito de preferência contratual, conduz a que o direito (e a obrigação de
preferência) contratual de preferência não sejam transmissíveis (e, por maioria de razão,
oneráveis), salvo pacto em contrário (art.º 420.º), impedindo, excepto na presença de tal
convenção, a constituição de um penhor com similar objecto.
Mesmo no direito catalão estes direitos493 apenas podem vigorar por um período
temporal limitado, o que condiciona a efectividade da garantia sobre os mesmos,
designadamente quando o prazo estabelecido para o exercício destes direitos se esgote
antes do vencimento da obrigação garantida.494
Verificando-se este circunstancialismo e de modo a evitar o esvaziamento da
garantia, poder-se-á atribuir ao credor pignoratício a faculdade de exercer esses direitos
em nome do seu titular, antecipando os fundos que para tal sejam necessários, passando
a garantia a onerar a coisa objecto do direito inicialmente empenhado.495
Uma última dúvida suscitada a este propósito prende-se com o objecto do
penhor neste âmbito, equacionando-se se será o próprio direito real ou, ao invés, a coisa
sobre a qual tal direito recai, inclinando-se RUBINO496 e MONTEL497 para a segunda
alternativa, sustentando que o direito serve apenas para delimitar os aspectos do
conteúdo económico da coisa que permanecem sujeitos ao penhor, podendo ser
afectados por uma eventual execução pignoratícia.
Para terminar, cumpre realçar a susceptibilidade de o penhor abranger direitos de
natureza não real, desde que cumpram os requisitos gerais acima expostos,498 como
492
A atribuição do carácter real a estes direitos depende da sua constituição por escritura pública e da
posterior inscrição no registo – Barrada Orellana, ob. cit., pág. 225, nota 357.
493
Estes direitos são, de acordo com Barrada Orellana, ob. cit., pág.226, nota 358, o direito de “opción”
(definido como aquele que permite ao seu titular adquirir um determinado bem através do pagamento do
preço ou da contraprestação acordada, dentro do prazo igualmente estipulado) e o direito de “tanteo” (que
possibilita a aquisição de uma coisa determinada, com preferência relativamente a qualquer terceiro que
pretenda adquiri-la a título oneroso, nas mesmas condições acordadas entre o transmitente e o terceiro).
494
Na hipótese inversa, isto é, quando a obrigação garantida se vença antes do terminus do prazo para o
exercício dos direitos de preferência dados em penhor, poderá o credor pignoratício, alternativamente,
manter tais direitos empenhados, realizar o respectivo valor através dos meios legalmente previstos ou
exercitar esse direito em nome do respectivo titular – Barrada Orellana, ob. cit., pág. 227.
495
Sustentando esta posição, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 227, acrescentando que este comportamento
do credor constitui uma medida de conservação da sua garantia.
496
Ult. ob. e loc. cit.. Mesmo o penhor constituído pelo pleno proprietário, teria como objecto a coisa em
si (e não a propriedade) e abarcaria a coisa em todos os seus possíveis aspectos.
497
Ult. ob. e loc. cit., pág. 788.
498
Montel, Pegno cit., pág. 788, entende não poderem ser dados em penhor os direitos de uso ou outros
estritamente pessoais, por lhes faltar a característica da transmissibilidade ou alienabilidade. Por outro
lado, Faggella, ob. cit., pág. 45, em termos mais genéricos, recusa a empenhabilidade dos bens com
carácter exclusivamente intuitu personae, citando como exemplos os diplomas e os certificados
necessários ao exercício de uma determinada profissão. Quanto a nós, ou os bens preenchem os requisitos
gerais enumerados no texto (nomeadamente a alienabilidade) e podem ser empenhados ou, não os
131
sucede com a dação em penhor das apólices dos seguros499 de vida500 ou de outras
apólices normalmente exigidas aquando da concessão de empréstimos para aquisição de
habitação com recurso a empréstimos bancários.501
cumprindo, a oneração pignoratícia afigura-se inviável, ou seja, o facto de serem destinados ao uso
pessoal e/ou profissional do devedor não basta, por si só, para negar a sua empenhabilidade (caberá,
quando muito, ao credor recusar recebê-los em garantia quando, em razão da probabilidade de o valor a
obter com a sua alienação ser reduzido, por força daquela natureza pessoal).
499
Entre nós, aceita expressamente a dação em penhor da posição jurídica do beneficiário de um seguro
Menezes Cordeiro, Direito bancário cit., pág. 729, esclarecendo que o mesmo se regerá pelas normas
vigentes para o penhor de créditos, com as alterações que as partes, ao abrigo da autonomia contratual,
tenham decidido introduzir (acrescentando a necessidade de as partes conjurarem a aplicação da proibição
do pacto comissório). Por outro lado e no direito italiano, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 101, dá-nos conta
de um penhor, de origem jurisprudencial, constituído sobre um contrato de seguro (trata-se de uma
cláusula através da qual o segurador se obriga a não pagar determinada indemnização ao segurado, antes
de se certificar da existência de um débito deste último para com terceiro, caso em que o segurador se
obriga a pagar a indemnização a este terceiro).
500
Apontam este exemplo, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 53, considerando ser esta uma garantia
comummente prestada quando o credor conceda um crédito a longo prazo e deseje prevenir-se contra o
risco de morte do seu devedor, embora admitam que a execução de um penhor com este objecto possa
enfrentar algumas dificuldades, por força do carácter pessoal do direito do assegurado. De acordo com
Legeais, Sûretés 2009 cit., págs. 404 a 406, a celebração de um contrato de seguro destes faz nascer, a
favor do subscritor ou de um terceiro beneficiário, um direito de crédito contra a seguradora, o qual pode
ser utilizado como garantia, seja através de um autorização para o credor receber directamente a prestação
do segurador, seja designando o credor como beneficiário directo do seguro, seja dando em penhor a
própria apólice: ora, esta última modalidade encontra reconhecimento legal no art.º L. 132-10 do Code
des Assurances (nos termos do qual a garantia se pode constituir através de modificação ao contrato de
seguro, de endosso a título de garantia – se a apólice for à ordem – ou através das formalidades previstas
para a dação em penhor de bens incorpóreos: em qualquer dos casos, será sempre necessário o
consentimento escrito do beneficiário da apólice, aspecto este justificado pelo facto de a oneração
significar uma revogação da designação do beneficiário da apólice – Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., págs. 371 e 372 e Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 200), gozando igualmente do
beneplácito da jurisprudência (que reconhece a livre disponibilidade do direito de resgate por parte do
subscritor ou do beneficiário e, por consequência, a licitude da cláusula de delegação do direito de resgate
- cláusula esta que, na óptica judicial, não viola a proibição do pacto comissório, a qual, como se verá, foi
até revogada ou, pelo menos, atenuada no direito gaulês), distinguindo a lei consoante a aceitação do
beneficiário do seguro seja anterior à constituição da garantia (caso em que esta se encontra sujeita ao
acordo daquele) ou posterior (caso em que esse consentimento não afecta os direitos do credor
pignoratício). Importa, noutro plano, distinguir consoante o crédito garantido se torne exigível antes ou
depois do termo da apólice: neste último caso, (raro, uma vez que normalmente o credor mune-se de
cláusula de exigibilidade antecipada) o segurador deverá consignar uma soma correspondente ao crédito
garantido até à exigibilidade deste (nos termos do art.º 2364.º do CCF); na hipótese inversa e salvo
cláusula em contrário, o credor pignoratício pode provocar o resgate, não obstante a aceitação do
beneficiário do seguro (faculdade este que, como sublinham Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit.,
pág. 572, pode ser exercida mesmo quando o penhor tenha sido constituído após a aceitação do
beneficiário e resulta num modo de realização simplificado da garantia; já Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 373, sublinham que esta possibilidade de resgate não contende com a proibição do pacto
comissório por não se tratar de um modo de disposição, mas apenas de uma modalidade de execução da
apólice de seguro, opinião partilhada por Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 200). Por último, cumpre
realçar que o pagamento dos prémios de seguro continua a ser da responsabilidade do devedor
empenhante, mas sem prejuízo de, se o não fizer, assistir ao credor a faculdade de o efectuar (art.º L 132-
19 do Code des Assurances e Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 372).
501
Com efeito, a generalidade das instituições bancárias impõe, como condição da concessão de
empréstimos para aquisição de habitação – o chamado crédito à habitação – a celebração, por parte do
mutuário, de um contrato de seguro (para além de outro destinado a assegurar o imóvel que se pretende
adquirir) destinado a cobrir os riscos - de morte, invalidez ou desemprego ou outros - que possam
comprometer a liquidação do empréstimo. Neste caso e como destacam Simler e Delebecque, Droit civil
2009 cit., pág. 573, estaremos perante um penhor de créditos, dado que o mutuário, ao assumir a
qualidade de segurado “devient un créancier virtuel de la compagnie d’assurance et donne cette créance
future en nantissement à son banquier. Les indemnités que l’emprunteur est appelé à recevoir se trouvent
132
Quanto aos créditos, o Código, ao contrário de outros,502 estabelece (cfr. n.º 2 do
art.º 681.º) uma modalidade alternativa, face à entrega do bem, de constituição da
ainsi nanties en faveur du prêteur” (pelo contrário, se o beneficiário do seguro for o banco mutuante,
estaríamos perante uma garantia pessoal fornecida pelo mutuário ou mutuante).
502
Conforme referido anteriormente, o ordenamento espanhol não consagra expressamente a figura do
penhor de créditos, embora a figura logre consagração expressa no Código Civil da Catalunha (cfr. art.º
569-13, n.º 3, estabelecendo que a garantia se constitui em documento público e deverá ser notificada ao
devedor do crédito empenhado), ao que acresce a circunstância de o art.º 1864.º do CCE impor, como
condição de empenhabilidade de qualquer bem, a admissibilidade de posse sobre o mesmo), pelo que se
levantam dúvidas acerca da admissibilidade da figura, ao menos quando o crédito não se encontre
incorporado num título (caso em que a posse se exerce sobre o título, bem móvel corpóreo). Ainda assim,
admite a validade de um penhor de créditos, mesmo que não incorporados em títulos, De la Santa Garcia,
Prenda de valores cit., pág. 75 e segs., desde logo porque a lei admite a penhora de tais bens (para além de
consagrar figuras que, ao menos na opinião de alguns, constituem verdadeiros penhores de créditos, como
sejam o penhor de participações sociais e de apólices de seguro de vida), depois porque a exigência de
posse como condição de empenhabilidade dos bens se encontra associada à necessidade de obter o
desapossamento do constituinte da garantia (desse modo assegurando a protecção do direito do credor
contra actos de disposição material e/ou jurídica por parte daquele), mas, quando estejam em causa
direitos de crédito “si fuéramos capaces de encontrar un medio que, cumpliendo la misma finalidad de
aseguramiento, pudiera sustituir la posesión, no existiria obstáculo para admitir la prenda de derechos
de crédito. Así las cosas, con la notificación al deudor del crédito de que se ha constituido la prenda, se
consigue que el pago que éste pueda hacer en adelante a su credor no sea liberatorio, igual que ocurre
cuando se cede un crédito (…) la notificaión en la prenda de crédito cumpla idéntica función que el
traslado posesorio en la prenda de bienes muebles (…) es equivalente a la puesta en posesión del
derecho a favor del acreedor”. De acordo com o Autor, os créditos “además de consistir en el lado activo
de una relación jurídica, adquieren también una existencia objetiva que permite considerarlos como
cosas en cuanto representan un valor patrimonial, así como de realizar con ellos operaciones de tráfico
que se pratican habitualmente con las cosas corporales (…) lo que nos permite su “cosificación”, y es
precisamente sobre esta realidad inmaterial, pero cosificada, sobre la que recae el derecho de prenda”.
Todavia e apesar de reconhecer a aplicação subsidiária do regime civilístico do penhor (moldado para o
penhor de coisas corpóreas), o Autor advoga a introdução de alguns desvios, motivados pela especial
natureza do quid a onerar, seja no que respeita à constituição (com a notificação ao devedor do crédito
cedido a substituir a entrega do bem ao credor pignoratício), seja quanto à execução da garantia
(distinguindo consoante o crédito empenhado se vença antes do garantido – permitindo-se, então, ao
credor pignoratício cobrar directamente o crédito empenhado, conservando a quantia cobrada depositada
até à data do vencimento do crédito garantido, caso em que o utilizará para liquidação de tal crédito ou,
em caso de cumprimento por parte do devedor, o devolverá a este - ou, pelo contrário, o crédito garantido
se vença em primeiro lugar, caso em que o credor pignoratício apenas poderá executar a garantia depois
de vencido o crédito onerado). Cruz Moreno, La prenda de créditos, Revista de derecho imobiliario, n.º
618, 1993, pág. 1273 e segs., destaca que as dúvidas quanto à admissibilidade do penhor de créditos
advêm, por um lado, do facto de o art.º 1863.º do CEE não mencionar os créditos entre os possíveis
objectos do penhor e, por outro, da necessidade de o bem empenhado ser susceptível de posse (art.º
1864.º) e a Autora, centrando a sua atenção neste segundo aspecto, conclui que a sua imposição resulta da
necessidade de assegurar o empossamento do credor pignoratício, cuja finalidade é a de garantir a
efectividade do penhor (evitando possíveis danificações do bem onerado e advertindo terceiros da
constituição da garantia): ora, a admissibilidade do penhor de créditos estará dependente da identificação
de um mecanismo que cumpra o mesmo desiderato de assegurar o direito do credor pignoratício, que será
a notificação ao devedor do crédito onerado, através da qual “se consigue que el pago que éste haga en
adelante a su acreedor no sea liberatorio (…) colocándose el constituyente de la garantía (titular del
crédito objeto de la misma) en una situación equivalente a aquella en la que se encuentra el propietario
constituyente de prenda sobre objeto material tras la transmisión de la posesión del mismo”. Para além
do mais, a Autora aduz outros argumentos em favor do reconhecimento do penhor de créditos, como
sejam a circunstância de a lei espanhola reconhecer a transmissão desses mesmos direitos (pois se
possuem um conteúdo patrimonial, susceptível de ser traficado, “No hay mayor dificultad teórica en
admitir la transmisión de un derecho de crédito (…) que en admitir la constitución de un derecho de
carácter limitativo sobre él”) e a empenhabilidade dos créditos incorporados em títulos (pois “cuando se
pignoran títulos-valores, en realidad se están pignorando los derechos de crédito a ellos incorporados.
El título es el medio material que hace posible la constitución del gravamen (…) porque exsite una
ficción jurídica por la cual se considera que la posesión del título equivale a la del derecho a él
133
garantia (notificação do devedor do crédito empenhado ou aceitação deste ou, tratando-
se de penhor sujeito a registo, a respectiva inscrição) e regula alguns aspectos
específicos do seu regime.
Estabelecendo o Código como únicas limitações o carácter mobiliário do objecto
do crédito503 e a respectiva transmissibilidade (cfr. art.º 680.º), 504 o crédito empenhado
pode ter como objecto, além de prestações pecuniárias, igualmente prestações de dare505
ou de facere ou non facere,506 na medida em que sejam respeitados os demais requisitos
incorporado” – este carácter instrumental dos títulos, enquanto suporte no qual se incorporam os créditos,
fica ainda mais patente com o advento do sistema das anotações em conta, pelo que o não reconhecimento
do penhor de créditos não incorporados em títulos significaria “negar la posibilidad de utilizar como
garantía pignoratícia los mismos derechos que antes lo eran, so pretexto de la pérdida del viejo soporte
cartular”, isto é, “Si ahora se admite la pignorabilidad de unos derechos que ya no son poseíbles porque
se ha encontrado un adecuado sistema de publicidad (…) por qué no admitir la pignorabilidad de un
derecho de crédito si con la notificación de la constitución del gravamen se puede conseguir igual
resultado?” - , razão pela qual “no hay motivo para negar la aptitud para ser objeto de garantía de los
derechos de crédito no incorporados a títulos-valores si se halla un modo que satisfaga las necesidades
de aseguramiento a las que responde la transmisión posesoria”, modo esse que é, precisamente, a
notificação do terceiro devedor do crédito empenhado. Em conclusão, a Autora remata afirmando que
“las necesidades del tráfico abogan por una interpretación extensiva del régimen legal prendario a los
derechos de crédito, que sería extra legem pero intra jus”). Finalmente, Gil Rodriguez, La prenda de
derechos de crédito, in Tratado de garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996,
pág. 361 e segs., depois de distinguir esta garantia do penhor irregular (alegando que neste último o
vencimento e incumprimento do crédito garantido gera a imediata compensação imprópria do crédito à
restituição do equivalente, enquanto no penhor de créditos ambos os créditos conservam a sua autonomia
quanto ao momento do respectivo vencimento), qualifica o penhor de créditos como uma garantia atípica
(legítima, atendendo ao princípio da liberdade contratual), submetida basicamente ao regime ditado para a
cessão de créditos (com o ónus de notificação ao terceiro devedor do crédito cedido, destarte evitando o
pagamento deste ao seu credor), negando, porém, ao credor pignoratício um verdadeiro direito de
preferência, atendendo à natureza convencional e atípica da garantia (sem prejuízo, contudo, da
possibilidade de, antes de vencido o crédito garantido, o credor pignoratício poder cobrar o crédito
onerado logo que este se vença – e, se ambos forem pecuniários, se operar uma compensação; caso o não
sejam, passando a garantia do credor a traduzir-se num verdadeiro penhor sobre a coisa que tenha sido
prestada - e, no momento do vencimento do crédito garantido, se poder obter o pagamento por via de
compensação).
503
Por força desta restrição, não poderá ser empenhado um crédito que tenha por objecto uma coisa
imóvel, mas, como salienta Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 12 a 14, pode referir-se a uma coisa móvel
presente ou futura (argumentando que, neste segundo caso, a protecção do credor pignoratício é
assegurada através da atribuição do direito de cobrança – cfr. art.º 685.º, n.º 1 – para além de o Código
Civil não fazer qualquer referência à natureza presente ou futura do bem móvel objecto do crédito). Nega
a empenhabilidade de um crédito cujo objecto resida na entrega de uma coisa imóvel, Pestana de
Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 247.
504
Já na vigência do anterior CCI, Pace, ob. cit., pág. 54, destacava serem estes os únicos obstáculos à
dação em penhor de créditos.
505
Rubino, Il pegno cit., pág. 202, nota 1 (mesmo que a prestação de dare respeite a coisas diversas de
dinheiro), Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 14 (admitindo a dação em penhor de créditos que tenham por
objecto prestações fungíveis, infungíveis, genéricas, alternativas ou com faculdade alternativa, desde que
as prestações ou o género digam respeito a um bem móvel) e Pace, ob. cit., pág. 54 (aprovando a
constituição de penhor sobre créditos cuja prestação consista em objectos diversos do dinheiro).
506
Da mesma opinião são Realmonte, Il pegno cit., pág. 650 e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 147 (muito
embora estes últimos Autores estabeleçam restrições quanto às prestações de facere, apenas admitindo a
sua dação em penhor quando a prestação seja fungível e, por outro lado, considerando que se o objecto da
prestação – depois do seu cumprimento - não for susceptível de conservação o credor pignoratício não
disporá do ius exigendi, pois tal faculdade implicaria uma apropriação do bem, em violação da proibição
do pacto comissório, não sem esclarecer que, quando o penhor recaia sobre um mero direito de crédito à
restituição ou à entrega de uma coisa certa e determinada, o penhor terá por objecto a própria coisa e
deverá constituir-se sobre essa mesma coisa). Entre nós, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 178,
nota 1 (considerando que tais créditos podem não ter natureza pessoal e, por outro lado, podem ser
avaliáveis em dinheiro relativamente a pessoa diversa do credor originário) e Colaço Canário, ob. cit.,
134
enumerados para qualquer objecto de penhor, ou seja, desde que “alienáveis e
executáveis”,507 podendo abranger igualmente uma fracção de um crédito.508
Noutro plano, nada obstará à dação em penhor de uma obrigação conjunta ou
alternativa, embora neste último caso a faculdade de proceder à concentração deva
caber ao empenhante, uma vez que este mantém a titularidade do crédito onerado.509
Há, todavia, alguns casos que merecem algumas considerações adicionais, como
seja a eventualidade de o crédito dado em penhor se encontrar, por sua vez, assegurado
por qualquer garantia (penhor ou hipoteca, por exemplo).
Nestes casos, não é de crer que a garantia que assegurava o cumprimento do
crédito empenhado passe a ser objecto do penhor (o que, desde logo, seria inviável no
que à hipoteca diz respeito), importando distinguir consoante o crédito empenhado seja
garantido por penhor ou por hipoteca.510
Ocorrendo a primeira hipótese, o novo credor pignoratício exercita a maior parte
dos poderes do concedente relativamente ao crédito empenhado,511 embora não todos
(designadamente a posse da coisa permanece no concedente).512
Pelo contrário, encontrando-se o crédito dado em penhor garantido por hipoteca,
será necessária uma anotação à margem da inscrição da hipoteca (cfr. art.º 2.º, alínea o),
do Código do Registo Predial,513 de acordo com o qual o penhor de créditos garantidos
por hipoteca se encontra sujeito a registo), prevalecendo, entre os eventuais diversos
credores preferentes, aquele que primeiramente houver efectuado tal anotação.514
pág. 61 (apenas se os créditos em questão não tiverem natureza estritamente pessoal e puderem ser
avaliados em relação a pessoa diversa do empenhador) admitem, em certos termos, a empenhabilidade de
tais créditos, com posições muito próximas da de Rubino, Il pegno cit., pág. 202, nota 2, pelo menos com
respeito aos créditos de fare e non fare que sejam inexecutáveis em razão da impossibilidade de se
proceder a uma avaliação económica dos mesmos se não relativamente ao seu credor inicial. Já Neves de
Oliveira, ob. cit., pág. 14, apenas admite que o penhor incida sobre uma prestação de facto tendo em
conta o resultado da prestação, isto é, “na medida em que a obrigação não tenha natureza pessoal e o
resultado da actividade a que o devedor fique adstrito consista num bem móvel, com sucede no caso em
que A se obriga perante B a construir um móvel decorativo” (negando, pelo contrário, a empenhabilidade
quando o resultado da prestação de facto não conduza à atribuição patrimonial ou à permissão de
aproveitamento pelo credor de um bem móvel), enquanto Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias
cit., pág. 247 e Salvador da Costa, ob. cit., pág. 42, negam, sem mais, a empenhabilidade dos créditos a
prestações de facto e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 145 admite a empenhabilidade das prestações de
facere (ao menos quando o facere possa ser executado, mesmo no confronto com terceiros) e até das
simples expectativas jurídicas. Contra a empenhabilidade de créditos que tenham como objecto uma
prestação de facere ou de non facere, mostra-se Pace, ob. cit., págs. 54 e 55, alegando que, pela natureza
da prestação, não são susceptíveis de avaliação económica, a não ser por referência ao interesse pessoal
do credor.
507
A expressão é de Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 178, nota 1. Em termos análogos, Colaço
Canário, ob. cit., pág. 61, excluindo a empenhabilidade dos créditos intransmissíveis (como sejam os de
natureza pessoal) e inexecutáveis. Assim, por exemplo, os créditos incedíveis, a que se fez menção,
também não poderão ser, em regra, dados em penhor (no mesmo sentido, Chironi, ob. cit., pág. 490).
508
É a solução consagrada, após a reforma de 2006, no art.º 2358.º do CCF, exceptuando, porém, o caso
de o crédito a empenhar ser indivisível (art.º 2358.º, n.ºs 1 e 2).
509
Assim, Cano Martínez de Velasco, ob. cit., pág. 89.
510
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., págs. 211 e 212.
511
Nomeadamente o novo credor pignoratício adquire o direito a perceber os frutos e, em caso de
inadimplemento do crédito dado em penhor, pode promover a execução pignoratícia sobre a coisa dada
em garantia, satisfazendo-se sobre o produto da respectiva venda – Rubino, Il pegno cit., pág. 212.
512
Aplicando o art.º 582.º, n.º 2, por remissão do art.º 684.º.
513
Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho, com a última redacção conferida pelo Decreto-
Lei n.º 185/2009, de 12 de Agosto.
514
Embora surja outro problema, qual seja o de saber se o devedor do crédito dado em penhor ficará
liberado se efectuar o pagamento a quem lhe notifique primeiro a constituição do penhor – Rubino, Il
pegno cit., pág. 212.
135
3.3 - Bens futuros
515
Assim, entre nós, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 71, Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 41,
Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 48, Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 232 e 233 (este Autor advoga a
necessidade de existência presente do bem para poder ser objecto do penhor, mesmo nos casos em que a
entrega ao credor não seja efectiva, mas meramente simbólica. Todavia entende ser suficiente, para poder
ser dada em penhor, que a coisa tenha existência material, ainda que não jurídica, apontando como
exemplo a admissibilidade do penhor sobre acções de uma sociedade comercial ainda não colocadas em
circulação) e, mais recentemente, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 31, Oliveira Ascensão, Direitos reais
cit., pág. 631 (alegando que, se o direito real se destina à afectação de uma coisa, esta deve existir
actualmente, assinalando ser esta uma diferença face aos direitos de crédito, os quais podem incidir sobre
bens futuros) e o Parecer da PGR n.º 1/86, in BMJ n.º 374, págs. 35 a 42 (argumentando com a
necessidade de o bem empenhado ser “certo”, tendo em conta que os bens futuros não se encontram, por
natureza, identificados, muito embora como nota Rui Lopes dos Santos, Penhor de estabelecimento
comercial à luz do direito português, Relatório de mestrado, 2002, in Biblioteca da FDUL, pág. 13, no
mesmo parecer se faça alusão à admissibilidade legal de penhor sobre frutos, entendidos como uma
modalidade de coisas futuras, sem daí retirar, todavia, consequências relevantes). Noutros ordenamentos,
Gino Magri, ob. cit., pág.17 (admitindo apenas o surgimento de uma obrigação de dar em penhor um
dado bem) Montel, Pegno cit., pág. 788, Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 146 (embora salientando que a
jurisprudência admite, no caso de penhor sobre bens fungíveis, que a substituição dos bens onerados por
outros eventualmente ainda não existentes no momento da constituição da garantia, com fundamento no
instituto da sub-rogação real), Jobard-Bachellier, ob. cit., pág. 57, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 257,
Mestre, Putman e Billiau, ob. cit., pág. 224 (considerando, ainda, ser esta a posição tradicional da
jurisprudência francesa), Puig Brutau, ob. cit., pág. 27, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 220 e 221
(considerando, ainda, que a faculdade de substituição dos bens empenhados após a constituição da
garantia não se traduz num penhor de um bem futuro, pois o que sucede é que a garantia se projecta
inicialmente sobre um bem determinado e a substituição pressupõe a entrada de um novo bem na relação
pignoratícia, bem este que, ainda que não exista no momento da constituição do penhor, existirá
seguramente no momento da substituição), López, Montés e Roca, ob. cit., pág. 443 (em razão da
impossibilidade de entrega dos mesmos) e Serrano Alonso, ob. cit., pág. 264.
516
Hardel, ob. cit., pág.73 e segs., enumera a hipoteca naval de navios em construção, a dação em penhor
das colheitas futuras, de direitos eventuais (maxime do direito do construtor a ser indemnizado pelo valor
do trabalho efectuado num terreno alheio), de créditos futuros, de direitos sucessórios e de bens fungíveis
destinados a alienação (nesta última hipótese, porém, discute-se o enquadramento jurídico da operação,
aceitando o Autor que se trate de um caso de sub-rogação real – nos termos da qual as novas mercadorias
adquiridas em substituição das originárias ocuparão o lugar destas enquanto objecto da garantia -
justificando “cette clause tacite de remplacement des marchandises comme une promesse de mise en
gage des marchandises substituées, promesse basée d’ailleurs sur une idée de subrogation réel, la mise
de ces biens nouveaux entre les mains du créancier, c’est-à-dire le dessaisement, étant considéré comme
la realisation de la promesse, donc du nantissement”, admitindo mesmo que este tipo de convenção se
deverá presumir “car le gagiste, selon toute vraisemblance, ne se serait pas contenté d’une sûreté dont
l’aliénation normale et prévue le privait de toute garantie solide”). Também no direito espanhol e
segundo Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 372 e segs., lograram consagração diversas garantias reais
tendo por objecto bens futuros, como sejam a hipoteca naval de navios em construção, a sub-rogação da
hipoteca em elementos que substituam outros inicialmente nela compreendidos (como sejam o caso das
obras de transformação) e a extensão da hipoteca a bens que posteriormente se juntem à coisa principal ou
aos frutos da coisa hipotecada (referida ao momento do cumprimento da obrigação garantida, o que
significa que tal extensão “no se limita precisamente a los que estuvieren manifiestos o pendientes en el
instante de la constitución de la hipoteca, sino a todos aquellos que, aun siendo mera esperenza en
aquella fecha, ya estén pendientes, separados o recogidos y pertenezcan al hipotecante al día de
136
Naturalmente que antes do advento desses bens será legítima a celebração de um
contrato-promessa de penhor, nos termos anteriormente expostos, adquirindo o credor
um direito pessoal de exigir a entrega da coisa a partir do momento em que esta surja,
nascendo o direito real de penhor apenas nesse momento.518
Mais ainda, antes da entrega da coisa o próprio contrato (definitivo), ou outro
título para a constituição do penhor, será válido como vínculo de natureza obrigatória
entre as partes, mas o direito real pignoratício apenas nascerá com o surgimento do bem
e a sua posterior entrega ao credor ou a terceiro.519
137
O contrato criador do direito de penhor pode ser entendido, em alternativa e de
acordo com uma outra perspectiva, como uma “fattispecie a formazione progressiva”
incompleta (ou melhor, como um contrato de penhor definitivo, mas incompleto) antes
do surgimento e da entrega ao credor do bem a empenhar.520
Nesta conformidade, o direito de penhor apenas se perfecciona com o
surgimento da coisa a onerar e com a respectiva outorga ao credor, pelo que antes disso
a convenção pignoratícia será apenas produtora de efeitos obrigacionais, o mais visível
dos quais reside no dever imposto ao concedente de outorgar a garantia.521
Se as considerações expostas são perfeitamente válidas para aqueles penhores
para cuja constituição se requer a entrega efectiva do objecto da garantia (maxime o
penhor de coisas corpóreas), já não serão tão indubitáveis relativamente aos penhores
que se poderão constituir de outros modos.
Esta afirmação é facilmente comprovável pelo estudo da recente reforma do
direito francês, operada em 2006, a qual, ao deixar de exigir do desapossamento do
empenhante como condição para o surgimento do penhor,522 proclamou, em
conformidade e no seu art.º 2333.º, a possibilidade de a garantia abranger bens
futuros.523
penhor de bens alheios será válido entre as partes, mas apenas se tornará eficaz a partir da data de
aquisição do bem pelo constituinte da garantia, não sendo legítimo, porém, ao devedor opor ao credor a
natureza alheia da coisa dada em penhor. Quanto a este último aspecto, vide, no mesmo sentido, Montel,
Pegno cit., pág. 789), Mauro Bussani, Il modello italiano delle garanzie reali, in Contrato e Impresa, n.º
15 (1997), pág. 172 (pelo menos quando o penhor tenha por objecto uma coisa corpórea, afirmando que
“il titolo avrà effetti solo obbligatori, mentre la nascita della prelazione avverrà con la venuta ad
esistenza e lo spossessamento del bene medesimo”) e Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 155. Cordero
Lobato, Comentario cit., pág. 2145, entende que, antes da entrega do bem a onerar ao credor ou a terceiro
(bem como de redigido o documento com data certa), o contrato de penhor não se considera constituído
erga omnes, ou seja, a verificação destes dois requisitos é condição de oponibilidade da garantia a
terceiros.
520
A expressão e este entendimento são de Rubino, Il pegno cit., pág. 205. Segundo este Autor, averiguar
se estamos perante uma ou outra situação dependerá da interpretação da vontade negocial das partes,
embora o Autor estabeleça uma presunção a favor da segunda alternativa, especialmente quando tenha
sido redigido um documento escrito contendo suficiente indicação do crédito assegurado e do bem
empenhado.
521
Neste sentido, vide a sentença da Corte de Cassação Italiana de 27/8/1998, n.º 8517, in Giustizia
Civile, 1999, I, pág. 97 e segs., na qual se especifica que “la volontà delle parti è già perfetta nel
momento in cui nell’accordo sono determinati sia il credito da garantire che il pegno da offrire in
garanzia, mentre l’elemento che deve verificarsi in futuro, per il completamento della fattispecie, è
meramente materiale, consistendo esso (oltre che nella venuta ad esistenza della cosa) nella consegna
della cosa al creditore”. Comentando esta decisão, Maria Costanza, Dubbi sull’esistenza di pegno di cosa
futura, na mesma revista, a páginas 99 e segs., sustenta que, em situações como a objecto do aresto em
questão (em que o banco credor havia concedido crédito a uma dada sociedade – através da abertura de
uma conta corrente – contra a recepção em penhor de determinados títulos emitidos por essa sociedade e
aceites por terceiros a favor do banco credor, quando a sociedade devedora venha a ser declarada falida),
o cerne da questão passa por determinar se estaremos perante um novo penhor ou, pelo contrário, uma
simples execução de um acordo anteriormente firmado: no caso, a Autora inclina-se para a primeira
alternativa, alegando que “la variazione del debito garantito (…), la identificazione successiva
dell’oggetto della garanzia non può essere considerata come una circostanza idonea a perfezionare un
atto già esistente e completo nei suoi elementi essenciali. La variazione della prestazione garantita
comporta inevitabilmente il mutamento del diritto di credito garantito e quindi pure la novazione del
pegno. L’identificazione delle cambiali dunque non può esse considerata momento attuativo di un vincolo
già validamente sorto almeno fra le parti, essendo venuto meno il negozio, pure ad effetti obbligatori, al
quale poter ricondurre la fase esecutiva”.
522
Vide infra n.º 1.2.2 do Capítulo II.
523
Para Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 360, a possibilidade de o penhor incidir sobre bens futuros não
coloca em causa o princípio da especialidade, uma vez que tal faculdade se encontra limitada pela
obrigatoriedade de indicar, no contrato constitutivo da garantia, os bens objecto do penhor. Simler e
138
De facto, parece que o penhor de créditos e outros direitos, assim comos os
apelidados penhores sem desapossamento ou os que incidam sobre bens incorpóreos,524
se poderão constituir e tornar eficazes sobre bens futuros, desde que cumpridas as
formalidades específicas previstas na lei para cada uma destas modalidades de bens.525
Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 537, reforçam este entendimento, apontando como exemplos de
bens futuros que poderão ser empenhados os que se encontrem em processo de fabricação, realçando que
“Lorsqu’ils existeront matériellement dans leur configuration definitive, ils seront d’ores et déjà grevés
par le gage préalablement constitué” (em termos análogos, Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno
cit., pág. 294, evidenciando como a consagração de um penhor sobre coisas futuras e conjuntos de bens
não implica um afastamento do princípio da especialidade, mas somente a sua flexibilização). Já Cabrillac
e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., págs. 501 e 502, realçam que o facto de, com a reforma de 2006, o
desapossamento ter deixado de ser uma condição de existência do penhor contribui decisivamente para a
admissibilidade do penhor de coisas futuras (anteriormente o penhor apenas nascia com a entrega da coisa
e, por isso, em data posterior àquela em que esta se tivesse tornado actual: antes disso, podia existir,
quando muito, uma promessa de penhor).
524
Por exemplo, Jacques Ghestin e outros, ob. cit., pág. 226, admitem, em razão da respectiva
desmaterialização (cfr. Lei n.º 96-597, de 2/7/1996), o penhor de valores mobiliários futuros, assim
permitindo que sejam empenhados quando haja sido decidido um aumento de capital, mas este ainda não
tenha sido realizado. Admitindo também o penhor de bens incorpóreos futuros, vide Laurent Aynès e
Crocq, Les sûretés cit., pág. 197. Mais latamente, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 305 e segs., realça a
maior abertura quanto o quid onerado seja um bem incorpóreo, relativamente os quais não se exige um
desapossamento material (admitindo-se mesmo que estes escapem ao âmbito de aplicação do art.º 2076.º
do CCF, anterior à reforma de 2006 - ou, pelo menos, que o desapossamento possa ser efectuado de modo
alternativo -, impondo-se, contudo, uma determinabilidade do quid a onerar: ora, no caso do
estabelecimento em curso de constituição, de um logiciel em processo de preparação ou de brevet cuja
inscrição já foi solicitada, tal requisito não constitui problema, pelo que urge concluir que “L’existence de
l’assiette n’apparaît pas comme une condition de validité de la sûreté”, embora apenas o surgimento
efectivo do bem venha consolidar o direito de garantia do credor). No entanto, algumas disposições
específicas ditadas para os bens incorpóreos mostram uma maior abertura. Com efeito, a lei admite a
validade de um penhor sobre um filme a realizar (bastando, para o efeito, o depósito do título do filme e
sendo a hierarquia da garantia determinada pela data da respectiva inscrição, independentemente da
realização ou não do filme – art.º 33.º do Code de l’industrie cinématographique) e sobre um pedido de
registo de um brevet (uma vez que o art.º R. 621-38 do Code la propriété industrielle exige o
consentimento do credor pignoratício para a retirada do pedido e, por outro lado, o art.º R. 613-55 impõe
que o penhor sobre um pedido de registo de um brevet deve ser inscrito: esta garantia reveste-se de um
assinalável interesse para o credor, permitindo-lhe inscrevê-la sem esperar pela emissão do brevet, sendo
a garantia oponível a terceiros desde a data em que foi inscrita). Já mais discutíveis, no silêncio do
legislador, se afiguram as soluções relativamente ao penhor do logiciel (propendendo a doutrina para uma
resposta afirmativa, tendo em conta o objectivo da lei de facilitar o financiamento de novos logiciels e,
apesar de se encontrar condicionada pela existência de direitos de exploração, “cela n’empêche nullement
la conclusion d’un contrat de nantissement valable et son inscription en vue d’une prise de rang
immédiate”) e, sobretudo, do estabelecimento comercial em processo de formação (subsistindo uma
controvérsia jurisprudencial, opondo uma corrente maioritária que aponta no sentido da inadmissibilidade
de um penhor com este objecto – entendendo estarmos perante um simples contrato-promessa de penhor –
e outra, minoritária, reconhecendo a viabilidade deste negócio e ancorando-a no princípio geral da
admissibilidade de negócios tendo por objecto bens futuros, consagrada no art.º 1130.º do CCF).
525
No mesmo sentido, Realmonte, Il pegno cit., pág. 640, Mauro Bussani, Il modello cit., pág. 172 (“se si
trata di crediti o altri diritti, per i quali non ocorre l’impossessamento, si ritiene che il sorgere della
prelazione segua già alla formazione del titolo, una volta rispettate le formalità”), Gorla e Zanelli, ob.
cit., pág.29 (que, com base neste raciocínio, admitem a dação em penhor de créditos futuros, mas não de
créditos futuros e eventuais, pois entendem que, neste último caso, estaria aberta a porta a fraudes em
prejuízo dos outros credores do empenhante), Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 537 e 538
(afirmando ser incontornável para os bens corpóreos, atenta a necessidade de entrega, mas admitindo –
citando, em seu abono, posições doutrinais, decisões jurisprudenciais e normas legislativas avulsas – a
empenhabilidade de um bem incorpóreo futuro, desde que este possa ser determinado no momento da
celebração do contrato e sejam cumpridas as formalidades legalmente impostas em substituição do
desapossamento, apontando como exemplo a dação em penhor de créditos futuros e eventuais),
Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 177, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 52 e Jacques Ghestin e
139
Mais concretamente, a nulidade do penhor de bens futuros apenas se poderá
sustentar nos casos em que a constituição da garantia se processe através da entrega
material do bem a onerar ao credor ou a terceiro, mas não quando, em razão da
especificidade do objecto a empenhar, o nascimento da garantia ocorra mediante a
notificação a um terceiro ou a sua inscrição no registo.526
Isto é, apenas quando a entrega do bem ao credor ou a terceiro seja condição
sine qua non para o nascimento da garantia (de modo a qualificar o negócio de
constituição desta como um contrato real), a existência presente do objecto a onerar
implica a impossibilidade de oneração de bens futuros: quando assim não seja e desde
que se consagrem mecanismos alternativos de determinação do quid a onerar (destarte
evitando que o negócio possa subjugar-se à nulidade por indeterminação do objecto –
cfr. art.º 280.º), caímos na regra da admissibilidade de negócios sobre bens futuros (art.º
399.º).
No que especificamente respeita ao penhor de créditos, alguns ordenamentos
jurídicos estrangeiros oferecem-nos exemplos jurisprudenciais e mesmo legais de
legitimação da dação em penhor de créditos futuros,527 com especial realce para recente
outros, ob. cit., pág. 225 (que admitem a empenhabilidade de bens futuros que não sejam coisas corpóreas
- pois, relativamente a estes, a necessidade de entrega constitui obstáculo incontornável -, desde que
cumpridas as exigências legalmente prescritas para a constituição da garantia em detrimento da entrega
do bem ao credor).
526
Neste sentido, Jacques Mestre, Le gage des choses futures, apud Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs.
103 a 106. Partindo do princípio geral consagrado no ordenamento francês da validade das obrigações
sobre coisas futuras (cfr. art.º 1130.º do CCF), o Autor reclama que as derrogações a tal princípio exigem
uma norma expressa: ora, em matéria pignoratícia, tal norma seria o art.º 2076.º do CCF, de acordo com o
qual o penhor exige, para a sua constituição, a entrega do bem a empenhar ao credor ou a terceiro.
Sucede, porém, que esta excepção não se aplica, nem aos penhores sem desapossamento, nem tão pouco
àqueles cujo desapossamento é alcançado por vias alternativas à entrega material do bem (como sucede
com os bens incorpóreos), como sejam a notificação ao terceiro devedor do crédito empenhado (no
penhor de créditos) ou a inscrição da garantia num registo (como, por exemplo, no penhor de valores
mobiliários). Por outro lado e na opinião de Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 106 a 108, estes mesmos
bens futuros prestam-se melhor a uma identificação, para efeitos de determinabilidade do objecto a onerar
(exigida para a generalidade dos negócios jurídicos), seja no que toca ao penhor de créditos (bastando
mencionar as partes, o lugar de pagamento, a data de vencimento e “le montant ou la technique
d’évaluation de la créance”), seja relativamente ao penhor de participações sociais (mesmo para
sociedades cujo processo de formação não se tenha completado, sendo suficientes as informações
relativas à sociedade em questão), sendo apenas problemática tal identificação no que concerne à dação
em penhor de um depósito bancário disponível, uma vez que o objecto se apresenta como meramente
eventual, tendo em conta a possibilidade de movimentação da conta por parte do constituinte da garantia:
tal possibilidade será afastada para quem identifique como objecto do penhor o saldo monetário
disponível (uma vez que a qualificação como penhor de coisa corpórea implicaria a entrega do bem para a
sua constituição), mas poderá ser admitida para quem veja nesta figura um penhor de crédito eventual ou,
como a Autora, um penhor “sur des actifs scriputuraux monétaires futurs” (para além de ser frequente
que o credor, como forma de aumentar a consistência desta garantia, exija a permanência de um saldo
mínimo na conta empenhada, abaixo do qual o constituinte deixará de poder movimentar a conta: ora,
quando tal suceda, “l’objet n’est plus éventuel, car l’on a la certitude de l’existence du solde à
l’échéance; il devient simplement futur”).
527
Vide, no direito francês, Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 57 e Jacques Ghestin e outros, ob. cit., págs.
225 e 226. Os exemplos citados prendem-se com decisões judiciais que admitem o penhor de obrigações
emitidas, mas ainda não subscritas, ou de créditos inexistentes, mas com probabilidade quase certa de
surgimento, ou, finalmente, com créditos resultantes da conclusão de uma empreitada, ainda que ilíquidos
e com vencimento indeterminado. Por seu turno, a chamada Loi Dailly (Lei n. 81-1, de 2/1/1981) admite
que o penhor possa recair sobre os créditos resultantes de um negócio futuro cujo montante e
exigibilidade não se encontrem ainda determinados, sem exigir sequer a notificação ao devedor do crédito
empenhado. Em face do direito espanhol, Puig Brutau, ob. cit., pág. 28, exprime-se nestes termos “Un
derecho de crédito puede ser pignorable aunque todavia no sea exigible. La entrega queda en tal caso
140
reforma do direito francês (a qual passou a consentir inequivocamente a constituição de
um penhor sobre um crédito futuro - art.º 2357.º),528 posição esta contestada em face da
nossa legislação,529 gozando, ainda assim, de alguns defensores.530
As objecções, no que toca ao penhor de créditos, prendem-se com a ausência de
publicidade desta garantia, que impossibilita os demais credores de conhecerem o
montante e a quantidade de créditos (presente e/ou futuros) que o seu devedor já onerou,
com as eventuais consequências da insolvência do empenhante531 e com a necessidade
sustituida por la notificación al deudor o por la entrega al acredor del documento al que el crédito se
halle incorporado.”
528
Ou até, como sublinha Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 388, sobre um conjunto de créditos (embora
salientando que o liberalismo do legislador é temperado pela exigência de determinação dos créditos no
acto escrito de constituição do penhor). No que toca ao penhor de créditos futuros, o direito do credor
nasce apenas no momento do surgimento do crédito onerado (art.º 2357.º), devendo o escrito inicial de
constituição da garantia identificar os créditos onerados ou, pelo menos conter a indicação do devedor,
data e lugar de pagamento, montante dos créditos (ou a respectiva avaliação) e, se a houver, a data de
vencimento (art.º 2356.º, n.º 3).
529
De acordo com Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 16, a empenhabilidade dos créditos futuros encontra-se
comprometida uma vez que “Estes consistem no direito a uma prestação que ainda não se constituiu ou
se transferiu para a esfera jurídica do empenhador e sobre a qual este não pode dispor a não ser
enquanto bem futuro. Ora, nos casos em que não tenha sido constituído qualquer vínculo jus-
obrigacional não existirá, por conseguinte, um objecto para afectar à satisfação de determinada
prestação”. Para além disso, não existindo devedor da prestação, não será possível a sua notificação,
condição esta do surgimento do vínculo pignoratício sobre créditos.
530
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 247, ressalvando apenas a necessidade de esses
créditos virem a surgir e, para cada um deles, a sua consequente notificação ao devedor dos créditos
empenhados (se esta não puder ser antecipadamente efectuada, com sucederá quando, no momento da
constituição de um penhor sobre créditos futuros, ainda não seja possível identificar o devedor do crédito
a onerar), acrescentando que o art.º 115.º do CIRE (ao aludir, no n.º 1, à hipótese de o devedor ter cedido
ou dado em penhor, anteriormente à declaração de insolvência, créditos futuros emergentes de contrato de
trabalho ou de prestação de serviços, ou o direito a prestações sucedâneas futuras - designadamente
subsídios de desemprego e pensões de reforma - e, no n.º 2, ao penhor ou à cessão de créditos que tenham
por objecto rendas ou alugueres devidos por contrato de locação) representa um reconhecimento legal da
figura (o Autor vai até mais longe e admite, na senda do art.º 860.º-A, do CPC – preceito que consente a
transmissão e a penhora - a empenhabilidade das meras expectativas jurídicas).
531
Em face do nosso direito, é defensável que a situação de insolvência por parte do devedor não impeça
a celebração (ou renovação) de contratos que constituam a execução de garantias (como o penhor de
créditos futuros) constituídas antes do início do processo de insolvência, uma vez que se trata de actos de
cumprimento de contratos anteriores e não de constituição de novas garantias sobre os bens da massa
falida (ou, em alternativa, que o surgimento do bem fará retroagir a data da garantia ao momento da
celebração do contrato), o que permitirá excluir a aplicação do art.º 121.º, n.º 1, alínea c), do CIRE (que
estabelece a resolução automática, em benefício da massa, dos negócios de constituição da garantia reais,
relativamente a obrigações preexistentes ou de outras que as substituam, nos seis meses anteriores à data
de início do processo de insolvência). Garcia Vicente, La prenda cit., págs. 158 e 159, parte do
pressuposto que a insolvência será do devedor da obrigação garantida e que foi este a onerar um crédito
que detinha sobre um terceiro: todavia, avalia também a hipótese de o insolvente ser um terceiro
empenhante estranho à relação principal (caso em que o credor pignoratício poderá accionar o seu
devedor e satisfazer o seu crédito, assim extinguindo a garantia) e ainda de ser o próprio devedor do
crédito dado em garantia quem venha a entrar em situação de falência (hipótese na qual o credor
pignoratício pode accionar o devedor da obrigação principal ou, em alternativa, reclamar o crédito no
procedimento concursal do devedor do crédito onerado, uma vez que o penhor de créditos lhe atribui
legitimidade para cobrar tal crédito). No caso, porventura mais frequente, de falência do empenhante
quando este seja o devedor do crédito garantido, a regra é a da oponibilidade à massa falida dos créditos
que nasçam de relações obrigacionais pré-existentes à declaração de insolvência e, ao invés, negá-la aos
créditos que provenham de relações contratuais formalizadas em data posterior àquela (sendo que a
protecção do credor pignoratício será maior quando este haja já satisfeito os obrigações decorrentes do
contrato que o liga ao devedor, nomeadamente quando já tenha disponibilizado a este o financiamento
para cuja garantia foi prestado o penhor) ou, noutros termos, o ponto de partida é “la eficacia retroactiva
de la prenda al tiempo de su constitución: los créditos futuros que nazcan después de la declaración del
141
de assegurar um mínimo de determinabilidade do quid onerado532 (especialmente, neste
último caso, no que toca aos chamados penhores globais, nos quais se onera um
conjunto vasto de créditos em garantia de uma mesma obrigação).533
142
Todavia em termos mais gerais, é importante examinar primeiramente a
constituição de penhor sobre coisas ou direitos inexistentes, mas cuja existência
erroneamente se supõe, caso em que o penhor se deve considerar nulo por falta de
objecto.534
Diversamente, admite-se que o penhor recaia sobre uma coisa que ainda não
existe na natureza, sem entidade jurídica,535 assim como sobre um bem ainda não
nascido, mas que se crê venha a surgir.536
todos los créditos o de una parte significativa de los mismos”, sendo que um factor a ter em conta para
esse juízo será “el carácter indefinido del contrato de crédito o sus condiciones insólitas repacto a
deudores del mismo sector del tráfico”: mesmo quando tais cláusulas não sejam (pelo menos
notoriamente) inválidas, deverá ser consentido ao empenhante a liberação parcial do penhor global
quando o valor desta exceda consideravelmente o montante dos créditos garantidos e até, quando o
penhor garanta créditos ainda não desembolsados, o empenhante possa obter uma liberação para o futuro.
534
Partidários desta opinião são Vaz Serra, ult. ob. e loc. cit., e Rubino, Il pegno cit., pág. 205.
535
Neste sentido, Maiorca, ob. cit., págs. 37 a 39, assegurando não ser uma incongruência falar de posse
de um bem que ainda não existe, apontando como exemplo a posse do bem principal no caso de o penhor
recair sobre os respectivos frutos, esclarecendo que “il possesso che si intende consegnato a titolo di
pegno concerne con esattezza solo la cosa mobile futura. Il possesso dela cosa madre vale perfettamente,
ai fini della garanzia del pegno, come comprensivo del possesso del prodotto, il quale in questi termini
non interviene come cosa futura (…). L’essere il prodotto futuro e incerto o già presente, ma ancor da
separare dalla cosa madre (…) riguarda una eventuale attività volta alla separazione materiale della
cosa in pegno della cosa madre può concernere eventuali facoltà del pignoratario o obbligazioni dei
pignorante o di terzi, ma in ogni caso è estraneo al problema circa la determinazione degli estremi del
pegno su cosa futura”. De qualquer forma, o Autor realça que, mesmo neste caso, a perfeição do direito
real de garantia apenas se produzirá no momento “in cui il prodotto (la separazione o individuazione
potrà seguire in fatto), essendo cresciuto o maturato, si presenta come l’oggetto che fu dedotto
(condizionalmente) nel contratto di pegno”. Entre nós, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 75,
aponta igualmente como exemplo os frutos pendentes, os quais, enquanto não separados do prédio a que
se encontram unidos, não poderão ser objecto de penhor, mas, obtendo o credor a posse da coisa
principal, nada obstará ao penhor – neste caso de um bem futuro - que se adquirirá com a separação dos
frutos). Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 453, admitem a possibilidade de constituição de um
penhor sobre um bem corpóreo ainda não existente na data da constituição da garantia, socorrendo-se do
art.º 1130.º do CCF que admite, em termos gerais, a validade das convenções sobre coisas futuras
(embora, na nota 8 pareçam reconhecer a necessidade de determinabilidade do bem empenhado). Jacques
Ghestin e outros, ob. cit., pág. 224, defendem a admissibilidade de penhor sobre bens futuros em termos
gerais, apoiando-se no art.º 1130.º do CCF (nos termos do qual as coisas futuras podem ser objecto de
uma obrigação) para considerar essa uma regra geral que apenas poderá ser afastada quanto exista norma
expressa em contrário, o que não sucede visto não existir qualquer disposição legal proibindo o penhor de
bens futuros (afirmando, ainda, a insusceptibilidade de aplicação analógica ao penhor do art.º 2130.º que
veda, em princípio, a hipoteca de bens futuros). Quanto ao obstáculo resultante da necessidade de entrega,
advogam ser abusivo fazer depender da sua verificação a validade do contrato de penhor, entendendo que
o penhor permanece válido mesmo na ausência de entrega, excepto no que respeita à possibilidade de o
credor exercer o direito de preferência antes dessa data.
536
Para Maiorca, ob. cit., pág. 79 e segs., esta possibilidade relaciona-se com a necessidade de criação de
uma garantia não possessória sobre determinados bens móveis, de entre os quais avultam os frutos ou
produtos em formação e aqueles já acabados mas cuja comercialização implica a manutenção na esfera do
devedor (embora salientando que a pertinência do penhor sobre coisa futura extravasa este âmbito
limitado, alcançando também outro tipo de bens, apontando como exemplo a hipoteca naval sobre navios
em construção, cujo regime representa a consagração inequívoca de uma garantia mobiliária sobre um
bem futuro, não apenas quando a construção já se tenha iniciado, mas mesmo que tal ainda não tenha
acontecido), realçando que, apesar da relação dos objectos a onerar com um bem imóvel, estaremos
perante uma garantia mobiliária. De acordo com o Autor, a manutenção dos bens onerados em poder do
devedor justifica-se (nomeadamente no que concerne aos animais e ao penhor sobre os seus produtos)
pela circunstância de “il fattore produttivo (nel caso la cosa madre) è destinato a una data funzione
produttiva, anche – anzi, specialmente – se rimane nel possesso del debitore, è il motivo per cui in questi
casi potrebbe ammettersi, quantomeno di iure condendo, l’attuabilità di un pegno di cosa futura anche
restando nel debitore la cosa madre”, (todavia, o Autor não deixa de mencionar a questão da protecção
do credor quanto à consistência da sua garantia, questão, alias, extensível a todos os casos em que a
143
Verificado este último circunstancialismo, será admissível a celebração de um
contrato-promessa de penhor, concluindo o contrato definitivo apenas quando a coisa
venha a ganhar existência ou, na senda do já anteriormente exposto, considerando
estarmos perante um “contrato de formação progressiva”.537
Deste modo, procura afastar-se o obstáculo resultante da a indispensabilidade de
determinação – ou pelo menos de determinabilidade – do bem onerado com a garantia,
sem eliminar a necessidade de entrega do bem empenhado ao credor.
No entanto, naqueles ordenamentos – como o italiano e francês – em que se
exige, pelo menos como condição do exercício do direito de preferência do credor
pignoratício, um documento escrito contendo a indicação do crédito garantido e do
objecto da garantia, este último aspecto pode suscitar dúvidas quando o penhor recaia
sobre um bem futuro.
Importa, a este respeito, distinguir consoante o bem oferecido em garantia se
encontre em vias de surgimento na data da concessão da garantia (caso em que a sua
determinação é possível imediatamente) ou, pelo contrário, isso não aconteça (hipótese
em que tal determinação se afigura bastante problemática).538
No nosso ordenamento não se prevê directamente a possibilidade de criação de
direitos reais sobre coisas futuras, mas tal interpretação poderá ancorar-se no facto de
tais direitos poderem recair sobre todas as coisas enumeradas no Código Civil, entre as
quais constam as coisas futuras (cfr. art.º 211.º):539 contudo, tal entendimento enfrenta
um limite importante, porquanto os negócios que impliquem a constituição ou
transferência de direitos reais sobre bens futuros apenas produzirão efeito quando as
garantia recaia sobre frutos naturais, especialmente quando não se possa cindir a posse da coisa mãe da do
fruto onerado). Nesta fattispecie, estaremos perante “un negozio sottoposto a condizione sospensiva: la
condizione, cioè, della esistenza della cosa dedotta nell’oggetto del negozio. Ciò si equivale anche a dire
che il diritto reale di garanzia si perfeziona in tale momento”, embora a existência e as características da
coisa mãe surjam como pressuposto da publicidade necessária para a constituição da garantia, ou seja, “la
pubblicità e l’indicazione degli estremi di individuazione dell’oggetto del pegno saranno attuate in
relazione alla cosa madre”: uma vez nascidos os frutos, “saranno vincolati in garanzia: sia agli effetti
della difesa reale della sicurezza e del valore dell’oggetto (…) sia agli effetti dell’esercizio del ius
distrahendi, allorquando se ne verifichino i pressuposti” (ao invés, quando a posse da coisa mãe seja
transferida para o credor, este último terá igualmente o direito a ser empossado dos frutos onerados, pelo
que qualquer acto do devedor que o impeça será considerado como um acto lesivo da garantia).
537
Para Rubino, ult. ob. e loc. cit., a manifestação de vontade é irrevogável, obtendo o credor, assim que a
coisa ganhe substância, o direito de exigir a respectiva entrega. Citando algumas decisões jurisprudenciais
que acolheram este entendimento, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 68 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 146.
Esta última Autora alude, em particular, a uma decisão da Corte de Cassação de 1/8/1996 que, acolhendo
a teoria de Rubino e considerando o penhor de coisa futura como um contrato de formação progressiva
(cuja origem repousa no acordo inicial das partes com efeitos meramente obrigatórios entre as – do qual
deverão constar a data certa da celebração e a suficiente indicação do crédito garantido e do bem
empenhado – e se torna perfeito apenas com o surgimento do bem e com a sua entrega ao credor), rejeita
a tese da sucessão de um contrato-promessa e de um contrato definitivo de penhor (este último a celebrar
aquando do aparecimento do bem), considerando que, dessa forma, “si darebbe vita non solo ad una
costruzione inutilmente complicata, ma che pare poco conforme all’effettiva realtá del fenomeno, il quale
non pressuporrebbe una pluralià sucessiva di manifestazioni volontà negoziali concomitanti con la
consegna della cosa, ma si concretizzerebbe in una serie di atti i cui effeetti sarebbero ricollegabili
all’originario accordo contratuale.”.
538
Jacques Ghestin e outros, ob. cit., pág. 225.
539
Contra, Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 632, alegando que “O contrato fica já concluído,
mas o efeito real só se dá (e aliás automaticamente) quando a coisa se torna actual ou determinada. Não
se pode pois dizer que há uma hipoteca sobre coisa futura, ela só existe quando a coisa se formar”.
144
coisas que constituem o respectivo objecto surjam ou venham a encontrar-se na
titularidade do disponente.540
Por último, cabe mencionar a viabilidade de constituição de um penhor irregular
de coisas futuras, como sucederá quando o bem a onerar seja o saldo activo de uma
conta corrente bancária na qual deverão ser creditados os montantes obtidos após a
pagamento dos títulos entregues ao credor para cobrança.541
Admitida, nos termos e com as condicionantes acabadas de expor, a
possibilidade de constituição de penhor mesmo quando o objecto imediato da garantia
não exista no património do empenhante, as mesmas considerações parecem ser
transponíveis para a concessão do penhor por quem não seja o proprietário do bem a
onerar 542
Com efeito e nos casos em que seja admissível a constituição de um penhor
sobre bens futuros, as soluções propostas são de manter mesmo que a coisa ou direito
empenhados pertençam a terceiro, devendo entender-se que o vínculo é válido entre as
partes, mas o penhor apenas se tornará eficaz se e quando o concedente adquirir a sua
propriedade.543
Esta mesma conclusão sai reforçada se tivermos em conta a própria noção de
“coisa futura”, entendendo-se que o conceito abarca não apenas aquelas que ainda não
existem na natureza, mas também as que não se encontram na disponibilidade do
disponente, ou seja, sejam alheias ao património do sujeito que delas pretende dispor.544
Em face do nosso direito, decorre do próprio art.º 893.º (aplicável ao penhor por
remissão do art.º 939.º),545 que as coisas alheias podem ser configuradas como futuras
se nessa qualidade forem consideradas pelas partes, mandando, nessa hipótese, mandar
aplicar o regime da venda de bens futuros.
540
Aludem a esta restrição Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 204, para além de
alertarem para a obrigação que impende sobre o devedor de exercer as diligências necessárias a fim de o
comprador adquirir os bens alienados, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do
contrato (art.º 880.º, n.º 1).
541
Nesta conformidade, Alessandro Rizzieri, Pegno e fallimento, in Il pegno nei rapporti commerciali,
Giuffrè, 2005, com direcção de Paolo Cendon, pág. 231 e segs., realçando que o penhor é irregular por
incidir sobre dinheiro e é de coisa futura, uma vez que no momento da conclusão do contrato de penhor
os títulos ainda não foram cobrados (embora saliente que alguns Autores exigem, além do número da
conta corrente, a indicação do montante máximo pela qual a garantia responde).
542
Como defende Gabrielli, Il pegno cit., pág. 147, a analogia entre o penhor de coisa futura e de coisa
alheia reside no facto de, em ambos os casos, o objecto mediato do direito de penhor não existe no
património do devedor. Simplesmente, enquanto no primeiro caso essa circunstância se deve à
possibilidade de a coisa (ou direito) vir a existir, no segundo reside na relação entre a coisa (ou direito)
objecto do vínculo e sua inexistência no património do constituinte, muito embora exista no património
de outro sujeito.
543
Rubino, Il pegno cit., pág. 206 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 147.
544
Esta distinção, segundo Carlo Maiorca, ob. cit., pág. 3 e segs., é recorrente na doutrina, considerando
que em ambos os casos se coloca o mesmo problema, qual seja “ciò che non è in natura, neppure è in
titolarità, alla stessa guisa come non lo è una cosa che si trova fuori dal património. Per un altro verso
ciò che non è in titolarità può divenirlo, alla stessa guisa di una cosa che non è in natura, in previsione
del momento che lo sia. In definitiva, presente o futuro non è tanto la cosa o il bene, quanto il diritto”,
concluindo que “Quando si parla di cose che non sono presenti nel patrimonio, avendo considerazione al
momento futuro in cui potranno divenirlo, ci si riferisce a cose esistenti e – quindi – esistenti nel
patrimonio di un altro soggetto: cose altrui. Quindi, le cose altrui, rispetto ad un patrimonio che si
consideri, sono anzitutto non presenti e possono essere considerate future in relazione al momento in cui
entreranno nel patrimonio”.
545
Acerca da aplicabilidade do art.º 939.º aos demais contratos onerosos, para além da compra e venda,
nomeadamente ao penhor, vide supra n.º 2.4.2.1 do Capítulo I.
145
De acordo com os n.ºs 1 e 2 do art.º 1408.º,546 o comproprietário pode dispor547
de parte ou da totalidade da sua quota na comunhão,548 mas não lhe é lícito onerar, sem
consentimento dos demais consortes, parte especificada da coisa comum e, deste modo
e por maioria de razão, não será admissível a oneração da totalidade da coisa sem o
assentimento dos restantes:549 se o fizer tal negócio deve ser tratado como oneração de
coisa alheia.550
No entanto, a lei dispõe que o negócio jurídico de constituição da garantia se
encontra sujeito à forma exigida para a disposição da coisa (cfr. n.º 3 do art.º 1408.º).
Em face do exposto, ao comproprietário assiste legitimidade para empenhar a
sua quota,551 mas necessitará do consentimento dos demais consortes para constituir um
penhor sobre partes específicas da coisa comum ou sobre a totalidade desta.552 553
546
O art.º 2825.º do CCI prevê a possibilidade de concessão de hipoteca sobre bens indivisos, preceito
este que a doutrina entende ser igualmente aplicável ao penhor (neste sentido, Gabrielli, I negozi
costitutivi cit., pág. 156, nota 31, Realmonte, Il pegno cit., pág. 642 e Ciccarello, ob. cit., pág. 685). No
direito espanhol e de acordo com Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 502 e 503, não existe
regulamentação específica relativamente à dação em penhor das quotas do comproprietário, mas o Autor
admite-a, de modo que, constituída a garantia, os condóminos devem aceitar possuir em nome do credor
pignoratício (ou entregar-lhe a posse da coisa), não dispondo este da faculdade de requerer a divisão da
coisa comum (pelo que, incumprida a obrigação principal, limitar-se-á a alienar a quota onerada, cabendo
ao adjudicatário vir a solicitar a referida divisão). Já Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2136, entende
que cada condómino pode onerar a sua quota (art.º 399.º do CCE), necessitando, porém, do
consentimento dos restantes comproprietários para onerar o bem comum (art.º 397.º do CCE).
547
Como bem salienta Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 354, “Ainda que o preceito, nesta parte, se não
refira à faculdade de oneração, é evidente caber ela também ao comproprietário, nos mesmos termos da
de disposição, por paridade, se não por maioria de razão”.
548
Chironi, ob. cit., págs. 479 a 481, opina que o objecto do penhor, neste caso, não será a quota
abstracta, mas sim a coisa, pelo que, ocorrendo a divisão da coisa comum, não se atribui ao consorte uma
coisa diversa daquela que constituía o seu direito enquanto condómino, limitando-se a divisão a
especificar aquilo que antes era analisado em termos abstractos.
549
Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 358, aponta a oneração da totalidade do bem comum ou de uma
parcela específica dele como um dos exemplos de uma faculdade do direito de compropriedade de
necessário exercício unânime.
550
De acordo com Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, pág. 365, desta remissão decorre que
estes actos são, não apenas nulos, mas igualmente ineficazes relativamente aos demais condóminos, pelo
que estes não necessitam de recorrer a qualquer meio impugnatório para lograr que o acto não lhes seja
oponível.
551
Defendendo esta possibilidade em face do direito espanhol, Puig Brutau, ob. cit., pág. 27 (embora o
CCE apenas admita expressamente a hipoteca das quotas dos bens imóveis), para o direito francês
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 303 (por aplicação do art.º 815-17 do CCF, o qual, todavia, ressalva que
o credor não poderá exercer os seus direitos antes da partilha) e, entre nós, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ
n.º 58 cit., pág. 115, acrescentando que para a constituição do penhor será suficiente a obtenção da
composse por parte do credor em lugar do empenhador.
552
Questões diversas respeitam à admissibilidade do penhor constituído pelo proprietário único de uma
coisa sobre uma quota desse mesmo bem (em sentido favorável pronuncia-se Vaz Serra, Penhor cit. in
BMJ n.º 58, pág. 115) ou sobre uma fracção do valor de uma coisa, no sentido em que o credor apenas
possa executar a parte correspondente a esse valor (a favor da possibilidade de dar em penhor uma
fracção da coisa ou do seu valor, Faggella, ob. cit., págs. 42 e 44; contra, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 30
e 31, embora admitindo que este penhor tenha como efeito que o credor, depois de excutir o bem na
íntegra, apenas se possa apropriar da parte do preço obtido relativa à parcela dada em penhor). Do nosso
ponto de vista, desde que o bem (ou a sua quota ou parcela) em questão reúna os requisitos gerais supra
analisados, não nos repugna a sua oneração pignoratícia, tanto mais que se a lei consente a dação em
penhor de uma quota de um bem em regime de compropriedade, não se vislumbra motivo válido para
negar que o mesmo negócio possa incidir sobre a quota de um bem pertencente a um único proprietário.
553
Em face do direito italiano, Ciccarello, ob. cit., pág. 685, Montel, Pegno cit., pág. 788 e Rubino, Il
pegno cit., pág. 204, admitem que o comproprietário possa dar em penhor o bem comum, exigindo apenas
o consentimento dos demais para a entrega do bem ao credor (permitindo aos consortes dissentes a
146
Uma vez surgida a garantia, o credor pignoratício deverá gozar dos direitos
pertencentes ao empenhador, designadamente no que respeita à administração da coisa e
à eventual fruição dela.554
Recaindo o penhor sobre a quota do devedor555 VAZ SERRA admite que,
incumprida por este a obrigação garantida, assistirá ao credor pignoratício legitimidade
para provocar a divisão e, em seguida, executar a parte que couber ao concedente da
garantia,556 salvo existindo cláusula de indivisão (cfr. art.º 1412.º, n.º 3).557
Em defesa desta solução, que se nos aparenta razoável, poderá argumentar-se
que, se após a venda da quota empenhada, a lei faculta ao adquirente a requisição do fim
da indivisão (cfr. art.º 1052.º, n.º 1, do CPC),558 dever-se-á conceder idêntico direito ao
credor pignoratício, após o vencimento da obrigação garantida (antes dessa data, apenas
com o consentimento do empenhante), assim permitindo substituir, como objecto do seu
direito, a quota por bens determinados ou dinheiro, sobre os quais poderá incidir a
posterior execução.559
Havendo cláusula de indivisão ou não tendo sido esta solicitada, o credor
manterá o direito de alienar a quota em processo judicial de execução, simplesmente
reivindicação do bem comum): quando o penhor seja constituído nestes termos, o credor pignoratício a
quem seja entregue a coisa assume, para com os outros condóminos, a posição de depositário. Pelo
contrário, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 303 e segs., sustenta, de acordo com o direito francês (art.º
815-3 do CCF), que o titular indiviso não poderá onerar a totalidade do bem sem o consentimento dos
restantes e, se o fizer, a garantia será constituída a non domino no que respeita às partes indivisas que não
lhe pertençam (porém, se no momento da partilha o bem indiviso for atribuído ao constituinte, a garantia
será retroactivamente convalidada; caso contrário, ficará definitivamente sem efeito).
554
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 119.
555
Se, pelo contrário, recair sobre a totalidade do bem nenhum problema específico se levantará, pois tal
negócio exige o acordo dos demais comproprietários. Faltando este consentimento, qualquer um destes
poderá impugnar o negócio de constituição de penhor (que é nulo, nos termos em que o é a alienação de
um bem alheio – cfr. art.º 1408.º, n.º 2) e, caso já tenha havido entrega da coisa comum, reivindicá-la (cfr.
n.º 2 do art.º 1405.º).
556
Rubino, Il pegno cit., pág. 204. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 119 e 120 advoga somente
ser legítimo ao credor pignoratício pedir a divisão após o vencimento do penhor, apenas o podendo fazer
antes deste momento com o consentimento do empenhante (contra, Puig Brutau, ob. cit., pág. 27,
admitindo que o credor pignoratício pode requerer a divisão da coisa comum mesmo antes de vencida a
obrigação garantida, caso em que o concedente da garantia adquirirá a propriedade da porção que lhe for
atribuída, mas onerada com a garantia). Por outro lado, nega a este último, enquanto se não extinguir a
garantia, o poder de requerer a divisão sem o consentimento do credor pignoratício, alegando encontrar-se
a coisa poder deste último e a divisão poder prejudicá-lo, sem que a esse sacrifício corresponda a um
interesse do empenhador digno de o justificar.
557
Nos termos deste preceito, a cláusula de indivisão será oponível a terceiros, apenas se exigindo que a
mesma seja registada se a compropriedade respeitar a coisas imóveis ou móveis sujeitas a registo.
Defendendo a inoponibilidade do pacto de indivisão a terceiros, nomeadamente ao credor pignoratício,
Rubino, Il pegno cit., pág.205.
558
Com efeito, dispõe esta norma que qualquer dos consortes pode requerer que, fixadas as respectivas
quotas, se proceda à divisão em substância da cosia comum ou à adjudicação ou venda desta, com
repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível: se assim é e tornando-se o adquirente da
quota comproprietário do bem, assistir-lhe-á legitimidade para requerer a divisão.
559
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 120. Respondendo à objecção nos termos da qual, uma vez
executado o penhor, os demais comproprietários teriam o direito de preferência, cujo exercício poderia
evitar a entrada do adquirente para o rol dos comproprietários, impedindo-o de requerer a divisão, o Autor
sustenta que a divisão poderia ser sempre requerida pelo empenhador com o acordo do credor
pignoratício e, por outro lado, que o direito de preferência dos comproprietários não existe em todos os
casos de alienação. Em face do nosso direito vigente e apesar de nenhum preceito atribui expressamente
ao credor pignoratício o direito de requerer a divisão da coisa comum - cabendo o mesmo apenas a cada
um dos comproprietários (art.º 1412.º, n.º 1) – manifestamos o nosso assentimento a tal possibilidade, na
esteira e por força dos argumentos invocados por Vaz Serra.
147
“ela continua, neste caso, em regime de condomínio indivisível com o adquirente, se os
consortes não exercerem o seu direito de preferência”.560
Verificando-se a divisão, o direito italiano (cfr. art.º 2825.º, n.º 2)561 admite,
quando seja atribuído ao empenhante um bem diverso do originariamente empenhado, a
transferência da garantia para o primeiro, com o grau resultante da constituição inicial,
mas nos limites do valor do bem previamente onerado.
VAZ SERRA sustentava a aplicação de um regime similar ao previsto no
mencionado preceito do direito transalpino, alegando que, caso contrário, o penhor
ficaria privado de qualquer efeito.562
No nosso ordenamento existe uma norma, mais concretamente no n.º 2 do art.º
689.º563 - depois de o n.º 1 admitir a hipoteca de quotas de coisas ou direitos comuns –
do qual resulta que a divisão efectuada com o consentimento do credor limita a hipoteca
à parte que for atribuída ao devedor,
Decorre, assim, deste preceito que a divisão da coisa ou direito comum, feita
com o consentimento do credor – na falta deste assentimento, o direito continua a
incidir sobre a quota ideal do devedor, assim se prolongando a comunhão quanto à
garantia e originando que a venda judicial em caso de incumprimento inutilize a divisão
anteriormente efectuada -, limita a hipoteca à parte que for atribuída ao devedor (ainda
que lhe seja atribuída uma parte da coisa superior à que correspondia à sua quota) ou até
a totalidade da coisa.564
Pode, contudo, duvidar-se da sua aplicabilidade ao penhor, uma vez que o art.º
689.º não é um daqueles preceitos ditados para a hipoteca que o art.º 678.º manda a
aplicar ao penhor, embora seja defensável que a solução nele consagrada, em caso de
divisão da coisa comum (passagem da garantia para o bem que, em resultado da tal
divisão, for atribuído ao empenhante), se pode ancorar na transformação jurídica a que
tal quid foi sujeito na vigência da relação de garantia, mais concretamente no instituto
da sub-rogação real.
Resumindo, a cessação da situação de indivisão, antes de vencido o crédito
pignoratício, apenas pode advir da vontade dos consortes (nomeadamente do
empenhante), passando o penhor a recair sobre a parcela do bem que, na sequência da
divisão, for atribuída ao constituinte da garantia; após o vencimento do crédito
garantido, passa a assistir também ao credor pignoratício a faculdade de requerer o fim
da indivisão, com efeitos análogos.
560
Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 710, a propósito da hipoteca, mas com plena
aplicação no que respeita ao penhor.
561
Esta norma encontra-se consagrada apenas relativamente à hipoteca, mas a sua aplicação analógica ao
penhor é defendida em Itália (vide Rubino, ult. ob. e loc. cit.).
562
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 121 e 122. Todavia, este saudoso Professor entende não estarmos
perante um caso de sub-rogação real, por não adquirir o credor imediatamente um penhor sobre os
objectos atribuídos ao anterior comproprietário no processo de divisão, mas apenas um direito do credor a
exigir a constituição do penhor sobre os referidos objectos.
563
Por seu turno no direito alemão e por força do disposto no §1258 do BGB, as regras são as seguintes.
Recaindo o penhor sobre uma parte da compropriedade, o credor pignoratício exerce o seu direito tendo
em conta a gestão e o tipo de utilização da parte do comproprietário na compropriedade (n.º 1). Antes da
aquisição do direito de venda pelo credor pignoratício, a dissolução da compropriedade só pode ser
exigida conjuntamente por ele e pelo comproprietário. Depois dessa data, o credor pignoratício pode
requerer o fim da compropriedade, sem necessidade do consentimento do comproprietário; o credor não
se encontra vinculado a nenhum acordo celebrado pelo comproprietário, nos termos do qual o direito do
comproprietário exigir o fim da comunhão se encontre excluído ou dependente de um prazo de denúncia
(n.º 2). Extinguindo-se a comunhão, o penhor passa a recair sobre o objecto que ocupe o lugar da quota
inicialmente empenhada (n.º 3), permanecendo intocável o direito do credor pignoratício proceder à
venda da parte na compropriedade (n.º 4).
564
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 711,
148
Por outro lado, o regime geral da comunhão não prejudica a existência de
regimes especiais (como quando a garantia incida sobre as quotas de participação em
fundos de investimento mobiliário565 566 ou em fundos de capital de risco,567 créditos
565
Admitindo esta possibilidade em face do direito italiano, Barbara Cusato, ob. cit., págs. 112 a 114,
Luciano Panzani, Pegno rotativo e pegno sugli strumenti finanziari, in Fallimento, 2002, pág. 952,
Francesco Caringella, ob. cit., págs. 3561 e 3562 (citando o aresto da Corte de Cassação de 14/7/2003, n.º
10990, no qual se conclui que, na ausência de um certificado individual de participação autónomo e
separado, o quid onerado é o crédito do empenhante para com o fundo, “rappresentato dall’obbligo della
società di investimento di gestire il fondo e di restituirgli il valore delle quote di partecipazione”) e,
especialmente, Pierpaolo Marano, ob. cit., págs. 137 e 138 (admitindo que o penhor se possa constituir
sobre o certificado individual representativo dessa quota – desde que desincorporado do certificado
comum existente junto da entidade depositária – ou como um penhor de créditos, tendo por objecto o
crédito do titular da quota de participação para com a sociedade gestora do fundo). De modo idêntico para
o direito espanhol Malo Concepción, Prenda de participaciones en fondos de inversión mobiliaria, in
Tratado de garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996, pág. 831 e segs.,
destacando que o objecto desta garantia são as participações, representadas por certificados nominativos
ou anotações em conta (embora muitas vezes os contratos de penhor consagrem hipóteses de sub-rogação
real, consentindo que a garantia se transfira para o reembolso das participações ou estipulando que, com
os títulos, se empenha igualmente o efectivo depositado ou, em alternativa, o crédito ao produto do
produto da venda ou liquidação da participação), constituindo-se o penhor, no caso de participações
tituladas, através da entrega do certificado (ou, em alternativa, mediante o endosso acompanhado da
cláusula em garantia) ou da inscrição em conta (para as participações escriturais): em qualquer caso, a
oponibilidade a terceiros da garantia encontra-se condicionada à constatação da data certa de constituição
da garantia em instrumento público. Por outro lado, este último Autor detém-se sobre os direitos do
credor pignoratício (destacando como este é um quid que consente a oneração, simultânea ou sucessiva,
do mesmo objecto em garantia de obrigações diversas, sendo mais problemática “la constitución de
varias prendas por un mismo constituyente siendo un único el deudor y varios los acreedores.
Evidentemente éstos deberían ponerse de acuerdo respecto al requisito constitutivo, siendo en todo caso
de aplicación el principio prior tempore potior iure”; por outro lado, em matéria de frutos é preciso ter
em conta que, normalmente, o fundo não repartirá os resultados – antes os incorporando no seu
património – mas, se o fizer, estes estarão compreendidos na noção legal de frutos e, por isso, garantirão
igualmente o pagamento da obrigação principal) e os seus deveres (de conservação e restituição do bem
empenhado), assim como as obrigações do devedor empenhante (nomeadamente porque, permanecendo
como proprietário, poderão alienar as suas participações, ao menos quando estas estejam representadas
através de títulos – embora, por força do desapossamento operado no momento da constituição da
garantia, o credor pignoratício tenha que consentir no negócio - , sendo mais discutível se o poderá fazer
em caso de representação através de anotações em conta, uma vez que a lei geral aplicável aos valores
mobiliários determina a imobilização dos mesmos).
566
Malo Concepción, ob. cit., pág. 807 e segs., define estes fundos como patrimónios autónomos
pertencentes a uma comunidade de investidores, sendo o direito de propriedade representado através de
um certificado de participação e a administração entregue a sociedades gestoras especializadas (sem que,
contudo, estas adquiram a qualidade de proprietárias). Todavia, o Autor alude à controvérsia acerca da
natureza jurídica destes fundos, opondo-se a tese tradicional que recusa atribuir-lhes personalidade
jurídica e uma tese mais recente que se inclina para os considerar como sociedades (esta segunda posição
socorre-se da obrigatoriedade de inscrição no registo comercial da escritura constitutiva deste fundo). Em
termos sucintos e quanto ao seu modus operandi, o fundo é dotado de um património próprio, dividido
em participações nominativas com características idênticas sem valor nominal e que conferem aos seus
titulares um direito de propriedade sobre o fundo, participações estas que considerados valores
negociáveis (representados através de certificados nominativos ou de anotações em conta e sujeitos ao
regime vigente para esta categoria de bens quanto à sua transmissão, oneração e exercício dos direitos
inerentes, embora a natureza sui generis - nomeadamente pela ausência de negociação em bolsa –
imponha desvios a esse regime geral), efectuando-se a sua subscrição e reembolso através do respectivo
preço (que se apurará através da divisão do património do fundo pelo número da participações em
circulação), nascendo as participações mesmo antes da emissão do certificado ou do registo, mas só a
partir deste momento o seu titular pode exercer os direitos inerentes a essa participação, extinguindo-se
esta em caso de reembolso e de amortização de participação ou de dissolução do fundo. Para De la Santa
Garcia, Prenda de valores cit., pág. 149 e segs., as participações neste tipo de fundos integram-se no
conceito legal de valor mobiliário (apesar de não serem admitidos a negociação num mercado
secundário), regendo-se pela legislação consagrada para aqueles valores ao nível da sua transmissão,
149
indivisos)568 que, pelo menos nalguns casos, colocam entraves à colocação em penhor
de determinados bens.569
Mais duvidosa é a eventual restrição das quotas a empenhar constante do art.º
690.º (nos termos do qual não pode ser hipotecada a meação dos bens comuns do casal,
nem tão-pouco a quota de herança indivisa), porquanto tal norma se refere apenas à
hipoteca e não é alvo da remissão para a regulamentação desta garantia prevista no art.º
678.º.
No que respeita à primeira categoria de bens, as justificações normalmente
apresentadas para a inviabilidade de oneração hipotecária – a circunstância de estes bens
se encontrarem afectos a um determinado fim, o qual seria comprometido em caso de
oneração daquela meação e, ainda, a inalienabilidade da mesma meação por vontade
exclusiva de um dos cônjuges, enquanto se não dissolver a sociedade conjugal570 -
parecem colher relativamente a qualquer outra garantia, pelo que não nos repugna,
mesmo na ausência de norma expressa, a sua aplicabilidade ao penhor.
Quanto ao penhor de quotas hereditárias, discordamos que a ratio legis – a
necessidade de o bem a onerar ser certo e determinado, a invalidade das hipotecas gerais
e impossibilidade de oneração de parte especificada de coisa comum571 - colha
relativamente ao penhor (e até a qualquer outra garantia), pois não só existe uma
150
determinabilidade do objecto da garantia, como não se afigura inviável a
empenhabilidade de bens fungíveis e de universalidades.572
Nesta conformidade, advogamos, na ausência de preceito nesse sentido, a não
aplicação de tal restrição ao penhor, a isso não obstando o facto de se tratar de direitos
futuros (faltando, por isso, um título que suporte o desapossamento do devedor).573
Socorrendo-se do disposto no n.º 1 do art.º 666.º (na parte em que apenas admite
a empenhabilidade de “certa coisa móvel”), alguns autores negam a admissibilidade de
um penhor575 (ou, mais latamente, até de direitos reais)576 sobre as universalidades,
muito embora esta leitura do preceito esteja longe de ser unânime.577
572
Sobre o penhor de universalidades, vide infra n.º 3.5 do Capítulo I.
573
Como salienta Hardel, ob. cit., págs. 97 a 99, duas vias alternativas serão concebíveis: ou a
“signification de l’intitulé d’inventaire à l’administrateur de la succession” (procedimento que o Autor
admite ser imperfeito, na medida em que apenas declara a existência de um direito, mas não a
constituição de qualquer direito) ou através de “une sequestre qui accepterait de détenir pour le compte
des créanciers gagistes” (embora com a dificuldade de determinação da quota parte de cada um dos
herdeiros no total da herança, pelo que este sistema exige que todos os herdeiros estejam de acordo).
574
Questão diversa prende-se com a admissibilidade de um penhor genérico ou geral, onerando todos os
bens de um determinado sujeito, à qual se deverá dar uma resposta negativa, em homenagem ao princípio
da especialidade e ao carácter especial (e não geral) da garantia pignoratícia – em sentido convergente,
Ciccarello, ob. cit., pág.685.
575
Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 685, afirmando que “A coisa tem de ser
certa, como se diz naquele artigo, e, portanto, torna-se sempre necessária a identificação das coisas
singulares que a constituem” (posição repetida pelo segundo destes Autores no seu Direito das
Obrigações, Vol. II, pág. 522, acrescentando que a constituição concreta das universalidades – apontando
como exemplo o estabelecimento comercial - se encontra em permanente mutação), Almeida Costa,
Direito das obrigações cit., pág. 923 (escrevendo que “A exigência de que se trate de uma coisa certa
obsta a que se empenhe uma universalidade como tal, podendo, no entanto, estabelecer-se esta garantia
em relação às coisas singulares que a integram”), Santos Justo, ob. cit., pág. 470, Lourenço Martins,
Parecer da PGR n.º 77/84, in BMJ n.º 348, págs. 122 e 124 e, menos enfaticamente, Salvador da Costa,
ob. cit., pág. 31 (na medida em que este Autor, depois de considerar que “Tem sido entendido que as
universalidades de coisas móveis, como é o caso dos estabelecimentos comerciais, são insusceptíveis de
constituir objecto de penhor”, mais adiante afirma: “Mas parece ser válido o contrato de penhor sobre
um estabelecimento comercial desde que este apenas seja integrado por bens móveis e ou direitos”,
ressalvando, em qualquer caso, a licitude da constituição de penhor sobre cada um dos bens que integram
aquelas universalidades). Relata ser esta a posição dominante na doutrina nacional Hugo Ramos Alves,
ob. cit., pág. 107 (mencionando ainda que a mesma se funda no princípio da especialidade dos direitos
reais).
576
Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., págs. 39 a 41, admite a existência de direitos reais sobre
universalidades de facto (alegando serem as mesmas coisas strictu sensu), mas não sobre universalidades
de direito, considerando que estas “não são coisas, são situações jurídicas ou conjuntos de situações.
Elas são objectivamente transmitidas, através de um acto que a todas abrange, mas isso não as
transforma de situações em objecto de outras situações jurídicas (…) não as coisifica, nem as torna
idóneas para serem objecto de novos direitos reais”.
577
Por exemplo no Acórdão da Relação de Évora de 18/6/1991, in CJ 1991, 3, pág. 308 e segs., decidiu-
se que a expressão “certa coisa móvel” não deve ser entendida como significando coisa certa, isto é, o
termo “certa” não é um adjectivo da coisa, concluindo-se pela inexistência de obstáculos à constituição de
um penhor sobre universalidades, como o estabelecimento comercial (não resistimos, até pela sua
singularidade, a transcrever a argumentação deste aresto, começando pela crítica aos partidários do
entendimento contrário: “Os referidos autores nos seus comunicados pegavam na expressão “certa coisa
móvel” que a lei utilizou, e alteraram-lhe o seu sentido, colocando o termo “certa” à frente do termo
“coisa”. Ou seja, transformaram um pronome indefinido num adjectivo. É manifesto que as expressões
“certo dia”, “certa vez”,“certa coisa” não têm o significado de “dia certo”, “coisa certa”. Qualquer
dicionário nos diz que “certo dia” ou “certa coisa” significam um qualquer dia, qualquer coisa, alguma
coisa. E não há outro significado possível em português. Donde, se o legislador quis excluir as
151
No entanto, outros autores admitem, embora de lege ferenda, que a garantia
pignoratícia possa recair sobre uma universalidade de facto ou de direito, “com o efeito
de se subtraírem ao penhor as coisas alienadas na gestão regular da universalidade e
de se incluírem nele as entretanto entradas nela”,578 sem necessidade de um específico
acto de empossamento do credor,579 executando o credor o seu direito sobre os bens que
componham a universalidade no momento da execução.580
Deste modo, o direito do credor respeitaria à universalidade no seu conjunto, ao
seu valor, e não a cada uma das coisas que a compõem,581 por isso se admitindo a
respectiva substituição, até porque apenas dessa forma não se prejudicaria a gestão
corrente do conjunto onerado.
universalidades como objecto do penhor, não o disse.”). Mais se advogou, na mesma decisão, que, ainda
que se deva entender apenas serem empenháveis as coisas certas e determinadas, o estabelecimento
comercial se subsumirá a essa categoria (considerando não existir nenhuma coisa insusceptível de
alteração nos elementos que a compõem, o mesmo acontecendo com o estabelecimento comercial,
relativamente ao qual “pode ser determinado com exactidão o seu conteúdo em determinado momento, é
uma coisa perfeitamente identificada. Não se percebe porque não pode ou não deva ser considerado uma
coisa certa.”, concluindo pela empenhabilidade do estabelecimento comercial “desde que seja
considerado coisa móvel”). Em termos análogos, Lopes dos Santos, ob. cit., pág. 45, ao admitir o penhor
sobre universalidades de facto compostas por coisas móveis, escreve que “A exigência de coisa certa não
pode ser auto-demonstrativa, conceptual. Trata-se de prevenir incertezas quanto ao património afecto à
garantia. Ora, uma correcta identificação do estabelecimento comercial satisfaz essa exigência de
certeza” e, mais amplamente, Mota Pinto, ob. cit., pág. 98 e segs., considerando que o “princípio da
especialidade não exclui, todavia, a possibilidade de se constituírem direitos reais sobre coisas
colectivas (coisas compostas ou universalidades) (…) essas coisas, embora integradas por uma
pluralidade de coisas simples, podem ser tratadas pelo direito como se fossem uma coisa única (…) são
compatíveis como objecto dos direitos reais, com a ideia de que estas têm de ter como objecto uma coisa
certa e determinada. Isto, porque a universalidade ou a coisa composta são – elas próprias – uma forma
de determinação ou individualização. A coisa não deixa, assim, de ser certa e determinada ou
individualizada pelo facto de ser constituída por uma pluralidade de coisas simples. Continua a ser, na
mesma, coisa determinada, cujos limites estão traçados em termos cognoscíveis” (acrescentando que as
coisas simples que compõem a universalidade se encontram no mesmo plano e possuem um valor
homogéneo e que, para certos efeitos, o direito tem interesse em tratá-las como coisa única).
578
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 76 a 79, citando também em favor da sua posição Galvão
Teles. Por seu turno, Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 199, recorda que a doutrina tradicional nega a
empenhabilidade das universalidades, mas reconhece que a prática tem vindo a admitir certas
universalidades como objecto do penhor, apontando como exemplo paradigmático o caso do
estabelecimento comercial. Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 171 entendem nada obstar
à constituição de penhor sobre universalidades de facto, considerando que a questão será mais duvidosa
no que respeita às universalidades de direito (muito embora afirmem, em seguida, a empenhabilidade do
estabelecimento comercial). Questão diversa respeita à alienação do próprio estabelecimento, após a
constituição do penhor, por parte do concedente da garantia, caso em que o direito de sequela inerente à
garantia pignoratícia permite ao seu titular reivindicá-lo para, em seguida, executar esse bem para
pagamento da dívida – neste sentido, Acórdão do STJ de 29/11/2001, in CJ 2001 (Tomo III), pág. 125 e
segs. (do mesmo modo, no Acórdão da Relação de Coimbra de 29/6/1999, in CJ 1999, Tomo III, pág.42 e
segs., decidiu-se que a alienação do estabelecimento comercial previamente dado em penhor é ineficaz
relativamente ao credor pignoratício, pelo que os embargos deduzidos pelo adquirente daquele bem na
execução movida pelo credor garantido deverão ser declarados improcedentes).
579
Realçando esta necessidade, bem como salientando, inversamente, que a subtracção dos bens à
universalidade produz a saída desses bens da órbita da garantia, mesmo que estes se mantenham em poder
do credor, Montel, Pegno cit., pág. 791
580
Neste sentido, Faggella, ob. cit., pág. 46.
581
Não obstante, no Acórdão do STJ de 22/10/1995, in BMJ n.º 451 (1995), pág. 460 e segs., decidiu-se
que ao credor com penhor sobre o estabelecimento comercial assiste legitimidade para, se tal constar do
contrato de constituição da garantia, se pagar pela venda judicial de apenas alguns bens que compõem o
estabelecimento (por não haver qualquer obstáculo legal), com a única limitação da necessidade de
autorização do locador se estiver em causa o direito ao arrendamento de um imóvel
152
Daí que, uma vez dada em penhor uma universalidade, se posteriormente algum
dos bens que a integram for penhorado, o credor com garantia sobre a universalidade
tem preferência, relativamente ao produto da venda desses bens, sobre aquele a favor de
quem tenha sido decretada a penhora, desde que na data em que esta ocorrer os bens em
questão ainda fossem propriedade do constituinte das duas garantia.582
Mesmo os autores partidários da admissibilidade de penhor sobre
universalidades reconhecem a existência de algumas dificuldades.
Desde logo, o princípio da especialidade, aceite como vigente para todos os
direitos reais, postula uma determinação do objecto do direito, impedindo a oneração de
coisas indeterminadas ou genéricas.583
Por outro lado, a necessidade de entrega do bem empenhado ao credor, exigida
pelo regime tradicional do penhor, pode não assegurar de forma adequada os interesses
do concedente da garantia – assim o impedindo de gerir convenientemente a
universalidade - , muito embora a manutenção do conjunto no poder do empenhante não
seja também uma solução meritória, pois colocaria em causa os legítimos interesses do
credor.
Perante este cenário, duas são as soluções aventadas: uma delas passaria por,
recorrendo ainda ao âmbito do regime civil do penhor, entregar a universalidade a
terceiro; a outra, a adoptar nomeadamente para as universalidades mais importantes,
residiria na criação de um registo, assim permitindo que o bem permaneça em poder do
concedente da garantia.
Outro problema, directamente relacionado com a necessidade de entrega,
prende-se com a possibilidade de o empenhador poder impedir a sujeição das novas
coisas que venham a integrar a universalidade ao penhor, bastando, para isso, não as
colocar em poder do credor.
Para contornar este obstáculo, poder-se-á considerar onerados os novos bens que
venham a integrar a universalidade, a partir desse momento e sem necessidade de
qualquer outra medida adicional, pelo penhor.584
A interrogação coloca-se em termos diferentes naqueles ordenamentos
que expressamente reconhecem como possível objecto de penhor as universalidades,
como acontece com o direito italiano (cfr. art.º 2784.º, n.º 2, do CCI)585 586 e, desde a
reforma de 2006, com o direito francês.587
582
No mesmo sentido a propósito do estabelecimento comercial, mas com consideração extensíveis às
demais universalidades, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 171.
583
Salientando este aspecto, por todos, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz
Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1491, concluindo pela admissibilidade de penhor sobre um
armazém de mercadorias (desde que se verifique a transmissão possessória e exista um acordo no sentido
de o credor entregar ao empenhante as mercadorias vendidas por este no curso normal da sua actividade,
bem como um pacto de sub-rogação consentindo a entrada no armazém de novos bens para substituir os
que foram alienados) ou sobre bens (v.g. sapatos) que se encontrem ou venham a ser armazenados num
dado local, mas não sobre uma biblioteca ou um rebanho (admitindo apenas a constituição de vários
penhores sobre os diversos elementos que compõem a universalidade) ou sobre uma determinadas
percentagem dos bens de um sujeito ou de uma empresa, nem tão pouco de um tipo de bens (sapatos)
identificados apenas pelo respectivo valor.
584
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 77.
585
O anterior código civil italiano era omisso a este respeito, mas Mirabelli, ob. cit., pág. 388 e segs.,
admitia já o penhor de universalidades, argumentando que a lei permitia dar em penhor “coisas móveis”,
nas quais o Autor incluía “gli oggetti contenuti nei negozi e quelli che formano una univsersalità di
fatto”, embora ressalvando a exigência legal de um descrição da quantidade, medida e peso dos bens
onerados (por outro lado, sustenta que, em regra, “ciò che si è ordinatamente alienato venga sgravato dal
pegno e ciò che si è nuovamente incorportato resti vincolato”, excepto quanto se trate de bens não
destinados a mutação ou renovação – com sucede com uma colecção de quadros de um coleccionador –
caso em que “si considerano come pegnorati soltanto i capi compresi al tempo del pignoramento”).
153
A este respeito é particularmente interessante verificar que o recente Código
Civil da Catalunha consagra duas hipóteses em que a garantia recai sobre mais do que
um bem, mas é regulada como abrangendo o conjunto e não cada um deles
individualmente considerado.
Assim, nos termos do art.º 569-16, n.º 2, considera-se como único objecto do
penhor o conjunto de coisas cujo valor no comércio se determina tendo em conta o
número, o peso ou o tamanho,588 acrescentando o n.º 3 do mesmo preceito que poderão
considerar-se como objectos unitários do penhor os conjuntos de valores (como acções,
obrigações ou créditos), de acordo com a legislação pertinente.
A grande diferença entre ambas as previsões – para além do âmbito dos objectos
oneráveis em cada um dos casos – reside na circunstância de, no primeiro, a
configuração unitária dos diversos objectos da garantia resultar directamente da lei,589
ao passo que no segundo será necessário um acordo expresso das partes no sentido de
configurar os diversos objectos da garantia de forma unitária.590
Como consequência do carácter unitário da garantia, todos os objectos que dela
fazem parte respondem conjuntamente pelo cumprimento da obrigação principal, não
podendo os seus proprietários exigir a devolução de uma parte das coisas oneradas,
Também Chironi, ob. cit., pág. 456 e segs., sustentava idêntica posição, argumentando que o penhor “non
perde la qualità di speciale quando ha per oggetto una universalitè di fatto, parte distinta, propria, del
patrimonio generale”, de tal modo que a garantia “gravi soltanto l’insieme, in modo da dire, che uscita la
cosa dall’universalità (la quale non perisce per questo), il pegno sussiste su di essa, e la cosa sia al tutto
libera di peso”, pelo menos sempre que as partes assim o convencionem (admitindo, no penhor de
estabelecimento comercial, a existência de uma convenção tácita no sentido de “il pegno distratto dalle
merci alienate, ricada su di quelle sostituite ed esistenti nel tempo dell’esercizio dell’azione”), de modo a
que a garantia incidirá sobre os bens que integram a universalidade no momento da execução do penhor
(já relativamente às universalidades de direito, é a própria lei que lhes atribui uma entidade jurídica
própria, razão pela qual a susceptibilidade de direitos sobre o todo não oferece dúvidas).
586
Apesar de, no direito espanhol, não existir qualquer preceito consagrando especificamente a
empenhabilidade de universalidades, Cordero Lobato, Comentario cit., págs. 2144 e 2145, admite-o,
esclarecendo que “la especificación del objeto de la prenda podrá hacerse mediante una determinación
cuantitativa o volumétrica del género gravado y donde las cosa sujetas al gravamen serán las que,
dentro de tales límites, compongan la universalidad en el momento de la ejecución”, invocando em seu
favor o art.º 499.º do CCE que se ocupa do usufruto de rebanhos.
587
Com efeito, o n.º 1 do art.º 2333.º, introduzido em 2006, dispõe que o penhor pode incidir sobre “un
bien mobiliere ou un ensemble de biens mobiliers corporels, présents ou futurs”. Reconhecem, em face
do novo regime, a licitude de penhores sobre universalidades de facto, Aynès e Crocq, Les sûretés: la
publicité foncière, Defrénois, 2009 (4.ª Edição), pág. 227, considerando que esta pode conter diversos
bens presentes e futuros, unidos por esse elemento federador. Mais liberais ainda são Cabrillac e Mouly,
Droit des sûretés 2010 cit., págs. 507 e 508, para quem a lei admite a dação em penhor de qualquer
universalidade – e não somente das de facto -, consentindo que os elementos que as compõem possam ser
renovados “même s’il ne s’agit pas de choses naturellement fongibles et absolument indentiques, sans
qu’on puisse y voir la constitution d’un nouveau gage”. Complementarmente e para os bens incorpóreos,
prevê-se que o mesmo possa abranger, não apenas um determinado bem, mas também um conjunto de
bens, presentes ou futuros, desta natureza (art.º 2355.º, n.º 1).
588
Afirmando que, quando o penhor tenha por objecto mercadorias sujeitas ao giro comercial do devedor,
bastará, para a sua determinação, a indicação das suas espécies, qualidades, localizações e valores, visto
não ser possível, tendo em conta as constantes movimentações desses bens, fixar as respectivas
quantidades, veja-se o Acórdão do STJ de 18/12/1951, in BMJ n.º 28 (1952), pág. 290 e segs. (acrescente-
se que, no caso sub judice, todos os bens dados em penhor garantiam o cumprimento da mesma
obrigação, apesar de nele se incluírem mercadorias, máquinas e ferramentas).
589
Assim conclui Barrada Orellana, ob. cit., págs. 277 e 278, face do anterior art.º 15.º, n.ºs 2 e 3 da Lei
catalã de garantias reais, entretanto revogada com a entrada em vigor do Código Civil da Catalunha, mas
cujo teor era igual ao dos preceitos citados no texto (o Autor esclarece, ainda que as partes poderão,
afastando o regime legal, especificar o objecto inicialmente genérico, criando uma pluralidade de
objectos.
590
Neste sentido, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 277 e 279.
154
ainda que haja sido paga uma parte do crédito, conforme decorre do princípio da
indivisibilidade do objecto do penhor.591
Mas, mesmo aqui se torna necessário estabelecer de que forma ocorrerá, nas
universalidades, o desapossamento do devedor (e o consequente empossamento do
credor),592 asseverando RUBINO que serão “as valorações económico-sociais” a
decidir quando ocorrerá a posse efectiva relativamente a cada tipo de universalidade,
acrescentando não ser necessário o empossamento do credor quanto a cada um dos bens
singulares que a integram.593
Neste contexto, será admissível afirmar que a especificidade do objecto do
penhor releve em sede de conteúdo e de funcionamento do penhor, e não tanto no
momento da sua constituição, não sendo, por isso, indispensável o empossamento
efectivo do credor relativamente a todo e qualquer bem que venha a integrar a
universalidade empenhada.594
Há quem analise a questão separadamente para as universalidades de facto e de
direito, embora sem negar, de forma absoluta, a empenhabilidade de qualquer destes
conjuntos de bens.595
591
Acerca deste princípio, vide infra n.º 7 do Capítulo I.
592
Como salienta Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 156, o art.º 2784.º, n.º 2, limita-se a consagrar a
empenhabilidade as universalidades, mas não estabelece a forma de constituição de um penhor com
semelhante objecto.
593
Il pegno cit., pág.207 (em sentido convergente, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 45). Por outro lado, em
relação a cada uma das novas coisas que passe a integrar a universalidade, o citado Autor entende não ser
de exigir um acto específico de empossamento para cada um deles, considerando que, encontrando-se a
universalidade já em poder do credor, o simples facto de os novos bens integrarem esse conjunto torna-os,
automaticamente, abrangidos pelo penhor. Já para Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 156, as
modalidades de constituição de penhor sobre cada universalidade dependerão da particular natureza e
destino dos bens onerados.
594
Neste sentido, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 108 e 109, admitindo mesmo a existência de um
dever do credor consumir ou substituir alguns bens componentes da universalidade, de modo a evitar o
seu perecimento ou depreciação, desempenhando assim uma função de gestão no seu próprio interesse,
mas também no do devedor (função essa recondutível ao dever geral de conservação do bem onerado que
impende sobre o credor pignoratício). Mais cautelosos se mostram Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 35,
recusando, mesmo quando se trate de um bem fungível, que nas relações entre as partes o objecto
empenhado possa ser substituído por outro sem o acordo de ambas (excepto quando estejamos perante um
penhor irregular caso em que tal substituição é admissível e natural), aceitando que, face a terceiros, as
partes possam, de comum acordo, substituir o quid onerado, “ma si tratterà di un nuovo pegno che prende
data dal momento della sua costituzione” (o que reduz significativamente o interesse prático de tal
substituição).
595
Referimo-nos a Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 154 e segs., admitindo o penhor de universalidades de
facto (entendidas como conjuntos de bens de natureza idêntica ou diversa, apenas corpóreos ou também
incorpóreos, considerados como um objecto único susceptível de uma utilização global), tendo em conta
o carácter fungível dos elementos que a compõem e que “permet de substituer aux éléments de
l’universalité, des éléments nouveuax de même valeur sans modifier l’object des droites qui portent sur
l’universalité prise en elle-même, puisque celle-ci a une existence distincte de ses éléments qui la
composent et que ceux-ci sont considérés au point de vue de leur caractère économique, de leur valeur
pécuniaire et non dans leur individualité respective” (embora entenda que, para justificar esta
substituição, não será necessário recorrer à figura da sub-rogação real, pois a mesma “s’explique en
réalité simplement par les caractères generaux de l’universalité sans qu’il soit besoin de faire intervenir
la notion de subrogation réelle”). Quanto às universalidades de direito (entendidas como conjuntos de
bens ligados entre si pela necessidade de responder a um passivo comum), o Autor nega, a priori, a sua
empenhabilidade (alegando que “il ne saurait être question de droits réels généraux portant sur
l’universalité car il n’ya pas en réalité de mode d’utilisation de l’universalité en tant que telle; ce qui est
utilisé ou approprié, ce sont les biens la composant ou leur valeur”), embora admita, tomando como
exemplo a indivisão hereditária, a empenhabilidade da parte dessa universalidade por cada um dos
herdeiros (realizando-se o desapossamento através da entrega do testamento ou, na falta deste, através da
remessa do inventário). Relativamente ao modo de efectuar o desapossamento nas universalidades de
155
No que especificamente respeita às universalidades de mercadorias, uma solução
aventada para a dação em penhor deste tipo de bens reside no recurso a garantias de tipo
flutuante596 ou, em alternativa, apelando à figura da sub-rogação real.597
O problema do penhor de universalidades assume especial importância quando
referido à susceptibilidade de a garantia pignoratícia ter como objecto o estabelecimento
comercial,598sobretudo atendendo à circunstância de, ao contrário do que sucede noutras
latitudes, o nosso ordenamento não possuir um regime específico regulando a colocação
em penhor deste bem com características sui generis (apesar da sugestão nesse sentido
facto, se estas compreenderem unicamente bens corpóreos, será mister o desapossamento de cada um dos
elementos que a compõem (através de um dos mecanismos previstos na lei); se, pelo contrário, as
universalidades incluírem bens incorpóreos, como no caso do estabelecimento comercial, “c’est la nature
tant des éléments corporels que des objets extérieurs servant de symbole aux éléments incorporels ou à
certains d’entre eux qui détermine le régime juridique de la sûreté s’applicant à l’universalité envisagée
globalement”, o que poderá determinar a aplicação do regime do penhor ou da hipoteca (e,
concomitantemente, a necessidade ou ausência de desapossamento).
596
Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 378 e segs., aponta como exemplo as garantias constituídas sobre o
estabelecimento comercial, embora duvide da bondade da sua extensão às mercadorias existentes nesses
mesmos estabelecimentos, sobretudo na medida em que permite a oneração de bens futuros, cuja
aquisição pode ter ocorrido com o auxílio dos credores cujo pagamento fica prejudicado. Não surpreende,
por isso, que muitas das legislações excluam as mercadorias do âmbito das garantias que incidem sobre o
estabelecimento comercial, propondo o Autor como alternativas a possibilidade de extensão às
mercadorias por pacto expresso (mas apenas até metade do seu valor), a limitação da garantia sobre
mercadorias àquelas cujo preço se encontre integralmente liquidado (embora a possibilidade de adquirir
novas mercadorias pagas com o preço obtido com a venda de outras previamente adquiridas a crédito e
não pagas ateste bem os vícios desta alternativa) ou, finalmente, determinando que a garantia atingirá
apenas as mercadorias existentes na data de vencimento da obrigação garantida (apesar de esta hipótese
apresentar o inconveniente de impor ao devedor a detenção das mercadorias totalmente pagas e
desoneradas nessa data).
597
Segundo Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 346 e segs., este é o fundamento diversas vezes invocado
para explicar por que razão a garantia sobre universalidades recairia sobre os bens onerados que, no
momento da execução, se encontrassem integrados no âmbito de tais universalidades (e, como dispunha o
art.º 1865-bis do CCE, “En tal caso, las cosas pignoradas que se enajenen serán sustituídas por otras de
igual calidad y en cantidad y valor equivalentes”). Tomando como exemplo o pignus tabernae e o (já
revogado) art.º 1865-bis do CCE, nenhuma destas normas impunha que os novos bens entrados na
universalidade fossem adquiridos com o produto da alienação das antigas (a segunda das normas citadas
limitava-se a exigir a fixação prévia de um limite máximo, mas, ainda assim, “Hay una obligación de
reponer, pero tecnicamente la afección del gravamen no se produce por el fenomeno jurídico de la
subrogación real, sino a través de la determinación sub specie universitatis del objeto de la prenda”, não
devendo por isso invocar-se a figura da sub-rogação real). Actualmente, a lei sobre hipoteca mobiliária e
penhor sem desapossamento impõe (cfr. art.º 22.º), em caso de garantia constituída sobre o
estabelecimento comercial, a obrigação de repor um valor pré-fixado, dispondo igualmente que se
encontram compreendidas as mercadorias e matérias primas que entrem posteriormente no
estabelecimento, ainda que a quantidade destas exceda o valor mínimo acordado (de acordo com o Autor,
devem entender-se sucessivamente oneradas todas as mercadorias e matérias primas entradas no
estabelecimento, e não apenas as que, na data do vencimento da obrigação garantida, aí se encontrem):
para além disso, o diploma legal em questão admite, no art.º 52.º, igualmente o penhor sobre as crias e os
produtos de animais (norma esta que o Autor, apesar do silêncio da lei, interpreta como consentindo a
constituição da garantia sobre uma universalidade, como um rebanho) e, no art.º 54.º, o penhor sobre
colecções de objectos de valor artístico e históricos, como quadros, livros, esculturas e cerâmicas (e,
segundo o Autor, como o objecto da garantia é o conjunto, “los elementos posteriormente ingressados en
el conjunto se entienden pignorados, pero sin que sea lícita la enajenación de los preexistentes, a no ser
que se autorice en el título de constitución en los limites en el mismo determinados”).
598
Nos Acórdãos do STJ de 6/5/1993, in www.dgsi.pt, e de 29/11/2001, in CJ 2001 (Tomo III), pág. 125
e segs., no Acórdão da Relação de Évora de 18/6/1991, in CJ 1991 (Tomo III), pág. 308 e segs. e no
Acórdão da Relação do Porto de 8/1/1998, in www.dgsi.pt, entendeu-se que a constituição de penhor
sobre o direito ao trespasse e arrendamento se deverá entender como a constituição de penhor sobre o
próprio estabelecimento comercial.
156
de VAZ SERRA nos estudos que precederam a aprovação do actual Código Civil)599
devendo, por isso a sua admissibilidade aferida em função do regime geral do penhor.600
A resposta a esta questão tem sido muitas vezes influenciada pela posição que se
assuma relativamente a outra interrogação, qual seja a relativa à natureza jurídica do
próprio estabelecimento,601 interrogação esta comum a diversos ordenamentos.602
599
O Autor, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 44 a 46, propunha a obrigatoriedade de sujeição deste penhor
a registo (o sistema proposto era o de admitir a dação em penhor, através de contrato escrito inscrito no
registo da situação do estabelecimento, dos bens móveis compreendidos no inventário desse
estabelecimento, efectuando-se o registo por referência a este último, de modo a que os terceiros
pudessem esclarecer-se acerca dos bens nele compreendidos que estariam onerados; por outro lado, o
penhor abrangeria os objectos posteriormente integrados no estabelecimento e, em sentido inverso,
libertar-se-iam da órbita da garantia os objectos que, de acordo como uma administração regular, sejam
alienados pelo devedor e retirados do estabelecimento antes de o credor executar judicialmente a sua
garantia – embora reconheça que o sistema não é perfeito, nomeadamente no que respeita à sua
publicidade, porquanto os objectos retirados do estabelecimento fora de uma administração regular
poderiam ser adquiridos por terceiros na convicção errónea de se encontrarem desonerados).
600
No mesmo sentido, Lopes dos Santos, ob. cit., pág. 20, concluindo, em conformidade, que será com
base no regime geral dos penhores civil e comercial que cumprirá aferir da viabilidade do penhor de
estabelecimento comercial. Ora, de acordo com este Autor, quer o regime do penhor de coisas, quer o
regime do penhor de direitos são inviáveis para abarcar no seu seio o penhor de estabelecimento
comercial. Quanto à primeira modalidade, não tanto por o estabelecimento não se incluir na noção de
“certa coisa móvel” (pois sustenta que uma correcta identificação do estabelecimento satisfaz esta
exigência), mas antes por entender que esta apenas se dirige às coisas corpóreas, sendo insusceptível de
aplicação às coisas incorpóreas, relativamente às quais se afigura descabido conceber a sua entrega e a
sua posse. Também o regime do penhor de direitos não se molda ao estabelecimento comercial, sobretudo
porque significaria criar uma ficção entre a garantia o bem dado em garantia e porque o penhor de direitos
se encontra regulado na lei como uma cessão de créditos em garantia, figura a que não se reconduz o
direito sobre o estabelecimento comercial. Em face desta inadequação, sugere que o penhor de
estabelecimento será um penhor misto ou global, comungando aspectos do penhor de coisas e de direitos,
devendo fundar-se na base física do objecto da garantia com sujeição às regras do penhor de coisas (mas
não podendo integrar bens imóveis), aplicando-se o regime do penhor de direitos aos bens desta natureza
que integrem o estabelecimento (com excepção dos direitos sobre imóveis). Quanto à respectiva
constituição, as coisas corpóreas terão que ser entregues ao credor (significando a entrega a assumpção,
por parte do credor, da condução do estabelecimento), excepto quando se trate de penhor comercial ou
bancário; por seu turno, o penhor sobre coisas incorpóreas e direitos constitui-se nos termos previstos
para a respectiva transmissão.
601
Consideraremos apenas, dada a exaustividade do tema, a posição dos Autores contemporâneos,
podendo citar, desde logo, Gravato de Morais, Alienação cit., págs. 181 a 188 (este Autor, depois de uma
breve resenha crítica das principais teorias, opta por qualificar o estabelecimento comercial como “uma
imaterialidade sui generis”, combinando a vertente organizativa e o perfil material, assim explicando a
admissibilidade de posse e propriedade e, finalmente, respondendo às questões relativas à sua alienação e
oneração global). Considerando como dominante a teoria que considera o estabelecimento comercial uma
universalidade, vide o Acórdão da Relação de Évora de 18/6/1991, in CJ 1991 (Tomo III), pág. 309 e
segs., no qual se mostra preferência pela qualificação do estabelecimento como uma universalidade de
facto, ou seja, como uma coisa susceptível de relações jurídicas, (considerando a tal não obstar a
circunstância de o art.º 206.º, n.º 1, exigir que a pluralidade das coisas móveis pertençam à mesma pessoa,
pois tal condição encontrar-se-ia verificada mesmo quando o equipamento é alugado e o imóvel
arrendado. Nestes casos, do estabelecimento comercial farão parte apenas o direito ao arrendamento e os
direitos que derivem do contrato de aluguer). Pelo contrário Mota Pinto, ob. cit., págs. 102 e 103, descarta
a qualificação como universalidade (de facto), alegando que o estabelecimento “além de ter uma
composição heterogénea, tem um valor que excede o valor somado dos elementos singulares que, numa
perspectiva analítica, o compõem. É, assim, uma coisa composta, unificada pelo direito” (ou seja, aquilo
a que poderemos chamar uma universalidade de direito). Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias
cit., pág. 233, nota 664, noticia serem dois os entendimentos dominantes: um, qualificando o
estabelecimento como uma coisa móvel incorpórea complexa sobre a qual podem recair direitos reais
(neste sentido, Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial cit., Vol. I, pág. 250 e Orlando de
Carvalho, Direito das coisas, Centelha, Coimbra, 1977., pág. 201), um outro fazendo apelo à figura da
universalidade de facto, passível da constituição de um penhor de universalidades (Hugo Ramos Alves,
157
ob. cit., págs. 110 e 111, para quem o estabelecimento é “uma pluralidade de coisas unificadas pelo seu
destino, motivo pelo qual é configurado como uma coisa nova (face às coisas que o compõem) (…)
porquanto o conjunto das coisas que o compõem ganham, sob o tecto de uma unidade, valor próprio”).
Recentemente, Cassiano dos Santos, Direito comercial português, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 293
e segs., rejeita a qualificação como universalidade de facto (alegando que estas englobam apenas coisas,
enquanto o estabelecimento é composto também por direitos), assim como não aceita estarmos perante
uma universalidade de direito em sentido próprio (uma vez que estas possuem uma unidade conferida
pela ordem jurídica, ao passo que a empresa detém uma unidade intrínseca e funcional, que existe antes e
independentemente do tratamento jurídico que lhe seja dado), concluindo que “o estabelecimento é uma
coisa composta, que é uma universalidade de direito sui generis, que partilha o tratamento unitário de
que são objecto as universalidades de direito, mas que vai para lá das características dessas coisas
compostas”, acabando por, com esta ressalva, consentir na inclusão do estabelecimento no âmbito das
universalidades de direito (ou seja, o estabelecimento é um bem incorpóreo, mas dotado de uma
incorporalidade sui generis, que o distingue dos bens incorpóreos puros, que decorre de na sua raiz se
encontrarem elementos de natureza predominantemente incorpórea). Finalmente, Romano Martinez e
Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 171, apelidam o estabelecimento comercial de universalidade de direito.
602
Gino Magri, ob. cit., pág. 22 segs., considera o estabelecimento como “una aggregazione di valori
avente contenuto essenzialmente vario e indeterminato”, ou seja, “quale universalità di elementi non può
riguardarsi oggetto di diritto come una cosa corporale o incorporale. Soltanto gli elementi singoli,
ciascuno secondo la sua natura particolare, possono essere oggetto di diritti. L’espressioni usuali (…)
pegno di un’azienda non sono altro che modi sintetici per desinare l’esistenza di quei diritti (…) do
pegno sulle attività diverse di un esecizio”, pelo que conclui pela inviabilidade de um direito real sobre o
estabelecimento comercial (partindo desta perspectiva, a necessidade, imposta por lei, do cumprimento de
diversas formalidades de acordo com a natureza dos diversos bens que integram o estabelecimento,
confirmaria a ausência de qualquer autonomia jurídica do estabelecimento). Porém, o Autor dá conta da
existência de, pelo menos duas outras posições: uma, qualificando a empresa como um complexo de
relações activas e passivas relativas ao exercício do comércio e sustentado que a entidade económica
unitária que este complexo possui corresponde a uma entidade jurídica autónoma; outra, considerando o
estabelecimento como composto por um conjunto de bens indispensáveis ao seu funcionamento, a maior
parte dos quais de natureza incorpórea, qualificando-o como uma universalidade incorporal distinta dos
diversos elementos que a compõem (o mesmo Autor alerta, socorrendo-se da análise dos trabalhos
preparatórios, que em França, aquando da aprovação da Lei de 1/3/1898, a posição dominante apontava
no sentido da qualificação do estabelecimento comercial como universalidade de direito). Já Franzo
Grande, Pegno di azienda nel nostro ordinamento?, in Rivista di Diritto Commerciale, 1959, II, pág. 227 e
segs., alude a duas grandes teorias, uma perspectivando o estabelecimento como uma realidade lógica que
une os elementos que a compõem em consideração da respectiva destinação unitária, outra ontológica que
apreende o estabelecimento como uma entidade distinta dos elementos que a integram, como um objecto
de direito autónomo de natureza mobiliária: ora, optando pela primeira alternativa, o penhor sobre a
“azienda” “non può lasciar fuori dalla sua applicazione alcun suo elemento o viene meno, a quell’effetto,
la considerazione unitaria”; pelo contrário, seguindo a segunda hipótese, o penhor sobre o
estabelecimento “deve applicarsi necessariamente di riflesso a tutti i suoi elementi” (o Autor propende
para esta última posição e, por isso, invoca este argumento para negar a empenhabilidade do
estabelecimento comercial qua tale – “Se è vero che un istituto che si applichi all’azienda non deve
lasciar fuori alcun suo elemento e se il c.d. pegno d’azienda ne lascia fuori gli elementi immobiliari (ed
anche alcuni mobiliari) se ne deve dedurre che l’azienda non viene in considerazione come tale ma come
beni atomisticamente considerati” - excepto se este for composto exclusivamente por elementos de
natureza mobiliária, mas, assim, o instituto perde grande parte do seu interesse, pois apenas seria
aplicável quando do acervo de bens integrados no património social não constem bens imóveis ou móveis
sujeitos a registo ou estes não sejam necessários ao seu funcionamento). Considera o estabelecimento
comercial como uma universalidade de facto, distinta dos diversos elementos que a compõem e com um
valor autónomo face a estes, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 159 e segs., assinalando que “L’unité de fons
est établie par la communauté d’affectation de ses éléments sans que cette identité de destination puísse
empêcher ces éléments de pouvoir être considerés isolément et de faire l’object de contrats ou d’actes
juridiques particuliers”, atribuindo-lhe natureza mobiliária (em razão do carácter móvel dos elementos
que a compõem) e incorpórea (tendo em conta a existência de elementos como a clientela): de acordo
com o Autor, esta perspectiva é comungada pela jurisprudência dominante e parece ter sido acolhida na
Lei de 1909 (embora, antes desta lei, se colocasse a questão relativa à forma de desapossamento do
constituinte da garantia, à qual alguns tribunais respondiam defendendo a entrega ao credor do acto de
aquisição do estabelecimento e, eventualmente, do contrato de arrendamento relativo às instalações onde
158
Para além disso, não é pacífico se o penhor sobre o estabelecimento comercial
deverá ser enquadrado no penhor de coisas, de direitos ou até qualificado como penhor
misto ou global.603
A controvérsia acerca da admissibilidade deste tipo de garantia também se
instalou no direito italiano, sendo o panorama legislativo semelhante ao lusitano
(ausência de normas específicas relativas à constituição de penhor sobre o
estabelecimento comercial qua tale), muito embora, como já se aludiu, o Código Civil
italiano admita expressamente o penhor de universalidades.604
Alguns dos argumentos tradicionalmente aduzidos para negar a viabilidade da
constituição de um penhor sobre o estabelecimento comercial são, designadamente, a
sua natureza jurídica imaterial (e portanto insusceptível de desapossamento), o facto de
dele fazerem parte (pelo menos na maioria dos casos) bens imóveis605 (e, por isso, não
passíveis de ser empenhados), a inexistência de norma legal que mencione o
159
estabelecimento comercial como bem empenhável e a circunstância de o objecto de
penhor dever ser, em qualquer caso, uma coisa certa e determinada.606
Por força da necessidade de desapossamento, uma posição já antiga607 na nossa
doutrina considera, em face do direito vigente e do requisito incontornável da entrega do
bem ao credor ou a terceiro, o penhor de estabelecimento comercial praticamente
inviável,608 muito embora advogue uma alteração legislativa no sentido de suprimir a
entrega como requisito de constituição do penhor, substituindo-a pela obrigatoriedade
de inscrição da garantia no registo comercial.609
No entanto e como o registo não assegura a posição do credor em termos cabais,
seria necessário, para esse efeito, não permitir as alienações de bens integrados na
normal actividade do estabelecimento e os demais actos de disposição prejudiciais ao
credor (pelo menos se não forem compensados pela entrada no estabelecimento
comercial de outros de idêntico valor), sancionando a violação destas proibições com
normas de natureza penal.
Procurando remover este obstáculo, tem-se focado que aquele desapossamento
se levará a cabo através da entrega ao credor dos bens singulares que compõem a
universalidade (ou até, segundo alguns, daqueles suficientes para se poder considerar
que o credor passe a ter nas suas mãos um estabelecimento comercial),610 admitindo-se
606
Invocando este argumento para negar a viabilidade do penhor do estabelecimento comercial vide, entre
nós, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 685 e Almeida Costa, Direito das obrigações
cit., pág. 861 e Parecer da PGR n.º 77/84, publicado no BMJ n.º 348 (1985), págs. 116 a 128. Também no
direito alemão a ausência do requisito da especialidade constitui impedimento à dação em penhor do
estabelecimento comercial, apenas se admitindo que a garantia incida sobre as coisas ou direitos
individualizados que o compõem (neste sentido, Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 302).
607
Galvão Teles, Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 1955, in O
direito, n.º 87, pág. 339.
608
De facto, apenas seria possível dar em penhor uma universalidade caso fossem entregues ao credor
cada um dos objectos que a compõem.
609
Esta substituição teria, ademais, a virtualidade de não impedir que o devedor continue a sua actividade
comercial. Por estranho que possa parecer, a troca do desapossamento pelo registo é alvo de críticas,
nomeadamente alegando que, não obstante qualquer interessado poder obter informações acerca da
garantia através da sua simples consulta, “su questa possibilite non è da fare alcun serio calcolo.
Anzitutto la necessita di siffatte indagini è poco in armonia colla speditezza e frequenza delle operazioni
del traffico: inoltre ognun comprende che potendo il pegno con somma facilità essere costituito da un
momento all’altro e con questo mutarsi improvvisamente la situazione economica del commerciante,
senza che avenga alcun fatto manifesto agli occhi del publico, a rigore chiunque si trova o vuol entrare
in rapporto di credito dovrebbe ad ogni singolo affare accertarsi della libertà della azienda” (cfr. Gino
Magri, ob. cit., pág. 43 e segs., concluindo que a criação de um registo, sobretudo se não público, não
assume qualquer relevância) e, ironicamente, criticando o carácter oculto de um penhor constituído desse
modo (“un pegno senza la tradizione delle cosa materiali dell’azienda, non rimarrano ai terzi che i mezzi
ordinari d’informazioni commerciali. Vale a dire il risultato della legge non sarà molto dissimile a ciò
che sarebbe accaduto se essa avesse puramente e semplicemente consentita la validità del pegno
occulto!” – vide ult. ob. e loc. cit.), reforçando que a publicidade de facto (leia-se, desapossamento)
constitui um indício exterior da situação jurídica dos bens móveis, sendo por isso o meio mais natural e
espontâneo de publicidade (sugerindo que o registo apenas deverá ser aplicado às situações que, não fora
a sua existência, a garantia permaneceriam ocultas).
610
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 166. Com base nesta a posição, a jurisprudência francesa do início do
século XIX, admitia que o penhor fosse válido e eficaz, mau grado não terem sido observadas as
formalidades necessárias relativamente a cada um dos elementos que o integram, mas tão somente as
relativas aos bens essenciais da empresa, normalmente de natureza incorpórea (para uma crítica deste
entendimento, vide Gino Magri, ob. cit., pág. 31 e segs., por entender que tal raciocínio conduz à
existência de penhores ocultos).
160
até que o penhor se possa constituir, neste caso, por via de uma mera entrega simbólica,
na modalidade de um constituto possessório.611
Facilmente se compreende que a entrega pode criar graves prejuízos para o
devedor (que fica privado de um dos seus principais, senão único, meio de subsistência)
e para o próprio credor (que pode não ter as aptidões necessárias para conduzir a vida da
empresa empenhada), mas na inexistência de norma expressa que afaste a necessidade
de desapossamento do devedor, parece ser este o único modo de constituição deste
penhor.612
Por ser assim, o contrato de penhor de estabelecimento comercial apenas se
perfeccionaria na medida e à medida que os bens integrantes do estabelecimento fossem
consignados ao credor.613
Porém, as modalidades de constituição do penhor em relação a cada um dos
elementos que integram o conjunto variam em função da respectiva natureza,614 assim
exigindo o desapossamento para as coisas corpóreas, a notificação para os créditos615 e a
correspondente modalidade para os outros direitos, apenas considerando ter existido
desapossamento do próprio estabelecimento quando o controlo da gestão e o relativo
exercício sejam conferidos ao credor.616
Por seu turno, alguns autores descartam a viabilidade de uma única garantia
sobre o estabelecimento sempre que do património deste fizessem parte bens imóveis,
admitindo unicamente o penhor sobre a globalidade do acervo mobiliário, o qual
poderia ser constituído através de uma única declaração negocial.617
611
Pronuncia-se neste sentido, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 112, embora caindo na contradição de
afirmar que o penhor de estabelecimento é um penhor sem entrega e, mais adiante, declare que a sua
constituição de processa através de uma entrega simbólica, nos termos da qual “o credor pignoratício vê-
se investido na posse, ficando o empenhador na posição de mero detentor, o que equivale a dizer que o
empenhador, em tudo quanto respeita ao penhor, possui o objecto em nome do credor pignoratício, dado
que a entrega simbólica pode ser efectuada por via do mero constituto possessório” (o Autor procura
contornar a proibição decorrente de a constituição do penhor através de entrega simbólica apenas poder
ocorrer nos casos expressamente previsto na lei, alegando as hipóteses consagradas no art.º 398.º do
Código Comercial “mais não são do que meras exemplificações do princípio-reitor que subjaz a tal
parágrafo, i.e., a possibilidade de constituir penhor mediante entrega simbólica da coisa empenhada”).
Esta forma de constituição da garantia não obsta a que o empenhante continue a exercer a sua actividade
– designadamente alienando ou substituindo alguns dos elementos que integram o estabelecimento, até
porque será esse o seu destino normal – uma vez que, se tal não fosse possível, ficaria inutilizada a
principal fonte de rendimento do empenhante, com isso se prejudicando igualmente o credor pignoratício.
612
Ou, como refere Lopes dos Santos, ob. cit., pág. 23, “a função sócio-económica exige que o
estabelecimento comercial se mantenha na posse do comerciante”.
613
Para Gino Magri, ob. cit., pág. 35 e segs., o contrato é, simultaneamente, “constitutivo del diritto di
garanzia (…) su taluni fra gli elementi e di un’obbligazione del debitore di costituire la garanzia su altri
elementi (contratto preliminare)”.
614
Cfr. Realmonte e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 45, argumentando que o CCI não estabelece qualquer
forma de constituição específica para o penhor de universalidades.
615
Excepto, eventualmente, para os créditos nascidos após a assunção, por parte do credor, do exercício
do estabelecimento, para os quais não se exigiria qualquer notificação.
616
A menos que as partes disponham que a actividade da empresa cesse, hipótese esta marginal. Se assim
for, aliás, dever-se-ia, provavelmente, considerar existir um penhor sobre as coisas que compõem a
universalidade individualmente consideradas.
617
Rubino, Il pegno cit., pág. 208. e o já citado Acórdão da Relação de Évora de 18/6/1991, no qual se
limita a empenhabilidade do estabelecimento comercial aos casos em que este deva ser considerado uma
coisa móvel, admitindo-o, por isso, in casu, na medida em que a empresa em questão laborava num
prédio arrendado (e, como se constata no aresto, “não faz parte dos elementos que o compõem qualquer
bem imóvel”). Esta última decisão suscita-nos duas dúvidas. A primeira, diz respeito à potencial natureza
imóvel do direito ao arrendamento, por força da alínea d) do n.º 1 do art.º 204.º (uma vez que, na esteira
da doutrina dominante, o direito ao arrendamento não possui carácter real). A segunda, prende-se com
uma incongruência a que pode conduzir a tese defendida no Acórdão, uma vez que, se o estabelecimento
161
A este motivo contrapõe-se a existência de estabelecimentos comerciais cujo
acervo é exclusivamente mobiliário618 ou, mais ainda, que mesmo a existência de bens
imóveis não exclui um penhor sobre a generalidade dos bens móveis, considerando que
estes constituem uma empresa619 ou afirmando, em termos análogos, a natureza
mobiliária do estabelecimento comercial (independentemente dos elementos que o
componham).
Outro dos argumentos invocados – a ausência de norma expressa que consagre o
penhor de estabelecimento comercial como possível objecto de penhor – assume no
nosso ordenamento contornos ainda maior relevância (em confronto com o ordenamento
italiano), na medida em que a nossa legislação não indica, ao menos de forma expressa,
as universalidades como bens empenháveis.620
Desde logo, saliente-se que o simples facto de não existir qualquer diploma
avulso a permitir e/ou regular a constituição de penhor sobre o estabelecimento
comercial não revela, por si só, a inviabilidade de a garantia pignoratícia poder incidir
sobre aquele tipo de bens, sob pena de negarmos a empenhabilidade de qualquer bem
para o qual inexista legislação específica.621
Noutra ordem de considerações, saliente-se que mesmo quando respeitados os
requisitos legalmente impostos para a empenhabilidade dos bens em geral,622 o
desapossamento do constituinte levanta uma interrogação adicional: se a lei consagra,
para as situações inerentes à vida social e com vista à sua publicitação, o registo
comercial, e este não exclui os registos estabelecidos para a constituição de direitos
reais sobre alguns dos bens que integram o património social, a exigência de
desapossamento (e não do registo comercial) “comme elemento costitutivo del c.d.
pegno di azienda, è un’altra conferma che esso cade sui singoli beni mobili”.623
Finalmente, há ainda quem recuse a empenhabilidade autónoma do
estabelecimento comercial argumentando que “os recursos integrais do devedor não
funcionar num imóvel propriedade do mesmo titular o penhor será inadmissível (tendo em conta a
natureza indiscutivelmente imobiliária deste último bem), mas, ao invés, será viável se estiver sediado
num imóvel arrendado, o que conduzirá ao resultado paradoxal de não serem empenháveis aqueles
estabelecimentos cujo valor seja incrementado pela propriedade do imóvel onde se encontrem instalados,
mas já o serem aqueles que funcionem em instalações alheias!
618
Equiparando estes casos àqueles em que os elementos imobiliários, embora existam, não sejam
essenciais à existência do estabelecimento, Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 40.
619
Neste sentido, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 166. Caso os bens móveis não constituam, por si só, um
estabelecimento, poder-se-ia – prossegue o mesmo Autor - eventualmente falar em penhor de
estabelecimento apenas se aos bens móveis fossem adicionados outros elementos que permitissem ao
credor gerir a empresa (como, por exemplo, através do arrendamento ao credor pignoratício do imóvel
que integre o estabelecimento até à data de extinção do crédito garantido).
620
Utiliza este argumento Galvão Teles, Anotação cit., pág. 338 e segs., para negar a empenhabilidade do
estabelecimento comercial, considerando que “enquanto o não fizer, não poderá igualmente fazê-lo o
intérprete”.
621
Este argumento apresenta-se, em nosso entender, o menos consistente, porquanto a sua invocação
permite exceptuar do âmbito do penhor qualquer objecto (excepto aqueles expressamente enumerados nas
leis avulsas que foram criando regimes especiais). Salvo melhor juízo, a exclusão de um bem móvel não
hipotecável do alcance do penhor apenas poderá resultar do não preenchimento dos requisitos gerais que
condicionam a dação em penhor de qualquer bem.
622
Enumerados no anterior n.º 3 do Capítulo I.
623
Neste sentido, Franzo Grande, ob. cit., págs. 232 e 233, assegurando ainda que, mesmo se o credor
pignoratício pretender inscrever a sua garantia sobre a empresa no registo comercial não o poderá fazer,
porque a tal se opõe o princípio do numerus clausus das situações averbáveis nesse registo, das quais não
consta a constituição de penhor sobre o estabelecimento (por outro lado, acrescenta que tal conclusão é
aplicável mesmo quando, como sucede em França, a constituição do penhor de estabelecimento esteja
sujeita a registo, uma vez que também aí não basta a inscrição no registo comercial, sendo ainda
indispensável uma inscrição noutro registo).
162
devem ser absorvidos por um só credor, o que arruinaria o crédito comercial, em vez
de auxiliá-lo”.624
Não sem reconhecer a pertinência destas objecções, recusamos que as mesmas
obstem ao reconhecimento e à legitimidade de um penhor sobre o estabelecimento
comercial, cabendo, a este respeito, enumerar algumas razões privativas do nosso
ordenamento que podem sustentar tal interpretação.
Desde logo, a importância que esta figura assume na praxis negocial, além de
atestar a sua quase indispensabilidade, apenas deverá conduzir ao seu repúdio caso
circunstâncias absolutamente gravosas o determinem.
Não espanta, por isso, que a jurisprudência625 e a doutrina mais recente626 se
inclinem no sentido de admitir um penhor com este objecto, não sem que
desconheçamos a existência de posições dissonantes.627
624
Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 389, acrescentando o perigo para terceiros resultante da
ausência de desapossamento desta garantia, imposta pela necessidade de continuação da actividade
comercial por parte do devedor empenhante.
625
Designadamente, os Acórdãos do STJ de 25/1/1955, in Revista dos Tribunais, n.º 73 (1955), pág. 17 e
segs. e também in O direito, n.º 87, pág. 336 e segs (com anotação, crítica, de Inocêncio Galvão Teles), de
6/5/1993, in www.dgsi.pt, (no qual se citam várias posições doutrinais no mesmo sentido), e de
29/11/2001, in CJ, 2001 (Tomo III), pág. 125 e segs., da Relação de Évora de 18/6/1991, in CJ 1991
(Tomo III), pág. 308 e segs. (embora apenas se o estabelecimento comercial for considerado uma coisa
móvel), da Relação do Porto de 20/6/1996, in www.dgsi.pt e da Relação de Coimbra de 22/6/1999, in CJ
1999 (Tomo III), pág. 42 e segs.. De entre estes, merecem especial referência os Acórdãos da Relação de
Évora e de 18/6/1991 e do STJ de 6/5/1993, proferidos no mesmo processo, tendo o segundo destes
arestos confirmado o primeiro (quanto à argumentação invocada, vide Lopes dos Santos, ob. cit., págs. 9
e 10, salientando este Autor o aspecto, não despiciendo, de no processo em causa o estabelecimento
comercial funcionar em imóvel arrendado).
626
Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 171 (salientando que “não obstante a perplexidade
que suscita a existência de uma garantia real sobre uma universalidade de direito (o estabelecimento
comercial), parece de aceitar a sua viabilidade como penhor de direitos”, esclarecendo ainda que, na
vigência da garantia, o empenhante pode alienar as mercadorias e mesmo substituir alguns dos bens
móveis que compõem o estabelecimento, sem que tais actos impliquem incumprimento e, por outro lado,
“Se o estabelecimento vier a ser, mais tarde, penhorado, sobre os bens que o integram à data da penhora
e que estejam na propriedade do autor do penhor há uma preferência do credor pignoratício”), Salvador
da Costa, ob. cit., pág. 31 (mas apenas desde que o estabelecimento seja composto unicamente por bens
móveis e ou direitos), Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 302, António Caeiro, Voto de vencido in
Parecer da PGR cit., pág. 126 (este último Autor, apesar de recriminar a omissão legislativa no que
respeita à aprovação de regras específicas para o este tipo de penhor, assevera que o penhor de
estabelecimento comercial é válido, mesmo em face do regime geral vertido no Código Civil,
designadamente por entender que a referência a “certa coisa móvel” contida no art.º 666.º, n.º 1, abrange
igualmente as coisas incorpóreas como o estabelecimento comercial. Para além disso, assegura que o
estabelecimento comercial sempre foi e continua a ser objecto de vários negócios, a maior parte dos quais
com escassa ou nenhuma regulamentação legal), Mota Pinto, ob. cit., pág. 101 e segs. (considerando-o
como objecto possível de direitos reais, embora não aludindo expressamente à sua empenhabilidade,
porquanto a lei o trata “como se constituísse uma coisa única para muitos efeitos, nomeadamente para o
de admitir uma transferência unitária do estabelecimento (o chamado trespasse). Em matéria de
reivindicação admite, igualmente, a lei que o estabelecimento seja objecto de uma única acção de
reivindicação, o que implica ser ele aqui tomado globalmente (…). Da mesma forma pode haver um
usufruto de um estabelecimento globalmente considerado e não das várias coisas que o integram”),
Gravato Morais, Alienação cit., págs. 158 a 164 (sustentando que tal admissibilidade resulta dos diversos
preceitos legais a que se faz menção infra no texto – em especial do relativo ao EIRL - , para além de
satisfazer necessidades essenciais do comércio jurídico, surgindo o penhor de estabelecimento como
“mero corolário da caracterização daquele quid como unidade jurídica”), Pestana de Vasconcelos,
Direito das garantias cit., pág. 234, nota 664 (citando ainda a posição convergente de Menezes Cordeiro)
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 109 e segs. (invocando, a favor da admissibilidade de um penhor com
este objecto, o expresso reconhecimento da alienação definitiva ou temporária do estabelecimento, a
empenhabilidade do EIRL), Cassiano dos Santos, ob. cit., pág. 295 e Rui Pinto Duarte, ob. cit., págs. 232
e 233 (invocando alguns argumentos enumerados no texto – como a empenhabilidade do EIRL e a
163
Noutra ordem de considerações e socorrendo-nos agora de considerações de
carácter mais jurídico, diremos que o legislador luso admite a alienação, definitiva ou
temporária, total ou parcial, do estabelecimento comercial (através de negócios a que
chama trespasse ou transmissão)628, não se vislumbrando qual o motivo para inviabilizar
um negócio de conteúdo menos gravoso629 e que, noutra óptica, pode até acabar por
produzir o mesmo efeito de transferência da propriedade para terceiro.
164
Em termos mais vastos, é defensável que a natureza de coisa – composta, é certo
– do estabelecimento comercial o torna passível de qualquer direito real, incluindo de
garantia, e até mesmo de posse.630
Quanto ao obstáculo resultante da difícil compatibilização do princípio da
especialidade dos direitos reais com a constante mutação dos bens que integram o
estabelecimento comercial – e este é um aspecto comum à generalidade das
universalidades – afirma-se que “o objecto da garantia não é, rigorosamente, cada um
dos seus elementos constitutivos, mas a universitas como tal. Os elementos singulares
são objecto da garantia apenas duma forma indirecta e porque constituem o
substractum da universitas. Esta é que é propriamente o objecto do penhor.”.631
Aliás, se o princípio da especialidade, comum à generalidade dos direitos reais,
inviabilizasse o penhor de estabelecimento comercial, este objecto não poderia ser alvo
de nenhum direito real: ora aí está a realidade a desmenti-lo, ao admitir a penhora do
estabelecimento comercial (art.º 682-A, do CPC)632 e a hipoteca de fábrica (art.º 691.º,
630
Assim, Cassiano dos Santos, ob. cit., págs. 293, 295 e 297, concluindo, em consequência, que como
“Objecto unitário de direitos reais e de posse, o estabelecimento pode ser objecto, nos termos gerais, de
acção de reivindicação e de acção de restituição de posse. Nesses casos, cada elemento é entregue ou
restituído de acordo com o título a que está integrado na empresa”. Relativamente à susceptibilidade de
posse, cumpre citar Rui Pinto Duarte, ob. cit., págs. 301 e 302, alegando que “seria incongruente que,
possibilitando a lei a penhora do estabelecimento comercial (e o penhor do estabelecimento individual de
responsabilidade limitada), fosse negada a possibilidade de posse” e, sobretudo, porque o
estabelecimento, enquanto tal, pode ser objecto de propriedade e “da verificação que são vários os casos
em que é lícito tomá-lo como objecto unitariamente transferível”, citando como favoráveis à posse do
estabelecimento os Acórdãos da Relação de Lisboa de 30/10/1990, de 8/3/1994 e de 9/6/1994, da Relação
do Porto de 28/4/1987 e de 1/2/1990, da Relação de Évora de 12/6/1997 e do STJ de 15/6/00, apesar de
neste último apenas se tenha considerado admissível a usucapião relativamente aos elementos corpóreos
do estabelecimento).
631
Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 39. O mesmo Autor prossegue sustentando que a variação dos
objectos que compõem o estabelecimento comercial é inerente à natureza mutável da vida comercial.
632
No sentido da qualificação da penhora como direito real de garantia vide, por todos, Remédio
Marques, Curso de processo executivo comum à face do código revisto, Almedina, 2000, pág. 275,
afirmando que “a penhora implica a constituição de um direito real de garantia de origem legal – mas
judicialmente constituído -, que radica, a um tempo, numa natureza publicista e privatista” que
desempenha “uma função instrumental de asseguramento da realização de um crédito, por intermédio ou
com a cooperação de um órgão estadual”, conferindo ao seu beneficiário poderes de sequela – uma vez
que pode, com a cooperação do tribunal, ser oposta a qualquer subadquirente - e de preferência, ainda que
limitada, uma vez que cessará em caso de levantamento da penhora ou de insolvência do executado
(mesmo para quem duvide do carácter real da penhora, é indiscutível a sua qualificação como uma causa
legal de preferência, atento o disposto nos art.ºs 604.º, n.º 2 e 822.º). Lopes dos Santos, ob. cit., págs. 17 a
20, reconhece no regime da penhora de estabelecimento comercial alguns aspectos com relevância para o
estudo do penhor sobre o mesmo objecto: desde logo e nos termos do n.º 1, a necessidade de inclusão, no
auto de penhora, dos bens que essencialmente integram o estabelecimento, mas não de todos eles
(cabendo ao credor optar se o objecto da penhora será o próprio estabelecimento ou, ao invés, o conjunto
de bens que o integra); por outro lado, o facto de a penhora não implicar necessariamente a interrupção da
actividade do estabelecimento, assim admitindo que nela sejam incluídos os bens alienados no decurso
dessa actividade e a ela acrescendo os que entretanto venham a integrar tal património (n.ºs 2 e 3); em
caso de concurso com garantias sobre os bens que integram o estabelecimento, a penhora prevalece
perante os constituídos em data posterior, mas cede diante dos surgidos em momento anterior (n.º 5 – o
Autor critica aquela prevalência, atenta a falta de publicidade da penhora); quando o penhor incida sobre
bens sujeitos a registo, a inscrição é necessária, pelo menos para impedir uma posterior penhora sobre os
mesmos bens (n.º 6); por último, a circunstância de o n.º 1 remeter para o regime do penhor de créditos,
sempre que do acervo do estabelecimento constem bens desta natureza, como seja o direito ao
arrendamento. Para além disso, o mesmo Autor, ob. cit., pág. 43, apesar de reconhecer que “Não faz
sentido penhorar o estabelecimento comercial e recusar-se a constituição da garantia”, entende haver
uma diferença relevante, porquanto a penhora abrange o estabelecimento em todos os seus elementos, ao
passo que o penhor não abrange os imóveis (vide págs. 49 e 50).
165
n.º 2)633 e, quiçá mais importante, o art.º 901-A, do CPC (no qual expressamente se
alude à existência de credores com garantia real sobre o estabelecimento comercial).634
Existe, aliás, um tipo de estabelecimento comercial relativamente ao qual a lei,
de modo inelutável, consente a respectiva empenhabilidade: trata-se do estabelecimento
individual de responsabilidade limitada (EIRL)635 nos termos do art.º 21.º do Decreto-
Lei n.º 248/86, de 25 de Agosto, afirmando tal preceito expressamente que este penhor
não implica o desapossamento do devedor e a consequente entrega do estabelecimento
ao credor, ficando os seus efeitos dependentes da inscrição no registo comercial.636
Há até quem retire desta norma um princípio geral, aplicável por força da
analogia iuris, de não desapossamento no penhor de estabelecimento comercial, tendo
essa oneração de ser acompanhada de publicidade face a terceiros.637
Não esquecer, ainda, que o próprio Código das Sociedades Comerciais, no art.º
246.º, n.º 2, alínea c), alude à locação, alienação e oneração do estabelecimento,
atribuindo aos sócios, salvo estipulação em contrário constante do pacto social,
competência para deliberar sobre estas matérias.638
633
Pese embora não ignorarmos que, no caso da hipoteca de fábrica, a necessidade de inventariação de
todos os bens móveis que a integram consinta a respectiva individualização e, por conseguinte, a não
violação do princípio da especialidade. Por outro lado, Lopes dos Santos, ob. cit., págs. 16 e 17, entende
que a principal diferença entre o penhor de estabelecimento e a hipoteca de fábrica é que o objecto desta
última são os bens móveis e imóveis identificados, ao passo que o primeiro incide sobre o
estabelecimento individualmente considerado.
634
Para além disso, em matéria de usufruto admite-se inequivocamente que este direito possa incidir
sobre uma universalidade de facto (art.º 1462.º, embora sem referência ao estabelecimento comercial),
assim contribuindo para a relativização do princípio da especialidade.
635
Apontando esta consagração expressa do penhor de um estabelecimento comercial, ainda que com
características específicas, como um indício da possibilidade de conceder em garantia tal bem, vide o já
citado Acórdão do STJ de 6/5/1993, in www.dgsi.pt (realçando que, no preâmbulo do diploma que criou
o EIRL, o legislador terá afastado a concepção do estabelecimento como uma coisa imaterial – ao defini-
lo como “um conjunto organizado de meios através dos quais o comerciante explora a sua empresa” – e,
além disso, a necessidade da entrega do bem empenhado ao credor) e também Gravato de Morais,
Alienação cit., págs. 158 a 160 (retirando, inclusivamente, do regime consagrado para o penhor EIRL –
bem como para a locação e o usufruto do estabelecimento - a necessidade de o penhor do estabelecimento
comercial estar sujeito a forma escrita).
636
Desvalorizando este argumento enquanto fundamento da consagração legal da possibilidade de dação
em penhor do estabelecimento comercial, Lopes dos Santos, ob. cit., págs. 14 a 16 (considerando,
nomeadamente, que o EIRL é uma realidade distinta do estabelecimento, constituindo antes um
património autónomo, pelo que o objecto do penhor será este património e não aquele estabelecimento).
Porém, o mesmo Autor reconhece que da consagração legal da empenhabilidade do EIRL resultam duas
consequências relevantes para o penhor de estabelecimento comercial: desde logo, o facto de aquele
penhor não exigir o desapossamento do devedor, sendo a sua publicidade assegurada através da
necessidade de redução a escrito, da sua inscrição no registo e posterior publicação no Diário da
República é um mecanismo que merece aplausos; por outro lado, as analogias com o objecto do penhor
de estabelecimento podem ser evidentes, como sucederá quando, entre o momento do nascimento da
garantia e da sua execução, se altere o objecto da garantia (ou seja, quando o penhor não incide sobre uma
coisa certa, mas antes sobre uma universalidade mutável).
637
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 263, recusando a analogia legis – uma vez que,
não se encontrando o estabelecimento sujeito a registo, não se poderia registar o penhor - , socorre-se da
analogia juris para justificar a aplicação do princípio mencionado no texto ou, se assim não se entender,
através da criação de uma norma ad hoc por via do art.º 10.º, n.º 3.
638
Escudando-se no disposto neste preceito, no Acórdão do STJ de 22/11/1995, in BMJ n.º 451 (1995),
pág. 460 e segs., decidiu-se que a constituição de um penhor sobre o estabelecimento comercial depende
de prévia deliberação dos sócios, admitindo, porém, a validade do penhor constituído após deliberação
dos gerentes dessa sociedade, desde que o contrato de sociedade lhes tiver conferido tal poder ou se forem
os únicos sócios dessa sociedade (considerando, neste segundo caso, estarmos perante uma deliberação
tácita dos sócios).
166
Para além disso, o art.º 1682-A, n.º 1, alínea b), alude à oneração de
estabelecimento comercial, embora sem identificar qual o ónus que sobre o mesmo
possa ser constituído.
Finalmente, existe uma outra norma, de natureza processual, que alude à figura
do penhor de estabelecimento comercial (cfr. art.º 1.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º
274/97, de 8 de Outubro, que exceptua da aplicação do respectivo regime as execuções
em que o bem exequendo seja tal estabelecimento).
Considerando um outro aspecto, cabe realçar a natureza mercantil do penhor
constituído sobre o estabelecimento comercial, assim legitimando a sua constituição nos
termos do Código Comercial, ou seja, mediante simples tradição simbólica.639
Há até quem vá mais longe e consinta a constituição de um penhor de
estabelecimento sem desapossamento, quando esta formalidade não seja exigida
constituição da garantia, como sucede com o regime do penhor bancário,640 641 ou
através da oneração das participações sociais.642
639
Neste sentido, expressamente, o Acórdão do STJ de 25/1/1955, in O direito, ano 87, pág. 336 e segs.,
considerando que, após a entrega simbólica, o devedor se converteria em possuidor em nome alheio (do
credor), na qualidade de fiel depositário (considerando mesmo que, até em face do regime do Código
Civil, o penhor não enfermaria de nenhum vício, na medida em que o devedor assume a qualidade de fiel
depositário) e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 112. Contra, Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 42, por
considerar que a entrega simbólica deixaria desprotegido o credor e, sobretudo, os terceiros que
continuariam a acreditar, erroneamente, na ausência de ónus sobre o estabelecimento (apenas admitindo a
constituição do penhor nos termos da lei civil, isto é, mediante entrega efectiva do bem ao credor ou a
terceiro) e Galvão Teles, Anotação cit., págs. 339 e 340, aduzindo as mesmas razões e ainda outras de
carácter sistemático: “Como se compreenderia que em 1939 o legislador tivesse publicado tal Decreto-
Lei a autorizar a constituição válida do penhor sem entrega a favor dos Bancos, rodeando essa
constituição do máximo possível de cautelas, se pela lei geral já o penhor (pelo menos o mercantil) se
pudesse constituir assim a favor de qualquer credor, aliás sem as mesmas cautelas? A intervenção
legislativa, dominada pelo confessado propósito de facilitar o crédito bancário, teria tido como resultado
dificultá-lo…” e por contestar que a continuação do estabelecimento em poder do devedor, mesmo a título
de depositário, não configura uma tradição simbólica (prevista no art.º 398.º do Código Comercial), mas
antes uma mera tradição ficta, na forma de constituto possessório, tendo em conta que a transferência da
posse se dá sem qualquer operação material (mesmo que simbólica), mas pela simples mudança do
animus, passando o possuidor em nome próprio a possuir em nome alheio.
640
Nos termos do Decreto-Lei n.º 29.833, de 17 de Agosto de 1939 – neste sentido, vide o Acórdão do
STJ de 29/11/2001, in CJ 2001 (Tomo III), pág. 125 e segs. e Gravato de Morais, Alienação cit., págs.
160 e 161 (admitindo-se, ao menos âmbito deste diploma, a constituição de um penhor de
estabelecimento sem desapossamento do devedor). No entanto, o art.º 3.º deste mesmo provecto Decreto-
Lei veda que o penhor especial por ele regulado possa recair sobre coisas imateriais, pelo que quem
atribua semelhante natureza jurídica ao estabelecimento comercial não poderá admitir a sua
empenhabilidade ao abrigo do citado diploma (negando a natureza imaterial do estabelecimento
comercial e admitindo, em consequência, a sua dação em penhor nos termos do Decreto-Lei de 1939, vide
o Acórdão da Relação de Évora de 18/6/1991, in CJ 1991, Tomo III, pág. 308 e segs., onde se pode ler
“Não cremos, pois, que o legislador quisesse incluir na expressão coisas imateriais o próprio
estabelecimento comercial. Tal equivaleria a retirar aos industriais e comerciantes a possibilidade de
recorrerem ao crédito impedindo-os de garantir a sua concessão com um bem vulgarmente usado para o
efeito.”). Também para Gravato de Morais, Alienação cit., pág. 161, aquele preceito não preclude a
empenhabilidade do estabelecimento comercial, pois “apenas exclui do seu âmbito as coisas imateriais
strictu sensu (ou seja, pura). Ao estabelecimento, enquanto bem imaterial do tipo diverso, deve aplicar-se
o regime aí previsto”. Abre a porta a esta possibilidade Manuel Rodrigues, ob. cit., pág. 221, ao admitir a
ampliação do constituto possessório a outros casos para além dos expressamente previstos por lei,
assegurando que “Sabendo-se que na teoria da posse, tal como ela se vem formando, existe o constituto,
parece que não há razão para o excluir do direito português, em relação aos móveis”.
641
Cassiano dos Santos, ob. cit., págs. 296 e 297, sustenta que o penhor de estabelecimento comercial é, à
partida, um penhor mercantil (sujeito, por isso, ao disposto no art.º 397.º do Código Comercial em
matéria de constituição da garantia, considerando que, apesar desta norma permitir a entrega simbólica,
não afasta a exigência de desapossamento do devedor), muito embora não exista um regime
167
No limite, admite-se mesmo a constituição do penhor de estabelecimento
comercial sem desapossamento, ainda que sem recurso a tais disposições.643
Assim sendo, permite-se que o concedente da garantia prossiga a sua actividade,
particularmente alienando alguns dos bens que constituem o património do
estabelecimento, como as mercadorias, mas também adquirir ou substituir outros, sem
que tais actos correspondam, salvo pacto em contrário, a um incumprimento contratual
da sua parte.644
especificamente ditado para o penhor de estabelecimento comercial, defendendo, por outro lado, que
aplicação supletiva do regime do penhor civil ao penhor mercantil “só na medida em que se revelem
disposições de direito comum ou aplicáveis por analogia”: nesta conformidade, conclui pela existência de
uma lacuna, que não pode ser preenchida através do recurso ao regime civil do penhor (uma vez que “no
que toca ao penhor mercantil de estabelecimento, os interesses em jogo divergem dos que se apresentam
no Código Civil e mesmo no regime geral mercantil. Com efeito, dada a especificidade do bem, a
exigência de desapossamento não é adequada, porque a administração pelo credor faria a empresa e o
direito do devedor/titular correr riscos gravíssimos”), tendo antes que ser colmatada “a partir de
disposição na qual se ponderam e regulam os interesses que estão presentes na esfera mercantil e em
particular em ordem ao estabelecimento comercial. Esta norma apenas pode ser o § 1.º do art.º 1.º do DL
29 833 – criando-se por integração uma norma de acordo com a qual é permitido o penhor sem
desapossamento para os penhores de estabelecimento comercial que forem actos de comércio”. Embora
aceite a existência de uma lacuna, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 261, refuta a
forma proposta de a colmatar, pois o penhor bancário é uma norma especial criada a favor dos bancos e
tendo em conta o elemento subjectivo do credor.
642
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 260 (salientando como, por vezes, nem sequer
se colocarão os inconvenientes do desapossamento, mormente quando existir uma forte relação de
confiança com o credor).
643
Assim, Gravato de Morais, Alienação cit., pág. 162, baseando a sua posição no disposto em matéria de
penhora do estabelecimento comercial (art.º 862-A do CPC), nos termos do qual aquela medida não obsta
ao prosseguimento da actividade comercial normal, sob a gestão do executado. Ora, segundo este Autor,
“tratando-se o penhor de forma de oneração (tal e qual a penhora) e de um direito real de garantia
(sendo que a penhora produz efeitos análogos a um direito real de garantia) as razões que presidem a
que, como princípio geral, o estabelecimento se mantenha na “posse” do executado – no quadro do art.º
862.º-A CPC – podem transpor-se para o nosso caso. Aliás, pode até aduzir-se mesmo um argumento a
fortiori. Se, em sede executiva, o proprietário do estabelecimento se pode manter à frente deste, então
quando voluntariamente se onera esse bem através do penhor deve também considerar-se que o seu
proprietário pode continuar a explorá-lo”. Todavia, o mesmo Autor adverte que o constituinte da
garantia deverá ser considerado como mero detentor e fiel depositário do bem, enquanto o credor
pignoratício assumiria a posição de possuidor (ou seja, sugere ter existido uma entrega jurídica do bem).
644
Neste sentido, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 171, Menezes Leitão, Garantias cit.,
pág. 303, (justificando a concessão destes poderes ao empenhante com o carácter dinâmico do
estabelecimento comercial, por serem plúrimas e mutáveis as realidades que o compõem), Hugo Ramos
Alves, ob. cit., págs. 112 e 113 e Gino Magri, ob. cit., págs. 34 e 35 (que, a propósito das mercadorias,
afirma “che il rinnovamento per sostituzione do oggetti nuovi a quelli venduti è fatto costante e normale”,
pelo que “la costituzione del diritto reale sulle mercê originariamente consegnate al creditore è
accompagnata da obbligazioni speciali tra le parti, dirette a conciliare l’interesse del creditore di
possedere una solida ed efficace garanzia con quello del debitore che non abbia luogo la sospensione del
comercio. Il creditore pel fatto stesso di accettare in garanzia cose che le parti concordemente
riconnoscono destinate allo scambio, si obbliga implicitamente a non opporsi alle vendite ordinarie
rinunciando per tal caso al suo diritto sulle cose passate in dominio dei terzi; d’altra parte il debitore
analogamente si obbliga di consegnare a pegno merci nouve man mano che egli ne acquisterà per
rifornire il suo assortimento. A questo modo il diritto di pegno si verrà concretando su quelle merci che
ad ogni momento faranno parte dell’azienda per realizzarsi poi su quelle che alla scadenza del debito
garentito si troveranno nelle botteghe o nei magazzini del titolare”). Considerando como um acto ilícito,
por consubstanciar uma alienação do próprio estabelecimento, a denúncia do contrato de arrendamento do
local onde este se encontrava instalado, efectuada pelo devedor constituinte da garantia, sem o
consentimento do credor, vide o já diversas vezes citado Acórdão da Relação de Évora de 18/6/1991 (em
sentido análogo, considerando que o estabelecimento comercial deixa de existir com a resolução do
contrato de arrendamento do imóvel por ele ocupado, vide o Acórdão da Relação do Porto de 8/1/1998, in
www.dgsi.pt).
168
Nesta conformidade, poderão ser alienados os bens inerentes à actividade normal
da empresa, sendo apenas necessária a anuência do credor relativamente aos actos que
extravasem esse âmbito.
Não obstante, durante a vigência da garantia, o credor assume uma série de
obrigações para com o empenhante conexas com a continuidade do bem empenhado645,
deveres esses que adquirem especial significado quando o credor assuma a gestão do
estabelecimento, como sejam permitir um controlo da gestão por parte do concedente da
garantia, manter o estabelecimento na mesma condição em que este se encontrava
anteriormente à assunção da gestão pelo credor646 ou satisfazer as despesas ordinárias
com tal gestão. 647
Paralelamente, também o empenhante se encontra sujeito a diversos deveres para
com o credor pignoratício, nomeadamente a necessidade de anuência deste para a
alienação ou oneração do estabelecimento ou para a denúncia do contrato de
arrendamento relativo ao imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento,
(respondendo perante o titular da garantia pelos danos causados por tais condutas),648
podendo até considerar-se ficar amputado da capacidade para a prática de actos de
administração extraordinária.649
Com certeza que a actividade do empenhante variará consoante a destinação
unitária do estabelecimento implique, ou não, que as coisas que o compõem sejam
consumidas ou vendidas, pois no primeiro caso os seus poderes serão mais amplos,
nomeadamente permitindo-se (ou melhor, impondo-se) a substituição dos produtos
vendidos ou consumidos por outros necessários à manutenção da laboração do
estabelecimento,650 o mesmo valendo para a hipótese inversa de o credor assumir as
rédeas do quid onerado.
Normalmente, o estabelecimento é uma universalidade empenhada cuja
subsistência envolve a troca e a renovação dos respectivos objectos, ao contrário de
outros conjuntos de bens que constituem simples unidades fixas em determinados
objectos, não destinados à permuta e à regeneração.651
645
Para Gino Magri, ob. cit., pág. 30 e segs., não é forçoso que a actividade do estabelecimento seja
exercida pelo credor ou por um terceiro, desde que se assegure que “tutte le attività mobiliari che le parti
hanno voluto comprendere nella garanzia siano sottratte al possesso del debitore”, embora reconheça
que a subtracção da posse da maior parte dos bens implique a impossibilidade de continuação do
exercício da actividade empresarial por parte do devedor (estas considerações são válidas para a
constituição de um penhor de acordo com o regime geral, podendo ser contrariadas em face de regimes
especiais que consagrem mecanismos alternativos ao desapossamento, como seja o registo).
646
A este respeito, talvez se possa utilizar o critério das “normais valorações económicas” para
determinar quais os proveitos que o credor poderá encaminhar para pagamento do seu crédito e quais
aqueles que deverá reinvestir na empresa.
647
Ao passo que as despesas de conservação e/ou extraordinárias correrão por conta do proprietário, não
sendo o credor obrigado a antecipá-las caso não haja liquidez suficiente para as realizar.
648
Neste sentido, Gravato de Morais, Alienação cit., págs. 163 e 164, acrescentando que, em caso de
desaparecimento da organização, o penhor se extingue (apontando como o exemplo um incêndio que
destrua as instalações do estabelecimento). Para além disso, ao credor pignoratício goza do direito de
sequela, dos meios de defesa da posse e de promover a venda antecipada, nos termos em que o pode fazer
qualquer credor titular deste direito real de garantia.
649
Franzo Grande, ob. cit., pág. 234, escrevendo que “Al debitore pignoratizio infatti dovrebbero essere
vietati gli atti di straodinaria amministrazione, senza il consenso del creditore”.
650
Operando esta distinção, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 47, acrescentando que, em qualquer caso, a
actividade do credor pignoratício na condução dos destinos do estabelecimento comercial empenhado não
deverá ser remunerada.
651
Assim, Faggella, ob. cit., págs. 47 e 48, apontando como exemplos deste segundo tipo de
universalidades o estúdio de pintura ou uma arca de objectos antigos. Nestes casos, prossegue o mesmo
Autor, poderão ser dados em penhor os concretos bens existentes no momento da constituição da garantia
ou a própria universalidade, sendo o critério de distinção o da determinação objectiva do vínculo.
169
Relativamente aos dividendos que resultem da actividade empresarial, parece
aplicável a regra geral relativa à partilha dos frutos.652
Tendo em conta os latos poderes atribuídos ao credor pignoratício, há quem
qualifique mesmo o penhor de estabelecimento como “uma quase anticrese de
estabelecimento”,653 especialmente quando aquele sujeito assuma a gestão da entidade
onerada a seu favor.
Apesar dos amplos poderes que lhe são atribuídos relativamente ao controlo da
actividade do estabelecimento comercial empenhado, parece que o credor pignoratício
não estará sujeito ao dever de não concorrência.654
Duas últimas notas para evidenciar como a conclusão pela admissibilidade do
penhor de estabelecimento comercial não preclude a necessidade de responder a um
conjunto apreciável de questões, como sejam a eventual sujeição a forma escrita do
contrato de constituição desta garantia655 ou o leque de bens abrangido por uma garantia
que recaia sobre o próprio estabelecimento (havendo inclusivamente, nos ordenamentos
em que tal garantia se encontra autonomamente regulada, disposições legais
estabelecendo a inclusão obrigatória ou facultativa de alguns deles e excluindo outros
tantos).656
Em alguns países, é expressamente reconhecida a existência de uma garantia que
incida sobre o próprio estabelecimento comercial,657 podendo, no entanto, surgir
dúvidas a respeito da sua qualificação como penhor.658
652
Sustentando que os frutos caberão ao credor, servindo para cobrir os gastos de gestão, sendo os
restantes susceptíveis de apropriação Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 46 e Realmonte, Il pegno cit., pág. 644.
Há, contudo, quem defenda que o credor tem a faculdade de determinar, tendo em conta o normal
funcionamento da actividade económica, quais os frutos a imputar ao pagamento do seu crédito e quais
aqueles que deverá reinvestir no estabelecimento - dando conta destas duas posições díspares, Protettí, ob.
cit., pág. 136.
653
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 167 e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 48.
654
Gravato de Morais, Alienação cit., págs. 152 e 153, conclui pela existência deste dever, que impende
sobre o locatário – e também sobre o locador – em caso de locação do estabelecimento comercial
(argumentando tratar-se de “uma hipótese de incumprimento pelo locatário da obrigação de manutenção
e restituição da organização cedida”), porquanto se poderá admitir que do seu dever de conservação do
bem onerado decorrerá esta limitação à sua actividade económica (nomeadamente quando dessa
actividade concorrente resultem prejuízos significativos para o estabelecimento empenhado, caso em que
o empenhante poderá invocar o disposto no art.º 674.º, para além de reclamar uma indemnização pelos
danos sofridos).
655
Apesar da regra decorrente do regime do penhor civil e mesmo comercial (cfr. art.º 400.º do Código
Comercial), apontar para a desnecessidade de sujeição a escrito deste contrato, Hugo Ramos Alves, ob.
cit., págs. 113 e 114, advoga a solução inversa, com base no disposto no art.º 1112.º, n.º 3, de acordo com
o qual a transmissão da posição do arrendatário, em caso de trespasse do estabelecimento comercial, tem
que ser celebrada por escrito: ora, por identidade – ou até maioria - de razão, também a oneração do
mesmo estabelecimento deverá estar submetido ao mesmo formalismo).
656
Para Franzo Grande, ult. ob. e loc. cit., as mercadorias e os produtos deveriam ser excluídos do âmbito
da garantia, não constituindo tal exclusão um entrave à admissibilidade do penhor de estabelecimento,
uma vez que tais elementos não seriam essenciais para o exercício da actividade comercial.
657
Por exemplo, o Código Comercial de Macau, em cujo art.º 144.º, n.º 1, admite expressamente a
empenhabilidade da empresa comercial ou de uma sucursal, o qual produzirá efeitos independentemente
da entrega do objecto da garantia ao credor (cfr. n.º 2 do mesmo preceito). A constituição deste penhor
encontra-se sujeita a registo, sem o qual a garantia não produz efeitos, nem mesmo entre as partes (art.º
145.º), além de dever formalizar-se através de um documento escrito do qual constem a identificação das
partes, do estabelecimento objecto da garantia, do montante da dívida e do local e data do pagamento
(art.º 146.º). Quanto ao âmbito deste tipo de penhor e nos termos do art.º 147.º, ele abrange todos os bens,
corpóreos ou incorpóreos, que compõem a empresa ao momento da constituição, independentemente de
constarem ou não dos registos contabilísticos do empresário (porém, neste último caso, é ao credor que
incumbe a prova de que certo bem pertence à empresa para efeitos da garantia o abranger – cfr. n.º 1);
todavia, para que o penhor sobre a empresa comercial produza efeitos sobre os bens sujeitos a registo,
170
O reconhecimento do penhor de estabelecimento comercial obedece a uma de
duas técnicas legislativas: ou recorrendo ao esquema clássico do penhor de coisa,
assumindo o estabelecimento como uma universalidade, elencando os bens que o
integram e regulando a questão da mutação natural desses elementos; ou, pelo contrário,
recorrendo ao mecanismo da garantia flutuante, a qual apenas se torna eficaz no
momento do incumprimento das obrigações do devedor.659
Estas duas técnicas distintas resolvem de modo diverso os problemas relativos à
identificação dos bens que o integram o estabelecimento, à sua alteração e ao conflito
entre os direitos constituídos sobre o estabelecimento e algum dos bens que o integram.
afectados à mesma, é necessário que seja averbado no registo de cada um desses bens (n.º 2). Tendo em
conta a necessidade de assegurar a continuidade da actividade da empresa, a gestão continua a caber ao
seu proprietário, mas este deve exercê-la de modo a que o valor da garantia não sofra diminuição (art.º
148.º, n.º 1), daqui resultando que o penhor abrange também os bens que forem incluídos na empresa
após a constituição da garantia, a partir dessa inclusão e, paralelamente, libertando-se dele os bens que, de
acordo com as regras de uma administração criteriosa e ordenada, sejam alienados pelo devedor e
retirados da empresa antes de o credor fazer valer judicialmente o seu direito de penhor (art.º 147.º, n.º 3,
adicionando o n.º 4 que a retirada de quaisquer bens da empresa, em condições diferentes destas, não é
oponível a terceiros adquirentes de boa fé, mas faz incorrer o empenhador na responsabilidade própria
dos fiéis depositários). Contudo, se da exploração da empresa resultar uma diminuição do valor da
garantia que ponha em risco o direito do credor pignoratício, pode este exigir, o reforço da garantia ou, se
isso não for possível, a entrega da administração da empresa a um terceiro, sendo que, neste último caso,
os lucros resultantes da exploração serão destinados à satisfação dos débitos garantidos pelo penhor da
empresa (art.º 148.º n.ºs 2 e 3). Sobre cada empresa pode ser constituído mais do que um penhor,
aferindo-se a preferência entre eles com base na prioridade de registo (art.ºs 144.º, n.º 2 e 151.º, n.º 2).
Cabe, por outro lado, notar que o penhor sobre a empresa não prejudica as garantias reais que onerem os
bens que a compõem existentes à data da sua constituição, mas as garantias reais constituídas sobre bens
da empresa ulteriormente à criação do penhor da empresa são ineficazes relativamente ao credor
pignoratício e sujeitam o devedor à responsabilidade dos fiéis depositários (art.º 151.º, n.º 3). Diga-se,
aliás, que o art.º 913.º do mesmo Código admite a constituição de um único penhor sobre todos os
maquinismos, móveis e utensílios instalados e destinados ao exercício de uma empresa, entendendo Zhao
Yi, Características jurídicas do penhor mercantil, in Perspectivas do direito, n.º 2, 2001, pág. 99, que estes
equipamentos apenas poderão ser objecto de penhor quando estejam instalados e afectos ao exercício da
empresa (para além de salientar que, além de objecto conjunto de uma só garantia, cada um destes
objectos pode ser onerado com uma garantia distinta). Finalmente e regressando ao penhor de
estabelecimento comercial, em caso de incumprimento da obrigação garantida, o credor pignoratício
poderá promover a respectiva venda judicial, a qual deverá ser organizada de modo a evitar a destruição
da empresa (se a venda da empresa em globo não for possível, proceder-se-á à venda por unidades
autónomas e só se esta não for possível se poderá liquidar a empresa; neste último caso, o credor
pignoratício passa a ter, sobre cada um dos bens que compõem a empresa nesse momento, um direito de
penhor ou de hipoteca, consoante a natureza do bem respectivo – cfr. art.º 152.º).
658
Acerca desta questão, vide infra Capítulo IV.
659
Para um panorama comparatístico das soluções plasmadas em alguns ordenamentos que consagram a
figura, vide Lopes dos Santos, ob. cit., págs. 27 a 41. Os ordenamentos francês (vide art.ºs L142-1 a
L143-23 do Code de Commerce e, anteriormente, as Leis de 1/3/1898 e de 17/3/1909), belga (Lei de
25/10/1919, cuja última alteração data de 1995 – a propósito deste regime Emanuele Ferrari, I floating
charges e le garanzie del credito all’impresa, in Rivista del Notariato, n.º 50 (1996), pág. 1359, destaca
como o mesmo não admite que o empenhante aliene os elementos que o compõem), espanhol (Lei de
16/12/1954 sobre hipoteca mobiliária e penhor sem desapossamento, embora este diploma qualifique esta
garantia como hipoteca mobiliária, tendo em conta a susceptibilidade de identificação registal do
estabelecimento) e de Macau (art.ºs 144.º a 152.º do Código Comercial de Macau), optam pelo regime do
penhor de coisas. Já o direito inglês e outros sob a sua influência, como a legislação do Quebec, usam o
esquema da garantia flutuante, solução esta igualmente acolhida no direito macaense (vide art.ºs 928.º e
segs. do Código Comercial de Macau).
171
O esquema clássico,660 responde à primeira questão de forma diversificada, mas
normalmente através de uma enumeração legislativa (operando, por vezes, uma divisão
entre bens obrigatória ou supletivamente integrados no âmbito da garantia e outros que
o poderão ser por vontade expressa das partes nesse sentido), resolvendo a segunda
permitindo ao comerciante prosseguir a sua actividade e alienando os bens que o
integram - os quais só continuam a fazer parte da garantia se adquiridos por terceiros de
má fé – e comprando outros (os quais passam, salvo algumas excepções, a estar
onerados pelo penhor).661 Finalmente quanto ao terceiro problema, este é resolvido
antepondo, em regra, a garantia sobre o estabelecimento sobre as garantias
posteriormente constituídas sobre bens que o integram (mas fazendo-a ceder perante
aquelas nascidas em momento anterior).662
Especial referência merece o ordenamento francês,663 não apenas em razão da
precocidade da consagração legal da figura664 (actualmente integrada no art.º L142-1 e
660
Já o esquema da garantia flutuante, ao invés, procura contornar estes problemas, retardando a produção
de efeitos da garantia e cristalizando a garantia apenas a partir desse momento – Lopes dos Santos, ob.
cit., pág. 41.
661
Lopes dos Santos, ob. cit., págs. 52 a 54, sustenta de iure condito que, relativamente aos bens
alienados no decurso da actividade normal da empresa, não se suscitarão dúvidas quanto à sua exclusão
da universalidade e, portanto, da garantia, Já quanto aos bens que venham, no futuro, a integrar o
estabelecimento, o Autor propende para a sua inclusão no âmbito da garantia, refutando os obstáculos à
admissibilidade de penhores sobre bens futuros (estabelecendo um paralelismo com o caso de ser
empenhada uma máquina e esta receber novas peças).
662
Lopes dos Santos, ob. cit., págs. 54 a 56, advoga a cedência do penhor sobre o estabelecimento
relativamente a outras garantias anteriormente constituídas sobre os bens que integrem aquele. Já no que
respeita aos direitos constituídos sobre esses bens em momento posterior ao da oneração do
estabelecimento, o Autor entende que eles cederão se tiverem por objecto coisas corpóreas, mas não
quando recaiam sobre bens incorpóreos ou direitos (por entender que, neste caso, o penhor não é um
verdadeiro direito real, carecendo de sequela).
663
Também os direitos espanhol e inglês reconhecem expressamente garantias que possam incidir sobre o
estabelecimento comercial qua tale, respectivamente a hipoteca mobiliária a floating charge, conforme se
demonstra no Capítulo II, n.ºs 1.2.3 e 1.2.6.
664
Em França, antes da consagração legal desta figura discutia-se se seria possível o penhor de
estabelecimento e, sobretudo, o modo como seria constituído, sendo a posição dominante a que
considerava ser bastante a entrega ao credor do título comprovativo da sua propriedade sobre o
estabelecimento e, quando fosse caso disso, de uma notificação do penhor ao proprietário do imóvel no
qual o estabelecimento se encontra instalado, sendo esta solução criticada pela ausência de publicidade
para com terceiros da constituição da garantia (para mais desenvolvimentos, Guillouard, ob. cit., págs.
113 a 115). A lei que primeiramente consagrou esta figura foi a Lei de 1/3/1898, estabelecendo que a
garantia se constituía através da inscrição num registo – sem necessidade de desapossamento - desta
forma conciliando o interesse público da notoriedade da constituição da garantia com o interesse do
devedor a não ser desapossado dos meios necessários à sua actividade profissional (acerca deste diploma,
vide Gino Magri, ob. cit., pág. 39 e segs.). Posteriormente, veio a ser substituída pela uma Lei de 17 de
Março de 1909 (que vigorou até há bem pouco tempo, mais concretamente até à aprovação do novo
Código Comercial), nos termos da qual a garantia abrangia obrigatoriamente a clientela, a insígnia, o
nome comercial e o direito de arrendamento do imóvel (no caso de o empenhante ser proprietário do
imóvel, este não pode ser compreendido no penhor de estabelecimento, pois a garantia não poderia
abarcar bens imóveis), nunca podendo recair sobre as mercadorias, e podendo abranger todos os demais
elementos se as partes assim o indicassem no acto de constituição da garantia (por exemplo, o material, os
direitos de propriedade intelectual, etc.), devendo ser obrigatoriamente constituído por parte do
proprietário do estabelecimento (não podendo o credor garantido invocar a regra da posse vale título para
repudiar uma eventual acção de reivindicação por parte do verdadeiro proprietário, uma vez que tal regra
não é de aplicação aos bens incorpóreos, embora se admita que possa socorrer-se dela para se opor à
reivindicação de alguns bens corpóreos integrados no estabelecimento, uma vez que a lei considera o
credor como possuidor dos mesmos) - vide Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 166 e segs.. Porém, mesmo o
antes da aprovação do regime legal, Hardel, ob. cit., pág. 160 e segs., relata diversas decisões
jurisprudenciais admitindo a colocação em garantia do estabelecimento comercial, partindo da sua
qualificação como bem incorpóreo (universalidade de direito), por isso insusceptível de transmissão
172
segs. do Código Comercial), mas principalmente pelo carácter exaustivo da
regulamentação que, ainda assim, não evita querelas relativas à admissibilidade da
mesma incidir sobre um estabelecimento futuro,665 sobre apenas uma parte dele666 ou se
as partes contraentes poderão acrescentar, a posteriori, elementos não compreendidos
na abrangência original da garantia.667
Quanto aos sujeitos, o empenhante deverá ser o proprietário do estabelecimento
(embora, em razão da sua natureza incorpórea, o credor não se possa valer da regra
posse vale título para se opor à reivindicação por parte do verdadeiro dominus),668 como
tal reconhecido pelo registo comercial, mas quando esta seja uma pessoa colectiva a
garantia apenas pode responder por dívidas sociais.669
De acordo com o regime legal, a garantia abrange, no silêncio das partes, a
insígnia, o nome comercial, o direito de arrendamento, a clientela e o aviamento,670
podendo ainda incidir, em caso de menção expressa dos contraentes, o mobiliário
comercial, o material afecto à exploração do estabelecimento, às patentes de invenção,
às licenças, às marcas e aos desenhos industriais e, em geral, a todos os direitos de
propriedade intelectual (art.º L142-2, n.ºs 1 e 3).671
material (posição esta aplaudida pelo Autor pois, caso contrário, “on retirait des moyens de crédit et de
sûreté, toute une catégorie de biens, formant des patrimoines de grosse valeur”, uma vez que o
desapossamento material obrigaria “le commerçant qui voulait emprunter contre mise en gage de son
fonds devait l’aliéner, le mettre entre les mains se son créancier, ce présentait le risque grave de le
laisser en des mains inexpertes, et par lè de lui faire perdre une partie de sa valeur; le débiteur doit
d’autre part rester à la tête de ses affaires pour obtenir des fonds”), posição que acabou por influenciar o
regime legal (o Autor destaca como este regime legal prevê a necessidade de observância das regras do
penhor de coisas para que as mercadorias fossem abrangidas pela garantia – bem como, para os direitos
de propriedade industrial, o cumprimento das regras relativas à sua oneração – e, por outro lado, aceitação
de um direito de sequela que não constituía uma excepção à regra “meubles n’ont pas de suite par
hypothèque” uma vez que esta só se aplicaria aos bens corpóreos, assim como a impossibilidade de, em
caso de incumprimento da obrigação garantida, o credor alienar particularmente o estabelecimento).
665
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 425, nota 114, dão conta de um entendimento
jurisprudencial dominante contrário a tal admissibilidade, assegurando que, quando muito, se poderá
constituir um contrato-promessa (do qual deverá constar uma cláusula de vencimento imediato da
obrigação garantida em caso de não cumprimento por parte do promitente constituinte da garantia).
666
Respondem negativamente Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 425 e 426, com
fundamento na caracterização do estabelecimento como universalidade móvel insusceptível de cessão
parcial. Todavia, esta regra sofre um desvio, na medida em que a lei admite expressamente que o penhor
incida apenas sobre o estabelecimento principal, com exclusão das sucursais (Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., págs. 426 e 427, dão conta mesmo de decisões judiciais reconhecendo a validade de um
penhor constituído unicamente sobre uma sucursal, com exclusão do estabelecimento principal, mas com
a condição daquela possuir uma carácter distintivo, traduzido, por exemplo, na existência de uma clientela
própria).
667
Negam esta possibilidade Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 426, alegando que a mesma
teria como efeito “priver les autres créanciers d’un élément de l’actif parce qu’elle aurait un effet
rétroactif. Or, la rétroactivité conventionelle ne peut pas nuire au tiers”.
668
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 428 e 429.
669
Salientam estes dois aspectos Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 429 e 430, embora
critiquem a exigência de prévia inscrição do proprietário no registo, admitindo, pelo contrário, poder ser
empenhado um estabelecimento existente, mas não registado, agindo os fundadores em nome e por conta
da entidade em formação.
670
Lisanti–Kalczynsky, ob. cit., págs. 273 e 274, admite a validade de um penhor de estabelecimento ao
qual falte algum destes elementos (do mesmo modo que recusa a existência de qualquer invalidade
superveniente no caso de, após a constituição da garantia, algum desses elementos desaparecer), assim
como reconhece como admissíveis as convenções das partes que excluam alguns deles (excepto, porém,
se o penhor incidir apenas sobre um desses elementos).
671
Caso o penhor abranja algumas sucursais do estabelecimento, estas devem ser designadas no acto
constitutivo da garantia, através da indicação precisa da respectiva sede (art.º L142-2, n.º 4). Admite a
173
Pelo contrário, encontram-se excluídos da órbita da garantia os imóveis (em
razão da natureza móvel do estabelecimento e das garantias que sobre ele incidem) e as
mercadorias (procurando evitar que o devedor fique absolutamente privado de bens para
dar em garantia de ulteriores financiamentos a que possa vir a recorre no futuro),672
assim como os créditos.673
O contrato de penhor deve constar de documento autêntico ou particular, mas o
direito de preferência só é oponível a terceiros após a inscrição no registo existente na
secretaria do tribunal do comércio do local onde se situa a sede do estabelecimento, 674
registo este que deverá ser efectuado, sob pena de nulidade da garantia, no prazo de 15
dias a contar da constituição da mesma675 (art.ºs L142-3 e L-142-4), sendo a hierarquia
entre os diversos penhores determinada em função da data de inscrição de cada um
deles (art.º L142-5).676
Durante a vigência da garantia, a ocorrência de um conjunto de eventos
potencialmente danosos para a consistência do penhor pode desencadear o vencimento
imediato da obrigação assegurada (como sucede com a deslocalização do
estabelecimento – cfr. art.º L143-1)677 ou produzir outro tipo de efeitos (em caso de
constituição de um penhor apenas sobre a sucursal Lisanti–Kalczynsky, ob. cit., pág. 275 (ao menos
quando essa sucursal desenvolva uma actividade autónoma e possua uma clientela própria).
672
Lisanti–Kalczynsky, ob. cit., págs. 272 e 273.
673
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 424.
674
No caso de o penhor abarcar igualmente algumas sucursais, deve ser inscrito também no registo do
tribunal do comércio do local onde se situe qualquer delas (art.º L142-3, n.º 3). Por outro lado, quando o
penhor incida sobre direitos de propriedade intelectual, a garantia deve ser também inscrita no instituto
nacional da propriedade industrial, através de um certificado emitido pela secretaria do tribunal do
comércio na qual foi inscrito o penhor sobre o estabelecimento, no prazo de 15 dias a contar da inscrição
deste: a não observância destas regras implica a invalidade, relativamente a terceiros (?), da garantia na
parte em que esta recaísse sobre os direito de propriedade intelectual (art.º L143-17, remetendo os art.ºs
143-16 e, especialmente, 143-23 para um diploma posterior a articulação entre os dois registos).
675
O que atesta o carácter constitutivo do registo, funcionando não apenas como condição de
oponibilidade da garantia a terceiros, mas mesmo como requisito para a produção de efeitos inter partes.
Em face do regime anterior, Stéphane Piedlièvre, Sûretés réeles – publicité foncière in Dalloz, Sommaires
commentés, Paris, n.º 32 (18/9/1997) e n.º 33 (25/9/1997), pág. 252, dá conta de decisões judiciais
(nomeadamente o aresto da Corte de Cassação de 18 de Fevereiro de 1997) nas quais é sancionada com a
nulidade a não inscrição da garantia durante este período de 15 dias, originando a necessidade de
redacção de um novo acordo de garantia para posterior inscrição, produzindo a garantia efeitos apenas
desde este última data (o Autor entende ser esta uma aplicação das regras gerais do penhor, assumindo a
publicidade natureza de sucedâneo do desapossamento e, tal como este, constituindo requisito
indispensável para a validade, mesmo inter partes da garantia).
676
Os credores inscritos no mesmo dia concorrerão em pé de igualdade (art.º L142-5). Noutra ordem de
considerações, a inscrição conserva a sua validade por um período de 10 anos, cessando o seu efeito se
não for renovada antes do expirar deste prazo, garantindo, além do capital, dois anos de juros (art.º L143-
19) e deverá ser eliminada, seja em virtude de consentimento das partes (mediante a apresentação de um
documento, assinado pelo devedor, traduzindo o seu acordo), seja no seguimento de decisão judicial (art.º
L143-20, acrescentando que a eliminação dos registos constantes do instituto nacional da propriedade
industrial depende da apresentação do certificado de eliminação emitido pelo tribunal onde se encontrava
registado o penhor sobre o estabelecimento).
677
Mas apenas caso o proprietário do estabelecimento não comunique aos credores com garantias
inscritas, com 15 dias de antecedência, a sua intenção, dando-lhes conta da nova localização da sede. Em
caso de comunicação, os credores dispõem de um prazo de 15 dias (a contar da data da notificação ou do
conhecimento da deslocalização) para fazer averbar à margem do registo da sua garantia a mudança do
estabelecimento (ou, na hipótese de a mudança se dar para a área da competência de outro tribunal,
inscrever a garantia neste último, mas com a data da garantia a reportar-se à inicialmente prestada), não
prevendo a lei qualquer sanção para a inobservância destas formalidades (Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 432, defendem que a sanção será a perda da preferência inerente à garantia). Mesmo
existindo esta comunicação, o direito do credor pignoratício pode tornar-se imediatamente exigível, caso
este demonstre que da deslocalização resulta uma depreciação do estabelecimento (mais ainda, a simples
174
rescisão do contrato de arrendamento relativo ao imóvel onde o mesmo se situa – cfr.
art.º l43-2678 - ou de alteração da actividade desenvolvida).679
O constituinte da garantia mantém o poder de disposição sobre os bens que
compõem o estabelecimento (conforme se alcança, a contrario, do art.º L142-1, ao
dispor que o penhor de estabelecimento produz efeitos independentemente do
cumprimento de qualquer outra formalidade, para além do registo, sendo assim omissa
quanto à necessidade de desapossamento do constituinte), muito embora limitadamente
ao âmbito da curso normal dos negócios, pelo que a alienação separada de alguns desses
elementos fora desse âmbito fá-lo-á incorrer em responsabilidade perante o credor.680
Em sede de extinção da garantia681 e, mais em particular, da sua execução,682 é
de salientar a impossibilidade de atribuição judicial em pagamento do estabelecimento
ao credor (art.º L142-1, n.º 2), a existência de regras específicas para a sua alienação
(art.º L143-4 e segs.)683 e a admissibilidade da venda de apenas alguns elementos de
entre os que compõem o estabelecimento (art.º L143-10).684
inscrição de um outro penhor pode determinar igualmente o vencimento imediato das obrigações
asseguradas por garantias anteriores, desde que tais créditos tenham tido como fim a exploração do
estabelecimento). Em termos idênticos durante a vigência da Lei de 1909, vide Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., págs. 431 e 432.
678
Se a rescisão for unilateral, deve ser notificada aos credores pignoratícios registados à data, no local
por estes indicado no registo da garantia, não podendo o julgamento ocorrer antes de decorrido o prazo de
um mês a contar da notificação (art.º L143-2, n.º 1). Se, pelo contrário, a rescisão for amigável, apenas se
torna definitiva um mês após a notificação aos credores com garantias inscritas (art.º L142-3, n.º 2). Em
termos idênticos para a legislação de 1909, vide Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 176 e 177 e,
principalmente, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 434 a 439 (salientando estes últimos
que a ausência daquela notificação gerava a inoponibilidade do julgamento – no caso da rescisão
unilateral – ou da própria rescisão - no caso da rescisão por mútuo acordo, caso em que o credor dispunha
do direito de requerer a execução do estabelecimento, incluindo o direito de arrendamento. Por outro
lado, os Autores relatam a ausência de previsão legal expressa para as hipóteses de rescisão do contrato
com base em cláusula resolutiva expressa, o que ocasionava a dúvida quanto à aplicação do regime
delineado para a rescisão amigável ou para a resolução unilateral. Finalmente, enfatizam a circunstância
de o regime legal se aplicar independentemente do motivo que subjaz à rescisão e não apenas quando
esteja em causa o não pagamento de rendas).
679
Neste caso, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 433 e 434, sustentam, com base no art.º
34-2 do Decreto de 30/9/1953, que a alteração total da actividade (em caso de alteração apenas parcial,
nomeadamente por acrescento de outras actividades às inicialmente desenvolvidas, não existe alteração da
substância do estabelecimento) conduz ao desaparecimento, em termos jurídicos e económicos, do
estabelecimento, com danos para o credor pignoratício, razão pela qual a lei impõe que este seja
previamente notificado da intenção do devedor de alterar o seu ramo de actividade, mas sem que possa
opor-se a essa transformação (embora os Autores admitam, com base na lei e apesar do seu carácter vago
e equívoco, a invocação da figura da sub-rogação real, de modo a consentir a transferência da garantia,
sem efeitos novatórios, para o novo estabelecimento).
680
Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 628.
681
Para além da execução, a garantia pode extinguir-se pelo cancelamento da inscrição (em resultado do
consentimento das partes ou de decisão judicial, normalmente na sequência do pagamento da dívida
garantida) ou pela sua expurgação (promovida pelo terceiro adquirente, em caso de alienação voluntária
por parte do devedor).
682
As regras não eram muito divergentes na lei de 1909, destacando Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 172 e
segs., a cedência do direito de preferência do credor com penhor sobre o estabelecimento comercial
perante alguns credores privilegiados e, ainda, sobre outros com penhor com desapossamento sobre
determinados elementos corpóreos do estabelecimento (quer porque, normalmente, a garantia destes
últimos será anterior, quer porque estará protegido pela regra da posse vale título).
683
O credor com penhor registado sobre o estabelecimento pode, oito dias após uma intimação infrutífera
dirigida ao devedor, requerer junto do tribunal do comércio onde se encontra registada a garantia, a
alienação deste (art.º L143-5). O tribunal determina as condições gerais da venda, podendo ainda nomear
um administrador provisório e até se concedendo ao presidente do tribunal competência para autorizar –
caso não haja qualquer outro credor inscrito ou que tenha deduzido oposição – a pagar-se directamente do
175
Importa, ainda, salientar o reconhecimento explícito de um direito de sequela685
ao credor com garantia sobre o estabelecimento - permitindo-lhe opô-la a qualquer
produto da venda, sem prejuízo dos créditos privilegiados, até ao limite do valor do seu crédito de capital
e juros: esta decisão judicial deve ser tomada no prazo de 15 dias após a primeira audiência e tem força
executiva, não é susceptível de oposição, embora um eventual recurso tenha efeitos suspensivos (art.º
L143-4). Todavia, antes de proceder à venda, é ainda necessária a observância de um conjunto de
formalidades: desde logo, o exequente, pelo menos 15 dias antes da venda, tem o dever de notificar o
proprietário do estabelecimento e os credores com garantias anteriormente inscritas, tomando
conhecimento do caderno de encargos (art.º L143-6, n.º 1); pelo menos 10 dias antes da data da venda,
deverão ser afixados anúncios indicando o nome, as profissões e os domicílios do exequente e do
proprietário do estabelecimento, uma indicação do tribunal de comércio no qual o “fond” tem sede, os
elementos constitutivos do estabelecimento, o objecto social deste, a sua situação, bem como indicação da
forma das ofertas, dos locais e hora da venda (bem como do oficial público depositário do caderno de
encargos e encarregue da venda – art.º L143-6, n.º 2), anúncios estes que devem ser afixados, por
iniciativa do oficial público encarregue da venda, na porta principal do estabelecimento e do município
onde o mesmo se situa, bem como no tribunal do comércio do local onde o imóvel se encontra e do local
onde exerce funções o oficial público encarregue da venda e ainda num jornal da circunscrição onde se
localiza o estabelecimento habilitado a receber anúncios legais (art.º L143-6, n.ºs 3 e 4). Caso o
adjudicatário da venda não cumpra as condições estabelecidas, o estabelecimento é vendido mediante
licitação e o adquirente é obrigado a entregar aos credores e/ou ao vendedor, a diferença entre o seu preço
e o da revenda decorrente da licitação, sem poder reclamar um eventual excedente (art.º L143-9). Para
além disso e nos termos dos art.ºs L143-13 a L143-15, qualquer credor com garantia sobre o
estabelecimento pode requerer judicialmente a venda em hasta pública deste, oferecendo o preço total
(excepto o valor do material e das mercadorias), menos 10%, desde que preste caução ou justifique
possuir solvabilidade suficiente (para o efeito, o credor deverá notificar o adquirente e o devedor anterior
proprietário do estabelecimento e, em caso de contestação, o tribunal de comércio do local da sede do
estabelecimento decidirá sobre a validade do requerimento e, em caso afirmativo, ordenará a venda em
hasta pública, juntamente com o material e as mercadorias que o compõem), sendo que, a partir da data da
notificação da intenção do credor, o adquirente, quando se encontre na posse do estabelecimento, assume
o papel de depositário e apenas pode cumprir actos de mera administração, sem prejuízo da faculdade de
requerer a nomeação de outro sujeito para o efeito (de idêntica faculdade goza qualquer credor): caso não
se verifique nenhuma licitação, o credor requerente tornar-se-á adjudicatário do “fond” (devendo, para
além do preço, adquirir o material e as mercadorias existentes no momento do empossamento, pela
quantia fixada por uma avaliação independente).
684
Embora a regra seja a alienação da totalidade do fundo, a venda separada apenas pode ocorrer depois
de expirado o prazo de 10 dias a contar da notificação execução aos credores com garantias sobre o
estabelecimento (mesmo que o seu crédito não se encontre vencido). Durante este prazo, qualquer destes
credores pode opor-se à venda separada (art.º L143-10), requerendo a alienação total do estabelecimento.
Em face da lei anterior, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 442, destacavam como o regime
legal não respondia à questão de saber se a venda de um bem isolado pode equiparar-se à alienação do
próprio estabelecimento, sublinhado os Autores que a jurisprudência efectuava tal equiparação, por
exemplo, quando se encontrava em risco o arrendamento ou a clientela tenha praticamente desaparecido,
posição esta contestada pelos Autores (por entenderem que, nestes casos, o próprio estabelecimento já
teria desaparecido, não sendo legítimo afirmar que foi a alienação isolada de um dos seus elementos que
conduziu à alienação do próprio estabelecimento) – também a lei vigente não soluciona esta dúvida.
685
O mesmo direito lhe era já reconhecido pela Lei de 1909, embora, como salienta Simon Quincarlet,
ob. cit., pág. 175 e segs., “Ce droit de suite ne s’exerce que sur le fonds; il ne peut y avoir de droit de
suite pour les éléments isolés du fonds, par exemple le matériel, qui seraient aliénés par le propriétaire
du fonds”, sobretudo quando se trate de bens corpóreos, uma vez que quanto a estes poderá o credor ver-
lhe oposta a posse de boa fé por parte de terceiros. Decorre deste direito de sequela que, sendo o
estabelecimento alienado ou cedido a terceiro, este adquirirá o bem onerado com a garantia - Legeais,
Sûretés 2009 cit., pág. 395 (embora Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 630, considerem ser
rara esta possibilidade, na medida em que o adquirente terá o cuidado de consultar previamente o registo).
Contudo e como bem realçam Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 544, o direito de
sequela incide sobre o estabelecimento em si e não sobre os elementos que o compõem (no mesmo
sentido, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 293 e Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 216), razão pela
qual uma das debilidades da garantia reside na possibilidade de alienação separada dos elementos
integrantes do estabelecimento (perigo este ao qual o legislador procura por cobro, nomeadamente
criminalizando a conduta do constituinte que faça desaparecer alguns desses elementos). A consagração
176
posterior adquirente do mesmo (art.º L143-12)686 – embora a jurisprudência dominante
recuse a concessão de um direito de retenção.687
Para além disso, será possível onerar o estabelecimento enquanto bem futuro,
muito embora a garantia apenas surja com a inscrição no registo, a qual apenas pode ser
efectuada no momento do nascimento do estabelecimento (maxime do negócio
constitutivo deste), razão pela qual estaremos em face de um mero contrato-promessa de
criação de penhor.688
deste direito de sequela constitui o argumento principal para Jean-François Riffard, Le security interest ou
l’approche fonctionelle et unitaire des sûretés mobilières, LGDJ, 1996, págs.69 e 70, qualificar esta
garantia como hipoteca, embora o Autor reforce a debilidade do mesmo (uma vez que a sequela respeita
ao estabelecimento no seu todo, correndo o credor o risco de o devedor fazer diminuir o seu valor através
da venda dos elementos que a compõem, apesar de o legislador lhe impor essa obrigação e de sancionar
penalmente a sua violação).
686
Este preceito acrescenta que, no caso de a venda do estabelecimento não ocorrer em hasta pública, o
adquirente que pretenda precaver-se das execuções dos credores garantidos deve, antes da execução ou no
prazo de 15 dias após a intimação para pagamento que lhe for dirigida, notificar todos os credores com
garantias inscritas.
687
Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 395 e Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 216.
688
Neste sentido, Stéphane Piedlièvre, Sûretés réeles – publicité foncière cit., pág. 251, invocando em
abono da sua posição a decisão da Cour de Paris de 27 de Setembro de 1996 (em caso de incumprimento
da promessa, o Autor rejeita a possibilidade de execução específica, restando ao promitente fiel, para
além da indemnização dos danos sofridos, exigir o imediato vencimento da obrigação garantida).
689
Quando, pelo contrário, o penhor recair em mercadorias não destinadas a transformação (v. g.,
mercadorias importadas), a garantia poder-se-á constituir através do respectivo depósito em armazéns
gerais ou até mesmo nas instalações do empenhador, desde que se produza a perda da disponibilidade
exclusiva por parte do constituinte.
690
Assim, Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 156 e 157.
691
Dá conta das dúvidas da jurisprudência italiana a este respeito, Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág.
157.
177
Embora não sejas empenháveis as pessoas em si, nem tão pouco as suas
prestações desportivas, já se sustentou a possibilidade de dação em penhor do produto
da cessão a outro clube dos direitos exclusivos a obter as prestações de um jogador (ou
destes mesmos direitos em si considerados, independentemente de qualquer cessão),
eventualmente associado aos direitos decorrentes do uso dos direitos de imagem
respeitantes ao mesmo.
Em termos práticos, a garantia tem como objecto o produto da transferência do
jogador para outro clube, o qual apenas poderá tornar-se propriedade da sociedade
alienante depois de satisfeito o credor pignoratício, devendo do contrato de penhor
constar que o objecto da garantia é constituído pelo crédito futuro resultante de uma
eventual cessão do(s) jogador(es) mencionados e permanecerá até integral pagamento
do crédito garantido, juntamente com um mandato irrevogável para a cobrança do
crédito.692
Incidindo o penhor sobre os direitos exclusivos de utilização desportiva (e/ou de
imagem) do jogador, esta é uma garantia sobre um bem presente, devendo constituir-se
nos mesmos termos da transmissão desses mesmos direitos (art.º 681.º, n.º 1).
Discute-se, ainda, a susceptibilidade de colocação em penhor de uma miríade de
bens, de entre os quais avultam o direito de arrendamento, a apólice de um seguro de
vida, uma concessão administrativa ou o crédito resultante de celebração de um contrato
de empreitada de obras públicas.693
692
Assim, Claudio Coccia, É possibile il pegno dei diritti di utilizzazione di un giocatore di basket?, in
Rivista di diritto sportivo, Milão, n. 45 (Out-Dez 1993), págs. 679 a 685. Para este Autor, o
desapossamento concretizar-se-á na impossibilidade de a sociedade devedora, sem o consentimento do
credor, ceder a cessão dos direitos de utilização desportiva a terceiros ou cobrar o crédito resultante da
cessão (para além de, em termos processuais, ser forçoso notificar a Liga e os demais clubes da
constituição da garantia). Porém, o Autor admite que possam colocar-se algumas dúvidas quanto ao
enquadramento desta garantia no âmbito do penhor, sobretudo porque ao credor não assiste a faculdade
de requerer a venda executiva do jogador (embora possa requer à Liga a activação de um procedimento
destinado à recuperação do seu crédito): assim sendo, não lhe repugna a qualificação desta figura como
garantia atípica. Todavia, Barbara Cusato, ob. cit., págs. 146 a 148), defende que a constituição de penhor
sobre os chamados direitos de utilização desportiva dos jogadores (que conferem aos clubes um direito de
utilização exclusiva dos atletas), ou melhor, sobre o produto da respectiva venda, coloca dúvidas,
porquanto esses direitos apenas são alienáveis durante um curto período de tempo que medeia entre o
encerramento de uma época desportiva e o início da seguinte (parece-nos, porém, que tal facto não será
impeditivo da constituição da garantia, podendo apenas suceder que o credor pignoratício tenha que
aguardar por aquele momento para proceder à execução da garantia).
693
No direito francês, esta hipótese encontra-se expressamente contemplada nos art.ºs 106.º e segs. do
Code des Marchés Publiques, na redacção introduzida pelo Decreto n.º 2008-1334, de 17 de Dezembro,
nos termos dos quais a entidade pública adjudicante fornecerá ao empreiteiro empenhante um certificado
comprovativo do contrato de empreitada, devendo o credor pignoratício notificar aquela entidade
adjudicante da constituição do penhor, embora surjam dúvidas acerca da natureza pignoratícia desta
garantia, respondendo afirmativamente Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 377 (rejeitando a
qualificação de delegação de receitas – tendo em conta a circunstância de o credor poder receber
directamente o crédito empenhado, nos termos do n.º 2 do art.º 107.º – para a qual seria necessária a
existência de um mandato, o que não acontece neste caso) e negativamente Legeais, Les garanties
conventionelles sur créances, Economica, 1986, pág. 200 e segs. (sobretudo tendo em conta que o credor
pignoratício se encontra habilitado para, por si só, cobrar directamente o crédito garantido, de modo que
“C’est en effet l’État (…) qui devient le débiteur principal du créancier. Le droit pour ce dernier de
recevoir son paiment n’est pas soumis à la condition de non-paiment de la créance par le débiteur initial.
Il y a là plus qu’une dérogation à la prohibition du pacte comissoire. Le recours du créancier contre le
débiteur inicial n’est même pas organisé par le texte (…). Un tel nantissement de créance qui a pour effet
de transférer la charge du paiment du débiteur initial au débiteur de la créance nantie n’est pas un
véritable nantissement”, concluindo estarmos perante uma cessão de créditos). Quanto aos principais
efeitos da garantia, antes do vencimento do crédito garantido discute-se se o credor pignoratício poderá
ceder o crédito recebido em garantia (admitem esta possibilidade Jacques Ghestin e outros, Droit spécial
178
Relativamente ao primeiro, a interrogação advém das dúvidas acerca da sua
natureza real ou obrigacional e mobiliária ou imobiliária;694 no caso das apólices e das
concessões, as dúvidas prendem-se, respectivamente, com a própria natureza da própria
operação695 e da concessão.696
cit., pág. 379, mas apenas se o cessionário for um estabelecimento de crédito, à imagem do que sucede
com a Loi Dailly); após o vencimento, o credor pignoratício, desde que tenha notificado a entidade
adjudicante da constituição da garantia, pode cobrar e encaixar directamente o crédito onerado.
694
Hardel, ob. cit., pág. 99 e segs., destaca como a jurisprudência francesa da época já admitia um penhor
com este objecto, realçando que o mesmo recai sobre o crédito do locatário contra o proprietário, nos
termos do qual este deve facultar àquele o gozo do imóvel, em contrapartida do pagamento das rendas
(em consequência, o modo de constituição da garantia será o vigente para o penhor de créditos, embora o
Autor reconheça ser mais fiável um sistema que exija a inscrição, à margem, no registo predial do
imóvel). No entanto, não deixa de reconhecer que tal solução apenas será possível caso se qualifique o
direito de arrendamento como um direito de natureza pessoal (e não real) e, por isso mesmo, mobiliário:
ora, entre nós coloca-se um problema análogo, porquanto se o arrendamento for considerado um direito
real e por força do disposto no art.º 204.º, n.º 1, alínea d), tal direito será insusceptível de penhor
(porquanto a lei o qualifica como imóvel); se, ao invés e na linha da doutrina dominante, tal direito for
qualificado como obrigacional, tal obstáculo deverá ter-se por superado, incidindo a garantia que o
locatário dispõe, face ao senhorio, de ocupar o imóvel arrendado (bem como às demais prestações
inerentes a tal contrato).
695
Hardel, ob., cit., pág. 103 e segs. (e depois de mencionar que a lei admite um penhor com tal objecto,
cuja constituição pode ocorrer nos mesmos termos do penhor de créditos – com a nuance de, quando o
contrato de seguro tenha sido subscrito a favor de um terceiro, ser exigível o consentimento deste - ou,
alternativamente, através de endosso), destaca que o efeito deste penhor é o de “le créancier est payé sur
le capital assuré, les primes doivent acoir été acquittées par le débiteur. Si le créancier ne veut pas verser
les primes que ce dernier ne paie plus ou si la créance vient à échéance avant celle de la police, il pourra
obtenir la valeur de rachat de celle-ci, qui peut ne pas être élevée, cela rend bien fragile la garantie du
créancier nanti d’un tel titre”. Na opinião do Autor, as interrogações decorrem da configuração jurídica
da operação de empréstimo garantido por um penhor com este objecto, sugerindo não se tratar de um
verdadeiro penhor, mas antes de um simples empréstimo (mais concretamente, em caso de não
pagamento do crédito garantido “la compagnie ne vend, ni ne se fait attribuer les bénéfices de la police.
Par le rachat d’office, c’est elle qui au contraire acquitte le solde de la dette déduction faite de l’avance.
S’il y avait gage, la clause autorisant le rachat d’office devrait s’analyser en un véritable pacte
commisoire qui est interdit par la loi”) garantido através de uma compensação legal de créditos.
696
Entre nós, será admissível, pelo menos (e, na medida em que a parte geral do regime substantivo do
Código dos Contratos Públicos, doravante CCP – cfr. art.º 280.º, n.ºs 1 e 2 do Código - se aplica aos
demais contratos administrativos dispersos noutra legislação – cfr. art.º 1.º, n.º 6, do mesmo Código -, a
solução poderá ser transposta para as demais concessões), a oneração de uma concessão de obras públicas
ou de serviços públicos, na dupla modalidade de penhor de direitos (no qual o objecto da garantia é a
própria concessão) ou de créditos (quando o penhor recaia sobre os que decorram daquele contrato de
concessão), uma vez que tais direitos são cedíveis pelo concessionário, mesmo na ausência de cláusula
contratual nesse sentido (art.º 316.º do CCP), excepto nos casos pontuais previstos no art.º 317.º (porém,
na falta de cláusula contratual e se a cessão ocorrer já no decurso da execução do contrato, será necessário
o consentimento do concedente – art.º 319.º, n.º 1). Por seu turno Hardel, ob. cit., pág. 107 e segs.,
desvaloriza a controvérsia acerca da natureza jurídica das concessões administrativas, aceitando a
empenhabilidade das mesmas, com base no facto de o concessionário ser titular de um ou mais créditos
contra a entidade concedente, configurando a garantia como um penhor de créditos (ou melhor, admitindo
que “Si la concession administrative d’un marché ne peut former directement l’object d’u nantissement, à
cause de l’agrément facultatif du concessionnaire par l’administration, du moins les avantages et
bénéfices en résultant sont susceptibles dêtre cédés ou donnés en gage”).
697
Não se ignora que, nos termos do art.º 602.º, é lícito às partes acordar na limitação da responsabilidade
do devedor a algum dos seus bens e, nomeadamente, ao bem dado em penhor, ficando o valor do crédito
limitado ao valor da coisa dada em garantia, a qual, por essa razão terá de ser avaliada (relativamente a
este último aspecto, vide Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 229 e 230 e Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 17,
dando conta que a jurisprudência já teve oportunidade de qualificar esta situação como sendo uma dação
179
Conforme resulta da própria noção legal (cfr. n.º 1 do art.º 666.º) e como sucede
com a generalidade das garantias, o penhor pressupõe um crédito cujo cumprimento
visa assegurar, sendo que, por força do princípio da acessoriedade da garantia que
adiante se escalpelizará,698 tal obrigação deverá, em princípio, ser válida no momento da
constituição da oneração pignoratícia.
Como melhor ser verá adiante, o carácter acessório do penhor produz
determinadas consequências, de entre as quais avulta o facto de as características e os
eventuais vícios do crédito se repercutirem sobre a garantia e, por outro lado, de a
extinção do crédito garantido acarretar, em princípio, o mesmo efeito relativamente ao
penhor.
Relativamente ao seu titular, exigir-se-á, em regra, que o crédito seja do credor
pignoratício, porquanto crédito e penhor não poderão pertencer a pessoas diversas,699
mas não será forçosa a respectiva identificação, como se depreende da possibilidade de
garantir com penhor o crédito incorporado num título à ordem ou ao portador.700
Normalmente, tratar-se-á de garantir um crédito em sentido estrito, ou seja, uma
pretensão resultante de uma relação obrigacional, mesmo que complexa,701 mas não
falta quem admita que o penhor possa garantir igualmente pretensões de outra índole,
desde que autónomas, designadamente as denominadas pretensões reais.702
Em sentido oposto, parece que direitos de natureza não creditícia não poderão
ser assegurados através do penhor, pois só os direitos que se possam fazer valer através
da acção executiva são passíveis de ser tutelados por esta garantia e estes são apenas os
direitos de crédito.703
No que concerne aos créditos propriamente ditos e para além daqueles de
carácter pecuniário, nada parece obstar a que possam ser garantidos por penhor outros
de diversa natureza,704 contanto que, na data da realização da garantia, possa ser
determinado o montante pelo qual responde o pignus.705
em pagamento, qualificação esta que os Autores rejeitam, argumentando que, na dação, o devedor não
pode remir a coisa dada, que este mecanismo extingue imediatamente a dívida – não havendo, por isso,
lugar ao pagamento de juros – e, finalmente, que a propriedade e os riscos da coisa passam para o credor).
698
Vide infra n.º 6 do Capítulo I.
699
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 84, acrescentando que se alguém prometer um penhor ao
seu credor e, no momento em da constituição da garantia, o credor originário já tiver cedido o crédito a
terceiro, não se constitui nenhum penhor a favor do cedente (uma vez que este já não é credor), nem do
cessionário (por não ter sido a favor deste que a garantia havia sido constituída).
700
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 85. No que respeita à pessoa do devedor, a sua irrelevância
é também aceite, podendo ser o proprietário do bem a empenhar, o constituinte da garantia ou um
terceiro.
701
A propósito da hipoteca, Meneres Campos, ob. cit., págs. 97 e 98, escreve que “Se a relação complexa
compreende uma pluralidade de deveres a cargo do devedor, em regra, o vínculo hipotecário, entendido
como uma relação de carácter unitário, cobre o cumprimento de todos esses deveres, embora as partes
possam convencionar o contrário”.
702
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 190 (admitindo também o penhor em garantia de uma
obrigação fideiussória) e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 84, especialmente nota 143,
apontando como exemplo o penhor constituído em garantia das obrigações propter rem.
703
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 191, considerando que eventuais penhores constituídos para
garantir outros direitos (que, em todo o caso, deverão ser direitos a uma prestação, pois os direitos
potestativos estão excluídos, por serem insusceptíveis de incumprimento) devem considerar-se penhores
para assegurar os créditos que poderão surgir do incumprimento do direito originário.
704
No que respeita às obrigações alternativas, coloca-se a questão de saber se a garantia pode dizer
respeito a apenas um dos objectos. Responde negativamente Rubino, Il pegno cit., pág. 190, alegando a
unidade da relação, considerando, por isso, que o penhor deve abranger todos os objectos, consolidando-
se a favor da prestação em que se verifica a concentração. Pelo contrário, admite-o Vaz Serra, Penhor cit.
in BMJ n.º 58, págs. 86 e 87, nota 150, apontando como exemplo o caso se uma das prestações ser
180
Todavia, não se ignora que a segurança conferida por uma garantia não se
projecta da mesma forma relativamente às obrigações de cariz não pecuniário, podendo
até afirmar-se que, relativamente a estas, a garantia assegura, não tanto o cumprimento
da obrigação, mas antes a responsabilidade pelo incumprimento.706
Se assim é, não se avistam obstáculos à constituição de um penhor para garantia
de uma obrigação de dare, facere ou non facere, desde que a mesma seja válida,707
sendo mais duvidosa a empenhabilidade de direitos potestativos.708
Não contestando a validade de um penhor em garantia de obrigações de dar, de
fazer ou de não fazer, não ignoramos que a viabilidade das mesmas enfrenta algumas
especificidades e diversos obstáculos.
As especificidades residem na circunstância de, nestes casos, o penhor não
garante o cumprimento exacto da obrigação assegurada, uma vez que perante o
incumprimento do devedor e caso o credor opte por executar o penhor, este não se
extingue como consequência de um pagamento, mas antes porque a quantia obtida com
a alienação do bem dado em garantia se aplica à satisfação do crédito afiançado.
Daí que a garantia assegura o êxito da execução forçada da obrigação não
cumprida ou, noutros termos, que “si bien la obligación garantizada no tiene por qué
ser necessariamente pecuniaria, la garantia siempre lo es, dado que lo único que
assegura en último término es el cobro de la cantidad de dinero obtida de la
realización”.709
particularmente precária, de modo que se deva considerar vantajoso ou necessário assegurá-la com uma
garantia.
705
Neste sentido, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 27 (acrescentando que, de outro modo, não seria possível
atribuir o produto da venda ao credor pignoratício) e Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-
Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1483 (“La deuda no ha de ser de dinero, sino que es
suficiente que pueda transformarse en una deuda dineraria”). Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 229,
considera só poderem ser garantidas por penhor “as obrigações avaliáveis em dinheiro” (nos mesmos
termos se exprime Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 17), em virtude de o destino final ser a sua venda (muito
embora o Autor não esclareça se esta avaliação terá de ocorrer no momento da constituição da garantia ou
apenas no da respectiva execução). Alguns Autores franceses vão ainda mais longe e admitem a
constituição de penhor em garantia de qualquer tipo de obrigação (cfr. Troplong, ob. cit., pág. 23 -
impondo como única condição a validade da mesma - Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 537,
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 197 - apontando como exemplos os empréstimos, as
vendas, os mandatos, as locações e as obrigações delituais, fiscais e sociais – Legeais, Sûretés 1999 cit.,
pág. 257 e Philippe Simler e Philippe Delbecque, Droit civil cit., págs. 452 e 453), entendimento este
também perfilhado em face do direito catalão (cfr. Barrada Orellana, ob. cit., pág. 53, com apoio no art.º
13.º da LDRG – actual art.º 569-14, n.º 1, do Código Civil da Catalunha - que estabelece que “La prenda
puede garantizar cualquier obligación”, norma da qual a Autora retira suporte para admitir poderem ser
garantidas as obrigações de dar, fazer e não fazer, impondo como único limita a licitude da prestação).
706
Assim, Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 418 e 419, rematando que se a obrigação garantida não
for pecuniária “en última instancia no tiene sino la seguridad de poder obtener una suma de dinero que le
resarza del incumplimento de aquella in natura”.
707
Admitindo o penhor em garantia de obrigações de dare e facere, Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit.,
pág. 341, Jacques Ghestin e outros., Droit commun cit., pág. 315, Alex Weil, ob. cit., pág. 77, Laurent
Aynés e Pierre Crocq, ob. cit., pág. 198, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 31, Planiol, Ripert, Becqué, ob.
cit., pág. 72 (Guillouard, ob. cit., pág. 27, apenas se refere à segunda hipótese) e Guillarte Zapatero,
Comentario cit., pág. 471 (acrescentando que tal empenhabilidade prescinde da natureza fungível ou
infungível da prestação).
708
Nega a empenhabilidade de tais direitos Rubino, Il pegno cit., pág. 191, nota 4, fundamentando a sua
posição na insusceptibilidade de incumprimento dos mesmos.
709
Neste sentido, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 54. Em termos aproximados Paz-Ares Rodriguez, ob.
cit., pág. 1871, para quem, nesta eventualidade e em caso de incumprimento da obrigação garantida, a
garantia passa a incidir sobre “una cuantidad de dinero, la alcanzada con la venta de la cosa, que servirá
para satisfazer la obligación pecuniaria en que forsozamente, a estos efectos, se convierte la inicial, ante
la imposibilidad de su cumplimiento específico, que abre paso a la satisfación por equivalência (…) lo
181
A principal dificuldade relaciona-se com a dificuldade de avaliação pecuniária
da obrigação garantida, a qual poderá ser contornada considerando que, no momento da
execução, o objecto da prestação ter-se-á convertido no montante pecuniário
correspondente aos danos provocados pelo incumprimento da obrigação inicialmente
assumida.710
Todavia, tal constatação poderá não bastar, na medida em que alguns
ordenamentos jurídicos exigem, como vimos, a indicação, no momento da constituição
da garantia, do montante do crédito assegurado:711 quando não exista tal imposição
legal, a garantia responderá, sem limite, pelo valor total que o crédito garantido
apresente no momento da execução,712 embora se possa igualmente defender que,
sobretudo no caso de prestações periódicas, se deva indicar o montante provável que
poderá vir a ser garantido.713
Por último e no que concerne às obrigações de dar, o assegurar do seu
cumprimento através de um penhor afigura-se de menor importância em sistemas
jurídicos, com o nosso, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do
182
contrato (cfr. art.º 408.º, n.º 1), por comparação do que sucede naqueles outros nos
quais, em ordem à transferência da propriedade, se exige a tradição do bem: por ser
assim e em face deste carácter instantâneo da transmissão da propriedade, alguns
Autores afiançam inclusivamente que a prestação de garantia para assegurar obrigações
desta índole se torna previsivelmente inútil.714
Noutro plano, nada parece impedir que o penhor garanta obrigações genéricas ou
alternativas, consolidando-se a prestação a garantir com concentração ou a escolha do
devedor.715
Dúvidas existem relativamente às obrigações naturais, em razão da
impossibilidade de o cumprimento das mesmas ser judicialmente exigido, facto que
conduz alguns autores a negar a constituição de penhor para tutelar este tipo de créditos,
argumentando ser da natureza do penhor a conservação de um bem móvel em vista da
sua (eventual) execução forçada, destinando-se a garantia, precisamente, a reforçar a
eficácia daquela.716
De facto, se o devedor não pode ser coagido judicialmente ao cumprimento da
dívida, como se poderá equacionar a existência de uma garantia de uma potencial
execução a mover contra ele?717
Todavia, não falta quem sustente posição inversa,718 designadamente
argumentando que a acessoriedade apenas implica que o penhor não se possa constituir
714
Assim, Jacques Ghestin et outros, Droit commun cit., pág. 315.
715
Defendem a mesma solução para a hipoteca, Meneres Campos, ob. cit., págs. 97 e 98 e Entre nós,
Antunes Varela, Das obrigações cit., pág. 762, considerando estes últimos que a incoercibilidade jurídica
da obrigação natural obsta a que o seu cumprimento possa ser assegurado através de qualquer garantia
pessoal ou real – prestada pelo devedor ou por terceiro -, porquanto o devedor conserva, até ao momento
do cumprimento, a plena liberdade de não cumprir
716
Neste sentido, Meneres Campos, ob. cit., pág. 97, a respeito da hipoteca, mas com plena aplicação ao
penhor (alegando que “Consistindo em deveres jurídicos, traduzidos num simples poder de pretender,
não permitem ao titular activo da relação jurídica hipotecária lançar mão da acção executiva com o fim
de realizar e assegurar o seu direito”). Esta posição é igualmente assumida por Guillarte Zapatero,
Comentario cit., págs. 96 e 97 (com base na ausência de uma relação jurídica a assegurar entre credor e
devedor – razão pela qual o incumprimento não pode ser juridicamente produtor de efeitos, dada a
incoercibilidade da obrigação – e alegando que a solução contrária passaria por atribuir às obrigações
naturais um efeito jurídico adicional, para além do único que a lei lhes reconhecer – a solutio retentio),
Chiorni, ob. cit., pág. 437 (afirmando que “la sicurità reale non può accedervi validamente: non vi si
adatta il concetto di esecuzione reale, perchè questo suppone un vincolo eseguibile coattivamente per sè;
non il concetto di garanzia, non potendosi ottenere coattivamente in tal modo l’esecuzione del rapporto
principale non eseguibile per via diretta”), Rubino, Il pegno cit., pág. 191, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág.
27, Realmonte, Il pegno cit., pág. 634 e Montel, Pegno cit., pág. 791 e, de acordo com Barbara Cusato,
ob. cit., pág. 42, pela jurisprudência tradicional italiana. Questão diversa, à qual o primeiro Autor dá
resposta negativa, é a de saber se a constituição de um penhor em garantia de uma obrigação natural, por
parte do respectivo devedor, se traduz na vontade de criar uma obrigação civil em detrimento da natural
(contra, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 316 e 317, argumentando que a prestação de
uma garantia para assegurar uma obrigação de honra deverá transformar esta última numa obrigação
jurídico e executável).
717
Colocam a questão nestes termos, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 72 e Alex Weil, ob. cit., pág.
77 (textualmente “une obligation naturelle ne peut être garantie par un gage: celui-ci procure au
créancier une garantie d’exécution, alors que la caractéristique de l’obligation naturelle réside dans
l’absence de toute exécution forcé à l’encontre du débiteur.”) e à mesma conclusão chegam Simler e
Delebecque, Droit civil cit., pág. 453. Para além disso, também se poderá questionar em que medida será
razoável, tendo em conta o princípio da acessoriedade, que a garantia possa ser mais forte ou mais eficaz
que a obrigação principal – cfr. Faggella, ob. cit., pág. 28.
718
Cfr. Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 228, Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 17, Troplong, ob. cit.,
pág. 23, Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 199 (por assumirem que a concessão do penhor converte
a obrigação garantida de natural e civil, pois tal facto significará “l’acceptation des moyens de contrainte
que le doit entraîner”) e, principalmente, Faggella, ob. cit., págs. 28 e 29.
183
na ausência de uma obrigação principal existente, não devendo a obrigação natural
considerar-se como inexistente, mas antes como um dever ético a que a própria lei
reconhece determinados efeitos (o mais visível dos quais é a soluti retentio), alvitrando
alguns até que a prestação de garantia origina a conversão da obrigação de natural em
civil, podendo o credor satisfazer-se através dos meios que aquelas garantias
facultam.719
Partindo destas premissas e tendo, ainda, em conta a veleidade de o devedor
reconhecer a sua obrigação natural e transformá-la em civil, consideramos admissível a
constituição de um penhor em garantia da obrigação natural inicialmente assumida.720
Um caso particular de obrigação natural diz respeito às obrigações prescritas,721
uma vez que, nesta hipótese, topamos com uma norma legal – cfr. art.º 304.º, n.º 2, que
vem impedir a repetição de uma obrigação prescrita voluntariamente cumprida,
independentemente do modo de satisfação do credor, do reconhecimento do direito
prescrito e da eventual prestação de garantias -,722 discutindo-se, porém, se o seu
alcance se circunscreve às garantias prestadas pelo devedor ou, pelo contrário, abarca
igualmente as outorgadas por terceiros.723
No caso da prescrição e como esta tem que ser invocada, não sendo de
conhecimento oficioso (cfr. art.º 303.º), se tal invocação não tiver ocorrido será de
admitir a validade do penhor, o mesmo sucedendo, por maioria de razão, caso a
719
Neste sentido, Vaz Serra, Obrigações naturais, in BMJ n.º 53 (1956), pág. 158, Januário da Costa
Gomes, ob. cit., pág. 330 e segs. (alegando que “Ao oferecer uma garantia ao credor (…) o devedor
reconhece o crédito do credor como crédito civil: confere-lhe a força de que estava despojado” e
“Aceitando-se que a obrigação natural é uma autêntica obrigação jurídica, embora com a especificidade
de impossibilidade de realização coactiva da prestação, não vemos razão para recusar a possibilidade
de o crédito do credor de obrigação natural ser objecto de uma garantia de terceiro (…) embora com a
óbvia advertência de que, tratando-se de uma garantia acessória, a mesma não pode deixar de sofrer, na
sua configuração e no seu regime influência (…) da obrigação principal”), Almeida Costa, Direito das
obrigações cit., pág. 186 (escrevendo que “uma vez que se admite a validade de um reconhecimento ou
promessa de cumprimento, também parece de admitir, em tese geral, que as obrigações naturais possam
ser asseguradas mediante fiança, penhor ou hipoteca, conquanto que essas garantias não se mostram
incompatíveis com os motivos por que a dívida é incoercível”) e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 61 e
segs. (considerando, em razão daquela conversão da obrigação de natural em civil, que o devedor não
pode deixar de cumprir sem sofrer quaisquer sanções, acrescentando ainda, em abono da sua posição, que
a mesma é confortada pelo reconhecimento legal da promessa de cumprimento).
720
Nesta conformidade, Faggella, ob. cit., pág. 29, muito embora considere que a constituição de penhor
em garantia de uma obrigação natural não produz, por si só, o efeito de transformar a aquela num vínculo
de natureza civil (para além de reconhecer que, enquanto a obrigação não for de carácter civil, o credor
não poderá coagir o devedor ao cumprimento).
721
No sentido em que as obrigações prescritas se enquadram na categoria das obrigações naturais, vide
Januário da Costa Gomes, ob., cit., pág. 332. No direito alemão, Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1501, aceitam a constituição de um
penhor em garantia de uma obrigação prescrita. Em Itália, Protettí, ob. cit., pág. 16, elenca algumas
decisões judiciais admitindo que o penhor poderá ser constituído em garantia de um crédito já prescrito,
sendo a mesma solução defendida, no nosso ordenamento, a propósito da hipoteca por Meneres Campos,
ob. cit., pág. 98.
722
De acordo com Januário da Costa Gomes, ob., cit., págs. 332 e 333, esta norma tem sido invocada
como argumento para sustentar que a prestação de garantia opera a civilização das obrigações naturais em
geral.
723
Inclina-se nesta segunda direcção Januário da Costa Gomes, ob., cit., págs. 335 e 336, assegurando que
“Não há, na verdade, razão para distinguir, a nível de regime, entre uma garantia prestada pelo devedor
e uma garantia consentida pelo devedor e que se destina a ser, afinal, pelo mesmo suportada”.
184
obrigação não se encontrasse prescrita no momento da constituição da garantia, mas
venha a prescrever antes de ser exigido o cumprimento daquela.724
Pressupondo o penhor um crédito a garantir, será legítima a respectiva
constituição para assegurar o adimplemento de uma obrigação futura725 ou
condicional?726 727
Estas fattispecie podem ser enquadradas nas chamadas “garantias de
segurança”, caracterizadas por assegurarem o cumprimento de obrigações não
totalmente determinadas - ou relativamente às quais apenas se encontram definidos os
traços gerais - no momento da respectiva constituição.728
Por ser assim, poderemos estar perante um enviesamento ao o princípio da
especialidade (ao menos para quem não o acantone, enquanto traço definidor dos
direitos reais, ao objecto da garantia – impondo a sua determinação - , projectando a sua
724
Em termos concordantes, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 98, esclarecendo que apenas se a
obrigação garantida já se encontrar prescrita e tal prescrição tiver sido declarada é que garantia não pode
surgir, em razão do princípio da acessoriedade, uma vez que a obrigação principal já desapareceu.
725
Faggella, ob. cit., pág.34, considera como penhor constituído em garantia de uma obrigação futura
aquele que é concedido, no momento da celebração de um contrato-promessa, mas tendo em vista garantir
o contrato definitivo, nomeadamente quando a promessa não seja cumprida (de acordo com este Autor,
neste caso o penhor surge em garantia, não da execução da promessa, mas sim do crédito que derivaria da
concretização do contrato prometido).
726
Não confundir esta hipótese com outra, diversa, respeitante à constituição do penhor, enquanto direito,
sob condição ou a termo, caso em que a vida do direito depende directamente da verificação de algum dos
dois factos (nestes casos, Faggella, ob. cit., págs. 32 e 33, advoga que o direito do credor pignoratício
nasce com a constituição da obrigação garantida, invocando o princípio da retroactividade da condição e
da existência imediata do direito a termo. Pelo contrário, quando o penhor seja constituído em garantia de
um direito condicional, o mesmo Autor sustenta que o direito não é condicional em si mesmo, mas em
virtude do seu carácter acessório, existindo em toda a sua eficácia, embora possa extinguir-se em
resultado da extinção do direito que asseguram). A susceptibilidade de o penhor garantir obrigações
condicionais era já defendida por Troplong, ob. cit., pág. 23, embora o mesmo Autor pareça não admitir
que o mesmo suceda com os créditos futuros (pois considera que a garantia se deve sempre juntar a uma
dívida anterior). De acordo com Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 99 e 100, a possibilidade de
garantia de obrigações condicionais não oferece quaisquer dúvidas, porquanto estas possuem uma
existência actual, mesmo tratando-se de condição suspensiva e quando os seus efeitos estiverem
dependentes da verificação de um acontecimento futuro (concluindo que, neste caso, a garantia produz
efeitos desde a data da sua constituição e, sendo suspensiva, se não se verificar a garantia desaparece e,
verificando-se, os efeitos retroactivos sobre a obrigação principal contaminarão também a garantia; sendo
resolutiva, a garantia produzirá os seus efeitos até à verificação de tal condição)
727
Nestes casos, poder-se-á afirmar, com Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 196, que o autor do penhor
transmite a posse do bem a outrem na expectativa de que este se venha a constituir seu credor ou, nas
palavras de Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 307 a 309, “La chance de créance est dejà
un bien qui mérite d’être préservé. Ansi, bien souvent, le créancier se fait-il garantir d’abord et prête-t-il
ensuite.”, acrescentando que, no ordenamento francês, a constituição de garantias (em geral e não
especificamente de penhores) para assegurar de créditos futuros pode resultar, não apenas de contrato,
mas também da lei (apontando como exemplo a hipoteca legal a favor dos menores, que poderá ser
inscrita desde o início da relação tutelar e, por isso, mesmo antes da existência de qualquer crédito) ou de
uma decisão judicial (as chamadas garantias judiciais conservatórias, que serão decretadas a favor de um
crédito “paraissant fondée en son principe”). Já anteriormente, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 31,
admitia a constituição de um penhor em garantia de uma dívida meramente eventual, apontando como
exemplo a abertura de crédito garantida por penhor.
728
Dá conta da existência desta categoria Barrada Orellana, ob. cit., pág. 59 (admitindo que a mesma terá
sido criada pela doutrina alemã) e sustentando que, no caso das obrigações futuras e condicionais, o
aspecto carecente de determinação é a própria existência e efectividade do crédito assegurado. Dentro
desta categoria incluem-se ainda o denominado penhor de máximo (destinado a assegurar obrigações cujo
montante definitivo se desconheça no momento da constituição da garantia, exigindo-se, por isso, que as
partes fixem, nesse momento, o limite máximo pelo qual a garantia responde) e o penhor em garantia de
valores não nominativos (caso em que é a titularidade do credor que é desconhecida no momento da
constituição da garantia).
185
eficácia igualmente sobre a obrigação assegurada), e da acessoriedade (no sentido em
que a garantia prescinde, neste caso, de uma obrigação presente e válida cujo
cumprimento assegure),729 podendo mesmo afirmar-se que apenas se atesta que a
garantia subsiste se vier a comprovar-se definitivamente a existência do crédito, mas
não se presume a existência deste último.730
O nosso Código Civil731 admite inequivocamente que o penhor possa
garantir obrigações condicionais ou futuras (cfr. n.º 3 do art.º 666.º),732 muito embora
729
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 102, relativiza esta questão, alegando que daquele princípio
resulta que será sempre necessária, senão para o nascimento da garantia ao menos para a sua efectividade,
a existência de uma obrigação assegurada, que poderá ser actual, condicional ou futura.
730
Neste sentido, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 59 e 60, concluindo que apenas aquando do surgimento
e da exigibilidade da obrigação garantida o “penhor de segurança” se transforma num penhor ordinário e
só então será possível proceder à respectiva execução.
731
Defendendo a mesma solução em face do Código de Seabra, Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 18,
apontando como exemplo a abertura de crédito.
732
Diversamente, o CCI não contém nenhum preceito a este respeito. Todavia, o art.º 2852.º - ditado para
a hipoteca, mas extensível, segundo alguns (cfr. Rubino, Il pegno cit., pág. 189, Gorla e Zanelli, ob. cit.,
pág. 25 e Andrea Magazzù, L’accessorietà nelle garanzie reali e l’apertura di credito su pegno, in BBTC,
1956, II, pág. 450) ao penhor – admite a possibilidade de constituição da garantia para créditos sujeitos a
condição suspensiva ou que possam resultar de uma relação jurídica já existente. De acordo com o
primeiro Autor, a diferença entre estas duas hipóteses reside na circunstância de, na condição suspensiva,
a verificação desta e a respectiva retroactividade, fazer com que o penhor se considere constituído quando
o crédito já existia, ao passo que na outra hipótese o crédito nasce sempre apenas para o futuro. Pelo
contrário Montel, Pegno cit., pág. 792, considera a disposição do art.º 2852.º (juntamente com algumas
outras que enumera) como excepcional e, por isso, postula a existência de “un divieto generale della
costituzione di una garanzia reale per una obligazione futura”. Já antes da entrada em vigor do CCI,
Chironi, ob. cit., págs. 433 a 435, admitia o penhor em garantia de obrigações condicionais (uma vez que,
não obstante a condição, a obrigação se encontra constituída, embora com eficácia suspensa, retroagindo,
com a verificação da condição, o nascimento da obrigação à data do negócio, o mesmo efeito de
produzindo relativamente à garantia dessa obrigação: todavia, o Autor excepciona as condições
meramente potestativas – cuja verificação depende unicamente da vontade do obrigado – as quais apenas
se deverão considerar existir no momento em que tal vontade se manifeste, o mesmo sucedendo com o
penhor que as garanta) ou a termo (uma vez que este não suspende a existência da obrigação, mas apenas
o seu exercício). Em França, o art.º 2071.º do Código de Napoleão dispunha que o penhor se destina a
garantir o cumprimento de uma dívida (sem mais), pelo que, perante esta ausência de distinção por parte
do legislador, já alguns Autores clássicos admitiam que a garantia pudesse ser prestada para assegurar
uma dívida futura, condicional ou indeterminada (Guillouard, ob. cit., pág. 28 e outros autores por ele
citados e Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 72, apontando como exemplos o penhor constituído em
garantia de uma abertura de crédito e ainda casos em que o penhor é exigido, não pelo credor, mas
antecipadamente por um terceiro, actuando como gestor de negócios de credores eventuais,
desconhecidos no presente e cujo créditos poderão nunca vir a nascer – é o que sucede quando o Estado
obriga um funcionário a depositar uma caução para garantir eventuais despesas originadas por actos
culposos por ele praticados), sendo o mesmo entendimento perfilhado por outros estudiosos mais
recentes, como Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 537 (que se referem às obrigações
condicionais e eventuais), Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 197 (apontando como
exemplos as aberturas de crédito e de contas correntes), Alex Weil, ob. cit., pág. 77 (referindo-se às
obrigações condicionais, a termo ou eventuais e indicando como incluídas nesta última categoria as
aberturas de crédito), Philippe Simler e Philippe Delbecque, Droit civil cit., págs. 452 e 453 (adiantando
ser suficiente que o crédito existe em gérmen), Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 51, Philippe Thèry,
ob. cit., pág. 295 e Stéphane Piedlièvre, Les sûretés cit., págs. 175 e 176 (aludindo os quatro últimos
autores à constituição de penhor em garantia de aberturas de crédito). Actualmente e depois da reforma de
2006, o art.º 2333.º, n.º 2, afirma reconhece expressamente que o penhor possa garantir créditos futuros,
embora o preceito em questão advirta que esses créditos futuros garantidos terão que ser determináveis.
Segundo Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., págs. 534 e 536, a possibilidade de o penhor garantir
créditos futuros constitui uma atenuação significativa do princípio da especialidade do crédito garantido,
muito embora a exigência de determinabilidade deste imponha a indicação de elementos capazes de a
identificar, tais como o devedor, o credor e a natureza da operação geradora do crédito No direito
espanhol, o art.º 1861.º do CEE dispõe que o penhor pode assegurar o cumprimento de qualquer
186
obrigação, incluindo as sujeitas a condição suspensiva ou resolutória, preceito que fundamenta a
admissibilidade (desde logo jurisprudencial – vide a Sentença da Audiência Provincial de Huelva n.º
47/2006, de 21 de Março, citada por Lerena Cuenca e outros., ob. cit., págs. 511 e 512) de a garantia
assegurar obrigações futuras e créditos ilíquidos - neste sentido, Puig Brutau, ob. cit., pág. 24 (apontando
como exemplo as aberturas de crédito, muito embora reconheça a necessidade de uma fórmula que
permita conhecer o montante do crédito exigível na data do seu vencimento), – Paz-Ares Rodriguez, ob.
cit., págs. 1860, 1871 e 1872 - aceitando igualmente a licitude de um penhor constituído em garantia de
obrigações futuras, escrevendo que o princípio da acessoriedade “no implica, a mi juicio, que el crédito a
garantizar deba existir necesariamente en el momento de la constitución de la garantía, sino que puede
nacer en momento posterior y, no obstante, resultar válida, en principio, la carga acesoria, aunque
siempre subordinada a la efectiva existencia de la principal” e, por outro lado, que do art.º 1861.º do
CCE resulta que o penhor pode garantir créditos futuros, ficando a garantia, dado o seu carácter acessório,
submetida às mesmas vicissitudes da obrigação principal –, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 473
e Codero Lobato, Comentario cit., pág. 2142 (salientando como desta consagração legal decorre que não
se exige a existência de uma prévia relação jurídica, da qual brotará a obrigação garantida, como condição
de prestação da garantia, mas não sem registar a posição contrária da Direcção dos Registos e Notariado –
que exige, como condição da prestação da garantia hipotecária, a pré-existência de uma relação jurídica
entre as partes – posição criticada pela Autora, “dado que las garantías no son accesorias de relaciones
jurídicas, sino de obligaciones, hay que afimar que siempre que la obligación futura esté suficientemente
determinada, la existencia de una relación jurídica antecedente no determina más la obligación ni evita
que el nacimiento de la obligación sea totalmente aleatorio y eventual”); já Olivencia Ruiz, ob. cit., págs.
46 e 47, destaca que o problema da determinação quantitativa da obrigação principal – que inicialmente
era remetida para o livre arbítrio do credor – passou, por determinação legal e para os penhores
constituídos por valores que garantam estas aberturas de crédito, a fazer-se por acordo das partes,
podendo este, contudo, remeter “la fijación de la cantidad exigible a la certificación de la entidad de
crédito acreedora”), aceitando De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 61, a constituição de um
penhor em garantia de uma abertura de crédito bancário (esclarecendo que “no hay dificultad en admitir
que en la apertura de crédito la obligación del acreedor está sometida a la condición de que llegue a
utilizar el crédito concedido” e “Con el fin de poder conocer la cuantía del crédito exigible en el
momento del vencimiento, es práctica totalmente generalizada en la operativa bancaria la inclusión de
una cláusula que establece que el acreditado se somete a la liquidación practicada por el Banco”).
Finalmente, García Vicente, La prenda cit., pág. 79 e segs., realça como do regime civilístico do penhor
não ressaltam quaisquer dúvidas relativamente à possibilidade de o penhor assegurar obrigações
condicionais, a termo ou futuras (ou até um conjunto global de obrigações, umas presentes, outras
futuras), esclarecendo que a garantia produz efeitos retroactivos à data da sua constituição, em prejuízo
dos credores intermédios, cuja garantias sejam formalizadas antes do nascimento efectivos dos créditos
futuros onerados (sobretudo considerando a insuficiência dos mecanismos de publicitação do penhor) e
até do próprio devedor (que compromete, de uma só vez e para o futuro, uma fatia relevante do seu
património): todavia, esta não é uma possibilidade ilimitada, porquanto há que respeitar a obrigação de
determinação da obrigação assegurada (art.ºs 1271.º e 1273.º do CCE), a qual impõe a identificação das
partes da relação obrigacional, dos negócios ou relações das quais poderão brotar os créditos a onerar,
bem como limitações temporais (por exemplo, para créditos que nasçam de contratos duradouros,
estabelecer um limite temporal até ao qual ficarão onerados) e quantitativas (ainda que esta exigência, na
óptica do Autor, se destine sobretudo à protecção do próprio devedor), mas sem que se exija
necessariamente que o crédito futuro resulte de uma relação jurídica pré-existente no momento da
constituição da garantia. Também no direito catalão se admite o penhor em garantia de créditos futuros
e/ou condicionais, possibilidade expressamente admitida pelo art.º 569-14, n.º 1, do Código Civil da
Catalunha. Por fim, o § 1204, n.º 2, do BGB, admite igualmente que o penhor possa constituir-se em
garantia de créditos futuros ou condicionais, acrescentando o §1209 que, mesmo neste caso, a graduação
do direito de penhor é aferida em função da data da constituição da garantia (de acordo com este regime
legal, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs.
1501 e 1502, vaticinam que será necessário apenas que o crédito a garantir seja determinável – embora
possa ser futuro ou condicional, desde que se possa identificar com clareza qual é o crédito –, não sendo
forçosa a sua quantificação e, por outro lado, que a preferência que ele assegura apenas poderá ser
exercida se o crédito garantido vier a nascer e se encontre vencido no momento da execução: em suma, os
Autores sustentam que “la prenda no depende entonces del crédito, sino de la finalidad de garantía; y se
extingue en el mismo momento en que consta que el crédito al que se refería el acuerdo real no va a
llegar a nacer”).
187
seja necessário identificar os efeitos desta relativa aleatoriedade do crédito assegurado
sobre a garantia pignoratícia.
Enquanto o crédito não nascer, o penhor produz como efeito principal o
afastamento do risco de deterioração ou perecimento do bem (na medida em que o
credor adquire, desde logo, a posse do mesmo)733 e, simultaneamente, assegura ao
credor pignoratício, no confronto com outros credores preferentes, o grau resultante da
data da constituição do penhor e não o do nascimento ou da plena eficácia do crédito
(caso contrário, seria preterido face aos direitos constituídos medio tempore sobre o
objecto do penhor).734
Relativamente ao enquadramento jurídico da posição do credor entre a data da
constituição da garantia e o surgimento efectivo do crédito, duas posições se
vislumbram.
Uma primeira perspectiva, considera que o direito do credor pignoratício é,
desde o momento da respectiva constituição e da consequente entrega do bem ao
referido credor, um direito actual, não dependente da verificação da condição ou do
nascimento do crédito a garantir.735
Em razão da actualidade do seu direito, o credor disporia do poder de agir contra
terceiros que ofendessem o penhor, não se encontraria sujeito às acções possessórias e,
tratando-se de penhor com pacto anticrético, do direito de gozo da coisa, apenas lhe
sendo vedado o direito de alienação do bem empenhado, excepto em caso de risco de
perda ou deterioração do mesmo.736
Deverá, assim, considerar-se o ónus pignoratício como existente desde a data da
respectiva constituição, não do nascimento do crédito que asseguram, salvo quando as
partes acordem em sentido diverso, a tal não se opondo qualquer princípio lógico ou
jurídico, nomeadamente o relativo à acessoriedade da garantia.737
733
Ao contrário do que sucede naqueles ordenamentos, como o alemão, em que a entrega do bem é
necessária para a transferência do direito, no nosso sistema o penhor de obrigações futuras ou
condicionais não pode precaver o credor pignoratício contra as eventuais alienações futuras da coisa
empenhada, na medida em que a posse desta pelo credor pignoratício não obsta a tal efeito (embora tal
não signifique a ausência de protecção do credor pignoratício face a esses actos de disposição, nos termos
adiante expostos no texto).
734
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 87 e 89. Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 25,
salientam que, no penhor em garantia de créditos condicionais e quando estes venham a surgir, o direito
de preferência do credor pignoratício e a indisponibilidade do bem empenhado produzem efeitos desde a
data do momento da constituição do penhor e não do nascimento dos créditos (no mesmo sentido,
Faggella, ob. cit., págs. 37 a 39).
735
Defende a concepção segundo a qual o direito de penhor, quando o crédito garantido for futuro ou
condicional, existe desde o momento da constituição da garantia, Faggella, ob. cit., págs. 30 a 42, não
podendo, por isso, seus os efeitos ser destruídos ou afectados por actos de disposição do devedor. Em
termos aproximados, Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2142, adiantando que a garantia real que
assegura obrigações futuras ou sujeitas a condição suspensiva produz efeitos relativamente a terceiros
desde a data da sua constituição, embora apenas possa ser executada se a condição se vier a verificar ou a
nascer antes de iniciada tal execução.
736
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 88 a 90 e Marques de Carvalho, ob. cit.,
págs. 16 e 17. Se ao penhor for junto um pacto anticrético, o primeiro Autor aponta (cfr. pág. 89, nota
158), como soluções alternativas ao gozo do bem por parte do credor pignoratício e sempre que o
nascimento do crédito for incerto, o dever deste entregar aos proprietário os frutos percebidos, a
percepção dos frutos por parte do titular do bem empenhado ou, caso se trate de bens não perecíveis, a sua
guarda por esse mesmo sujeito. Todavia, julga preferível atribuir ao credor pignoratício o poder de
recolha dos frutos, embora, enquanto não for seguro o surgimento do crédito, este deverá guardá-los ou,
se forem deterioráveis, vendê-los (admitir a solução contrária - a entrega dos frutos e, por maioria de
razão, a sua percepção pelo proprietário – significaria desfalcar o direito de penhor).
737
Socorrendo-nos das palavras elucidativas de Faggella, ob. cit., págs. 37 e 38, “Il diritto di pegno, per
quanto accessorio, è sempre un diritto a sè, diverso, nella sostanza e nella forma, dal diritto che deve
188
Este direito de penhor, nascido nos termos acabados de expor, extinguir-se-ia,
sendo um crédito condicional, quando a condição não se verifica ou se torna seguro que
se não pode verificar ou, tratando-se de crédito futuro, se o direito não nasce ou se
constata não poder vir a nascer.738
Em alternativa, poder-se-á considerar o direito do credor pignoratício, entre o
momento da constituição da garantia e o nascimento do crédito garantido, como
condicional, permanecendo a sua eficácia suspensa até ao surgimento (eventual) do
crédito.739
No entanto, como bem salienta VAZ SERRA,740 as consequências que advêm da
opção por esta segunda concepção, em comparação com a anterior, não são relevantes,
na medida em que todos os direitos atribuídos ao credor pela consideração do direito do
credor como actual desde a constituição da garantia também lhe seriam concedidos de
acordo com este segundo entendimento, pois também ao titular de um direito
condicional deverão ser outorgados os meios para a sua conservação, uma vez que a
verificação da condição ou o surgimento dos créditos futuros terá efeitos retroactivos à
data da constituição da garantia.
Nesta conformidade, em caso de concurso entre um penhor constituído em
garantia de créditos futuros e de outro, posterior, surgido para assegurar créditos actuais,
o direito do primeiro prevalecerá (desde que o crédito futuro nasça antes da abertura do
concurso de credores ou não se tenha extinto entretanto), do mesmo modo que
garantire, e la sua esistenza non à logicamente e giuridicamente impossibile prima del diritto garentito.
Cadrà, se questo non sorgerà, ma non à impossibile che abbia una vita anteriore. Il legame deve esistere,
ma non è assolutamente necessário che sia coevo al diritto assicurato. Non è giuridicamente impossibile
un’assicurazione anteriore alla nascita del diritto assicurato, vale a dire una sfera di limitazione dei
poteri del debitore anche di fronte ai terzi sulle cose che sono oggetto del diritto di pegno.”,
acrescentando que as reticências a esta posição derivam de um erróneo entendimento do princípio da
acessoriedade, o qual “non importa una inerenza assoluta del diritto accessorio al diritto principale, per
modo che il diritto accessorio non possa esistere che dal momento della vita del diritto principale. La sua
esistenza può incominciare in un período anteriore e assicurare un diritto futuro da anteriori pericoli di
una diminuzione del patromonio del debitore (…)”, apontando como exemplo paradigmático a abertura
de crédito por parte das instituições bancárias aos seus clientes. No mesmo sentido, Mauro Bussani, Il
modello cit., pág. 171 e segs. (distinguindo entre os penhores constituídos em garantia de créditos futuros
– “la cui efficacia rimarrebbe semplicemente sospesa fino alla venuta ad esistenza del credito” - ou de
créditos condicionais ou a termo, mas assegurando que, relativamente a todos eles, “allorquando il
credito venga ad esistenza, il diritto di prelazione, nonché la indisponibilità del bene rispetto a terzi
acquirenti, prenderanno data dal momento della costituzione del pegno, e non dal momento della nascita
del credito”, para além do surgimento, ab initio, de um direito de retenção “a favore del creditore cui
venga consegnata la cosa corporale: nel senso che il costituente non potrà chiedere la restituzione della
cosa per tutto il tempo stabilito per la eventuale nascita di un qualsiasi credito fra le stesse parti”).
Considerando, igualmente, que o princípio da acessoriedade não colide com a possibilidade de um penhor
garantir obrigações futuras, vide Barrada Orellana, ob. cit., págs. 56 e 57, que afirma “no cabe impedir
que la voluntad de los interessados aprecie, anticipadamente, el interés a satisfacer y su eventual
protección referiéndolo a la deuda futura y alterando el orden cronológico de la formación del negocio
jurídico”.
738
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 90 e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, págs.
685 e 686.
739
Neste sentido, Realmonte, Il pegno cit., págs. 635 e 636, bem como outros autores aí citados e,
parcialmente, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 57, que sugere existir uma situação de pendência, no
aguardo da verificação dos elementos complementares necessários à formação do negócio jurídico, mas
considera esta situação diversa da condição suspensiva.
740
Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 91. Por esse motivo e também por não competir ao legislador tomar
partido entre discussões de natureza meramente conceptual, entende o citado Autor não caber à lei
pronunciar por nenhuma das concepções em detrimento da outra.
189
prevalecerá, em termos análogos, sobre os direitos de outros terceiros entretanto
constituídos sobre o bem onerado).741
Porém, a admissibilidade de o penhor garantir créditos futuros e eventuais não
desonera as partes da necessidade de, até por força dos requisitos gerais dos negócios
jurídicos (cfr. art.º 280.º), determinar a obrigação garantida pois, caso contrário, não
seria possível identificar a obrigação a certificar.742
Importa, ainda, esclarecer que a circunstância de o penhor assegurar uma
obrigação previamente garantida – por exemplo através de fiança – em nada impede a
constituição da garantia pignoratícia, nem tão pouco o surgimento desta implica, salvo
acordo das partes em contrário, a extinção da garantia pessoal.743
Noutra ordem de considerações, o crédito garantido pode encontrar-se sujeito a
excepções peremptórias ou dilatórias.744
VAZ SERRA745 considera, em razão do carácter acessório da garantia, que o
empenhador ou o proprietário do bem empenhado (se for pessoa diversa do
empenhador)746 poderão, em regra,747 opor ao credor as excepções que o devedor possua
contra o crédito.
741
Nesta conformidade, Francesco Pellegrini, Il pegno costituito a favore di piu creditori, Stab. Tip.
Populare G. Abramo, Catanzaro, 1927, págs. 164 a 171. Segundo este Autor, “il pegno è la costituzione di
un diritto reale sulla cosa altrui e si risolve in una alienazione condizionata mediante la
controprestazione che può essere passata, presente e futura (…) I creditori posteriori non possono avere
acquistato sulla cosa se non i diritti superstiti alla alienazione condizionata”. Assim sendo, a verificação
da condição produz efeitos retroactivos, de modo que os posteriores adquirentes de direitos sobre o bem
empenhado devem respeitar o penhor anteriormente constituído, o mesmo sucedendo com os credores
quirografários. Se, porém, algum dos credores posteriores, legitimamente, desencadeie a venda do bem
previamente empenhado em tutela de um crédito futuro, sem que este ainda se tenha vencido, este último
credor apenas poderá exigir do empenhante o ressarcimento dos danos decorrentes da impossibilidade de
sobrevivência do contrato, mas não considerar esta circunstância como um incumprimento culposo da
parte deste.
742
Acerca deste aspecto, vide infra n.º 2.1 do Capítulo II.
743
Assim, para o direito italiano, Francesco Caringella, ob. cit., págs. 3550 e 3551.
744
Cano Martínez de Velasco, ob. cit., pág. 90, entende que o devedor do crédito não pode opor ao credor
pignoratício os créditos que detenha sobre o seu próprio credor: todavia, admite que, quando não tenha
consentido na constituição da garantia, pode opor todos os créditos anteriores à constituição desta (e se o
penhor nem sequer lhe for notificado, pode opor a compensação relativamente a qualquer crédito). Finez
Ratón, ob. cit., págs. 215 e 216, entende que, uma vez celebrado o contrato de penhor de crédito, todos os
negócios sobre este celebrados entre o empenhante e o devedor do crédito empenhado serão ineficazes
face ao credor pignoratício, podendo o terceiro devedor fazê-los valer contra este último quando sejam
anteriores ao conhecimento do negócio de garantia (porém, descarta que, perante a cobrança por parte do
credor pignoratício, o terceiro devedor possa opor a compensação dos crédito que possua contra aquele –
por falta de reciprocidade entre ambos os créditos – excepto se o empenhante o consentir ou quando tenha
havido uma cessão do crédito garantido em benefício do credor; ao invés, o terceiro devedor poderá opor
ao empenhante, quando este pretenda cobrar o crédito onerado, as excepções relativas à validade do
penhor, evitando assim pagar a um sujeito não legitimado para o efeito).
745
Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág.93, acrescentando que este direito deverá existir mesmo que o devedor
haja renunciado à invocação das excepções (caso contrário, ficaria nas mãos do devedor prejudicar o
empenhador ou o proprietário).
746
Relativamente ao terceiro empenhante e na senda do que foi referido anteriormente, este garantirá a
obrigação principal nos termos em que esta subsista em determinado momento. Ao invés, não poderão ser
opostas por outros eventuais interessados, como sejam os titulares de outros direitos reais sobre a coisa
empenhada (neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 96 e 97, considerando que, sendo
excepções do devedor, não terão aqueles sujeitos qualquer título que legitime a sua invocação).
747
Aponta como desvios à regra, na senda do direito alemão, a excepção da prescrição e da limitação da
responsabilidade do herdeiro, entendendo que a invocação destas deve depender exclusivamente o
devedor, o qual poderá preferir, por motivos válidos, delas não se fazer valer. Para além disso, considera,
dada a analogia das situações, não dever o empenhador (ou o proprietário) poder opor as excepções que
são recusadas ao fiador. Por força desta analogia, deverá ser atribuído ao empenhador (e ao proprietário) a
190
A principal dúvida, porém, diz respeito às excepções pessoais do devedor,
sustentando alguns que estas poderão ser opostas pelo proprietário ou pelo empenhador,
nomeadamente as relativas a vícios de capacidade ou de vontade do devedor (pelo
menos no caso do terceiro garante, uma vez que este assegura a obrigação principal, nos
termos em que esta subsista em cada momento),748 enquanto VAZ SERRA se pronuncia
em sentido contrário, recusando a analogia com a posição do fiador.749
Quando seja legítimo ao empenhador ou proprietário do bem dado em garantia
opor ao credor da obrigação principal determinadas excepções (sejam as que resultam
das respectivas relações directas com o credor, sejam as decorrentes das relações entre o
credor e o devedor que por aqueles possam ser invocadas), importa distinguir consoante
sejam de cariz dilatório ou peremptório.
No que às primeiras diz respeito, serão opostas à venda executiva do objecto do
penhor, mas não a outros direitos do credor pignoratício (como a legitimidade que
assiste a este último para deter a coisa até integral pagamento), por ser para fazer face a
esse prejuízo que se visa acautelar.
Quando a excepção for de natureza peremptória, ao invés, ao empenhador ou ao
proprietário assiste legitimidade para exigir a entrega da coisa, uma vez que o penhor,
atento o carácter peremptório desta excepção que afecta o crédito, fica sem razão de
existir.
Estas excepções, que terão de ser alegadas pelos interessados, não constituem
direitos de recusar uma prestação, mas apenas faculdades ao dispor dos seus
beneficiários para se oporem ao exercício do penhor, nenhuma delas operando a
extinção da garantia.
A resposta a dar à interrogação relativa à possibilidade de invocar as excepções
pessoais do devedor, por parte do terceiro dador da garantia ou do proprietário não
empenhante, encontra-se no art.º 698.º (aplicável ao penhor por remissão do art.º 678.º),
consentindo a qualquer destes sujeitos opor ao credor pignoratício os meios de defesa
que o devedor possua contra o crédito, ainda que o devedor a eles tenha renunciado,
com exclusão das excepções que são recusadas ao fiador (n.º 1), dispondo ainda da
faculdade de se opor à execução quando o devedor puder impugnar o negócio de onde
provém a obrigação garantida (ou o credor puder satisfeito por compensação com um
crédito do devedor ou este tiver a possibilidade de se valer da compensação com uma
dívida do credor - cfr. n.º 2).
Significa isto que, para este efeito, aqueles terceiros são equiparados ao fiador
(cfr. art.ºs 637.º, n.ºs 1 e 2 e 642.º, n.ºs 1 e 2), podendo invocar não apenas os meios de
defesa próprios, como os do devedor, com excepção, relativamente a estes últimos, dos
que sejam incompatíveis com a obrigação assumida pelo terceiro750 (restrição esta que,
naturalmente, vigora apenas para o terceiro dador da garantia, mas não para o terceiro
proprietário não empenhante).
191
Questão diversa respeita à extensão do penhor aos acessórios do crédito
assegurado, ou seja, determinar se a garantia é passível de alargamento aos juros,
coimas, penas convencionais e despesas judiciais destinadas a obter o ressarcimento do
crédito.
De entre todos estes acessórios, o n.º 1 do art.º 666.º apenas faz alusão aos juros,
os quais, por isso, se encontram inequivocamente abrangidos pela garantia.751
Mais ainda, se relativamente a outras garantias (vejam-se os casos da hipoteca e
dos privilégios creditórios)752 a lei impõe um limite temporal quanto aos juros
assegurados, no que concerne ao penhor o Código limita-se a afirmar que a garantia
pignoratícia a eles se estende, sem mais.
Deste modo, afigura-se que a garantia se amplia por forma a compreender a
globalidade dos juros vencidos pelo crédito assegurado, com o único limite de 5 anos,
resultante do prazo da respectiva prescrição (cfr. art.º 310.º, alínea d)).
No entanto, várias vozes contestam esta solução, propondo uma restrição da
dimensão dos juros, como sucede com VAZ SERRA, para quem “Parece razoável que
abranja os juros respeitantes ao ano contratual em curso à data da penhora ou da
citação para venda ou adjudicação do penhor, ao tempo anterior a esse ano, decorrido
após a constituição do penhor, e ao posterior a ele. Mas, quanto a este último período,
não excederia o montante do juro legal”.753
Referindo-se a lei à dilatação da garantia pignoratícia de modo a abranger os
juros, é admissível questionar se todos os montantes devidos àquele título estarão
cobertos pelo penhor.
Ao debruçarmo-nos sobre outra garantia, os privilégios creditórios, e perante um
preceito que, em termos similares ao n.º 1 do art.º 666.º (cfr. art.º 734.º), se refere, sem
mais, à extensão aos juros, propusemos a restrição da garantia aos remuneratórios,
excluindo os moratórios e indemnizatórios.754
751
Diferentemente, o §1210 do BGB prevê que o penhor responde pelo crédito no respectivo estado,
nomeadamente pelos juros e cláusulas penais (n.º 1), bem como pelos direitos do credor pignoratício por
indemnização por benfeitorias e pelas despesas de rescisão e de reclamação judicial, bem como pelos
custos da venda do penhor (n.º 2). Interpretando estes dados, Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1511 e 1512, entendem que o penhor
abrange todo o tipo de juros (embora como os limites, decorrentes da proibição da usura), bem como as
eventuais despesas e penas convencionais, excepto quando se dê uma ampliação do crédito e a garantia
tenha sido constituída por um não proprietário ou quando o originário devedor e empenhante aliena o bem
e, posteriormente, acorda com o credor pignoratício um aumento da responsabilidade assegurada: nestes
casos, aquela ampliação não importa ampliação do âmbito de cobertura da garantia (por outro lado, os
Autores recusam a validade de um convénio celebrado entre o empenhante e o credor pignoratício, em
data posterior à da constituição da garantia, no sentido de ampliar esta em prejuízo dos demais credores
do empenhante).
752
Nos termos do art.º 693.º, n.º 2, a hipoteca nunca abrange, mesmo com convenção em contrário, os
juros de mais de três anos (acrescentando o n.º 3 que isso não impede o registo de nova hipoteca
relativamente aos juros em dívida), dispondo o art.º 734.º que os privilégios creditórios apenas abrangem
os juros relativos aos últimos dois anos. Salienta a diferença face a estas outras garantias Pestana de
Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 233 (embora, ao afirmar que os juros não sofrem de qualquer
limitação temporal, pode induzir em erro e fazer esquecer o regime de prescrição dos mesmos).
753
Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 100, justificando esta restrição com a duração longa das execuções,
muitas vezes por responsabilidade dos próprios credores pignoratícios e apontando como exemplo o art.º
2788.º do CCI. Na hipótese de os juros convencionais serem inferiores aos legais, o Autor afirma dever
atender-se ao montante dos primeiros.
754
Vide o nosso Dos privilégios cit., págs. 69 a 71, onde citamos opiniões concordantes, maioritárias
(nota 142), e discordantes (nota 143). Acerca da distinção dos juros, consoante a respectiva função, em
remuneratórios (tendentes a exprimir o rendimento do capital em termos financeiros, o capital como
factor produtivo), compensatórios (visam corresponder à simples privação do capital) moratórios
(devidos, a título de reparação, pelo não cumprimento atempado de uma obrigação pecuniária) e
192
No entanto, os dois principais argumentos então aduzidos para sustentar a nossa
posição – o carácter excepcional da figura do privilégio creditório e a sua concessão
tendo em conta unicamente a qualidade do crédito por ele tutelado755 – não valem para o
penhor, razão pela qual nos inclinamos para a inclusão no âmbito da garantia
pignoratícia de todos os juros devidos, independentemente da respectiva função
específica.
Aludindo o já mencionado n.º 1 do art.º 666.º apenas aos juros, omitindo
qualquer referência aos demais acessórios, deverão estes últimos considerar-se, por isso,
não abrangidos pelo penhor?756
Noutra sede e perante um preceito idêntico,757 propugnámos a restrição da
garantia aos juros, com exclusão dos demais acessórios do crédito, nomeadamente
confrontando este silêncio do legislador com a norma que, a respeito da hipoteca,
admite a extensão da garantia aos acessórios do crédito, para além dos juros, que
constem do registo (art.º 693.º, n.ºs 1 e 2).758
VAZ SERRA759 advoga a solução contrária, por considerar que o penhor garante
o crédito nos exactos termos e montante que este assumir em cada momento e, ademais,
indemnizatórios (relacionados com o não cumprimento definitivo de uma obrigação), vide, por todos,
Almeida Costa, Direito das obrigações cit., pág. 696.
755
Relativamente a este aspecto e no que concerne aos juros moratórios, acrescentamos outro
fundamento, realçando que “os juros devidos em consequência do não cumprimento ou da mora são
prestações derivadas de circunstâncias alheias à causa do crédito motivadora da concessão do
privilégio.” – cfr. ob. cit., pág. 69.
756
Não parece que o art.º 672.º, n.º 1, – na parte em que estabelece o pacto anticrético e determina a
imputação dos frutos às despesas efectuadas com o bem onerado – resolva a questão, porquanto uma
coisa é afirmar que o credor pignoratício tem direito ao reembolso dessas despesas e outra, bem diferente,
é declarar que tal crédito se encontra garantido pelo penhor que garante a obrigação principal. Em termos
análogos, para o direito espanhol (em cujo art.º 1867.º expressamente se afirma o direito do credor
pignoratício ao reembolso das despesas havidas com a conservação do bem empenhado), Arnau
Raventós, ob. cit., pág. 479, esclarece que tal preceito se limita a atribuir ao credor o direito ao pagamento
de tais despesas, sem responder à questão de saber se o penhor as garante (questão à qual o Autor
responde negativamente, argumentando que a lei distingue claramente dívida, juros e despesas,
parecendo, por isso, difícil que estas última caibam no âmbito da dívida garantida).
757
Cfr. o nosso Dos privilégios cit., págs. 68 e 75, onde, a propósito do art.º 734.º, o qual, de entre os
diversos acessórios do crédito privilegiado, também se refere apenas aos juros.
758
Curiosamente, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 100, entende, de jure condendo, que as
restrições ao alargamento da garantia aos acessórios do crédito deverão ser mais reduzidas no caso do
penhor do que na hipoteca, porquanto esta última afecta, em regra, mais gravemente os interesses de
terceiros.
759
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 97 e 98 e, em termos análogos, Rubino, Il pegno cit., pág. 192,
considerando que “Il pegno garantisce anche qualsiasi aumento del credito che si determini dopo la
costituzione della garanzia” (apontando como exemplo os danos resultantes do incumprimento da
obrigação principal), Faggella, ob. cit., págs. 28 e 29 (pugnando pela inclusão no domínio da garantia dos
juros e das despesas, salvo convenção das partes limitando a garantia ao capital) e Chironi, ob. cit., pág.
443 e segs. (fundando-se no princípio geral segundo o qual a garantia “segue l’obbligazione nei vari modi
con cui s’atteggia (…). L’obbligazzione, senza mutar neppure nel modo di essere, può mutare di
comprensione a causa dell’accedervi di qualche ragione di credito, ch’esista in dipendenza assoluta di
essa”, desde que não exista novação daquela obrigação, apontando como exemplo a transformação da
obrigação inicial incumprida numa obrigação de indemnização e, inequivocamente, os juros moratórios –
já quanto aos juros entendidos como frutos civis e embora sejam acessórios do crédito garantido, “non vi
accedono di necessità seconde accade per i danni-interessi (legali), ed ocorre perciò vi sia estesa
manifestamente” - e as despesas destinadas à execução específica ou na forma de ressarcimento do dano:
todavia, o Autor admite que, por vontade, das partes, alguns acessórios podem ser excluídos da órbita da
garantia). Para Gabrielli, Il pegno cit., págs. 93 e 94, a generalidade das despesas efectuadas pelo credor e
relativas ao crédito deverão estar abrangidas pela garantia (apontando como exemplos as relativas à
constituição do penhor, à cobrança da dívida e à custódia do bem empenhado, excluindo, porém, as
respeitantes ao ressarcimento dos danos por incumprimento), argumentando que, nos termos do art.º
193
por entender que tal corresponde à finalidade usual do penhor, muito embora admita a
possibilidade de as partes convencionarem diversamente.760
De acordo com este Autor, o penhor abrangeria, além dos juros, as designadas
prestações secundárias, categoria em que se incluiriam as penas convencionais, as
despesas originadas pela conservação da coisa,761 as custas judiciais e os gastos com a
venda da coisa empenhada.762
Todavia, mesmo optando por excluir todas estas prestações secundárias da órbita
do penhor que assegure o crédito principal, muitas delas poderão ser garantidas de outra
forma, nomeadamente através do privilégio mobiliário especial outorgado a quem
efectuar despesas de justiça destinadas à conservação, execução e liquidação dos bens
no interesse dos credores (cfr. art.º 738.º, n.º 1), sendo este graduado antes de todas as
demais garantias que onerem os mesmos bens ou, tratando-se das custas judiciais, as
mesmas sairão precípuas do produto da venda dos bens penhorados (art.º 455.º do
CPC), ou seja, neste último caso esses montantes serão satisfeitos antes mesmo da
abertura do concurso de credores.
Por isso, apenas ficarão desprotegidos os créditos decorrentes de despesas não
abrangidas por aquele privilégio763 ou não resultantes de um processo executivo,764 bem
como as decorrentes da aplicação de penalidades convencionais.
2794.º do CCI, o constituinte da garantia apenas poderá exigir a devolução do bem senão depois de
liquidado o débito garantido e as despesas relacionadas com o débito e com o penhor (muito embora este
preceito apenas conceda ao credor pignoratício um direito de retenção, entende que, dada a identidade de
motivos, também o direito de preferência lhe deve ser atribuído). Defende igualmente a extensão do
penhor aos juros e às despesas de conservação do bem, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 556
(relativamente aos primeiros, porque se deve presumir que a garantia os abrange; quanto às despesas, por
aproveitam aos demais credores).
760
O Autor sustenta que destinando-se a convenção a reduzir a responsabilidade do bem dado em garantia
parece que poderá ser acordada entre o credor e o empenhante, mesmo que este último não seja o
devedor, pese embora para este possa resultar um prejuízo (ao invés, as convenções destinadas a ampliar
a responsabilidade da coisa empenhada apenas poderão ser pactuadas pelo credor e pelo devedor se este
último for o proprietário do bem empenhado e, mesmo nesses casos, essa posterior ampliação não
produzirá efeitos relativamente a quem tenha direitos reais constituídos posteriormente ao do credor
pignoratício).
761
Distinguindo consoante se trate de despesas necessárias – em relação as quais a extensão do penhor se
afigura indubitável – ou úteis, a respeito das quais admite que a solução varie em função dos casos e,
designadamente, da existência ou não do direito do credor pignoratício usar a coisa dada em garantia –
cfr. ob. cit., pág. 100. Em face do direito brasileiro, Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 344,
entende que as despesas originadas pela conservação do bem (assim como os prejuízos resultantes dos
vícios da coisa onerada) estão abrangidos, senão pela garantia pignoratícia na sua totalidade, pelo menos
pelo poder de retenção.
762
Sustenta, de modo geral, a extensão da preferência garantida pelo penhor a todos os acessórios do
crédito, Guilherme Moreira, apud Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 100.
763
Como referimos no nosso Dos privilégios cit., págs. 237 e segs., nem todas as despesas de justiça serão
abrangidas por este privilégio, exigindo antes a verificação cumulativa de três requisitos: devem ser
efectuadas no âmbito de um processo (embora não necessariamente judicial), devem ser contraídas para o
pagamento de serviços prestados a pessoas ou entidades cuja cooperação seja necessária ao
prosseguimento do processo e, finalmente, devem ter sido levadas a cabo no interesse comum dos
credores, isto é, ser susceptíveis de aportar um benefício a todos eles, não podendo, em conformidade, o
privilégio ser oposto a um credor a quem as despesas não tenham aproveitado (podendo, ainda assim,
considerar-se privilegiadas as que, proporcionando um benefício a todos os credores, consagrem uma
utilidade pessoal para quem as tenha efectuado, mas não naqueles casos em que os gastos se destinem
unicamente a obter uma vantagem particular, a regularizar a situação de um credor para com o devedor ou
a procurar obter deste uma garantia).
764
Aqui o termo “executivo” é utilizado como antónimo de “declarativo” e não em contraposição com
“não executivo”, pois esta segunda hipótese implicaria a impossibilidade de as despesas com o processo
de venda não executiva (consentida pelo art.º 675.º, n.º 1) serem, de acordo com a tese mais restritiva)
194
Contudo, relativamente a estas últimas, a sua função de ressarcir os danos
resultantes da mora ou do incumprimento definitivo do devedor levam a equipará-las,
para este efeito, aos juros moratórios ou indemnizatórios, afigurando-se, por isso,
legítima a sua inclusão no âmbito da garantia que protege o crédito principal.
A respeito da fiança,765 JANUÁRIO DA COSTA GOMES, destaca que do
princípio geral segundo o qual a garantia assegura o crédito nos termos em que este se
encontre no momento da execução daquela, decorre que a garantia responde pelas
consequências legais e contratuais do perturbação da obrigação principal,
nomeadamente pela mora e pelo incumprimento definitivo,766 como sucede em caso de
cláusula penal,767 de sanção pecuniária compulsória legal,768 de cumprimento
defeituoso,769 de resolução do contrato principal por parte do credor,770 de
impossibilidade da prestação por facto não imputável ao devedor771 e das despesas do
credor para cobrança do seu crédito ao devedor,772 mas já não sendo prejudicado pela
perda do benefício do prazo eventualmente aplicada ao devedor.773
abrangidas pelo penhor (por serem um acessório não indicado por lei, e/ou pelo privilégio por despesas de
justiça (uma vez que este pressupõe a realização de gastos com a execução do bem).
765
A respeito da hipoteca, o art.º 693.º, n.º 1, dita que a garantia apenas abrange os acessórios (segundo
Meneres Campos, ob. cit., pág. 79, todos eles, desde juros, a despesas de registo e constituição da garantia
até cláusulas penais) que constarem do registo.
766
Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 607 e segs., concluindo que havendo “evolução, na esfera do
devedor, do dever de prestar para dever de indemnizar, idêntica evolução ocorre a nível da obrigação
fidejussória, passando o fiador a responder também pela indemnização devida”.
767
Enquadrando as cláusulas penais nas consequências contratuais do incumprimento da obrigação
garantida por parte do devedor, pelo menos no que toca às cláusulas penais moratórias e compensatórias
(dúvidas se suscitam relativamente às puramente indemnizatórias, propondo o Autor a mesma solução
para as liquidatórias – em que é antecipadamente fixado o montante da indemnização -, mas rejeitando a
sua aplicação às exclusivamente sancionatórias, por se tratar de uma verdadeira pena que acresce à
prestação ou à indemnização devida).
768
Nos termos do n.º 4 do art.º 829.º-A, esta sanção existe sempre que esteja em causa o não
cumprimento de uma obrigação de pagamento em dinheiro corrente. Pelo contrário, nas prestações de
facto infungível (art.º 829.º-A, n.º 1), a sanção terá que ser decretada pelo tribunal, a pedido do credor,
impondo-se a solução contrária, porquanto não se justifica “que a responsabilidade do fiador possa
abranger, antecipadamente, as quantias pecuniárias pedidas pelo credor como técnica coercitiva de, na
falta de aptidão da tutela executiva, garantir a actuação específica da condenação no cumprimento da
prestação” – ob. cit., pág. 613.
769
Nos exactos termos em que se produzam as consequências desse incumprimento e que podem ser, a
solicitação do credor, a rectificação do cumprimento, a substituição da prestação ou uma indemnização
autónoma.
770
Uma vez que a resolução integra o arsenal de mecanismos ao dispor do credor para reagir contra o
incumprimento por parte do devedor, até porque “não faz sentido algum que o credor possa ficar
despojado da garantia pelo facto de, seguindo uma das vias alternativas que tem ao seu dispor, optar por
resolver o contrato em vez de o executar” – ob. cit., págs. 616 e 617.
771
“Não vemos impedimento a que, estando o devedor obrigado a responder face ao credor mesmo no
caso de impossibilidade não culposa de realização da prestação, a fiança cubra essa responsabilidade;
não passa, de facto, a fiança a ser mais onerosa do que a dívida principal, mantendo-se rigorosamente
limitada aos termos da mesma” – ob. cit., pág. 619.
772
Distinguindo, porém, as relativas a despesas extra-judiciais (cobertas, sem mais, pela garantia), das
decorrentes de processos chegados a tribunal (em que tal cobertura pressupõe uma prévia intimação ao
prestador da garantia para as evitar).
773
Por força do art.º 872.º, nos termos do qual a perda do benefício do prazo não se estende aos co-
obrigados do devedor, nem tão pouco a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer
garantia, de modo que “se o credor pretender obter, logo, uma vez provocado o vencimento da
obrigação, a totalidade do seu crédito, terá de o exigir do devedor, cujas possibilidades económicas de
satisfação poderão não ser encorajantes; se, ao invés, optar por exigir sucessivamente as prestações, de
acordo com o calendário traçado, tem à sua disposição, para cada uma delas, os patrimónios do devedor
principal e do devedor” (ob. cit., pág. 220).
195
Importa, todavia, realçar que esta última posição encontra apoio expresso no art.º
634.º, de acordo com o qual a fiança cobre as consequências legais e contratuais da
mora ou culpa do devedor, faltando disposição idêntica em sede pignoratícia.
Todavia e chamando à colação o argumento de maioria de razão, se a garantia se
espraia deste modo mesmo quando é prestada por terceiro e abarca todo o seu
património, o mesmo efeito se deve produzir quando a garantia é fornecida por terceiro
e se encontra circunscrita a determinado ou determinados bens (e, mais ainda, quando a
garantia é prestada pelo próprio devedor).
De entre os acessórios do crédito garantido contam-se os decorrentes de
benfeitorias efectuadas pelo credor pignoratício, as quais serão objecto de análise mais
aprofundada aquando do estudo dos direitos do credor pignoratício.774
774
Vide infra n.º 9.1 do Capítulo I.
775
Juntamente com outros, como por exemplo o mútuo e o depósito.
776
Entre nós, vide, por todos, Almeida Costa, Direito das obrigações cit., págs. 926 e 927 (incluindo, na
nota 2, este contrato no âmbito dos contratos reais quoad constitutionem) e, noutras latitudes, entre muitos
outros, Paz-Ares Rodriguez, ob.cit., pág. 1874 (justificando que “su perfección exige la entrega de la
cosa, la puesta en posesión de la misma en la esfera de disponibilidad del acreedor o de un tercero, sin
tal entrega existirá una simple promesa de constituir prenda”), De la Santa García, ob. cit., pág. 59, e
Silvio de Salvo Venosa, ob. cit., pág. 556. Para além disso, será também um contrato real quanto aos
efeitos, na medida em que serve de base à criação de um direito real (muito embora também esta
qualificação possa ser colocada em dúvida por todos aqueles que negam o carácter real do penhor). Um
tanto divergentemente, Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 486 e 487, alega que apenas se o
contrato de penhor for gratuito e não reduzido a escrito terá carácter real (nos demais casos e a ainda que
não se produza a entrega da coisa no momento da celebração do contrato, “tal contrato es perfecto desde
que se otorga y a partir de tal momento incumbe al pignorante la obligación de entregar la cosa
empeñada, sin cuya entrega no surgirá el derecho real de garantía”), embora o Autor reconheça que a
generalidade da jurisprudência se orienta em sentido contrário, defendendo a indispensabilidade da
entrega para a perfeição do contrato.
777
Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 128 e segs., explica que, quando se celebra um contrato
destinado à transferência de um direito real, aquela transferência não se produz no momento e por mero
efeito da celebração do contrato, sendo ainda necessária a tradição (isto é, “que, con ánimo de transmitir
(por parte del que da) y de recibir (por la del que toma) se entregue al adquirente la posesión del
derecho de que se trate”), justificando Bercovitz Rodíguez-Cano, Manual de derecho civil cit., pág. 46, a
196
No entanto, esta posição tem vindo a sofrer diversas críticas, sobre as quais
teremos oportunidade de nos pronunciar sucessivamente ao abordar a problemática dos
possíveis modos de constituição da garantia pignoratícia.778
Seja como for, o contrato de penhor continua a ser configurado
predominantemente como um contrato real quanto à constituição – pelo menos quando
seja imposta a entrega material do bem ao credor ou a terceiro - no sentido em que o
consagração deste sistema com a tradição romanista que impunha vontade, a entrega e a causa como
requisitos cumulativos de aquisição de direitos reais. Mais concretamente, o título e modo significam,
respectivamente, fundamento jurídico ou acto através do qual se estipula a vontade de constituir um
direito real (v.g. compra e venda) e o acto através do qual se realiza efectivamente materializa e realiza a
transmissão do direito, de modo que “Sin modo subsiguiente, el título es insuficiente para producir la
adquisición del derecho real. Sin título previo, la entrega (el modo) no transfiere (...) el derecho real” (ou
seja, o processo de aquisição desdobra-se em duas etapas, “En la primera, como consecuencia del título,
el futuro adquirente recibe ya un derecho de crédito a que el futuro transmitente le tranfiera el derecho
real de que se trate (…). Uno puede exigir y el otro debe realizar una prestación: la conducta que
consiste en transmitir el derecho real. En la segunda etapa, el enajenante cumple su obligación, que
consiste en realizar el modo o acto transmissivo del repetido derecho”). Todavia, o Autor salienta que
este modo de constituição dos direitos reais vale apenas para os de origem contratual (embora, para estes,
valha para qualquer deles, móveis ou imóveis, propriedade ou direitos reais limitados, desde que
susceptíveis de posse, o que elimina do seu campo de aplicação, por exemplo, a hipoteca, para a qual se
exige unicamente a inscrição no registo), com exclusão dos que se constituam por via sucessória, legal ou
judicial. Finalmente, esclarece ainda o Autor que a tradição se pode transferir como facto (originando a
chamada tradição real ou colocação em poder ou posse do adquirente) ou como direito (em que não se
verifica aquela entrega material, incluindo aqui as figuras da traditio brevi manu, do constituto
possessório e da tradição por mero acordo das partes): por força da admissibilidade destas formas não
materiais de tradição, Bercovitz Rodíguez-Cano, Manual de derecho civil cit., pág. 48, recusa que,
actualmente, possa ser atribuída à entrega qualquer função publicitária, atribuindo-lhe somente um papel
de pressuposto jurídico da transmissão dos direitos reais.
778
Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 35 a 42, destaca como a teoria clássica, que defende a natureza real
quanto à constituição do contrato de penhor (admitindo, quando muito e na ausência da entrega do
objecto da garantia ao credor, a existência de um contrato-promessa de penhor), tem sido contestada por
aqueles que negam a natureza convencional da obrigação de restituição (considerando que “l’obligation
de restituer ne découlerait pas du contrat, mais de la loi ou plus exactement du fait juridique de la
possession de la chose d’altrui: il n’y aurait donc pas à proprement parler de contrats réels”), assim
como por quem sustenta que “la promesse de donner une chose en gage seraît le contrat de gage lui-
même et la remise de la chose ne seraît que l’exécution de l’obligation du constituant de fournir le gage”
(enquanto a obrigação de restituição do bem decorreria simples consentimento das partes, supondo a
prévia entrega ao credor e a liquidação da dívida garantida: em suma, o contrato de penhor é configurado
como um contrato sinalagmático, gerando obrigações para ambas as partes). O Autor, apesar de
reconhecer os méritos destas posições alternativas, especialmente da segunda, recusa-as (a primeira pois,
a admitir-se, não haveria obrigações decorrentes do contrato de penhor, enquanto a segunda parte duma
comparação com a locação, esquecendo que neste último contrato existe uma obrigação legal do senhorio
empossar – e garantir a manutenção da posse - o locatário, ao contrário do penhor em que o constituinte
se libera pela entrega do bem ao seu credor) sobretudo porque ambas são contrárias ao regime civil do
penhor (anterior à reforma de 2006) no qual se estabelece inequivocamente que o contrato nasce com a
entrega da coisa ao credor. Diaz Moreno, ob. cit., págs. 393 e 394, por seu turno, refere-se a esta categoria
como um resquício histórico, porquanto a menção da entrega nas definições legais desses contratos
deveria ser entendida “como el reconocimiento legal de la hipótesis normal o más frecuente: que la
entrega sea simultánea a la misma perfección del contrato”, não impedindo que a perfeição de contratos
como o penhor se produzisse por mero consentimento dos contraentes em momento anterior ao da
traditio. No pólo oposto, mostra-se particularmente impressivo na defesa da categoria dos contratos reais
quanto à constituição Almeida Costa, Direito das obrigações cit., pág. 285 e segs., argumentando que “Em
face do nosso direito vigente, porém, a categoria dos contratos reais afigura-se indiscutível. Daí que,
nesse plano, a controvérsia não tenha de equacionar-se a propósito do seu reconhecimento, nem sobre se
a entrega de coisa representa mero requisito de eficácia ou de forma de manifestação da vontade, dado
que a lei a considera elemento constitutivo”e, a respeito especificamente do penhor, “a entrega da coisa
tem, desde logo, o manifesto alcance de uma publicidade constitutiva para protecção de terceiros”.
197
direito não nasce senão a partir da data da entrega do bem ao credor ou a terceiro779 (cfr.
n.º 1 do art.º 669.º),780 ou seja, do desapossamento do constituinte e do empossamento
de um daqueles sujeitos.781
Por isso mesmo, sem tal entrega o contrato seria inválido782 (ou, pelo menos,
insuficiente para o surgimento do direito real de penhor), o que, no limite, colocaria em
risco a própria empenhabilidade de determinados bens, especialmente os incorpóreos.783
Antes dessa data, apenas se poderá considerar existir um contrato-promessa de
penhor784 785 ou um direito pessoal contra o concedente da garantia destinado a obter ou
779
Rubino, Il pegno cit., pág. 217, Gino Magri, ob. cit., págs. 15 e 16, Jean-François Riffard, ob. cit., pág.
32, López, Montés e Roca, pág. 442, Serrano Alonso, ob. cit., pág. 265 (afirmando que “La entrega de la
cosa se convierte en elemento esencial de existencia de la garantía pignoratícia de modo que sin la
puesta en poder del acreedor de modo real y material de la cosa no hay derecho real de prenda”) e, para
o penhor irregular, Arturo Dalmartello, Il pegno irregolare cit., pág. 333.
780
Já o Código de Seabra incluía uma referência à entrega da coisa – ao credor ou a quem o represente -
na definição de penhor (cfr. art.º 855.º), acrescentando que o contrato de penhor apenas produzia efeitos,
entre as partes, pela entrega da coisa empenhada (cfr. art.º 858.º). Como bem nota Paulo Cunha, ob. cit.,
pág. 179, o afirmar que a entrega se pode fazer ao credor ou a quem o represente equivale a referir apenas
o primeiro, pois no segundo caso o funcionamento da representação faz com que a entrega seja, em
termos jurídicos, efectuada ao representado.
781
Prefere falar de transferência da detenção, e não da posse, para o credor, Dominique Legais, Les
garanties conventionelles cit., pág. 29, porquanto este carece do animus domini e, por isso, “ne conteste
en effet nullement la qualité de propriétaire du constituant”.
782
É esta também a posição tradicional da doutrina (cfr. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 109,
“O contrato de penhor é (…) um contrato real, isto é, dependente da entrega. Deriva daqui que, não
havendo entrega, não há penhor, podendo haver um contrato-promessa de penhor”, Oliveira Ascensão,
Direitos reais cit., pág. 289, alegando que sem entrega “não há sequer nenhum válido contrato de penhor.
É o que resulta do art.º 669.º, que arvora a entrega em elemento essencial. Antes disso, haverá quando
muito um contrato-promessa, mas não se constituiu um direito real” e Pestana de Vasconcelos, Direito
das garantias cit., pág. 237) e da jurisprudência nacionais, conforme se alcança, entre outros, dos
Acórdãos da Relação de Lisboa de 15/5/1934 (in Gazeta da Relação de Lisboa n.º 24, pág. 377,
qualificando como nulo o penhor quando a coisa permaneça em poder do devedor), da Relação de
Coimbra de 13/5/1986, (in CJ, 1986, Tomo III, pág. 45 e segs., afirmando que não existe penhor se o
devedor não for desapossado da coisa objecto do penhor), da Relação do Porto de 6/1/2003 (in
www.dgsi.pt, considerando que o penhor de coisas não mercantil só produz efeitos pela entrega da coisa
empenhada, não existindo a garantia sem o desapossamento do devedor), do STJ de 3/1/1969 (in BMJ n.º
183, 1969, pág. 220 e segs.), de 22/2/1990 (in www.dgsi.pt) e de 23/4/1992 (in BMJ n.º 416, 1992, pág.
664 e segs.). Em face do direito francês anterior à reforma de 2006, reconhece ser este o entendimento
dominante Henri Mazeaud, ob. cit., págs. 146 e 147 (embora conteste, de lege ferenda, esta visão,
refutando os dois argumentos normalmente utilizados para sustentar a indispensabilidade da entrega do
bem ao credor, a protecção deste e a necessidade de publicitação da garantia: quanto ao primeiro aspecto,
alega que se o credor se encontra numa posição de supremacia contratual, mal se compreende a
intervenção legislativa no sentido de proteger a parte mais forte contra a parte mais fraca, devendo este
assunto ser regulado pelas partes; relativamente às exigências publicitárias, bastaria a criação de
mecanismos alternativos ao desapossamento, como seja a inscrição no registo); Simon Quincarlet, ob.
cit., pág.35 e segs, noticia que a posição da jurisprudência, parece mais uniforme e aponta no sentido da
adesão à teoria tradicional, embora o Autor não deixe de chamar a atenção para a circunstância de
algumas decisões, admitindo a validade de um contrato de penhor concluído antes do período suspeito
mas em que a entrega do bem apenas tenha ocorrido dentro desse período, argumentando que a entrega da
coisa constitui uma mera execução de uma convenção anteriormente acordada. No mesmo sentido aponta
a jurisprudência espanhola citada por Lerena Cuenca e outros., ob. cit., págs. 509 e 510 (em particular a
sentença do Supremo Tribunal n.º 793/2006, de 21 de Julho, a qual deixa a salvo os regimes especiais que
prescindem do desapossamento do empenhante).
783
Constata este facto Dominique Legais, Les garanties conventionelles cit., págs. 29 e 30.
784
Assim, expressamente, Gino Magri, ob. cit., pág. 16, para quem a simples convenção das partes não
acompanhada da tradição do objecto da garantia traduzir-se-á num “contratto preliminare il quale fa
sorgere un diritto del creditore verso il concedente a che questi si presti a addivenire alla concluisone del
vero e proprio contratto di pegno sulla cosa determinata. In altri termini, quella convenzione è
generatrice di una semplice obbligazione di dare a pegno. La nascita effetiva del rapporto personale e
198
a recuperar a posse do bem para, em seguida, proceder à constituição do penhor786 ou
um contrato inominado cujo cumprimento poderá ser exigido pelo credor ou devedor787
ou, finalmente, um contrato “en tramitación pendente”788 ou de formação
progressiva.789
reale di pegno richiede l’intervento di un nuovo atto del concedente, con cui questi, adempiendo
all’obbligazione assunta nella convenzione, consegni al creditore la cosa. Questo atto di tradizione
costituirà esso il vero contratto di pegno, la cui conclusione può aver luogo anche tacitamente”. Em
termos aproximados, Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 147, destacando tratar-se de um contrato meramente
consensual e que “La situation entre les parties est sensiblement la même que si le contrat de gage était
valable” (por outro lado, o Autor realça não ser exigível que a entrega do bem se faça na mesma data em
que se celebra o contrato de penhor, pelo que, se tal entrega ocorrer posteriormente, o contrato celebrado
foi uma mera promessa de penhor) e Almeida Costa, Direito das obrigações cit., págs. 926 e 927
(afirmando que antes da entrega “haverá, quando muito, um simples contrato-promessa de penhor
(“pactum de pignori dando”). A existência e a persistência do penhor pressupõem, sintetizando, a
publicidade constitutiva que se traduz na posse ou composse”). Acerca da licitude e dos efeitos,
especialmente em caso de incumprimento, de um contrato-promessa de penhor, vide supra n.º 2.4.2.3 do
Capítulo I.
785
Alguns Autores, nomeadamente italianos, fazem apelo à distinção entre título para a constituição
(normalmente o contrato) e acto constitutivo do penhor, pressupondo este segundo momento
necessariamente a entrega do bem ao credor (vide, neste sentido, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 55 e segs.,
afirmando que “dall’atto di concessione del pegno deriva pel creditore il diritto alla sua costituzione
mediante imissione forzata nel possesso di lui o del terzo eletto o nella custodia comune”), posição esta
subscrita por Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 157 (escrevendo ser necessário distinguir entre “el título
para la creación de la prenda , acto jurídico en base al cual el acreedor pignoraticio accederá al bien
pignorado, habitualmente mediante consenso contratual, y, de outra, el acto constitutivo del que se
deriva la desposesión del constituyente y del que surge el derecho de prenda”, concluindo que o contrato
não se encontra sujeito a qualquer formalidade, ao passo que “tanto la doctrina como la jurisprudencia
exigen para la perfección del contrato de prenda manual, no sólo el acuerdo entre los interessados, sino
también la entrega de la cosa”). No que especificamente respeita ao penhor de créditos, Ruscello, ob. cit.,
pág. 22 e segs., nega também a idoneidade do recurso à distinção entre título e constituição do penhor (no
sentido em que a formação do contrato de penhor não se encontra sujeita a nenhuma formalidade nas
relações entre as partes e com terceiros que não sejam credores do concedente, sendo a notificação ou
aceitação do contrato do penhor necessários apenas para que o contrato produza efeitos relativamente aos
terceiros credores do empenhante), considerando que “il pegno di crediti si costituisce a tutti gli effetti nel
momento in cui si vengono a perfezionare, accanto al rapporto principale tra debitore e creditore
pignoratizi, una serie di altri (e talora eventuali) rapporti: il rapporto com il terzo debitore, com gli
(eventuali) acquirenti del credito dato in pegno e, infine, con gli altri possibili creditori” e acrescentando
que não são estas várias relações que incidem sobre a constituição do penhor, mas antes esta que se vai
reflectir naquelas (não sem excluir que a particular disciplina da relação de que emerge o crédito objecto
do penhor possa influenciar a constituição da garantia, nem que assuma uma íntima conexão com os
demais credores do empenhante, tendo em conta a particular situação de crédito-débito existente entre
ambos): em suma, para este Autor o penhor de créditos origina um fenómeno complexo que envolve
diversas relações singulares, todas elas encabeçadas pelo credor pignoratício, encontrando-se no pólo
oposto, consoante os casos, o seu devedor, o devedor do crédito empenhado ou os credores quirografários
(embora reconheça que o núcleo central resulta da relação entre o credor pignoratício e o seu devedor),
não sem que algum dos efeitos do penhor de créditos possa influenciar mais do que uma destas relações
(por exemplo, a notificação ao terceiro devedor do crédito empenhado não é indiferente à relação entre
este e o credor pignoratício, nem à que se estabelece com os eventuais credores pignoratícios, pois a sua
não observância preclude o direito de preferência).
786
Neste sentido, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 67.
787
Adopta esta perspectiva Mirabelli, ob. cit., pág. 385.
788
A expressão pertence a De la Santa Garcia, ob. cit., pág. 171. O Autor, depois de aludir às posições
diversas relativamente à natureza real do contrato de penhor, responde afirmativamente a esta questão,
recusando que, antes da entrega (ou do seu sucedâneo, como a inscrição no registo para o penhor de
valores mobiliários escriturais), se possa admitir concluído inter partes o contrato de penhor, mas
considerando que, na ausência de desapossamento do devedor, não existe tão pouco um contrato-
promessa ou um contrato sob condição suspensiva da entrega do bem (ou do registo da garantia), uma vez
que a verificação da condição produziria efeitos retroactivos (e, por exemplo, para o registo de valores
199
Para alguns, a imposição do desapossamento mais não é do que o corolário de
um confronto de influências entre as hipotecas mobiliárias e o penhor com
desapossamento, da qual este último saiu vencedor.790
mobiliários escriturais a lei afirma inequivocamente que o mesmo apenas produz efeitos para o futuro):
nesta conformidade, afirma que, antes do desapossamento, estamos perante “un contrato en tramitación
pendiente de perfeccionarse, que aunque no es una prenda en sí, sí permite al acreedor exigir al
constituyente de la prenda que proceda a la entrega de la cosa (…) y a exigir una indemnización por
daños perjuicios en caso de incumplimiento”.
789
O mentor desta tese é Rubino, Il pegno cit., págs. 217 e 218 (conforme já se fez alusão – cfr. n.º 2 do
Capítulo I), considerando que o facto jurídico que origina o nascimento do direito de penhor é de natureza
complexa, do qual terá que fazer parte inelutavelmente a entrega do bem ao credor, concluindo que o
direito de penhor apenas surge no momento em que o facto jurídico complexo se completa. Se a entrega
da coisa ocorrer em momento posterior à verificação dos demais elementos (nomeadamente após a
celebração do contrato), apenas nessa data se terá por constituído o penhor; se, ao invés, o credor já tinha
a coisa em seu poder, o penhor considera-se perfeito na data da outorga do título constitutivo - no caso do
contrato, no momento da troca de consentimento dos contraentes – pois o credor já se encontrava de
posse do bem (muito embora alerte para a manutenção do corpus – a detenção material – apesar da
alteração do animus – enquanto antes detinha por força de outro direito próprio, agora passa a deter
também em razão do direito de penhor). Em termos semelhantes, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58,
págs. 108, 109 e 123, afiança não ser suficiente a entrega do bem para a constituição do penhor, sendo
ainda necessário o acordo das partes acerca da constituição do penhor (acrescentando que, sendo o acordo
precedente e não havendo nenhuma outra manifestação de vontade até à data da entrega, aquele
consentimento se mantém válido nesta última data) e, encontrando-se a coisa já em poder do credor, a
entrega torna-se desnecessária, bastando, para efeitos de constituição do penhor, o acordo das partes.
790
Socorrendo-se de um longo percurso histórico Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 29 e segs.,
evidencia como as hipotecas mobiliárias remontam ao direito grego e conheceram grande dinamismo no
direito romano, conferindo poderes assinaláveis ao seu titular (como um direito de sequela sob a forma de
uma acção quasi-serviana), mas com efeitos potencialmente perniciosos para terceiros (uma vez que a
garantia era totalmente oculta, não estando sujeita a redução a escrito ou a inscrição em qualquer registo).
Posteriormente, no Século V e na sequência das invasões bárbaras, verificou-se um retrocesso nas
concepções jurídicas dominantes, para níveis mais rudimentares que os romanistas, assim se justificando
o surgimento do adágio “meubles n’ont pas de suite” e o desaparecimento da hipoteca mobiliária do
espectro jurídico gaulês. No Século XII e com a aparição de uma espécie de hipoteca imobiliária
genérica, em algumas regiões de França (onde a tradição romanista se encontrava mais arreigada)
assistiu-se a um ressuscitar da hipoteca mobiliária, mas a interpretação estrita da regra “meubles n’ont pas
de suite” acabou por prevalecer. Em suma, o confronto entre a hipoteca mobiliária e o penhor sem
desapossamento radica na necessidade de a primeira privilegiar os direitos do credor e o segundo atender
predominantemente aos interesses dos terceiros e do comércio jurídico em geral: ora, a prevalência foi
dada à protecção destes últimos interesses, tutelados pela regra “meubles n’ont pas de suite” (conjugada
com a protecção dos terceiros adquirentes de boa fé de direitos sobre bens móveis), na medida em que a
hipoteca mobiliária não garantia uma publicidade eficaz (não só pela dificuldade em organizá-la, como
também pela exiguidade do valor dos bens onerados e pela sua fácil alienabilidade). Todavia, o Autor (ob.
cit., págs. 56 a 59), duvida da actualidade destas considerações (apelidando mesmos os art.ºs 2118.º -
restringindo a hipoteca aos bens móveis – e 2119.º - rejeitando o direito de sequela no âmbito dos bens
móveis - do Code de “texte sans portée, de curiosité juridique, faisant valoir justement que les raisons
qui justifiaient la prohibition ont aujourd’hui disparu”), sobretudo tendo em conta que o papel atribuído
ao desapossamento do devedor em matéria mobiliária é o de mera condição de oponibilidade (e não de
validade, o que, aliás, veio a ser acolhido na reforma do Code Civil de 2006 – cfr. infra n.º 1.2.2 do
Capítulo II) destinada a publicitar a constituição da garantia, razão pela qual não se afigura impensável
recorrer a outro meio de informação alternativo para lograr aquele mesmo efeito, até porque a fiabilidade
da publicidade registal é incomparavelmente superior à da possessória. Por outro lado e no que concerne a
inidoneidade da maioria dos bens móveis para inscrição no registo – designadamente pela dificuldade de
individualização e pela obrigação de consulta dos registos antes da conclusão de qualquer negócio sobre
tais bens, sob pena de os terceiros verem os seus direito preteridos, uma vez que o registo anularia a
protecção concedida aos terceiros adquirentes de boa fé – o Autor reconhece que alguns bens móveis não
se prestam a este tipo de publicidade registal (e, por arrastamento, os credores com garantias não poderão
beneficiar de um direito de sequela perfeito), mas sustenta que o progresso da informática tendo vindo a
permitir que o número de bens nessas condições seja cada vez menor.
200
Resulta do exposto, que a publicidade – traduzida aqui no desapossamento do
devedor - assumiria natureza constitutiva do modo de aquisição do direito real, de modo
que, na ausência do cumprimento de tal formalidade, o negócio de constituição não
produzirá efeitos ou, quando muito, produzirá unicamente efeitos obrigacionais.791
Em certo sentido, poder-se-á até considerar a entrega – ou, pelo menos o
desapossamento do empenhante – não apenas como um elemento da constituição do
penhor, mas mesmo da própria existência e subsistência do direito real de garantia.792
Apenas na hipótese de o bem empenhado já se encontrar, à data da constituição
da garantia pignoratícia, na posse do credor a outro título, bastará a inversão do título de
posse, resultante do penhor, para que se considere realizada a entrega.793
Contudo, mesmo em face de outras codificações europeias794 que impõem a
entrega como modo de constituição da garantia pignoratícia, desde cedo algumas vozes
se ergueram argumentando ser o desapossamento do devedor mera condição de
791
De acordo com Francesco Ferrara, ob. cit., pág. 18 e segs., a publicidade pode ser necessária ou não
necessária (também chamada publicidade notícia): a primeira é condição de existência ou, pelo menos, de
eficácia perante terceiros, do negócio jurídico; a segunda destina-se simplesmente a tornar cognoscíveis
determinadas situações jurídicas (mas não negócios jurídicos) cujo conhecimento seja do interesse
público – como sucede com os registos do estado civil - , pelo que a sua inobservância não contende com
os efeitos da relação jurídica (gerando apenas sanções de natureza administrativa ou penal para aquela a
quem era imposto o cumprimento das formalidades publicitárias). Dentro da publicidade necessária, o
Autor distingue aquela declarativa (que respeita a negócios ou actos jurídicos pré-existentes para que os
mesmos possam produzir efeitos relativamente a terceiros), da constitutiva (que opera como elemento
essencial do modo de aquisição do direito): em termos expressivos, a distinção passa por considerar a
publicidade de modo diverso consoante “essa porti all’evidenza il diritto acquistato, oppure lo porti
anche ad esistenza”. Esta diferença projecta-se, por outro lado, no facto de a publicidade declarativa ser
extrínseca ao acto (nada acrescentando a este, destinando-se unicamente a projectar os seus efeitos face a
terceiros), enquanto a publicidade constitutiva é um elemento integrante do modo de aquisição
(constituindo uma formalidade substancial que deve acrescer às declarações negociais das partes).
792
Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 548 e segs., apontando o art.º 677.º, na parte em que
estabelece a extinção do penhor em caso de restituição da coisa empenhada, como suporte desta posição
(e concluindo, em conformidade, que a perda da posse do bem empenhado por parte do credor
pignoratício – ainda que na sequência de furto ou esbulho – implica inexoravelmente a extinção do
penhor).
793
Aceitam esta forma de tradição como modo de constituição do penhor Marques de Carvalho, ob. cit.,
pág. 64, Joaquim Bastos, ob., cit., pág. 52, Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 200 (considerando que
quando o credor pignoratício já se encontre na detenção da coisa antes do surgimento do penhor, bastará a
traditio brevi manu para a constituição da garantia), Puig Brutau, ob. cit., pág. 29, Barrada Orellana, ob.
cit., págs. 116 e 117, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 62, Guillouard, ob. cit., págs. 103 e 104, (este
último descreve a tarditio brevi manu como aquela em que as partes no contrato de penhor acordam que a
coisa, já em poder do credor pignoratício a outro título, aí permanecerá agora a título de penhor - assim se
ficcionando que o credor devolveu a coisa ao devedor e, instantaneamente, a recebeu de volta -
considerando que a ausência de publicidade desta forma de constituição do penhor não será diversa da
que resultaria da devolução efectiva ao devedor e de uma nova entrega ao credor) e Planiol, Ripert,
Becqué, ob. cit., pág. 86 (precisando que a inversão do título de posse decorre do consentimento do
devedor aquando da celebração do contrato de penhor). Em face do direito alemão, Harry Westermann,
Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1494, entendem que basta
que o credor seja possuidor mediato, desde que o possuidor imediato não seja o empenhante, pelo que
sendo suficiente um simples acordo para fazer nascer o penhor, não relevando o modo através do qual o
credor tenha adquirido a posse do bem onerado.
794
Cfr. art.º 2786.º do CCI, art.º 2076.º do CCF (na versão anterior à reforma do direito das garantias de
2006), art.º 1863.º do CCE, §1205, n.º 1, do BGB (acrescentando, porém, o n.º 2 do mesmo preceito que a
entrega de uma coisa de que o proprietário seja apenas possuidor indirecto pode ser substituída, de modo
que o proprietário transfira apenas a posse indirecta para o credor pignoratício, devendo a constituição do
penhor ser notificada ao possuidor) e art.º 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei Catalã sobre os Direitos Reais de
Garantia).
201
oponibilidade do penhor face a terceiros,795 considerando a garantia perfeita entre as
partes a partir da data do acto constitutivo da mesma,796 enquanto outros sustentam que
795
Opinião esta sufragada por Faggella, ob. cit., págs. 98 a 100 (por considerar que, na senda do direito
romano, a posse do bem respeita apenas à publicidade da garantia e, portanto, à sua eficácia face a
terceiros, não sendo essencial para a existência do direito de penhor) Enrico Poggi, Il pegno costituito a
favore di piu creditori, in Rivista di diritto civile, n.º 5, 1927, pág. 438 e segs. (para quem, tendo em conta
que a finalidade do desapossamento é a protecção de terceiros como consequência da visibilidade que
aporta à constituição do penhor, “la costituzione di questo, per quanto attiene ai rapporti fra le parti, può
quindi prescinderne”) e, em face do direito francês, por Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 455
(dando conta que a admissibilidade de penhores sem desapossamento faz com que seja ainda mais difícil
erigir a remessa da coisa como condição essencial do penhor), Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 84 e
85 (embora reconheçam não ser a solução que melhor se coaduna com as razões que historicamente
presidiram à exigência da entrega para constituição do penhor, consideram-na mais adequada tendo em
conta que a finalidade principal – senão mesmo exclusiva – da entrega será a de conferir uma publicidade
de facto ao nascimento da garantia), Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 61 (embora desvalorizando a
relevância da controvérsia, tendo em conta a admissibilidade incontestada de um contrato-promessa de
penhor, sustentam que e entrega da coisa não é senão uma medida de publicidade, podendo as vantagens
inerentes à posse do bem ser alcançadas através de outros mecanismos alternativos: daí o surgimento de
penhores sem desapossamento), Théry, ob. cit., pág. 298 (fundamentando a sua posição na possibilidade
de o devedor ser forçado a entregar o bem ao credor), Weil, ob. cit., págs. 81 e 82 (advogando, apesar de
reconhecer não ser essa a solução legal, que a consagração da entrega como simples condição de
oponibilidade – e não de validade – do penhor seria suficiente para assegurar os efeitos publicitários e de
protecção de terceiros visados pelo desapossamento e concluindo que “En faisant de la dépossession une
condition de validité du contrat même dans les rapports des parties entre elles, on méconnaît la raison
profonde de la nécessité de la dépossession”), Aynès e Crocq, Les sûretés cit., págs. 199 e 200 (baseando
a sua posição no carácter duvidoso da execução específica do contrato-promessa de penhor) e, no direito
espanhol Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2144 (assegurando que “El contrato de prenda es
perfecto y surte efectos entre las partes (…) desde que hay consentimiento, prestado en cualquier forma,
sobre la cosa afecta y la obligación que se asegura. No obstante (…) el CC condiciona la oponibilidad
erga omnes del derecho de prenda que regula al cumplimiento de dos requisitos: el desplazamiento
posesorio (publicidad posesoria) y la certidumbre sobre la fecha en que se constituyó la garantía”) e, em
face do direito catalão, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 113. Relativizam a importância desta discussão,
Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 533 e 534 (depois de constatarem que a jurisprudência
tende a considerar a entrega como um contrato real, de questionarem tal qualificação em face de posições
doutrinais recentes que negam a existência de tal categoria e de se inclinarem para considerar o
desapossamento como condição de existência do penhor), tendo em conta a admissibilidade do contrato-
promessa de penhor e a obrigação do promitente transferir a posse para o beneficiário da promessa (e, do
mesmo modo que, se o contrato de penhor for válido entre as partes, acarreta a mesma obrigação) ou,
caso não seja válido nem sequer inter partes, deve ser qualificado como contrato-promessa de penhor.
Também Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 229, qualificam o debate como meramente
teórico, sobretudo tendo em conta o verdadeiro significado da expressão “oponibilidade” como visando o
reconhecimento da existência do contrato por parte de terceiros: “L’opposabilité est destinée à faire
produire au contrat tous ses effets, mais rien que ses effets; lópposabilité ne peut donc avoir pour effet
d’investir les parties à l’egard des tiers de droits autres que ceux qu’ils ont pu valablement stipuler entre
elles (…). dês lor, dire que le gage est inopposable aux tiers à défaut de dépossession, c’est
nécessairement reconnaître que le contrat n’est pas un gage – il ne produit pas les effets – et,
réciproquement, dire que le gage est valable entre les parties mais inopposable aux tiers revient
également à admettre qu’il n’y a pas de véritable gage, c’est-à-dire pas de privilège”. Pelo contrário,
Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 200, entendem que a discussão é pertinente para determinar a
possibilidade de dação em penhor de objectos relativamente aos quais o desapossamento do devedor é
impossível (por se tratar de um bem incorpóreo) ou inoportuna (como sucederá com os bens usados pelo
devedor na sua actividade produtiva), colocando-se a questão de saber se, em tais casos, o penhor seria
inviável sem intervenção legislativa ou, ao invés, seria possível através da substituição do
desapossamento por outra forma de publicidade (concluindo pela primeira alternativa). Finalmente
Hardel, ob. cit., pág. 36 e segs., dá conta de posições jurisprudenciais considerando o desapossamento
como mera condição de oponibilidade do direito a terceiros (embora saliente que a maioria das decisões
sanciona a ausência de entrega do bem ao credor ou a terceiro com a invalidade do próprio contrato de
penhor, considerando que “le dessaisement est exigé même inter partes de façon a ce que le créancier
202
a entrega apenas assume um carácter imprescindível quando o contrato de penhor for
gratuito.797
Nesta conformidade, não se aceita que a condição essencial (e porventura
exclusiva) do surgimento do direito real resida na necessidade de entrega do bem
empenhado ao credor (normalmente justificada com o facto de a manutenção da coisa
em poder do devedor induzir em erro os seus credores quirografários), contrapondo que
tal entrega é inúmeras vezes equívoca.798
Este entendimento, ao atribuir natureza consensual ao contrato de penhor,
facilita de sobremaneira a constituição de diversas garantias desta índole sobre o mesmo
bem.799
Para além disso, estabelece-se uma distinção entre o direito real de penhor (que
nasce do simples consenso) e a preferência que o mesmo outorga, porquanto “il diritto
reale sorge e si fa sentire contro coloro che accampano altri diritti specifici sulla cosa,
il privilegio si limita a paralizzare il pegno generico dei creditori”800 (ou seja, podendo
puisse se prevaloir des effets du contrat à l’encontre même de son débiteur”: é a chamada “thèse du
dessaisissement-fondement du contrat”).
796
Ainda recentemente Francesca Dell’Anna Misurale, Profili evolutivi della disciplina del pegno,
Edizioni Scientifiche Italiane, 2004, pág. 51 e segs., (principalmente nota 72), considerando que o suposto
carácter real do contrato de penhor radica num erro de perspectiva, devendo antes distinguir-se entre o
título da garantia (que pode ter natureza consensual e nem ser um contrato) e a constituição do direito
(para a qual a entrega é essencial), pelo que “il difetto di consegna della cosa impedisca il sorgere del
diritto reale di pegno, ma non il perferzionarsi di un valido contratto di natura obbligatoria, vincolante
per le parti in base al semplice consenso” e que servirá de título para a constituição do direito real após o
empossamento do credor. Em termos análogos, Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 178, considerando o
desapossamento – e o respectivo carácter real - como um mero facto acessório relativamente à fattispecie
de formação progressiva, cujo momento constitutivo reside no momento da celebração do contrato e que
se perfecciona com a entrega.
797
É o entendimento de Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 714 a 716, esclarecendo que, quando o
contrato de penhor seja oneroso (entendendo-se como tal aquele que, independentemente da gratuitidade
ou onerosidade da obrigação principal, implique alguma vantagem para o garante, com contrapartida da
concessão da garantia) ou seja celebrado por escrito, não estaremos perante um contrato real. Nestes
casos, ainda assim, pode dar-se a entrega do bem ao credor no momento da celebração do contrato (não
sendo, porém, a entrega parte do contrato, podendo dissociar-se o momento da constituição da garantia –
decorrente do mútuo consenso entre as partes - e o da sua execução ou cumprimento – a entrega do bem -,
ainda que ambos ocorram simultaneamente) ou, como será normal, tal entrega não se produzirá (caso em
que o contrato estará perfeito, surgindo para o constituinte da garantia a obrigação de entregar a coisa ao
credor pignoratício, momento em que se dará a aquisição do direito real de penhor).
798
Como sucederá com a entrega através de representante ou o depósito em armazéns gerais. Francesco
Pellegrini, ob. cit., pág. 30 e segs., aponta igualmente o caso do penhor de estabelecimento comercial, em
que a garantia deverá ser inscrita num registo, como um exemplo de como a constituição da garantia
passará despercebida aos credores quirografários, argumentando que estes não se ocuparão de consultar
tais registos.
799
De acordo com Enrico Poggi, ob. cit., págs. 444 e 445, cumprirá distinguir entre os casos em que a
constituição ocorra contemporaneamente e de modo que cada um deles responda pelo valor total da coisa
(caso em que os vários direitos, salvo pacto em contrário, terão igual grau, aproveitando a extinção de um
deles aos demais) e, pelo contrário, aqueles em que a constituição seja contemporânea mas não
contextual, de modo a que cada um dos credores prescinda da posição dos demais (hipótese na qual o
credor que obtenha a posse conseguirá uma primazia no concurso com os restantes).
800
Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 40. O Autor, depois de definir direito real como aquele que produz
efeitos face a terceiros exteriores aos contraentes, realça que “vi è una categoria di terzi di fronte ai quali
il diritto di pegno è vivo e vitale anche prima della consegna. E si tratta appunto dei terzi che abbiano
acquistato diritti reali specifici sulla cosa”, razão pela qual, mesmo amputado do direito de preferência, o
direito real de penhor – que nasce do contrato - assegura o direito de venda e de adjudicação. Por outro
lado (vide págs. 50 e segs.), nega que a não entrega de um penhor previamente constituído transforme
inelutavelmente a figura numa simples promessa de penhor (embora reconheça que as partes podem
estipular este tipo de convenções, tratando-se de uma questão de interpretação negocial), alegando que
203
ser oposto, mesmo na falta de entrega, a todos os terceiros, exceptuando os demais
credores do empenhante) apesar de esse direito real se encontrar duplamente limitado801
e sem prejuízo de assistir ao credor pignoratício o direito de exigir a entrega do objecto
da garantia e de adoptar as providências necessárias à conservação do respectivo
valor.802
Levando esta perspectiva até ao limite, poder-se-á sustentar que, mesmo antes da
entrega do bem empenhado e dentro de certos limites, o direito real de penhor se terá
por constituído.803
esta perspectiva assenta em dois erros, o primeiro é aceitar que “la mancanza di un elemento essenziale
per la esistenza del contratto, converta lo stesso in promessa della prestazione. Com che si dovrebbe
concludere che laddove manchi qualunque altro elemento essenziale per il negozio (…) resterebbe la
promessa efficace della prestazione” e o segundo consiste em “fare scaturire l’azione esecutiva diretta da
quel negozio giuridico tutto diverso che è il contratto preliminare. Se è promessa, se cioè manca il
consenso al trapasso attuale, codesto trapasso non può ordinarsi dal giudice, perchè il giudice interpetra
ed esegue la volontà dei contraenti non la integra nè la sostituisce”. Para Enrico Poggi, ob. cit., pág. 440
e segs., (depois de salientar que a relação directa do credor pignoratício com o objecto do seu direito
apenas ser forçosa no momento da execução da garantia e não necessariamente na data da sua
constituição) os efeitos do penhor amputado do direito de preferência variarão consoante a constituição
do penhor tivesse sido meramente consensual (mas sem que a permanência do bem na posse do
empenhante houvesse sido especialmente convencionada) ou, ao invés, tivesse sido expressamente
estipulada a não entrega do bem ao credor e a sua manutenção em poder do empenhante: no primeiro
caso, o credor gozará do direito de retenção e, por isso, uma acção real para exigir a entrega do bem
empenhado, independentemente da necessidade de venda; já no segundo, tal direito encontrar-se-ia
convencionalmente abolido, excepto se o bem houvesse sido entregue a terceiro (concordando que, em
qualquer dos casos, não estaremos perante um contrato-promessa de penhor, pois a “volontà dellle parti
che nel caso della promessa è rivolta alla successiva emissione di un consenso, nel caso contrario alla
attuale produzione di un effetto reale (trasmissione del diritto reale di garazia”, embora reconheça que,
em determinados casos, não seja fácil enquadrar a fattispecie numa ou noutra categoria).
801
Por se encontrar amputado do direito de preferência e por ceder – por força do princípio da posse vale
título - perante o direito de um terceiro que obtenha a posse em momento anterior (Francesco Pellegrini,
ob. cit., pág. 55). Nesta conformidade, nega-se (cfr. Enrico Poggi, ob. cit., pág. 440 e segs.) que o
conteúdo do direito de penhor se identifique com o direito de preferência que este concede, contrapondo
que o conteúdo do primeiro “è invece nella posizione giuridica di signoria fatta alla volontà del titolare
circa la cosa, quale portatrice di un valor economico. Il privilegio in confronto dei terzi non é che una
conseguenza di tal posizione” e que, por isso, “la sussistenza del diritto reale di pegno è astratamente
concepibile fra pignorante e pignoratario indipendentemente dalla sua oponibilità ai terzi”.
802
Quanto a este último aspecto, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 444.
803
É a posição de Francesco Pellegrini, ob. cit., págs. 11 a 13, alegando que as dúvidas sobre a
indispensabilidade da entrega do bem para a constituição do penhor eram reforçadas pela redacção do
art.º 1958.º, n.º 6, do anterior Código Civil Italiano, ao ponto de o Autor questionar “Perché mai il
legislatore, dopo di aver parlato di un pegno costituito, intese il bisgono di limitare il privilegio alle cose
delle quali il creditore abbia conseguito il possesso? Vi può essere un pegno costituito sopra cose delle
quali il creditore non sia in possesso?”, acrescentando que falar de preferência quando não haja credores
concorrentes é uma contradição. Em termos similares, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 438 e segs., afirmando
que o direito real de penhor surge independentemente do desapossamento do constituinte (como um
direito ao valor, que dispensa o gozo das utilidades da coisa empenhada, sendo este apenas necessário
para o surgimento do direito de preferência, ou seja, para a eficácia do direito face a terceiros), retirando
como corolário deste seu entendimento a possibilidade de constituição de mais de um penhor sobre o
mesmo bem, sem desapossamento do empenhante. Também Stefano Delle Monache, Una parola di
presentazione (e qualche appunto sul pegno rotativo), in Il pegno nei rapporti commerciali, Giuffrè, 2005,
com direcção de Paolo Cendon, pág. XV e segs., qualifica o penhor como um contrato real quoad
effectum e não quoad constitutionem, porquanto admite que o simples acordo das partes – mesmo que oral
– obrigue o empenhante a entregar o bem ao credor, de modo a possibilitar o nascimento do direito real
de penhor (neste contexto, admite que num contrato de penhor se estipule referido, alternativamente, a
duas ou mais coisas do empenhante, só surgindo o penhor com a entrega efectiva de uma(s) delas –
criando o acordo inicial uma obrigação alternativa a cargo de alguma das partes - ou, ainda, da dação em
penhor de um bem, acompanhada da faculdade do credor ou do constituinte exigirem a dação de um outro
bem determinado em vez do inicialmente determinado: em qualquer destas duas hipóteses, não se trata
204
Esta corrente adversa à natureza real do contrato de penhor ganha ainda maior
alento à luz da recente reforma das garantias reais operada no direito francês, da qual
decorre uma degradação da entrega do bem onerado ao credor ou a terceiro para a
condição de mero pressuposto (alternativo face ao registo) da oponibilidade a terceiros
da garantia, surgindo a redacção de um documento escrito como único requisito para a
perfeição do contrato entre as partes (art.ºs 2336.º a 2338.º CCF).804
O erigir da entrega como condição sine qua non do nascimento do direito real de
penhor é ainda mais contestável quando a lei, para certo tipo de bens, especialmente
incorpóreos, utiliza mecanismos sucedâneos da tradição material805 e, mesmo para
alguns bens corpóreos, dispensa a entrega material.806
Como corolário deste entendimento, alguns Autores rejeitam a natureza real do
contrato de penhor,807 enquanto outros afirmam que a constituição do penhor exige,
como condição do surgimento da garantia, não tanto a entrega material do bem onerado,
mas antes o desapossamento do empenhador, que pode ocorrer por outras vias além
daquela entrega.808
“di un unico ius in re (ad oggetto variabile) (…) bensì del sorgere di tanti diritti di pegno per quanti sono
i beni a mano a mano immessi nella sfera di controllo del creditore (…). Unico, piuttosto, è il titulis cui si
raccordano i diversi atti di consegna”).
804
Acerca destes preceitos, vide infra n.º 1.2.2 do Capítulo II.
805
Assim, Francesco Pellegrini, ob. cit., págs. 56 e 57, a propósito do penhor de créditos (no qual a
entrega é substituída pela notificação do terceiro devedor e caso esta formalidade fosse considerada
constitutiva do penhor, “ne verrebbe questa inaccettabile posizione che il debitore cedente si potrà
oporre per suo conto alla assegnazione condizionata del credito dato in pegno anche quando nessuno si
faccia vivo”) e de estabelecimento comercial (em que a tradição material é comutada pelo registo, com o
efeito de, aceitando-se a indispensabilidade da inscrição para o nascimento do direito real de penhor, “il
debitore potrà oporsi alla esecuzione deducendo per suo conto esclusivo la eventuale mancanta
iscrizione o qualsiasi nullità della medesima”).
806
Vide, em particular, n.º 1 do Capítulo II.
807
Marc Billiau, Réflexions sur le gage, in La semaine juridique, Ano 70, n.º 2, (10/1/1996), 3897, págs.
22 e 23, relata como, os inconvenientes do desapossamento – nomeadamente a privação do uso do bem
por parte do empenhante – conduziram alguns Autores a atribuir à entrega um simples papel de
condicionante da oponibilidade (e não de validade) da garantia, embora tal entendimento chocasse com o
disposto no art.º 2071.º do CCF (na medida em que este definia o penhor como um contrato em que o
devedor entrega uma cosia ao credor), para além da reduzida importância que uma garantia amputada de
preferência gozaria (fazendo, no fundo, nascer apenas uma promessa de constituição do penhor). Porém,
com o advento de penhores sobre bens incorpóreos “le transfert de la posséssion peut difficilement être
considerée comme l’élément fédérateur de la notion de gage dès lors qu’il est acquis que certains
meubles insusceptibles de possession (ou même de détention) peuvent cependant être l’objet d’un gage,
notamment les créances” (…). En réalité, à partir du moment où l’on a pus concevoir un gage sur
créance, on a été forcément conduit à recourrir à une fiction pour admettre que le créancier puisse être
possesseur du droit de créance, droit personnel par définition” Num primeiro momento, essa ficção
passou pela exigência de entrega do título comprovativo do crédito empenhado (o qual cristalizaria o
direito e o tornaria susceptível de posse pignoratícia), mas com o abandono desta exigência por parte da
jurisprudência (e com o surgimento de títulos desmaterializados) “la définitiom qui fait de l’attribution de
la possession au créancier la caractéristique principal du gage, ne peut être retenue, sauf à considerer
qu’il ne peut y avoir véritable gage que sur un meuble corporel, ce qui ne correspond manifestement pas
à l’état du droit positif. En un mot, le gage n’est pas certainement plus toujours un contrat réel”.
808
Neste sentido, Paulo Cunha, ob. cit., págs. 196 e 197, escrevendo que “o que interessa não é a entrega,
nem caracterizar os vários modos de tradição que se seguem, mas a circunstância negativa, digamos
assim, de perder a posse. Que por tradição real, quer por tradição simbólica, quer por tradição ficta
abrangendo o registo ou o constituto possessório, o que realmente se verifica sempre é a perda da posse
(…) quando falamos em desapossamento da cousa não estamos a postular que haja necessariamente
adquisição da posse da cousa, de posse de propriedade, por parte do credor, mas apenas que há perda
da posse por parte do dono da cousa (…) o que se verifica não é o desapossamento da cousa mas a
conservação de poderes de facto que constituem a externalização do direito pignoratício”).
205
Ainda assim, o entendimento dominante persiste em recusar a existência de
penhores sem entrega, salvo nos casos excepcionais previstos na lei, importando, por
isso, determinar os efeitos do desapossamento do devedor (ou da falta dele)
relativamente a terceiros, por um lado no que respeita aos demais credores do
empenhador e, por outro, aos adquirentes da propriedade ou de outros direitos reais
sobre a coisa empenhada.809
Quanto aos primeiros, cumpre salientar que, até à penhora ou à prática de outro
acto de apreensão judicial do bem (v.g. em processo de insolvência), o credor encontra-
se habilitado a obter a entrega do bem em ordem a constituir a garantia pignoratícia. Se,
ao invés, qualquer um daqueles acontecimentos ocorrer antes da entrega do bem ao
credor, não poderá este fazer valer o seu direito perante credores do empenhante
titulares de outras garantias sobre os mesmos bens.810
Entre os diversos credores do empenhante poderá ocorrer um conflito de cariz
diverso quando mais do que um deles disponha de um título para a constituição de
penhor sobre o mesmo bem, conflito este que deve ser solucionado em benefício
daquele que primeiramente obtenha a posse do bem empenhado, mesmo que o seu título
seja posterior, sendo mais discutível se o mesmo efeito se produzirá quando o credor
saiba da existência de um título anterior811 (valendo as mesmas considerações, em
termos gerais, para o penhor de créditos).812
Assim sendo, o empenhador poderá proceder à entrega ao credor que primeiro
lha solicitar, ainda que o respectivo título não seja o anterior em data.
O outro credor, que não tenha conseguido primeiramente a posse do bem, apenas
obterá a constituição do penhor se o credor entretanto empossado directamente do bem
aceitar consentir em possuidor também em nome daquele813 ou, caso o primeiro penhor
809
Adoptam esta classificação bipartida, Guillouard, ob. cit., pág. 94 (analisando-a do ponto de vista
negativo, isto é dos efeitos da falta da entrega, concluindo que, relativamente a terceiros, determinará a
inoponibilidade da garantia, isto é, a ausência do direito de preferência. Ao invés, entre as partes, a
convenção destinada à constituição do penhor, se e enquanto não ocorrer a entrega, fará surgir apenas
uma obrigação a cargo do devedor, cujo cumprimento pode ser judicialmente exigível pelo credor) e,
mais desenvolvidamente, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 69 a 76.
810
Assim, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 67 e 70, concluindo que enquanto o empenhador mantiver ou
recuperar a posse do bem, os outros credores poderão considerar o bem como livre (mesmo que saibam
da existência de um título válido para a constituição do penhor), ressalvando apenas o caso de a perda da
posse do bem pelo credor ser motivada pela respectiva entrega ao tribunal competente para proceder à sua
venda.
811
Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 79 e 80, defendem a prevalência do direito do credor primeiramente
empossado, ainda que conheça a existência de um título anterior. Já Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 63
e segs., embora concordando com a prioridade concedida ao credor que primeiro consiga a posse do bem,
salvaguarda que “il creditore pignoratizio di mala fede, il quale si sia affrettati a ricevere la cosa, deve
restituirla a colui che, per la sua originaria conoscenza (…), aveva già acquistato validamente il pegno”
(ou seja, considerando de má fé a aquisição do direito de penhor por parte do credor pignoratício que
“conosceva che la cosa era già data in pegno, ma non ancora consegnata ad altro creditore”).
812
No penhor de créditos e em face do direito italiano, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 75 e segs.,
revela que o credor cujo direito prevalecerá será aquele que primeiro notifique a constituição da garantia
ao terceiro devedor, mesmo que não tenha em seu poder o documento comprovativo do crédito (no direito
pátrio, o facto de a notificação ser condição de nascimento do direito do penhor – ao contrário do direito
italiano onde é mera condição de oponibilidade conduz à prevalência do direito primeiramente notificado,
com a diferença de o credor não notificante nem sequer chegar a ser titular de um direito de penhor).
Neste cenário, o devedor responde perante o credor retardatário – por ter diminuído as garantias dadas ao
credor - , excepto se o montante do crédito empenhado seja de tal forma elevado que permita cobrir
ambas as obrigações.
813
Caso o credor que tenha primeiramente obtido a posse do bem empenhado não queira possuí-la
também por conta do segundo, não poderá ser obrigado a fazê-lo. Nesta conjuntura, Gorla e Zanelli, ob.
cit., págs. 81 e 82, admitem que o segundo penhor se possa constituir como penhor sobre o eventual
206
tenha sido constituído por meio da entrega a um terceiro, desde que este aceite detê-la
igualmente no seu interesse (mas sem necessidade do consentimento do primeiro
credor).814
Se, porventura, o devedor recusar entregar o bem empenhado, o credor tem o
direito de exigir judicialmente essa remessa (nos termos em que for admissível o
recurso à execução específica se considerarmos estar perante um simples contrato-
promessa ou, caso se entendermos estar perante um contrato definitivo do qual decorre
um dever de entrega, mediante o recurso a uma acção de entrega de coisa certa) e, caso
tenha sido constituído mais do que um penhor sobre o mesmo bem, idêntico direito
assiste a qualquer dos credores, prevalecendo aquele que primeiramente alcance a posse
do bem.815
No que concerne aos terceiros adquirentes, cujo direito seja obtido antes da
entrega da coisa ao credor pignoratício, adquirirão a coisa como desonerada, ainda que
não ignorem a existência de um título válido para a constituição do penhor.816
Em presença de um direito pessoal, do credor pignoratício, destinado a obter a
posse do bem dado em garantia, e um direito real, do adquirente, este último deverá
naturalmente prevalecer,817 pelo que o empenhador-alienante que não tenha entregue o
bem, nem ao credor pignoratício, nem ao adquirente, deverá fazê-lo a este último.
Em suma, se o credor pignoratício já estiver na posse do bem empenhado (e,
portanto, o seu direito se encontrar constituído) e se o terceiro adquire o seu direito do
empenhador, adquire a coisa onerada com o penhor e, caso tenha obtido a posse desta
(por exemplo porque esta lhe foi entregue pela pessoa designada para a sua guarda), o
credor poderá socorrer-se dos meios de defesa da posse para se reapossar do bem.818 Se,
resíduo do preço da venda efectuada pelo primeiro credor, ou seja, como um penhor sobre o eventual
futuro crédito do devedor para com o primeiro credor (negando, ao invés, a admissibilidade de um penhor
sobre a coisa através de uma autorização a restituir a coisa ao segundo credor pignoratício, argumentando
não poder constituir-se um penhor sobre a coisa, ou sobre o direito à sua restituição, existindo apenas uma
relação entre as partes, constituindo-se o penhor apenas quando o primeiro credor entregar a coisa ao
segundo), possibilidade esta também aceite por Troplong, ob. cit., págs. 94 e 95.
814
Neste sentido, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 80. Hipótese diversa tem lugar quando mais de um credor
pretendem constituir contemporaneamente vários penhores sobre o mesmo objecto, caso em que a coisa
deve ser entregue a um terceiro ou a todos os credor em conjunto ou a um deles que actuará como
depositário face aos restantes (Gorla e Zanelli, ult. ob. e loc. cit.). Em face do regime do Código de
Seabra, duas posições se confrontavam: para uns, não poderia haver mais de um penhor sobre o mesmo
bem, ao menos para garantir créditos de diferentes credores (Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 241 e 242:
“não podem vários credores, estranhos entre si, ter como penhor uma mesma cousa”); para outros, nada
obstaria à constituição de mais de um penhor sobre o mesmo bem, ainda que em garantia de credores
distintos, “desde que êsse objecto esteja em poder de terceiro ou desde que o credor, em poder de quem
êle está, consinta no novo penhor e se considere depositário em relação ao outro credor” (Guilherme
Moreira, ob. cit., pág. 332).
815
E desde que se encontre de boa fé - neste termos, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 68 e segs.,
rematando que a obtenção da posse resulta da execução da ordem judicial proferida na acção principal ou,
na ausência dela, ou do decretamento de uma providência cautelar.
816
Assim, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 67 e 70.
817
A resposta não será tão inequívoca, no caso de o terceiro adquirente se encontrar de má fé (resultante
do conhecimento da existência, a favor do credor pignoratício, de um título para a constituição do
penhor), naqueles ordenamentos que admitem o princípio da “posse vale título” (a favor da prevalência
do direito do terceiro adquirente, mesmo nestes casos, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 70).
818
Já é mais discutível saber se, socorrendo-se o credor pignoratício das acções possessórias, os outros
credores do empenhante poderão, penhorando a coisas antes da efectiva recuperação da possa por aquele
primeiro, paralisar a respectiva preferência. Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 73 a 75, distinguem consoante
a propriedade da coisa tenha passado para terceiro (caso em que rejeita essa possibilidade, argumentando
que a coisa já não pertence ao devedor dos credores que tenham obtido a penhora) ou permaneça no
empenhador (caso que os Autores consideram mais duvidoso, concluindo que se o credor usar da acção
de reivindicação o penhor extingue-se com a perda da posse e, caso esta venha a ser recuperada, se
207
pelo contrário, o terceiro adquire o seu direito do terceiro encarregue de cuidar da coisa,
adquire de quem não é proprietário e, por isso, a alienação é nula (art.º 892.º),819 não
prejudicando, por isso, os direitos do credor pignoratício.
Caso o bem objecto da garantia permaneça na posse do empenhador e o terceiro
adquira o seu direito por negócio com ele celebrado - mesmo conhecendo a existência
de um título para a constituição do penhor em benefício de outrem e independentemente
de ter ou não sido investido na posse do bem – prevalece o direito do adquirente,
porquanto o direito real de penhor ainda não havia completado o seu processo
formativo, no qual se inclui, salvo os casos expressamente previstos na lei, a entrega do
bem ao credor ou a terceiro.820
Estas conclusões apresentam-se como válidas independentemente de
considerarmos que, na ausência da entrega do bem ao credor, estaremos perante um
mero contrato-promessa de penhor ou, ao invés, na presença de um contrato imperfeito
(ou de formação progressiva) ou de um título para a constituição do penhor: em
qualquer dos casos, o credor, antes de lograr a posse do bem, dispõe unicamente de um
direito pessoal à entrega, sendo esta indispensável para o surgimento do direito real de
penhor.
Esta orientação, é usualmente justificada pelas funções atribuídas à entrega da
coisa empenhada ou, sob outro prisma, ao desapossamento do constituinte da
garantia,821 quer as mesmas sejam encaradas do ponto de vista do credor, dos terceiros
ou da própria segurança do comércio jurídico.822
constitui um novo penhor; pelo contrário, recorrendo às acções possessórias, o penhor só se extinguirá
caso a coisa não fosse devolvida ao credor dentro do prazo legalmente previsto para o exercício dessas
acções).
819
Muito embora essa nulidade não possa ser oposta ao comprador de boa fé (considerando-se como tal
aquele que desconheça a ausência de legitimidade do vendedor para proceder à alienação). Caso isso
suceda, a o terceiro poderá adquirir a propriedade, mas onerada com o penhor.
820
Excepto se a entrega for necessária para a constituição do direito adquirido pelo terceiro (cfr. art.º
408.º, n.º 1, parte final e n.º 2). Neste caso, prevalecerá o direito cujo processo formativo se complete
primeiro, sendo discutível a qual dos dois sujeitos o empenhante deva fazer a entrega, embora possamos
aplicar aqui, ao menos por analogia, o art.º 407.º, porquanto ambos têm um mero direito pessoal a exigir a
entrega do bem (no direito italiano Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 75 e 76, entendem que se o credor
pignoratício adquirir primeiramente a posse, os direitos de gozo dos terceiros não lhe serão oponíveis;
pelo contrário, se for o terceiro a conseguir obter primeiro a posse, o penhor não nasce, a não ser que o
terceiro aceite possuir também em nome do credor pignoratício ou então após a cessação desses direitos
de gozo).
821
A este respeito, Rubino, Il pegno cit., pág. 217, considera que o simples desapossamento do devedor
realiza a função publicitária de protecção de terceiros, enquanto a tutela do credor contra actos de
deterioração ou de disposição da coisa pelo devedor apenas é satisfeita com o seu empossamento (em
termos análogos se exprime Ciccarello, ob. cit., pág. 690). Neste contexto, conclui que, para o surgimento
do direito de penhor, não basta o desapossamento do constituinte da garantia (ainda que realizado tendo
em vista a constituição da garantia), sendo ainda imperioso o empossamento do credor (ou, em
alternativa, de um terceiro). Por seu turno Puig Brutau, ob. cit., pág. 29, afirma que a razão de ser
primordial do desapossamento do devedor é fazer com que o constituinte perca a posse imediata e não
tanto que esta passe para o credor pignoratício, como se alcança da possibilidade de entrega do bem a um
terceiro.
822
Na feliz síntese de Michel Cabrillac, La proteccion du creancier dans les sûretés mobilières,
conventionnelles sans dépossession, Sirey, 1954, págs. 10 e 11, o desapossamento material do bem
protege o credor (uma vez que «la possession du débiteur pourrait créer un double obstacle à
l’appréhension du créancier. Sur le plan matériel, l’utilisation et la circulation des meubles étant oculte,
l’object du gage pourrait être soustrait très facilement aux poursuites du créancier. Sur le plan juridique,
le monde mobilier est dominé par la difficulté que l’on éprouve à y dissocier le pouvoir de fait du pouvoir
de droit, difficulté qui trouve son expression la plus marquante dans la règle en fait de meubles, la
possession vaut tire. Aussi, celui qui aurait reçu le bien pourrait-il, en vertu de sa possession et de la
bonne foi dont la loi le pare, s’opposer à la revendication du gagiste et acquérir par là sur le meuble un
208
Nos ordenamentos em que a aquisição dos direitos reais não se produz por mero
efeito do contrato, já foi defendido que este modo de constituição do penhor se explica,
ao menos parcialmente, em razão da insuficiência do contrato para o nascimento
daqueles direitos, tornando indispensável a tradição do bem.823
Normalmente, a indispensabilidade de entrega da coisa ao credor justifica-se
pelo reforço da segurança da posição deste sujeito daí decorrente, destarte diminuindo a
probabilidade de extravio do bem, assim tornando mais sólido o direito pignoratício.824
Não falta mesmo quem considere ter sido o desígnio essencial – senão mesmo
exclusivo - que motivou, aquando da aprovação das codificações que erigiram o
desapossamento como conditio sine qua non da constituição do penhor, tendo as demais
funções da entrega do bem empenhado – maxime a sua função publicitária e de
protecção dos demais credores do empenhante – sido resultado de interpretações
posteriores.825
droit de propriété pleine et entière qui excluerait le droit réel de ce dernier»), os terceiros (assegurando o
seu interesse em conhecer os ónus existentes sobre os bens do seu devedor, de tal modo que «Si la valeur
restait chez le débiteur, aucun signe extérieur ne rèvèlerait aux tiers que la chose est sortie du gage
commun« (…). Il apparaît, en effet, que dans ce domaine de l’apparence qu’est par excellence le
domainde mobilier, la possession ne peut souvent être que le seul mode possible de publicité du droit réel
de garantie – comme de tous les autres droits réels d’ailleurs») e ainda a perfeita identificação dos bens
sobre os quais a garantia incide.
823
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 490, embora remate que, no que especificamente respeita ao
contrato de penhor, “sólo se explica por razones históricas y de respeto a la autoridad del Derecho
romano”.
824
Como refere Paulo Cunha, ob. cit., pág. 188, a entrega da coisa não é absolutamente necessária para
atribuir um direito de preferência ao credor pignoratício (veja-se o que se passa com outras garantias –
maxime a hipoteca – que conferem uma preferência análoga, permanecendo o bem hipotecado em poder
do devedor). Assim sendo a entrega “visa proteger os próprios interêsses do credor pignoratício contra
as possibilidades de depreciação e descaminho da cousa dada em penhor, por parte do devedor. Com
efeito, sendo as cousas objecto do penhor por definição, cousas móveis, acontece que, se não houvesse
entrega, poderia o devedor com a maior facilidade esconder, descaminhar ou deteriorar a cousa dada
em penhor, e assim se frustrava a preferência especial que o penhor deve dar ao credor pignoratício.”.
Também Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 48, Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 197, Antunes Varela, Das
Obrigações cit., Vol. II, pág. 524, nota 1, Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 61, Hugo Ramos Alves, ob.
cit., pág. 71 (aludindo à prevenção de fraudes praticadas pelo empenhador relativamente ao bem
onerado), Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 71, Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 178,
Barbara Cusato, ob. cit., pág. 193, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 532 e Simon Quincarlet,
ob. cit., págs. 35 e 319, referem como uma das finalidades da entrega o reforço da posição do credor, ao
evitar a dissipação ou ocultação do bem por parte do seu proprietário (ou, noutros termos, evitar a prática,
pelo constituinte, de actos materiais ou jurídicos que possam afectar a consistência da garantia).
825
É este o entendimento de Gaetano Piepoli, Garanzie sulle merci e spossessamento, Editore Jovene
Napoli, 1980, pág. 16 e segs., para quem na codificação de Napoleão (e em todas aquelas nela inspiradas)
a tutela do credor constituiu a ratio da necessidade de entrega. Essa tutela traduz-se, em termos práticos,
em evitar “lasciarli nelle mani del debitore vuol dire esporsi al pericolo che essi vengono deteriorati, fatti
sparire o comunque sottrati; inoltre solo grazie al possesso effettivo il creditore può evitare aggressioni
esecutive sul bene da parte dei terzi e nello stesso tempo affermare il diritto di farsi pagare sulla cosa
oggetto del pegno con privilegio e preferenza sugli altri creditori; infine solo il possesso attribuisce al
creditore un diritto reale”, sendo outras potenciais funções do desapossamento – tutela do terceiro
adquirente e/ou dos credores quirografários - alheias à opção legal. No que respeita, em especial, à
protecção dos demais credores do empenhante (ou, noutra perspectiva, à cognoscibilidade da situação
patrimonial do devedor, alertando os seus credores que um bem se encontra onerado) salienta ser a
mesma “sconosciuta alla esperienza giuridica francese del tempo e al legislatore del code civil” (o que
não significa ausência de preocupação de tutela destes outros credores – nomeadamente contra o perigo
de subtracção dos bens por parte do devedor ou de conluio do devedor com outros credores - a qual,
porém, é assegurada por outras vias que não a necessidade de desapossamento, designadamente com a
obrigatoriedade de redacção de um documento escrito datado contendo a suficiente indicação da coisa
empenhada e do crédito assegurado): só posteriormente foi reconhecida a função publicitária do
desapossamento, sobretudo após a constatação da necessidade de tutela da garantia genérica e de
209
Com efeito, encontrando-se o bem em poder do credor ou de um terceiro, pelo
menos os actos de disposição material do bem tornam-se dificilmente praticáveis, muito
embora a detenção do bem não invalide a prática de actos de disposição jurídica.826
Relativamente a estes últimos, é relativamente indiferente se o bem objecto do
negócio se encontre em poder do constituinte da garantia ou, pelo contrário, do credor,
pois, mesmo nesta segunda hipótese, aquele poderá constituir e transmitir a terceiros
direitos sobre a coisa (excepto tratando-se de direitos reais quanto à constituição, como
sucede com o próprio penhor), sem prejuízo de o credor pignoratício poder opor o seu
direito a tais terceiros.
No que concerne aos actos de disposição material e não vigorando entre nós o
princípio da “posse vale título”,827 o credor pignoratício poderá fazer prevalecer o seu
direito sobre o do terceiro a quem o constituinte tenha entregue o bem, razão pela qual o
protecção dos credores quirografários. O Autor (vide págs. 67 a 74) dá ainda conta que um fenómeno
semelhante ocorreu na ordem jurídica alemã (onde a função publicitária do Faustpfandprinzip – e a
inerente tutela do adquirente e dos sucessivos credores pignoratícios – também não foi imediatamente
identificada), muito embora assegure que o sistema de besitzlose Mobiliarsicherheiten consegue conciliar
os já aludidos interesses do credor com os do empenhante (em manter a posse dos bens empenhados e em
“non rendere nota la parte del patrimonio aziendale gravata da garanzie specifiche, e quindi il grado di
indebitamento nei riguardi del finanziatore titolare delle garanzie medesime. E ciò sai per evitare il
possibile pregiudizio che ne potrebbe derivare alla propria attività d’impresa, anche ai fini
dell’affidamento da parte dei terzi, sia per eliminare ogni sorta di difficoltà nella collocazione sul
mercato dei beni su cui grava la garanzia”, pois não existe uma publicidade deste tipo de garantias), com
prejuízo dos de terceiros, em especial dos credores quirografários do empenhante (por um lado, em razão
da abrangência – quer em termos horizontais, quer verticais – destas garantia, permitindo-lhes abarcar
uma parte significativa do património do devedor e, por outro, em razão da ausência de publicidade das
garantias). Barrada Orellana, ob. cit., págs. 114 e 115 e Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho
civil cit., pág. 305, consideram mesmo ser esta a principal função do desapossamento.
826
Todavia, do ponto de vista do proprietário do bem, a sua entrega ao credor pode ser originadora de
abusos da parte deste, designadamente quando decida proceder à respectiva alienação – salienta este
aspecto Joana Dias, ob. cit., pág. 48.
827
Claro que nos ordenamentos em que tal princípio se encontre plasmado, a esta função de segurança
atribuída à entrega do bem dado em garantia assume uma importância indubitavelmente maior, pois,
como referem Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 532, “Sans elle, le créancier risquerait fort
de ne pas retrouver matériellement le bien (…) soit de le retrouver entre les mains d’un tiers acquéreur
protégé, s’il s’agit d’un meuble corporel, para la règle de l’article 2279 du Code Civil. Ansi, la
dépossession fait en quelque sorte fonction de pré-saisie conservatoire.” (em termos análogos Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 229 e 231 e Hardel, ob. cit., pág. 36, destacando este último que,
permanecendo o bem em poder do constituinte, aquele “peut facilement être passe de la main à la main à
un tiers, et l’article 2279 jouant en faveur du possesseur de bonne foi, il ne saurait être question de
revendication, le créancier perdrait donc toute garantie”). Em termos concordantes para o direito
italiano, Gino Magri, ob. cit., pág. 15 (sustenta ser a regra da posse vale título que justifica,
conjuntamente com a inadmissibilidade de garantias ocultas, a obrigatoriedade do desapossamento, pois
caso fosse admitido um penhor sem entrega “il diritto del creditore si troverebbe esposto ad essere
pregiudicato da qualsiasi atto di alienazione della cosa fatto dal debitore accompagnato da tradizione
all’acquirente alla sola condizione che questi fosse ignaro della costituzione del pegno! Il che significa
ch’egli sarebbe tutelato soltanto in confronto degli acquirenti non investiti del possesso o degli acquirenti
di mala fede”) e Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., págs. 49 e 50 (constatando que, por aplicação do
art.º 1153.º do CCI, o penhor “restando paralizzato nelle ipotesi che un terzo abbia cosneguito il possesso
del bene in buona fede ed attraverso un titolo idoneo a fargli acquistare la proprietà o altro diritto reale;
come pure in tutte le ipotesi nelle quali un altro creditore assoggetta il bene ad esecuzione forzata. Il
perfezionarsi della proprietà del bene impegnato in capo ad un terzo, peraltro, farebbe venire meno non
già solo l’oponibilità, ma lo stesso diritto di garanzia, che sarebbe travolto dall’effetto liberatorio
dell’acquisto”, ou seja, “la proprietà si acquista libera da diritti altrui sulla cosa”). Para o direito
espanhol, vide López, Montés e Roca, Derecho civil, derechos reales y derecho inmobiliario registral,
Tirant lo branch, 2001 (2.ª Edição), pág. 441, salientando que a entrega “asegura al acreedor que el
deudor (o quien constiuye la prenda) no enajenará como libre (a terceros adquirentes buena fe) el bien
gravado, en fraude a sus derechos”.
210
desapossamento poderá, quando muito, justificar-se a necessidade da entrega com a
preocupação de evitar o risco de transformação, destruição, deterioração, ocultação ou
modificação do objecto da garantia.828
Daí que já tenha sido salientado que “A exigência de entrega, que o nosso
Código (…) faz, compreende-se melhor num direito em que se dê, de um modo geral,
protecção a terceiros adquirentes de boa fé de coisas móveis ou de direitos sobre
elas”829 e, como se sabe, no nosso direito a alienação ou constituição de direitos reais
sobre coisas móveis, apesar de desprovidas de publicidade, são eficazes contra terceiros
(ainda que de boa fé),830 embora tal não signifique uma total desprotecção desses
terceiros.831
Ainda assim, mesmo na ausência da protecção, pelo menos tão intensa como
noutras latitudes, dos terceiros adquirentes de boa fé, a necessidade de desapossamento
do constituinte para a constituição do penhor poderá justificar-se com o intuito de
protecção do credor, bem como de defesa de terceiros (nomeadamente porque a
possibilidade de estes serem enganados será mais provável no penhor do que na
alienação sem entrega, tendo em conta a maior frequência daquele negócio face a este
último).832
No que à protecção do credor diz respeito, é inegável que a colocação do bem
objecto da garantia em seu poder facilitará, em caso de incumprimento da obrigação
garantida, a sua alienação, designadamente por dispensar todos os actos de localização e
apreensão do mesmo.833
Contudo e sempre de acordo com esta finalidade de protecção do credor
pignoratício, poderá questionar-se a indispensabilidade da entrega, contrapondo que
828
Simplesmente, se estes receios podem ser fundados, poder-se-á questionar se eles não estarão
presentes sempre que um credor aceite um bem do devedor em garantia e aquele permaneça em poder
deste e, ainda assim, a esmagadora maioria das garantias não exigem o desapossamento do respectivo
constituinte. Poder-se-á justificar a solução preconizada para o penhor atendendo ao carácter mobiliário e
facilmente ocultável ou transportável do objecto da garantia – e muitas vezes à sua natureza perecível
e/ou susceptível de transformação - e à maior vulnerabilidade deste à prática de algum dos actos
prejudiciais à consistência do objecto da garantia assinalados no texto.
829
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 138, defendendo, de lege ferenda, a consagração legal da
protecção de boa fé dos terceiros adquirentes de bens móveis ou, pelo menos, um reforço da sua tutela
relativamente ao direito vigente antes da entrada em vigor do actual Código Civil.
830
Por exemplo, se A vender um bem móvel a B e, posteriormente, o empenha a favor de C, B pode opor
o seu direito de propriedade a C, ainda que o bem tenha permanecido em poder de A, não sendo, por isso,
C advertido da carência de propriedade de A no momento em que este lhe havia transmitido o seu direito.
Mesmo que A entregue o bem a C (credor pignoratício) após a celebração do contrato de compra e venda
com B, o direito deste é oponível a C, uma vez que o direito de propriedade se transmitiu por mero efeito
do contrato (art.º 408.º, n.º 1).
831
Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 95, destaca como no caso de B furtar um bem ao respectivo
proprietário (A) e posteriormente o vender a C (terceiro de boa fé), o proprietário do bem poder reaver o
bem através da acção de reivindicação (para o que terá que efectuar a prova, diabólica em sede mobiliária,
do seu direito de propriedade) ou da acção de restituição da posse (na qual teria que demonstrar apenas a
sua posse, da qual resultaria a presunção de propriedade – cfr. art.º 1278.º, n.º 1): simplesmente, o recurso
a esta acção de restituição está-lhe vedada, uma vez que o bem foi adquirido por um terceiro de boa fé
(art.º 1281.º, n.º 2), restando-lhe, por isso, o recurso à acção de reivindicação (na qual, além do mais e se
o vendedor aparente for comerciante, mesmo que obtenha ganho de causa, “não pode obter a restituição
da coisa sem previamente ter restituído a C o preço de aquisição por este pago. Corre, deste modo, pelo
proprietário o risco de vir a obter do esbulhador a restituição do valor do preço desembolsado, com a
inerente tutela da boa fé do terceiro” – cfr. art.º 1301.º).
832
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 139.
833
Aludem a este aspecto Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 197, nota 466 e Barrada Orellana, ob. cit.,
pág. 114, em especial nota 162.
211
para a tutela daquele bastará, não tanto a entrega, mas antes a mera possibilidade de
entrega.834
Um outro argumento tradicionalmente invocado em abono da necessidade de
desapossamento do constituinte da garantia835 prende-se com o imperativo de conferir
publicidade ao penhor,836 uma vez que este recai sobre bens móveis, tradicionalmente
não submetidos a registo.
De facto, não sendo a generalidade dos bens móveis passíveis identificação de
modo a permitir a sua inscrição,837 importa encontrar um mecanismo alternativo de dar
a conhecer a terceiros a constituição da garantia pignoratícia, equiparável, no que aos
efeitos publicitários respeita, ao registo exigido para a constituição de garantias sobre
bens imóveis.838
A função publicitária, ao menos rudimentar839, imperfeita,840 espontânea ou
material,841 do penhor manifestar-se-ia no facto de os terceiros, ao não encontrarem a
834
Cfr. Paulo Cunha, ob. cit., pág. 188. Partindo desta constatação, o citado Autor conclui que a entrega
acautela os interesses do credor pignoratício, mas não será esse o único intuito de a mesma ser erigida
como requisito indispensável para a constituição do penhor.
835
Vide, por todos, Rubino, Il pegno cit., págs. 218 e 219.
836
Francesco Messineo, Costituzione di pegno, mediante compossesso fra creditore pignoratizio e datore
e suoi effetti, in BBTC, 1949, I, pág. 307, alerta para a circunstância de o desapossamento do empenhante
(e o consequente empossamento do credor ou de terceiros) não ter uma função publicitária “nel senso
stesso in cui da più uno si annette tale funzione al possesso in generale. Nella figura di cui discorriamo, è
in questione, non la pubblicità connessa al possesso, bensì la pubblicità del pegno; pubblicità la cui
attuazione si considera affidata al possesso della cosa oppegnorata, quale surrogato dell’iscrizione in
quei registi che sono propri dell’ipoteca”.
837
Como bem nota Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 35, trata-se mesmo da única publicidade possível para
objectos de difícil identificação e sem uma localização fixa. Para aqueles que, ao invés, sejam
susceptíveis de identificação (como os automóveis, navios e aeronaves), o registo será instrumento de
publicidade suficiente, nada obstando, por isso, a que o bem permaneça em poder do constituinte da
garantia – Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 43. Por vezes, é o próprio legislador a considerar
que, na ausência de registo, o melhor meio para dar a conhecer a constituição do penhor (e admitir a sua
oponibilidade ser gerar injustiças para direitos de terceiros) é a entrega da coisa – cfr. preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939. Acerca da questão de saber se, nestes casos, estaremos
perante verdadeiros penhores ou diante de hipotecas mobiliárias, vide infra n.º 1.2 do Capítulo III.
838
Para Gino Magri, ob. cit., pág. 14 e segs., tendo em conta “La necessità economica fodamentale che i
terzi non siano lasciati nell’ignoranza della costituzione del rapporto di garanzia”, pois “L’ammissibilità
legislativa dei diritti di garanzia occulti sarebbe la rovina certa di ogni credito personale e reale e di
ogni sicurezza nelle contrattazioni sulle cose”, a tradição da coisa assume, no penhor, a mesma função
económica da inscrição da hipoteca, embora o Autor reconheça que o desapossamento não anuncia ao
público a constituição da garantia, “ma, essendo tolta al concedente qualunque parvenza di disponibilità
della cosa, il pubblico è impedito di considerar ela medesima come appartenente al patrimonio di
quello”. Realça igualmente esta função da entrega Enrico Poggi, ob. cit., pág. 437 e segs., assegurando ser
este o reverso do princípio da posse vale título, na medida em que o desapossamento exterioriza a
eventual privação do direito sobre a coisa, assim impedindo que os terceiros reputem como existente no
património do devedor um bem cujo valor se encontra potencialmente alienado a outrem em
consequência de um penhor anteriormente constituído (todavia, este Autor sublinha que “la tradizione
della cosa attiene alla pubblicità del diritto di pegno più nel suo aspetto negativo di spossessamento del
pignorante che non in quello positivo di impossessamento da parte del titolare del pegno”). Washington
de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 357, compara mesmo esta publicidade possessória à decorrente do
registo dos bens imóveis, considerando-a um sucedâneo desta (“a tradição do objecto empenhado torna
público o penhor, como o registro imobiliário torna também pública a hipoteca”), destinando-se a tornar
conhecida a terceiros a oneração do bem.
839
Qualifica expressamente como rudimentar a publicidade assegurada pelo desapossamento Rubino, Il
pegno cit., pág. 222, qualificação esta aceite por Gorila, ob. cit., pág. 68, nota 1, Barbara Cusato, ob. cit.,
pág. 189, Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 57 e, entre nós, Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 48.
Já Galvão Teles, Anotação cit., pág. 214, nota 32, prefere falar de publicidade de facto para justificar a
necessidade de entrega (concluindo que, na falta desta, os terceiros podem ser iludidos na sua boa fé, por
julgarem não existir qualquer ónus sobre o bem em questão – tanto mais que não existe qualquer registo
212
coisa na posse do empenhador, mas sim do credor, poderem legitimamente suspeitar
que aquela se encontra onerada.842 843
Todavia, esta publicidade pode bem ser equívoca, uma vez que o constituinte da
garantia se pode encontrar destituído da posse da coisa em razão de outros negócios –
como o comodato, a locação ou o depósito – que não impedem a respectiva oneração ou
execução a favor ou por parte dos demais credores do empenhante.844
de onde conste a garantia – e poderem, posteriormente, vir a ser surpreendidos pela existência de um
penhor anteriormente constituído), qualificação esta aceite por Joana Dias, ob. cit., págs. 43 e 201
(salientando que a ausência de registo para este tipo de bens se justifica pelo facto de aquele constituir um
obstáculo à celeridade do comércio jurídico, para além do carácter transformável de alguns destes bens e
da ausência de títulos que possam servir de base a esse registo) e por Serafino Gatti, Il credito cit., pág.
178, enquanto Penha Gonçalves, ob. cit., págs. 128 e 129, a rotula de rudimentar e ambígua (porquanto o
terceiro adquirente a non domino de coisa móvel não registável, ainda que de boa fé, não pode opor-se à
reivindicação por parte do proprietário do bem, até porque não vigora no ordenamento luso o princípio da
posse vale título).
840
Apelida-a assim Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 72.
841
Qualifica a publicidade decorrente da posse como espontânea ou material, Carvalho Fernandes, ob.
cit., pág. 90 e segs., alegando que a mesma funciona como meio exclusivo de publicidade para a
generalidade dos direitos reais que têm por objecto as coisas móveis.
842
Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 67 e 68, qualificam esta publicidade como constitutiva, no sentido em
que, mesmo se os terceiros souberem da existência de um título para a constituição de penhor, este não se
constituirá.
843
Afirma Paulo Cunha, ob. cit., págs. 189 e 190, que “a circunstância de se constituir um direito real de
garantia sôbre certa cousa è perigosíssima para todos aqueles que veem a contratar posteriormente com
o dono da coisa, quer para os que veem constituir novos direitos reais, confiados em que a cousa se
encontra livre, quer para os que veem a constituir relações de obrigação, confiando em que a cousa em
questão equivale a valor líquido do património responsável. Ver-se mais tarde, quando se chega a
apurar os resultados da situação do credor, que as cousas que tinham o aspecto dum património
largamente solvente se encontram absorvidas por direitos reais formados sôbre elas, é realmente causar
prejuízos graves e injustos a êsses terceiros que depois veem a contratar. (…) É pela circunstância de a
cousa deixar de estar em poder do devedor que a lei previne os terceiros de que ela se não encontra livre
e ao contrário se encontra onerada, designadamente com o penhor que sôbre ela recai.”. Salientam
igualmente este último aspecto, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., págs. 172 e 173, Antunes
Varela, Das Obrigações cit., Vol. II, pág. 525, Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 62, Salvador da Costa,
ob. cit., pág. 36, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 71 e 72 e, noutros países, Guillouard, ob. cit., págs. 93
e 94, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 69, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 84 e 85, Troplong, ob.
cit., pág. 90, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 532, Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 200,
Ismael Acevedo y Criado, ob. cit., pág. 68 e López, Montés e Roca, pág. 441. Consideram a publicidade
faca a terceiros como a principal função desempenhada pela entrega Guilherme Moreira, ob. cit., pág.
326, Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 547 (embora este último, atendendo às diversas formas
que a tradição do bem pode assumir, realce que o elemento essencial do penhor reside na privação da
possibilidade de o empenhante dispor materialmente do bem onerado, “O que se compreende, pois este
elemento tem uma função de publicidade essencial, evitando a criação de uma situação em que se
pudessem fiar terceiros, que em atenção a ela viessem a constituir direitos sobre a coisa empenhada”),
Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 455 e, principalmente, Weil, ob. cit., pág. 82 (criticando, em
consonância, que o desapossamento do devedor seja considerando por lei como condição de existência do
próprio direito de penhor, uma vez que para protecção dos terceiros bastaria impor aquele
desapossamento como mero requisito de oponibilidade do direito).
844
Como bem notam Joana Dias, ob. cit., págs. 43 e 44, “a simples detenção ou posse pignoratícia de
pouco ou nada esclarecerá terceiros quanto aos direitos que recaem sobre o bem em causa. O facto de
um bem se encontrar na detenção de um sujeito não indicará sequer, em princípio, que este será credor
pignoratício desse mesmo bem”, Paolo Piscitello, Costituzione in pegno di beni dell’impresa e
spossessamento, in BBTC, Volume 54, n.º 2 (Mar/Abr 2001), I, págs. 174 e 175 (“la mancanza di un
legame apparente non esclude la proprietà dei beni, poiché questo può mancare a causa di rapporti
obbligatori (locazione, ecc.) che non costituiscono ostacolo, né all’alienazione della cosa, né
all’agressione da parte dei creditori chirografari”) e Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 57,
nota 78 (sugerindo que o desapossamento apenas origina uma presunção de propriedade do possuidor,
não logrando qualquer desígnio publicitário da constituição da garantia e falando, por isso, de uma
213
Inversamente, todos os sujeitos estranhos ao negócio que encontrem o bem em
poder do credor pignoratício poderão, legitimamente, presumir ser este o seu
proprietário e não um simples titular de um direito real de garantia, destarte induzindo
em erro os seus credores acerca da solvabilidade do próprio credor pignoratício.845
Mais ainda, a circunstância de o bem onerado se encontrar em poder do credor
pignoratício permitir-lhe-á efectuar alienações e onerações a non domino, as quais,
apesar de inválidas, comprometerão a fluidez do comércio jurídico.846
Paralelamente, se o desiderato publicitário da entrega visa proteger terceiros,
cumpre realçar que tal tutela é, no mínimo, duvidosa relativamente a alguns deles,
nomeadamente aos credores comuns actuais do constituinte,847 excepto, porventura, nos
ordenamentos onde vigore a protecção da aquisição de direitos reais através da posse de
boa fé, servindo a publicidade possessória, face a tais credores, para evitar que lhes
possam ser opostos novos direitos entretanto criados pelo empenhante a favor de outrem
que lograsse entrar na posse do bem (embora não os salvaguarde quanto aos actos de
disposição praticados pelo credor pignoratício a favor de terceiros de boa fé que
obtenham a tradição da coisa).848
A finalidade publicitária do desapossamento do empenhante pode ser posta em
causa com especial ênfase naqueles ordenamentos - como o italiano, espanhol e francês
– em que a oponibilidade da garantia a terceiros se encontra dependente de uma
214
formalidade adicional à entrega, qual seja a redacção de um documento escrito contendo
a identificação dos bens onerados e da obrigação assegurada.849
Adicionalmente, registe-se que nenhuma obrigação legal decorre para o credor
de informar os terceiros do título a que detém o bem empenhado, o mesmo se valendo
quando a coisa empenhada for entregue a um terceiro e este (eventualmente traindo a
confiança nele depositada pelas partes) e não informa os terceiros acerca da existência
do vínculo: em qualquer destes casos, a publicidade não funciona,850 o que adensa as
dúvidas acerca da função publicitária ao desapossamento.851
A evolução recente do direito brasileiro parece comprovar a ausência – ou, pelo
menos, a escassa relevância – de intuitos publicitários na necessidade de entrega do bem
ao credor ou a terceiro, porquanto, apesar de ter instituído a obrigatoriedade de registo
(art.º 1432.º), manteve inalterado o carácter imperativo do desapossamento do
constituinte (art.º 1431.º), o qual se justifica com a necessidade de evitar a alienação
fraudulenta do bem por parte do empenhante e não com finalidades publicitárias.852
Noutra ordem de considerações, poderá questionar-se a coerência do próprio
sistema, uma vez que a nossa lei não exige a entrega do bem como requisito de validade
da venda de coisas móveis, não obstante a ilusão que este facto possa causar a terceiros
que, vendo a coisa em poder do vendedor, podem assumir ser este o seu proprietário.853
De facto, ao contrário de outros ordenamentos,854 no nosso direito a alienação de
bens móveis opera-se por mero efeito do contrato (cfr. n.º 1 do art.º 408.º), não existindo
sequer, apesar da transferência imediata da propriedade por mero efeito do contrato, a
protecção dos adquirentes de boa fé (através da consagração do princípio “posse vale
título”).855
849
Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 490 e 49, entende que a consideração “de la transmisión
posesoria y del estado de hecho que produce como um medio de publicidad en beneficio de los terceros
no parece suficiente al legislador, que, como establece en el artículo 1.865, impone para que la prenda
surta efectos contra éstos la necesidad de que conste la certeza de la fecha en instrumento público”.
850
Neste sentido, a respeito da actuação do terceiro, Gorila, ob. cit., pág. 68, nota 1, notando que, neste
caso, os terceiros adquirentes de boa fé obterão a coisa (ou outros direitos sobre ela) como livre, ao passo
que os terceiros que procedam à penhora da coisa deverão sofrer o concurso do credor pignoratício.
851
Vide, por todos, Ciccarello, ob. cit., pág. 691 e a doutrina citada na nota 87 e, entre nós, Lopes dos
Santos, ob. cit., págs. 44 e 51, particularmente no que se refere ao estabelecimento comercial, afirmando
que “não vislumbramos na entrega uma função de efectiva publicidade. Acresce que no caso do
estabelecimento comercial tal entrega é desse ponto de vista ainda mais inócua. Sobretudo quando de
maior dimensão, o estabelecimento comercial opera através dos trabalhadores e representantes, não
existindo uma relação física entre o local e o comerciante dono do negócio (…). Deste modo, a entrega
não constitui qualquer indício para terceiros de uma alteração do património do comerciante”.
852
Neste sentido, Sílvio Rodrigues, ob. cit., pág. 351.
853
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 104, em nota, relativiza esta discrepância por entender não
ser frequente o comprador de um bem móvel deixá-lo em poder do vendedor, mas ser plausível que o
credor pignoratício deixasse a coisa em poder do empenhador (caso o penhor se pudesse constituir sem
entrega).
854
Como acontece no direito espanhol (em que o art.º 609.º, n.º 2, do CCE, exige a tradição do bem
alienado, embora não necessariamente a sua entrega física ao adquirente) e alemão (§929 do BGB, apesar
de, também aqui a entrega material poder ser substituída pela criação de uma relação de mediação
possessória, mediante a cessão da pretensão de entrega ou a entrega de títulos de tradição – neste sentido,
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., Vol. I, pág.
553 e segs.) que exigem acto de transferência da posse para operar essa transferência, assim conferindo
publicidade à alienação no interesse de terceiros, surgindo a exigência da entrega como requisito de
constituição do penhor como factor de harmonização do sistema. No ordenamento jurídico alemão e não
obstante esta necessidade de tradição para transmissão da propriedade, protege-se igualmente o
adquirente a non domino de boa fé (§§932 e segs. do BGB) – Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág.
138, nota 295.
855
Como sucede nos direitos francês (art.º 2279.º do CCF), italiano (art.º 1153.º do CCI) e alemão (§929
do BGB).
215
Em face de todas estes reparos, uma corrente doutrinal nega a atribuição, por
parte do legislador, de qualquer função de publicidade à entrega do bem empenhado ao
credor pignoratício ou a terceiro, questionando a idoneidade da entrega como modo de
publicitação da constituição do penhor.856
Seja como for e apesar de todas estas objecções, resulta do regime geral do
penhor (cfr. art.º 669.º, n.º 1) não serem de admitir, na ausência de regimes especiais
(cuja aprovação é passível de diversos reparos)857 aqueles penhores não sujeitos à
publicidade – ainda que imperfeita – decorrente do desapossamento do constituinte.
856
Barbosa de Magalhães, Validade do penhor quando se convencione ficar o dono dos bens penhorados
seu depositário, in Gazeta da Relação de Lisboa, 1955, pág. 101 e segs.. Embora proferidas ainda na
vigência do anterior Código Civil, as palavras do Autor continuam actuais, especialmente quando afirma
que “essa entrega só por si não indica que a cousa passasse passasse para o credor em garantia de um
crédito, e não por força de uma venda, de uma doação, de um comodato, ou de um depósito, mas ainda
porque o Código, ao regular a compra e venda, o comodato, o depósito e a doação de mobiliários, não
se preocupou com essa ideia de publicidade. Se a cousa está em poder do credor, os terceiros só por essa
posse não sabem se ela resulta de qualquer daqueles contratos ou de penhor e, assim, (…) o credor
pignoratício, ao qual é entregue o objecto do penhor, pode abusivamente usá-lo, empenhá-lo, doá-lo,
alugá-lo, dá-lo em comodato, com possível prejuízo, não só do devedor e da pessoa com quem realizou
qualquer desses referidos contratos, mas também de terceiras pessoas”. Por isso, conclui “a entrega ou o
desapossamento não implicam a publicidade do penhor e não evitam os prejuízos de terceiros causados
pelo credor pignoratício, no caso da entrega, ou pelo devedor, no caso de simples desapossamento, com
a responsabilidade de fiel depositário”. Por outro lado, sendo o bem entregue a um terceiro, a pretensa
função publicitária da entrega aparece ainda mais esbatida, questionando o malogrado Professor se, neste
caso, ficarão os terceiros tendo conhecimento que o detentor seja o credor pignoratício… Ainda segundo
o mesmo Autor, se não é através da entrega do objecto empenhado ou do desapossamento do constituinte
que se toma conhecimento do surgimento do penhor, apenas poderá ser em virtude do respectivo título (a
menos que a constituição do penhor exija qualquer tipo de formalismo, como por exemplo o registo). Por
tudo isto, conclui não ser a entrega material do bem empenhado a única forma admitida para a
constituição do penhor, devendo-se “dar à palavra entrega do Código Civil a interpretação extensiva,
permitida e aconselhada pelo método histórico-evolutivo da interpretação das leis, no sentido de
considerar, não apenas a entrega real, material, da cousa empenhada, mas também a sua entrega
jurídica, isto é, entrega que para o caso tem o mesmo efeito jurídico”, enquadrando nesta entrega jurídica
o caso em que o bem empenhado permaneça em poder do seu proprietário, transformando este, a partir da
data da constituição da garantia, em fiel depositário do bem empenhado. Em termos análogos para o
direito italiano, Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., pág. 175 e segs., assegurando que a
necessidade de desapossamento não é imposta pelo princípio da publicidade da constituição do penhor.
857
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 44 a 46 e 49, critica diversos dos diplomas avulsos
criadores de penhores sem registo e sem entrega, até porque a sua disseminação desprotege mesmo o
credor contra a sua própria imprevidência ao aceitar uma garantia ilusória – devido ao risco de o devedor
alienar, transformar ou destruir o objecto da garantia – contra o seu interesse pessoal e até contra o
interesse geral do crédito. Em face destas considerações, o Autor citado apenas admite o penhor sem
desapossamento para aqueles bens dos quais o constituinte não se possa privar e/ou aqueles cuja detenção
não convenha ao credor, apontando como exemplo o penhor de estabelecimentos comerciais e, ainda, a
constituição de penhores através do recurso à técnica dos warrants (ou seja, através de um título de
crédito transmissível por endosso que representa o crédito do seu portador e um penhor para garantia
desse crédito), sendo que a constituição da garantia sobre tais bens deveria, em princípio, estar sujeita a
registo. Pelo contrário, o Autor contesta a opção legislativa de criar um penhor sem desapossamento a
favor de estabelecimentos bancários, independentemente do objecto da garantia, por considerar que “o
simples facto de o credor ser um estabelecimento bancário não parece justificar a dispensa do
desapossamento” e, em termos mais gerais a propósito dos penhores sem desapossamento, afirmando que
“é de travar esta inclinação para admitir garantias sem publicidade. Ou tais garantias não valerão
contra terceiros, e então não darão ao credor uma segurança perfeita; ou valerão contra terceiros, e
sacrificar-se-ão os interesses destes aos dos demais credores.” (cfr. pág. 56 em nota). Critica igualmente
a opção do legislador em criar penhores em que o devedor permanece em poder dos bens dados em
garantia, Guilherme Moreira, ob. cit., págs. 325 e 326, concluindo que “é necessário, para defesa dos
intrêsses de terceiros, que delas possa haver um registo, o que não se dá em relação ao penhor nos
empréstimos de crédito agrícola, afigurando-se que, pela faculdade que pelo decreto citado é dada ao
credor pignoratício de deixar os objectos em poder do devedor, podem ser gravemente prejudicados
216
Noutra ordem de considerações, principalmente num sistema como o nosso em
que se dispensa, para a constituição do penhor, qualquer documento escrito contendo a
indicação do crédito garantido e, sobretudo, do bem objecto do penhor, a entrega poderá
ainda desempenhar uma função de identificação a coisa dada em garantia.858
Esta função da entrega é sublinhada quando o penhor recaia sobre bens mal
individualizados, como sucede quando a garantia incida sobre coisas fungíveis - tais
como uma parte de um stock de mercadorias rigorosamente idênticas – consentindo a
traditio o cabal reconhecimento da res onerada.859
Em particular e nos termos do n.º 2 do art.º 408.º e do art.º 539.º, a constituição
ou transferência da direitos reais, por efeito de contrato, de bens indeterminados apenas
se dá com a determinação com conhecimento de ambas as partes (quanto às obrigações
genéricas – determinadas apenas quanto ao género, de acordo com o art.º 539.º - e salvo
convenção em contrário, a escolha cabe ao devedor, assim concretizando a chamada
concentração da obrigação, a qual poderá ocorrer em momento anterior ao cumprimento
nos casos previstos no art.º 541.º):860 861 significa isto que, antes de o bem empenhado
ser entregue ao credor pignoratício, é premente determinar “qual” o bem, de entre os
diversos do mesmo género, constitui objecto da garantia.
A entrega e em particular o desiderato de identificação do bem empenhado,
afigurar-se-á, conforme salientado anteriormente, problemática quando esteja em causa
a constituição de penhor sobre bens futuros,862 até porque constituição ou transferência
da direitos reais, por efeito de contrato, de bens futuros (entendidos aqui como aqueles
que não se encontram em poder do disponente ou às quais este não tem direito no
momento da declaração negocial - cfr. art.º 211.º) apenas se opera quando a coisa for
adquirida pelo transmitente (art.º 408.º, n.º 2): ou seja, mesmo antes da entrega ao
credor pignoratício, o empenhante deverá adquirir um direito sobre o bem que lhe
terceiros. Estes não poderão fácilmente saber quais os bens do devedor livres e desembargados, sendo
esta a principal razão por que se exigia que o devedor se desapossasse do penhor”. Em termos mais
gerais, Paulo Cunha, ob. cit., pág. 189, sustenta que “qualquer regime de preferências especiais tem de
ser acompanhado de formalidades de publicidade destinadas a prevenir terceiros de que se encontra
constituído um direito real de garantia sôbre a cousa”, acrescentando que, tratando-se de bens móveis,
pelo menos nas que não sejam passíveis de registo, esse desiderato será alcançado recorrendo “à entrega
da cousa ao credor ou a um terceiro, já que na prática se entende que quem pode dispor da cousa é quem
a tem em seu poder”.
858
Evidencia este aspecto Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 71, realçando como, deste modo, se impede a
constituição de penhores genéricos.
859
Realçam este aspecto Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 200 (asseverando que, deste modo, se
protegerá o devedor e os seus credores), Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 259 (afirmando que, assim, se
impede a constituição de penhores genéricos) Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 229 e 230
e, especialmente, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 532 e 533, salientando que o direito de
penhor não poderá nascer, por falta de determinação do objecto, se as mercadorias a empenhar não forem
isoladas das demais e identificadas através da sua entrega, à imagem do que sucede a venda de coisas
fungíveis, na qual só após a entrega ocorre a transferência da propriedade.
860
Designadamente quando as partes assim o estipulem, quando o género se extinga de modo que apenas
reste uma das coisas nele compreendido ou quando o credor incorrer em mora.
861
Quanto aos frutos naturais e às partes componente ou integrantes, a transferência só se verifica no
momento da colheita ou separação (art.º 408.º, n.º 2, in fine).
862
Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 88 e 89, negam, tendo em conta a insusceptibilidade de tradição,
a constituição de um penhor sobre bens futuros (a única excepção respeita aos casos em que seja possível
entregar materialmente uma coisa que adquirirá valor após a constituição do penhor, apontando como
exemplo o penhor de títulos ao portador não colocados em circulação), embora admitam que estes
objectos possam ser objecto de um contrato-promessa de penhor. No mesmo sentido, Aynès e Crocq, Les
sûretés cit., pág. 202, acrescentando que esta promessa não é passível de execução específica e apenas
admitindo a constituição de penhor sobre bens futuros quando o desapossamento não for exigido, em
razão do objecto da garantia, por lei.
217
permita, posteriormente, constituir a garantia e efectuar a traditio da res ao credor
pignoratício.
Uma outra função associada à entrega prende-se com o efeito persuasivo ou
coercivo que a privação da detenção do bem por parte poderá criar no devedor,
incitando-o a cumprir pontualmente a obrigação garantida, a fim de recuperar aquela
detenção.863
Esta mesma função pode ser encarada numa óptica diversa, isto é, considerando
a obrigação de desapossamento do constituinte como uma forma de protecção deste,
alertando-o para a importância do acto de concessão da garantia, em termos análogos ao
que sucede com a imposição certas formalidades para a celebração de determinados
negócios jurídicos.864
Por outro lado, poder-se-á justificar a imperatividade do desapossamento
considerando que este é condição da atribuição ao credor pignoratício da faculdade de
recolha dos frutos do bem empenhado (cfr. art.º 672.º).865
Há, ainda, quem faça repousar a exigência da entrega na própria essência da
garantia pignoratícia, uma vez que todo o regime jurídico do instituto se encontra
ancorado na outorga da posse do bem ao credor.866
Por último, importa notar que, não raras vezes, é reconhecida à entrega do bem
ao credor ou a terceiro uma multiplicidade das funções acabadas de enumerar, não se
863
Referem esta função Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 227, salientando igualmente os
inconvenientes, para o devedor, da entrega, ao ponto de qualificarem o penhor como uma garantia que
apenas poderá ser prestada por ricos (e que, segundo um adágio, “on ne prête qu’aux riches”) e Barrada
Orellana, ob. cit., págs. 114 e 115 (realçando, todavia, que essa função coerciva apenas será efectiva
quando o constituinte da garantia seja o próprio devedor, caso contrário a pressão funcionará apenas
contra o terceiro proprietário do bem empenhado - quando muito poder-se-á falar de uma pressão
indirecta deste último para com o devedor). Contra, Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 120 (sustentando que
“Al contrario, lasciando al debitore il posseso del bene e permettendogli di proseguire la sua attività
produttiva, gli si offra il miglior incentivo per indurlo ad estingure il debito contratto”) e Francesca
Dell’Anna Misurale, ob. cit., págs. 62 e 63 (assegurando que a pressão ao cumprimento reside “nel potere
attribuito al creditore di conservare il vincolo sulla cosa e di farlo valere in sede di esecuzione forzata
con preferenza su qualsiasi altro creditore”, pelo que “La c.d. pressione si realizza quindi in
conseguenza della garanzia pignoratizia e non dello spossessamento in sé considerato: uguale pressione
subisce il debitore ipotecario”).
864
Encaram esta função do desapossamento sob esta óptica, Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 200, ao
ponto de considerarem ser esta a única finalidade do desapossamento do devedor a justificar a sua
manutenção no direito actual, porquanto as demais funções, por eles reconhecidas, poderiam ser
alcançadas recorrendo a mecanismos alternativos.
865
Aflora esta possível função do desapossamento Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 66 e segs., embora,
ao entender que o poder atribuído ao credor de fazer seus os frutos do bem empenhado não constitui um
poder-dever (ou melhor, o dever apenas existirá quando a actividade do credor se resolva numa simples
recolha dos frutos, uma vez que nos outros casos “quando la natura del bene dato in pegno e/o
l’impossibilità di procedere all’imputazione dei frutti (…) rendano necessario lo svolgimento di una vera
e propria attività gestioria da parte del creditore, quest’ultimo ha facultà di porla in essere, ma non il
dovere di farlo”), mas sim uma faculdade atribuída ao credor, negue ser esta a verdadeira razão da
transferência da posse do bem empenhado (pois “Solo nell’ipotesi in cui il creditore pur non essendo
tenuto fa propri i frutti del bene e, non potendo procedere alla loro immediata imputazione, li conservi in
vista della escussione del pgno la diciplina dall’art. 2791 c.c. contribuisce a definire il contenuto della
garanzia; in tutte le atre ipotesi, invece, il regime di apprensione dei frutti del bene impegnato, nel
consentire la soddisfazione immediata sugli stessi, non sembra attuare la funzione della garanzia”, pelo
que o regime jurídico dos frutos não incide, de modo relevante, sobre a função do penhor, de modo que
“la facoltà attribuita al creditore di farli propri, imputandoli al credito, è coerente alla finalità per la
quale egli possiede il bene; ma non è certo la ragione per cui il possesso gli è trasferito”).
866
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 491.
218
reconduzindo a apenas a uma delas o móbil que presidiu à sua consagração desta
exigência.867
Atendendo a estes objectivos visados pelo desapossamento/empossamento, este
deve processar-se de modo a privar o empenhante de qualquer disponibilidade material
sobre a coisa dada em garantia,868 e muito embora a lei não estabeleça qualquer prazo
para o adimplemento deste requisito, (desde que em momento anterior ao da penhora ou
de qualquer outro acto de apreensão material do bem onerado, designadamente o que se
produza no âmbito de um processo de insolvência)869, sendo a vontade das partes
impotente para dispensar essa entrega.870
Cumpre, por isso, esclarecer quais, de entre as diversas modalidades que a
tradição de um bem pode assumir, as que satisfazem aqueles desideratos.
Em face dos objectivos visados com o desapossamento e acabados de expor, a
posse a atribuir ao credor pignoratício deverá ser efectiva,871 real872 imediata,873
867
Assim, por todos, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter
Eickmann, ob. cit., pág. 1479, atribuindo àquela entrega uma finalidade instrumental, destinada à
exteriorização do direito, ao impedimento de actos prejudiciais ao credor e à agilização da execução do
bem empenhado. Os Autores realçam que o intuito publicitário visado pela entrega do bem ao credor era
o de impedir, à imagem do que sucede com as garantias imobiliárias, que algum terceiro – usando um
mínimo de diligência – pudesse ser surpreendido pela constituição de uma garantia mobiliária: “Pero esas
precauciones lo que hicieron fue tensar demasiado la cuerda: el crédito se vio obligado a buscar el
camino de la transmisión en garantía, con todas sus notas de clandestinidad”. Também Rubino, Il pegno
cit., págs. 218 e 219, realça que a transferência da posse do bem empenhado para o credor cumpre ainda
outras funções, como sejam possibilitar o exercício do direito de retenção (salienta este mesmo aspecto
Troplong, ob. cit., pág. 90), facilitar a percepção dos frutos e a venda judicial da coisa objecto da garantia
(na medida em que se dispensa a apreensão judicial do bem, pois este já se encontra em poder do credor).
Adoptando uma perspectiva ligeiramente distinta, Gorila, ob. cit., págs. 68 e 69, considera o
desapossamento condição de exercício do direito de retenção, das acções possessórias e de reivindicação,
da recolha dos frutos, do direito de requerer o sequestro do bem empenhado e de optar pelas modalidades
mais expeditas de venda previstas especificamente para o penhor (uma vez que o bem já se encontra em
poder do credor pignoratício). Afirma, em termos mais abrangentes, que toda a disciplina legal da relação
pignoratícia pressupõe o empossamento do credor pignoratício Ciccarello, ob. cit., pág. 691.
868
Nestes termos, Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 197.
869
Aludem à ausência de qualquer limite temporal fixado na lei para o empossamento do credor ou do
terceiro Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 236, Hardel, ob. cit., pág. 53 e segs Guillouard, ob. cit., págs. 118
e 119 e Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 86, admitindo, por isso, que este fenómeno ocorra a
qualquer momento, desde que entretanto não tenha ocorrido qualquer acto de apreensão material do bem
objecto da convenção pignoratícia (como sejam a penhora ou a declaração de falência).
870
Assim, expressamente, Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 48.
871
Exige que ao credor seja atribuída a posse efectiva do bem empenhado, Francesca Dell’Anna
Misurale, ob. cit., pág. 53, nota 73. O CCB, no seu art.º 1431.º, dispõe expressamente que o penhor se
constitui pela transferência efectiva da posse do bem onerado, entendendo, por isso, Washington de
Barros Monteiro, ob. cit., pág. 357, que a lei não se satisfaz com a tradição simbólica, do mesmo modo
que a jurisprudência considera não haver penhor sem entrega do bem ao credor ou a terceiro (porém, o
CCB prevê figuras especiais de penhor sem desapossamento, tais como o penhor rural, o penhor industrial
e o penhor de veículos automóveis).
872
Fala de empossamento real do credor, por contraposição a um empossamento contratual (que
consistiria na permanência do bem em poder do empenhador, bastando a aposição no contrato de uma
cláusula, nos termos da qual a partir dessa data o devedor passaria a possuir o bem em nome do credor),
negando a admissibilidade deste último como forma de constituição do penhor (pois, deste modo, apagar-
se-ia qualquer efeito publicitário da constituição da garantia, permanecendo o devedor, aos olhos de
terceiros, na mesma situação anterior a esse facto), Guillouard, ob. cit., págs. 102 e 103 (também Guillarte
Zapatero, Comentario cit., pág. 491, acrescentando que, além de real, deverá ser verdadeiro e aparente).
873
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 108, admite mesmo que, sendo o empenhador apenas
possuidor mediato da coisa ou mesmo que não tenha posse alguma, o penhor se possa constituir através
da entrega, por determinação do empenhador, do bem ao credor pignoratício por parte do possuidor
imediato (como sucederá, por exemplo, se o empenhador, dono da coisa, ordene ao locatário a sua entrega
ao credor e este venha efectivamente a fazê-lo), afirmando que “é como se fosse entregue directamente
219
exclusiva,874 notória,875 ostensiva876 e aparente877 implicando o desapossamento
material do empenhante878 ou, pelo menos, a perda da disponibilidade material do bem
por parte deste.879
No entanto, alguns ordenamentos mostram uma maior abertura, considerando ser
decisivo que o bem saia do poder directo do empenhante (e não tanto a cognoscibilidade
da relação entre este e o credor pignoratício), de modo que os terceiros não sejam
induzidos em erro relativamente a uma situação patrimonial aparente, mas
inexistente.880
Porém, a retirada da disponibilidade exclusiva do bem empenhado ao
empenhador e a sua consequente passagem para o credor não significa que a coisa não
pelo empenhador ao credor”. Quando este mecanismo for inviável (designadamente por não ser
conveniente o desapossamento do possuidor imediato), Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 126 e
127, propõe a seguinte solução: o empenhador transmitirá a posse mediata ao credor pignoratício,
notificando a constituição do penhor ao possuidor imediato ou indicando-lhe que passa a possuidor para o
credor, não deixando, porém, o empenhador de ser possuidor, uma vez que o credor assume o papel de
mediador possessório do concedente da garantia (acrescentando que, encontrando-se a coisa em composse
imediata de diversos sujeitos, a todos eles deverá ser efectuada a notificação).
874
No sentido de excluir a manutenção de qualquer poder análogo por parte do devedor – cfr. Baudry-
Lacantinerie, ob. cit., págs. 60 e 61.
875
Cfr. Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 85. Estes Autores acresentam que “il faut que la chose soit
mise à la disposition du créancier dans des conditions telles que le constituant ne puisse plus s’en servir
pour augmenter son crédit”.
876
Utiliza esta expressão Hardel, ob. cit., pág. 50 e segs., entendendo que a mesma representa a exigência
de publicidade do desapossamento “destinée à faire apparaître le changement qui s’est produit, de façon
a avertir les tiers que le constituant ne peut obtenir aucun crédit sur les biens engagés”, concluindo, em
consonância, pela inadmissibilidade de uma tradição ficta e do constituto possessório (embora admita que
um credor pignoratício possa aceitar manter a disponibilidade do bem também por conta de outro credor).
877
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 42, acrescentando que a posse do credor pignoratício deve ser também
permanente, embora ressalvando que “La loi n’avant pas défini de façon précise les éléments nécessaires
pour la notoriété de la mise en possession, celle-ci dépend par la nature même des choeses de
circonstances variables et complexes dont l’appréciation appartient souverainement aux juges du fond”.
Também Henri Mazeaud, ob. cit., págs. 147 e 148, exige que a o desapossamento seja, para além de
efectivo e notório, aparente (excluindo, em conformidade, a licitude da tradição ficta, através da qual o
proprietário conserve o bem em seu poder a título de locatário ou possuidor precário).
878
Assim, expressamente, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 104, Rubino, Il pegno cit., pág. 219
e Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 60 (afirmando este último que “il faut que la mise em possession du
créancier soit un fait apparent d’une notoriété suffisante pour avertir les tiers que le débiteur est dessaisi
et que l’object engagé ne fait plus partie de son actif libre.”). Já Enrico Poggi, ob. cit., pág. 438, exige,
para cumprir a sua função publicitária e de defesa da boa fé de terceiros, que o desapossamento seja
“effetivo e, per cosi dire, constatabile de visu” e, por isso, deva respeitar “all’elemento obbiettivo del
possesso, cioè alla disponibilità in fatto della cosa; in altri termini alla detenzione”.
879
É a posição de Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 72
880
Relatam ser esta a perspectiva dominante no direito alemão, Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1492 a 1494 e, em consequência,
admitem que o penhor se possa constituir através de qualquer alteração da posse imediata do bem, desde
que o credor fique, pelo menos, com a posse mediata (como sucederá se um mediador possessório do
empenhante entregue o bem a um mediador possessório do credor pignoratício), embora alertem que este
critério largo se presta a dúvidas em diversos casos, como sejam o da entrega de todas as chaves do
armazém onde se encontrem guardados os bens empenhados (admitindo o credor o nascimento do penhor
apenas se o empenhante não tiver conservado em seu poder nenhuma chave). No seguimento deste
entendimento, os Autores defendem que, quando se proceda unicamente à entrega mediata do bem ao
credor, o empenhante deve notificar (oralmente, por escrito ou através de actos concludentes) o mediador
possessório da constituição da garantia, dando lhe conta que agora passa a possuir em nome do credor
pignoratício (com o dever do possuidor imediato alertar os terceiros interessados do ónus que impende
sobre o bem).
220
possa ser retirada ao credor, mas apenas que, do ponto vista da disponibilidade, se
encontre na mesma situação das demais coisas que estejam em seu poder.881
Noutra ordem de considerações, saliente-se que a posse do credor se manifesta
relativamente ao devedor e, de forma diversa, perante terceiros.882
Mas, para a subsistência da garantia, não basta o empossamento do credor, sendo
ainda necessário que essa posse se mantenha883 enquanto não for liquidada a obrigação
garantida (cfr. art.º 677.º, nos termos do qual a garantia se extingue com a restituição do
bem empenhado ao constituinte), para a defesa da qual goza das acções possessórias
(art.º 670.º, alínea a)).884
Esta necessidade de o bem empenhado permanecer na posse do credor durante
todo o período de vigência da garantia poderá considerar-se, ao menos de acordo com
determinada perspectiva, um entrave à substituição do objecto da garantia.
Pelo contrário, um entendimento menos rígido mostra uma maior abertura a esta
permuta, ao menos quando sejam cumpridos determinados requisitos, mormente quando
exista uma expressa previsão legal nesse sentido ou mesmo, na sua ausência, quando o
objecto do penhor seja constituído por bens fungíveis e exista um acordo das partes
nesse sentido885 (orientação esta que encontra algum acolhimento ao nível da
881
Assim, Rubino, Il pegno cit., pág. 220.
882
Opera esta distinção Hardel, ob. cit., pág. 46 e segs., concretizando que no primeiro plano a posse
funciona essencialmente como um meio de pressão sobre o devedor, compelindo-o a cumprir para reaver
o bem (não tendo, por isso, o credor qualquer animus domini, até porque o constituinte da garantia
permanece proprietário). Pelo contrário, relativamente a terceiros, o credor dispõe de uma posse real, no
sentido em que tem “une véritable intention de la possession sur la chose, intention d’user son droit” e,
por isso, lhe é conferida legitimidade para usar as diversas acções possessórias.
883
Contra, Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 717 e 718, alegando que “Una vez costituido el
derecho real de prenda, ya no importa que la cosa salga de la posesión del acreedor (o del tercero);
aquél subsite aunque dicha posesión se pierda, o aunque pase la cosa a la posesión de otra persona o
incluso a la del concedente”, já que o credor “siempre que corresponda, puede ejercitar las oportunas
acciones reales que su derecho de prenda le confiere, para recuperar la posesión”, especialmente a acção
de reivindicação. Deste modo, a preferência do credor mantém-se, mesmo que o bem onerado não se
encontre em seu poder, desde que disponha de algum meio para o recuperar, pelo que “ni a que perdida la
posesión se extinga el derecho de prenda (…) ni a que no se tenge el derecho al cobro sobre la prenda
que esté en posesión de otro. Sino que, por el contrario, el derecho real subsiste, a pesar de no poseer la
cosa el acreedor, y puede reclamarla de quien la posea, y aunque no la haya recobrado puede aspirar a
obtener la satisfación sobre su precio, de la obligación garantizada. Y únicamente hay que, por
excepción, si no posee la cosa no goza de la preferencia cuando existe concurso de acreedores (y no en
otro cualquier caso de querer el poseedor cobrar aisladamente su crédito) excepción basada en la
especial delicadeza de la situación de concurso y en la necesidad de reforzar las garantías de los demás
acreedores, para evitar riesgos de que en casos indebidos, cobren unos y otro no”.
884
Sobres estes assuntos, vide infra n.ºs 9.1 e 10.2 do Capítulo II.
885
Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 87 e 88, (embora considerando que a substituição dos objectos
empenhados origina a perda da preferência pignoratícia, não podendo aplicar-se o instituto da sub-
rogação real, uma vez que este tem carácter excepcional) admitem a substituição quando se trate de bens
fungíveis, nomeadamente quando as partes convencionem que as mercadorias depositadas e destinadas a
ser vendidas à medida do seu envelhecimento sejam substituídas, como objecto do penhor, por outras da
mesma natureza e quantidade - justificando esta solução, não através do recurso à sub-rogação legal, mas
com base na ideia que as mercadorias de substituição se encontram, por convenção das partes, oneradas
com o direito de penhor à medida que forem entregues ao credor). Outros Autores aceitam a substituição
automática, quando se trate de bens fungíveis (Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 55 e Théry, ob. cit.,
pág. 299) ou também das indemnizações devidas pelas seguradoras em caso de destruição do bem
empenhado (Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 180, e Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 260 - este último
reconhece, porém, que a jurisprudência apenas admite tal efeito sub-rogatório se convencionado pelas
partes - Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 457, nota 4 (citando decisões judiciais que admitem a
sub-rogação sobre as indemnizações - em caso de destruição da coisa - ou se os bens empenhados forem
fungíveis) e mesmo sobre bens identificados através da sua inscrição numa conta, como acontece com os
instrumentos financeiros (Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 201). Dá conta destas decisões,
221
jurisprudência lusa886 e, desde tempos remotos, em diversos arestos gauleses),
nomeadamente no âmbito de garantias rotativas, fazendo apelo ao instituto da sub-
rogação real.887
Considerando as exigências que o empossamento do credor (ou de terceiro) visa
satisfazer, será de recusar a idoneidade, para efeitos da constituição de penhor, da
tradição efectuada através de um mero constituto possessório,888 assumindo o credor
jurisprudenciais neste mesmo sentido Hardel, ob. cit., pág. 53 (relatando que a posição domiante aponta
para “que le nantissement porte automatiquement sur les valeurs de remplacement, la perte du privilège
étant manifestement contraire à l’intention des parties et au but du contrat intervenu entre elles”).
886
Por exemplo, no Acórdão do STJ de 26/6/1953 (in BMJ n.º 37, 1953, pág. 423 e segs.), assegura-se a
validade de um penhor mercantil no qual o devedor estava autorizado a usar os bens empenhados, com a
obrigação de substituir por outros os que se gastem, percam ou deteriorem, assegurando a viabilidade de
uma cláusula do contrato de penhor nos termos da qual “os devedores podiam servir-se dos bens móveis
empenhados, no local onde se encontravam e para os fins a que se destinavam, e substituí-los por outros
de igual ou superior qualidade, quantidade e valor, mas de forma a manter-se sempre a integralidade do
penhor”. No mesmo sentido, vide o Acórdão do mesmo tribunal de 13/11/1953 (in BMJ n.º 40, pág. 462 e
segs.), onde se pode ler que, ao menos o regime do Decreto-Lei n.º 29833, “consente que os objectos
dados em penhor fiquem em poder do próprio devedor, como seu depositário, podendo movimentá-los no
exercício da sua exploração fabril e comercial, substituindo-os por outros da mesma espécie, natureza e
valor, isto é, renovando os stocks mas ficando sempre responsável pelas existências correspondentes. Foi
mesmo esse o fim que esse Decreto teve em vista para evitar que os objectos dados em penhor se
perdessem ou desvalorizassem com o decurso do tempo e ao devedor fosse tolhido o exercício da sua
actividade”. Caso curioso é o relatado no Acórdão do STJ de 20/11/1953 (in BMJ n.º 40, 1953, pág. 473 e
segs.), em que estava em causa determinar os efeitos da alteração do objecto empenhado –
originariamente composto por caixas de conservas de peixe, passando, posteriormente, a recair sobre latas
vazias, azeite, óleo de amendoim e outras matérias primas – tendo o tribunal considerado que, tendo o
objecto do penhor sido vendido ou desencaminhado pelo seu fiel depositário, o penhor se extinguiu,
fundamentando a sua decisão na distinção entre a modificação, por um lado, e a substituição ou
dissipação da garantia: “o Decreto n.º 29833 permite no penhor bancário, que o devedor possa, mediante
prévia autorização escrita do credor, modificar o objecto do penhor. Ora modificar, com prévio acordo
do credor, o objecto do penhor, não é manifestamente o mesmo que substituir o objecto por outro
diferente, antes de destruído ou dissipado, sem o consentimento do credor; modificar o objecto do
penhor, no sentido da lei, é substituir, com prévio conhecimento, coisas de uma espécie por outras da
mesma espécie, ou seja, a substituição coisa por coisa, em espécie, valor e qualidade. É evidente que o
legislador quis evitar, sem extinção da garantia, a desvalorização do objecto penhorado ou a sua perda,
permitindo que possa ser substituído por outra coisa da mesma espécie, qualidade, peso e valor; assim, o
legislador, prevendo a deterioração ou a perda das coisas penhoradas e o consequente prejuízo,
conciliou os interesses do credor com os de terceiros e mesmo com os do próprio devedor. (…) houve, no
caso sub judice, dissipação do objecto do penhor (…) substituindo as coisas dissipadas por outras muito
diversas. Por consequência não se trata de modificação do objecto do penhor, prevista no mencionado §
1.º, pois nem sequer a modificação foi autorizada”: esta solução causa-nos grande perplexidade,
porquanto, a reboque da ausência de consentimento do credor, impede a alteração do quid onerado, em
prejuízo desse mesmo sujeito, o que resulta censurável pois, por menor que fosse o valor dos novos bens
onerados, sempre seria maior do que o efeito declarado de pura e simples extinção da garantia.
887
Fundam a admissibilidade de substituição dos bens originariamente empenhados na figura da sub-
rogação real Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 534 e 535 (dando até exemplos de normas
legais que consagram esta substituição, nalguns casos operando de modo automático, salvo convenção em
contrário e asseverando que, através do desapossamento, as coisas fungíveis são individualizadas e, por
isso, podem ser alvo da aplicação daquele instituto), e Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág.
241 (mas apenas se referem aos bens perecíveis, citando, em conformidade uma decisão da Corte de
Cassação datada de 1915!). Acerca da admissibilidade da invocação da figura da sub-rogação real como
fundamento da substituição dos bens onerados, vide infra n.º 3.2.5 do Capítulo II.
888
Manuel Rodrigues, ob. cit., pág. 206, realça que esta figura “Consiste na conversão de uma posse em
detenção, em consequência da realização de dois actos jurídicos simultâneos – um principal e outro
acessório: um acto jurídico que tenha como consequência a transferência da posse daquele que até ali
era o seu titular, e depois um outro em virtude do qual seja considerado como detentor”.
222
pignoratício o papel de possuidor mediato, ficando o empenhador como possuidor
imediato e, simultaneamente, mediador possessório daquele.889
Se assim não for, o penhor ficará privado de qualquer publicidade, uma vez que,
aos olhos de qualquer terceiro, tudo se passaria como se não tivesse havido constituição
da garantia, pois não existe qualquer deslocação física da coisa empenhada, a qual
permanece sempre em poder do empenhante.890
889
Quer se trate de constituto possessório abstracto (a mera declaração de pretender transferir a posse da
coisa não acompanhada de qualquer alteração da situação de facto) ou concreto (a declaração de tornar
outrem possuidor, acompanhada de uma justa causa de retenção da parte do concedente, permanecendo a
detenção material da coisa neste último) – acerca desta distinção, Rubino, Il pegno cit., pág. 219,
acrescentando ser nulo o pacto através do qual o credor se obrigasse a restituir temporariamente a coisa ao
constituinte, a pedido deste (afirmando que o único efeito produzido por esta convenção será o
renascimento do penhor se a restituição vier a ocorrer). Negando igualmente a idoneidade do constituto
possessório como modo de desapossamento do empenhador, Weil, ob. cit., pág. 82, Théry, ob. cit., pág.
299, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 55, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 238,
Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 535, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 189, Gorila, ob. cit., pág.
76, Realmonte, Il pegno cit., pág. 658, Protettì, ob. cit., pág. 65, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 438,
Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 53, nota 73 (afirmando que “Il possesso che vale come mezzo
di publicità è il possesso materiale, effettivo, non già il possesso giuridico, perché questo include
elementi di natura spirituale che i terzi non possono percepire”), Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1875
(“porque en éste no hay desplazamiento efectivo de la propriedad”), Guillarte Zapatero, Comentario cit.,
pág. 491, Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 717 (uma vez que o bem permanece em mãos do
devedor), Puig Brutau, ob. cit., pág. 29 (asseverando que o devedor deverá perder sempre a posse
imediata do bem empenhado), Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2144 (negando que a exigência de
desapossamento possa ser cumprida através de qualquer acordo nos termos do qual o constituinte da
garantia se mantenha como depositário do bem onerado), Barrada Orellana, ob. cit., pág. 117, Caio Mário
da Silva Pereira, ob. cit., págs. 338 e 339 (salvaguardando, porém, os penhores sem desapossamento
entretanto criados por lei) e, entre nós, Almeida Costa, Direito das obrigações cit., pág. 927 (escrevendo
que “O que se afigura indispensável é que a posse exerça a função de publicidade. Isso não sucede se o
credor fica apenas na situação de possuidor mediato e o empenhador na de possuidor imediato ou seu
mediador possessório: por exemplo, se o dono da coisa empenhada continua com ela a título de depósito.
Exclui-se, pois, a hipótese do chamado constituto possessório”) e Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 63,
nota 1. Em sentido contrário, Faggella, ob. cit., págs. 100 e 101, procurando refutar os argumentos
aduzidos em favor da opinião oposta, considera não ser verdade que o constituto possessório faça
permanecer a coisa na livre disposição do devedor, uma vez que a sua posição relativamente à posse teria
mudado, passando o devedor a ser um simples detentor em nome e por conta do verdadeiro possuidor,
único a quem cabem as acções possessórias (embora reconheça que o devedor pode dispor materialmente
da coisa, mas ressalva que tal circunstância em nada afecta a transferência da posse para o credor);
relativamente ao facto de a permanência da coisa em poder do devedor ser susceptível de induzir em erro
os terceiros – até porque tal facto em nada contende com a transferência da posse entretanto ocorrida e
que é um elemento necessário ao nascimento do privilégio pignoratício – em razão da ausência de
publicidade da constituição da garantia, o Autor sustenta que o legislador não pretendeu criar uma
verdadeira forma de publicidade, mas tão somente referir-se ao conceito romanístico de posse em todos
os seus diversos modos, incluindo o constituto possessório (ou seja, o legislador ao referir-se à “entrega”
visou referir-se à transferência da posse, independentemente do modo através do qual este se concretize),
até porque é aceite pela generalidade da doutrina a possibilidade de transferência da posse pela via da
traditito brevi manu (quanto aos terceiros, os perigos que estes podem correr existirão sempre enquanto
não for criado um sistema de publicidade registal, aberto à consulta de todos, pelo que mesmo a entrega
material não elimina os inconvenientes da ausência deste sistema, dado que a posse da coisa pode ser
dissimulada a outro título).
890
Atente-se no seguinte exemplo: o proprietário do bem dá-o em penhor, mas continua em poder da
coisa a título de depósito, de comodato ou de locação, ou seja, o bem nunca chega a sair das mãos do
empenhador proprietário (reconhecendo que semelhantes modos de constituição do penhor eram
admitidos no direito romano, mas não o poderão ser no direito moderno, tendo em conta a ilusão que tal
facto poderá causar a terceiros, vide Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 61 e, principalmente, Simon
Quincarlet, ob. cit., pág. 321 e segs., advertindo este último que o exercício da posse parcial do credor
pignoratício por intermédio do devedor – que perceberia directamente as utilidades do bem – redundaria
numa diminuição da garantia do para o próprio credor pignoratício e, sobretudo, porque “la dépossession
223
Nesta conformidade e permanecendo a coisa em poder do empenhador, pode
considerar-se que, ao menos do ponto de vista dos terceiros, este seria um penhor sem
desapossamento.891
Acresce que, nalguns casos, o constituto possessório é utilizado com fins de
garantia, ou seja, inserido num negócio de natureza fiduciária, assim permitindo iludir
as regras essenciais do penhor, maxime a necessidade da entrega.892
Não obstante esta aparente unanimidade doutrinal, no plano interno893 e externo,
no sentido de negar a aptidão do constituto possessório para dar vida ao penhor, não
faltam decisões jurisprudenciais admitindo, seja à luz das normas do Código
Comercial,894 seja mesmo ao abrigo do regime do Código Civil,895 a constituição de
resultant ici d’une simple intercersion du titre du débiteur ne peut rendre public le droit du gagiste; d’où
la necessité d’une publicité spéciale”).
891
Considera que no penhor sem entrega do bem a posse do mesmo se transfere para o credor pignoratício
através de um constituto possessório ou, dito de outro modo, que o constituto possessório origina o
surgimento de um penhor sem desapossamento, Galvão Teles, O penhor sem entrega no direito luso-
brasileiro, in Scientia Iuridica, IV (15-20), 1955, pág. 212, nos seguintes termos: “O dono de certa coisa
empenha-a, mas conserva-a em seu poder. Não há transmissão material do objecto, mas há transmissão
jurídica. Resulta de uma atitude psíquica dos sujeitos. O proprietário, que até aí possuía em nome
próprio, passa a possuir em representação do credor, e possuidor em nome próprio torna-se este último
(…). Esta transformação psicológica corporiza-se em dois actos jurídicos de sentidos opostos: o contrato
de penhor e o contrato de depósito. Pelo primeiro o proprietário constitui em benefício do credor o
direito real pignoratício; pelo segundo o credor dá a coisa em depósito ao proprietário. As duas
entregas, que normalmente correspondiam a esses contratos, tornam-se desnecessárias, mas a posse
transmite-se como se eles se fizessem”.
892
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 134 a 137, socorre-se do exemplo alemão, país no qual a
doutrina e a jurisprudência recorreram à transmissão das coisas ao credor através de constituto
possessório com o fim de garantia, existindo assim uma transmissão fiduciária (como no caso dos
comerciantes que transmitem as mercadorias do seu estabelecimento, de conteúdo variável,
convencionando-se, por um lado, que aquelas permanecem em poder do empenhante - que as poderá
aliená-las em nome próprio apesar de elas pertencerem ao credor – e, por outro, que as novas mercadorias
entradas no estabelecimento se tornam propriedade do credor).
893
Contrariada por Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 76, para quem a entrega “não exclui do seu âmbito
quer o constituto possessório, quer a traditio brevi manu, bem como a entrega imaterial” (o mesmo
Autor, ob. cit., pág. 84, entende que “quer as normas civis, quer as normas comerciais permitem, no
essencial, que a coisa seja empenhada e, simultaneamente, que o empenhador a mantenha em seu
poder”, designadamente através do recurso à figura do constituto possessório que, na sua opinião, mais
não é do que uma tradição civil simbólica).
894
Cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 28/6/2005, in www.dgsi.pt (além de invocar o Decreto-Lei n.º
693/70, de 31 de Dezembro, cujo art.º 9.º, n.º 1, determina que o penhor constituído a favor da Caixa
Geral de Depósitos é válido mesmo que, com o consentimento daquela instituição, o objecto da garantia
fique em poder do mutuário ou de terceiro, ficando estes submetidos aos deveres e sanções impostas aos
depositários judiciais; para além disso, o n.º 2 manda aplicar aos fiéis depositários do penhor sanções
penais para a violação das suas obrigações), no qual se afirma que, em face do regime do Código
Comercial, “é válido o penhor mercantil sem entrega dos bens de equipamento nas operações de crédito
feitas por estabelecimentos bancários ficando o credor ou obtendo a posse pignoratícia, ficando o
proprietário como mero detentor”.
895
Vide os Acórdãos do STJ de 26/6/1953 (in BMJ n.º 37, 1953, pág. 423 e segs.), no qual se decidiu que
“o facto de se autorizar o devedor a usar dos bens dados em penhor (...) em nada contraria nem ofende a
figura jurídica do penhor definida nos art.ºs 855.º do Código Civil e 397.º do Código Comercial (…).
Porque assim é, podiam as partes convencionar, como convencionaram, que a entrega fosse simbólica e
ao dito réu Costa; deu-se, portanto, o desapossamento jurídico dos bens, da pessoa dos devedores para o
autor e, depois, deste para esse réu, que ficou sendo seu fiel depositário, como as partes combinaram e
podiam combinar, por não haver lei que o proibisse” e de 12/3/1957 (in BMJ n.º 65, 1957, pág. 518 e
segs.), no qual se inclui inequivocamente o constituto possessório como um dos modos de constituição do
penhor, mesmo em face do regime do Código Civil, ao afirmar-se que “ficando os devedores na situação
de fiéis depositários, verifica-se, em relação a estes, o desapossamento desse minério. E isto sem
embargo da letra dos art.ºs 855.º e 858.º do Código Civil e da não efectivação, neste caso, da entrega
224
penhores em que o devedor/constituinte permaneça em poder do bem dado em garantia
a título de depositário.
Noutros casos, é a própria lei a admitir a constituição de penhores por via de
simples constituto possessório,896 como sucede, entre nós, com o penhor em garantia de
estabelecimentos bancários (independentemente do objecto empenhado,897 salvo alumas
excepcções - cfr. art.º 1.º do Decreto n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939), assim como
com outros diplomas avulsos.898
material da coisa empenhada, pela consideração de que não é necessária a entrega real, bastando a
entrega jurídica, que se dá quando o devedor mantém a coisa em seu poder mas na qualidade de mero
depositário, em nome do credor, com as responsabilidades inerentes”, doutrina esta igualmente
expandida pelo mesmo tribunal no Acórdão de 25 de Janeiro de 1955 (in Revista dos Tribunais, n.º 73,
1955, pág. 117 e segs. e também BMJ n.º 47, 1955, pág. 480 e segs.), aí se declarando que “As partes
podiam convencionar, como se vê que convencionaram, que a entrega do objecto do penhor se fizesse de
modo simbólico ao credor, continuando o devedor na posse dele não já em nome próprio, mas em nome
do credor, na qualidade de fiel depositário (…) O contrato realizado não contraria mesmo, pode dizer-
se, o disposto nos art.ºs 855.º e 858.º do Código Civil, desde que o devedor é fiel depositário do que foi
dado em penhor”. Este último aresto foi alvo de uma anotação crítica por parte de Galvão Teles (in O
direito, ano 87, pág. 336 e segs.), censurando a doutrina nele expandida por entender que a legislação
avulsa criadora de penhores sem entrega assume carácter excepcional e ocupa-se apenas de casos
determinados, sendo insusceptível de generalização a todo e qualquer caso de constituição da dita
garantia. Se assim fosse, isto é, se pela lei geral já o penhor se pudesse constituir sem necessidade de
entrega do bem empenhado, o diploma que admite o penhor sem entrega em termos mais amplos – o já
citado Decreto-Lei n.º 29833, que visa a hipótese em que o credor seja um banco – não teria razão de ser
(representaria até uma dificuldade adicional para o crédito bancário, pois este diploma exige a verificação
de uma série de requisitos formais): assim, conclui o Ilustre Professor, teríamos a constituição de penhor
através de um mero constituto possessório, a qual deve ser recusada, em razão da falta de publicidade da
garantia e da ilusão que tal situação poderia causar a terceiros.
896
Como refere Salvador da Costa, ob. cit., pág. 54, através do constituto possessório consagrado neste
diploma, ocorre a entrega jurídica do bem, através da transladação da respectiva posse, passando o
proprietário, que até então o possuía em nome próprio, a possuí-la em nome do credor, ficando este
último com uma mera posse formal ou jurídica.
897
Defendendo, por isso, a aplicação deste regime ao penhor de acções ao portador em garantia do
pagamento de empréstimos bancários, vide o Acórdão do STJ de 23/4/1996, in www.dgsi.pt. Pelo
contrário, entendendo que o penhor de coisas, mesmo constituído em garantia de créditos bancários,
depende sempre da entrega da coisa empenhada ao credor ou a terceiro, vide o Acórdão da Relação de
Coimbra de 30/1/2001, in CJ 2001, Tomo I, pág. 22 e segs.. Reconhecendo a possibilidade de, por força
destes diplomas avulsos, o penhor se poder constituir através de constituto possessório, vide os Acórdãos
do STJ de 29/11/2001 (in CJ, Tomo III, pág. 125 e segs.), de 23/1/1996 e de 1/10/1991 (ambos in
www.dgsi.pt), da Relação de Lisboa de 10/10/1991, (aí se afirmando que permanecendo o bem
empenhado em poder do seu proprietário, sendo este considerado como um possuidor em nome alheio
relativamente ao direito de penhor) e de 1/10/1991 (onde se estabelece que não obsta à validade do
penhor em garantia de estabelecimentos bancários o facto de os bens empenhados nunca terem passado
para a posse do banco credor), estes dois últimos também acessíveis em www.dgsi.pt.
898
Sobretudo o já citado art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 693/70, de 31 de Dezembro, citado numa nota
anterior. A título de curiosidade, consulte-se a extensa lista de diplomas que, já em 1939, consagravam
penhores nos quais o empenhador permanecia como depositário dos bens, vide Paulo Cunha, ob. cit., pág.
194, nota 1 e, mais recentemente, o rol (eventualmente contendo diplomas entretanto revogados) indicado
por Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 687 (dos quais merecem destaque o Decreto-Lei
n.º 43355, de 24 de Novembro de 1960 - mandando aplicar o regime do Decreto-Lei n.º 29833 aos
empréstimos concedidos pelo Estado para a execução em propriedades rústicas de melhoramentos
fundiários de reconhecido interesse económico e social que tenham por fim manter ou aumentar a
capacidade produtiva da terra, facilitar a sua exploração ou valorizar os produtos agrícolas - e o Decreto-
Lei n.º 44085, de 14 de Dezembro de 1961 - manda aplicar também o regime do Decreto-Lei n.º 29833 à
concessão de crédito por parte da Junta Nacional do Azeite aos olivicultores) e por Almeida Costa,
Direito das obrigações cit., pág. 925, nota 3 (enumerando, ainda, o Decreto n.º 19941, de 19 de Junho de
1931 – que consagra um penhor sem desapossamento no âmbito das operações das bolsas de mercadorias
– o Decreto-Lei n.º 42825, de 29 de Janeiro de 1960 – que criou um penhor sobre os móveis e utensílios
dos estabelecimentos hoteleiros – a Lei n.º 8/71, de 9 de Dezembro, Base XIV – que criou um penhor,
225
Esta consagração legal da admissibilidade do constituto possessório como modo
de constituição da garantia pignoratícia é justificada tendo em vista a simplificação de
procedimentos e a necessidade de fomentar o crédito, dada a reconhecida importância
que este assume na criação de novas actividades económicas e na consolidação das
existentes.
Porém, esta solução é alvo de críticas contundentes, sobretudo atenta a ausência
de publicidade que a mesma comporta e os prejuízos para terceiros (nomeadamente
credores do constituinte e todos aqueles que venham a adquirir o bem empenhado após
a constituição da garantia, que dela podem advir),899 e até para o próprio credor (exposto
à prática de actos de disposição e destruição do objecto de garantia, pese embora as
sanções penais impostas para tais condutas)900 que pode originar.
No que especificamente respeita ao penhor constituído em garantia de
estabelecimentos bancários, o seu regime apresenta-se especialmente questionável,
podendo duvidar-se do critério que preside à manutenção do bem em poder do
constituinte neste caso (sobretudo atenta a ausência de limitações quanto aos bens a
onerar, os quais até podem não ser indispensáveis ao empenhante) ou, no plano inverso,
à criação de um regime especial para uma dada categoria de credores. 901
sem entrega, de bens afectos à actividade teatral – para além de uma vasta gama de penhores agrícolas,
apresentando a nota comum de dispensarem a transferência do bem empenhado para o credor ou para
terceiro, assim permitindo que o devedor mantenha a sua actividade profissional).
899
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 44 a 46 e 49, a respeito do ainda vigente Decreto n.º 29833,
de 17 de Agosto de 1939, relativo aos penhores constituídos em garantia de créditos bancários e apesar de
o preâmbulo do diploma afirmar continuar a existir desapossamento do empenhador (pois este seria
colocado na situação de fiel depositário, passando a posse para o credor pignoratício mediante constituto
possessório). Todavia, considera o Ilustre Autor, esta transferência da posse não cumpre as finalidades
publicitárias desempenhadas pela entrega efectiva do bem ao credor, uma vez que não é visível a terceiros
que continuam a observar a coisa no poder do empenhador. Destarte, os credores do constituinte da
garantia podem legitimamente ignorar a existência do penhor e vir, por força dessa ausência de
publicidade, a ser prejudicados. Por outro lado, não sendo os actos de alienação a terceiros, levados a
cabo pelo empenhante, eficazes relativamente ao credor pignoratício, esses terceiros adquirentes serão
igualmente prejudicados, porquanto se tornam proprietários de um bem onerado com um encargo privado
de qualquer publicidade. Também Paulo Cunha, ob. cit., págs. 193 e 194 (a propósito dos penhores
constituídos em garantia de empréstimos concedidos pelas Caixas de Crédito Agrícola), critica esta
modalidade de constituição de penhores, afiançando que a mesma, ao eliminar toda e qualquer
publicidade, não tutela os interesses de terceiros, afirmando que “qualquer pessoa por mais cautelosa que
seja, nunca pode saber se as cousas que estão em poder do devedor estão ou não livres ou empenhados
(…) uma vez que não se regista, acontece que quando amanhã vier certa pessoa, de boa fé, fazer valer
um direito sôbre as cousas que estão de facto em poder do devedor, surge a preferência pignoratícia a
inutilizar-lhe os seus direitos.”. Alinha pelo mesmo diapasão Giuseppe Trapani, ob. cit., págs. 66, 67 e
102 (realçando os graves inconvenientes para o comércio jurídico da ausência de uma adequada
publicidade desta garantia, nomeadamente as incertezas relativamente à sua existência e extensão,
considerando a solução legal “forse eccesiva se consideriamo che la legge non fa alcuna distinzione
oggettiva riguardo alle cose che possono essere costituite in garanzia, ne soggettiva, cioè in relazione
alle persone che tale garanzia possono costituire”), afiançando que a doutrina portuguesa dominante
sugere o recurso à figura do warrant como garantia mobiliária não possessória típica. O próprio Decreto-
Lei n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939, admite, no seu preâmbulo, que “O processo desejável seria
estabelecer um registo próprio e converter-se o penhor em hipoteca mobiliária, como se fez para os
navios e para a propriedade automóvel, mas o sistema de registo só a raras cousas móveis é susceptível
de aplicação”.
900
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 46 e segs., destacando como a previsão legal daquelas penas
para eventuais abusos cometidos pelo devedor não obsta a que este, continuando a deter a coisa, a possa
destruir ou constituir um novo direito sobre ela.
901
António Pedro A. Ferreira, ob. cit., pág. 660 e segs., depois de, em geral, colocar em questão o critério
de política legislativa que preside à selecção das categorias de credores ou objectos para as quais se
dispensa o desapossamento como condição de surgimento do penhor, no caso específico do penhor
bancário, assegura que “apenas a especificidade e as especiais particularidades que caracterizam a
226
Não surpreende, por isso, que mesmo os que consideram a transmissão
possessória do bem empenhado poderá ocorrer, não apenas através da entrega material,
mas igualmente por qualquer dos meios legalmente admitidos para o efeito, recusem a
idoneidade do constituto possessório para dar vida a um penhor.902
No entanto, outras formas de tradição não efectiva poderão considerar-se
apropriadas para originar a constituição de penhor, desde que confiram ao credor
pignoratício, em exclusivo, a livre disposição do bem em causa e a possibilidade de o
apreender e de impedir que outros o façam903 e, ainda, desde que dotadas de suficiente
notoriedade para advertir terceiros da oneração do bem.904
De entre estas, conta-se a mera tradição simbólica, ao menos quando atribua ao
credor pignoratício a exclusiva disponibilidade do bem empenhado,905 muito embora se
discuta a licitude de alguns contornos que esta modalidade de tradição da coisa pode
própria actividade bancária parece poderem justificar uma regra geral desta natureza, ainda como
forma de resposta às particulares necessidades do comércio bancário”).
902
Barrada Orellana, ob. cit., págs. 115 a 117, tendo em conta que a posse imediata do bem permanece,
no constituto possessório, no constituinte.
903
Assim, Guillouard, ob. cit., págs. 105 e 107, acrescentando que o desapossamento do devedor deve ser
suficientemente completo em ordem a impedir qualquer substituição do objecto empenhado por qualquer
outro. Analisando algumas decisões jurisprudenciais que sobre a matéria (para além de dar conta que os
tribunais franceses encaram como uma questão de facto saber se, em cada caso concreto e do tipo de bem
a empenhar, o empossamento do credor se poderá considerar visível e suficientemente notório para
advertir terceiros do nascimento da garantia – no mesmo sentido Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 61 e
Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 86), o Autor censura uma delas (em que estava em causa a validade
da dação em penhor de tábuas representativas de obras musicais colocada em poder de um terceiro, tendo
os juízes validado a convenção das partes que concedia ao devedor o direito de se servir dessas tábuas
para fazer cópias das obras nelas gravadas, desde que essas tábuas permanecessem em poder do terceiro.
A crítica à decisão relaciona-se com o carácter não exclusivo da posse do credor – uma vez que o devedor
mantinha e retirava benefícios da detenção, mesmo que temporária, do bem empenhado – e da ilusão que
o uso das coisas empenhadas pelo devedor poderia causar a terceiros, fazendo-os crer que estas se
encontrariam desoneradas) e aplaude uma outra (em que se recusou a admissibilidade de dar em penhor
os materiais destinados à fabricação de tule por parte de empresários que usavam instalações de outrem
para a produção, constituindo-se o proprietário dessas instalações como terceiro. As razões aventadas pelo
Autor relacionam-se com a ausência de posse por parte do terceiro, com a ausência de publicidade face a
terceiros e, principalmente, com a ausência de desapossamento do devedor, na medida em que se permitia
que este continuasse a fabricar o produto final com os bens dados em penhor, exactamente do mesmo
modo que fazia antes da constituição da garantia).
904
Cfr. Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 90. Por não preencherem estes dois requisitos, Cabrillac e
Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 535 e 536, advogam ser inapropriada a constituição do penhor através
da manutenção dos bens empenhados num local propriedade do empenhante, mesmo que este arrende o
dito local ao credor (a menos que tal mecanismo sejam temperado por outros elementos, como sejam a
remessa das chaves ao credor – assim privando o devedor do poder de disposição sobre o bem em causa –
e através da afixação de cartazes nos ditos locais indicando a colocação dos bens em penhor ou o nome do
arrendatário, assim tornando a constituição da garantia cognoscível face a terceiros) – em sentido
análogo, Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 456. Embora concordando com este último critério,
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 238, retiram conclusões parcialmente diversas (exigindo
a aposição de marcas sobre as próprias mercadorias e que as portas do local permanecessem fechadas,
recusando ainda a idoneidade da simples entrega das chaves). Pelo contrário, Marty, Raynaud e Jestaz,
ob. cit., pág. 55, parecem mais flexíveis, ao considerarem suficiente o arrendamento do local onde os
objectos empenhados se encontrem (mas, ao invés, recusando a idoneidade da simples entrega das chaves,
desacompanhada desse arrendamento).
905
Como bem nota Paz-Ares Rodriguez, ob.cit., pág. 1875, esta entrega fictícia ou simbólica será
admissível desde que “quede claro da una parte el acto de desapoderamiento por parte del constituyente
y de otra la entrada en la esfera jurídica en la disponibilidad material efectiva, del titular del derecho de
prenda”
227
assumir (em particular, a entrega ao credor das chaves do local onde se encontram
guardados os bens onerados).906
906
Rubino, Il pegno cit., págs. 219 e 200, nota 4, Protettí, ob. cit., pág. 65, Troplong, ob. cit., pág. 91,
Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 61, Marques de Carvalho, ob. cit., págs. 65 e 66, Guillouard, ob. cit.,
págs. 105 a 107, Hardel, ob. cit., pág. 117 e Barrada Orellana, ob. cit., pág. 117, advogam, com base neste
critério geral, a admissibilidade da entrega ao credor das chaves do local onde se encontram guardadas as
coisas dadas em penhor (o último dos autores mencionados reconhece que este mecanismo se poderá
prestar a fraudes – nomeadamente quando o devedor concedesse um novo penhor sobre os mesmos
objectos, entregando outras chaves ao segundo credor pignoratício – mas conclui que o risco de fraude em
nada altera o carácter do empossamento do primeiro credor pignoratício entretanto ocorrido). Pelo
contrário Weil, ob. cit., pág. 82, Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 180, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit.,
pág. 86, Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 456 e Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 76 e 77, nota 4
(este último nega, em geral, a idoneidade da tradição ficta ou simbólica como modo de desapossamento
do empenhador), advogam que a entrega das chaves não é jamais suficiente, porquanto não confere
qualquer publicidade à constituição da garantia face a terceiros, especialmente quando a coisa se encontre
num armazém do devedor (mas o último já admite a constituição de penhor mediante a entrega ao credor
do certificado emitido pela administração fiscal, pois este documento impede o devedor de dispor do
bem), posição subscrita pela decisão da Corte de Cassação Italiana de 15/6/1934, in Giurisprudenza
Comparata di Diritto Civile, 1940, Vol. V, pág. 27 e segs. (embora com uma anotação crítica anónima
que sublinha o facto de para quem “la Corte regolatrice ha dimenticato qui i casi di traditio ficta, tra i
quali sta precisamente la consegna delle chiavi (…) che già in se equivale all’imissione nello stato di
disposizione fisica della cosa”). Reputam inidónea a entrega de uma das chaves ao credor e da outra ao
proprietário Rubino, ult. ob. e loc. cit. e Barbara Cusato, ob. cit., págs. 190 e 191 (pelo menos quando o
bem empenhado permaneça em instalações propriedade do constituinte da garantia), o Acórdão do
Tribunal de Termini de 25/3/1954, transcrito por Protettì, ob. cit., págs. 66 a 69 e o Acórdão da Corte de
Cassação Italiana de 23/11/1923, citado por Maiorca, ob. cit., pág. 59 (todavia, esta Autor considera
estarmos perante uma forma de tradição material, acrescentando que “Ciò che si chiama propriamente
tradizione simbolica o finta, non è tradizione; certo non porta con sè quell’effetto materiale di
sottoposizione della cosa al controllo effettivo del creditore, che abbiamo visto caratterizare il pegno dei
mobili (…) è chiaro che la semplice indicazione di un oggetto che pur rimane presso il debitore, oppure
la consegna di un semplice campione o di una fotografia o la pronuncia di particolari parole non
possono avere, ai fini della garanzia vera, quella virtù che è propria della consegna materiale al
creditore della cosa impegnata”). Traça um panorama exaustivo da orientação jurisprudencial italiana
Pace, ob. cit., págs. 21 e 22, nota 36, do qual ressalta uma discrepância entre as diversas decisões,
porquanto por vezes se retém a insuficiência da entrega ao credor das chaves do edifício onde se
encontram guardados os bens empenhados (por se entender ser necessária a entrega efectiva destes ao
credor), como se declara que, para tal efeito, bastará a entrega de tais chaves, desde que nenhuma destas
fique em poder do devedor (mas já não quando seja entregue apenas uma delas, especialmente quando o
credor não possa abrir, apenas com essa chave, as instalações, mas seja também necessária uma segunda
chave, que permaneceu em poder do devedor) embora, nalguns arestos, se exija ainda que tal entrega seja
acompanhada de circunstâncias que tornem evidente a passagem dos bens para a disponibilidade do
credor (e, noutras decisões, chega mesmo a admitir-se que, ao menos para bens que não consintam
tradição material, seja suficiente uma tradição simbólica, desde que acompanhada de sinais que tornem
evidente a constituição da garantia): no plano oposto, surge uma decisão que consente a manutenção das
chaves do imóvel onde se encontravam armazenadas as mercadorias empenhadas em poder do devedor,
desde que apenas para efeitos de uso ou de um destino que exclua a disponibilidade das mesmas.
Particularmente exaustivo na análise desta questão é Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 139 e segs.,
aceitando a entrega das chaves ao credor pignoratício, mas recusando que à entrega do bem se possa
substituir a entrega de uma das chaves, permanecendo a outra em poder do devedor (advertindo ser
verdadeiramente relevante que o devedor não possa iludir os seus demais credores com uma aparente
posse exclusiva, para além de poder constituir novos penhores através da entrega da chave que
permaneceu em seu poder). Já relativamente à dupla fechadura, o mesmo Autor aceita-a sem grandes
reservas, concluindo que “il meccanismo delle chiavi e delle serreture offre il mezzo giuridico più
acconcio, più spiccio e più economico per la costituzione del pegno in favore du più creditori“, com a
única diferença de “in caso di doppia serretura, il concreditore, come non può usare della cosa senza il
consenso dell’altro, così non può virtualmente restituirla colla chiave che possiede; mentre in caso di
doppia chiave, la restituzione da parte di un solo dei creditori importerebbe perdita del tutti”.
228
Decorre, aliás, do regime geral do penhor que a própria lei considera suficiente,
para a constituição do penhor, a entrega de documento que confira a exclusiva
disponibilidade da coisa (cfr. art.º 669.º, n.º 1, parte final e 2786.º, n.º 1, do CCI)907 ou,
mais simplesmente, de documentos representativos dos bens empenhados (cfr. art.º
398.º do Código Comercial),908 modalidade esta igualmente reconhecida pela
jurisprudência nacional909 e de outros ordenamentos, como o francês910 e o espanhol.911
907
Em face deste preceito, Rubino, Il pegno cit., pág. 220, adverte para o facto de apenas os títulos de
crédito representativos de mercadorias preencherem tais requisitos (no mesmo sentido, Realmonte, ob.
cit. pág. 658).
908
Esta norma, depois de reforçar a possibilidade de o penhor surgir mediante entrega a terceiro, admite,
no seu § único, a entrega simbólica, efectuada através de declarações ou verbas nos livros de quaisquer
estações públicas onde se encontrem as coisas empenhadas, pela tradição da guia de transporte ou de
conhecimento de carga dos objectos transportados ou, finalmente, pelo endosso da cautela de penhor
(warrant) dos géneros e mercadorias depositadas nos armazéns gerais. No entanto, nos casos em que a lei
admite a entrega meramente simbólica, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 106, em nota, assinala
que “a tradição da guia de transporte ou do conhecimento de carga não basta para haver penhor, pois
pode dar-se a outro título, devendo, portanto, apor-se a cláusula em penhor ou em garantia ou
semelhante”. Do mesmo modo, o Código Comercial de Macau admite também a constituição de penhor
através de entrega simbólica, mais precisamente por declarações ou averbamento nos livros de registo das
entidades públicas onde se encontrem depositados os bens objecto do penhor, da tradição ou endosso ao
credor pignoratício do título de crédito representativo do bem objecto do penhor ou, finalmente, por
qualquer outro meio idóneo para conferir ao credor pignoratício a disponibilidade exclusiva sobre os bens
objecto do penhor mercantil (cfr. art.º 914.º).
909
Vide os Acórdãos da Relação do Porto de 17/2/1992 (onde se afirma que, mesmo não se tratando de
um penhor comercial, para a constituição do penhor basta, nos termos do art.º 669.º, n.º 1, parte final, a
entrega de documento que confira ao credor a exclusiva disponibilidade da coisa) do STJ de 23/4/1992 e
de 18/4/1991 (todos in www.dgsi.pt). Apesar de estes modos de tradição simbólica se encontrarem
consagradas na lei comercial, o Acórdão do STJ de 25/1/1955 (in BMJ n.º 47, 1955, pág. 480 e segs.)
decidiu que “O art.º 398.º e o seu § único do Código Comercial não estabelecem uma excepção, mas sim
uma regra. A entrega material da coisa penhorada ao credor nem defende mais os interesses nem torna
mais público que houve penhor”, concluindo pela possibilidade de constituição de penhor, mesmo que o
bem permaneça em poder do devedor, assumindo este o papel de depositário (em termos idênticos,
Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 65, defende aplicação daqueles preceitos ao penhor civil, tendo em
conta que a entrega simbólica é autorizada atendendo à natureza das coisas empenhadas e não do crédito
garantido). Em sentido contrário se pronunciaram, todavia, o Acórdão da Relação de Lisboa de 25/2/1911
(in Gazeta da Relação de Lisboa, ano 25, n.º 90, pág. 716 e segs.) e os Acórdãos do STJ de 18/4/1991 (in
Acórdãos Judiciais, n.º 18) e de 23/4/1992 (in BMJ n.º 416, 1992, pág. 664 e segs.), podendo ler-se neste
último que “A enumeração dos casos de entrega simbólica feita no § único do art.º 398.º do Código
Comercial é taxativa e não exemplificativa, não podendo as partes convencionar no contrato de penhor,
que a coisa empenhada fique na posse do devedor, embora ficando este na situação de depositário dela”.
Em função destas diversas interpretações do § único do art.º 398.º do Código Comercial – uma admitindo
que o devedor permaneça como depositário dos bens empenhados, a outra recusando tal possibilidade –
foi decidido, pelo Acórdão do STJ de 17/6/1992 (in www.dgsi.pt) remeter o processo para Pleno desse
tribunal, a fim de ser fixada jurisprudência a este respeito: todavia, o Acórdão de 21/1/1993, sem apreciar
o mérito da questão, determinou que “A alegação tendente a demonstrar que existe entre dois acórdãos a
oposição exigida para recurso para o tribunal pleno não pode suprir a falta de apresentação de
alegações sobre o objecto do recurso depois de, por acórdão, se ter julgado verificada aquela oposição”,
julgando, em conformidade, deserto o recurso por carências daquelas alegações.
910
Também em França desde há muito (cfr. art.º 92.º do anterior Code de Commerce, de acordo com o
qual a garantia se considerava constituída – e o credor empossado dos bens onerados – quando estes se
encontrassem à sua disposição nos seus depósitos ou navios, nas alfândegas ou num depósito público e,
ainda, se, antes mesmo da sua chegada, o credor se encontrasse na posse de uma “lettre de voiture” ou de
um “connaissement” – actualmente, esta matéria encontra guarida nos art.ºs L132 e L133 do Code de
Commerce vigente). De entre estes títulos de transporte podemos, então, distinguir (cfr. Hardel, ob. cit.,
pág. 118 e segs.) o “connaissement” (utilizado no direito marítimo, constiuindo um “titre par lequel le
capitaine et le chargeur constatent le chargement sur le navire des marchandises e les conditions de
transport”, desenvolvendo-se a operação da seguinte forma: “l’expéditeur tire une lettre de change sur
l’acquéreur des marchandises expédiées, il l’endosse au profit d’un banquier, celui-ci la lui escompte, et,
229
Suscita-se a dúvida, na senda até de algumas decisões judiciais contraditórias, se
o penhor mercantil dispensa o desapossamento do devedor ou, ao invés, não afasta esta
exigência decorrente do regime civilístico desta garantia, envolvendo a entrega
simbólica o desapossamento do devedor: salvo melhor juízo, parece-nos mais acertada
esta segunda alternativa, porquanto, mesmo no penhor mercantil, em caso algum o bem
empenhado permanece sob o controlo ou na disponibilidade material do empenhante,
nem sequer como fiel depositário.912
230
Ou seja, apesar da ausência de tradição material do bem, nas hipóteses
enumeradas na lei comercial continua a verificar-se o pressuposto essencial do regime
tradicional do penhor – qual seja a privação da disponibilidade do bem por parte do
empenhante – embora este desiderato se alcance, normalmente, através da entrega ao
credor de títulos que lhe conferem o direito de reclamar e/ou dispor dos bens onerados
(warrants ou títulos de transporte).
Todavia, poderá argumentar-se que este mecanismo alternativo de constituição
do penhor não publicita devidamente o surgimento da garantia (excepção feita ao caso
em que esta deva ser inscrita no registo, pois, nessa hipótese, “a finalidade de
publicidade que se tinha em vista com a entrega real da cousa é suprida, sem
inconveniente, pela própria publicidade que resulta do lançamento feito no registo em
questão”),913 sobretudo porque o empenhante pode permanecer em na posse dos bens
onerados (salvo quando se trate de bens em transporte ou albergados em armazéns
gerais).
Este modalidade é, assim, particularmente apta para a colocação em penhor de
um objecto que deva percorrer um determinado trajecto desde a saída das mãos do
devedor até ingressar no poder do credor,914 nomeadamente quando estejam em causa
os chamados títulos-valor,915 categoria na qual se integram os títulos de transporte e os
títulos de depósito.916
ao art.º 398.º do nosso Código Comercial (vide o art.º 914.º do Código Comercial de Macau, admitindo a
tradição simbólica por qualquer meio idóneo a conferir ao credor pignoratício a disponibilidade exclusiva
sobre os bens objecto do penhor mercantil) e, finalmente, mesmo o regime do penhor financeiro exige
que o objecto da garantia seja efectivamente prestado (seja através de entrega, registo, transferência ou de
qualquer outro modo que assegure o controlo do beneficiário da garantia).
913
As palavras são de Paulo Cunha, ob. cit., pág. 192, a propósito da constituição do penhor através de
declarações ou verbas realizadas nos livros de quaisquer estações públicas onde se encontrem os bens
empenhados, muito embora o Autor alerte para a natureza não pública (no sentido de não serem de livre
acesso) de tais registos.
914
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 55, admitem esta possibilidade, desde que o título
representativo consinta ao credor reclamar a coisa representada do devedor e que este não seja o
constituinte da garantia. Como salienta Troplong, ob. cit., pág. 91, seria prejudicial aos interesses do
comércio jurídico manter a constituição do vínculo pignoratício em suspenso até à data em que o credor
viesse a ser empossado: para obviar a este resultado, foram criados os títulos representativos de
mercadorias em transporte, tendo o seu titular o direito de receber a coisa e, por arrastamento, o direito de
dela dispor.
915
Tomillo Urbina, Los títulos de tradición en la constitución de prenda, in Tratado de garantías en la
contratación mercantil, Tomo II, Vol. I., Civitas, 1996, pág. 527 e segs., escreve que “su entrega o
transmissión produce los mismos efectos que la traditio material y efectiva de las mercancías que
represenetan. El titulo de tradición atribuye a su legitimo tenedor un derecho de crédito a la entrega de
las mercancías objecto de la relación jurídica básica que incorpora”. De acordo com esta definição, estes
títulos possuem as seguintes características: substituir as mercadorias que representam no que respeita à
circulação destas últimas; a posse do título acarreta a posse das mercadorias; e esta posse atribui ao
possuidor do título o direito de disposição sobre as mercadorias, bem como a sua restituição ou entrega no
momento devido (para além disso, a sua transmissão “operará en virtud de la ley de la circulación
aplicable en función de su emissión, y con efectos legitimadores resultantes de la posesión material”).
Em especial, a qualificação do portador do título como possuidor mediato dos bens por aquele
representados (conjugadas com a posse imediata daqueles que exercem um poder material sobre os
mesmos bens) é explicada pelo Autor como um caso em que o direito do possuidor material “tan sólo
expressa un derecho limitado en contenido con relación al derecho superior (…) titular de una possesión
mediata sobre las cosas que se encuentran materialmente en poder de quien sólo ostenta una situación
potestativa subordinada”, sendo enquadrável no art.º 1463.º do CCE (que prevê a entrega, por simples
acordo dos contraentes, quando a coisa vendida não se possa transferir para o poder do comprador no
momento da venda, de modo que “siendo absoluta la ausencia de traladación material del bien, se
produce, no obstante, la transferencia de señorio real, pero no material (…) la cesión de la relación
jurídico-obligacional que sirve de sustento a la possesión mediata (el derecho de crédito a la restitución)
231
Nestes casos, o penhor recai sobre bens depositadas ou em curso de transporte,
efectuando-se o desapossamento através da transferência da posse mediata, mediante a
entrega dos títulos de tradição,917 embora se possa constituir uma garantia sobre o
próprio título, pela via do endosso em garantia.918
Parece igualmente admissível a chamada traditio brevi manu, que acontece
quando a coisa se encontrava já em poder do credor a título de detenção (por exemplo,
em resultado da prévia celebração de um contrato de depósito) e passa a está-lo, após a
constituição da garantia, a título de posse.919
Verificando-se tal circunstancialismo, a simples convenção das partes parece ser
bastante para inverter a posse do credor pignoratício e permitir o nascimento da
garantia.920
Nada parece impedir,921 com base nesta mesma figura, o surgimento do penhor
quando a entrega seja efectuada a um terceiro já possuidor do bem por conta do
se realiza, como la cesión de todo derecho de crédito, por el mero consentimiento; y como la possesión
mediata es inherente a tal relación creditícia, la césion de ésta lleva aparejada la transmissión de
aquélla”: no caso específico dos títulos valor, a publicitação da traditio resultará, ao menos, do abandono,
por parte do tradens, do seu controlo real sobre o bem).
916
Tomillo Urbina, ob. cit., págs. 533 e segs., apesar de ressalvar que ambos possuem as características
gerais dos títulos valor, evidencia que a impossibilidade transitória de tradição material é forçosa no caso
dos títulos de transporte (funcionando como um remédio para a distância temporal e geográfica das
prestações do comprador e do vendedor), resultando de motivos conjunturais ou da mera vontade do
depositante nos títulos de depósito (nomeadamente para “negociar partidas o capitalizar stocks evitando
desplazamientos, al tiempo que se procura el rigor de una custodia funcional técnica y especializada”).
917
Tomillo Urbina, ob. cit., pág. 584 e segs., o penhor recai sobre o direito à entrega das mercadorias ou a
uma indemnização pelo incumprimento da obrigação de entrega, ou seja, trata-se de um penhor de crédito
“sobre cosa determinada susceptible de transformación (…) en prenda de crédito de dinero”,
funcionando normalmente, em especial no que se refere ao conhecimento de embarque, com o objectivo
de garantir uma operação de crédito documentário.
918
Tomillo Urbina, ob. cit., pág. 586 e segs., destaca como, neste caso, o endosso contém implícita uma
autorização ao endossatário para a cobrança do crédito ínsito no título, de modo que “resulta
imprescindible frente al porteador que en el ejercicio del derecho a la entrega participe el acreedor
pignoratício – endosatario en garantía – ya que cualquier otra alternativa supondría privarle de la
garantía” (caso a obrigação de entrega não seja cumprida e seja substituída por uma indemnização, o
endossante apenas poderá cobrar a quantidade que exceda o montante do crédito do credor pignoratício
endossatário).
919
De acordo com Manuel Rodrigues, ob. cit., pág. 231, este meio de aquisição da posse caracteriza-se
por “o possuidor e detentor substituírem o negócio jurídico ou o facto que dava origem à detenção, por
um novo negócio jurídico, em virtude do qual a relação material até ali existente entre o detentor e o
objecto da posse passa a ser uma relação possessória”. Admitem este modo de constituição do penhor,
Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 66 e 67, Realmonte, Il pegno cit., pág. 658, Francesca Dell’Anna Misurale,
ob. cit., pág. 54, nota 73, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1875 (acrescentando que, para tal, bastará o
simples acordo com o devedor para que a anterior detenção ou posse se transforme em posse
pignoratícia), Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 491, Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 717 e,
entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 76.
920
Neste sentido, Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 42 e 43.
921
Contra, Giuseppe Portale, Osservazione sul contratto col terzo detentore del pegno, in Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1962, pág. 879 e segs., argumentando que a constituição do
penhor implica o desapossamento do devedor, ou melhor, a perda da disponibilidade material do bem
empenhado, a qual não se verifica totalmente neste caso, “giacché, sebbene il concedente non abbia alcun
potere di fatto sulla cosa, tuttavia essa potrebbe ancora ritornare nella sua disponibilità materiale, in
quanto, anche se il costituente ha promesso l’obbligazione del depositario (detenere la cosa per conto del
creditore), questi può legittimamente rifiutarsi di assumerla e restituire la cosa al depositante”. De
acordo com este Autor, não basta a determinação unilateral de privação do contacto físico com a coisa,
sendo ainda forçoso que seja irreversível a situação criada com a apreensão do bem por parte do accipiens
(isto é, “Oltre a la consegna, pertanto, si rende necessario impedire che il tradens riacquisti il potere di
fatto sul bene senza la cooperazione del creditore; risultato che si può ottenere soltanto con una
manifestazione di volontà del terzo, con la quale egli assuma la funzione strumentale chiamato ad
232
empenhador, desde que este permaneça nessa situação, agora por conta do credor
pignoratício, bastando para tal que o terceiro seja notificado da constituição da
garantia:922 há quem fale até de uma espécie de cessão de crédito a título de garantia.923
Noutros casos, a lei admite que a entrega seja substituída pela inscrição do
penhor num determinado registo, normalmente o mesmo utilizado para a propriedade do
bem empenhado, conforme decorre de alguns exemplos anteriormente expostos (como
sejam o penhor de direitos de autor, sobre bens de propriedade industrial de
participações sociais, de valores mobiliários), bem como do penhor de obrigações
hipotecárias,924 assim se assegurando a publicidade da constituição da garantia, solução
esta que encontra paralelismo em diversos ordenamentos estrangeiros, a propósito dos
mais variados objectos.925
Alguns admitem mesmo, ao menos no plano do direito a constituir, a existência
de penhores sem tradição material ou ficta do bem dado em garantia, desde que seja
esplicare, vincolandosi anche verso il creditore”, sem prejuízo de, mesmo antes desta declaração de
aceitação, a coisa estar “all’effetto limitato della costituzione del pegno, a disposizione del creditore, nel
senso che la garanzia nasce automaticamente al perfezionarsi del vincolo creditore-terzo, senza bisogno
di un ulteriore intervento del datore del pegno”).
922
Assim, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 444 e Rubino, Il pegno cit., págs. 220 e 221, sustentando que o
penhor se constitui desde que o constituinte, o credor e o terceiro consintam que este último passe a deter
a coisa a título de penhor (no mesmo sentido, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 78). Marques de
Carvalho, ob. cit., pág. 72, Realmonte (ob. cit., pág. 658, em especial nota 34) e Barbara Cusato (ob. cit.,
pág. 190), alertam para o facto de, neste caso, não bastar para a constituição do penhor a notificação ao
terceiro da constituição da garantia – destinada, essencialmente, a evitar que este entregue a coisa ao
constituinte - pois esta notificação não desapossa o constituinte do bem, podendo o detentor recusar-se a
conservar o bem também por conta da outra parte, entendimento este partilhado por Planiol, Ripert
Becqué, ob. cit., pág. 105, concluindo que esta inversão do título de posse requererá uma aceitação por
parte do terceiro (em termos análogos, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 536, Gabrielli, Il
pegno cit., pág. 122, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 237 – muito embora questionem o
modo de publicitação deste novo título possessório -, Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 50 e 51 e Guillarte
Zapatero, Comentario cit., pág. 497, exigindo, além da mera notificação, um reconhecimento, por parte
do terceiro, da intenção de passar a possuir também em nome do credor pignoratício). Exigem igualmente
a aceitação por parte do terceiro Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 53 e Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág.
(sustentando esta última que o desapossamento, neste caso, resulta da inversão do título decorrente da
aceitação do terceiro, apontando como exemplos da utilização deste mecanismo o penhor de conta
bancária – em que a instituição bancária detentora do dinheiro em virtude do contrato de depósito, se
torna possuidora do bem empenhado por conta do credor - e de instrumentos financeiros, no qual, porém,
se dispensa a aceitação do terceiro depositário, bastando uma declaração do titular da conta para a
inversão do título do gestor da conta e para a constituição da garantia). Já Puig Brutau, ob. cit., pág. 29,
entende que, neste caso, o credor se converte em possuidor mediato, desde que se notifique o até então
possuidor imediato, dando-lhe conta que, daí em diante, será mediador possessório do credor pignoratício.
923
De acordo com Hardel, ob. Cit., págs. 32 e 33, caso o bem a empenhar se encontrasse já na posse de
um terceiro no momento da constituição da garantia, o desapossamento pode resultar simplesmente da
aceitação, por parte deste, da detenção a outro título, verificando-se uma espécie de cessão de créditos em
garantia, uma vez que “Il s’agit em somme d’obtenir que le constituant soit dans l’impossibilité de se
servir de la chose pour augmenter son crédit”.
924
Nos termos da alínea o) do n.º 1 do art.º 2.º do Código do Registo Predial, encontram-se sujeitos a
inscrição o penhor, a penhora, o arresto e o arrolamento de créditos garantidos por hipoteca ou
consignação de rendimentos (assim como quaisquer outros actos ou providências que incidam sobre os
mesmos créditos). Cabe, contudo, não confundir este registo da garantia, com o registo dos créditos
hipotecários e outros activos que em cada momento integrem o património autónomo afecto às obrigações
hipotecárias, o qual deve ser efectuado em contas segregadas da entidade emitente e identificados sob
forma codificada nos documentos das emissões (art.º 4.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 59/2006, de 20 de
Março), nem tão pouco com o registo da própria hipoteca que garante tais créditos na competente
conservatória do registo predial (art.º 2.º, n.º 1, alínea h), do Código do Registo Predial), à qual, aliás, se
deverá fazer menção aquando da inscrição dos créditos hipotecários (art.º 4.º, n.º 4, alínea e), do Decreto-
Lei n.º 59/2006, de 20 de Março).
925
Sobre este assunto, vide infra n.º 1 do Capítulo II.
233
aposto na coisa um sinal visível dando conta que a mesma se encontra empenhada, mas
com a advertência que o penhor se extinguirá com o desaparecimento daquele signo.
A tutela do credor pignoratício contra actos de dissipação material ou jurídica do
bem onerado, será atingível, em todos estes casos em que o bem permaneça em poder
do empenhante, através da imposição de sanções aos actos deste que consubstanciem
uma dissipação do bem onerado, podendo mesmo traduzir-se na incriminação penal das
condutas de disposição material e/ou jurídicas do bem empenhado.926
Entre nós, uma ilustração deste expediente consta do diploma relativo ao penhor
prestado a favor de instituições bancárias,927 embora subsistam dúvidas quanto à
926
Realça este aspecto, Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 455. No Acórdão do STJ de 13/7/1955
(in BMJ n.º 50, 1955, pág. 251) entendeu-se que as mesmas sanções penais (in casu, as previstas no art.º
1.º, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 29833) previstas para os actos de disposição material ou jurídica serão
aplicáveis ao caso em que o devedor, instado a colocar o bem empenhado à disposição do credor, não o
faça, mas ainda quando esse objecto não seja encontrado, afiançando que “o contrato de empréstimo é
firmado confiando o credor na honorabilidade do devedor, e também na circunstância de este ficar
ciente da responsabilidade criminal em que incorre se não apresentar o objecto do penhor, devendo
entender-se que as palavras “alienar”, “modificar”, “destruir” ou “desencaminhar”, mencionados no
citado preceito do Decreto-Lei n.º 29833, abrangem o caso de o devedor ter dado em penhor objectos
inexistentes na data do contrato, desde que não os apresente quando legalmente tenha de apresentá-los
(…) Quer dizer, o devedor fica inibido de, por acto seu, anular total ou parcialmente o valor da garantia
que voluntáriamente oferecera, e assim a expressão “alienar, modificar, destruir ou desencaminhar” é
exemplificativa: naquela anulação total ou parcial do valor da garantia é que está o elemento essencial
do facto criminoso”.
927
Cfr. o art.º 1.º, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 29833, que mandar aplicar as penas de furto (relativamente ao
crime de furto, e à respectiva moldura penal, vide os art.ºs 203.º e 205.º do Código Penal) ao devedor que
alienar, modificar, destruir ou desencaminhar o objecto sem autorização escrita do credor (bem como se
empenhar novamente a mesma coisa, sem que no novo contrato se mencione expressamente a existência
de penhor anterior), acrescentando o § único do art.º 2.º que esta cominação legal deverá constar do
contrato de penhor (cabendo ao notário assegurar o cumprimento desta obrigação – por isso, no Acórdão
do STJ de 29/11/2001, in CJ, Tomo III, pág. 125 e segs., assegura-se que a falta de transcrição no contrato
de penhor das indicações exigidas por este diploma não origina a nulidade daquele contrato, porquanto
essa é imposição dirigida unicamente ao notário). Todavia, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 55, entende
que o crime em causa não é de furto, sendo a remissão legal unicamente respeitante à moldura penal
aplicável ao comportamento do constituinte da garantia. Barbosa de Magalhães, ob. cit., pág. 101,
qualifica a solução legal de “muito infeliz, por isso que aplica a mesma sanção a casos muito diversos,
proíbe a alienação da coisa empenhada quando ela pode ser feita sem prejuízo da garantia do penhor e,
regulando a ordem de preferência no caso de a mesma cousa ter sido empenhada duas ou mais vezes,
estabelece a pena de furto quando o devedor dê de penhor a mesma cousa duas ou mais vezes, sem
distinguir os casos de haver, ou não, prejuízo para os credores posteriores”. De acordo com a
jurisprudência (cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 30/6/1999 e de 6/12/2000), a aplicação deste
crime exige a verificação cumulativa de diversos pressupostos: material, a constituição de um penhor em
garantia de créditos bancários em que o objecto da garantia permaneça em poder do proprietário; acção, o
proprietário praticar, em relação ao bem empenhado, algum dos actos proibidos pelo diploma em análise;
a consciência que, dispondo da coisa sem autorização, o proprietário frustra a garantia do credor
(exigindo-se que o agente aja intencionalmente, com consciência e vontade de dispor da coisa, sabendo
que age sem o consentimento do credor e que do seu comportamento resulta quebra da segurança e
garantia do credor); e tenham sido transcritas no contrato as menções impostas pelo § único do art.º 2.º do
Decreto-Lei n.º 29833. Não surpreende, por isso, que no Acórdão da Relação do Porto de 2/6/1993 (in
www.dgsi.pt) se conclua que a simples venda de parte do objecto do penhor sem autorização escrita do
credor não basta para integrar este tipo legal de crime (mais exigente é Salvador da Costa, ob. cit., pág.
55, afirmando que integra o crime em causa a alienação do objecto empenhado como se fosse livre de
ónus e encargos e a denúncia unilateral, sem autorização do credor pignoratício, do contrato de
arrendamento de um estabelecimento comercial empenhado em garantia de uma instituição bancária).
Ppor outro lado, no Acórdão da Relação de Lisboa de 22/2/1995, in www.dgsi.pt, conclui-se também pela
não verificação do crime de frustração do penhor quando não se prove que os proprietários dos bens os
tenham feito desaparecer). Questão diversa é a de saber se, quando o credor se aproprie da coisa dada em
penhor, tal conduta se poderá enquadrar na previsão legal do crime de abuso de confiança, previsto e
234
constitucionalidade desta sanção criminal928 e à própria manutenção em vigor da norma
incriminatória constante deste regime especial do penhor.929
punido no art.º 205.º do Código Penal (de acordo com o qual, quem, ilegitimamente, se apropriar de coisa
móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, é punido com pena de prisão
até 3 anos ou com pena de multa, sendo a tentativa punível, mas dependendo o procedimento criminal de
queixa: para além disso, o n.º 4 estabelece penas mais duras quando o bem objecto do crime seja de valor
elevado ou consideravelmente elevado e o n.º 5 eleva a moldura penal para um mínimo de 1 e um
máximo de 8 anos de prisão sempre que o agente tenha recebido a coisa em depósito imposto por lei em
razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial),
respondendo negativamente Figueiredo Dias, Comentário conimbricense ao Código Penal, parte especial,
Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 111 e segs., por considerar que nos comportamentos previstos e
punidos pela lei penal, diferentemente das reguladas no diploma que rege o penhor bancário, “a acção há-
de desde logo recair sobre coisa alheia; e porque nelas o agente há-de ser detentor por força de depósito
imposto por lei e não por disposição contratual”.
928
O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se, pelo menos em dois processos de
fiscalização concreta (cfr. Acórdãos n.º 572/95, de 18/10/1995, in BMJ n.º 451, 1995, pág. 479 e segs. e
573/95, de 18/10/1995, in www.tribunalconstitucional.pt), acerca da constitucionalidade do art.º 1.º, § 1.º,
do Decreto-Lei n.º 29833, tendo, em ambos os casos, considerado que tal preceito não viola a
Constituição. Em ambos os casos estavam em causa recursos apresentados pelo Ministério Público contra
duas decisões de tribunais de primeira instância de não pronúncia dos arguidos, invocando precisamente a
inconstitucionalidade da mencionada norma, por violação dos princípios da necessidade e
proporcionalidade (mais concretamente, por instituir uma sanção penal para uma conduta que não viola
um bem jurídico individualizável e por o ordenamento civilístico dispor de meios necessários destinados
a prevenir os efeitos dos comportamentos punidos pela norma em apreço, traduzidos na mera violação de
um direito real de garantia). Ora, o Tribunal Constitucional, num primeiro momento, identificou o “bem
jurídico” tutelado pela aludida norma incriminatória, considerando que este não consiste principalmente
(ou, pelo menos, não é esse o seu único intuito) na protecção do credor pignoratício, mas antes “interessa
sobremaneira a tutela de terceiros de boa fé e da confiança do comércio jurídico” (tendo em conta que
este modo de constituição da garantia cria uma situação, perante esses terceiros, através da qual estes
podem ser gravemente prejudicados caso o devedor/constituinte do penhor lhes transmita qualquer direito
relativamente ao bem anteriormente empenhado, ao mesmo tempo que cria problemas acrescidos ao
credor pignoratício, concluindo que esta modalidade de penhor apresenta menos vantagens para o credor
e para terceiros, mas oferece sérias vantagens económicas, desde logo para o próprio devedor que
continua em poder do bem dado em garantia, podendo utilizá-lo na sua actividade produtiva). No que
concerne à desproporcionalidade (e até eventual) desnecessidade da sanção penal, os juízes
constitucionalistas (além de reforçarem não se tratar de uma norma destinada a tutelar meramente os
interesses do credor pignoratício) apontam normas contidas no Código Penal que prevêem a
responsabilidade criminal dos depositários infiéis e concluem que a remissão para o crime de furto “não
revela um flagrante arbítrio legislativo, tendo em atenção os valores em presença que se intentaram
tutelar e aquelas medidas prescritas para os ilícitos criminais em que, primordialmente, se visa a
protecção da posse ou de outros direitos reais, a fidelidade dos depositários e a salvaguarda dos
interesses inerentes ao comércio jurídico”.
929
Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 111 a 113, defende que aquele preceito foi revogado com a
entrada em vigor do Código Penal de 1982 (cfr. art.º 6.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de
Setembro) e, ainda que assim não se considerasse, seria inconstitucional a sua vigência actualmente, uma
vez que o mesmo viola o “princípio da proporcionalidade, por se considerar então criminoso um
descaminho de uma coisa penhorada e mantida na posse do proprietário por disposição contratual,
quando se descriminalizou (…) o mesmo descaminho de coisa que confiada ao proprietário por
autoridade judiciária competente. Por violação, por outro lado, do princípio da igualdade, na medida em
que aquele art.º 1.º, exigindo uma qualificação da vítima ou do ofendido, acabava por tutelar apenas
uma espécie de credores pignoratícios: os credores bancários! Tudo conduz por isso à conclusão de que
uma tal incriminação não tem hoje qualquer fundamento político-criminal, não se revelando as condutas
por ela abrangidas nem merecedoras, nem carentes de tutela penal”, concluindo, por isso, que a norma
em questão foi revogada com a entrada em vigor do Código Penal de 1982 (esta posição é sufragada no
Acórdão do STJ de 6 de Dezembro de 2001, apud António Pedro A. Ferreira, ob. cit., pág. 658, nota
1063). Porém, esta argumentação choca com a expandida pelo Tribunal Constitucional (vide nota
anterior), ao considerar que esta sanção penal não tutela unicamente os interesses do credor pignoratício
e, por outro lado, não é desproporcionada face à conduta do empenhante. A admitir a revogação das
disposições penais e como salienta Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 266, fica
235
Um vez constatada a existência de um penhor validamente constituído nos
termos comuns – ou seja, ficando o empenhante privado de usar e dispor materialmente
do bem onerado - , ainda assim há quem sustente, não obstante, a admissibilidade da
convenções das partes segundo as quais ao devedor seria consentido continuar exercer
determinados poderes relativamente ao bem empenhado, designadamente prestando os
cuidados necessários à conservação do bem.930931
A resposta a dar quanto à licitude de semelhantes pactos encontra-se
umbilicalmente ligada à resposta a dar, em sede de extinção da garantia, à questão de
saber se a perda temporária da posse parte do credor pignoratício conduz ou não ao
ocaso da garantia.932
enfraquecida a posição do credor, mas, ainda assim, parece que as vantagens conferidas por este regime
especial continuam a justificar o recurso ao mesmo.
930
Cfr. Guillouard, ob. cit., págs. 109 e 110, justificando a validade desta cláusula (nomeadamente
quando estejam em causa mercadorias destinadas a transformação) com a necessidade desses actos para a
conservação do bem empenhado (chegando mesmo a considerá-los como uma obrigação do devedor),
com a inaptidão do credor para os proporcionar e com a ausência de qualquer incompatibilidade com o
desapossamento já ocorrido. Admite também esta possibilidade Troplong, ob. cit., págs. 93 e 94, ao ponto
de considerar que a mesma deve ser tolerada – sempre que necessária para a manutenção do penhor –
desde que não ponha em causa a posse do credor (advoga também a admissibilidade de uma cláusula
deste teor, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 61).
931
Noutro plano, admitem alguns Autores que as partes convencionem que o empenhante se reserve o
direito de proceder à venda do bem onerado, assim como de fixar a respectiva modalidade, data e preço) –
assim, Guillouard e Troplong, ults. obs. e locs. cits., com base no melhor conhecimento que o devedor
possui do bem e com a ausência de prejuízo para o ius distrahendi do credor pignoratício – que
permanece intacto e exercitável em caso de incumprimento da obrigação garantida - e para a posse do
credor pignoratício (uma vez que esta se mantém, podendo o credor recusar-se a entregar a coisa se e
enquanto não for pago).
932
Sobre este assunto, vide infra n.º 10.2 do Capítulo I.
933
A redacção deste preceito parece preferível à do art.º 855.º do Código Civil de 1867, nos termos do
qual a coisa dada em penhor poderia ser entregue “ao credor ou a quem o represente”, por ser evidente
que o bem pode ser entregue a um representante do credor (considerando-se como tendo sido entregue a
este) e, por outro lado, por o verdadeiro terceiro não ser representante do credor – neste sentido, Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 106. Questão conexa – à qual Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58,
pág. 108, responde afirmativamente, ilustrando-a com a hipótese em que o empenhador entregue a coisa a
um depositário ou locatário designado pelo credor - é a de saber se o empenhador pode entregar a coisa,
não directamente ao credor, mas antes a alguém que a vai possuir como seu mediador possessório.
934
Aliás, quando o bem dado em penhor pertença a terceiro, alguns entendem ser obrigatória esta relação
quadrilateral, porquanto o empenhante não poderá ser designado como (terceiro) depositário, mas
também o não poderá ser o próprio devedor da obrigação garantida, pois assim se desvirtuariam os fins do
desapossamento (cfr. Barrada Orellana, ob. cit., pág. 127).
236
detrimento do(s) credor(es) pignoratício(s), não impondo sequer a lei qualquer condição
para a oponibilidade daquela designação a estes sujeitos.935
As duas funções assinaladas como fundamentantes da exigência de
desapossamento do empenhador e de entrega do bem ao credor – publicidade e
protecção do credor – encontram-se igualmente presentes nesta hipótese: quanto à
primeira, os credores do constituinte também não encontrarão o bem em poder
daquele;936 relativamente à segunda, o constituinte fica, de igual modo, impedido de
proceder à deterioração ou descaminho do bem empenhado.
Tendo em conta estes fitos visados pela entrega, a escolha do terceiro é
relativamente discricionária - não nascendo, porém, o penhor se o terceiro for
dependente, encarregado937 ou parente próximo do concedente, 938 na medida em que
terceiros poderiam ser enganados por esta situação939 - desde que se consinta ao terceiro
depositário dispor do bem empenhado sem a cooperação do credor e sobretudo do
devedor empenhante.940
Contudo, nalguns casos a complexidade das circunstâncias permite duvidar se
terá ocorrido entrega a terceiro nos termos legalmente exigidos, como sucederá quando
aquela tenha tido lugar, conjuntamente, a dois depositários (sendo um nomeado pelo
935
Cfr. Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 232 e Barrada Orellana, ob. cit., pág. 127.
936
Naturalmente que, também quando a coisa empenhada deva ser entregue a terceiro, apenas quando
essa entrega ocorrer efectivamente se terá por constituído o direito de penhor.
937
Neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 14/10/1932 (in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.ºs
64-65, pág. 266), recusando a validade de um penhor em que os objectos empenhados haviam ficado em
poder dos sócios da sociedade em nome colectivo responsável pela dívida garantida, por entender que
aqueles não podem ser considerados terceiros relativamente a esta (aduzindo ainda que esta invalidade
não é sanada pelo facto de os objectos terem também ficado à guarda da mulher de um dos sócios,
simultaneamente mãe de outra sócia). Contra, admitindo a validade do penhor quando se constituam
depositários dos objectos empenhados os gerentes da devedora, sendo esta uma sociedade por quotas,
alegando serem aquelas pessoas diversas daquela, vide os Acórdãos da Relação do Porto de 13/5/1933, in
Revista dos Tribunais, ano 51, 1933, pág. 169 e segs., (cumprindo salientar que, à data dos factos, não
estava ainda em vigor o Decreto-Lei n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939, relativo ao penhor sem entrega
em garantia de créditos de estabelecimentos bancários) e do STJ de 26/6/1953, in BMJ n.º 37, 1953, pág.
423 e segs. (o penhor em questão não havia sido celebrado em garantia de nenhum crédito bancário e, por
isso, encontrava-se sujeito ao regime geral).
938
A este respeito, Pace, ob. cit., págs. 21 e 22, nota 36, noticia a existência de decisões judiciais
declarando a invalidade de um penhor em que os bens empenhados tenham sido entregues a um terceiro
parente próximo do devedor e que com ele habitava (tendo aquele consentido que este continuasse a usá-
los na sua actividade profissional), bem como do penhor constituído pelo marido em favor da mulher
sobre máquinas de aquele era proprietário, ainda que tais bens tenham sido entregues a um terceiro para
que a custodie (uma vez que o marido empenhante continuou com a possibilidade de as usar, ainda que
impedido de as mover ou de delas dispor).
939
Neste sentido, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 231 e 232, Lisanti-Kalczynsky, ob.
cit., pág. 101, Rubino, Il pegno cit., pág. 220 (acrescentando que esta exigência não é afastável por
vontade das partes, na medida em que se destina a tutelar os interesses de terceiros), Gorla e Zanelli, ob.,
cit., pág. 76, nota 4, Realmonte, Il pegno cit., pág. 658 e Ciccarello, ob. cit., pág. 691 (concluindo, por
isso, que o terceiro deverá ser alguém estranho ao devedor) e, entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág.
89 (aludindo à necessidade de o terceiro “ser um elemento estranho ao devedor, procurando-se, assim,
garantir que ocorra a efectiva indisponibilização do bem empenhado”). Num caso curioso retirado da
jurisprudência francesa relatado por Guillouard, ob. cit., págs. 117 a 118, o bem empenhado havia sido
entregue a terceiro, mas o edifício onde deveria ser depositado pelo terceiro era propriedade do devedor,
embora arrendado ao terceiro por contrato anterior à convenção pignoratícia (o aresto validou este penhor
e o Autor citado aplaude esta decisão, argumentando que o terceiro deverá ser considerado possuidor do
bem em virtude do contrato de arrendamento já vigente à data da constituição do penhor. No entanto, não
deixa de chamar a atenção para a necessidade de verificar se estas convenções – nomeadamente o
contrato de arrendamento e o desapossamento do devedor - não são fraudulentas).
940
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 90.
237
credor e o outro o próprio devedor)941 ou, noutra ordem de considerações, quando os
bens empenhados permaneçam num local propriedade do devedor, mas sob a guarda de
um terceiro depositário.942
Conforme exposto anteriormente, aquando da análise da traditio brevi manu,
nada impede que o terceiro designado para custodiar o bem onerado já se encontrasse
em poder do bem onerado.
Mas também poderá suceder que, encontrando-se o bem empenhado em poder
de um terceiro, o constituinte e o credor pignoratício convencionem que a entrega seja
feita a este último.943
Apesar de a nossa lei, ao contrário de outras,944 não o dizer expressamente, o
terceiro deverá ser designado por acordo das partes no contrato de penhor945 (muito
embora não seja de exigir nenhuma formalização escrita de tal pacto946) e não por
imposição unilateral de uma das partes,947 por decisão judicial948 ou por determinação
941
É o caso relatado no Acórdão da 5.ª Vara do Porto de 11/1/1936 (in Revista dos Tribunais, n.º 54,
1936, pág. 173 e segs.) no qual se julgou válido um penhor em que os bens empenhados foram entregues,
em conjunto, a dois depositários, sendo um nomeado pelo credor pignoratício e o outro o próprio devedor,
mesmo que este tenha movimentados os ditos bens e que estes se tivessem mantido nos seus armazéns
(argumentando que a nomeação de um depositário por parte do credor garante a validade do penhor, ao
impedir que o objecto permanecesse no poder exclusivo do proprietário; por outro lado, apesar do direito
que assistia ao proprietário de movimentar o vinho dado em penhor – mas não de o retirar do armazém,
por força de uma proibição legal relativa à comercialização do vinho empenhado -, que tal poder apenas
poderia ser exercido, nos termos do contrato, enquanto não prejudicasse o penhor; e, por último, que o
próprio devedor havia reconhecido a obrigação de não dispor dos bens empenhados sem o consentimento
do credor e sob a fiscalização deste).
942
Hipótese analisada no Acórdão do STJ de 19/7/1957 (in BMJ n.º 69, 1957, pág. 654 e segs.),
concluindo-se pela validade deste penhor, sobretudo tendo em conta que, apesar de os bens continuarem
na sede da devedora, não poderiam ser dali retirados sem o consentimento do credor e, por outro lado,
asseverando que “Entrega não importa necessàriamente deslocação da coisa. Esta pode continuar no
mesmo lugar, desde que passe para a guarda e poder de quem a recebe”. Pace, ob. cit., págs. 21 e 22,
nota 36, dá conta de decisões judiciais italianas negando a validade de um penhor quando tivesse sido
designado um terceiro, mas em que o bem tenha permanecido no estabelecimento do devedor e à
disposição deste (quando houvessem sido entregues a terceiro as chaves do imóvel onde se encontravam
os bens empenhados e no qual o devedor exercia a sua actividade comercial e às quais continuava a poder
aceder).
943
Como bem nota Puig Brutau, ob. cit., pág. 29, bastando, em tal caso, que o terceiro entregue a coisa ao
credor pignoratício. Na situação inversa, isto é, quando o penhor se constitua por meio da entrega ao
credor e este pretenda, posteriormente, colocá-la em poder de terceiro, Barrada Orellana, ob. cit., pág.
128, entende não lhe será lícito fazê-lo sem o consentimento do constituinte (devendo, se o fizer,
recuperar a coisa e indemnizar o terceiro e o proprietário pelos danos que lhes tenha causado), salvo
ocorrendo uma justa causa para colocar a coisa nas mãos do terceiro, mas, mesmo nesta hipótese, o credor
deverá procurar obter o acordo do constituinte sobre a pessoa do terceiro ou, se tal não for possível, obter
autorização judicial para o efeito.
944
Cfr., por exemplo, os art.ºs 2076.º do CCF, anterior versão, e 2786.º, n.º 2, do CCI.
945
Vide, entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 89 e 90, reconhecendo a licitude da atribuição da
uma das partes do contrato da faculdade de designação do terceiro).
946
Do mesmo modo para o direito italiano, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 191e Rubino, Il pegno cit., pág.
221 e, para o direito francês, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 78.
947
Contra, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 79, embora com reservas e apenas em casos contados, admitem a
nomeação por acto unilateral do credor.
948
Admitem a nomeação judicial do terceiro encarregue da conservação do bem, Gorla e Zanelli, ob. cit.,
pág. 79, apontando como exemplo a situação em que o constituinte se recuse a entregar a coisa e o juiz,
em vez de ordenar a entrega ao credor, entenda mais oportuno determinar a entrega a um terceiro; quando
o credor pignoratício perca a posse da coisa e, na sequência de uma acção de recuperação da posse,
requeira o arresto da mesma; e a possibilidade de sequestro judicial da coisa em caso de abuso por parte
do credor (cfr. art.º 2793 do CCI). Admitem também a designação judicial do terceiro depositário
Realmonte, Il pegno cit., pág. 658 e Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 89 e 90.
238
legal,949 tendo em conta a confiança que ambos os contraentes deverão ter na pessoa do
terceiro.950
No entanto, não parece imperioso que o terceiro seja parte no negócio de
constituição da garantia (nem tão pouco no eventual acordo separado que proceda à sua
designação), embora tal aceitação (que não carece de ser contemporânea daquele
acordo) condicione a produção de efeitos daquela convenção.951
Pese embora o credor careça do consentimento do devedor para a designação do
terceiro, poder-se-á considerar este último como mandatário que possuirá em nome do
credor, uma vez que não fora a sua nomeação, a posse seria atribuída ao titular do
direito de garantia.952
Sendo o bem entregue ao terceiro, apenas sobre este – e não já sobre o credor
pignoratício - passa a impender a responsabilidade pela conservação da coisa
empenhada, porquanto esta obrigação pressupõe a disponibilidade material do bem.953
Tendo o carácter sucedâneo de entrega a terceiro, relativamente à colocação do
bem nas mãos do credor pignoratício, bem como as obrigações que sobre ele impendem,
aquele não poderá restituir objecto da garantia ao devedor sem o consentimento do
segundo, excepto em caso de extinção do penhor.954
Noutros termos, a tarefa desempenhada pelo terceiro cessa com a entrega do
bem ao constituinte (no caso de este cumprir integralmente a obrigação garantida, pois
antes disso tal devolução apenas poderá ter lugar com o consentimento do credor) ou ao
949
Assim, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 122, aludindo à existência de “terceiros reconhecidos por lei” e
apontando como exemplo o caso das mercadorias depositadas nos armazéns gerais ou do pagamento com
sub-rogação no caso de o crédito se encontrar garantido por penhor (hipótese em que o credor satisfeito
permanece como terceiro detentor ex lege sempre que o constituinte se negue a dar o seu consentimento à
transferência da detenção).
950
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 221, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 107
(sublinhando ainda este último que, em caso de desaparecimento, falecimento ou declaração de
insolvência do terceiro, as partes terão de designar outro sujeito para aquelas funções, sob pena de o
penhor ficar sem efeitos) e Guillouard, ob. cit., págs. 116 e 117 (considerando que não basta a detenção
material do bem pelo terceiro, sendo ainda exigível que essa detenção ocorra por força de uma convenção
entre devedor e credor pignoratícios – pois, até essa data, possuirá a coisa por conta de quem lha tenha
entregue).
951
De acordo com Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 495, “la perfección del contrato celebrado
entre deudor y acreedor pignoraticio no se produce haste que se pone al tercero designado en posesión
de la cosa dada en garantía” e desde que este último aceite recebê-la (sendo que tal aceitação – que não
carece de forma especial - pode ser contemporânea do contrato de penhor ou, pelo contrário, ser posterior
a este). Reconhecem que o terceiro não é (ou não tem que ser) parte no contrato de penhor, Hugo Ramos
Alves, ob. cit., pág. 92, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 78 (apesar de constatar que, normalmente, esse
acordo é contemporâneo do contrato de penhor, destaca a sua independência face a este e, por isso,
remata que nada parece impedir a sua estipulação em momento posterior e em documento diverso),
Guillouard, ob. cit., pág. 117 (sustentando que este acordo de designação do terceiro poderá ser celebrado
unicamente entre o credor e o devedor, sem necessidade do concurso da vontade daquele terceiro,
funcionando este como agente de execução daquele acordo, muito embora reconheça a necessidade, para
a produção de efeitos desse acordo, da entrega do objecto ao terceiro ou – caso este já se encontre em seu
poder – que lhe seja notificada a mencionada convenção, assim evitando a devolução do bem ao devedor)
e Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 104 e 105 (exigindo, porém, o acordo do terceiro para que a
convenção produza os efeitos a que se destina, requerendo que este possua, para o efeito, capacidade para
se obrigar).
952
Troplong, ob. cit., pág. 106 e Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 233.
953
Acerca deste aspecto, vide infra n.º 9.2.3 do Capítulo I.
954
Como bem nota Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 51.
239
credor pignoratício (em caso de incumprimento daquela obrigação, pois antes disso
apenas o poderá fazer com o consentimento do constituinte).955
Antes disso, o terceiro poderá cessar as suas funções invocando justa causa,
desde que dê conhecimento de tal facto às partes no contrato de garantia, de modo a que
estes acordem a qual deles deverá ser entregue o bem956 (na falta de acordo, restar-lhe-á,
porventura, consignar o bem em depósito).
Esta modalidade de constituição do penhor apresenta diversas vantagens,957
algumas para o credor, que assim se desobriga dos deveres de conservação do bem
empenhado a que normalmente se encontra adstrito, outras para o devedor, que assim vê
diminuir o risco de actos de deterioração ou de disposição do bem dado em garantia por
parte de quem tenha o poder de facto sobre ele.
Para além disso e no interesse de ambos, a entrega a terceiro permite que,
durante a vigência da garantia, a conservação do bem empenhado seja confiada a um
sujeito muitas vezes mais qualificado para o efeito que o credor e até que o próprio
empenhante.958
Outra vantagem, não menos relevante, relaciona-se com a viabilidade de o
devedor conceder vários penhores, mesmo com desapossamento efectivo do devedor,959
sobre o mesmo objecto, a favor de diversos credores,960 exercendo o terceiro as suas
funções no interesse colectivo de todos os credores pignoratícios:961 desta forma, será
possível que o credor e o constituinte acordem na nomeação de um terceiro para se
ocupar da custódia do bem onerado e, posteriormente, seja constituído um outro penhor,
bastando para tal que este segundo credor e o constituinte acordem na designação do
mesmo terceiro, e este aceite guardar o bem também por conta do novo credor.962
955
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 92, depois de realçar que o terceiro não é parte no contrato de
penhor, defende que a restituição do bem deve ser efectuada a quem esta garantia determina, o que
significa que, salvo acordo em contrário dos signatários do penhor, será devolvida ao credor pignoratício
956
Neste sentido, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 129 e 130, acrescentando que, na falta de acordo, o
terceiro pode solicitar a consignação judicial do bem, assim como, em caso de manifesta urgência,
entregar imediatamente o bem ao credor ou ao constituinte.
957
Realçam estas vantagens, entre outros, Guillouard, ob. cit., pág. 116, Baudry-Lacantinerie, ob. cit.,
págs. 79 e 80, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 103, Aynés e Crocq, ob. cit., pág. 203, Weil, ob. cit.,
págs. 84 e 85, Giuseppe Portale, ob. cit., págs. 876 e 877 e Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 495.
958
Refere esta vantagem Giuseppe Portale, ob. cit., págs. 876 e 877 (acrescentando uma outra relativa à
possibilidade de manutenção do gozo do bem por parte de quem já o detinha ou possuía a outro título).
959
Claro que, permanecendo o bem em poder do constituinte da garantia, não existe obstáculo de maior à
constituição de mais de um penhor sobre tal coisa – constata isto mesmo Sílvio de Salvo Venosa, ob. cit.,
pág. 561, acrescentando que o mesmo se passa em caso de constituição de um penhor legal sobre uma
coisa previamente onerada com um penhor convencional.
960
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 170, recusa a viabilidade de empenhar o mesmo bem ou direito em
garantia de obrigações diferentes cujo credor seja o mesmo, alegando que, se assim fosse, violar-se-iam
os princípios da acessoriedade e da especialidade.
961
Salientam este aspecto e a possibilidade de, assim, o mesmo bem poder garantir diversas dívidas
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 232, acrescentando que, se assim não fosse, ou seja, se
cada objecto apenas pudesse ser empenhado uma vez a favor de um determinado credor, isso conduziria a
uma restrição ao uso do património mobiliário do devedor como modo de obtenção futura de crédito, ao
contrário do que sucede, por exemplo, com as hipotecas (por outro lado, cumpre esclarecer que a
preferência entre os diversos credores pignoratícios será determinada pela data, não da colocação do bem
na posse de terceiro, mas sim da data em que este aceite a sua designação).
962
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 500, acrescentando que o poderá mesmo suceder que os dois
penhores se constituam, não sucessivamente, mas contemporaneamente, com a única nuance de a
designação do terceiro ter que merecer o acordo dos dois credores e do empenhante.
240
Assim e apesar de a generalidade das legislações963 serem omissas quanto à
admissibilidade de constituição de múltiplos penhores sobre o mesmo bem,964 a entrega
a terceiro acaba por facilitar que o mesmo bem possa ser sucessivamente onerado a
favor de sujeitos distintos.965
Todavia, o credor pignoratício pode assumir o papel de terceiro, relativamente a
um penhor constituído posteriormente ao seu, pelo que a remissão do bem a terceiro não
se apresenta absolutamente indispensável para a constituição plúrima de garantias desta
índole sobre o mesmo objecto, sendo esta igualmente compatível com a entrega ao
credor pignoratício966 (e até com a composse), especialmente quando este já detivesse o
bem a outro título.
963
Enrico Poggi, ob. cit., pág. 433 e segs., alerta para o facto de os códigos suíço e alemão consagrarem a
possibilidade de diversos penhores sobre o mesmo bem. O primeiro estabelecia que o direito de penhor
posterior se constituía através de notificação escrita ao primeiro credor pignoratício, com a advertência de
restituir o bem empenhado, após a satisfação do seu crédito, ao credor pignoratício seguinte (norma esta
interpretada pelo Autor como consagrando o nascimento do penhor desde a data da notificação e,
excepcionalmente, sem necessidade de transferência da posse do bem) e, para o penhor de créditos,
determinava que a dação em penhor de um crédito previamente empenhado exigia a notificação – por
parte do titular do crédito ou do novo credor pignoratício - ao credor pignoratício anterior: em qualquer
dos casos, os credores seriam pagos de acordo com o seu grau, coincidindo este com a data de
constituição de cada uma das garantias. Já o BGB, apesar de não ser tão explícito no reconhecimento, o
mesmo retira-se de inúmeros preceitos (maxime o §909 – ao estabelecer que, para avaliar a hierarquia dos
direitos de penhor, é também decisivo o momento da constituição, ainda que destinado a garantir um
crédito futuro ou condicional, preceito que, naturalmente, seria privado de significado caso sobre cada
bem se pudesse constituir um único direito de penhor - , o §1232 – nos termos do qual o credor
pignoratício não está obrigado a entregar, para efeitos de proceder à respectiva venda, a coisa a um outro
credor pignoratício de grau inferior e, se não estiver na posse da coisa e desde que não proceda ele mesmo
à venda, não se pode opor à venda efectuada por outro credor pignoratício de grau inferior - e o §1205, n.º
2 – ao estabelecer que a entrega de uma coisa existente na posse indirecta do proprietário pode ser
substituída, de modo que o proprietário transfira a posse indirecta para o credor pignoratício e a dação em
penhor seja notificada ao possuidor). Com base neste último preceito do BGB (conjugado com o §868,
nos termos do qual se alguém possui uma coisa como credor pignoratício e tem perante outrem o direito
ou dever de possuir, esse outro é igualmente considerado possuidor), o Autor citado conclui que “essendo
il primo creditore pignoratizio possessore imediato della cosa e il costituente possessore mediato,
quest’ultimo trasferendo il possesso mediato al secondo creditore potrebbe porre costui nella condizione
voluta dal §1205 per la costituzione del pegno anche a di lui favore. Si avrebbero quindi sulla cosa un
possesso immediato (del primo creditore pignoratizio) e due possessi mediati, del proprietario
costituente, come tale, e del secondo creditore pignoratizio, per l’investidura datagliene da quello a titolo
di pegno”.
964
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 233, admite expressamente que se possam
constituir diversos penhores a favor de diferentes credores do empenhante, bem como de diversos créditos
do mesmo credor.
965
Realçam este aspecto Mirabelli, ob. cit., pág. 405 e Paz-Ares Rodriguez, ob. cit. pág. 1876 (destacando
este último que esta constituição de múltiplos penhores sobre o mesmo bem pode ser simultânea ou
sucessiva, embora subsista a necessidade de acordo entre o constituinte e os diversos credores
relativamente à designação da pessoa encarregue da custódia do bem onerado, assim como acerca da
ordem de preferência entre os diversos credores, tendo em conta que a execução do penhor por parte do
primeiro deles originará o desaparecimento da garantia dos demais).
966
Desde que, como salienta Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 496, o primeiro credor pignoratício
aceite desempenhar tal incumbência em nome dos seguintes credores pignoratícios. Também Bustos
Pueche, ob. cit., págs. 554 e 555 (que admite em termos amplíssimos a possibilidade de constituição de
mais de um penhor sobre o mesmo bem, ainda que sem o recurso à figura do terceiro depositário, por
entender que o constituinte, ao conceder o primeiro penhor, não perde a livre disposição jurídica – apenas
a disposição material – do bem, reforçando o seu raciocínio com o facto de, aos olhos da lei, o
desapossamento nem sempre exigir a entrega do bem ao credor, na medida em que é admissível a entrega
a terceiro), Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 79 e Guillouard, ob. cit., pág. 120, evidenciam como a
entrega ao credor não impossibilita a constituição futura de outros penhores sobre o dito bem, desde que o
primeiro credor pignoratício consinta em possuir o objecto da sua garantia também em favor dos
241
Por ser assim e inversamente, a entrega do bem a terceiro não pressupõe
necessariamente a existência de mais de um credor pignoratício, não sendo, por isso, o
único fundamento para a constituição de mais do que um penhor sobre o mesmo bem.967
Não falta, porém, quem advogue o carácter imprescindível da designação de um
terceiro quando os créditos, para além dos credores, sejam diversos, contrapondo tratar-
se de uma mera possibilidade no caso de o penhor respeitar a um ou vários titulares do
mesmo crédito.968
Esta mesma posição distingue, ainda, o caso de dação em penhor originária, da
mesma coisa, em favor de vários credores (reputando de indispensável a nomeação de
um terceiro969 “perchè il compossesso dei diversi creditori non potrebbe giuridicamente
esercitarsi né avrebbe quella necessaria evidenza che è nella ragione stessa della
legge”),970 da eventualidade de, após ter concedido um penhor a favor de um dado
242
sujeito, o devedor pretender constituir uma nova garantia a favor de outro credor
(hipótese na qual e uma vez que uma nova entrega material se afigura inviável, restará a
“traditio consensual”, seja através da traditio brevi manu – quando a coisa já esteja em
poder do adquirente do primeiro credor pignoratício971 - ou da pura entrega consensual,
quando a coisa se encontre, a outro título - depósito, penhor, locação, etc. -, no poder de
um terceiro).972
anterior a essa convenção e venha a ser nomeado depositário - se torna oponível a terceiros (não havendo
nenhum acordo acerca da designação do depositário e se um dos credores dispuser já da posse da coisa,
apenas em favor dele – e não dos demais – se considera constituída a garantia face a terceiros). Quanto à
graduação recíproca dos créditos pignoratícios, o mesmo Autor (cfr. págs. 145 e 146) sugere que cada
concorre sobre o preço de venda na proporção dos respectivos créditos, não existindo, por força da
indivisibilidade do penhor, nenhuma prioridade a favor de nenhum deles (sem prejuízo de,
convencionalmente, tal prioridade poder ser estipulada): todavia, a divisão pode até ser previamente
estabelecida, de modo que o penhor onere apenas uma parte da coisa empenhada, pois “una porzione
della cosa può restare nella libera disponibilità del debitore pignoratizio in guisa di poterla vendere o
pignorare ancora ad altri. Allorchè queste frazioni si identificano nella costituzione di più pegni, coeva o
successiva, si ha, indirettamente, uno spostamente convenzionale dei gradi senza che esso sia
espressamente previsto. Il creditore di somma maggiore può concorrere sul ricavato per una proporzione
minore (…) estinto per qualsiasi causa il diritto del singolo creditore, gli altri creditori pignoratizi non
accrescano la garanzia a proprio vantaggio, come accade nel pegno indiviso sulla intera cosa; invece,
sulla proporzione scoperta concorrono i creditori chirografari”.
971
Neste circunstancialismo, a entrega considera-se efectuada no momento em que for prestado o
consentimento por parte do primeiro credor pignoratício (assim, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 148),
consentimento esse que produzirá o efeito de transformar o primeiro credor num terceiro relativamente ao
segundo credor (assim, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 454 e segs., alegando que tal aceitação se deverá
presumir quanto o primeiro credor já estivesse, anteriormente ao nascimento do penhor, uma relação de
cariz obrigacional que lhe concedesse a detenção do bem: fora estes casos, a aceitação do primeiro credor
é obrigatória, não podendo considerar-se um terceiro, “se non entrando quale parte in una convenzione in
cui appaiano, come controparte, il pignorante ed il secondo pignoratario, la cui volontà, previamente
concordata, deve incontrarsi con la sua” e não sendo viável a constituição do penhor através da simples
notificação ao primeiro credor. Quando se produza a notificação, esta “non potrà valere che a costituire
sulla cosa il diritto reale, colla limitazione però che il pegno stesso acquisti la sua perfezione, agli effetti
del privilegio, solo (…) al momento in cui il primo creditore, aderendo alla notificatagli volontà del
pignorante, consegni la cosa al secondo o continui a tenerla, nonostante la fine del proprio pegno, per
conto di esso”, pelo que, apenas quando a constituição do segundo penhor se processe nestes termos o
segundo credor pignoratício disporá de um direito próprio sobre o objecto da garantia, direito esse que lhe
permitirá exigir ao primeiro, após a extinção do seu penhor, a entrega da coisa empenhada: se assim não
for, o segundo credor será um mero cessionário do empenhante na pretensão de restituição do bem
empenhado, podendo o primeiro credor opor-lhe todas as excepções de que dispunha relativamente ao seu
primeiro credor). Este último Autor rebate ainda as acusações de quem considera que, deste modo, se
transforma degrada a situação dos credores quirografários, contrapondo que se mantém intacta a
propriedade do devedor sobre o bem empenhado e que “ali ostacoli di fatto a successivi atti di
disposizione non costituiscono il contenuto di una legittima pretesa dei creditori chirogarafari”,
assegurando-se a defesa destes últimos através do desapossamento originário do devedor, não sendo
necessária “che il secondo pegno sia accompagnato da un fatto materiale che lo esteriorizzi
estensibilmente giacchè coll’originario spossessamento essi sono per sempre messi in guardia dal
pericolo di considerare presente nel patrimonio del debitore quel valore ormai da lui alienato”.
972
Neste caso, o consenso postula necessariamente a intervenção do terceiro, sem a qual a garantia não
poderá ser oposta aos demais credores (Francesco Pellegrini, ob. cit., págs. 148 e 149), muito embora se
possa presumir tal consentimento quando o terceiro tenha sido designado por força de um seu anterior
relacionamento com o devedor, com base no qual fosse já o detentor do bem (neste sentido, Enrico Poggi,
ob. cit., pág. 455 e segs., rematando ser suficiente, em ordem à constituição do penhor, a notificação do
terceiro). Por seu turno, será dispensável a intervenção (e o consentimento) do primeiro credor, bastando
que “pignorante e secondo creditore esprimano in confronto del terzo consenziente la volontà che esso
tenga la cosa anche in funzione del secondo pegno, cio che integrerà, in un certo senso, una nuova
consegna della cosa stessa” (assim, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 454 e segs.). Em face do direito espanhol,
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 171 e 172, esclarece que a constituição posterior de um
segundo penhor sobre o mesmo bem (in casu, sobre acções nominativas e salva a impossibilidade de, se a
243
Em nosso entender e conforme afirmado anteriormente, a constituição de
diversos penhores sobre o mesmo bem, a favor de diversos credores (e em garantia de
diversos créditos) poderá processar-se mediante a entrega a um deles desde que, no
momento originário do surgimento de todas eles ou, posteriormente, aquando do
nascimento das novas garantias, exista um acordo relativamente à escolha do credor
receptor da coisa: em qualquer dos casos, verifica-se a entrega do bem ao (a um) credor
e a retirada da disponibilidade do bem ao empenhante.
Apenas no caso de, anteriormente à constituição da garantia, o bem se encontrar
em poder do terceiro a outro título se afigura indispensável, não tanto que o bem
onerado permaneça em seu poder (uma vez que este pode aceder a desfazer-se da sua
detenção, por exemplo em benefício do credor pignoratício), mas a obtenção do seu
consentimento para a constituição da garantia originária ou de uma sucessiva (sendo
que, nesta última hipótese, não será forçosa a concordância do primeiro credor
pignoratício), podendo o quid onerado permanecer em poder do terceiro ou, com a
concordância deste e dos diversos credores, passar para as mão de um destes.
Também na óptica da determinação do objecto onerado e quando se verifique a
constituição contemporânea de dois ou mais penhores, podemos operar uma outra
distinção, consoante a massa de credores se apresente unificada ou, ao invés, o
empenhante tenha diante de si cada um dos diversos credores.973
Uma vez admitida a pluralidade de penhores (sucessivamente constituídos) sobre
o mesmo bem, cumpre determinar qual a graduação recíproca entre eles, surgindo a
regra da prioridade temporal como a mais plausível, embora se afiance a possibilidade
da sua derrogação por vontade das partes.974
primeira garantia se tiver constituído de acordo com as regras cambiárias, a segunda não o poder ser, uma
vez que não poderá haver posteriores endossos em garantia) não requer o consentimento do primeiro
credor pignoratício, dependendo apenas do acordo das partes nesse segundo contrato (mais
especificamente, “si el título, se hallase en poder de un tercero, éste pasaría a poseer en interés también
del nuevo acreedor pignoratício; si él título, en cambio, se encontrase en posesión del primer acreedor
pignoraticio, éste tendría además la condición de tercero a efectos del traslado posesorio en la
constitución de la ulterior prenda”).
973
Opera esta distinção Enrico Poggi, ob. cit., pág. 450 e segs.. De acordo com este Autor, no primeiro
caso “è come se egli impegnasse a ciascuno una quota della cosa proporzionale al credito; si avrà in
sostanza una comunione di pegno per parti indivise”. Já no segundo, o empenhante pode pretender
vincular a favor de cada um dos credores uma parte ou a totalidade do bem: se pretender empenhar
apenas uma parte, os diversos penhores não têm o mesmo objecto, não existindo, deste modo,
possibilidade de conflito e dispondo cada um dos credores do direito de alienação da respectiva quota;
conflito este que se poderá verificar se for empenhada totalidade do valor do bem e que será resolvido de
forma a que cada um dos credores pode satisfazer-se sobre “una quota che stia al valore totale della cosa
comé l’importo del credito di ciascuno sta all’ammontare complessivo di tutti i crediti”, excepto se outra
graduação for convencionalmente acordada (em caso de dúvida, o Autor sustenta que deverá presumir-se
estarmos perante um penhor de quotas do bem empenhado).
974
É a posição de Enrico Poggi, ob. cit., págs. 459 e 460, para quem a regra será a da prioridade temporal
da constituição (mesmo quando estejam em causa penhores constituídos em garantia de créditos futuros
ou condicionais, tendo em conta que “importando la costituzione del pegno l’assoggettamento materiale
della cosa al potere del creditore, la volontà di obbligare ex tunc la cosa medesima viene perciò stesso
direttamente e positivamente dimostrata”), salva a legitimidade de o empenhante, ao constituir o primeiro
penhor, se reservar a possibilidade de constituir um segundo penhor com preferência sobre aquele
(mesmo admitindo que, neste caso, se faz depender de uma condição a maior ou menor consistência
económica do direito constituído, pois tal condição “è potestativa ma non tale da inficiare senz’altro la
convenzione, una volta che il pegno conserva sempre la sua consistenza giuridica ed economica
qualunque sia il suo rango. Pertanto la possibilità della convenzione discende dal principio della libertà
contratuale”).
244
A posição de supremacia de que goze um determinado credor pignoratício, em
sede de concurso com outros credores da mesma igualha, projecta-se igualmente no
domínio da legitimidade para a alienação do objecto da garantia.975
Seja ou não o modo exclusivo de criação de vários penhores sobre o mesmo
bem, a realidade atesta o recurso frequente à designação de um terceiro para conservar o
bem onerado, designadamente no âmbito do depósito das mercadorias empenhadas em
armazéns gerais (desempenhando os proprietários destes o papel de terceiros detentores
em nome dos credores), complementando-se o funcionamento da garantia mediante a
emissão de um documento que incorpora um penhor (warrant976 ou cautela de
penhor):977 deparamo-nos com penhores desta índole no nosso Código Comercial978 e
975
Neste sentido, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 460 e segs., na esteira do direito alemão (cfr. o §1232 do
BGB), atribui primazia ao primeiro credor pignoratício, advogando que lhe assiste (caso o bem
empenhado não esteja na sua posse ou na sua posse exclusiva) o direito de exigir a entrega do bem
empenhado a fim de proceder à dita alienação (pelo contrário, os credores de grau posterior apenas
poderão proceder à venda quando o credor preferente não o faça). O Autor justifica esta posição de
supremacia do direito substantivamente preferente, também em sede processual, com a faculdade deste
credor de reter o bem empenhado até à sua completa satisfação, com a consequência de “il secondo
creditore dovrà sempre attendere che sia venuto a scadenza il credito del primo, anche se sia da tempo
scaduto il suo” (sem que tal signifique uma sujeição do segundo credor ao livre arbítrio do primeiro, na
medida em que aquele poderia recorrer a tribunal para resolução do conflito, especialmente quando o bem
se encontrasse em poder do primeiro credor pois este, ao consentir no segundo penhor, implicitamente
aceitaria que este deveria ter a sua normal execução), assistindo, por outro lado, ao segundo credor o
direito de requerer judicialmente a venda em caso de inércia do credor preferente quando ambos os
créditos se encontrem vencidos (já na eventualidade de o primeiro credor exercer o direito de venda
quando o seu crédito se encontre vencido mas o segundo não, “il sopravanzo o resterà presso il primo
nella sua qualità di terzo di fronte al secondo pegno, convertito in un pegno proprio di denaro, o sarà
rimesso al secondo creditore per costituire a suo favore un pegno irregolare: è possibile inoltre che sia
rimesso al secondo creditore per essere imputato al suo credito”).
976
Não confundir, porém, esta figura com a dos warrants autónomos (cujo regime consta do Decreto-Lei
n.º 172/99, de 20 de Maio, republicado pelo Decreto-Lei n.º 70/2004, de 25 de Março), cujo objecto é
conferir, relativamente a um activo subjacente, o direito a subscrever, a adquirir ou a alienar o activo
subjacente, mediante um preço, no prazo e demais condições estabelecidas na deliberação de emissão ou,
ainda, o direito a exigir a diferença entre um valor do activo subjacente fixado na deliberação de emissão
e o preço desse activo no momento do exercício e que são qualificados por lei como valores mobiliários,
com a consequente aplicação subsidiária do regime consagrado para estes – cfr. art.º 2.º, n.º 1, alíneas a) e
b).
977
Em termos simplificados, estes armazéns recebem as mercadorias e emitem um título duplo (recibo-
warrant), representativo desses bens, podendo cada um deles ser transmitidos conjunta ou separadamente.
Através do endosso do warrant, depois de destacado este do título, e transcrevendo esse primeiro endosso
no registo do armazém geral, o depositante constitui um penhor a favor do endossatário para garantir o
crédito constante do warrant. O armazém geral apenas entregará as mercadorias ao portador do recibo se
este tiver previamente pago ao portador do warrant – vide, por todos, Cabrillac e Mouly, Droit des
sûretés cit., págs. 536 e 537 e Théry, ob. cit., pág. 299.
978
Cfr. art.º 408.º e segs. do Código Comercial (para o qual remete o art.º 398.º, § único, n.º 3 do mesmo
Código), distinguindo entre o conhecimento de depósito e o warrant, em especial o art.º 411.º, nos termos
do qual a transmissão de ambos os títulos resulta na transmissão das mercadorias depositadas; a
transmissão apenas do conhecimento produz a transferência da propriedade das mesmas – com ressalva
do direito do credor pignoratício – e o endosso apenas do warrant confere ao endossatário o direito de se
pagar sobre o produto da venda dos bens armazenados. Normalmente, a constituição do penhor sobre
estas mercadorias processar-se-á da seguinte forma: o proprietário das mercadorias depositadas destaca o
warrant do conhecimento de depósito e, com o primeiro endosso – do qual deverá constar a importância
do crédito garantido, a taxa de juros e a respectiva data de vencimento, devendo ainda o endosso ser
transcrito no conhecimento de depósito e transcrição assinada pelo endossado (art.º 412.º) -, cria um novo
título de crédito, transmissível por via de endosso, não podendo, a partir dessa data, o depositário entregar
os bens ao seu proprietário sem que antes seja satisfeito o credor pignoratício portador do warrant (sobre
esta matéria, vide Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 286 e 287).
245
em diversos diplomas avulsos),979 assim como nas codificações de outros países,
nomeadamente França980 Espanha.981
979
Sem qualquer pretensão exaustiva, podem enumerar-se o Decreto-Lei n.º 43102, de 3 de Agosto de
1960, complementado pelo Decreto-Lei n.º 401/70, de 21 de Agosto (atribui à Junta Nacional das Frutas a
faculdade de instituir o regime de armazéns gerais para abranger as mercadorias da produção industrial
das actividades sujeitas à sua disciplina), no Decreto-Lei n.º 47169, de 27 de Agosto de 1966,
complementado pelo Decreto-Lei n.º 48043, de 17 de Novembro de 1967 (autorizando a Federação
Nacional dos Produtores de Trigo a emitir e descontar cautelas de penhor - warrants - com garantia dos
cereais, sementes de forragens ou quaisquer outros produtos, de produção continental, ultramarinos ou
exóticos, depositados pela Federação nos seus celeiros, silos ou armazéns, constituídos, para o efeito, em
armazéns gerais agrícolas), na Lei n.º 8/70, de 18 de Junho (que autoriza as federações dos grémios da
lavoura, os organismos de coordenação económica e os grémios da lavoura dos Açores e da Madeira a
emitir e descontar em instituições de crédito cautelas de penhor - warrants - e a dar como garantia os
produtos agrícolas, florestais ou pecuários, originários, em via de transformação ou já transformados,
depositados nos grémios da lavoura e cooperativas agrícolas da sua área), no Decreto-Lei n.º 195/70, de 4
de Maio (institui o sistema de depósito em regime de armazéns gerais para vinhos comuns, vinhos
especiais e aguardentes vínicas, sujeitos a estágio para envelhecimento). O modelo das cautelas de penhor
- warrants - e dos respectivos conhecimentos de depósito para desconto em instituições de crédito, bem
como as normas reguladoras da verificação dos armazéns e da fiscalização técnica dos produtos foram
aprovadas pela Portaria n.º 539/70, de 26 de Outubro (os modelos especiais dos conhecimentos de
depósito e de cautelas de penhor para operações de crédito sobre produtos vínicos depositados em regime
de armazéns gerais e as condições de segurança e apetrechamento das adegas ou armazéns destinados à
recolha dos produtos para depósito em regime de armazéns gerais constam do Despacho n.º 69/71, de 23
de Março, alterado pela Declaração n.º 94/71, de 22 de Abril). Importa, todavia, salientar, na esteira de
Galvão Teles, Anotação cit., pág. 215, que os warrants podem igualmente dizer respeito a bens que se
conservem em poder do seu dono, constituindo analogamente um título de crédito ao portador (como tal
livremente circulável através de endosso) e um penhor estabelecido em garantia do mesmo, sobre bens
que não saem das mãos do proprietário. Inversamente e como constata Troplong, ob. cit., pág. 92, os bens
empenhados poderão igualmente ser depositados num local pertença do credor ou por este arrendado,
caso em que estaremos perante uma constituição de penhor através de depósito, mas sem necessidade de
recurso a um terceiro (no mesmo sentido Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 535 e 536).
980
Como em França, onde já Troplong, ob. cit., pág. 92, dava conta do depósito das mercadorias
empenhadas em depósitos públicos, desde que ficasse estabelecido que apenas o credor pignoratício teria
o direito de dispor das mesmas. Actualmente, o regime dos armazéns gerais, nomeadamente no que
concerne à possibilidade de negociarem warrants que representem as mercadorias que neles depositadas
consta dos art.ºs L522-1 e segs. do Code de Commerce (vide infra n.º 1.2.2 do Capítulo II).
981
Tomillo Urbina, ob. cit., pág. 539 e segs., realça a natureza “essencial y exclusivamente pignoratícia”
deste título, uma vez que a relação jurídica de depósito em armazéns gerais se materializa num suporte
documental divisível em três partes: a matriz (que ficará sempre em poder do depositário), o resguardo de
depósito (“título apto para transmitir, en determinadas condiciones, la propriedad de las mercancías
depositadas sobre las que se ha constituido el gravamen pignoratício”) e o resguardo de garantia ou
warrant (“por cuya transmisión se constituye prenda en favor del tenedor del documento sobre los
objetos depositados”). Segundo o Autor, os warrants comungam das principais características distintivas
dos títulos-valor ou de tradição, quais sejam a legitimação para exercício dos direitos conferida pela posse
do título, a literalidade (embora o portador do warrant não possa desconhecer a relação de depósito a que
se encontram sujeitos os bens onerados, pelo que em caso de perda ou deterioração destes - ou de
existência de um ónus anterior sobre o mesmo bem - o credor pignoratício adquirirá, salvo se a perda
tenha decorrido de caso de força maior, o direito a uma indemnização pelo valor determinado no contrato)
e autonomia: simplesmente, uma vez que o warrant possui unicamente uma função de garantia, não
transmitindo a propriedade dos bens (mas apenas a posse mediata dos mesmos), ele incorpora apenas dois
direitos: “un derecho real de garantía constituido sobre las mercancías depositadas, y un derecho
personal de crédito frente a los endosantes del documento. Este derecho de crédito cartularizado tiene su
origen en la relación subyacente sustanciada entre el primer endosante y el primer endossatario
(acreedor pignoratício”, não consentindo ao seu portador exigir do depositário a entrega das mercadorias,
pelo que, em caso de incumprimento da obrigação garantida, deverá promover a venda judicial daqueles
bens. Relativamente às menções, do warrant deve constar a indicação do valor pelo qual as mercadorias
empenhadas respondem, os juros, a data de vencimento do crédito assegurado – a sua não indicação
implica a consideração da dívida como pagável à vista – o lugar do pagamento, as assinaturas do devedor
e do credor e, por último, a constatação que a operação foi registada na matriz do contrato e nos livros do
246
Contudo, na medida em que este título é susceptível de transmissão, poderá
questionar-se se o endosso em garantia do warrant não constitui uma violação da
proibição do sub-penhor.982
Importa, todavia, salientar que cumpre verificar se efectivamente o devedor, não
obstante a colocação dos bens em poder de terceiros - nestes armazéns ou noutros locais
– se mantém privado do poder de disposição relativamente aos bens empenhados.983
Outro domínio em floresceu o recurso à figura de um terceiro encarregue da
custódia do bem onerado, sobretudo antes da desmaterialização dos valores mobiliários,
foi o do penhor de acções.984
armazém onde os bens foram depositados (a omissão deste último requisito gera a nulidade do título
pignoratício). Conforme decorre ao acabado de expor, além das menções que devem ser apostas no título,
a função de garantia do warrant encontra-se ainda dependente de outros requisitos extra-cartulares, como
sejam a inscrição na matriz (funcionando esta como uma base de dados contendo as diversas vicissitudes
das operações pignoratícias) e nos livros da entidade depositária (com função idêntica, ao ponto de o
Autor questionar a necessidade desta duplicação de formalidades) cabendo a esta última a
responsabilidade pelo cumprimento destas formalidades, depois de o registo lhe ter sido solicitado pelos
interessados (incumbindo-lhe, neste âmbito, o dever de controlar a regularidade das operações cujo
registo é solicitado – e, quando tal não suceda, a recusá-lo – embora este controlo seja mais ténue no caso
de operações de dação em penhor, porquanto o armazém depositário não tem nenhuma intervenção nos
endossos ordinários efectuados antes ou depois da constituição do penhor, pelo que, nesta hipótese e ao
não ser o emissor do título, nenhuma responsabilidade pode ser assacada relativamente à veracidade das
declarações cartulares que vinculam unicamente os sujeitos que as tenham aposto). Por último, o Autor
aborda a possibilidade de um penhor recair sobre um bem próprio (o chamado penhor de proprietário),
que pode decorrer da circunstância de o possuidor de um warrant adquirir o resguardo de depósito,
considerando que, à partida, tal facto conduzirá à extinção, por confusão, do penhor, mas não
inexoravelmente, uma vez que a lei se limita a facultar ao interessado a legitimidade para a solicitar e,
assim sendo, “nada obsta a que el mismo titular pueda optar por que la pignopración agote el período
estipulado para su duración al tiempo del libramiento del warrant (…). El endosso ulterior del warrant
recrea la vitalidad del crédito pignoraticio cuando la confusión subjetiva acontece con anterioridad al
vencimiento del título pues, en tal caso, el pignus in re sua, con ser una situación anómala, lo es sólo con
carácter provisorio e temporal” (pelo contrário, se a confusão se verifica no momento – ou após – o
vencimento do warrant, a situação é definitiva e irreversível, conduzindo à extinção da garantia). Vallet
de Goystisolo, ob. cit., pág. 306, realça como caso paradigmático da entrega a terceiros o dos warrants
emitidos relativamente a mercadorias depositadas nos armazéns gerais e, de lege ferenda, recomenda a
sua utilização para o penhor de estabelecimento comercial (através da nomeação de um gerente para
comandar os respectivos destinos), de determinados equipamentos produtivos (os quais ficariam sob a
alçada do dito gerente) e de produtos transportados pelo devedor para fábricas de terceiros para laboração
ou transformação (com a advertência que a devolução do bem ao devedor, por parte do terceiro, implica
responsabilidade deste pela destruição da garantia).
982
Tomillo Urbina, ob. cit., pág. 591 e segs., coloca a dúvida nos seguintes termos: “si el warrant
representa la prenda constituida sobre las mercancías, su endosso en garantía sólo podrá ser la prenda
de la prenda”. Todavia, o Autor entende que esta perspectiva é extremamente redutora, porquanto o
direito de penhor, apesar de ser a característica mais típica do warrant, não esgota o seu conteúdo, na
medida em que “El warrant incorpora dos derechos: un derecho real de garantía, constituido sobre las
mercancias depositadas en el almacén general; y un derecho personal de crédito frente al librador y los
endossantes sucesivos del título (…). El crédito documentado no tiene por objeto la prenda, sino el
derecho – garantizado con prenda sobre las mercancias depositadas – a percibir la cantidad dineraria
que el tenedor del resguardo de depósito (obligado principal) adeuda al tenedor del warrant, suma que
generalmente vendrá indicada nel título pignoraticio” (o Autor aduz ainda que à mesma conclusão se
chega depois da análise do regime jurídico do warrant, do qual decorre que este título “no atribuye a su
tenedor el derecho a obtener la entrega de las mercancías sino el derecho a exigir su ejecución (…).
Peró, ejecutada la prenda, el derecho al remanente no corresponde al endosante en garantía del warrant
sino al tenedor del resguardo de depósito, que podrá ejercitarlo directamente frente al depositário”).
983
Julgando não ser bastante a entrega dos bens em armazéns gerais quando o constituinte da garantia
mantenha publicamente o direito de neles entrar, Puig Brutau, ob. cit., pág. 30.
984
Refere este aspecto Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 58 e segs. (e também Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 75, salientando que este depósito se faz normalmente em instituições de crédito,
247
Uma interrogação pertinente prende-se com a qualificação jurídica da situação
do terceiro985 a quem seja entregue a coisa e, concomitantemente, do contrato celebrado
com esse sujeito, considerando a doutrina dominante estarmos perante um contrato de
depósito,986 embora mesmo dentro desta corrente de pensamento não exista
unanimidade quanto ao enquadramento deste particular depósito em alguma das
modalidades que este contrato pode assumir.987
entregando o devedor ao credor um documento comprovativo do depósito que consente ao seu portador a
posterior restituição dos títulos), comparando a hipótese de penhor de acções tituladas à do depósito de
mercadorias empenhadas em armazéns gerais e precisando que, também no penhor de acções o credor
conserva sempre em seu poder um documento representativo do depósito (contudo, o Autor afirma não se
tratar de um verdadeiro depósito, conforme decorre do facto de o próprio CCE prever a possibilidade de
em caso de abuso do bem empenhado, por parte do credor ou do terceiro designado, o empenhante poder
requer, então sim, o depósito do bem). Todavia, esta alternativa afigura-se mais viável no que respeita às
acções nominativas do que às ao portador, uma vez que, nestas últimas, a obrigatoriedade de exibição do
título por parte do credor ou do empenhante para o exercício dos direitos sociais inerentes à participação
onerada coloca entreves adicionais à operação.
985
Mirabelli, ob. cit., pág. 404, limita-se a afirmar que o terceiro actua como mandatário das partes.
986
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1876 (apesar de reconhecer não ser clara a posição do terceiro,
conclui que “su función es semjante a la de un depositario limitándose a custodiar la cosa entregada en
garantía hasta el cumplimiento de la obligación principal por parte del deudor o hasta la realización del
derecho de prenda (…). Junto al deber de custodia del tercero tiene la obligación general de
conservación de la cosa debiendo realizar los gastos necesarios para la misma con derecho a
reintegrarse de los efectuados”), Puig Brutau, ob. cit., pág. 29, Serrano Alonso, ob. cit., pág. 265 (falando
do terceiro como uma espécie de depositário, que possui o bem ao serviço do credor pignoratício, o qual
possui mediatamente através do depositário), Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2144, Barbara
Cusato, ob. cit., págs. 190 e 191 (indicando ser este o entendimento consolidado da jurisprudência desde
os anos 70, servindo as normas legais relativas ao depósito para determinar a eventual responsabilidade
do terceiro para com o credor), Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 79 e Rubino, Il pegno cit., págs. 220 e 221 –
este último, qualifica o contrato com o terceiro como um contrato ordinário de depósito que, se negociado
e celebrado apenas por uma das duas partes do contrato de penhor (credor ou empenhador), esse terá a
obrigação de agir também em nome do outro (e de dar a conhecer ao terceiro o objectivo prosseguido
pelo depósito): não o fazendo, a outra parte no negócio de garantia não será parte na relação de depósito,
mas poderá passar a sê-lo, desde que dê a conhecer a sua situação ao depositário, passando este também a
responder perante ele pelo dever de conservação do bem (em termos similares, Ciccarello, ob. cit., pág.
691 e Realmonte, Il pegno cit., pág. 658). Menos enfático é Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 498,
concluindo, ainda assim, que o terceiro “se encuentra en una situación de cierta especialidad, pero muy
próxima a la del depositario (…). En principio, recibe la cosa y asume la obligación de custodiarla en
beneficio del acreedor y del pignorante, cuya voluntad conjunta es necesaria para materializar la
transmisión posesoria al tercero. Este, al cumplir la función de guarda y conservación de la cosa
mientras no ha vencido la obligación principal garantizada, actúa armonizando los contrapuestos
intereses de los otros contraentes (…). Vencida la obligación principal, el tercero (…) deberá cumplir su
obligación de restituir, con la particularidad de que el destinatario de tal restitución será bien el proprio
pignorante, si la deuda fue satisfecha, bien el adjudicatario de la cosa si, incumplida la obligación
principal, se realiza la prenda” (rejeitando, em razão desta dupla responsabilidade do terceiro para com o
credor e o devedor, que o terceiro seja um mero sub-rogado do credor na sua posição de possuidor do
bem onerado). No nosso país, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 91 e 92, qualifica este negócio como um
depósito com função de garantia, “porquanto as partes envolvidas instrumentalizam o contrato de
depósito ao fim último da conservação do bem empenhado” (de modo que “o accipiens não é parte do
contrato de penhor, mas sim do contrato de depósito, assumindo, consequentemente, a obrigação de
custódia, enquanto as partes no contrato de penhor perseguem a função de garantia, assegurando a
conservação da coisa, pelos seus meios”.
987
De acordo com Giuseppe Portale, ob. cit., pág. 883 e segs., podemos distinguir entre a teoria do
depósito no interesse de terceiro, o credor, de modo a que o depositário seja forçado a devolver o bem a
esse terceiro – quando se verifique um determinado evento futuro e incerto – ou ao depositante – se
aquele evento não se verifica - (tese criticada pelo Autor pois a sua aceitação “significherebbe attribuire
al creditore il ruolo di terzo estraneo al contratto, nel cui interesse l’oggetto del pegno verrebbe affidato
al detentore” e, assim, o penhor nasceria no momento da entrega do bem ao depositário, mesmo
prescindindo da aceitação deste no que respeita à detenção também por conta do credor pignoratício: ora,
248
Esta posição encontra especial fundamentação no direito francês, porquanto o
art.º 2079.º do CCF, na versão anterior à reforma de 2006, afirmava que o penhor nas
mãos do credor constitui um depósito destinado a assegurar o seu direito de
preferência.988
Nesta linha se inserem aquelas posições que qualificam o terceiro como mero
detentor (seja relativamente ao direito real de penhor do credor pignoratício, seja no que
concerne ao direito de propriedade do constituinte),989 de modo que não obnubilar a
posse pignoratícia do credor.990
tal concepção “urta contro il principio per il quale la garanzia non sorge fino allo spossessamento del
costituente (...) in quanto lo stipulante (concedente) conserverebbe, fino all’intervento del creditore, il
potere di ritirare ad nutum la cosa depositata”. Por outro lado, sustenta que os negócios a favor de
terceiro pressupõem um negócio válido entre promissário e promitente que possa produzir os seus efeitos
normais mesmo que não se verifiquem as condições para a operatividade da estipulação a favor de
terceiro, o que não sucede no caso do penhor, uma vez que “il contratto con il detentore del pegno non
sarebbe di per se stesso idoneo a produrre il suo effetto principale (costituzione della garanzia reale)
senza la clausula a favore del creditore”), do depósito cumulativo, nos termos da qual o esquema legal do
depósito se presta a múltiplas aplicações práticas, encontrando-se a função essencial de custódia
absorvida por uma outra função prevalecente de garantia relativamente a uma determinada obrigação
(embora reconhecendo-lhe algum mérito – por captar que “il creditore assumerebbe il ruolo di
condepositante, l’accipiens, obbligandosi a detenere anche per suo conto, non potrebbe restituire ad
alcuno dei tradenti senza il consenso dell’altro: si realizzerebbe in questo modo il spossessamento” - o
Autor refuta esta teoria, por rejeitar que o empenhante e o credor pignoratício tenham interesses
convergentes - “Al primo interessa che le cose siano mantenure nelle condizioni in cui si trovano al
momento della consegna, al secondo che sia conservata la garanzia del suo credito: ad uno preme
l’integrità delle cose, all’altro che il valore non diminuisca in modo da diventare insufficiente a garantire
la sicurezza del credito” – e, por isso, o terceiro é responsável separadamente perante cada um deles, para
além de este entendimento subentender, erroneamente, que “la situzione possessoria del creditore
preesista alla consegna della cosa, giacché la qualifica di condepositante presuppone l’esistenza di un
rapporto diretto o mediato con la cosa che si affida al depositario”) e do depósito trilateral, de modo a
que o depositário se obrigue cumulativamente perante o credor – prometendo conservar até à sua integral
satisfação - e o constituinte – comprometendo-se a restitui-lhe o bem empenhado em caso de
cumprimento da obrigação garantida. Também esta tese é criticada por Giuseppe Portale, ob. cit., págs.
891 e 892, por a lei prever a intervenção no contrato de depósito do depositante e do depositário e,
sobretudo porque a função típica do depósito - manter a coisa no estado em que se encontrava no
momento da celebração do contrato – não se identificar necessariamente com a finalidade essencial da
entrega a terceiro em matéria pignoratícia, a qual “tende ad assicurare la conservazione della cosa, ma
soprattutto a far sorgere, con lo spossessamento del costituente, il dirito di pegno”). Em termos análogos,
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 123 e segs..
988
Contudo, segundo Giuseppe Portale, ob. cit., págs. 878 e 879, “la somiglianza che la legge stabilisce
fra il pegno ed il deposito non è assolutamente esatta. Essa non deve essere presa alla lettera. Il
depositario non ha un diritto reale (…), la legge ha solamente voluto mostrare che il creditore
pignoratizio (…) non ha il diritto, come per esempio un usufruttuario, di servirsi della cosa. In questo si
avvicina al depositario”. Também o CCB parece apontar neste sentido, porquanto o art.º 1435.º, I,
estabelece que o credor pignoratício se encontra obrigado à custódia do bem empenhado, como um
depositário.
989
Neste sentido, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 321 e segs., considerando que o credor continuará a ser
possuidor (através da detenção do terceiro), de forma que “la possession partielle reste sur la tête du
créancier qui l’exerce par son représentant; quant à la détention partielle (…) elle est allors exerce par
le tiers qui est en ce qui concerne les utilités de la chose non absorbées par le droit du gagiste, le
représentant du constituant resté possesseur à cet égard” (o Autor esclarece ainda que o surgimento do
terceiro não coloca em causa a natureza real do direito de penhor, que continua a incidir sobre um bem
corpóreo, uma vez que “Si le tiers détient la chose donnée en gage pour le compte du créancier gagiste,
cette chose continue donc à faire l’objet à la fois de la possession et du droit réel du gagiste; sans doute
il naît entre les tiers et le gagiste des rapports obligationnels mais il en este de même dans tous les cas de
détention”).
990
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1876, afirma que “El hecho de la entrega de la cosa a un tercero no
priva al acreedor pignoraticio de su condición de poseedor, lo que ocurre que lo será de forma mediata a
través de la posesión inmediata efectuada por el tercero receptor de la cosa”.
249
A crítica a esta tese dominante parte da constatação das diferenças entre os
contratos de depósito e de penhor, pois enquanto este é constituído no interesse de dois
sujeitos, empenhante e credor pignoratício (eventualmente com prevalência deste
último), no depósito normalmente existe um único depositante (no interesse do qual o
depósito é efectuado) e, sob outro prisma, o conteúdo do depósito reside exclusivamente
na custódia do bem, enquanto no penhor a custódia é apenas um meio para alcançar o
fim de garantia do negócio.
Em consequência destas divergências, no momento da extinção, no depósito
haverá lugar à restituição do bem ao depositante, mas já no penhor o titular do direito à
restituição variará consoante o devedor pague a dívida garantida (caso em que o bem lhe
será devolvido) ou não o faça (hipótese na qual o bem será entregue ao credor, a fim de
este proceder à respectiva execução.
Outra opinião, minoritária todavia, equipara a situação do terceiro à que resulta
de um “sequestro convenzionale”, isto é, aquilo a que poderemos talvez chamar um
arresto convencional.991
De acordo com esta opinião, tratar-se-ia de um acordo destinado a harmonizar
transitoriamente a colisão entre os direitos (propriedade e garantia) dos dois sujeitos,
sendo a custódia levada a cabo no interesse daquele cujo interesse venha a ser, no
futuro, considerado preferente: a analogia com o arresto residiria na circunstância de,
também neste instituto, o depositário assumir uma obrigação de custódia relativamente
a cada um dos sujeitos, com o objectivo de subtrair o bem do poder material de cada um
deles.992
Também esta posição é alvo de reparos, sobretudo realçando as diferenças entre
os negócios tendentes ao surgimento do sequestro convencional e com o terceiro
detentor do penhor.993
Por último, não falta quem sustente que a entrega da coisa a terceiro origina o
nascimento de duas relações possessórias distintas,994 mas conexas – uma entre o
constituinte e o terceiro e outra entre este e o credor – permitindo a convergência sobre
um mesmo bem de duas situações possessórias baseadas num título diverso: tudo
somado, estaríamos na presença de um “negozio trilatero atipico di garanzia”.995
991
Por exemplo, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 129, qualifica a situação do terceiro como semelhante à
de um “secuestrário”, ou seja, um depositário instituído por duas pessoas, cujos interesses procura
harmonizar. Em termos análogos, Enrico Poggi, ob. cit., pág. 444, argumentando que o terceiro “riceve la
sua qualità della volontà di due soggetti aventi sulla cosa interessi diversi e potenzilamente collidenti”.
992
Em termos aproximados, Giuseppe Portale, ob. cit., pág. 893 e segs..
993
Especialmente incisivo a este respeito é Giuseppe Portale, ob. cit., pág. 894 e segs., salientando que
“nel sequestro convenzionale il sequestrante soccombente sarebbe parte del negozio soltanto in senso
formale, in quanto la situazione possessoria - che durante la controversia è obbiettivamente e
attualmente perplessa – dopo la decisione della lite si stabilizza retroattivamente a favore del vincitore.
Nel negozio con il terzo detentore, invece, non è esatto parlare di consolidamento dell’uno o dell’altro
diritto. Il contratto è posto in essere affinchè nasca la garanzia reale, la quale, una volta sorta, coesisterà
con il diritto di proprietà anche dopo l’inadempimento, fino alla realizzazione coattiva del credito”: ora,
tudo isto, no entender do Autor, demonstra a existência de três interesses distintos, como se comprova
pelo facto de, superando o valor do bem empenhado o do crédito garantido, o excedente dever ser
devolvido ao concedente e, ainda, pela possibilidade de o empenhante demandar o terceiro em caso de
deterioração do bem empenhado, mesmo que o credor já tenha sido satisfeito em sede de execução da sua
garantia.
994
Concluindo existirem três posses: a posse imediata do terceiro, a posse mediata do credor pignoratício
e a posse mediata mais remota do proprietário, vide Puig Brutau, ob. cit., pág. 29.
995
A expressão é de Giuseppe Portale, ob. cit., pág. 894. Parece aderir a esta posição Veiga Copo, La
prenda de acciones cit., págs. 75 e 76 (pois, apesar de aludir a uma relação trilateral – e à posse imediata
do terceiro e mediata do credor - afirma que a posição do terceiro “es la de un subrogado en todas las
obligaciones del acreedor pignoraticio, y en todos los derechos del mismo derivados de la posesión”).
250
A comprovação deste entendimento resulta, de acordo com o seu mentor, da
existência de três sujeitos autónomos, com interesses típicos e contrapostos, da
heterogeneidade do conteúdo das respectivas declarações negociais e, por fim, da
presença de três relações reciprocamente condicionadas quanto ao seu conteúdo.996
Aceitando, em termos aproximativos, a equiparação entre a posição daquele a
quem o bem seja entregue na sequência da constituição do penhor e a do depositário, da
mesma não pode resultar, automaticamente, a aplicação analógica das normas do
depósito ao penhor (nem tão pouco a qualificação do terceiro, à imagem do depositário,
como mero detentor), a qual deve ser encarada com bastante cautela,997 conforme se
alcança da não integral coincidência entre a posição de um e de outro sujeito, como
melhor se verá ao qualificar a posição do próprio credor pignoratício a quem seja
entregue o bem onerado
Ainda assim, a referida equiparação poderá assumir maior razão de ser
relativamente ao terceiro a quem seja entregue o bem, por comparação com a hipótese
de entrega ao credor pignoratício, pois aquele mantém-no em seu poder em vista de
direitos alheios (do credor e do constituinte), enquanto este o faz também atendendo a
interesses egoísticos e próprios.
5.1.3 - Composse
996
De acordo com Giuseppe Portale, ob. cit., pág. 895 e segs., a tutela de cada um dos intervenientes
nesta relação trilateral será assegurada do seguinte modo. No que concerne ao constituinte da garantia,
este poderá, em caso de abuso do bem por parte do terceiro (entendendo por abuso não apenas o uso sem
o consentimento ou de modo diverso do convencionado com o proprietário, mas também o não
cumprimento do dever de custódia com a diligência devida, mesmo que este comportamento negligente
não impeça a restituição do bem e não cause qualquer dano ao seu proprietário), requerer o sequestro do
mesmo (uma vez que sobre o terceiro impendem os mesmos deveres que oneram a posição do credor a
quem tenha sido entregue o bem). Relativamente ao credor pignoratício, sobre o qual não recai nenhuma
obrigação de custódia (nem tão pouco a responsabilidade, perante o empenhante, pelo incumprimento da
obrigação de custódia por parte do terceiro, pois esta pressupõe a detenção material do bem), assiste-lhe o
direito de reagir contra o terceiro detentor sempre que este não cumpra o seu dever com a diligência
exigida (mesmo que a sua actuação ainda não tenha causado prejuízos), eliminando a relação entre
ambos, nomeadamente solicitando o sequestro judicial do bem. Finalmente, o terceiro detentor tem direito
a uma compensação pelo exercício das suas funções, crédito este que justifica a atribuição de um direito
de retenção do bem até integral pagamento (em caso de concurso entre este crédito do terceiro e o crédito
do credor pignoratício, deverá prevalecer o primeiro, pois “se il creditore è parte in senso tecnico, è
chiaro che il credito del custode e, pertanto, il diritto di ritenzione nasceranno non solo nei confronti del
costituente, ma anche del creditore (…)” até porque “le spese necessarie per la conservazione del pegno
devono essere sostenute dal creditore, salvo il diritto di farle rimborsare dal concedente; principio che
opera qualunque sia la forma del pegno”).
997
Em termos aproximados, Emilia Massari, L’obligazione di custodire nel pegno e nel deposito, in
Rivista Trimestrale de Diritto e Procedura Civile, 1950, pág. 1091 e segs. e Hugo Ramos Alves, ob. cit.,
pág. 125.
998
Cfr. o art.º 2786.º, n.º 2, do CCI e o §1206 do BGB. O CCE espanhol não prevê esta modalidade de
constituição do penhor, muito embora a generalidade da doutrina a aceite (vide, por todos, Veiga Copo,
La prenda de acciones cit., págs. 73 e 74), desde que o constituinte permaneça impossibilitado de dispor
da coisa empenhada e não lhe seja possível aceder à mesma de modo independente (não sem reconhecer
que este mecanismo dificulta a publicidade de facto que a entrega material ao credor visa prosseguir),
posição subscrita igualmente por Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 496. Pelo contrario, Barrada
Orellana, ob. cit., pág. 118, mostra-se adversa a esta modalidade, por assegurar que“el titular de la
garantia tampoco puede disponer de la prenda sin la colaboración del pignorante. Por tanto, es possible
que llegado el momento, el pignorante coposeedor se oponga y obstaculice gravemente la enjanación del
251
com o empenhante, desde que este fique privado do direito de dispor materialmente da
coisa empenhada.999
Deste modo, tempera-se a exigência de desapossamento exclusivo do
empenhante e consequente empenhamento do credor, admitindo uma forma de
“spossessamento attenuato”.1000
Se não se nega o interesse subjacente a uma convenção neste sentido1001 –
designadamente quando o empenhador não deseje, com receio de má conservação,
confiar a coisa exclusivamente ao credor e pretenda um meio menos vexatório de
constituição da garantia – as dúvidas quanto à sua viabilidade devem ser dissipadas
analisando até que ponto a situação de composse compromete as finalidades pretendidas
com a entrega do bem empenhado ao credor.
Ora, tendo em conta que esta visa, conforme salientado anteriormente, garantir
os direitos do credor e dar publicidade ao penhor, tais finalidades não são beliscadas
pela posse conjunta do credor e do empenhador, desde que este fique privado do poder
exclusivo sobre a coisa (isto é, não possa dispor materialmente dela) e a situação de
composse seja de molde a revelar a existência de um ónus (ou, pelo menos, consinta aos
interessados suspeitar da existência desse encargo).1002
bien, y que obligue al acreedor a acudir al auxilio judicial para conseguir la realización del valor de la
garantia”.
999
Assim, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 129 e segs. e Almeida Costa, Direito das obrigações
cit., pág. 926 (este último adverte que “a lei não se satisfaz com o mero facto de que o credor
pignoratício adquira também a faculdade de disposição do objecto empenhado. O que se impõe é que o
autor do penhor a não tenha”, admitindo, porém, a validade de um penhor em que se convencione a
guarda do objecto empenhado num cofre com duas fechaduras, sendo a chave de uma delas confiada ao
credor e a outra ao constituinte da garantia).
1000
A expressão é de Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 7.
1001
Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 78 e 79, apontam como exemplo de composse a colocação dos bens
empenhados no cofre de um banco, juntamente com o pacto de proibição de abertura do mesmo sem o
consentimento de ambas as partes. Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 11 e segs., aponta como situações
típicas de recurso a esta modalidade de constituição do penhor o caso em que o bem dado em garantia
ocupe demasiado espaço ou, pelas suas características, deva permanecer em locais especialmente
edificados para o efeito (dos quais dificilmente poderia ser transportado sem avultadas despesas e sem
risco de deterioração), assim como a hipótese de o devedor não carecer de disponibilidade da totalidade
das matérias primas – normalmente destinadas a transformação e em relação às quais paga o valor à
medida que as vai retirando - podendo levantá-las gradualmente (desde que os locais do empenhante
sejam fechados com uma dupla fechadura e duas chaves, ficando uma delas para o credor, sem o concurso
do qual a abertura será inviável), assim consentindo o desenrolar da actividade produtiva do devedor,
sobretudo no que concerne às operações destinadas à conservação ou tratamento do produto (embora
estas operações normalmente exijam a presença de um representante do credor, quanto mais não seja para
a abertura das instalações). Para uma súmula das principais situações, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 124.
1002
Ou, nas palavras de Gabrielli, Il pegno cit., pág. 125, “se risulta rispettato il requisito
dell’indisponibilità (in senso materiale e in senso giuridico) dei beni da parte del costituinte, senza la
cooperazione del creditore, e quello della cognoscibilità per i terzi dell’esistenza di una situazione di
compossesso (rectius: concustodia) a titolo di pegno”. Em termos idênticos aos expostos no texto, vide
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 131, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 85 e 86, Barbara
Cusato, ob. cit., pág. 197 (dando, esta última, conta de decisões judiciais negando a admissibilidade da
custódia comum sempre que, após a constituição da garantia, os bens empenhados permaneçam na
disponibilidade plena e exclusiva do constituinte), Francesco Messineo, Costituzione cit., pág. 307 e segs.
(afirmando que “Il datore è parzialmente spossessato, anche se egli diventi compossessore, poichè altro è
– anche dal punto di vista del potere materiale sul bene – possesso esclusivo che ne consenta la libera
disponibilità e altro è compossesso, ossia possesso in comunione con altri, il quale compossesso
necessariamente richiede, perchè si possa disporre della cosa, il concorso del compossessore”) e
Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 54, nota 74 (afirmando que o desapossamento deve ser
“idoneo a porre il costituente nell’impossibilità di diporre della cosa o del titolo senza la cooperazione
del creditore (…) ed a mettere i tezi nelle condizione di connoscere la condizione giuridica del bene
impegnato”, ou seja, “deve essere assistita da una pubblicità idonea a rendere edotti i terzi della
252
Em face do exposto, não se suscitam dúvidas quando o bem seja colocado num
lugar neutro1003 ou onde apenas possa ser alcançável com a cooperação do credor e do
constituinte; pelo contrário, já será mais questionável se a coisa onerada poderá
permanecer em poder do constituinte.1004
Nesta segunda hipótese, parece que a composse apenas será idónea a produzir o
desapossamento do empenhante quando se verifiquem, cumulativamente, duas
condições: que o proprietário do bem dado em garantia não possa dispor materialmente
da coisa e, ainda, que seja de molde a permitir a cognoscibilidade por terceiros do
surgimento de uma situação de composse a título de penhor.1005
Deste modo e quanto ao primeiro requisito, relativo às relações internas entre o
empenhante e o credor pignoratício, exigir-se-á, não apenas que ao primeiro seja
retirado o direito de dispor, mas igualmente a possibilidade material de subtrair os bens
empenhados.1006
costituzione del pegno”). Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter
Eickmann, ob. cit., págs. 1498 a 1500, destacam como a mera composse, sem exigência de qualquer
requisito adicional, não tornaria cognoscível exteriormente que o bem havia saído do poder de disposição
do empenhante, nem protegeria uma das partes contra possíveis abusos da outra, pelo que se exige “que
ninguna de las dos partes pueda ejercer él solo el poder sobre la cosa”, impondo-se ainda a
exteriorização da situação possessória: com base nestes dois pressupostos, os Autores consideram válidos
os penhores em que nenhum dos compossuidores possa, por si só, tomar posse do bem ou dela dispor sem
o consentimento do outro (como sucederá quando é empenhada uma grua que apenas com o
consentimento de ambos pode ser desmontada ou transportada; ou quando se empenhem bens
armazenados e qualquer dos dois não possa entrar no armazém sem o auxílio do outro – v.g., quando a
porta apenas se abra com uma dupla chave, encontrando-se cada uma em poder dos diversos sujeitos),
aceitando mesmo a composse mediata (em caso de o mediador possessório apenas poder devolver o bem
conjuntamente ao credor e ao empenhante).
1003
Como exemplos de lugares neutros, Francesco Messineo, Costituzione cit., pág. 308, indica o
depósito do bem empenhado numa caixa forte em nome conjunto do credor pignoratício e do
empenhante, num armazém arrendado conjuntamente ao credor pignoratício e ao empenhante ou num
armazém geral (neste último caso, contra a emissão de um comprovativo de depósito em nome do credor
pignoratício e do empenhante).
1004
Nomeadamente quando os bens empenhados permanecerem num armazém propriedade do
empenhante ou do qual este sujeito possua a exclusiva disponibilidade (por exemplo, por ser o único
arrendatário). Uma possível solução seria a locação do imóvel, propriedade do empenhante, ao credor
pignoratício, passando a existir uma situação de empossamento do credor e não de composse: contudo, tal
alternativa será de descartar tendo em conta “il carattere di equivocità che si introdurrebbe nel possesso
del creditore pignoratizio, per la circostanza di tenere le cose oppegnorate in un magazzino, il quale,
seppure locato ad esso creditore, non lascerebbe di essere di proprietà del datore del pegno” (Messineo,
ult. ob. e loc. cit.). Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 54, nota 74, explicita que “se difatto le
cose sono rimaste nella piena disponibilità del costituente il pegno, non basta che l’affidamento della
cosa alla custodia di entrambi dal contratto costitutivo del pegno” (em conformidade, conclui que “”nel
caso di pegno di merci che rimangano presso il magazzino del costituente, si reputa non sufficiente la
consegna al creditore di una delle due chiavi del magazzino dove sono custodite le merci, ma necessaria
l’apposizione sulla porta di un cartello dal quale risulti la costituzione del pegno e la concustodia”).
1005
Assim, Francesco Messineo, Costituzione cit., pág. 309 e segs., posição esta subscrita por Gabrielli, Il
pegno cit., pág. 125, nota 73 e Ciccarello, ob. cit., pág. 692.
1006
Francesco Messineo, Costituzione cit., pág. 309 e segs., admite que tal condição será preenchida
quando a cada um dos sujeitos seja atribuída uma chave, diversas entre si, de modo a que o local onde se
encontrem apenas possa ser aberto com o concurso de ambas (especialmente quando, para além disso, o
dador do penhor se comprometa, por escrito, a não retirar do referido local o bem empenhado – ou parte
dele – enquanto vigorar a relação pignoratícia): assim sendo, nesta fattispecie o credor acaba por
desempenhar um papel de guardador dos bens, desconfiando do outro guardador (o empenhante). Sempre
de acordo com este Autor, nem a tal se poderá objectar que, deste modo, um dos compossuidores (o
credor) teria poderes mais amplos e intensos que o outro, porquanto tal discrepância é permitida por lei,
muito embora tal disparidade de poderes não signifique, antes pelo contrário, esvaziar a posse do
empenhante de consistência efectiva, pois ao credor não é legitimo dispor do bem sem o seu
consentimento). Concluindo, o Autor remata ser “del tutto indifferente l’appartenenza del magazzino, ed
253
Já no que concerne ao carácter notório da composse - que respeita mais aos bens
empenhados do que ao local onde os mesmos se encontram - este relaciona-se com a
evidência que o desapossamento do empenhante deve assumir, pois caso não exista um
sinal dando conta que as coisas empenhadas se encontram na posse conjunta do credor e
do constituinte da garantia, os terceiros poderão, legitimamente, considerar tais bens
como não onerados.1007
Todavia, não falta quem recuse ver a publicidade do desapossamento como
condição de validade da situação de composse, argumentando que nenhuma disposição
legal impõe a necessidade de advertir terceiros da existência do vínculo.1008
è indifferente il luogo della custodia, poichè decisiva è la impossibilità (senza scasso, o senza
falsificazione di chiave) dell’apertura del magazzino, da parte del solo datore del pegno”. Já para
Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 7, tal efeito de indisponibilidade produzir-se-á mediante o depósito da
coisa empenhada num cofre de segurança de uma instituição bancária (com a ressalva que a respectiva
abertura apenas possa acontecer na presença simultânea do devedor e do credor) ou, em alternativa,
através do depósito num armazém, cuja porta seja encerrada com duas fechaduras e duas chaves, ficando
cada uma destas últimas para o credor e o devedor (de modo a que seja necessária a intervenção de ambos
para aceder ao local).
1007
Francesco Messineo, Costituzione cit., pág. 310 e segs., dá conta da prática usual de colocar, na porta
do local onde os bens empenhados se achassem depositados, um letreiro advertindo para a oneração a que
tais bens se encontravam sujeitos. No parecer deste Autor, tal mecanismo é idóneo para conferir
publicidade à situação de composse, apesar de considerar tal cartaz como não integrante do
desapossamento, mas sim “un di più che la cautela consiglia, sebbene la legge non prescriva alcuno
specifico modo solene, per rendere non-equivoco lo spossessamento del datore; ed è perciò da ritenersi
idoneo qualsiasi mezzo, purchè tale, da dare alla persona di ordinaria diligenza, la possibilità di
accertarsi dell’esistenza della custodia congiunta del bene oppegnorato e del titolo, al quale essa
custodia ha luogo”. Como bem nota o Autor, nem mesmo o registo assegura o efectivo conhecimento da
constituição dos direitos, pelo que a situação de composse deve assegurar apenas a cognoscibilidade da
constituição do penhor, pelo que o terceiro (nomeadamente outro credor do empenhante) que possa saber
da existência de mercadorias do devedor “non potrà sostenere di aver considerato quelle merci franche e
libere (…) sol perchè erano nei magazzini del debitore, se, sapendo già del luogo di custodia di tali beni,
abbia omesso di accertare in queli circostanze e con quali modalità e nel interesse di chi, essi vi erano
custodite”, pelo que o terceiro “potrebbe dolersi soltanto dell’esistenza di una garanzia oculta sulle merci
a favore di altri. Ma, ove il creditore pignoratizio faccia valere di essersi servito di un modo di
costituzione previsto dalla legge, esso modo non potrà essere inficiato di clandestinità o equivocità, tanto
più quanto si sia andato al di là delle precriozioni della legge, adoperado il cartello indicatore (o altro
accorgimento analogo)”, sendo irrelevante a eventual anterioridade do crédito desse terceiro face ao do
credor pignoratício compossuidor, pois a eficácia do penhor depende da sua intrínseca validade.
1008
É a posição de Montel, La pubblicità dello spossessamento quale preteso ulteriore requisito per la
costituzione del pegno mediante concustodia, in BBTC, 1964, II, pág. 621 e segs. (em comentário a uma
decisão contrária do Tribunal de Termini de 22/3/1964 que considerou “non costituisce spossessamento
palese, ai fini della validità del pegno nei confronti dei terzi, la consegna al creditore, di una delle chiavi
del magazzino dove sono custodite le merci rimanendo l’altra in possesso del debitore”). Este Autor
começa por contestar a posição daqueles para quem mesmo a inscrição nos registos não produz efeitos
independentemente da consulta por parte dos interessados (requerendo, pelo contrário, o efectivo
conhecimento um acto de diligência por parte de quem pretenda conhecer tais factos), contrapondo que
“l’iscrizione o la trascrizione sui pubblici registri producono effetto independentemente dalla
consultazione o meno dei detti registi da parte del terzo, in quanto nel regime di pubblici registri lo stato
di buona o mala fede è irrelevante”, concluindo que a lei apenas exige a subtracção do poder de
disposição ao empenhante, ou seja, “si preocupa non tanto (…) di porre sull’avviso gli eventuali
acquirenti del bene gravato o altri creditori nei cui confronti il debitore risponde coi suoi beni presenti e
futuri, quanto di impedire che del bene possa trovar luogo un acquisto ex art. 1153 c.c.: in altre parole,
che la normativa è disposta a tutela del creditore pignoratizio e non invece a tutela dei terzi”. Em termos
aproximados, Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 7 e segs., afirmando que “Il congegno della custodia
comune viene frequentemente integrato da un altro elemento, che non influisce sulla valida e efficace
costituzione del pegno ma risponde alla preocupazione che la mancanza di pubblicità del rapporto possa
meter in pericolo il diritto di prelazione del creditore, in quanto i terzi, ignorando il vincolo costituito
sulle cose depositate nel locale del debitore e considerandole libere, potrebbero intraprendere su di esse
254
Relativamente às modalidades que a composse pode assumir, VAZ SERRA
admite a denominada composse imediata – em que a coisa fica em poder directo do
empenhador e do credor, não podendo nenhum deles dela dispor materialmente dela
sem o acordo do outro – assim como a composse mediata – em que a coisa é entregue a
terceiro, ao qual apenas será lícito restituir a coisa ao empenhador e ao credor
conjuntamente, seguindo também as instruções comuns dos dois no que respeita à
conservação do bem.1009
Pese embora a distinção entre ambas as figuras, o enquadramento da segunda
hipótese no âmbito da composse oferece algumas dúvidas, porquanto não é de excluir a
sua qualificação como uma variante da constituição de penhor através da entrega da
coisa a terceiro, uma vez que, em ambos os casos, será este o titular dos poderes
materiais sobre o bem onerado.
Mais duvidosas ainda se afiguram as hipóteses de colocação da coisa sob
custódia conjunta do devedor e de um terceiro ou do credor e de um terceiro, oscilando
a doutrina entre os que aceitam e os que reprovam tal modo de constituição do penhor.
É nosso parecer que a primeira alternativa não enfrenta obstáculos de monta
(uma vez que, se o bem pode ser entregue ao credor ou ao terceiro, não descortinamos a
razão para que não o possa ser a ambos, estando subjacente a tal convenção a
salvaguarda das finalidades da composse, isto é, a retirada da disponibilidade do bem ao
empenhante e a publicitação da garantia, em razão da retirada do bem do poder fáctico
do empenhante); 1010 já a criação de uma situação de composse entre o devedor e o
terceiro apenas será legítima se e quando aqueles mesmos objectivos inerentes à
composse sejam alcançados, senão no que respeita à publicitação da garantia, ao menos
no que toca à privação do direito do empenhante dispor autonomamente - sem o
consentimento ou o auxílio do terceiro - do bem onerado.1011
Igualmente espinhoso se apresenta o enquadramento dogmático desta figura,
sendo possível identificar, pelo menos, três orientações diversas.1012
Uma delas fala de uma composse – ou “comunione di possesso di diritti
eterogenei” - a favor do constituinte, que possuiria a título de propriedade, e do credor,
un’azione esecutiva” (apontando como exemplo a aposição de um cartaz na entrada do local onde se
encontram depositados os bens empenhados, dando conta da sua oneração). Não divergentemente,
Realmonte, Il pegno cit., pág. 659, entende que as modalidades de composse não terão necessariamente
de assegurar a cognoscibilidade por terceiros da situação de custódia comum (e, reflexamente, da
constituição da garantia), por considerar que tal suposta exigência não encontra fundamento legal.
1009
Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 133. O mesmo Autor aventa várias modalidades que a composse
mediata pode assumir, designadamente a entrega a terceiro que ficará com um poder sobre a coisa a título
de locatário (ou de comodatário) e com a determinação de apenas poder proceder à respectiva entrega
conjuntamente ao credor e ao empenhador ou, se esta já se encontrava locada (ou dada em comodato),
através da notificação ao locatário (ou ao comodatário) dando conta que apenas poderá efectuar a entrega
conjuntamente ao credor e ao empenhador. Uma última variante prevê a hipótese de a coisa já se
encontrar na composse mediata do credor e do empenhador, caso em que o penhor se constituiria
mediante notificação ao terceiro possuidor (dado que a relação de composse pode extinguir-se antes da
extinção do penhor).
1010
Admitem esta hipótese Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 78 e Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág.
496.
1011
Aceita a composse entre o terceiro e o devedor Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 496, desde
que tal modo de constituição da garantia mereça o consentimento de ambas as partes na relação
pignoratícia e se a situação criada permitir aos restantes credores um conhecimento cabal da situação
criada. Pelo contrário, rejeitam-na Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 78.
1012
Acerca destas várias teorias vide Ciccarello, ob. cit., pág. 692, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 124 e
Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 55, nota 74. Desvaloriza a importância prática desta
discussão Realmonte, Il pegno cit., pág. 659.
255
que possuiria a título de penhor (sendo, ao mesmo tempo, detentor relativamente ao
direito de propriedade, que não pode desconhecer).1013
De acordo com esta perspectiva, a composse nasce da circunstância de o
originário possuidor único (constituinte da garantia) fazer participar da posse um outro
sujeito (credor pignoratício), transformando-se assim de possuidor em “co-possuidor”.
Ao invés, outros Autores entendem ser inexacto falar, neste contexto, de
composse relativamente a posses com base em títulos diversos e até mesmo de posse do
credor pignoratício, sendo este um mero detentor, mantendo-se a posse a título de
propriedade no constituinte da garantia, mas sendo exercida através do credor
pignoratício (que, por seu turno, permanece possuidor no que respeita ao seu direito de
penhor).1014
Tratar-se-ia, quando muito, de uma situação de guarda conjunta em sentido
técnico, (“condetenzione”), permanecendo cada um dos sujeitos possuidor solitário
relativamente ao respectivo direito.1015
Por fim, uma outra corrente, faz apelo à noção de “concustodia”,1016 na esteira
dos próprios ditames da lei – o art.º 2786.º, n.º 2, utiliza o termo “custodia di entrambe”
– considera que esta custódia nasce de um acordo destinado a resolver o conflito de
interesses entre o credor e o constituinte da garantia, embora de modo diverso do
desapossamento ou da entrega do bem a terceiro, por forma a que a função de guarda da
coisa venha a ser exercida como se encarregue desse função se encontrasse um único
sujeito.
1013
A expressão é usada por Francesco Messineo, Costituzione cit., pág. 305 e segs., um dos principais
defensores deste entendimento. De acordo com este Autor, “la comunione di possesso non si stabilisce a
pari titolo fra creditore pignoratizio e debitore oppegnorante, in quanto questo secondo possiede la cosa
propria (…) a titolo di proprietà, sebbene abbia concesso la cosa in pegno, laddove il creditore
pignoratizio possiede nomine próprio a titolo di pegno, ma è in pari tempo detentore (o, come se diceva
un tempo, possesssore nomine alieno) della cosa oppegnorata, in quanto non disconosce il poziore diritto
(di proprietà) del datore del pegno”. Como salienta Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 9, trata-se de uma
comunhão de posse de direitos heterogéneos.
1014
Aludindo à dificuldade em conceber uma posse conjunta de direitos diversos e heterogéneos como a
propriedade e o penhor. (neste sentido, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 124 e Giuseppe Portale, ob. cit., pág.
876, nota 4). Particularmente incisivo nas críticas é Montel, In tema di costituzione di pegno mediante
compossesso tra creditore pignoratizio e datore, in BBTC, 1951, Vol. I, pág. 285 e segs. (apud Giuseppe
Trapani, ob. cit., pág. 9), para quem é inadmissível a comunhão de posse relativamente a direitos
heterogéneos, uma vez que, no caso do penhor, o empenhante permanece único possuidor a título de
propriedade, simplesmente enquanto antes era possuidor directo ou imediato, com a constituição da
garantia o credor pignoratício torna-se co-detentor e o proprietário exerce o seu poder de facto sobre o
bem conjuntamente com aquele credor: em suma, estaremos perante um concurso entre um possuidor
directo e um detentor, e não entre dois detentores (retoma estas críticas Giuseppe Trapani, ob. cit., págs. 9
e 10).
1015
Assim, Montel, ult. ob. e loc. cit.. A este entendimento poder-se-á, contudo, objectar que “ha il difetto
di lasciare insoluto il problema relativo alla estensione dei diritti del creditore pignoratizio, la cui
protezione esige il suo impossessamento, o, quanto meno, il suo coimpossessamento della cosa oggetto
del pegno” (Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 11).
1016
O pai deste entendimento parece ter sido Provinciali, Pegno mediante concustodia, in Il diritto
fallimentare, 1951, Vol. I, pág. 243, para quem a actividade de conservação do bem empenhado não deve
ser exercida por cada um das partes tendo em conta unicamente os respectivos interesses individuais, mas
antes conjuntamente, como se fosse apenas um sujeito a exercê-la, isto é, “è l’agire di un ufficio,
derivante dalla compartecipazione delle parti e dalla preordinata fusione delle loro attività, che ha la
titolarità della funzione” (apud Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 9). Adoptam esta perspectiva Ciccarello,
ob. cit., pág. 692, Gabrielli, Il pegno cit., págs. 124 e 125 e Giuseppe Portale, ob. cit., pág. 786, nota 4.
Todavia, também esta posição é alvo de críticas, designadamente porque “non spiega perché l’ufficio
privato (del quale non indica i titolari, se questi non si debbano ravvisare nelle parti medesime) sarebbe
investito dal possesso, nè chiarisce quali sarebbero i poteri di questo ufficio nei confronti di ciascuna
delle parti” (Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 11).
256
5.1.4 - Qualificação da posição jurídica do credor pignoratício: possuidor ou mero
detentor?
1017
Vide supra n.º 3.1 do Capítulo I.
1018
Afigura-se pacífico que a posse se pode decompor em dois elementos distintos: o corpus, entendido
como relação material do possuidor com a coisa objecto do direito possuído; e o animus, significando a
intenção de exercer um direito no próprio interesse – Paulo Cunha, ob. cit., pág. 186. Segundo Simon
Quincarlet, ob. cit., pág. 262 e segs., a posse consiste “dans le fait pour une personne de retirer ou
d’avoir la possibilité matérielle de retirer d’une chose tout ou partie des utilités qu’elle comporte, dans
son intérêt propre et avec l’intention de se comporter extérieurment comme en avant le droit; c’est une
appropriation de fait des richesses dont les droits réels traduisent l’appropriation de droit”,
compreendendo assim um elemento material – o corpus – e um elemento intencional, a intenção de se
comportar como titular de um direito real – o animus (embora o Autor chame a atenção para a
circunstância de o direito moderno tender a alargar a noção de posse a casos em que não existe um
contacto físico sobre uma coisa corpórea, entendendo-se a “maîtrisse” não em termos materiais, mas
antes como “une utilisation de fait exercée par une personne dans son intérêt exclusif ou un rapport
extérieur permettant cette utilisation; seulement la maîtrisse ici porte non sur une chose corporelle”: é o
que sucede quando se fala da posse a respeito de créditos ou de direitos de propriedade intelectual ou
industrial).
1019
Vide, a este respeito e por todos, Paulo Cunha, ob. cit., págs. 180 a 188.
1020
Também apelidada de posse precária ou posse em nome alheio. Para além disso ou por isso mesmo, é
normalmente aceite que o detentor não actua em nome e em benefício próprio, mas de outrem, que será o
verdadeiro possuidor (normalmente a pessoa que entregou o bem ao detentor): neste sentido, vide Manuel
Rodrigues, ob. cit., pág. 98 e segs., sustentando que a detenção será precária, devendo falar-se de
possuidor precário ou em nome alheio “Sempre que alguém exerça sobre uma coisa poderes materiais no
interesse exclusivo de outrem”. De acordo com Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 279 e segs., não é
absolutamente rigoroso falar da ausência de um elemento intencional na detenção, uma vez que o detentor
pratica deliberadamente actos materiais, não por sua própria conta (como faz o possuidor), mas sim no
interesse de outrem, o possuidor, razão pela qual o Autor entende ser necessário distinguir, a respeito do
elemento intencional da detenção, a detenção pura (“l’exercice par une personne de la possession d’une
autre pour le compte de cette dernière”, na qual “le détenteur n’a en príncipe aucun intérêt propre, n’est
que l’instrument de la possession d’autrui”), a detenção parcial (na qual alguém pretende exercer um
direito real menor sobre uma coisa que tem em seu poder, embora reconhecendo não ser o proprietário da
mesma, de modo que “En ce qui concerne les utilités de la chose qu’elle prétend s’approprier en vertu de
son droit réel, elle a la qualité de possesseur partiel; pour la partie des utilités actuelles ou futures
qu’elle ne prétend pas absorber mais que le propriétaire réel ou prétendu se trouve dans l’impossibilité
de retirer ou de sauvegarder parce qu’il n’a pas la chose entre les mains, le possesseur du droit réel
démembré (…) est considéré comme détenteur pour le compte du propriétaire”: o Autor aponta como
exemplo paradigmático desta categoria a situação do usufrutuário) e a detenção interessada (categoria de
contornos mais discutíveis, em que uma pessoa pratica sobre uma coisa actos possessórios por conta de
outrem, sendo que esta última se obrigou perante a primeira a transferir-lhe – sob certas condições – o
produto das utilidades retiradas da coisa: o Autor concretiza que este tipo de detenção opera através de
uma dupla representação e cita o caso do locatário em que este “représente le propriétaire (…) dans
l’exercice de sa possession; en cette qualité, il retire de la chose les avantages qu’elle comporte (…) il le
represente aussi dans l’exécution de ses obligations envers lui envisagé en tant que créancier, situation
qui rappelle le contrat ave soi-même conclu par un représentant”).
1021
Todavia, esta concepção subjectivista da posse, que atribui um papel decisivo ao animus, é
actualmente posta em causa por se entender que o Código Civil (com a eventual excepção do já aludido
257
detentor exerça o poder de facto sobre a coisa sem intenção de agir como beneficiário
do direito (art.º 1253.º, especialmente alínea a)).1022
Desde logo, discute-se se o objecto da posse serão os direitos ou, ao invés, as
coisas objecto desses direitos em si mesmas consideradas, enfrentando o primeiro
entendimento diversos obstáculos.1023
art.º 1253.º, alínea a)) não faz qualquer referência ao elemento subjectivo, antes consagrando situações
possessórias que dispensam qualquer animus (art.ºs 1251.º e 1263.º), podendo este ser reconduzido à
chamada teoria da causa (de acordo com a qual teria o conteúdo de um título de aquisição da posse, ou
seja, seria possuidor aquele que tenha beneficiado de uma das formas de aquisição previstas na lei) –
neste sentido, Menezes Cordeiro, A posse: perspectivas dogmáticas actuais, Almedina, 2000 (3.ª Edição),
pág. 54 e segs., muito embora reconheça que o art.º 1253.º, alínea a), ao aludir à intenção (ou melhor, à
falta dela) como critério de qualificação da detenção, parece adoptar uma concepção subjectivista da
posse, em contraponto com o restante regime, marcadamente objectivista, do instituto.
1022
Paula Costa e Silva, ob. cit., pág. 23 e segs., a respeito deste preceito, mas com aplicação geral a todos
os casos de detenção (e até de posse), entende que, apesar da intenção se encontrar intimamente ligada à
actuação, não deverá ser configurada como um mero facto interno a que ninguém tem acesso, ou seja, “A
intenção que aqui nos aparece é a intenção exteriorizada, através do comportamento de quem actua (…)
não releva enquanto facto interno impossível de alcançar e, consequentemente, de demonstrar. Se o
direito dá múltiplas vezes relevância à intenção, só pode relevar uma intenção exteriorizada”, embora
acrescente que tal exteriorização não se encontra sujeita a nenhuma forma especial, podendo resultar de
um comportamento concludente. Aplicando este raciocínio à distinção entre posse e detenção, a Autora
conclui que possuidor e detentor não se comportam da mesma forma relativamente à coisa, pois, em
regra, o possuidor actuará como proprietário e o detentor como um não proprietário “E é exactamente a
esta diversidade de actuações, decorrente do modo como cada um se representa a situação em que se
encontra, que julgamos fazer o legislador apelo ao dizer-nos que o detentor é aquele que, apesar de
exercer poderes de facto, não quer beneficiar-se do direito que poderia inferir-se da sua conduta.
Diremos que, se do comportamento do agente, resultar que ele se comporta como um proprietário, tal
situação se qualificará, imediatamente, como uma posse. Ao invés, se do seu comportamento resultar que
ele se não comporta como um proprietário, tal situação será qualificada como uma detenção” (todavia,
por vezes o legislador qualifica como detenção determinadas situações, sem curar de saber qual a
intenção do agente).
1023
Os principais são, em primeiro lugar, o facto de os direitos de garantia, como o penhor, não serem
susceptíveis de exercício duradouro e continuado que é pressuposto da posse, na medida em que o
exercício deste tipo de direitos é destinado à alienação do bem empenhado, assim produzindo a sua
extinção (ao que se poderá contrapor que o poder de fazer vender o bem empenhado assiste a qualquer
credor e não apenas ao credor pignoratício, para além de o direito de penhor conter uma fase estática, que
precede a executiva, na qual se verificam um conjunto de limitações ao direito do proprietário do bem
empenhado e de terceiros), que os direitos de garantia não implicam a faculdade de uso do respectivo
objecto (podendo, porém, objectar-se que o uso da coisa é apenas uma das várias possíveis forma de
explicitação do poder de facto sobre esse mesmo bem, para além de a posse de um direito de garantia não
pode assumir os mesmos contornos da posse de um direito de gozo), que o exercício de um direito de
garantia não tem manifestações exteriores (o que, além de ser contestável, esquece a existência de outros
direitos cujo exercício é ainda menos aparente e relativamente aos quais a lei reconhece a posse: é o que
sucede com as servidões negativas), que a relação de acessoriedade face ao crédito garantido
transformaria o penhor num direito de carácter pessoal ou, quando muito, num direito creditório
pignoratício (embora esta constatação seja refutável, uma vez que a acessoriedade implica uma relação de
dependência funcional, mas não influencia a natureza jurídica do penhor, nem constitui obstáculo à
existência de uma disciplina autónoma, mesmo correndo o risco de manutenção da posse do penhor
independentemente da existência de um crédito, situação análoga à que se verifica nas servidões prediais)
e que alguns dos principais efeitos da posse não se poderão produzir relativamente aos direitos reais de
garantia, designadamente por não fazer sentido a manutenção e/ou reintegração na posse (embora seja
verdade que alguns desses efeitos não se produzem relativamente ao penhor – como sejam a aquisição por
usucapião -, tal não significa a desnecessidade da manutenção e/ou reintegração na posse,
designadamente durante a fase estática da garantia). Acerca deste assunto e para mais desenvolvimentos,
Montel, Garanzia (diritti reali di), in Novissimo Digesto Italiano, Vol. VII, 3.ª Edição, 1957, pág. 747 e
segs., rejeitando ainda uma diversidade de soluções, com base na presença ou ausência de detenção
material do objecto da garantia, para o penhor e para a hipoteca, admitindo apenas a posse do direito de
penhor. Por seu turno Cano Martínez de Velasco, ob. cit., pág. 26 e segs., entende que “la posesión de
258
Não obstante, parece ser esta posição mais adequada face aos dados do
ordenamento vigente,1024 (não sem ignorar, ainda hoje, a subsistência de vozes
dissonantes)1025 pelo que, sempre que sobre o mesmo bem concorrerem mais do que um
direito real, assim também coexistirão um igual número de posses.
derechos es una posesión del derecho y no de la cosa dentro de los limites de cada tipo de derecho. Pero
no cabe hablar de la posesión de un derecho por su titular, ya que éste puede defenderlo con las acciones
propias de él” e, por outro lado, “La posesión de un derecho no se identifica con su aparencia. La
posesión es en fenómeno interno, que transcurre exclusivamente entre el poseedor y el objeto poseído
(derecho). La aparencia es un acontecer externo, que sucede entre el poseedor del derecho y los terceros,
que lo creen verdadero titular. Por ello, la protección jurídica a la aprencia es un instituo colateral o
tangencial, per no identico, al de posesión de derechos” (no que especificamente respeita ao penhor,
esclarece que “el derecho real de prenda es poseíble, pues su ejercicio es duradero. No se limita a la
prenda a su realización, en su caso, sino que antes de ella el acreedor pignoraticio retiene la cosa,
defiende su posesión frente a terceros y percibe sus frutos”). Já Serrano Alonso, ob. cit., págs. 157 e 158,
esclarece que decorre do art.º 437.º do CCE, que também as coisas imateriais e certos direitos podem ser
objecto de posse, uma vez que “en ambos casos se manifesta la tendencia a la espiritualización del
concepto de tenencia o corpus (…) ha suavizado el sentido literal del término tenencia para darlo como
existente en ciertos supuestos en los que resulta difícil o imposible su existencia” (enumerando como
direitos susceptíveis de posse os direitos reais que impliquem uma imediato gozo e apreensão do bem,
como sejam, entre outros, a propriedade e o penhor).
1024
Neste sentido parece apontar o art.º 1251.º, ao definir a posse como o poder que se manifesta quando
alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real
(em termos concordantes, no direito italiano, os art.ºs 1153.º - que prevê a posse do direito de penhor - e
114.º - que fala de “possesso della proprietà o di altro diritto reale” - do CCI, preceitos tanto mais
relevantes quanto, como salienta Montel, Garanzia cit., pág. 749, o legislador, quando se quis referir
unicamente aos direitos reais de gozo fê-lo expressamente). Ao invés, na vigência do Código de Seabra,
parecia decorrer da própria lei que o objecto da posse seriam coisas (uma vez que o art.º 674.º definia a
posse como a retenção ou fruição de qualquer coisa ou direito e, por outro lado, do art.º 479.º decorreria
que a expressão “direito” abrangeria apenas aquele que directamente exercido sobre uma coisa – até
porque mal se conceberia a retenção ou fruição de bens não materiais), muito embora já então vozes
houvesse que sustentavam serem direitos os objectos da posse (cfr. Paulo Cunha, ob. cit., pág. 191, “O
que se possui é um direito, já que a posse não é mais do que a exteriorização dos poderes que se
constituem sôbre a cousa, quer se trate da propriedade, quer duma servidão quer dum usufruto, etc.
Simplesmente, quando os poderes que se exteriorizam correspondem a um direito menor do que o de
propriedade, seria na verdade, abusivo falar-se em posse de cousas, porque então, só se estão a
exteriorizar alguns dos poderes resultantes da propriedade: por isso nestes casos se empregam antes as
expressões: posse de servidão, posse de usufruto, etc. Porém, no caso em que os poderes que se
exteriorizam correspondem à totalidade dos poderes do proprietário sôbre a cousa, a verdade é que o
que materialmente se está a possuir-se é a cousa por isso, em vez de falar em posse da propriedade, ou
posse do direito de propriedade, se fala somente em posse da cousa.”). Montel, Garanzia cit., pág. 747 e
segs., salientando a distinção entre posse da coisa para efeitos de constituição do penhor e posse do
próprio direito de penhor, nos seguintes termos “Altro è infatti il possesso della cosa che è un pressuposto
per la nascita del pegno, ed altro il possesso del diritto di pegno. Il primo è un possesso nomine alieno
del diritto di proprietà, e quindi, da un lato, possesso di un diritto diverso da quello di pegno, dall’altro
possesso in nome altrui, cioè detenzione, il secondo è lo stato di fatto che corrisponde al diritto di pegno,
l’esercizio di fatto di tale diritto. E se il possessore in nome proprio di un ius in re aliena è
necessariamente possessore in nome altrui del diritto di proprietà, non può invece formularsi la
proposizione reciproca (basta pensare al conduttore, al depositario e simili, detentori, ma non possessori
in nome proprio di alcun diritto) e tanto meno poi v’è correlazione tra il requisito della detenzione per la
nascita di un diritto e la suscettibilità di possesso di tale diritto”. Nesta conformidade e segundo este
último Autor, “cardine del concetto di possesso è il riferimento ad un oggetto concreto; quindi possesso è
la signoria di fatto su una cosa, signoria che (…) ben configurabile ogniqualvolta vi sia un diritto che
implichi un poter imediato sulla cosa. Se cosi è, concludevamo, è evidente che le ragioni che ostano alla
ammissibilità del possesso di un diritto di credito non valgono nei confronti del pegno e dell’ipoteca, i
quali, essendo diritti reali, implicano un potere immediato sulla cosa gravata”.
1025
A mais avalizadas das quais, porventura, será a de Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 64, para
quem “a posse, como situação de facto, só pode ter por objecto uma coisa. Não pode haver um exercício
de poderes de facto sobre um direito”, de modo que a posse não está condicionada pela existência de um
259
Deste modo, em caso de dação em penhor de um bem, deparamo-nos com duas
posses concorrentes: a posse de proprietário, cujo titular é o constituinte da garantia, e a
posse relativa ao direito de penhor, pertencente ao credor pignoratício.1026
Em termos mais precisos, o proprietário é possuidor em nome próprio do direito
de propriedade, enquanto o credor pignoratício é, simultaneamente, possuidor em nome
próprio do direito de penhor e possuidor em nome alheio ou detentor no que concerne
ao direito de propriedade do bem empenhado.1027 1028
Por último, cabe mencionar que a posse se pode adquirir de diversos modos,
começando pela tradição real do bem em causa (ou seja, o novo possuidor passa a
exercer poderes directamente sobre a coisa, do mesmo passo que o antigo possuidor fica
inibido desses poderes), passando por aqueles que prescindem da entrega material do
bem (como sejam a tradição simbólica, em que a entrega material do bem é substituída
pela entrega de um objecto que represente o bem em questão; a tradição ficta - que, por
direito definitivo concreto (o que se comprovaria pela circunstância de, sendo nulo o título de aquisição
de um direito – v.g. um usufruto -, o usufrutuário continuar a ser possuidor, não do direito de usufruto,
mas sim do bem em causa).
1026
Em face do direito francês, Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 152, esclarece que “À l’égard du droit de
propriété le gagiste n’est qu’un détenteur précaire; aussi ne peut-il pas usucaper la propriété de la chose
engagée. Mais le droit réel de gage est susceptible de possession; est possesseur du droit de gage le
créancier qui se comporte comme le titulaire d’un droit de gage et qui a l’intention de se comporter
comme tel” ; no direito brasileiro, Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 343, assevera que “não anula
a posse direta do credor pignoraticio a indireta do proprietário da coisa empenhada”; no direito italiano,
Pace, ob. cit., págs. 34 e 35, nota 68, “Il possesso del pegno funzione come un presupposto per la
costituzione e per l’esistenza del diritto; è una detenzione a titolo di pegno e non ha il contenuto del
possesso del propietario: quest’ultimo col possedere esercita il propio diritto di proprietà, e possedendo
gode de la cosa, mentre, invece, il creditore pignoratizio detiene per conservare. Ma detiene nel propio
interesse. Egli è possessore in nome propio rispetto al diritto che esercita sulla cosa per propio conto,
possessore a nome altrui riguaro al dominio” (esclarecendo ainda que “Se, malgrado il possesso della
cosa da parte del creditore pignoratizio, il debitore pignorante può usucapire, cio non significa che il
primo possegga come rappresentante del debitore”).
1027
Relativamente à distinção entre posse em nome próprio e posse em nome alheio, seguimos as
definições dadas por Paulo Cunha, ob. cit., pág. 182: “Umas vezes, aquêle que exterioriza poderes sôbre
uma cousa, fá-lo com a intenção de exercer êsses poderes no seu interesse, fá-lo como se fôsse, na
verdade, titular dum direito sôbre essa cousa. Em resumo, faz o exercício desses poderes em seu próprio
nome (nomine proprio) para si, e não em nome do titular do direito que recai sôbre a cousa. É a
chamada posse em nome próprio. Outras vezes, aquêle que exerce poderes sôbre uma cousa, exerce-as
materialmente, mas não no seu interêsse, não como se fôra realmente o titular do direito sôbre essa
cousa, mas, sim, em nome do verdadeiro titular dêsse direito. É ao que se chama posse em nome alheio
(nomine alieno) a que, em doutrina, se dá também o nome de detenção.”. Em termos aproximados para o
direito espanhol, Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 332, distingue a posse na qualidade de titular da
coisa ou direito possuído (apontando como exemplo a posse do usufrutuário face ao direito de usufruto) e
a posse enquanto mero detentor de uma coisa ou de um direito pertencente a outrem (mencionando a
posse do usufrutuário relativamente ao direito de propriedade).
1028
Pelo contrário, no penhor sem entrega do bem ao credor pignoratício, este continuará a ser
considerado possuidor quanto ao direito de penhor, mas o proprietário passará a ser mero detentor
relativamente àquele mesmo direito, como escreve Galvão Teles, O penhor sem entrega cit., pág. 211: “o
credor adquire posse sobre o objecto, apesar de este não lhe ser entregue (…) A posse nem sempre é
acompanhada da detenção, ou do poder material. Quando um é o possuidor e outro é o detentor, o
primeiro tem apenas um poder ideal, que exerce por intermédio do segundo, mas que goza de protecção
possessória, como se não houvera semelhante cisão. O detentor possui em nome doutrem, a quem cabe a
posse propriamente dita ou em nome próprio. No penhor sem entrega é esta a situação que se dá. O
credor obtém a posse pignoratícia, a respeito da qual o proprietário fica sendo mero detentor. O poder
jurídico possessório está no primeiro, mas o correspondente poder material está no segundo”.
260
seu turno, compreende a inscrição num registo público e o constituto possessório - 1029 e
a traditio brevi manu.1030
Voltando à questão formulada no início deste ponto e em termos mais concretos,
será que o credor pignoratício se poderá considerar, relativamente ao bem empenhado e
no seguimento da correspondente entrega, como um verdadeiro possuidor ou, pelo
contrário, deverá ser qualificado como um mero detentor?1031
Esclareça-se, desde já, que a resposta não é despicienda, porquanto da mesma
decorre a possibilidade de o credor pignoratício exercer, em nome próprio, a tutela
possessória para defesa do seu direito (cfr. art.º 670.º, alínea a)) e de o princípio da
posse vale título, nos ordenamentos onde vigore, apenas aproveitar aos verdadeiros
possuidores.1032
Parecem apontar para a primeira alternativa os art.ºs 670.º, alínea a) e 671.º,
alíneas a) e b) na medida em que, respectivamente, conferem ao credor pignoratício o
direito de usar das acções de defesa da posse (mesmo contra o proprietário do bem
empenhado), de guardar e administrar a coisa dada em penhor e, em casos excepcionais,
de usar essa mesma coisa.
Com base nestes amplos poderes de que desfruta, destarte exteriorizando um
amplíssimo feixe de poderes sobre o objecto do seu direito, parece ser o credor o único
possuidor do bem empenhado, excluindo a posse do constituinte da garantia.1033
1029
Adopta esta classificação Paulo Cunha, ob. cit., págs. 186 e 187. Figura sui generis é a do constituto
possessório, na qual se converte uma posse em nome próprio numa posse em nome alheio, através de dois
actos jurídicos contemporâneos, quais sejam a transferência para outrem da posse do até então titular
desse poder e, por outro lado, a sua passagem a possuidor em nome alheio. Como refere Giuseppe
Trapani, ob. cit., págs. 65 e 66, no constituto possessório acontece uma “scisione tra detenzione (potere
materiale) e possesso (potere ideale), scisione che non impedisce tuttavia al possessore di esercitare il
suo diritto attraverso e mediante la persona del detentore”, gozando o credor da posse pignoratícia,
enquanto o proprietário empenhante é um mero detentor, tudo isto por força de “una trasformazione
dell’animus del proprietario, nel quale l’animus sibi habendi cede il posto all’animus alieno nomine
detinendi”, transformação esta que se produz em resultado de dois actos jurídicos distintos: o contrato de
penhor e um contrato de depósito.
1030
Acerca da idoneidade destas formas de tradição de bens para o nascimento do penhor, vide supra n.º
5.1 do Capítulo I.
1031
Dando conta da existência de uma controvérsia análoga em Itália, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 120,
(considerando prevalente a qualificação do credor pignoratício como possuidor), Protettí, ob. cit., pág.
217 (inclinando-se para a qualificação como possuidor, mas dando conta de algumas decisões judiciais
afirmando ser o credor pignoratício um simples detentor) e especialmente Giuseppe Portale, ob. cit., pág.
881, nota 15, realçando ser maioritária na doutrina a tese da posse (com argumentos como a circunstância
de a lei falar do credor pignoratício como possuidor – argumento este que o Autor entende não ser
decisivo, na medida em que o legislador não usa os termos “posse” e “detenção” com sentidos unívocos -
e ter considerado o penhor como um direito real em sentido técnico) não sem citar posições contrárias
(particularmente uma que defende ser a detenção pignoratícia uma detenção autónoma, sem qualquer
referência ao título e equiparável à do depositário, posição contestada pelo Autor ao escrever que “Vi
sono, infatti, dei diritti il cui esercizio è ancora meno appariscente e di cui tuttavia la legge riconosce il
possesso: si pensi alle servitù negative”), destacando que na jurisprudência não se vislumbra uma
tendência dominante.
1032
Realça este último aspecto Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 295, esclarecendo que tal princípio apenas
pode ser invocado pelos autênticos possuidores, seja a título de propriedade ou de outro direito real e
relatando que a generalidade da doutrina e da jurisprudência reconhece ao credor pignoratício o direito de
se fazer valer daquele princípio, embora o fundamento que conduz a este resultado nem sempre seja
coincidente.
1033
Parecem adoptar este entendimento o Acórdão da Relação do Porto de 18/11/1996, in www.dgsi.pt,
(dispondo que “A partir da sua constituição o credor obtém a posse pignoratícia, ficando o proprietário
a ser mero detentor dos bens.”) e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 74 (falando de uma “uma posse em
nome próprio, nos termos do seu direito de penhor”, embora salientando tratar-se de uma posse
interdictal – por contraposição à posse civil, que confere ao seu titular a plenitude dos efeitos possessórios
261
A ser assim, entrega e desapossamento (enquanto modos de surgimento do
vínculo pignoratício) teriam um único e o mesmo significado, isto é, a constituição do
penhor ocorreria com a entrega do bem ao credor, entrega esta através da qual,
simultaneamente, se operava o desapossamento (no sentido de retirada do bem da posse
do constituinte) do devedor.
Porém, a este entendimento contrapõe-se um outro, nos termos do qual e pese
embora o nascimento do penhor e a entrega material do bem empenhado ao credor, o
proprietário do bem oferecido em garantia não perde a sua posse.
De acordo com esta orientação, o constituinte da garantia “conserva a sua posse
de proprietário, mas de proprietário de cousa empenhada, isto é, uma posse muito
restrita, uma posse que fica para o proprietário quasi sem importância, mas que em
todo o caso existe (…)”, ou seja, “no penhor pela entrega da cousa ao credor há duas
posses em nome próprio, mas como a posse em nome próprio do credor pignoratício é
mais forte e na prática ela oculta a outra, acontece falar-se apenas na posse do credor
pignoratício.”.1034
Nesta conformidade, o credor pignoratício é, simultaneamente, possuidor em
nome próprio – no que respeita ao seu direito real de garantia – e possuidor em nome
alheio ou mero detentor – relativamente ao direito de propriedade, cuja posse
correspondente permanece no respectivo titular.1035
– por facultar apenas o uso das acções possessórias, com exclusão de outros efeitos, como por exemplo a
aquisição por usucapião).
1034
Cfr. Paulo Cunha, ob. cit., págs. 190 e 191. Como afirma Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 332
e 333, cabe dissociar a posse imediata (que é exercida directamente sobre o bem ou direito, sem
intermediação de qualquer outro sujeito) da posse mediata (exercida através de outrem), de modo que se
verifica “un desdoblamiento de posse, en el que uno conserva una posse como derecho, passando a otro
la posse como facto”.
1035
Cfr. Paulo Cunha, ob. cit., págs. 184 e 185, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 31 (retirando da natureza
precária da posse do credor pignoratício relativamente ao direito de propriedade a não atribuição a este de
um direito exclusivo de execução do objecto da sua garantia) e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág.
154 (realçando que “A sua posse em nome próprio resulta do interesse próprio que tem nessa posse,
conexa com o exercício do seu direito de penhor. Portanto, cabem-lhe as acções possessórias para defesa
da sua posse. É também possuidor em nome alheio, no que respeita às prerrogativas do empenhador. Por
conseguinte, não pode adquirir por usucapião a propriedade da coisa empenhada, a não ser que se dê
uma inversão do título da posse”) e Manuel Rodrigues, ob. cit., pág. 102 e 103 (afirmando que “Como o
que se possui são os direitos e como sobre uma coisa se pode exercer simultaneamente mais do que um
direito, acontece frequentemente que um indivíduo retém uma coisa ou exerce sobre ela poderes
materiais no próprio interesse em virtude de um direito diferente do direito de propriedade (…). E então
a sua posse é em nome próprio em relação ao direito que possui, e em nome alheio em relação ao direito
que simultaneamente se exerce sobre o objecto que detém”, apontando como exemplo o penhor,
relativamente ao qual a justificação para a atribuição das acções possessórias ao credor pignoratício
advém, precisamente, da sua posse pignoratícia, mesmo no caso do penhor sem desapossamento do
empenhante, uma vez que o constituto possessório que esteve na origem da criação da garantia torna o
empenhante detentor e mantém o credor pignoratício como possuidor no que respeita ao direito de
penhor). Também algumas decisões judiciais se orientam neste sentido, conforme se alcança do Acórdão
da Relação de Lisboa e de 10/10/1991, in www.dgsi.pt, (onde de pode ler que “A coisa empenhada pode
ficar em poder do dono. Em tal caso, este é considerado, quanto ao direito pignoratício, como um
possuidor em nome alheio. (...) O credor obtem a posse pignoratícia tornando-se o proprietário mero
detentor do objecto empenhado. Apesar de dono, possui-o em nome ou representação do credor, em tudo
quanto respeita ao direito real pignoratício”), do Acórdão do STJ de 21/11/1979, in www.dgsi.pt (no
qual se afirma que “”O credor pignoratício tem posse em nome próprio do direito resultante do penhor,
mas não a tem do direito de propriedade da coisa empenhada, sendo, portanto, possuidor em nome
alheio de quem constituiu a penhora”) e do Acórdão da Relação do Porto de 26/9/1996, in CJ 1996, IV,
pág. 199 segs. (“Tem-se observado que o credor pignoratício que de algum modo, mesmo só
simbolicamente, tenha recebido a posse da coisa empenhada deve ser considerado simultaneamente
possuidor em nome próprio e possuidor em nome alheio; possuidor em nome próprio do direito de
262
Se assim é, a entrega não implica o desapossamento total do proprietário do bem
empenhado, não se podendo, por isso, concluir que ambos os termos sejam sinónimos,
nem tão pouco que o segundo se produza única e exclusivamente como consequência do
primeiro.
penhor, direito real de garantia (posse pignoratícia, com o correspondente poder jurídico possessório) e
possuidor em nome alheio da coisa empenhada, cuja propriedade continua a pertencer ao devedor”).
Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 200, reconhece, sem mais, que o credor pignoratício é possuidor “nos
termos do seu direito de penhor”. No direito italiano, Montel, Pegno cit., pág. 777 (escrevendo que “Il
datore di pegno conserva il possesso del bene; soltanto che, mentre, prima della costituzione del vincolo,
egli lo possedeva direttamente, ora il suo possesso si esplica tramite un soggetto (creditore o terzo) cui il
bene stesso è affidato; e questo soggetto, indubbiamente, rispetto al diritto di proprietà non possiede, ma
soltanto detiene; laddove, quanto al diritto di pegno, il titolare di eso lo esplica direttamente ove egli
stesso sia consegnatario del bene, tramite il terzo ove a questo terzo sia stato affidato”), Rubino, Il pegno
cit., págs. 240 e 278 (acrescentando que o credor pignoratício não pode usucapir a coisa, pelo menos
enquanto não comece a possuir animo domini, avançando que para tal não bastará o pagamento do crédito
e a permanência da coisa em poder do credor), Faggella, ob. cit., pág. 124, para quem a posse contempla
dois elementos “ L’elemento obbiettivo è rappresentato dalla detenzione della cosa, dalla possessio
corporis, l’elemento subbietivo è rappresentato dallo scopo giuridico per cui si possiede. (…) il creditore
pignoratizio la possiede a fine esclusivo di garentia (…) Il creditore pignoratizio ha la tutela possessoria
della cosa ricevuta in pegno (…) Il possesso del creditore pignoratizio adunque è un possesso limitato
dal fine di garentia: v’è tutto l’elemento obbiettivo, la possessio copore, e v’ha l’animus rem sibi habendi
pignoris causa; e in questo fine di garentia sono contenuti i suoi diritti e i suoi obblighi, e non oltre di
esso“, Giuseppe Mirabelli, ob. cit., pág. 384, nota 2b) (escrevendo que “Il creditore diventa possessore
della cosa in mome altrui; possessore precario; ma sulla cosa acquista un diritto, ed è perciò sotto un
altro aspetto, possessore pro suo, limitatamente al diritto acquistato” ou, noutros termos, “il creditore ha
il possesso del diritto di pegno come diritto suo, che possiede legittimamente con l’animo di tenerlo per
suo, ed ha il possesso della cosa, non come sua, ma soltanto rappresentando il costituente”, embora
admitindo que, de facto, tal distinção acaba por se desvanecer, dado que “la consegna della cosa è
termine essenziale del pegno, e possedendo la cosa a fin di possedere il diritto di pegno, la difesa
possessoria di questo si estende necessariamente a quella. Il risultato della costituzione si rileva rispetto
al costituente: il quale, possedendo la cosa per via di rappresentante, conserva il diritto di esercitare le
azioni possessorie che gli possono spettare”), Chironi, ob. cit., pág. 585 (advertindo que “il creditore ha
il possesso del diritto di pegno come diritto suo, che possiede legittimamente con l’animo di tenerlo per
suo, ed ha il possesso della cosa, non come sua, ma soltanto rappresentando il costituente”, embora
aceite que, na prática, a distinção seja menos notória, uma vez que, sendo a entrega forçosa para o
nascimento do penhor – e possuindo o credor o bem para possuir o seu direito de penhor – a defesa
possessória deste se estende necessariamente à própria coisa) e Enrico Poggi, ob. cit., pág. 450 e segs.
(sublinhando que “il creditore ha il possesso del diritto di pegno, come diritto suo, che possiede
legitimamente con l’animo di tenerlo per suo, ed ha il possesso della cosa, non come sua, ma soltanto
rappresentando il costituinte”, assim se justificando que “La stessa detenzione pertanto può servire di
base materiale a più di un possesso di diritto di pegno sulla cosa. Tali considerazioni ci sembra
giustifichino a sufficienza la possibilità di più pegni in solidum sulla stessa cosa, che sia condetenuta da
tutti i titolari o detenuta da un terzo per essi”). No direito francês, podemos citar Guillouard, ob. cit., pág.
157 (afirmando que “le créancier gagiste au contraire a un droit réel sur la chose donnée en gage, il la
possède pour son propre compte et a fin d’assurer le recouvrement de sa créance”), Weil, ob. cit., pág.
89 (“Sa qualité de titulaire d’un droit réel fait du créancier gagiste un véritable possesseur. Certes il n’a
pas l’animus domini, il ne se considère pas comme propriétaire , il ne peut pas prescrire la proprieté de
la chose engagée. Mais il possede le droit de gage”) e, embora em termos ligeiramente diversos, Lisanti-
Kalczynsky, ob. cit., págs. 20 e 21 (para quem “A l’encontre des tiers, le droit réel de gage confère la
qualité de possesseur au créancier qui peut ansi se prévaloir de la protection possessoire. En revanche,
par rapport au constituant, il n’est qu’un simple détenteur car il n’a pas l’animus domini”, servindo esta
tese para justificar, na óptica da Autora, a protecção possessória conferida ao credor pignoratício) e Marc
Billiau, ob. cit., pág. 21, escrevendo que “Le gagiste ne possède pas à titre de propriétaire; il n’a pas la
volonté de se considérer comme le propriétaire de la chose. Autrement dit, sa détention paraît entachée
d’une certaine précarité (…). Cependant, le gagiste, s’il ne possède pas à titre de propriétaire, possède
neanmoins son droit, c’est à dire le droit de gage, de la même manière qu’un usufruitier. Cette possession
ne lui est d’ailleurs pas transmise; elle est constitué par l’effett même du contrat de gage et ne confère
aucun droit d’usage”.
263
No entanto, tendo em conta as anteriormente analisadas finalidades atribuídas à
entrega, impõe-se a privação da prática de actos de disposição do bem onerado por parte
do constituinte da garantia,1036 mas tal circunstância não deve fazer esquecer que este
conservará, em todo o caso, a posse restrita relativa ao direito de propriedade.
A esta concepção não obsta sequer o facto de o bem ser, aquando da constituição
do penhor, entregue a um terceiro, pois este último será um detentor por conta do
proprietário, relativamente ao direito de propriedade, e por conta do credor pignoratício,
no que respeita ao direito de penhor (continuando aquele credor a possuir mediatamente
e poder usar os meios de tutela possessória).1037
Pelo contrário, uma terceira opinião considera que o credor pignoratício não
desfruta de qualquer posse em nome próprio, sendo apenas um mero detentor.1038
1036
Neste sentido, Paulo Cunha, ob. cit., pág. 191.
1037
Assim, Rubino, Il pegno cit., pág. 278. Também Paulo Cunha, ob. cit., págs. 190 e 191, realça como o
terceiro, passa a deter a coisa em nome alheio, por conta do credor pignoratício. Giuseppe Portale, ob.
cit., pág. 881, destaca como, apesar de não existir qualquer relação material do credor com o objecto da
sua garantia, continua a existir uma situação possessória, pois “con l’affidare la cosa al terzo si pone in
essere una di quelle situazioni indirette o mediate, nelle quali in luogo di un potere di fatto proprio del
titolare si ha una relazione tra questi e chi detiene: il terzo apprende la cosa per realizzare lo
spossessamento del datore del pegno e per detenerla per conto del creditore”, não sem que deixe de a
continuar a deter também por conta do empenhante, pelo que “vengono a coesistire due coppie
possessorie connesse sebbene distinte: costituente-terzo, terzo-creditore. Il detentore, cioè, esplica una
funzione strumentale sia nei confronti del concedente, sia nei confronti del titolare del pegno, rendendo
possibile il convergere su uno stesso bene di due situazioni possessorie con diverso titolo”.
1038
Assim, Guilherme Moreira, ob. cit., págs. 324 e 325 afirmando que “(…) o contrato de penhor, que
tem como elemento essencial e específico o direito de deter a cousa mobiliária, que o credor só pelo facto
da entrega fica tendo. A entrega da cousa ao credor e o direito de a deter têm por fim garantir o credor,
podendo assim alienar a cousa para se pagar pelo seu valor, É êste o fim do penhor, sendo a entrega e a
detenção da cousa meios para o conseguir. Como o direito de detenção é um direito real, podendo
portanto exercer-se contra todos (art. 860º n.º 2.º), e a garantia é o fim dêsse direito, pode considerar-se
o direito de preferência do credor pignoratício como uma consequência do direito de detenção (…). O
que se torna em todo o caso indispensável para que haja o contrato de penhor é que o devedor ou o
terceiro que o presta sejam desapossados da cousa, e que sôbre esta fique tendo o credor o direito de
detenção.” e, mais recentemente e com reservas, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 173,
pois, depois de afirmarem que “O credor pignoratício possui a coisa empenhada em nome de outrem
(autor do penhor), sendo, portanto, simples detentor”, logo em seguida ressalva que “Quando muito,
poder-se-ia admitir que, à imagem do que ocorre nos direitos reais menores, como o usufruto, o penhor
daria origem à constituição de uma posse específica, a posse pignoratícia e, então, dir-se-ia que a posse
relativa ao direito real de propriedade mantém-se no autor do penhor, sendo o credor pignoratício
detentor da coisa e titular de uma posse pignoratícia, a qual não lhe conferia a possibilidade de adquirir
direitos reais sobre a coisa, por usucapião.” e, ao menos aparentemente, o Acórdão do Tribunal Central
Administrativo de 26/1/1999, in BMJ n.º 483 (1999), pág. 297, no qual se afirma que “O credor
pignoratício não tem posse susceptível de fundamentar embargos de terceiro. A tutela possesória
conferia ao credor pignoratício pela alínea a) do artigo 670.º do Código Civil não se fundamenta em
qualquer posse daquele em nome próprio da coisa empenhada, mas na relação de mera detenção,
subjacente ao penhor” e Santos Justo, ob. cit., pág. 471. Em termos de direito comparado, podemos citar
Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 95 e 96, o qual, apoiando-se no art.º 2079.º do CCF, afirma que o
objecto empenhado permanece nas mãos do credor a título de depósito e apesar de negar que o
paralelismo seja exacto (uma vez que o depositário, ao contrário do credor pignoratício, não tem um
direito real, nem a posse da coisa e os meios para a sua defesa), serve para demonstrar que, relativamente
ao devedor, o credor pignoratício é um mero detentor (não podendo, por isso, usar o bem empenhado,
nem adquirir a respectiva propriedade por usucapião), funcionando essa detenção como condição do
exercício do seu direito de preferência e Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 107 e 108 (em virtude da
ausência de animus domini, possuindo por conta de outrem e não podendo modificar o título dessa
detenção, salvo inversão desse título, inversão essa cuja prova lhe incumbe fazer), bem como Troplong,
ob. cit., pág. 115, falando de posse precária que apenas confere o direito de conservar e reter a coisa
(contudo, a posição deste Autor não é totalmente clara, porquanto, noutro passo do mesmo texto, afirma
que a constituição do penhor implica a aquisição da posse por parte do titular da garantia).
264
Como corolário deste raciocínio, as garantias sobre bens móveis nas quais o
respectivos proprietários permaneçam com o bem seu poder, mesmo qualificadas por lei
como penhores, serão verdadeiras hipotecas mobiliárias, tendo em conta a ausência do
elemento essencial da detenção.1039
Esta posição é, não raras vezes, ancorada na equiparação do credor pignoratício
a quem o bem seja entregue a um depositário, sobretudo tendo em conta que algumas
legislações afirmam que o bem empenhado se encontra, durante a vigência da garantia,
em poder do credor a título de depósito (cfr. art.º 2079.º do CCF, anterior à reforma de
2006).
Todavia e como bem salientam alguns Autores, a analogia entre a situação do
credor pignoratício e do depositário não é inteiramente correcta, tendo em conta o
carácter real do direito do primeiro e não do segundo, o interesse egoístico do credor
pignoratício na manutenção do bem em seu poder (enquanto o depositário actua no
interesse do depositante), culminando na natureza possessória do direito do credor
pignoratício em contraponto com o carácter de mera detenção que assiste ao
depositário.1040
Tomando posição, aderimos à posição intermédia (que defende a coexistência da
posse pignoratícia com a posse de proprietário), por ser a que melhor se harmoniza com
os dados legislativos, não conflituando igualmente com as concepções tradicionais da
posse e da detenção acima expostas, podendo, por isso, o credor pignoratício exercer,
em nome próprio, a tutela possessória conferida por lei (nomeadamente a concedida
pelo art.º 670.º, alínea a)).
O direito francês é, a este propósito, elucidativo, porquanto, em resposta a uma
posição inicial1041 e apesar da equivocidade dos dados legislativos (depois de o citado
art.º 2079.º do CCF equiparar o credor pignoratício a um depositário, alude
sistematicamente à posse do credor pignoratício), propende igualmente para qualificar a
posição do credor pignoratício como, simultaneamente, possuidor e de detentor.1042
1039
Guilherme Moreira, ob. cit., págs. 325 e 326: “Neste caso, em que o credor não fica tendo o direito de
detenção sôbre a cousa dada em garantia, não pode dizer-se que haja um penhor; há, pelo direito de
preferência que o credor fica tendo, uma hipoteca mobiliária”. Acerca da distinção entre penhor e
hipoteca e do papel a atribuir ao desapossamento do constituinte para este efeito, vide infra n.º 1.2 do
Capítulo III.
1040
Assim, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 95 e 96, Guillouard, ob. cit., pág. 157 e, especialmente,
Hardel, ob. cit., págs. 47 e 48 (este último esclarece que as diferenças entre os contratos de depósito e de
penhor são de tal ordem – desde logo o facto de o primeiro ser celebrado no interesse exclusivo do
depositante e o segundo no interesse de ambas as partes, para além de o primeiro ser normalmente
gratuito e o segundo oneroso - que impossibilitam a equiparação da posição do credor pignoratício à do
depositário, criticando essa assimilação legal e propondo que o legislador deveria ter exigido uma
responsabilidade acrescida ao credor pignoratício, considerando que o objectivo do legislador foi realçar
que o credor pignoratício se encontra impedido de usar o bem empenhado).
1041
De acordo com Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 297 e 298, a posição dominante nos primeiros anos
de vigência do Código de Napoleão qualificava o credor pignoratício como simples detentor (citando
neste sentido a posição de Troplong, para quem o credor seria um simples depositário, detendo o bem
unicamente com o intuito de assegurar o seu direito de preferência, embora lhe reconhecesse o direito de
invocar em seu benefício a regra da posse vale título). O Autor recusa que o credor pignoratício possa ser
equiparado a um detentor, uma vez que “il entend exercer pour son propre compte et dans son intérêt
personnel, la main-mise qui lui est conféré par la chose donnée en gage”, pois, embora se não possa
apropriar das utilidades proporcionadas pelo objecto da garantia (até porque esta recai mais sobre o valor
económico da res, do que sobre esta na sua individualidade), tem o dever e a necessidade de conservar a
coisa em vista de uma futura venda, pelo que “exerce sur elle un pouvoir indépendent de celui du
constituant, et ne peut être regardé comme le simple représentant de la possession de celui-ci (…) il
prétend tout au moins être le maître de la valeur pécuniaire qu’elle represente”.
1042
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 298 e segs., destaca como, sob a influência da jurisprudência que
concedeu ao credor pignoratício o direito de se fazer valer do princípio da posse vale título, a doutrina
265
5.2 - Penhor de créditos e outros direitos
“reconnaît au gagiste la double qualité de possesseur et de détenteur, en ayant une tendence à rattacher
la possession du gagiste à sa qualité de titulaire d’un droit réel”. Neste contexto, dois entendimentos
existem para sustentar a distinção, um que assenta na circunstância de o credor poder opor o seu direito a
terceiros ou ao constituinte (sendo, no primeiro caso, considerado como possuidor e no segundo como
mero detentor), isto é, “Dans les rapports avec le droit de propriété, le créancier gagiste n’est en somme
qu’un simple détenteur précaire" (ou, numa fórmula mais simples, o credor pignoratício tem a “détention
vis-à-vis du constituant, possession vis-à-vis des tiers”) e outro, pelo contrário, que ancora a distinção no
facto de o credor pignoratício ser possuidor no que respeita ao seu direito real de penhor e detentor no que
concerne ao direito de propriedade que permanece no devedor (ou seja, “la possession ne cesse
d’appartenir au débiteur constituant. Mais si ce créancier n’a et ne peut avoir l’animus domini, il a celui
du titulaire d’un démembrement de la propriété. Il entend posséder pour son propre compre le droit de
gage dont il est investi (…) et on ne peut lui refuser la qualité de possesseur”). O Autor recusa a primeira
concepção (alegando que a posse – enquanto apropriação de facto que gera a aparência de apropriação de
direito - não pode existir apenas relativamente a certas pessoas e, se assim é, “si le gagiste a la possession
partielle de la chose vis-à-vis des tiers, il doit l’avoir également vis-à-vis du constituant”) e adopta a
segunda como ponto de partida para concluir pela existência de uma detenção e de uma posse parciais por
parte do credor pignoratício, argumentando que este tem o poder de facto sobre o bem recebido em
garantia, que exerce em vista de apropriação eventual do respectivo valor pecuniário, isto é, “il y a là une
possession partielle, mais qui se manifeste moins fortement qu’au cas d’appropriation actuelle de la
chose envisagée dans son individualité, en sorte que jusqu’à l’échéance ce qui apparaît surtout c’est la
détention partielle qui l’accompagne” (de modo mais completo, este Autor defende que, até ao
vencimento do crédito garantido, o credor não se pode apropriar das utilidades produzidas pelo bem e,
apenas após essa data, terá essa intenção: todavia, “le constituant qui conserve la possession de la chose
envisagée dans son individualité à laquelle le gagiste ne prétend pas, ne peut plus manifester cette
possession que par l’intermédiaire du gagiste. Celui-ci será donc en ce qui concerne les utilités
matérièlles de la chose, le représentant nécessaire du constituant dans l’exercice de la possession de
celui-ci. Sa possession partielle n’atteignant la chose envisagée dans sa matérialité que dans la mesure
où cette matérialité sert pour ainsi dire de support à la valeur pécuniaire qui en fait l’objet, il sera pour
tout le reste un détenteur partiel pour le compte du constituant”.
1043
Embora Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 18 e 19, entenda que, em face da redacção do art.º 2076.º
do Code Civil, a exigência de desapossamento do constituinte possui um âmbito de aplicação geral,
abarcando mesmo as garantias sobre bens incorpóreos.
1044
Em termos idênticos se expressa o art.º 2806.º do CCI, acrescentando, porém, que esta diversa
modalidade de constituição do penhor não prejudica a obrigatoriedade, como condição do exercício do
direito de preferência, da redacção de um documento escrito com data certa contendo uma suficiente
indicação do crédito e do bem empenhado (cfr. art.º 2787.º, n.º 3). Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 167,
afirmam que estes ónus de terá por verificado sempre que para o empenhamento do direito for necessária
a sua inscrição no registo, tendo em conta que para esta inscrição será normalmente necessária a
apresentação de um documento contendo as indicações exigidas pelo art.º 2787.º, n.º 3. Finalmente o n.º 1
do §1274 do BGB dispõe que à constituição de um penhor sobre direitos se aplicam as regras relativas à
transferência desses mesmos direitos (se para a transferência do direito for necessária a entrega da coisa,
aplicam-se as regras relativas à constituição do penhor de coisas e, por arrastamento, aplicar-se-ão por
analogia as normas relativas à extinção do penhor por força da devolução da coisa, por remissão do
§1278), acrescentando o n.º 2 que os direitos intransmissíveis não poderão ser objecto de penhor (por
outro lado, o §1276 estabelece uma protecção do credor pignoratício frente a possíveis actos dispositivos
266
figura),1045 encontra um desvio no direito brasileiro, no qual se determina que o penhor
de direitos se constitui através de instrumento particular e posterior inscrição no registo
de títulos e documentos (cfr. art.º 1452.º do Código Civil Brasileiro).1046
Curiosa é a evolução do direito francês, no qual, antes da reforma de 2006, o
art.º 2075.º do CCF prescrevia que, para a constituição de penhor bens incorpóreos,
como os créditos, era necessária a redacção de um documento escrito autêntico ou
particular registado, o qual deveria ser notificado ao devedor do crédito empenhado (ou
a aceite por este).1047 No seguimento daquela reforma, o art.º 2355.º, n.º 4, passou a
dispor que o penhor de direitos, com excepção dos créditos (que gozam de um regime
particular) se rege pelas disposições relativas ao penhor de coisas corpóreas, isto é,
surgirá mediante a redacção de um documento escrito contendo a indicação da dívida
garantida, dos bens empenhados, sua natureza e quantidade (art.º 2336.º), associado à
inscrição no registo ou, em alternativa a este, mediante o desapossamento do
constituinte (art.ºs 2337 e 2338.º): naturalmente que, incidindo sobre bens incorpóreos,
o mais corrente será que a garantia se constitua mediante registo e não através de
desapossamento.
Mais precisamente, o novel regime gaulês impõe a redução a escrito, sob pena
de nulidade, do contrato de constituição da garantia (art.º 2356.º, n.º 1),1048 distingue
do empenhante que o prejudiquem, dispondo que um direito empenhado apenas poderá ser anulado – ou
alvo de alteração em prejuízo do credor pignoratício - através de negócio jurídico com o consentimento
do credor pignoratício, consentimento este que é notificado àqueles em favor de quem é prestado e é
irrevogável), para além de a cessão do direito empenhado não prejudicar a subsistência da garantia. Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1571 e segs.,
ressalvam que, quando a transmissão do direito exigir a entrega de uma coisa, a mesma exigência valerá
para a constituição do penhor, esclarecendo ainda que a aquisição a non domino do penhor de direitos
apenas será admissível nos mesmos termos em que o é o direito objecto do penhor: apesar destas
especificidades, o regime geral vertido para o penhor de coisas é aplicável também ao penhor de direitos,
sempre que a lei não disponha em contrário (§1273.II).
1045
Com efeito, o direito espanhol não prevê a possibilidade de dação em penhor de direitos, mas tal
possibilidade é admitida (desde que se trate de direitos que recaiam sobre coisas móveis susceptíveis de
posse e alienáveis), tendo conta alguns preceitos contidos no CCE (designadamente o art.º 1864 – que, ao
referir que podem ser objecto de penhor todas as coisas móveis susceptíveis de posse, não pretenderá
excluir os direitos – o art.º 1872.º - que considera o penhor de valores como uma modalidade do penhor
de direitos – e o art.º 1868.º - que, ao falar de juros produzidos pela coisa empenhada, parece referir-se
precisamente ao penhor de créditos) – neste sentido, vide Barrada Orellana, ob. cit., pág. 119, Medina de
Lemus, ob. cit., págs. 147 e 148 (embora este último, a respeito da garantia que incida sobre créditos,
negue tratar-se de um verdadeiro penhor) e López, Montés e Roca, ob. cit., págs. 446 e 447 (asseverando
igualmente que, quando recaia sobre créditos, não estaremos perante um penhor, porque o crédito é
insusceptível de posse, sim diante de “la cesión de un crédito en garantía de una obligación. Como la
prenda de derechos de crédito no permite la transmisión material del crédito, el desplazamiento
posesorio se sustituye por la notificación al deudor”).
1046
Depois de, no art.º 1451.º, estabelecer que poderão ser objecto de penhor os direitos sobre coisas
móveis susceptíveis de cessão.
1047
Esta norma, apesar de se declarar aplicável a qualquer penhor que tivesse por objecto bens
incorpóreos, no fundo apenas regulava especificamente o modo de constituição do penhor de créditos.
Criticando a ineficácia e onerosidade deste regime - por não assegurar o empossamento do credor
pignoratício, nem a publicidade da garantia – e defendendo ser necessário, por um lado, impedir que o
devedor do crédito empenhado pague ao seu credor e, por outro, que os terceiros sejam informados da
constituição da garantia, através de um sistema de publicidade pessoal, Aynès e Crocq, Les sûretés cit.,
pág. 217.
1048
O documento escrito deve conter a identificação do crédito garantido e do crédito empenhado (n.º 2) e
terá uma data, a qual será extremamente relevante, uma vez que assinala o momento a partir do qual a
garantia produzirá efeitos entre as partes e relativamente a terceiros (excepto o devedor do crédito dado
em garantia), uma vez que nenhuma outra formalidade publicitária é exigida por lei - Legeais, Sûretés
2009 cit., pág. 389 (em termos análogos, Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 559). Contudo, é
discutível se esta enumeração dos elementos que devem constar do documento escrito é taxativa ou
267
entre a produção de efeitos, por um lado, entre as partes e os terceiros em geral (art.º
2361.º)1049 e, por outro, face ao terceiro devedor do crédito empenhado (art.º 2362.º)1050
e, por último, as formas de realização da garantia (art.º 2364.º e 2365.º).1051
Retornando ao nosso direito, da aplicação do princípio da sujeição do penhor de
direitos às formalidades impostas para a transmissão dos mesmos ao penhor de
créditos1052 resultaria a desnecessidade tendencial de qualquer formalidade para o
surgimento do penhor sobre este tipo de bens, por ser esse o regime vigente para a
cessão desses mesmos créditos, a qual produz efeitos entre as partes por mero efeito do
meramente exemplificativa, pronunciando-se neste segundo sentido Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés
2010 cit., pág. 526.
1049
Que coincide com a data do acto escrito de constituição da garantia, excepto no caso de penhor sobre
um crédito futuro, caso em que o credor adquire um direito sobre o crédito unicamente desde o
nascimento deste (art.º 2357.º).
1050
Para o que é necessária a sua notificação ou, em alternativa, a intervenção espontânea deste no acto de
constituição da garantia). Não ocorrendo essa notificação, apenas o constituinte pode receber validamente
a prestação; pelo contrário, a partir do momento em que tal notificação seja efectuada, a prestação deverá
ser efectuada unicamente ao credor pignoratício (art.º 2363.º, n.º 1). Esta última solução, de acordo com
Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 388, é entendida por alguns como argumento a favor da qualificação desta
garantia como uma verdadeira garantia fiduciária (uma vez que “le créancier n’a pas à craindre le
concours avec d’autres créanciers. Ils bénéficierait en réalité d’une situation d’exclusivité”), posição esta
rejeitada pelo Autor, negando a assimilação entre os efeitos do penhor e da cessão (até porque a
jurisprudência recusa a produção de efeitos de uma cessão em garantia fora dos casos expressamente
previstos pelo legislador), concluindo, por isso, que o credor não é proprietário das somas cobradas,
embora a eficácia da garantida seja asseguradas através da atribuição de um direito de retenção sobre as
quantias cobradas. Não estabelecendo a lei o modo através do qual esta notificação deverá ser efectuada,
dever-se-á concluir que qualquer meio é idóneo para o efeito, cabendo ao credor ónus da prova (Cabrillac
e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 527).
1051
De acordo com o art.º 2364.º, quando, vencido o crédito dado em garantia, ainda não se encontrar
vencido o crédito garantido, o credor pignoratício pode executar a garantia, conservando as quantias
cobradas numa conta aberta num estabelecimento bancário (embora, segundo Aynès e Crocq, Les sûretés
2009 cit., pág. 259 e Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 528, essa conta não tem que ser
nem especial, nem tem que ser bloqueada), com a obrigação de as devolver em caso de cumprimento da
obrigação assegurada (em caso de falência do devedor do crédito empenhado, oito dias após uma
intimação para pagamento, o credor afecta as ditas quantias ao reembolso do seu crédito, no limite do
montante em dívida), destarte transformando o penhor de créditos num penhor sobre uma quantia em
dinheiro (Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 259) ou numa garantia fiduciária sobre dinheiro
(Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 528), até ao vencimento da obrigação garantida (este
mecanismo representa, para o devedor, um perigo, sempre que o crédito empenhado seja superior ao
crédito garantido - Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 528). Na hipótese inversa,
vencimento do crédito garantido antes do crédito dado em garantia, o credor pode aguardar o vencimento
deste – e perceber o respectivo montante (de acordo com Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 260,
uma vez recebido este, o credor opor-se a um eventual pedido de restituição efectuado por outro credor
com uma preferência superior, porquanto a lei, ao conceder ao credor pignoratício o direito exclusivo de
cobrança do crédito empenhado, torna a garantia oponível a terceiros) –, requerer a atribuição judicial ou
convencional do crédito onerado (equiparando esta figura a um pacto comissório - segundo Aynès e
Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 260, neste último caso mesmo sem necessidade de avaliação por um
perito, uma vez que a norma que impõe este dever deve ser confinada ao penhor de bens corpóreos). Em
caso de falência do constituinte do penhor de créditos, o credor pignoratício pode, alternativamente,
requer a atribuição - judicial ou nos termos previstos em convenção das partes - do crédito empenhado ou
aguardar pelo seu vencimento (cfr. art.º 2365.º), não aludindo a lei à venda do bem onerado (omissão esta
justificada porque, como notam Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 563, não faria sentido
alienar um crédito na maior parte das vezes pecuniário para obter…uma quantia em dinheiro).
1052
Uma especial modalidade de penhor de créditos – denominada pignus debiti – ocorre quando
coincidem no mesmo sujeito as condições de credor pignoratício e de devedor, caso em que aquele
adquire um penhor sobre um crédito de que é devedor (Harry Westermann, Harm Peter Westmemann,
Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1582, apontam como exemplo o penhor constituído a
favor de um banco, sobre o saldo das contas bancária dos seus clientes, em garantia de empréstimo
concedidos pelo referido banco aos mesmos clientes).
268
contrato, ficando apenas dependentes de notificação os efeitos a produzir relativamente
ao devedor cedido e aos terceiros adquirentes do direito (cfr. art.ºs 578.º e 583.º).
No entanto, o penhor de créditos apenas produzirá os seus efeitos se e quando
ocorrer a notificação ao respectivos devedores ou, em alternativa, a partir do momento
em que estes o aceitem (cfr. n.º 2 do art.º 681.º),1053 1054 1055 excepto quando se trate de
penhor sujeito a registo, caso em que a constituição da garantia apenas produzirá efeitos
depois de realizada a correspondente inscrição.1056
Assim, por exemplo, se o crédito a onerar se encontrar assegurado por hipoteca
ou consignação de rendimentos, será necessária a inscrição do penhor no registo (art.º
2.º, n.º 1, alínea o), do Código do Registo Predial).
1053
O art.º 857.º do Código de Seabra apenas se referia à notificação ao devedor do crédito empenhado,
mas a doutrina já considera viável, em alternativa, a sua aceitação por aquele mesmo sujeito (cfr. Marques
de Carvalho, ob. cit., págs. 67 e 68). Do mesmo modo, em face da redacção originária do Código de
Napoleão, Hardel, ob. cit., págs. 60 e 61, assegura que a jurisprudência se orientou no mesmo sentido,
ressalvando apenas que a aceitação deveria constar de acto autêntico.
1054
À imagem do que vimos suceder no penhor de coisas, também no penhor de créditos a lei não fixa
nenhum prazo para o cumprimento das formalidades exigidas para a constituição da garantia, muito
embora deva ser realizada antes que outrem efectue um acto de apreensão sobre o crédito empenhado
(nomeadamente antes que um outro credor obtenha um outro penhor - ou uma cessão - sobre o mesmo
crédito e este seja primeiramente notificado ao devedor do crédito empenhado. Por isso, sempre que o
mesmo crédito seja dado em penhor a diversos credores, prevalecerá o previamente notificado – cfr.
Guillouard, ob. cit., pág. 138 e Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 75).
1055
Em termos análogos se exprime o Código Civil Brasileiro, cujo art.º 1453.º dispõe que o penhor não
tem eficácia enquanto não for notificado ao devedor do crédito empenhado, tendo-se por notificado
sempre que este sujeito, em documento público ou particular, se declare ciente da existência do penhor (o
negócio de constituição de penhor de créditos deve, além disso e nos termos do art.º 1451.º do mesmo
Código, constar de documento escrito, ao qual Silvio Rodrigues, ob. cit., pág. 382, atribui uma
importância decisiva, porquanto “justifica a transmissão dos títulos para o credor, o qual, agora, fica
constituído mandatário do credor original, para cobrança do título do devedor. Realmente, ao fazer a
caução, o devedor caucionante transfere o título ao credor mediante endosso. Esse endosso equivale à
constituição de um mandato autorizando o credor pignoratício a receber, em nome do mandante, o título,
a imputar a importância recebida na dívida, e compensá-la com o seu crédito, devolvendo ao devedor o
remanescente, se o houver. A inexistência de contrato escrito poderia levar à idéia de que o título
endossado tinha sido transferido por cessão, e não por força de penhor. Daí a sua necessidade”) – a
partir desta notificação – ou do conhecimento da garantia -, não poderá o devedor do crédito empenhado
pagar ao seu devedor originário (mas antes apenas ao credor pignoratício), sendo esta notificação mera
condição de eficácia da garantia face ao devedor do crédito empenhado (Washington de Barros Monteiro,
ob. cit., pág. 383, realça que o contrato não notificado já produz efeitos entre as partes, até porque “o
próprio poder de notificar o devedor já é efeito da constituição do direito de penhor”). Já quanto aos
títulos de crédito (art.º 1458.º e segs.)). Todavia, Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 93
e segs., asseguram que – ao menos no que respeita às garantias de índole financeira - esta necessidade de
notificação é típica dos penhores de crédito da primeira geração, tendo sido posteriormente suplantada
pela constituição através da incorporação do crédito em títulos (segunda geração) e, actualmente,
mediante a inscrição num registo dos valores escriturais (terceira geração). Também no direito alemão, o
§1280 do BGB impõe igualmente a notificação do terceiro devedor do crédito cedido, embora Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1581,
ressalvem que tal exigência não vigorará para aqueles créditos para cuja cessão se exija, além do mero
consenso, algum requisito adicional (por exemplo, o registo, como sucede com a cessão de créditos
garantidos por hipoteca): salvo nestas hipóteses, a notificação assumirá papel constitutivo – e não de mera
publicidade – no sentido em que a garantia apenas nasce aquando da sua realização.
1056
Também não se encontram sujeitos a notificação o penhor sobre direitos reais ou bens imateriais,
desde logo porque não são créditos (estando, por isso, a sua colocação em penhor sujeita às mesmas
regras que vigoram para a sua transmissão) e porque não existe um devedor a quem efectuá-la. Outra
alternativa passa por qualificar o penhor de direitos reais como penhor de coisas (objecto desse direito),
constituindo-se através da entrega da mesma – para mais desenvolvimentos, Vaz Serra, Penhor cit. in
BMJ n.º 59, pág. 183, nota 9.
269
Poder-se-á considerar que, nestas hipóteses, a notificação não será exigível pois
o registo cumpre as mesmas finalidades visadas por aquele e mesmo, em termos mais
amplos, que a notificação será dispensável sempre que os seus objectivos possam sejam
alcançadas através de outros mecanismos.1057
No especificamente concerne ao registo e de modo um tanto contraditório, esta
formalidade, por comparação com a notificação, realiza em termos mais perfeitos uma
das funções normalmente atribuídas aos mecanismos de constituição do penhor (a
publicidade), mas não satisfaz cabalmente o desiderato, específico do penhor de
créditos, de dar a conhecer a constituição da garantia ao devedor do crédito
empenhado.1058
Em ordenamentos, como o espanhol, em que a figura do penhor de créditos não
encontra reconhecimento legal expresso,1059 ao menos ao nível da legislação civilística,
a doutrina vem, na senda da admissibilidade da figura, discutindo o regime jurídico
aplicável,1060 sendo que para alguns nem sequer será exigível a notificação do devedor
1057
Assim, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 181 e 182, apontando como exemplo o penhor de
créditos constantes de uma letra, na medida em que a constituição desta garantia exige a entrega do título.
1058
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 183, apontando como exemplo o penhor de
créditos hipotecários, o qual, mesmo após o registo, pode permanecer desconhecido para o devedor desse
crédito que, assim, poderá pagar ao empenhador, parecendo que esse pagamento deverá ser oponível ao
credor pignoratício.
1059
Garcia Vicente, La prenda cit., pág. 25 e segs. - depois de destacar a importância prática desta
garantia, sobretudo tendo em conta as vantagens como o baixo custo de constituição (por não ser
necessário a outorga de documento público) e de execução da garantia (em razão da possibilidade de
recurso à compensação), bem como a ausência de custos de administração do quid onerado (embora
admitindo que o valor deste tipo de garantia dependerá da solvabilidade do terceiro devedor do crédito
onerado) – atesta a ausência de um regime legal completo (existem apenas determinadas regras para o
penhor de alguns direitos, como as valores mobiliários e as participações sociais), ao invés do que sucede
no direito catalão (uma vez que o Código Civil da Catalunha, que incorporou a anterior lei dos direitos
reais de garantia, prevê e regula o penhor de créditos, tendo até, aquando daquela incorporação, reduzido
as condições de validade dos penhores omnibus – passando a impor apenas um tecto máximo de
responsabilidade - e estabelecendo qual o destino a dar ao eventual excedente do valor do crédito onerado
face ao do crédito garantido). Aranda Rodríguez, La prenda de créditos, Marcial Pons, Madrid, pág. 63 e
segs., denuncia igualmente a ausência de um regime legal, acrescentando a escassez de contributos
doutrinais e a contradição da orientação dos tribunais superiores (os quais, numa primeira fase, negaram o
carácter real do penhor de créditos – atenta a ausência de alguns elementos essenciais do contrato de
penhor, nomeadamente o desapossamento do devedor -, enquanto as decisões mais recentes apontam em
sentido contrário), factos que em nada contribuem para a delimitação dos contornos e do regime legal do
penhor de crédito.
1060
Garcia Vicente, La prenda cit., pág. 25 e segs., aponta como única norma que, com carácter geral, se
refere ao penhor de créditos a lei falimentar (em cujo art.º 90.º, n.º 1, ponto 6, se faz expressa referência
ao penhor de créditos, determinando-se que, para usufruir de um privilégio especial “bastará con que
conste en documento con fecha fehaciente para gozar de privilegio sobre los créditos pignorados”).
Atento este panorama, a citada disposição de direito concursal, se não resolve todas as questões relativas
ao regime jurídico do penhor de créditos (desde logo porque não se ocupa das especificidades desta
garantia, como sejam a execução por compensação ou a imposição limites ao penhor de créditos futuros),
tem o mérito de legalizar a jurisprudência do Supremo Tribunal no sentido da admissibilidade da figura,
acabando por resolver, em sentido negativo, a querela acerca da necessidade de notificação do terceiro
devedor do crédito cedido como condição de oponibilidade da garantia a terceiros: de acordo com o
Autor, os demais aspectos do regime deverão buscar-se numa combinação das normas ditadas para o
penhor comum e para a cessão de créditos. Mais concretamente, (ob. cit., pág. 45 e segs.), o Autor advoga
que o regime jurídico aplicável ao penhor de créditos deverá assentar em quatro premissas essenciais,
quais sejam a impossibilidade de importação cega das normas do penhor comum (desde logo porque estas
se encontram pensadas para a constituição através de desapossamento do devedor, apesar de o Autor
considerar este um obstáculo relativo, uma vez que a indisponibilidade lograda com aquele
desapossamento pode, no penhor de créditos, ser atingida através de mecanismos alternativos, como seja
a notificação do devedor do crédito empenhado, o efeito análogo ao da cessão de créditos que este penhor
270
do crédito onerado como condição para o nascimento desta garantia1061 (o que torna o
penhor de créditos uma garantia totalmente oculta),1062 enquanto outros, ao
produz (qualificando mesmo a fattispecie como cessão em garantia, até porque “La cesión no es un tipo
contratual autónomo, sino que expresa el efecto que se produce sobre el crédito cedido pero no el título
que lo justifica que, en nuesto caso, será la prenda”, o que tornará aplicável o regime desta última
garantia, em tudo o que não pressuponha o empossamento do credor), a inadmissibilidade de aplicação
analógica das normas previstas para determinados penhores sobre créditos específicos e complexos, como
valores mobiliários e participações sociais (por se tratar de normas especiais, como tal insusceptíveis de
aplicação analógica) e o reconhecimento de uma ampla autonomia das partes da delimitação do regime
aplicável (embora com limites, como os decorrentes da proibição do pacto comissório e as restrições aos
penhores omnibus). O Autor alude ainda à possível dação em penhor de um crédito abrangido por um
pacto de non cedendo, a qual, à partida será ilegítima por falta de legitimidade do constituinte da garantia
– de modo que o terceiro devedor do crédito onerado poderá opor tal excepção ao credor pignoratício que
pretenda cobrar tal crédito, desde que o pacto de incedibilidade seja anterior à constituição da garantia –
embora a questão não seja linear porquanto alguns negam a oponibilidade a terceiros daqueles pactos,
pelo menos quando os terceiros – neste caso, o credor pignoratício – não possam constatar a sua
existência da documentação que suporta a constituição da garantia.
1061
A este respeito, Garcia Vicente, La prenda cit., pág. 48, começa por esclarecer que se atribui a tal
notificação um conjunto de efeitos que não são necessários, porquanto se ela representa uma vantagem
para o credor pignoratício (impedindo que o notificado pague ao seu devedor e iluda a garantia), não pode
ser erigida como condição de validade do penhor, sob pena de se excluir a empenhabilidade de créditos
futuros (para além de os requisitos de validade da garantia servirem, essencialmente, para informar
terceiros de tal constituição e, a este respeito, a notificação “no oferece ninguna información valiosa ex
ante a ulteriores acreedores o cesionarios y tampoco es imprescindible para atribuir la prioridad”).
Nesta conformidade, o Autor (ob. cit., pág. 61 e segs.) sustenta que o penhor de créditos produz efeitos
inter partes, desde a data da sua constituição e esta não obedece a qualquer formalidade específica (é, por
isso, um contrato consensual), sendo as exigências formais impostas como condição de oponibilidade da
garantia a terceiros (embora esclarecendo que, uma coisa é “la forma del contrato que predetermina la ley
para que la prenda disfrute de oponibilidad frente a terceros” e outra é “si esa forma satisface o no las
exigencias de publicidad de la garantía, en donde se debe separarse la descripción del Derecho vigente y
el juicio que nos merezca la solución legal”), de modo a determinar as condições em que os terceiros
terão que suportar os efeitos da garantia, da mesma forma que sucede com o penhor em geral (todavia, o
Autor esclarece que, no regime geral do penhor, nem a exigência de documento público – “no hay
publicidad genérica de los protocolos notariales” -, nem tão pouco o desapossamento do devedor – “cuyo
fin es que el control sobre el bien mueble pignorado repose en un sujeto distinto al pignorante, control
que impide que se frustre su eficacia a través de su transmisión a un tercero”, ou seja, o desapossamento
“se vincula con el modo de transmisión de los derechos sobre bienes muebles corporales: los
adquirentes, en las condiciones fijadas por el art. 464 CC, no tienen que suportar los gravámenes o
restricciones. Tal vez sea más preciso señalar que el desplazamiento posesorio tiene un efecto de
publicidad negativa, que en interés de los subadquirentes señala al titular desposeído como un sujeto que
no puede disponer del bien para constituir un nuevo gravamen o para transmitirlo libre de cargas” -
satisfazem essa função publicitária): ora, para o penhor de créditos, o citado preceito da lei concursal
estabelece como única condição de oponibilidade que a garantia conste de documento, público ou
privado, munido de data certa, de modo que a notificação ao devedor do crédito empenhado, à imagem do
que sucede no regime da cessão de créditos (cfr. art.ºs 1526.º, n.º 1, do CCE), tem apenas como função
“evitar un pago liberatorio a favor del acreedor aparente (cendente, pignorante) e impedir la
oponibilidad de los actos dispositivos del crédito posteriores (…) sí que contribuye a asegurar el control
sobre la disponibilidad del pignorante respecto al crédito pignorado, en la medida en que el deudor
cedido no puede ignorar el gravamen que pesa sobre el crédito”, não assumindo qualquer efeito
publicitário, uma vez que a notificação é um acto reservado (de modo que “ni el deudor cedido tiene
obligación alguna de comunicar a los acreedores del cedente el hecho de la cesión (o pignoración) ni la
identidad de los deudores puede conocerse fácilmente em muchos casos por parte de los terceros
interesados”), apenas do conhecimento do o credor pignoratício e o devedor do crédito empenhado
(todavia, o Autor reconhece a existência de posições contrárias, defendendo que a notificação tem
carácter constitutivo da garantia, desempenhando funções análogas às do desapossamento no penhor de
coisas corpóreas, nomeadamente assegurando a indisponibilidade do bem onerado), acrescentando que o
erigir da notificação como condição do surgimento ou da oponibilidade do penhor de créditos implicaria a
impossibilidade da garantia incidir sobre créditos futuros ou sobre créditos em massa (uma vez que, no
momento do surgimento da garantia, será desconhecida a identidade dos devedores cedidos), assim como
271
equipararem-na ao desapossamento no penhor de coisas corpóreas, erigem-no como
requisito (não apenas de oponibilidade) constitutivo do surgimento da garantia, mesmo
inter partes.1063
272
Mesmo aqueles que defendem ser a notificação condição de oponibilidade do
penhor de créditos a terceiros, impondo-a para que a garantias possa ser invocada face a
estes, distinguem a respectiva eficácia relativamente ao terceiro devedor do crédito
empenhado (considerado como um terceiro qualificado, não apenas porque sobre ele
recai o dever de efectuar a prestação, como também pelo direito que lhe assiste de a
realizar com carácter liberatório)1064 e aos demais terceiros, como sejam os credores do
1064
Aranda Rodríguez, ob. cit., pág. 157 e segs., entende que os efeitos desta notificação serão os mesmos
que se produzem no caso da cessão de créditos, apenas temperados pela especificidade do negócio de
garantia que constitui a causa do penhor de créditos. Nesta conformidade, decorre do regime legal da
cessão de créditos (art.º 1527.º do CCE) que o negócio apenas produzirá efeitos relativamente ao terceiro
devedor do crédito cedido (para a validade inter partes bastará o mero consenso das partes) quando este
tome conhecimento do mesmo (entendendo-se a expressão “notificação” em sentido amplo, como
sinónimo de qualquer meio através do qual se leve ao conhecimento dele a cessão), tendo como finalidade
primordial dar a conhecer ao devedor do crédito cedido a identidade do cessionário, ao qual deverá ser
realizada a prestação objecto do crédito cedido (“sin la notificación como requisito de eficacia del
deudor, se vincularía a éste respecto de cualquier acreedor que se le presente al cobro, lo que significa
aceptar el riesgo de tener que pagar diversas veces a todo aquel que aparezca inicialmente legitimado
para aceptar el pago”), o mesmo sucedendo, mutatis mutandis, no penhor de créditos (“la notificación al
deudor tiene como efecto desdoblar la vinculación del deudor cedido con el acreedor (cedente)
añadiendo una nueva vinculación con el acreedor pignoraticio (cesionario). Es decir, la notificación
provoca una vinculación concurrente del deudor cedido con ambos sujetos”), no qual, na falta de tal
notificação, o credor pignoratício fica impedido de cobrar os juros do crédito empenhado (art.º 1868.º), de
exercer a sua função de conservação do bem empenhado, e de exigir o cumprimento da obrigação
empenhada. Por outro lado, no que respeita às excepções (entendida como a invocação, por parte do
devedor do crédito cedido, de qualquer meio, respeitante à sua relação com o empenhante, que permita
defender-se da pretensão do credor pignoratício) que o devedor do crédito onerado pode opor ao credor
pignoratício, o Autor parte do princípio geral, vigente para a cessão de créditos, segundo o qual o
cessionário (ou credor pignoratício) adquire o seu direito tal e qual este era detido pelo cedente, ou seja,
podendo o devedor do crédito empenhado opor-lhe as excepções que pudesse opor ao seu credor (devedor
do crédito garantido), embora essa invocação encontra-se dependente da tomada de posição aquando da
notificação da constituição da garantia (se aceitou a constituição do penhor, tal implicará a
inoponibilidade das excepções pessoais que o devedor do crédito empenhado tivesse face ao empenhante;
se, ao invés, se opôs a tal negócio – alegando, por exemplo, a invalidade do negócio do qual nasceu o
crédito empenhado - o penhor será válido, sempre que o credor pignoratício desconheça a causa de
invalidade e esta seja imputável às partes no negócio de constituição do crédito onerado a menos que,
mesmo desconhecendo-as, se prove terem nascido antes da notificação da constituição do penhor;
finalmente, em caso de falta de notificação ou de conhecimento por outra via, poderá opor todas as
excepções existentes até ao momento do conhecimento do penhor): de acordo com estas directrizes
gerais, em caso de aceitação sem reservas, não pode opor ao credor pignoratício a eventual excepção da
sua dívida por compensação ou por prescrição (caso esta ainda não se tenha produzido, a aceitação
implica aceitação tácita da dívida, acarretando a interrupção do prazo de prescrição), como não poderá
opor as excepções pessoais que eventualmente pudesse opor ao empenhante (porque a aceitação da
garantia sana os eventuais vícios do contrato que o unia ao empenhante – embora possa opor excepções
como a prorrogação do prazo ou a remissão parcial da dívida – na medida em que o credor pignoratício
“adquire” o crédito nos mesmos termos em que o empenhante o possuía); em caso de aceitação com
reservas respeitantes às excepções face ao empenhante, poderá opor apenas aquelas que desconheça no
momento da aceitação, mas já não se as conhecia nessa data (solução que se aplica à compensação, à
prescrição – quando esta se tenha produzido antes da constituição do penhor, só quando o
desconhecimento desse facto não seja imputável ao devedor é que poderá este invocá-la; pelo contrário,
quando o prazo de prescrição ainda não tenha decorrido integralmente, interrompe-se com o
reconhecimento implícito da dívida decorrente da aceitação da garantia - e, relativamente às demais,
impede a oposição das excepções pessoais que ele conhecesse e que deveria ter invocado nesse
momento); em caso de oposição, poderá opor ao credor pignoratício as excepções que tivesse face ao
empenhante antes da constituição do penhor e as posteriores, mas anteriores à data da notificação do
contrato de garantia (valendo tal conclusão para a compensação, para a prescrição e para a excepção de
incedibilidade do crédito, mas merecendo desvios quanto à confusão, quer das qualidades de empenhante
e de devedor do crédito onerado – caso em que a oposição desta excepção ao credor pignoratício, após o
conhecimento do penhor, não é viável, uma vez que tal confusão não pode prejudicar os direitos
273
empenhante e eventuais futuros cessionários do mesmo crédito (para cujo efeito
entendem bastar a existência de um documento munido de data certa, à semelhança do
regime vigente para a generalidade dos penhores – cfr. art.º 1865.º do CCE).1065
Esta diversidade de efeitos da notificação face aos terceiros estranhos ao
contrato de garantia (credor pignoratício e empenhante) parece encontrar consagração
legal no actual regime francês do penhor de créditos,1066 porquanto a única condição de
oponibilidade desta garantia a terceiros é a redacção de um documento escrito contendo
a identificação dos créditos onerado e garantido (art.ºs 2356.º e 2361.º), sendo a
notificação ao terceiro devedor do crédito empenhado – ou a sua intervenção no negócio
- condição de oponibilidade da garantia apenas face a este sujeito, sob pena de, não se
fazendo, o pagamento efectuado ao constituinte da garantia ser válido e liberatório (art.º
2362.º).
Retornando ao ordenamento pátrio, a norma que estabelece o modo de
constituição do penhor, impondo a sua notificação ao devedor do crédito empenhado
(art.º 681.º, n.º 2), juntamente com outras igualmente constantes do regime do penhor de
274
créditos, é mesmo interpretada por alguns como uma manifestação da eficácia externa
das obrigações no nosso ordenamento.1067
Da disposição legal em questão parece resultar que o negócio de constituição do
penhor de créditos prescinde da participação do terceiro devedor do crédito empenhado,
muito embora não falte quem defenda, ao menos em determinadas hipóteses, que a
defesa dos seus interesses reclame a sua intervenção.1068
Resulta do regime legal que, ainda que tal notificação tenha sido omitida, se o
devedor do crédito onerado pagar àquele que constituiu o penhor (ou celebrar com ele
algum negócio relativo ao crédito empenhado), o pagamento (e o negócio) não são
oponíveis ao credor pignoratício, bastando que este prove que o devedor tinha
conhecimento do penhor: neste caso, o fito da notificação é alcançado pelo
1067
Com efeito, Colaço Canário, ob. cit., págs. 69 a 72, retira do n.º 2 do art.º 681.º duas manifestações da
eficácia externa das obrigações: o facto de o devedor do crédito empenhado (terceiro em relação à
obrigação garantida) necessitar de ser notificado ou de aceitar a constituição do penhor e, por outro lado,
de essas mesmas notificação e aceitação serem igualmente necessárias para com outros terceiros. Para
além deste, também os art.ºs 684.º (ao admitir que o devedor possa opor ao credor pignoratício, ainda que
este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o empenhador, salvo os que
provenham de facto posterior ao conhecimento do penhor), o n.º 1 do art.º 685.º (ao atribuir ao credor
pignoratício o direito de cobrar o crédito empenhado, mesmo antes do vencimento do penhor, apesar de
não ser parte da relação de crédito), os seus n.ºs 2 (ao impor ao devedor do crédito empenhado, quando o
objecto consistir em dinheiro ou noutra coisa fungível, a obrigação de efectuar a prestação conjuntamente
ao seu credor e ao credor pignoratício), 3 (o qual, para além de conceder legitimidade ao credor
pignoratício para cobrar o crédito empenhado, confere ainda aos outros credores pignoratícios não
preferentes o poder de compelir o devedor do crédito empenhado – terceiro face à relação pignoratícia – a
cumprir) e 4 (nos termos do qual o empenhador, por ter dado em garantia o seu direito, terá de pedir o
consentimento a um terceiro – o credor pignoratício – para receber o seu crédito) disporiam no mesmo
sentido.
1068
Ruscello, ob. cit., pág. 112 e segs., apesar de defender a tendencial indiferença para o terceiro devedor
do sujeito a quem deva efectuar a prestação (e o facto de o penhor de créditos não produzir a transferência
da titularidade do crédito, mas apenas de alguns aspectos inerentes a essa titularidade, designadamente
alguns poderes na relação com o terceiro devedor), sustenta que “non è da escludere in via di principio un
interesse del terzo debitore nella costituzione del pegno”, pelo que a estrutura constitutiva do penhor do
penhor de créditos não se poderá reconduzir necessariamente a um acordo entre o credor e o devedor
pignoratícios. De acordo com o mesmo Autor, para determinar a estrutura bilateral ou trilateral do
negócio constitutivo do penhor importa considerar a “penhorabilidade do crédito”, a qual pode derivar da
lei ou da vontade das partes (directamente, quando estas expressamente excluam a possibilidade de dar
em penhor aquele crédito ou indirectamente, se da indisponibilidade não pode derivar senão a
impossibilidade de dar em penhor), pois “non pare si possa afermare che tutte le diverse indisponibilità
diano luogo, com riferimento alla vicenda costitutiva del pegno di crediti, ad una vicenda strutturalmente
plurilaterale”: desde logo, alguns créditos indisponíveis não podem transformar-se, por vontade das
partes, em empenháveis (por exemplo, os créditos alimentares); por outro, por vezes a razão de ser da não
empenhabilidade pode determinar a desnecessidade da participação do terceiro na constituição do penhor;
pelo que a intervenção do terceiro apenas será de exigir quando existam outros interesses merecedores de
tutela além dos dirigidos à constituição da garantia. A intervenção ou não do terceiro devedor na
constituição do penhor (vide págs. 153 e segs.) assume importância decisiva na determinação do
momento a partir do qual a garantia será dotada de preferência, porquanto no primeiro caso tal acontecerá
de imediato, na medida em que a participação no negócio equivale a aceitação, pelo que “nulla piú è
necessario per il completo espletamento degli effetti – diretti e indiretti – derivanti dal costituito pegno
sul credito”, enquanto no segundo o negócio constitutivo da garantia apenas produz efeitos entre as
partes, o mais importante dos quais seria a obrigação de entrega do eventual documento de que conste do
crédito empenhado ao credor pignoratício, reflexo de um mais amplo dever de cooperação). Segundo
Legeais, Les garanties conventionalles cit., pág. 47, o penhor de créditos “appartient à la categorie des
opérations a trois personnes”, enquanto Pace, ob. cit., pág. 43, entende que o terceiro, devedor do crédito
empenhado, pode intervir no contrato de penhor – aceitando a constituição da garantia – mas não assume
a qualidade de parte no negócio, por não deter a liberdade de escolha entre a aceitação e a recusa do
contrato.
275
conhecimento da constituição do penhor por parte do devedor (cfr. art.ºs 681.º, n.º 3 e
582.º, n.º 2).1069
À primeira vista poder-se-á estranhar por que razão o penhor de créditos, ao
contrário da cessão, se encontra dependente da observância destes trâmites,1070 tanto
mais que, deste modo, esta última se torna um negócio mais apelativo face àquele.1071
A justificação para esta discrepância de regimes advirá, porventura, do papel de
sucedâneo da entrega da coisa que estas formalidades desempenham no penhor de
créditos ou, noutros termos, na diferença entre a posição do cessionário e do credor
pignoratício.1072
1069
Colaço Canário, ob. cit., págs. 69 e 70, sustenta que também esta norma constitui uma manifestação
da eficácia externa das obrigações, porquanto o credor pignoratício, agindo como terceiro, pode impedir o
pagamento do devedor ao empenhador, desde que prove o conhecimento da constituição do penhor pelo
devedor.
1070
Critica esta mesma disparidade de soluções no direito francês, anterior à reforma de 2006, no qual a
notificação ao devedor do crédito cedido ou empenhado era condição de oponibilidade da cessão e de
validade no penhor, vide Théry, ob. cit., pág. 311, realçando que tal solução, normalmente ancorada no
carácter real do contrato de penhor, constitui um “paradoxe, qui consiste a traiter le nantissement de
créances comme un contrat réel alors que son object est insusceptible de possession! Singulière solution
qui s’applique aux biens incorporels mais non aux biens corporels!”.
1071
Sobretudo por tornar o penhor do conhecimento de sujeitos estranhos, circunstância que pode ser
contrária ao sigilo muitas vezes exigido na prática comercial, bem como porque a necessidade de
notificação dificulta ou impede a colocação em penhor de créditos futuros. Outras vantagens da cessão,
face ao penhor são o facto de, neste último, o devedor ter a obrigação de pagar simultaneamente ao seu
credor e ao credor pignoratício (quando o objecto da prestação consistir em dinheiro ou outros bens
fungíveis – art.º 685.º, n.º 2), enquanto na cessão pode pagar unicamente ao cessionário; por outro lado e
em sede de execução, o credor pignoratício vê-se forçado a efectuar a venda judicial (excepto no caso do
penhor financeiro – v. art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 105/2004), ao passo que na cessão o créditos, o
cessionário é o titular exclusivo do crédito. Escalpelizam este confronto entre a cessão e o penhor de
créditos, Menezes Leitão, Cessão cit., págs. 444 a 446 e Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., pág. 547 a
553, concordando ambos que as desvantagens deste em face daquela conduziram a que, em ordenamentos
como o alemão em que os negócios fiduciários são admitidos com grande amplitude, a cessão tenha
relegado o penhor para um plano claramente marginal (não sem que o segundo dos Autores citados
reconheça, igualmente, semelhanças entre ambos os institutos, na medida em que desempenham uma
função idêntica de garantia - embora exclua a cessão da órbita dos direitos reais de garantia, categoria na
qual faz reentrar o penhor – têm o mesmo objecto e o regime contém traços comuns em razão da remissão
operada pelo art.º 684.º). Também em face do direito italiano, Tommaso Mancini, Pegno di crediti, cessio
pro solvendo e cessione a scopo de garanzia, in BBTC, n.º 31 (1968), Tomo II, pág. 285 e segs., salienta
que “Rispetto al pegno dei crediti la cessione a scopo di garanzia ha l´’indubbio vantaggio di essere
traslativa del credito e di assicurare cosi al cessionario tutti quei poteri che dalla titolarità del diritto
derivano. Nel pegno di crediti, invece, il creditore pignoratizio non acquista la titolarità del diritto dato
in garanzia, bensì la semplice legittimazione all’esercizio di alcune facoltà di amministrazione (…). Il
concedente rimane titolare de diritto di credito, per cui può attuare su di esso quegli atti dispositivi che
sono, invece, interditi al cedente dopo l’avvenuta cessione. Rispeto al pegno dei crediti la cessione in
esame ha, poi, l’ulteriore vantaggio di essere, analogamente a la cessio pro solvendo, un atto
preparatoio dell’adempimento (…). Il pegno dei crediti esplica, invece, una mera funzione di garanzia,
non potendo il creditore soddisfarsi sul credito se non dopo la scadenza dell’obbligazione garantita”,
enquanto Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 320 e segs., destaca o facto de no penhor de créditos se
transferir para o sujeito garantido apenas a legitimação para cobrar o crédito onerado, enquanto na cessão
se transfere a totalidade do crédito, diferença esta da qual resulta a possibilidade de o cessionário se
satisfazer sobre o objecto da garantia mesmo antes do vencimento da obrigação assegurada (mas não sem
que o devedor seja forçado a devolver ao seu devedor o eventual valor excedente do crédito cobrado face
ao crédito garantido, de modo a que não exista violação da proibição do pacto comissório) e de evitar o
concurso com os demais credores do devedor (embora com a limitação de a cessão apenas ser oponível,
em caso de falência do cedente, se tiver sido notificada).
1072
Advoga esta última alternativa Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 148 e segs., destacando como o facto
de a titularidade do direito empenhado pertencer a pessoa diversa da legitimada para cobrar o crédito
empenhado, confere ao credor pignoratício uma posição preferencial face aos demais credores do titular
276
De facto, se a entrega visa retirar o bem da disponibilidade material do
empenhador (impedindo este de receber o crédito dado em penhor, destarte protegendo
o credor), assim como alertar terceiros para a existência da garantia (evitando que sejam
induzidos em erro), tais finalidades poderão ser, no penhor de créditos, alcançadas, pelo
menos parcialmente, pela notificação ao devedor do crédito empenhado,1073 podendo
mesmo dizer-se, ao menos em sentido figurado, que realiza o desapossamento do
devedor do crédito garantido.1074
A segurança do credor é reforçada pela notificação, porquanto esta se destina a
dar conhecimento ao devedor do crédito empenhado – terceiro relativamente à relação
pignoratícia - da existência do penhor (assim impedindo que este efectue o pagamento
ao devedor pignoratício), muito embora se possa duvidar da efectividade dessa
segurança, porquanto não é possível garantir, em termos absolutos, que o mesmo credor
não tenha já, previamente, onerado o mesmo crédito a favor de outrem.1075
No que toca ao efeito publicitário da notificação do terceiro devedor do crédito
empenhado um efeito publicitário, este é, por vezes, equiparado ao desempenhado, no
penhor de coisas corpóreas, pela entrega do bem ao credor1076 e à imagem do que
do direito, sendo a necessidade de publicitação da garantia face a estes (e aos terceiros em geral) – dando-
lhes conta que o credor pignoratício cobrará a prestação na qualidade de credor e não de titular do direito
- que justifica a imposição daquela formalidade.
1073
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 180 e Simler e Delebecque, Droit civil cit.,
pág. 471.
1074
Neste sentido, Planiol, Ripert, Becqué, pág. 102. Contra, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 282,
considerando que a notificação tem apenas uma função publicitária, sendo inapta para realizar o
empossamento do credor pignoratício, porque, ao contrário da entrega dos bens móveis, não assegura
qualquer segurança ao credor pignoratício (nomeadamente porque não lhe assegura que o crédito
empenhado não o tenha já sido anteriormente a favor de outrem), concluindo que o desapossamento se
verifica através da transferência para o credor pignoratício de um conjunto de prerrogativas, das quais o
devedor se desfaz, transferência essa que ocorre simplesmente por mútuo consenso (reclamando uma
reforma do art.º 2075.º do CCF então vigente e propondo como solução o disposto no art.º 2075.º do
Código Civil Belga, no qual se consagra um desapossamento fictício – que decorre do próprio contrato de
penhor – apenas se impondo a notificação ao devedor do crédito empenhado como condição de
oponibilidade da garantia). Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 253 a 255, consideram que a
perda da prerrogativa essencial do penhor de créditos – o direito de cobrar o crédito dado em penhor –
não implica automaticamente a passagem dessa faculdade para o credor, entendendo, pelo contrário, que
o elemento característico deste tipo de penhor é a perda de certos direitos do devedor sobre o bem dado
em garantia, o que não implica uma transferência desses direitos: em suma, será inútil procurar no penhor
de créditos um desapossamento semelhante ao do penhor de coisas.
1075
Destaca esta última ressalva Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 43.
1076
Weil, ob. cit., pág. 88, admite que esta publicidade face a terceiros possa funcionar, por entender que
qualquer terceiro que pretenda adquirir o crédito empenhado deverá, por uma questão de precaução,
informar-se junto do devedor desse crédito acerca da sua existência, bem como de eventuais garantias
anteriores. Também Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 47 e segs., reconhece à notificação
uma função publicitária, esclarecendo que, enquanto esta é assegurada pela entrega no penhor de coisas
corpóreas, não pode produzir-se do mesmo modo no penhor de créditos, uma vez que a simples entrega
tem natureza aparente e notória, o que não sucede com a transferência de poderes para o credor que
caracteriza o penhor de créditos (para além do facto de o penhor de créditos envolver um terceiro sujeito
– o devedor do crédito empenhado – de tal modo que “les prérogatives ne sont alors qu’un ensemble de
droits permettant d’exiger une prestation d’un tiers”): ora, através da notificação, a convenção
pignoratícia torna-se do conhecimento, desde logo, do devedor do crédito empenhado (“Par la
signification les parties à la convention acquièrent la certitude que le débiteur a bien connaissance de
l’existence du nantissement”), mas também dos “ayant cause” do credor (em razão do aumento do
património deste) e do devedor (pois a constituição do penhor representa uma diminuição do valor do
património do seu devedor) e de outros terceiros (como outros eventuais credores com penhores
anteriores sobre o mesmo crédito) – que se poderão informar junto do devedor do crédito onerado - uma
vez que “La signification du nantissement joue ainsi, mutatis mutandis, le même rôle que
l’accomplissement des formalités de publicite foncière dans la constitution des sûretés réelles
277
sucede com a notificação da cessão de créditos,1077 muito embora tal visão também seja
objecto de reparos.1078
Aliás, a tendencial equiparação entre a notificação ao terceiro devedor do crédito
empenhado (no penhor de créditos) e a entrega do bem ao credor (no penhor de coisas)
projecta-se num outro domínio, qual seja o de, também na primeira hipótese, a forma de
constituição da garantia dificultar (ou até impedir) que esta possa recair sobre bens
(créditos) futuros, sobretudo quando se desconheça a identidades dos devedores de tais
créditos.1079
O erigir da notificação – ou da aceitação – como condição indispensável1080 para
a produção de efeitos do penhor, não só relativamente a terceiros,10811082 mas também
immobilières” (todavia, o Autor recusa uma total equiparação entre a notificação e a publicidade
imobiliária, dado que “les opérations sur les créances n’ont pas atteint le degré de perfectionement des
règles de la publicite foncière et par là même leur degrè de fiabilité”, o que não invalida o
reconhecimento de uma função publicitária à notificação, porquanto “La coexistence de règles de
publicite obéissant à des príncipes distinctes et adaptés aux opérations qu’elles régissent se conçoit três
bien (…). Qu’il s’agisse, en effet, d’un droit réel portant sur un immeuble ou d’un droit affectant un
meuble incorporel, le tiers qui veut en connaître l’existence doit s’informer. Que sa demande de
renseignements soit adressée au conservateur des hypothèques ou à une outre personne ne nous apparaît
pas fondamental. Ce qui l’est beaucoup plus, c’est de déterminer l’effet de la mesure de publicité. Or,
force est de constater que, sur ce point, il y a une unité profonde entre les deux institutions”).
1077
Menciona esta identidade de funções da notificação, nos casos da cessão e do penhor de créditos,
Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 50 e 52, sustentando que a mesma repousa na
circunstância de, em ambos os casos, estarmos perante uma transmissão - num caso actual, no outro
eventual -, concluindo pela identidade de função desta formalidade, qual seja a de tornar o negócio
oponível a terceiros, através da publicidade que propiciam.
1078
De facto, como bem nota Guillouard, ob. cit., págs. 128 e 129, estes terceiros terão de se dirigir ao
devedor do crédito garantido para saber se o crédito empenhado já terá sido anteriormente empenhado ou
cedido a outrem. Entre nós, nega o carácter publicitário da notificação Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs.
152 a 154, contestando ser aquela formalidade um elemento constitutivo do contrato de penhor,
destinando-se unicamente “a assegurar o controlo sobre a disponibilidade do empenhador relativamente
ao crédito empenhado, na medida em que o devedor cedido não poderá ignorar o encargo que incide
sobre o crédito dado em garantia. Assim, podemos afirmar que a notificação, à imagem do que se
verifica no penhor de coisas, visa privar o autor do penhor da possibilidade de dispor do bem
empenhado”.
1079
Eventualmente, poderá admitir-se que o credor pignoratício efectue tais notificações (ou mandate o
empenhante para o efeito), à medida que os créditos surjam, assim dando a conhecer aos devedores de tais
créditos a existência da garantia: porém, apenas a partir deste momento a garantia do credor pignoratício,
relativamente a cada um desses créditos, produzirá efeitos.
1080
.
1081
É esta a solução do CCI, cujo art.º 2800.º dispõe que a preferência não existe se não quando o penhor
resulta de um acto escrito e a sua constituição tiver sido notificada ao devedor do crédito dado em penhor
(ou tenha sido por este aceite através de escritura com data certa). Apesar desta redacção, Rubino, Il
pegno cit., págs. 231 e 232, considera que a notificação ou aceitação são também condições para tornar o
penhor eficaz frente ao devedor do crédito empenhado (uma vez que antes disso este poderá exonerar-se
pagando ao seu credor), bem como para a eficácia face aos outros aventi causa do empenhador (a fim de
determinar qual o direito com primazia). Assim sendo, mesmo antes da notificação (ou da aceitação) o
contrato de penhor considerar-se-á perfeito entre as partes, mas esta eficácia, como salienta Rubino, ult.
ob. e loc. cit., é bastante limitada, tendo em conta que no penhor de créditos faltam ou podem faltar as
principais relações obrigacionais entre credor pignoratício e empenhador que caracterizam o penhor de
coisas (como sejam o direito à entrega do bem, o direito de retenção ou a obrigação de custódia do bem)
e, por outro lado, os efeitos limitados que se possam atribuir ao contrato (designadamente quando, por
facto do empenhador, se torne impossível tornar o direito oponível a terceiros) poderão ser considerados
como efeitos preliminares de um contrato em formação. Pelo contrário Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 154
e 155, sustentam que nas relações com o terceiro devedor do crédito a empenhar e com os adquirentes
desse mesmo crédito, o vínculo se constitui com a notificação, mesmo que verbal, ao terceiro devedor (ou
com a sua aceitação); ao invés, na relação com os demais credores (ou seja, para efeitos do direito de
preferência) o penhor apenas se constitui com a notificação escrita ou a aceitação pelo terceiro que
278
tenham por base um documento escrito, resultando a identificação do crédito empenhado implicitamente
desse documento e da subsequente notificação. Já Ruscello, ob. cit., pág. 32 e segs., retira do simples
acordo das partes, independentemente da notificação, o nascimento de um vínculo entre elas (nos termos
do qual o credor adquire o direito de exigir a reconstituição do penhor quando desapareça o respectivo
objecto, designadamente quando o terceiro devedor não notificado da constituição do penhor pague ao
seu próprio credor com efeitos liberatórios, produzindo este vínculo em duas consequências essenciais: no
momento sucessivo ao vencimento do débito garantido o património do devedor poderia ser diminuído de
modo a comprometer a satisfação dos demais credores; e, por outro lado, se o empenhante for um
terceiro, a acção para reconstituição do penhor se dirigirá, não contra o devedor, mas contra um terceiro,
assim ampliando a garantia do credor) e a outorga do direito de sequela ao credor pignoratício
(possibilitando-lhe agir contra o terceiro adquirente, assim tornando a garantia oponível a terceiros
estranhos à relação de garantia, desde que este terceiro, por sua vez, não notifique a constituição do seu
direito: em suma, quando o surgimento de nenhum dos direitos tenha sido notificado, o penhor é oponível
aos adquirentes posteriores; tendo sido notificada a constituição de todos os direitos, o penhor será
oponível àqueles cujos direitos notificados posteriormente ao penhor), considerando que a notificação
apenas produz efeitos relativamente aos demais credores do empenhante, mas advertindo que
“l’inesistenza attuale dei requisiti per la prelazione non impedisce di ritenere costituito il rapporto di
garanzia poiché la notifica non fa che consolidar ela prelazione a favore del procedente” e concluindo
não existir contradição no facto de o credor pignoratício, antes da notificação, poder opor o seu direito aos
adquirentes mas não aos credores do empenhante, na medida em que a primeira premissa resulta da
equiparação da posição do credor pignoratício à de um normal credor que pode efectuar a penhora do bem
em questão, porque a constituição da garantia, na falta de notificação, não lhe é oponível. Albina Candian,
Le garanzie cit., págs. 320 e 321, apesar de reconhecer que a generalidade da doutrina entende ser a
notificação do terceiro devedor mera condição de oponibilidade da garantia, assegura, em conformidade
com a jurisprudência dominante, “nel pegno di crediti il mero scambio di consensi non dà luogo, di per se
solo, alla nascita del diritto reale di garanzia sul credito, il quale sorge solo con la notificazione del
titolo costitutivo al terzo debitore”. Ainda no domínio do anterior CCI, Pace, ob. cit., pág. 43 e segs.,
afirma que a eficácia completa do penhor de créditos se encontrava sujeita à notificação da constituição
da garantia ao devedor do crédito cedido (ou à sua aceitação), embora o negócio fosse válido inter partes
sem o cumprimento da tal formalidade, simplesmente “Non si comprenderebbe, infatti, il valore di un
pegno senza privilegio, e la possibilita di esigere verso chi non è tenuto a riconoscere la nuova situazione
che si è venuta a creare in forza del rapporto interno di pegno”.
1082
No direito francês e em face da redacção originária do art.º 2075.º do CCF, a generalidade da doutrina
inclinava-se para considerar a necessidade de acto escrito e de notificação ao devedor do crédito cedido,
uma mera condição de exercício do privilégio face a terceiros credores do empenhante (neste sentido,
Weil, ob. cit., pág. 87, Théry, ob. cit., pág. 311, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 282, Marty, Raynaud e
Jestaz, ob. cit., págs. 61 e 62, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 41 e Guillouard, ob. cit., pág. 130,
recusando, em conformidade, que o devedor se possa socorrer do incumprimento das formalidades legais
para exigir a invalidade do penhor), muito embora, em face da redacção introduzida em 1980, a dúvida
seja legítima. Defendem ser esta uma formalidade cujo cumprimento condiciona a validade do negócio de
constituição do penhor de créditos, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 92 e Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., págs. 254 e 255, com argumentos impressivos: “Lorsque le gage porte sur une créance,
le droit de préférence ne peut s’exercer que contre le débiteur de la créance, d’où la nécessité d’établir
un lien direct entre le gagiste et le débiteur. L’information officielle du débiteur de l’existence du gage
prive alors le constituant du droit de poursuivre le recouvrement de la créance gagée et cela suffit à
établir le droit de préférence du gagiste (…) le formalisme de l’article 2075 ne devrait pas être considéré
comme une règle d’opposabilité, mais comme une règle de fond. Elle est l’équivalent de la dépossession
em matière de gage des meubles corporels qui est une condition de validité de la sûreté (…). La
reconnaissance de la fonction de l’article 2075 devrait aussi entraîner dans son sillage la disparition de
la condition relative à la remise du titre qui ne réalise aucune perte de prérrogative du constituant du
gage.“ e Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 217e segs. (estes Autores criticam o regime legal pois, por
um lado, não assegura o empossamento do credor pignoratício – o que poderia ser alcançado impedindo
que o devedor do crédito empenhado pagasse ao devedor - e, por outro, não permite a sua publicidade
face a terceiros, embora aceitando que, em razão da difícil localização do crédito, tal publicidade teria que
ser pessoal – critica igualmente o sistema da notificação Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág.
60, escrevendo que “La signification, vestige de l’ancien droit, apparaît en effet aujourd’hui comme une
formalité archaïque parfaitement inconciliable avec les exigences du commerce juridique”). Finalmente,
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 53 e segs., entende que a notificação do terceiro devedor
do crédito garantido é condição de oponibilidade da garantia a terceiros, incluindo aquele sujeito: todavia,
279
entre as partes,1083 funda-se na constatação que o credor pignoratício unicamente com o
adimplemento daquela formalidade adquirirá uma verdadeira garantia, por apenas a
partir desse momento o pagamento efectuado pelo devedor do crédito empenhado ao
seu credor ser ineficaz com respeito ao credor pignoratício.1084
Mais, se o devedor pagar ao empenhante e mesmo que não tenha sido notificado
ou não tenha aceite a constituição do penhor, esse pagamento não será oponível ao
credor pignoratício, desde que este prove que o devedor tinha conhecimento da
reconhece que as críticas dirigidas a este entendimento (não apenas por constituir um entrave à circulação
de direitos e do crédito, como também em razão da deficiente publicidade da garantia que asseguram)
motivaram o surgimento de temperamentos àquela exigência, alguns defendendo que a notificação apenas
é condição de eficácia da garantia – realizando uma função publicitária e presumindo-se, a partir da sua
realização, que tais terceiros teriam conhecimento efectivo da constituição da garantia - face a terceiros
que não o devedor do crédito onerado (uma vez que este, mesmo podendo não ser parte no contrato de
penhor, se presume que terá consentido, de modo implícito, na celebração do contrato, pelo que a função
cumprida pela notificação face a este sujeito será meramente informativa, assegurando que,
efectivamente, o devedor do crédito empenhado teve conhecimento do surgimento da garantia); outros,
defendem que “La connaissance acquise par un tiers de l’existence d’un contrat peut alors produire des
effets identiques à ceux liés à l’accomplissement des formes prévues”, até porque o contrato seria
oponível a terceiros desde a data da sua conclusão – ou, ao menos, desde a data em que tais terceiros
tenham tomado conhecimento da convenção pignoratícia – de modo que “ce n’est donc pas la publicité
qui rend les contrates juridiquement opposables aux tiers. La publicité a simplement pour but d’assurer
pratiquement l’efficacité du principe d’opposabilité. Ainsi, la publicité légale obligatoire crée à l’égard
des tiers une présomption irréfragable de connaissance qui leur rend le contrat opposable de façon
certaine. Il n’est, en ravanche, pas certain (…) que l’inverse soit vrai. Le défaut de publicité rendrait le
contrat inopposable aux tiers. Le contrat serait au contraire opposable aux tiers qui en connaîtraient
l’existence“. Actualmente, não restam dúvidas que notificação do terceiro devedor é apenas condição de
oponibilidade da garantia face a este (art.ºs 2361.º e 2362.º do CCF, introduzidos com a reforma de 2006).
1083
Como notam Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 700 e já foi por nós salientado,
existe aqui um desvio face ao regime geral da cessão de créditos, porquanto o penhor de créditos sem
notificação ao devedor do crédito empenhado ou sem a sua aceitação não produz qualquer efeito, quer
entre as partes, quer relativamente ao devedor do crédito empenhado (no mesmo sentido, Vaz Serra, in,
Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 180 e Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., pág. 545 e Direito das
garantias cit., pág. 250). Contra, Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 37 e 38, entendendo que a notificação
desempenha, no penhor de créditos, a mesma função do desapossamento, no penhor de coisas, muito
embora a natureza imaterial do crédito implique evitar que o solvens possa exigir o cumprimento da
obrigação, pelo que o penhor de créditos “apenas se perfecciona com a combinação de um elemento
negocial e de um elemento externo que respeita à manifestação da existência da oneração do crédito,
atenta a necessidade de proceder a uma exteriorização da vicissitude oneradora ocorrida ao nível do
direito de crédito para permitir concatenar e tutelar os interesses dignos de protecção, em especial, os do
devedor e, também, os dos demais credores concorrentes”, não impedindo “a produção de efeitos durante
o iter formativo em relação ao devedor, na medida em que este tome conhecimento da garantia. Nesse
momento, deixa de existir razão para tutelar o interesse prevalecente do devedor, pelo que os efeitos do
penhor-garantia começam a produzir-se na medida desse conhecimento, o que exclui os efeitos que se
devam produzir em relação a terceiros, como seja, a atribuição de preferência creditória” (em suma, o
Autor admite, ao menos implicitamente, que a notificação ou aceitação por parte do terceiro devedor seja
apenas condição de eficácia do penhor face a terceiros) e também Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 150
e 151 (destacando como “o penhor de créditos é um contrato consensual, cabendo à notificação a tarefa
de lhe conferir, digamos, relevância externa relativamente a terceiros (…) a notificação e a aceitação
são pressupostos lógicos da preferência”).
1084
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 180, especialmente nota 7, Menezes Leitão,
ob. cit., pág. 284 e Rubino, Il pegno cit., pág. 232, reconhecendo a eficácia desse pagamento entre o
devedor do crédito empenhado e o seu credor, advertindo, porém, para a indispensabilidade de assegurar
ao devedor do crédito empenhado, quando o credor pignoratício se satisfaça com o valor desse crédito,
um direito de regresso contra o seu credor baseado no enriquecimento sem causa (se assim não for, este
último aproveitar-se-ia duas vezes do seu crédito e o devedor desse crédito teria que o liquidar igual
número de vezes).
280
constituição da garantia (cfr. n.º 2 do art.º 583.º, aplicável por remissão do n.º 3 do art.º
681.º).
Como se percebe, não é indiferente estabelecer que a notificação ou aceitação é
uma conditio sine qua non para o surgimento do penhor ou, pelo contrário, afirmar que
tais formalidades apenas condicionam a concessão do direito de preferência: no
primeiro caso, o direito não surge senão após o preenchimento de tais requisitos; no
segundo, o penhor nasce do acordo das partes, independentemente do cumprimento
daqueles ónus, mas só é invocável perante terceiros, nomeadamente outros credores do
devedor pignoratício, depois de ocorrer a notificação ou a aceitação.
Não falta que, indo mais longe, assegure que a notificação ou a aceitação – ou
melhor, o direito de preferência delas decorrente para o credor pignoratício – não são
essenciais ao surgimento do direito de penhor, podendo ser consideradas como um
efeito meramente reflexo ou eventual deste.1085
1085
É a posição de Ruscello, ob. cit., págs. 55 segs.. Procurando sintetizar a posição do Autor, diremos
que ela se baseia no facto de considerar como ratio do art.º 2800.º do CCI – preceito que impõe a
notificação ao terceiro devedor ou a sua aceitação – a protecção do credor pignoratício (tanto no
confronto com os demais eventuais credores, como relativamente ao terceiro devedor) e apenas
indirectamente dos demais credores, pelo que o simples acordo de garantia produz efeitos mesmo com
respeito ao terceiro devedor, embora limitados (nas palavras do Autor, “prima della notificazione o
dell’accettazione di data certa, la situazione del creditore pignozatizio viene in ogni caso tutelata anche
nei confronti dei terzi; ma è una tutela, se si vuole, mionre, perché non può tener conto degli interessi
meritevoli di tutela di tereze persone, nei confronti delle quali – si ribadisce – il pegno pur sempre ha
effetto). No que respeita à notificação, a sua omissão não impede a transferência do crédito por via de
cessão, pelo que, por maioria de razão, não deve obstar ao penhor de créditos; no que concerne à
aceitação, ou o terceiro devedor é parte no negócio ou intervém nele (e não fará sentido falar de eficácia
externa, apenas, quando muito de aceitação) ou, pelo contrário, não toma conhecimento dele (e apenas
será necessária a aceitação quando o terceiro devedor seja titular de um crédito contra o devedor
pignoratício e pretenda fazer valer a compensação - cfr. art.º 2805.º do CCI - mas apenas se a
reciprocidade dos créditos ocorrer em momento anterior ao da constituição do penhor, mesmo que este
ainda não tenha sido notificado ou aceite, pelo que se comprova que já antes da notificação ou aceitação o
penhor de créditos produziu efeitos face a terceiros). Aliás, sempre segundo o mesmo Autor, tal posição é
confirmada pelo já mencionado art.º 2800.º do CCI, na medida em que este pressupõe a existência de um
penhor de créditos já constituído, sendo este direito já constituído que vai, posteriormente, ser notificado
ou aceite, pelo que a prelação não faz parte do momento fisiológico do direito de penhor (que medeia
entre o acordo das partes e o vencimento do crédito garantido, período durante o qual o credor
pignoratício é já titular de direitos e deveres), mas tão somente do seu momento patológico (a partir do
momento em que exista incumprimento da obrigação garantida), quando já existam determinados direitos
e deveres, ou seja, “La prelazione, cioè, affinché possa nascere, necessita di un fatto legittimante: la
costituzione del pegno di crediti. È il pegno di crediti, dunque, il pressuposto della prelazione, e non
viceversa”. O citado Autor responde ainda (cfr. pág. 87 e segs.) à objecção segundo a qual um direito de
penhor sem preferência seria privado de qualquer conteúdo ou relevância, porquanto a garantia real teria
por efeito precisamente romper com a regra da par conditio creditorum, pois entende que esta regra
significaria que, antes da execução, todos os credores se encontram na mesma situação e, depois daquele
momento, devem concorrer proporcionalmente ao produto da venda. Se assim é, naquele primeiro
momento a posição do credor pignoratício difere da dos credores quirografários por força no direito-dever
que lhe assiste de cobrar os juros e o próprio crédito recebido em penhor (e, por força do exercício de tais
faculdades não submetidas à notificação ao terceiro devedor, este último vem a tomar conhecimento da
constituição do penhor, conhecimento este que deverá ser equiparado, para efeitos do nascimento da
preferência pignoratícia, à notificação ou à aceitação por parte do terceiro devedor); já no momento da
execução, o credor pignoratício tem o poder de requerer a adjudicação do crédito empenhado ou, se ainda
não se encontrar vencido, a sua venda (cfr. art.º 2804.º), sendo que em qualquer dos casos terá o terceiro
devedor de ser intimado judicialmente para pagar, notificação esta que levará ao conhecimento deste
último a existência da garantia pignoratícia, assim fazendo surgir o direito de preferência (concluindo, em
conformidade, que a notificação ou a aceitação por parte do terceiro devedor “non sono gli unici
strumenti per il sorgere della prelazione ma (…) soltanto i mezzi che consentono una conoscenza legale
come di norma.”).
281
A notificação não se encontra sujeita a qualquer forma específica – pelo que não
terá de ser necessariamente efectuada por escrito – e pode ser operada, não só pelo
empenhador, como também pelo credor pignoratício.1086
Por outro lado, a comunicação poderá ser levada a cabo judicial ou
extrajudicialmente e, não se exigindo notificação escrita nem data certa, podendo até ser
tácita; contudo, havendo vários devedores solidários, todos eles deverão ser avisados da
constituição da garantia (sob pena de, fazendo-se a notificação apenas a alguns deles,
somente o crédito contra esses se terá por eficazmente empenhado).1087
Todavia, alguns ordenamentos têm vindo a admitir, ao menos em determinados
casos, a constituição de um penhor sobre créditos sem necessidade de notificação do
devedor do crédito empenhado: foi o que sucedeu em França,1088 com a aprovação da
chamada Loi Daily (Lei n.º 81-1, de 2/1/1981 e do D.N. 81-862, de 9/9/1981) que previa
a criação de um documento (“bordereau”) transmissível de representação do crédito,
constituindo-se o penhor sobre esse crédito – quer entre as partes, quer relativamente a
terceiros - na data indicada nesse documento (actualmente, este regime foi incorporado
no Código Monetário e Financeiro).1089
1086
Neste sentido e apesar do silêncio da lei a este respeito, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 184
e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 700. Porém, García Vicente, La prenda cit., pág.
112 e segs., adverte que a notificação por parte do credor pignoratício não basta, carecendo de ser
realizada conjuntamente com o empenhante ou, pelo menos, juntar declaração atestando a autorização
deste (ou o próprio contrato de penhor), uma vez que para o devedor do crédito onerado o credor
pignoratício é um estranho, razão pela qual importa comprovar junto do seu credor a veracidade da
declaração do credor pignoratício. Aranda Rodríguez, ob. cit., pág. 157 e segs., entende que a notificação
poderá ser efectuada pelo empenhante (por qualquer forma – mesmo oralmente – sendo esta a forma mais
segura de levar ao conhecimento do devedor do crédito onerado a constituição da garantia, assim se
destruindo qualquer presunção de ignorância do negócio), pelo credor pignoratício, mas apenas desde que
observados determinados requisitos (ou seja, desde que sejam apresentados documentos que comprovem
a existência do crédito garantido e a constituição da garantia: sem a apresentação de tais documentos, não
será possível vincular o devedor do crédito empenhado, uma vez que este “no puede estar seguro de la
celebración del contrato, porque cualquiera puede presentarle una comunicación semejante”), mas não
por qualquer terceiro estranho ao negócio de garantia (uma vez que não parece razoável “que puede ficar
obligado frente a una persona que no es su acreedor, porque alguien le comunique que ha tenido lugar
una cesión. Se afirma que no bastan meros rumores, sino que es necesario que la noticia sea creíble y
segura”).
1087
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 185, Pires de Lima e Antunes Varela, ob.
cit., Vol. I, pág. 700 e Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 34. Em face do direito italiano, Albina Candian, Le
garanzie cit., pág. 321, também não considera imperativo que a notificação seja efectuada através de
oficial judiciário, bastando uma qualquer comunicação seguida de um acto de aceitação com data certa.
1088
Em Itália, Ruscello, ob. cit., págs. 45 e 46, dá conta que a desnecessidade de notificação do devedor
do crédito empenhado que constava do Código de Comércio Italiano, entretanto revogado.
1089
Mais concretamente nos art.ºs L313-23 a L313-29-1 (e regulamentados pelos art.ºs R313-15 a R313-
18 do mesmo Código). Todavia, o âmbito de aplicação da garantia (cfr. art.º L313-23) é mais restrito do
que à primeira vista possa parecer, uma vez que apenas se aplica às cessões ou penhores constituídos para
assegurar financiamentos concedidos por estabelecimentos de crédito, por pessoas colectivas de direito
público ou privado ou pessoas físicas (nesta última hipótese, apenas se no exercício da respectiva
actividade profissional) e tendo por objecto créditos que qualquer deste sujeitos disponha face a terceiros
(pessoas colectivas de direito público ou privado ou pessoas físicas - nesta última hipótese, apenas se no
exercício da respectiva actividade profissional), podendo tratar-se, não apenas de créditos líquidos e
exigíveis (ainda que a termo), mas igualmente resultantes de um acto previamente celebrado ou a celebrar
cujo montante e exigibilidade não se encontrem ainda determinados (art.º L313-23). Por outro lado, o
documento apenas é transmissível a outro estabelecimento de crédito (art.º L313-26). Conforme já
resultava do regime anterior, a garantia considera-se constituída – quer entre as partes, quer face a
terceiros – no momento da entrega do documento (rectius, na data constante do documento na data da sua
entrega), independentemente da data de nascimento, vencimento ou exigibilidade dos créditos
empenhados: a partir dessa data, o cliente do estabelecimento de crédito mutuante não pode, sem o acordo
deste último, modificar a extensão dos direitos relativos aos créditos empenhados (art.ºs L313-23 e L313-
282
A particular modalidade de desapossamento que caracteriza este tipo de penhor
permite, mesmo sem recorrer à figura do terceiro depositário, a constituição de vários
penhores sucessivos sobre o mesmo crédito, sendo a graduação recíproca fixada pela
data da notificação ou da aceitação do devedor do crédito empenhado1090 ou, quando se
encontrem sujeitos a registo, da data da respectiva inscrição.
Com efeito, quando um crédito previamente dado em penhor seja novamente
empenhado,1091 bastará a notificação do primeiro credor pignoratício – por parte do
credor ou do titular da nova garantia - para que este possa ser reputado detentor também
em nome do segundo credor pignoratício, não substituindo esta comunicação a outra a
efectuar ao devedor do crédito empenhado.1092
27). Por outro lado, a entrega do documento implica a transferência, de pleno direito, das garantias e dos
acessórios inerentes a cada um dos créditos empenhados e a sua oponibilidade a terceiros sem
necessidade de qualquer outra formalidade (art.º L313-27). O documento deve conter uma série de
indicações (art.º L313-23), de entre as quais avulta a obrigatoriedade de identificação dos créditos
empenhados ou, pelo menos, dos elementos que permitam essa identificação (tais como a menção do
devedor, do local de pagamento, do seu montante ou avaliação e da data de vencimento), excepto quando
se trate de créditos transmissíveis através de um procedimento informático que permita a sua
identificação (caso em que do documento apenas terão que constar o modo de transmissão do crédito,
assim como o respectivo número e montante global). Salvo convenção em contrário, o signatário do acto
de empenhamento é garante solidário do pagamento dos créditos dados em penhor (art.º L313-24). Para
proteger a integridade da sua garantia, o estabelecimento de crédito portador do dito documento pode
impedir, através de simples notificação (a efectuar nos termos do art.º R313-15), o devedor do crédito
empenhado de pagar ao seu credor-signatário do “borderau” (com a consequência de, após essa data,
apenas o pagamento efectuado ao estabelecimento de crédito ser considerado liberatório - art.º L313-28).
1090
Como salientam Mestre, Putman e Billiau, ob. cit., pág. 256, se o elemento característico do
desapossamento no penhor de créditos é a perda de determinados poderes, relativamente ao bem
empenhado, por parte do constituinte da garantia, nada impede a concessão de um penhor possa recair
apenas sobre uma parte do crédito, deixando outra livre (seja para a empenhar novamente a favor de outro
ou do mesmo credor, seja para a ceder), retirando um ulterior argumento a favor desta possibilidade da
admissibilidade legal da cessão parcial de créditos. Para Ruscello, ob. cit., págs. 99 e segs., em caso de
conflito de vários direitos sobre o crédito empenhado, quando o mesmo crédito seja dado em penhor mais
do que uma vez e nenhum deles tenha notificado o terceiro devedor, prevalecerá aquele que o faça
primeiramente (isto quer a notificação seja condição de surgimento do penhor ou de mera oponibilidade);
se apenas um o tiver notificado, será o direito deste que prevalecerá (também independentemente dos
efeitos a atribuir à notificação); se ambos notificarem, prevalecerá o que efectuar a comunicação em
primeiro lugar (seguramente se a notificação for condição de nascimento do penhor), embora com
dúvidas no caso de a notificação ou aceitação serem erigidas como mera condição de surgimento do
direito de preferência (com efeito, nesta última hipótese, o Autor entende que a prova da anterioridade e
da data certa da notificação, da aceitação ou de qualquer outro modo de conhecimento por parte do
terceiro devedor apenas relevará quando, no procedimento de venda executiva do crédito empenhado,
surjam diversos credores pignoratícios com garantia sobre o mesmo, mas já não no concurso com
credores quirografários. Pelo contrário, se o credor pignoratício cobrar o crédito empenhado e este
consista em dinheiro, o credor pode reter o montante necessário para pagamento do seu crédito, pelo que
o conhecimento efectivo da garantia faz com que o pagamento pelo terceiro devedor apenas tenha efeito
liberatório se efectuado ao credor pignoratício: ora, não faria sentido que, em sede de venda executiva,
fosse necessário comprovar a data certa da aceitação ou notificação, pois estaríamos a tratar de modo
diverso situações idênticas – para além disso, antes da proceder à venda é sempre necessário intimar o
terceiro devedor).
1091
A este propósito, o Código Civil Brasileiro (cfr. art.º 1456.º), depois de impor ao devedor do crédito
empenhado o dever de pagar ao credor pignoratício preferente (ou, caso tenha dúvidas acerca do credor
prioritário, consignar em depósito a prestação), impõe a este a obrigação de, uma vez notificado por
algum dos demais credores, promover a cobrança (sob pena de, não o fazendo, responder civilmente por
perdas e danos perante todos os demais credores).
1092
Assim, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 184, justificando a necessidade de notificar o
primeiro credor pignoratício com o intuito de tutelar o interesse do segundo credor pignoratício em evitar
que o primeiro proceda ignorando o seu direito (designadamente cobrando o crédito, pagando-se e
entregando o excedente ao empenhador). A notificação, prossegue o mesmo Autor, apenas será de
283
Pelo contrário, será de descartar, como requisito indispensável para a
constituição do penhor de créditos, a entrega do documento que constate a respectiva
existência,1093 embora esta exigência resulte de alguns diplomas legais estrangeiros,1094
embora pareça que a tendência mais recente aponte no sentido da desnecessidade de
cumprimento desta formalidade.1095
A posição oposta repousa na consideração da entrega do documento como meio
de publicitação do penhor e mecanismo de prevenção de fraudes, na medida em que o
empenhador, conservando o documento em seu poder, poderá fazer crer que o crédito
não se encontra onerado e, por outro lado, constituir novos penhores sobre o mesmo
bem,1096 funcionando aquela entrega como modo de evitar que o constituinte do penhor
possa reclamar o pagamento do crédito onerado.1097
284
Um outro argumento radica na atribuição de um carácter constitutivo à entrega
do bem e aos desideratos visados pela mesma (sujeição do bem ao poder imediato do
credor pignoratício e desapossamento do empenhante, mas não uma função publicitária
strictu sensu, apenas uma publicidade negativa) os quais não poderão ser alcançados, no
penhor de créditos, através da notificação ao terceiro devedor do crédito cedido, pelo
que cumprirá efectuar a entrega do documento comprovativo do crédito empenhado, a
qual desempenhará funções análogas à entrega do próprio quid onerado. 1098
Ora, a entrega não elimina o risco de fraude que supostamente pretende evitar,
dado que o credor pignoratício pode desconhecer a existência do documento e, noutra
ordem de considerações, poderia o empenhador entregar ao credor pignoratício uma
certidão e exibir a terceiros o original,1099 assim praticando a fraude que a entrega
pretensamente acautelaria.
Por outro lado, não parece também de sufragar o entendimento segundo o qual a
entrega do documento funcionaria, para o penhor de créditos, do mesmo modo que a
entrega do bem opera para o penhor de coisas:1100 esta posição pode contrapor-se que o
documento – ao contrário da coisa – não constitui o objecto da garantia pignoratícia.
deverá ser remetido o original). Todavia, mesmo no direito francês anterior à reforma de 2006 este
entendimento não era pacífico, a ele se opondo, por exemplo, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 93 e
94, considerando a exigência de entrega do título injustificada, por carecer de fundamento legal (no
mesmo sentido, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 234) e por, a partir da data da notificação
do penhor ao devedor do crédito empenhado, ser o credor pignoratício quem se encontra legitimado,
mesmo face a terceiros, para fazer valer o crédito empenhado, o qual deixa de estar à disposição do
constituinte da garantia, concluindo ser indiferente a detenção material do título, por não provar que o
crédito empenhado se encontra fora da disponibilidade do constituinte (conquanto reconheçam que a
entrega do título tornará as fraudes mais dificilmente praticáveis).
1097
Salienta este aspecto Théry, ob. cit., págs. 312 e 313, embora conclua pela desnecessidade de entrega
do documento ao credor pignoratício, uma vez que “la signification suffit à protéger le gagiste puisqu’un
paiment au constituant ne lui serait pas opposable”.
1098
Defende, com estes argumentos, a necessidade da entrega dos documentos, Pace, ob. cit., pág. 45 e
segs., não sem antes reconhecer a pertinência de algumas motivações invocadas pelos partidários da
opinião contrária (como sejam a insusceptibilidade de posse de um crédito, a impossibilidade de a entrega
do documento poder cumprir a mesma função da entrega do objecto do penhor – pois não é condição
necessária para o exercício do direito por parte do credor pignoratício, nem acrescenta algum novo direito
ao direito de crédito -, constituindo um simples meio de prova; que a função da entrega do bem é
cumprida, no penhor de créditos, pela notificação ao terceiro devedor do crédito dado em garantia; que a
exigência da entrega do documento será obstáculo ao penhor de créditos não comprovados
documentalmente), defende a sua tese reafirmando a ausência de uma função específica de publicidade na
entrega do bem ao credor no penhor tradicional (reconhecendo-lhe apenas a virtualidade de sujeitar o bem
onerado ao poder directo do credor), como se comprovaria pela admissibilidade da tradição simbólica, do
mesmo modo que, no penhor de créditos, a notificação do terceiro devedor do crédito empenhado também
não a teria, uma vez que não torna esta garantia cognoscível face a quaisquer outros sujeitos
(desempenhando apenas uma função de gerar a indisponibilidade do bem onerado, impedindo o
pagamento, por parte do terceiro devedor do crédito empenhado ao seu credor): ora, para assegurar aquela
publicidade e a tutela de terceiros, no penhor de créditos, o legislador optou por “estendere il requisito del
posesso, per mezzo di documento, anche ai crediti. Il terzo, che contrata col creditore pignorante, poichè
il documento non è più nelle mani di quest’ultimo, ha modo di accertarsi della non appartenenza del
diritto o del vincolo di destinazione che grava sul credito. Se bastasse la sola notifica, il titolare del
credito potrebbe cederlo e disporne in genere come libero da ogni vinculo, frodando così il terzo che non
avrebbe modo di accertarsi della vera entità del diritto ceduto. Invece, perché v’è un obbligo alla
consegna del documento, il terzo, che ha diritto all’esibizione ed alla consegna di esso, ha modo di
accertarsi della esistenza di vincoli sul credito, qualora il titolare non possegga il documento stesso”).
1099
Outra hipótese de fraude ocorreria quando o credor exibisse a terceiros uma certidão (por exemplo
alegando ter perdido o original).
1100
Como salienta Ruscello, ob. cit., pág. 155 e segs., estas posições fundam-se na unidade estrutural do
penhor de créditos e de coisas, funcionando naquele a entrega do documento comprovativo do crédito
como a entrega da coisa empenhada neste último. Todavia, o Autor repudia esta conclusão, argumentando
285
Um outro argumento, porventura mais persuasivo, baseia-se na consideração da
necessidade de entrega dos documentos ao credor pignoratício como uma aplicação ao
penhor de créditos da previsão genérica, ditada a respeito do penhor de coisas, da
admissibilidade de constituição do penhor - não só pela entrega da coisa empenhada -
através da entrega dos documentos que confiram a sua exclusiva disponibilidade (cfr.
art.º 669.º, n.º 1).
Contudo, tal raciocínio é contestável, sobretudo tendo em conta que a entrega do
documento não assume, no penhor de créditos, a mesma importância e as mesmas
funções desempenhadas pelo desapossamento no penhor de coisas, nomeadamente
porque estas últimas são (ou, pelo menos, pretendem ser) desempenhadas, no penhor de
créditos, pela notificação ao devedor do crédito empenhado.1101
Acresce que exigir a entrega dos documentos como condição do nascimento (ou
da eficácia) do penhor, equivaleria a negar a possibilidade de colocação em penhor de
todos os créditos não munidos de suporte documental.1102
Quando muito, a entrega do título revestir-se-ia de algum interesse quando o
direito a empenhar fosse um crédito contra pessoa indeterminada, em razão da
impossibilidade de identificar um devedor a quem notificar a constituição da
garantia.1103
que a entrega do documento comprovativo do crédito empenhado (cfr. art.º 2801.º) - ao contrário do art.º
2786.º, em matéria de penhor de coisas – pressupõe, lógica e cronologicamente a constituição do penhor.
1101
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., págs. 232 e 233, acrescentando ainda que no penhor de coisas
corpóreas a entrega do documento apenas pode substituir a entrega da coisa quando o documento confira
a exclusiva disponibilidade da coisa, o que normalmente não acontecerá no penhor de créditos. Por seu
turno Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 156, sentenciam que as formas de constituição do penhor (in casu a
notificação ou a aceitação) são estabelecidas com intuitos publicitários, sendo que a publicidade
resultante da entrega de um documento meramente probatório é muito reduzida ou mesmo nula. Em
sentido análogo Faggella, ob. cit., pág. 103 e segs., assegurando que a entrega do documento não produz a
transferência do ius possessionis - podendo funcionar tão somente como prova dessa mesma transferência
– a qual consiste na transmissão, através de uma declaração de vontade, da faculdade de exercício do
direito (considerando que a notificação ao devedor do crédito empenhado não opera, por si só, a essa
transferência e, mais ainda, não é sequer um elemento essencial do direito real de penhor, nem tão pouco
da preferência a ele associada, mas apenas uma formalidade destinada a evitar que o notificado pague ao
constituinte da garantia), resultando dessa transferência um conjunto de obrigações (como sejam a prática
de actos de conservação do direito e a cobrança dos rendimentos e juros periódicos) e direitos (tais como
proceder à cobrança do crédito empenhado) para o credor pignoratício. Em termos concordantes,
Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 546, constatando que a entrega do documento não faz com
que o constituinte perca o poder sobre o crédito (objectivo alcançado apenas pela notificação),
desempenhando uma função publicitária muito limitada (não impedindo necessariamente o credor, que
pode possuir outros títulos, de dar em penhor o mesmo crédito a outros credores), Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs. 234 a 236 e 255 (ressaltando que, em matéria de penhor de créditos, o
verdadeiro desapossamento reside na impossibilidade jurídica do devedor do crédito garantido receber o
pagamento do seu devedor, efeito este que não resulta da posse do título, mas antes da notificação, desde
que esta respeite as exigências legais e alcance o seu destinatário), Théry, ob. cit., pág. 312 (constatando
que da entrega do título não resultará qualquer segurança acrescida para o credor – supostamente por
evitar que o constituinte pudesse reclamar o pagamento – e para os outros credores – impedindo o
devedor de constituir novos penhores – por a notificação ser suficiente para proteger o credor – tornando
o pagamento ao constituinte inoponível – e não se concebendo o porquê da sujeição da validade de uma
garantia à protecção de terceiros) e Weil, ob. cit., pág. 84 (sustentando que a detenção do título pelo
credor pignoratício não coloca o crédito empenhado fora da domínio do constituinte, não é visível para
terceiros e, por último, não constitui uma garantia suficiente para o credor pignoratício, uma vez que a
entrega do título não chegará ao conhecimento do devedor do crédito empenhado, pelo que este poderá
pagar ao seu credor).
1102
Salientam este aspecto Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 94, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés
cit., pág. 546 e Marques de Carvalho, ob. cit., pág. 68.
1103
Enfatizando este aspecto Théry, ob. cit., pág. 313.
286
Em face do exposto, a entrega dos documentos constatando da existência do
crédito empenhado funcionará apenas como uma obrigação decorrente do vínculo
contratual, caso esse documento exista, esteja em poder do empenhador e este não tenha
qualquer interesse legítimo na sua conservação (cfr. art.º 682.º),1104 justificável pelo
facto de, não raras vezes, o credor pignoratício carecer desses comprovativos para o
exercício dos direitos resultantes do penhor.
A terminar este percurso pelo penhor de créditos, merece especial atenção a
dação em penhor de um crédito garantido com fiança, especialmente quando a
constituição da garantia não for – como não tem que ser – notificada ao fiador.1105
VAZ SERRA1106 sustenta que, enquanto esta notificação não ocorrer (ou o
penhor não chegue ao conhecimento do fiador de outro modo), o fiador se poderá
liberar pagando ao empenhador, adquirindo um crédito contra o devedor principal,
sendo o penhor sobre o crédito ineficaz relativamente ao fiador. No entanto, o penhor
não se extingue, porquanto o credor pignoratício mantém intactas as suas pretensões
contra o devedor principal.
Menção separada merece a constituição de penhor sobre títulos de crédito,1107
1108
muito embora seja legítima a interrogação acerca do objecto da garantia, ou seja, se
1104
Neste sentido, Ruscello, ob. cit., pág. 38, nota 70, tendo em conta que o art.º 2801.º do CCI estabelece
esta obrigação em termos mais amplos, afirmando tout court que o constituinte tem o dever de entregar os
documentos comprovativos ao credor pignoratício. Para este Autor (vide pág. 158 e segs.), a entrega do
documento probatório assume uma função cautelar - de modo a permitir a cobrança, atribuição ou venda
do crédito recebido em garantia – (em termos idênticos Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 155, entendem que
as funções associadas à entrega do documento são permitir ou facilitar a cobrança e a venda do crédito
empenhado pelo credor pignoratício) recondutível a um mais amplo dever de cooperação do devedor, não
só para com o credor pignoratício (além de funcionar como meio de prova, permitir-lhe-á aquilatar com
precisão a consistência da garantia recebida, para além de a sua apresentação ao terceiro devedor –
nomeadamente em caso de cobrança do crédito empenhado - demonstrar a qualidade em que age e, ainda,
evitar actos passíveis de defraudar a sua garantia, tais como cessões ou novos penhores sobre o mesmo
crédito), como também para com o terceiro devedor (podendo concorrer para criar um situação de
aparência de titularidade idónea, suficiente para justificar o cumprimento liberatório nas mãos do credor
pignoratício, quando este proceda à cobrança do crédito empenhado). Deste dever de cooperação poderão
brotar ainda outros efeitos, como sejam a limitação dos poderes de disposição do devedor que, apesar de
permanecer titular do crédito empenhado, apenas poderá levar a cabo actos de disposição que não afectem
a garantia do credor pignoratício (assim, se um penhor posteriormente constituído, mas primeiramente
notificado, prevalecer sobre outro penhor anteriormente constituído, o titular deste último tem o direito de
exigir a prestação de uma nova garantia ou, em alternativa, exigir imediatamente o cumprimento da
obrigação assegurada, para além de uma indemnização pelos danos causados).
1105
De acordo com Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 197, mesmo que apenas tenha sido
notificado o devedor principal (e não o fiador), o penhor considera-se constituído, não apenas sobre o
crédito do empenhador perante aquele, mas também sobre o crédito contra o fiador, em razão do carácter
acessório da fiança.
1106
Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 197.
1107
Importa não confundir o penhor de títulos de crédito propriamente ditos com o penhor de títulos
representativos de mercadorias, cuja empenhabilidade se rege pelas normas do Código Comercial, ou
seja, equiparando a entrega do título à entrega da coisa.
1108
Apesar da existência de normas específicas quanto à colocação em penhor de títulos de crédito, que
exigem a actuação sobre o título, poderá questionar-se se a garantia se poderá constituir nos termos do
regime geral do penhor. A este respeito, Frederico Martorano, Titoli di credito, in Trattato di diritto civile
e commerciale (diretto da Antonio Cicu, Francesco Messineo e Luigi Mengoni), Giuffrè, 2002, pág. 719 e
segs., sustenta que a questão releva sobretudo para efeitos da eventual concessão de um direito de
preferência pignoratícia a um penhor não actuado sobre o título, entendendo que a resposta deve, à
partida, ser positiva, porquanto a actuação sobre o título apenas relevará para efeitos cartulares. Assim,
quanto aos títulos ao portador, a constituição do penhor sem entrega do título ao credor é admissível
(embora, uma vez que a exibição do documento é essencial para o exercício dos direitos cartulares, o
credor não possa cobrar o crédito, apesar de gozar de um direito de preferência sobre o produto da venda
do título: para superar este obstáculo, o Autor sugere a cobrança conjunta em caso de composse ou, em
287
o direito recai sobre o título propriamente dito (hipótese em que se deverá considerar
como um penhor de coisas) ou antes sobre o crédito por ele representado (caso em que
será de qualificar como penhor de créditos).
A distinção releva, não só mas também, ao nível da própria constituição da
garantia, na medida que, como resulta da exposição anterior, as formalidades a observar
não são coincidentes no penhor de créditos e no penhor de coisas.1109
A tese maioritária, entre nós, parece ser a que propende para a classificação do
penhor de títulos de crédito como um penhor do crédito incorporado no título,1110 muito
embora tal não signifique, necessariamente, a exclusão – ao menos no que respeita à
alternativa, a concessão de um mandato ao terceiro depositário para proceder a essa cobrança, com
obrigação de devolver o montante cobrado ao credor pignoratício), o mesmo acontecendo com o penhor
constituído sobre um título à ordem através da entrega de um título “não girado” (salvaguardado o facto
de poderem ser opostos ao credor as excepções pessoais do dador de penhor) e ainda no que concerne ao
penhor sobre títulos nominativos criado com a simples entrega do título sem averbamento do vínculo no
registo do emitente (recusando que tal mecanismo se traduza num desapossamento para efeitos da lei civil
– porquanto não impediria o devedor de requer a mudança do nome do beneficiário a favor de um terceiro
ou de emitir um novo título – e considerando, pelo contrário, que o credor pignoratício na posse do título
poderá sempre solicitar o averbamento do título, a seu favor, no registo do emitente, assim se legitimando
para o exercício dos direitos cartulares, concluindo que, verdadeiramente, apenas existirá constituição de
penhor sobre títulos nominativos sem actuação sobre os mesmos quando o desapossamento do devedor
prescinda da entrega ao credor, nos mesmos termos e com os mesmos efeitos descritos a propósito dos
títulos ao portador). Contra, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 51 e 52, (considerando que um penhor
constituído através da entrega do título, mas sem “girata” ou sem averbamento no registo do emitente não
dá origem a um penhor, mas antes um mero direito de retenção entre as partes), Pierpaolo Marano, ob.
cit., págs. 118 e 119 (afirmando que a inobservância das formalidades cartulares não prejudica a válida
constituição inter partes da garantia, mas apenas a respectiva oponibilidade a terceiros) e Lorenza Bullo e
Claudia Sandei, Pegno di azioni e quote sociali, in Il pegno nei rapporti commerciali, Giuffrè, 2005, com
direcção de Paolo Cendon, págs. 56 a 65 (para quem, em tal caso, estaremos perante um contrato
inominado tendo por objecto o direito do credor reter o bem e receber os frutos do bem onerado, enquanto
o devedor tem a obrigação de colaboração – passível de execução específica - traduzida no cumprimento
das formalidades necessárias para transformar e completar a fattispecie num direito real).
1109
A questão assume menor importância no direito brasileiro, uma vez que o próprio Código Civil
contém um regime específico para a constituição de penhor sobre títulos de crédito, determinando os
art.ºs 1458.º e segs., que o mesmo se constitui através de documento público ou particular ou, em
alternativa, através de endosso (para os títulos nominativos), sendo a entrega do título indispensável para
os títulos ao portador e sem prejuízo, em qualquer caso, da necessidade de registo do contrato para que a
garantia produza efeitos face a terceiros. Este regime, segundo Washington de Barros Monteiro, ob. cit.,
pág. 382, serve de suporte igualmente para o penhor de acções, o qual se funda num contrato escrito –
contendo a perfeita identificação dos bens onerados, através da menção da respectiva quantidade, número
de ordem, espécie, forma e sociedade emitente – acrescido da inscrição no registo de acções nominativas
da sociedade (no caso de acções nominativas) e da instituição gestora do sistema (no caso de acções
escriturais).
1110
Adoptam este segundo entendimento, entre outros, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 187 e
188, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 140, nota 457 e Menezes Leitão, Garantias cit., págs. 287 e 288).
Também em Espanha e de acordo com Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 95 a 98, é esta a tese
dominante, argumentando que “si en la base de todo título-valor hay un crédito, que es la sustancia
económica de éste, y la prenda es un derecho de satisfación preferente erga omnes sobre el valor
económico de la cosa dada en garantía, parece claro que el objeto de la prenda de títulos-valores debe
ser el derecho y no el título que lo representa” (embora o Autor se incline para uma posição mais
mitigada, considerando que, embora o objecto deste penhor seja um crédito, o facto de este se encontrar
representado por um título valor conduz a que estejamos perante “un tipo híbrido de prenda al que, a
falta de regulación específica, se le debe aplicar un régimen jurídico mixto. Para su constitución, se
utilizarán fundamentalmente las normas que le sean proprias, y, subsidiariamente, algunos preceptos de
la prenda de cosas. Su contenido, se regirá, además de por sus normas específicas, fundamentalmente,
por reglas tomadas de las normas aplicables a la prenda de créditos. Y por último, su ejecución se regirá
la mayor parte de las veces por normas proprias”).
288
constituição da garantia – das regras relativas ao penhor de coisas, sobretudo tendo em
conta as particularidades e o modo de circulação de alguns dos títulos.
Todavia, em Itália, o entendimento prevalecente é o contrário, qualificando o
penhor de títulos de crédito como um penhor de coisas,1111 muito embora se reconheça
que a disciplina prevista para este deva sofrer adaptações tendo em conta, por um lado,
o carácter instrumental dos títulos de créditos e, por outro, o regime específico de
circulação de cada uma das categorias de títulos de crédito.1112
A nosso ver, cumpre relativizar a relevância da natureza jurídica do penhor de
títulos de crédito, atendendo ao facto de a lei ser normalmente explícita na consagração
de um regime legal para cada uma das modalidades que aqueles títulos podem assumir,
o qual atende às particularidades das formas de representação e circulação de cada um
deles, razão pela qual a mencionada questão dogmática assumirá carácter residual,
relevando unicamente nas escassas hipóteses que aquela regulamentação espacial não
alcance.
Importa, por isso, considerar separadamente, em ordem a determinar o modo de
constituição da garantia pignoratícia, as diversas modalidades de títulos de crédito,1113
embora cientes que tal análise não permite uma cabal delimitação do regime aplicável à
dação em penhor dos títulos de crédito, uma vez que não prejudica a aplicação
subsidiária do regime geral civilístico do penhor1114 e não deve ignorar que o
1111
Vários Autores atestam este panorama, como Gustavo Minervini, Sistema monti titoli e pegno di titoli
di credito, in BBTC, 1990, Tomo I, pág. 145 e segs., Gaspare Spatazza, Pegno, usufruto, sequestri e
riporto delle azioni, in Rivista delle societè, 1971, pág. 674 (embora mencione ser também muito
difundida a posição que advoga tratar-se de um penhor misto, comungando de aspectos do penhor de
coisas e de créditos) e Gabrielli, I negozi costitutivi cit., págs. 158 e 159, considerando este último que o
objecto do penhor de títulos de crédito é o título em si, pelo que a constituição da garantia pressupõe a
entrega do mesmo (todavia, o mesmo Autor sustenta que a observância das formalidades cartulares não
dispensa a existência de um documento com data certa, contendo a suficiente indicação do crédito
assegurado, embora ressalve a possibilidade, no endosso do título, se efectuar uma suficiente indicação do
crédito e da respectiva causa). Particularmente incisivo na defesa desta posição é Frederico Martorano,
ob. cit., pág. 707 e segs., alegando ser a mesma confirmada pelo direito positivo, na medida em que este
reconhece ao credor pignoratício a possibilidade de exercer o seu direito cartular sem que lhe sejam
oponíveis as excepções que eventualmente possam ser opostas ao empenhante (não apenas nos títulos ao
portador, mas igualmente nos títulos nominativos, nos quais resulta do próprio documento que a
atribuição da posse não decorre da transferência da propriedade do título), pelo que “se l’autonomia della
posizione del portatore attuale, daquella del portatore precedente trova la sua spiegazione nell’essere
l’acquisto della posizione soggettiva attiva dal titolo, l’inopponibilità, a chi esercita la pretesa cartolare
come creditore pignoratizio, delle eccezioni personali al datore del si spiega solo in quanto la
costituzione del pegno «attuata sul titolo» comporta l’acquisizione di un diritto di garanzia «sul
documento»”. Estas posições ancoram-se, desde logo, no art.º 1997.º do CCI, o qual dispõe que o penhor
e qualquer outro vínculo sobre um direito mencionado num título de crédito ou sobre as mercadorias por
ele representadas não produz efeitos se não se efectivam sobre o título.
1112
Realça estes aspectos Frederico Martorano, ob. cit., pág. 709 e segs., para quem a natureza
instrumental do título determina a possibilidade de o credor pignoratício gozar do bem empenhado (ao
contrário do que sucede no penhor de coisas), enquanto a execução da garantia se processará em termos
em tudo idênticos aos do penhor de créditos, atenta a peculiaridade do objecto empenhado. No que
concerne ao segundo aspecto assinalado, o regime dos títulos nominativos impõe a certificação
documental do penhor, ou seja, mais do que o simples desapossamento previsto no regime do penhor de
coisas (com a consequência de tornar inviável, neste caso, a constituição do penhor através da colocação
do bem empenhado em poder de terceiro ou numa situação de composse).
1113
Seguimos, a este respeito, muito de perto Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 188 a 196.
1114
Em face do direito italiano e não obstante a existência de regras específicas sobre a colocação em
penhor dos títulos de crédito, tal não importa a não aplicação das condições gerais do direito comum,
maxime daquela que impõe a existência de um documento escrito contendo a suficiente indicação do
crédito garantido e do bem empenhado, uma vez que o simples averbamento do vínculo sobre o título não
contém qualquer indicação do crédito garantido – neste sentido, Stefano Ambrosini, ob. cit., pág. 317,
289
anteriormente aludido fenómeno de desmaterialização de alguns deles conduziu ao
surgimento de modos alternativos de constituição da garantia sobre os mesmos.
Por último, mesmo dentro de cada categoria de títulos de créditos,
desmaterializados ou não, proliferam as regulamentações particulares para certos deles
(v.g. valores mobiliários, letras e livranças), originando uma fragmentação de regimes e
atribuindo aos modos de constituição do penhor a que se fará referência no imediato
uma natureza subsidiária.
Tratando-se de títulos ao portador e dada a maior incorporação do crédito no
título, a constituição do penhor deverá reger-se pelo disposto para o penhor de coisas,
isto é, mediante a celebração do contrato e a entrega do título.1115
Contudo, para alguns destes títulos, designadamente os títulos da dívida pública,
não falta quem sugira a necessidade de uma inscrição no registo da entidade gestora e
de um depósito daqueles títulos, tendo em conta a necessidade de evidenciar a
constituição de garantia e a situação de indisponibilidade a que tais títulos passam a
estar sujeitos em razão daquele vínculo.1116
No que respeita aos títulos à ordem, o penhor nascerá normalmente através da
entrega do título endossado com a cláusula “em garantia”, “em penhor” ou outra
equivalente1117 (sendo o endosso em branco, o titular será determinado pela posse do
Frederico Martorano, ob. cit., págs. 718 a 719, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 51 e 52, Pierpaolo Marano,
ob. cit., pág. 118 e segs. (este último Autor salienta, por um lado, que para cumprimento de tal obrigação
não basta indicar o valor do crédito garantido, sendo ainda necessária a referência à causa de onde tal
crédito provém e, por outro lado, que a mencionada formalidade terá de ser observada mesmo para os
instrumentos financeiros desmaterializados, pois do registo destes “non solo manca ogni riferimento al
credito garantito, ma non si scorge reagione per ritenere superflua tale indicazione nel nuovo sistema
della dematerializzazione”) e, aparentemente, Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., págs. 65 a 67
(embora ressalve que, relativamente aos títulos desmaterializados, esta formalidade se pode considerar
substituída pelo registo na conta do intermediário financeiro).
1115
No mesmo sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 233, Gabrielli, I negozi costitutivi cit., págs. 158,
Frederico Martorano, ob. cit., pág. 711 e segs. (fazendo assim coincidir a posse, pura e simples, com a
legitimidade cartular, pelo que as limitações aos poderes do possuidor, inerentes ao facto de este ser um
simples credor pignoratício e não proprietário, apenas podem resultar do negócio subjacente e ter efeitos
nas relações internas com o dador do penhor, em nada influenciando o poder de disposição do título, nem
tão pouco a autonomia da posição do portador a título de penhor relativamente ao devedor cartular),
Gustavo Minervini, ob. cit., pág. 146, Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 675 e, para o direito francês,
Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 90 e 91, Hardel, ob. cit., págs. 64 e 65 (embora este último noticie
que alguma jurisprudência admite, em alternativa ou cumulativamente com a entrega do título, a
notificação do devedor do crédito inscrito no título) e, mais recentemente, Aynès e Crocq, Les sûretés
2009 cit., pág. 249, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., págs. 537 e 538. e De la Santa Garcia,
Prenda de valores cit., pág. 145 (este último, particularmente enfático, afirmando que “se trata de una
mera prenda de cosas corporales con los mismos requisitos”). Entre nós, defende a mesma solução Hugo
Ramos Alves, ob. cit., pág. 155. Analogamente, para o direito alemão, do §1293 do BGB decorre que o
penhor se constituirá nos termos previstos para o penhor de cosias - Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1600, notam, porém, que ao credor
pignoratício assiste, desde a constituição da garantia, o direito de cobrança.
1116
Tal decorre, no direito italiano, da regra geral contida no art.º 1997.º do CCI, nos termos do qual o
penhor e qualquer outro vínculo sobre os títulos de crédito não produzem efeitos senão se actuarem
directamente sobre o título. Neste sentido, Maria Costanza, Valori mobiliari: titoli di stato in pegno, in
Contratto e impresa, ano 7, n.º 3 (1991), págs. 1043 a 1048. De acordo com esta Autora, apesar de
estarmos perante títulos ao portador, o respectivo regime de circulação – impondo a respectiva entrega
aos institutos de crédito, assim como dos correspondentes documentos certificativos – não torna visível a
existência de ónus, concluindo que o penhor sobre estes títulos “non potrebbe valdiamente costituirsi
senza un constestuale atto di deposito, presso il soggetto istituzionalmente deputato alla custodia dei
titoli (…) assolverebbe alla funzione di evidenziare la condizione del bene ed i limiti della sua
disponibilitá”.
1117
Consagram este modo de constituição de penhor, no ordenamento italiano, o art.º 2014.ºdo CCI (no
sentido de esta expressão não ser sacramental, vide Frederico Martorano, ob. cit., pág. 713) e o anterior
290
título), muito embora também se admita a constituição da garantia através de um
endosso pleno – não acompanhado da restrição “em garantia” – acompanhado de uma
convenção entre as partes através da qual o endossatário se obriga a utilizar o título
apenas para efeitos de garantia.1118
Contudo, esta segunda possibilidade enfrenta obstáculos de monta, quais sejam a
eventual qualificação do negócio como fiduciário1119 (especialmente em ordenamentos,
art.º 122.º, n.º 4 do Code de Commerce francês (de acordo com o qual e segundo Legeais, Les garanties
conventionelles cit., págs. 183 e 184, “l’endossement pignoratif est réalisé par l’insertion dans la formule
d’endos de la mention valuer en garantie, valeur en gage, ou de toute autre mention impliquant un
nantissement”). No direito alemão, o §1292 do BGB determina que o penhor se constitui mediante
endosso - Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit.,
pág. 1596 e segs., ressalvam que tal endosso pressupõe um acordo real (traduzido no assegurar de um
determinado crédito), o qual deve formar uma unidade juntamente com o endosso propriamente dito,
admitindo os Autores que o penhor possa surgir nos mesmos termos previstos para o penhor de coisas (ou
seja, mediante a entrega do título): contudo, alertam para o facto de a relação jurídica entre empenhante e
credor pignoratício se reger pelas normas ditadas para o penhor e não pelas disposições de direito
cambiário (o que implica, desde logo, atribuir ao credor pignoratício a faculdade de cobrar o crédito
documentado no título, mesmo que ainda não se encontre vencido - §1294 do BGB). Reconhecem
igualmente ser esta a via de constituição do penhor sobre títulos à ordem, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit.,
págs. 95 a 97 (acrescentando ser desnecessária a notificação da constituição do penhor ao devedor do
crédito empenhado - ou ao estabelecimento emitente – pois este, ao subscrever a sua obrigação,
compromete-se a pagar a qualquer pessoa que, por força de endosso, venha a ser portador regular do
título), Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 250 e Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit.,
pág. 538 (estes últimos realçam que, apesar da incorporação do direito no título, o regime aplicável não
poderá ser o do penhor de coisas corpóreas – uma vez que o portador não se encontra investido dos seus
direitos pela detenção do título, mas sim pela designação da qualidade de portador -, daí que se exija uma
forma de constituição específica, o endosso pignoratício, sem necessidade de redução a escrito).
Relativamente ao direito espanhol, Olivencia Ruiz, ob. cit., pág. 45 (destacando ser este o modo de
empenhar uma letra de crédito, reconhecendo que, deste modo, o credor pignoratício endossatário do
título se encontra protegido através dos princípios cambiários da autonomia e literalidade, ou seja, “las
personas obligadas en la letra no podrán invocar contra él las excepciones fundadas en sus relaciones
personales con el endossante (…) pero este derecho, por ser limitado a los fines de garantia, no
comprende la facultad de disponer y, en consecuencia, no podrá el acreedor pignoratício endosar, a su
vez, con plenos efectos traslativos, sino, exclusivamente, en comisón de cobranza”) e De la Santa Garcia,
Prenda de valores cit., págs. 145 e 146.
1118
Assim também Rubino, Il pegno cit., pág. 233, Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 158, Frederico
Martontano, ob. cit., págs. 713 e 714 (salientando, relativamente à admissibilidade de endosso pleno, que
as limitações decorrentes da convenção inter partes serão inoponíveis aos terceiros adquirentes de boa fé,
não assumindo qualquer relevância relativamente ao devedor cartular, tendo em conta a autonomia da
posição do credor pignoratício), Carlo Rimini, La costituzione del pegno sulla cambiale mediante girata
fiduciaria e il divieto del patto comissorio, in BBTC, n.º 51, Tomo II (1998), pág. 187) e Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1596 e segs.,
(destacando que o endosso pode assumir as vestes de endosso pleno, que se distinguirá do endosso
translativo da propriedade unicamente por força do distinto conteúdo daquele acordo real). Navarro
Chinchilla, La pignoración de la letra de cambio, in Tratado de garantias en la contratacion mercantil,
Tomo II, Vol. I., Civitas, 1996, pág. 515 e segs., salienta que esta alternativa comporta vantagens para o
endossante empenhante (que, ao não aparecer na letra qualquer menção à constituição da garantia, não vê
perturbada a possibilidade de obtenção de crédito) e para o credor (que poderá ser imediatamente
ressarcido do seu crédito, sendo apenas preferível optar pelo endosso em garantia quando o valor da letra
for consideravelmente superior ao da obrigação garantida), tendo a sua validade sido aceite pelo Supremo
Tribunal (considerando que “En ella se va a transmitir al fiduciário la propriedad del bien en garantía
del pago de una deuda, con obligación, por parte de éste, de transmitirlo a su anterior proprietario una
vez cumplida la obligación assegurada”).
1119
Consideram estes negócios como fiduciários e contrastantes com a proibição dos pactos comissórios
os Acórdãos do Tribunal de Bolonha de 18/1/1996 e de 3/12/1996 (in BBTC, n.º 51.º, Tomo II (1998),
pág. 177 e segs.. Quanto ao primeiro aspecto, afirma-se que as partes utilizam o meio (o endosso pleno)
excessivo relativamente ao desiderato visado (constituição de um penhor sobre o título), conferindo ao
endossatário o direito de dispor de modo pleno e exclusivo do título (direito este apenas temperado, no
291
como o nosso, em que admissibilidade destes negócios permanece envolta em
polémica), o eventual conflito com a proibição dos pactos comissórios1120 e os prejuízos
que pode causar a terceiros.1121
De entre os títulos à ordem, merecem referência autónoma, não apenas pela sua
relevância prática, mas igualmente pela especificidade do seu regime, as letras de
câmbio e livranças, cuja dação em penhor obedece ao disposto nos art.ºs 19.º e 77.º da
Lei Uniforme sobre Letras e Livranças,1122 aí se dispondo que a constituição da garantia
se produz com o endosso do título com a menção “valor em garantia”, “valor em
penhor” ou outra equivalente, podendo o portador do título exercer todos os direitos
constantes da letra – como a apresentação da letra ou livrança a pagamento1123 - , mas
valendo o endosso por ele efectuado apenas como endosso de procuração:1124 este
regime, aliás, não diverge substancialmente do consagrado noutros direitos.1125
plano das relações internas com o endossante, na medida em que o endossatário se comprometia a usar o
título apenas em conformidade com o fim de garantia). Já Carlo Rimini, ob. cit., págs. 185 e segs,
partindo da constatação segundo a qual o ordenamento introduz uma cisão entre a propriedade do título e
a legitimação para o exercício dos direitos cambiários (esta última transferível por simples transferência
possessória por via de endosso), distingue os casos em que ao endosso esteja subjacente um negócio
através do qual as partes pretendam a transferência da propriedade do título ou, pelo contrário, apenas da
legitimação, afirmando que, mesmo nesta segunda hipótese, “nel caso in cui la girata della cambiale
corrisponda ad un negozio sottostante con cui le parti abbiano voluto costituire un pegno sul titolo di
credito (…) senza dubbio non si ha trasferimento della proprietà del titolo, in applicazione della regola
generale per cui il bene oggetto del pegno rimane nel patrimonio del debitore. Si trata quindi di una di
quelle ipotesi in cui la girata piena trasferisce solo la legitimazione e non la proprietà del titolo”,
residindo o carácter fiduciário da convenção na circunstância de a transferência da legitimação cambiária
exceder o escopo garantístico visado pelas partes. No direito francês, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés
2010cit., pág. 538, entendem que o endosso translativo é inoponível a terceiros, por força da teoria da
simulação, pelo que estaremos na presença de uma garantia fiduciária. Entre nós, Pestana de Vasconcelos,
Direito das garantias cit., pág. 285, entende que este negócio já não será um penhor, mas antes um
negócio fiduciário tendo por objecto uma letra ou uma livrança, porquanto “Há uma transmissão plena,
limitada só a nível obrigacional entre as partes
1120
Vide os dois arestos citados na nota anterior e, sobre o pacto comissório, infra n.º 4 do Capítulo II.
1121
Salienta este aspecto, Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 184, assegurando que, deste
modo, a limitação ao endosso – aparentemente pleno – constará apenas das relações internas entre as
partes e “les tiers n’ont pas la possibilité de déterminer la nature véritable de l’opération réalisée. A leur
égard, l’endossement a toutes les apparenaces d’un transfert de propriété”.
1122
Aprovado pelo Decreto-Lei 23721, de 29 de Março de 1934.
1123
Não podendo os co-obrigados invocar contra o portador as excepções fundadas nas relações pessoais
deles contra o endossante, excepto se o portador, ao receber a letra, tiver actuado conscientemente em
prejuízo do devedor – art.ºs 19.º II e 77.º da LULL.
1124
Estas normas, bem como as já aludidas relativas ao penhor de valores mobiliários e participações
sociais, vieram derrogar o art.º 399.º do Código Comercial que regulavam a constituição do penhor sobre
estes objectos – no mesmo sentido Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 208 e Pestana de Vasconcelos,
Direito das garantias cit., pág. 254, nota 711.
1125
Navarro Chinchilla, ob. cit., pág. 493 e segs., passando por cima da polémica acerca do objecto desta
garantia (aludindo a duas teses contrapostas, uma assegurando que o direito incide sobre o título –
assemelhando-se, por isso, a um penhor de coisas – e a outra identificando o crédito que a letra representa
como o verdadeiro objecto da garantia), escreve que a mesma se constitui através do endosso que
contenha a menção “valor em garantia” ou outra equivalente (contendo a assinatura do endossante na
própria letra) e a entrega da letra ao endossatário (o mesmo Autor admite o endosso em branco, desde
que, no momento do vencimento da obrigação, se tenha identificado o credor, embora advirta que “es
aconsejable designar al endosatario en la letra, pues si dicha mención figurara en blanco, ello supondría
la indetermionación del acreedor pignoratício”), posição similar à de De la Santa Garcia, Prenda de
valores cit., págs. 147 e 148 (apontando para o regime delineado na Lei n.º 19/1985 – Lei cambiária e do
cheque – do qual resulta a indispensabilidade da entrega do título; a possibilidade de o credor pignoratício
apresentar a letra a pagamento, protesto e exercer a acção cambiária directa contra o aceitante e os
avalistas deste e a acção de regresso contra o liberado, endossantes e avalistas), embora este último aluda
à prática de endossos plenos (figura mais próxima de uma alienação em garantia, apresentando a
292
Caso o credor efectue a cobrança, alguns Autores sustentam que, passando a
quantia recebida a integrar o seu património, se opera uma conversão da garantia num
penhor irregular.1126
Importa, todavia, salientar que da constituição de um penhor sobre este título
cambiário resultam efeitos diversos para o endossante1127 e para o endossatário.1128
Finalmente, o penhor de títulos nominativos poderá constituir-se através de
anotação da constituição da garantia no título e no registo do emitente,11291130 embora
também se permita a constituição nos mesmos termos dos títulos à ordem.1131
293
6 - Carácter acessório do penhor face ao crédito garantido1132
1129
Em face do nosso direito, vide, por todos, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 155, defendendo que o
penhor de títulos nominativos se constitui através de declaração efectuada no livro de registo da entidade
competente. Frederico Martorano, ob. cit., págs. 714 a 718, sustenta que, neste caso, será ainda necessária
a entrega do título ao credor, visando satisfazer a exigência de “evitare al creditore difficoltà nel
materiale reperimento dell’oggetto del pegno al momento in cui la garanzia debba essere concretamente
azionata” (entendimento reforçado pela circunstância de a lei, ao contrário do que faz com respeito ao
usufrutuário, não prever a entrega de um título separado), acrescentando que a publicidade resultante do
duplo averbamento não é completamente absorvida pela entrega material, conservando esta a sua
relevância paras os casos de perda involuntária da posse por parte do credor pignoratício. Contra, Rubino,
Il pegno cit., pág. 234 (argumentando que, com a dupla anotação, o penhor se considera constituído
“sobre o título”, embora reconheça ser prática comum a entrega ao credor pignoratício de um duplicado
do título, contendo também ele a anotação), Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 51 (alegando que a entrega do
título é desnecessária, tendo em conta que a publicidade relativamente a terceiros é assegurada pela dupla
anotação, pelo que o credor pignoratício estará protegido por estas anotações contra actos de alienação ou
disposição do título ou do direito – bem como contra cobranças por parte do devedor -, apesar de
reconhecerem que o facto de não ter em seu poder o título poderá enfrentar dificuldades no momento da
venda do bem empenhado, uma vez que esta deverá ser averbada no título) e Lorenza Bullo e Claudia
Sandei, ob. cit., pág. 53 e segs. (sustentando que a ideia segundo a qual, neste caso, estaríamos perante
um penhor sem entrega do bem onerado é de relativizar, atendendo a que o constituinte fica privado do
direito de dispor do bem dado em garantia, sendo o desapossamento substituído “da altre formalità
funzionalmente equivalenti quali la annotazione e registrazione in conto”: com efeito, a função
publicitária da entrega poderia ser suprida pela evidência que do título resulta da constituição da garantia,
bem como da inscrição no livro dos sócios, além da impossibilidade de o empenhante praticar actos de
disposição material dos títulos, uma vez que a forma de constituição do vínculo tornam-no oponível a
terceiros adquirentes, deste modo impedindo eventuais aquisições de boa fé por parte destes). Em face do
direito francês, Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., págs. 249 e 250, entendem que a garantia se
constitui através de uma transferência a título de garantia inscrita nos registos do devedor.
1130
Ocorrendo o desapossamento, mas não a dupla inscrição, a doutrina (assim, Nicola Gasperoni,
Modalità di costituzione del pegno sui titoli azionari nominativi e legittimazione del creditore
pignoratizio, in BBTC, n.º 14, Tomo II, pág. 313 e segs. e Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 676) e
jurisprudência (veja-se, a título exemplificativo, a decisão da Corte de Apelo de Florença de 22/5/1950, in
BBTC, n.º 14, Tomo II, pág. 309 e segs.) dominantes consideram que o penhor apenas é válido inter
partes, sendo inoponível à sociedade e aos demais terceiros, salientando os dois citados Autores que o
conteúdo da garantia assim comprimido se traduzirá em bem pouco, porquanto o credor estará inibido de
exercer os direitos sociais (uma vez que apenas com a inscrição do penhor no título e no registo do
emitente é que surge a legitimidade do credor), funcionando quando muito como um direito de retenção
ou meio de pressionar o devedor a cumprir.
1131
Estas duas hipóteses estão contempladas nos art.ºs 2024.º e 2026.º do CCI, bem como no art.º 3.º do
r.d. 239, de 29/3/1942. Igualmente Rubino, Il pegno cit., pág. 233, Gabrielli, I negozi costitutivi cit., págs.
158 e 159, Frederico Martorano, ob. cit., págs. 716 a 717 (embora realçando que o penhor não é oponível
ao terceiro adquirente de boa fé se não tiver sido averbado no registo do emitente), Gustavo Minervini,
ob. cit., págs. 1050 e 1051, Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 676 (embora os dois últimos Autores
salvaguardem que, relativamente à sociedade emitente, o penhor não produz efeitos se não depois da
inscrição no livro dos sócios, a qual deve ser realizada imediatamente pela sociedade, nos termos art.º 3.º,
n.º 2, do r.d. 239, de 29/3/1942), Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 95 a 97 (acrescentando também
ser desnecessária a notificação da constituição do penhor ao devedor do crédito empenhado ou ao
estabelecimento emitente) e De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 145. Em face do direito
alemão e segundo Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann,
ob. cit., pág. 1595, a constituição de penhor de títulos nominativos dependerá da forma de transmissão da
propriedade dos mesmos, a qual poderá decorrer de uma mera cessão ou, pelo contrário, exigir a entrega
do título: no primeiro caso, para o surgimento da garantia impõe-se a notificação ao devedor do crédito
(ou melhor, do direito inscrito no título) cedido; no segundo, dispensa-se tal notificação, impondo-se
antes a entrega do título.
1132
Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, Lisboa, 1993, págs. 750 e 751, qualifica o penhor, em razão
da nota da acessoriedade, como um direito real combinado (por se encontrar associado a um direito de
crédito, não sendo concebível a sua existência sem a deste) integrado (“porque se encontra ao serviço
desse direito de crédito, que dita o interesse e sentido da operação”).
294
6.1 - Relação entre a constituição (validade), transmissão e extinção obrigação garantida
e o penhor
295
De qualquer modo, parece pacífico retirar desta relação quase umbilical diversos
corolários, o primeiro das quais relativo à própria existência da obrigação a garantir.1138
Com efeito, decorre do princípio da acessoriedade que o crédito garantido por
penhor deverá ser válido1139 pois, sendo nulo (por exemplo, por inexistência do crédito a
garantir, por o mesmo já se encontrar extinto1140 ou, em geral, por ser nulo o negócio
jurídico de constituição do mesmo1141), idêntica sorte terá o penhor.1142
(considerando que a acessoriedade não constitui, ao menos sem uma correspondência na disciplina
legislativa, a chave para a solução mecânica de todas as questões relacionadas com a ligação entre o
penhor e o crédito garantido), por Ciccarello, ob. cit., pág. 684, Veiga Copo, La prenda de acciones cit.,
pág. 66 e por diversos Autores citados por Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 60 e 61, nota 164
(considerando alguns tratar-se de um dogma, sendo a sua aceitação restrita ao caso de transmissão do
penhor para outro credor, mas recusando-a no que toca ao nascimento – asseverando que o negócio de
constituição da garantia sem existência de um crédito garantido é meramente ineficaz - e extinção da
obrigação).
1138
Salientam este aspecto, designadamente para colocar em questão a constituição de penhores em
garantia de créditos futuros e/ou indeterminados, assim como para fundamentar o efeito reflexo dos vícios
que afectem o crédito sobre a garantia, Realmonte, Il pegno cit., pág. 634, Paulo Cunha, ob. cit., pág. 199
e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 60.
1139
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 24, realçam que, em termos negativos, a característica da acessoriedade
serve para excluir a constituição do penhor quando não se destine a tutelar uma dada obrigação, como
sucederá com o penhor de proprietário. Esta figura, caracterizada pelo facto de coincidirem na mesma
pessoa as qualidades de credor pignoratício e de proprietário do bem empenhado, deverá ser recusada, na
medida em que se o credor pignoratício adquirir a coisa empenhada a garantia extingue-se (uma vez que,
destinando-se a garantir o seu crédito, ficará sem razão de ser), apesar de Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ
n.º 58, pág. 61, admitir a manutenção do penhor quando o proprietário tenha interesse jurídico na sua
sobrevivência (apontado o seguinte exemplo: A constitui um penhor a favor de B e depois um usufruto a
favor de C sobre a mesma coisa; em seguida, vende a coisa a B, que terá interesse na manutenção do
penhor para, desse modo, ter preferência em relação ao usufruto de C, extinguindo-se o penhor apenas se
e quando o usufruto se extinguir), tendo os mesmos direitos relativamente ao bem que teria se o penhor
incidisse sobre um bem alheio (maxime não sendo obrigado a entregar a coisa a outro credor pignoratício
de grau inferior), incluindo a legitimidade para promover a execução do bem para sua satisfação.
1140
No entanto, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 86, admite a convenção das partes no sentido
da subsistência do penhor apesar da extinção do crédito, convenção esta que poderá ser interpretada como
manutenção do crédito, mas limitando a sua responsabilidade ao valor do penhor. Por outro lado, Jacques
Ghestin e outros, Droit commun, pág. 312, para além de admitirem essa mesma possibilidade, consideram
também possível garantir com penhor as restituições entre as partes consequentes à anulação do contrato,
afirmando que “On ne peut pas garantir un contrat nul, mais on doit pouvouir garantir les conséquences
de la nullité: les obligations de restitution consécutives à la nullité sont des obligations valables” e, por
isso, serão separáveis do negócio anulado, constituindo uma convenção autónoma, como um “contrat
d’aprés-contrat” (dando ainda conta da existência de frequentes estipulações desta índole nos contratos
de distribuição).
1141
Faggella, ob. cit., pág. 29, aponta como exemplos de obrigações que não podem ser asseguradas por
penhor, por força da nulidade de que enfermam, aquelas que sejam contrárias à lei ou aos bons costumes.
1142
Assim, expressamente, Rubino, Il pegno cit., pág. 188, Realmonte, Il pegno cit., pág. 634 e
Ciccarello, ob. cit., pág. 684. Considerando que o penhor é nulo se o crédito garantido já se encontrava
extinto ou era nulo ou já tiver sido anulado, veja-se a setença do Tribunal de Cassação de 28/3/1956,
citada por Barbara Cusato, ob. cit., pág. 42. Afirmando, em geral, que a nulidade ou inexistência do
crédito implicam a extinção do penhor, Stéphane Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 176. Por seu turno
Barrada Orellana, ob. cit., pág. 55, advoga que, sendo nula a obrigação, o penhor não chega sequer a
nascer por falta de um pressuposto fundamental, o quid a garantir. Diferentemente, Harry Westermann,
Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1500 e 1501, aceitam que,
em caso de conversão de um negócio inválido (que origine um crédito diverso do pretendido pelas
partes), o mesmo fenómeno de conversão possa alastrar ao penhor, de modo que este se converta noutro
que garanta o novo crédito (e, mesmo quando se não produza a conversão do negócio principal, mas surja
em vez dele um pretensão fundada em enriquecimento sem causa, admitem que esta pretensão nasça
garantida pelo penhor, desde que existam indícios exteriores que a vontade das partes era a de garantir tal
pretensão – v.g., se o credor se prepara para participar nos negócios do proprietário e garantir a sua
296
Se, ao invés, o crédito resulta de negócio jurídico anulável, o penhor constituído
produzirá os seus efeitos até à eventual anulação daquele1143 e, caso esta venha a
ocorrer, tal decisão produz efeitos ex tunc, considerando-se o crédito inexistente e o
penhor como inválido ab initio.1144
Esta distinção entre os diversos efeitos da invalidade do negócio principal sobre
a garantia acessória – em especial no que toca aos efeitos da invalidade do primeiro
sobre a segunda - consoante estejamos perante uma nulidade ou anulabilidade, é, aliás,
um princípio de aplicação genérica à globalidade das garantias.1145
posição através de penhor, o credor entrega determinados bens ao proprietário e, afinal, aquele contrato
acaba por não se celebrar).
1143
Neste sentido, Chironi, ob. cit. pág. 440 (diversamente, quando se trate de um negócio inexistente, “il
diffetto di un elemento essenziale toglie al tutto la obbligazione, nè è possibile garantire un rapporto
personale che non vi è”). Quando se trate de penhor dado por terceiro, Rubino, Il pegno cit., pág. 188 e
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 85, admitem que este último possa opor ao credor as excepções
do devedor, excepto aquelas de carácter exclusivamente pessoal (do mesmo modo que, caso o crédito seja
julgado inexistente por sentença entre o credor e o devedor, o terceiro dador do penhor poderá invocar
essa decisão contra o credor), assim impedindo a subsistência da garantia. Montel, Pegno cit., págs. 791 e
792, refuta a opinião de quem considera que esta invalidade da garantia nem se produzirá quando o
garante for estranho à relação obrigacional garantida, seja daqueles que consideram dever aplicar-se as
regras da fiança, assim admitindo a manutenção da garantia quando o terceiro houvesse conscientemente
assumido a posição de garante relativamente a uma obrigação anulável (afiançando que a circunstância de
a garantia ser prestada pelo devedor ou por terceiro não desvirtua a natureza e o carácter acessório da
garantia), seja de outros para quem particulares circunstâncias podem conduzir à conclusão que o terceiro
haja garantido o credor mesmo contra determinadas excepções do devedor (afirmando que, neste caso,
estar-se-ia perante uma obrigação autónoma associada ao penhor).
1144
Assim, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 55, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 86 e Rubino, Il
pegno cit., pág. 189 (embora estes dois últimos asseverem que se o devedor, conhecendo o vício
originador da anulabilidade, acede a fornecer o penhor, deverá considerar-se existir uma ratificação
tácita). Em termos análogos se exprime, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 60 e segs., para quem o facto
de a garantia pressupor a existência de um crédito válido existente implica a nulidade do penhor
constituído em garantia de um crédito já vencido ou de posterior anulação desse mesmo crédito.
1145
Elucidativa, a este propósito, é a análise exaustiva de Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 336 e
segs., a respeito da repercussão da nulidade e da anulabilidade do negócio principal sobre a fiança (mas
cujas conclusões, de uma forma geral, são transponíveis para a generalidade das garantias acessórias,
mesmo tendo em conta que, para a fiança e não para as demais garantias, o art.º 632.º, n.º 1,
expressamente determina que a garantia não será válida se o não for a obrigação principal), aludindo à
unanimidade doutrinal e jurisprudencial em considerar que, em razão da acessoriedade, a nulidade da
obrigação assegurada determina o mesmo efeito sobre a garantia prestada (embora o Autor conteste esta
visão, preferindo falar de uma ineficácia, uma vez que a independência entre os dois negócios postula que
“se o negócio principal padece de um vício genético que determina a sua invalidade, lógico é que tal vá
impedir a operacionalidade da fiança, repercutindo-se na sua eficácia – não se vendo o porquê da
contaminação da fiança, ou seja o porquê da extensão da tal invalidade à obrigação fidejussória”), o
mesmo sucedendo relativamente aos negócios meramente anuláveis (relativamente aos quais o
significado da norma citada é o de que “uma vez anulada a obrigação principal, a fiança deixa,
retroactivamente, de produzir efeito”, embora o Autor, à imagem do sustentado para a nulidade, entenda
tratar-se de uma situação de ineficácia), colocando-se, em ambos os casos, a dúvida se a garantia pode
cobrir a obrigação de restituição que impenda sobre o devedor em consequência da anulação do negócio,
nos termos do art.º 289.º, situação normalmente não equacionada pelas partes (o Autor defende uma
resposta afirmativa para o caso de a garantia prestada ser uma fiança, alegando que “o que decorre do fim
de garantia da fiança – sem prejuízo da confluência da acessoriedade – é que o fiador acompanhe, em
termos de responsabilidade, as vicissitudes do crédito, incluindo as perturbações decorrentes do malogro
da operação, quer este decorra da constatação da nulidade do mútuo, quer decorra v.g. da resolução do
contrato”: manifestamos dúvidas em aderir a este entendimento, quando transposto para o penhor
(especialmente quando este for constituído por um terceiro, caso em que a responsabilidade deste se cinge
ao objecto onerado) uma vez que o empenhante garante uma obrigação com uma determinada
configuração e a transmutação de um elemento essencial do negócio – a obrigação assegurada - exigirá,
em regra, o consentimento de ambas as partes e, na sua ausência, a garantia extinguir-se-á com a
invalidação do negócio principal.
297
Todavia, a lei flexibiliza um pouco esta rigidez, ao admitir expressamente a
constituição de penhor em garantia de obrigações futuras (cfr. art.º 666.º, n.º 3), isto é,
ainda inexistentes no momento do surgimento daquela garantia.1146
Mas a influência do crédito garantido manifesta-se igualmente em sede de
modificação do conteúdo do penhor,1147 de transmissão e da extinção1148 da obrigação
garantida, mas não só.1149
Assim, por exemplo, a acessoriedade é invocada para resolver a questão relativa
à constituição de penhor, sobre um mesmo bem, em garantia de diversos créditos do
mesmo credor:1150 mais concretamente, para determinar se, neste caso, estamos perante
diversos penhores ou, pelo contrário, um único penhor:1151 a opinião dominante, ao
menos em Itália, vai no sentido de considerar existirem vários penhores distintos que, se
constituídos sucessivamente, graduar-se-ão de acordo com a data de origem recíproca e,
se constituídos contextualmente, obterão todos o mesmo grau.1152
1146
Sobre este assunto, vide supra n.º 4 do Capítulo I.
1147
A este respeito, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann,
ob. cit., pág. 1552, apontam como exemplos o de um penhor com pacto anticrético transformado, por
acordo das partes, num penhor amputado desse direito aos frutos, em consequência de uma diminuição do
valor da obrigação garantida (mas aceitam apenas a hipótese inversa com o consentimento do titular de
outro direito preterido, cuja posição será prejudicada ao ver sair os frutos do âmbito da sua garantia); da
alteração da forma possessória (v.g. bem originariamente entregue a terceiro que passe para as mãos do
credor, sendo necessário o consentimento do terceiro possuidor sempre que este seja prejudicado por tal
modificação); e, em geral, da alteração do objecto por força de sub-rogação real.
1148
No que concerne à extinção do penhor em consequência da extinção da obrigação principal, vide infra
n.º 10.1 do Capítulo I.
1149
De acordo com Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 70, nota 29, podemos resumir a quatro os
principais corolários do princípio da acessoriedade do penhor: a nulidade da obrigação principal acarreta
a invalidade do contrato de penhor; se a obrigação principal se encontrar sujeita a condição ou termo o
mesmo sucederá com o contrato de penhor; a garantia proporcionada pelo penhor abarca, além do capital,
os acessórios da obrigação assegurada (salvo convenção em contrário); e o penhor estende-se aos
acessórios da coisa empenhada. No mesmo sentido, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 444,
assinalando o facto de a garantia não poder nascer sem um crédito (sendo que a extinção deste provocará
idêntico efeito naquela), de a garantia apenas pertencer ao titular do crédito garantido, de a transmissão
deste implicar a mesma consequência relativamente àquela e, finalmente, a circunstância de, quando o
sujeito passivo da garantia não seja o próprio devedor, poder opor ao credor as mesmas excepções que o
devedor pudesse opor. Em termos mais específicos, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág.
313, (embora reconheçam que não falta quem conteste este ponto de vista, sustentando que, não havendo
qualquer cessão do crédito do promissário ao terceiro beneficiário, será incorrecto falar de acessoriedade),
socorrem-se do princípio da acessoriedade para justificar, no contrato a favor de terceiro, que este se
encontre protegido pelas garantias dadas pelo promitente ao promissário, asseverando que o promissário
celebra a convenção e aceita as garantias não apenas por si, mas também por conta do terceiro, surgindo
as garantias como acessório do direito do terceiro (não sem reconhecer uma certa fragilidade da garantia,
na medida em que o promitente poderá opor ao terceiro as excepções respeitantes às suas relações com o
promissário).
1150
Questão diversa é a da constituição de diversos penhores sobre a mesma coisa, mas em garantia de
obrigações de credores diferentes, estando esta possibilidade dependente da circunstância de o primeiro
credor consentir deter a coisa também por conta dos demais – acerca deste aspecto vide supra n.º 5.1 do
Capítulo I.
1151
Dão conta deste aspecto Rubino, Il pegno cit., pág. 192 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 86, salientado
que a questão assume relevância prática, seja quando ocorra a cessão a diversos sujeitos de algum dos
créditos garantidos, seja no caso de divisão dos créditos garantidos (nomeadamente em caso de sucessão
hereditária).
1152
Montel, Pegno cit., pág. 793, nota 5, Realmonte, Il pegno cit., pág. 636, Rubino, Il pegno cit., pág.
192 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 86, retiram desta opção as seguintes consequências: se um dos créditos
se extingue, o objecto da garantia, por força do princípio da indivisibilidade, permanece inteiramente em
garantia dos demais créditos; se coisa for expropriada para satisfação de um dos créditos e for utilizada
uma parte do seu valor, não estando os outros créditos ainda líquidos ou exigíveis, pode aplicar-se
analogicamente o art.º 2795.º do CCI (que admite, verificados certos condicionalismos, proceder à venda
298
6.2 - Transmissão das garantias conjuntamente com o crédito garantido
antecipada do penhor), assim se admitindo que o proprietário solicite que a soma restante seja depositada
ou que o credor trate tal soma como penhor irregular.
1153
O mesmo efeito se produz, como bem nota Rubino, Il pegno cit., pág. 195, se for cedido o contrato a
que pertence o crédito garantido (nomeadamente em razão de uma cessão da posição contratual). Menos
taxativos são Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 336, fazendo apelo às dúvidas doutrinais
em relação à própria admissibilidade da cessão da posição contratual, uns aceitando a eficácia de tal
negócio (mas ressalvando que o mesmo apenas produzirá efeitos para o futuro, aproveitando as garantias
associadas ao contrato ao cessionário, mas apenas para o período posterior à cessão) e outros recusando-a
(por considerarem que o cessionário não sucede na posição do cedente, mas estabelece um novo
relacionamento com o cedido, as garantias que asseguravam o crédito originário não podem ser exercidas
pelo ou contra o cessionário. No entanto, importará distinguir consoante o cedente permaneça obrigado
ou seja desonerado: no primeiro caso, as garantias mantêm-se porque a cessão não implica a extinção sua
obrigação; no segundo, a liberação do cedente implica, por força da acessoriedade, a extinção das
garantias que asseguravam o crédito extinto).
1154
A expressão é de Barrada Orellana, ob. cit., pág. 287.
1155
Em termos análogos, vide o art.º 1263.º, n.º 1, do CCI (no que toca à sub-rogação e aos seus efeitos
relativamente ao penhor, vide o art.º 1204.º), o art.º 1692.º do CCF, o art.º 1526.º do CCE e o §1250, n.º
1, do BGB (nos termos do qual a transmissão do crédito implica a transferência do penhor para o novo
credor). No que concerne ao direito francês, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 335,
precisam que a garantia da existência do crédito assumida, por força da lei - cfr. art.º 1693.º CCF – pelo
cedente se alarga à existência dos acessórios do crédito..
1156
Aceita esta consequência Menezes Leitão, Cessão cit., pág. 325, muito embora ressalve que esse
efeito não é inevitável, não só porque algumas garantias que podem ser cedidas autonomamente (como o
penhor) e, ainda, porque nada impede que o cedente, titular de vários créditos sobre o mesmo devedor, de
transmitir um deles a terceiro, reservando a garantia para um dos outro dos créditos que detenha.
1157
Para um elenco, das normas legais que vedam a cessão de determinados créditos, vide, por todos,
Menezes Leitão, Cessão cit., pág. 294 e segs. e supra n.º 2.4.2.1 do Capítulo I.
1158
Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 336 a 338, defendem, em face do direito francês,
que a transmissão das garantias se deve aplicar igualmente em caso de cessão forçada, apontando como
exemplos a expropriação, a nacionalização (afirmando que a propriedade dos créditos expropriados e
nacionalizados são transferidos para as entidades que procedam a tais actos, acompanhados das garantias
que os tutelavam) e a penhora com efeitos de atribuição (procedimento através do qual o beneficiário de
tal providência ver-lhe-á atribuído o crédito, bem como os respectivos acessórios).
1159
Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 340 e 341, advogam que o princípio segundo o
qual a morte do credor implica a transmissão para os seus herdeiros dos créditos e das garantias que o
asseguram, assim como o falecimento do devedor transmite para os seus herdeiros as dívidas e os bens
299
Se o crédito cedido estiver garantido por penhor e este tiver sido constituído
através da entrega do bem ao credor pignoratício (ou, tendo sido constituído por
terceiro, se encontre em poder do credor pignoratício), este deverá remeter o referido
bem ao cessionário;1161 se, ao invés, o penhor tiver nascido por meio da entrega a um
com as garantias que onerem os mesmos, deve ser aplicado de forma atenuada as garantias convencionais.
Assim, se o contrato for qualificado como intuitu personae, extinguir-se-á com a morte de um dos
contraentes e as garantias que assegurassem esse crédito extinguir-se-ão também, mas apenas para o
futuro (permanecendo as dívidas contraídas antes desse momento asseguradas pela garantia); também
quando o de cujus fosse apenas um terceiro prestador da garantia, os herdeiros apenas estarão obrigados
pela garantia no que respeita às dívidas contraídas antes da morte (acrescentando que a jurisprudência
considera nulas as cláusulas em contrário). Parece admitir o efeito da transmissão das garantias também
neste caso Barrada Orellana, ob. cit., pág. 287.
1160
Como bem salientam Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 341 e 342, a questão coloca-
se, essencialmente, a respeito da fusão e cisão de sociedades. Ocorrendo a fusão, importa distinguir a
fusão entre a sociedade credora e a sociedade devedora (caso em que a extinção do crédito comporta a
extinção da garantia, por confusão das qualidades de credor e devedor), da fusão entre a sociedade que
tenha prestado penhor por uma dívida alheia e a sociedade credora (caso em que a obrigação principal não
se extingue, mas extinguir-se-á a garantia, assim se produzindo a sobrevivência do crédito sem a
garantia), da fusão entre a sociedade que tenha prestado penhor por uma dívida alheia e a sociedade
devedora (caso em que cessa a qualidade de terceiro, mas a sociedade resultante da função permanece
obrigada na qualidade de devedora principal, pelo que a garantia real consentida sobre um dos seus bens
mantém-se), da fusão entre a sociedade credora ou devedora e uma terceira sociedade (caso em que o
crédito ou a dívida são transmitidos juntamente com as garantias que os asseguram, com excepção da
hipótese de absorção da sociedade dadora de penhor por uma dívida alheia por uma terceira sociedade,
cujo efeito será o de a nova sociedade apenas assumir a garantia pelas dívidas anteriores à fusão – do
mesmo modo, depois da fusão entre a sociedade devedora e uma terceira sociedade, a garantia
anteriormente prestada por terceiro não garantirá as dívidas posteriores à fusão, tendo em conta a extinção
da sociedade devedora). Pelo contrário, em caso de cisão e considerando que as sociedades beneficiárias
dos proveitos da cisão são devedores solidários dos credores da sociedade cindida e se as dívidas desta
sociedade se encontrassem asseguradas por garantias reais, estas transmitem-se para as sociedades
resultantes da cisão para as quais esses bens sejam transmitidos (mas, se desta sociedade for reclamada a
integridade da dívida, a preferência apenas operará pela parte da dívida abrangida pela garantia); se, ao
invés, for a sociedade cindida a titular de uma garantia real, apenas a sociedade que receba o crédito no
seu activo poderá fazer valer-se da garantia. Já De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 232 e
segs., distingue, a respeito da fusão, consoante esta se dê por absorção e na qual se acorde a entrega de
acções da nova emissão aos accionistas da sociedade absorvida, estando empenhadas acções da sociedade
absorvente (caso em que a fusão não produzirá nenhum efeito jurídico sobre o penhor), ou se encontrem
empenhadas acções da sociedade absorvida (hipótese na qual as participações serão amortizadas e
anuladas, recebendo o sócio empenhante uns novos em sua substituição - os quais não se encontrarão
automaticamente onerados, apesar de o seu titular ser o mesmo das acções originalmente empenhadas, a
não ser que algo se estabeleça expressamente na escritura de fusão – ou amortizando a sociedade os
valores e entregue ao accionista empenhante o seu preço, ficando este a garantir a obrigação principal, em
poder do credor ou de um terceiro, operando-se um fenómeno de sub-rogação real), valendo esta última
solução igualmente para a eventualidade de a fusão se dar através da criação de uma nova sociedade.
1161
Para Menezes Leitão, Cessão cit., pág. 330, a posse do bem não se transmite automaticamente com a
cessão, mas apenas com a entrega do bem ao cessionário, tendo em conta a função publicitária da posse
(enquanto Barrada Orellana, ob. cit., pág. 288, realça que até à entrega do bem ao cessionário o direito
real de garantia não se transmite e, em caso de recusa de entrega do bem por parte do cedente, o
cessionário poderá exigir o empossamento com fundamento em incumprimento do acordo de cessão).
Esta solução é contestada por alguns, uma vez que o constituinte pode ter assentido em prestar a garantia
tendo em conta a confiança relativamente às qualidades do cedente no que respeita à guarda e
conservação da coisa, confiança essa que pode não ter no cessionário – neste sentido, Pires de Lima e
Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 696. O próprio Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 20, apesar
de admitir que o cessionário pudesse exigir do cedente a entrega do bem empenhado, mesmo sem o
consentimento do constituinte da garantia, concluía que se transferiam para o cessionário as obrigações
resultantes da relação pignoratícia, mas, em caso de ausência de consentimento do constituinte na entrega
do bem ao cessionário, o cedente responderia em caso de incumprimento dessas obrigações por parte do
cessionário, porque este poderia não dar as mesmas garantias que o cedente (acrescentando que, em caso
300
terceiro, este já não terá que o colocar nas mãos do cessionário (art.º 582.º, n.º
2),1162devendo antes manter a detenção (pelo menos até que o cessionário e o
empenhante acordem noutro mecanismo alternativo, como por exemplo a composse) e a
situação de indisponibilidade do empenhante relativamente ao bem onerado.
de cessão por força da lei, o antigo credor estaria sujeito a tal responsabilidade, a menos que obtivesse o
consentimento do empenhador e, se não o conseguisse, permaneceria ele como depositário; no caso de
transferência do crédito por decisão judicial em processo executivo, o antigo credor – devedor executado
– deveria responder pelo novo, mas poderia recusar a entrega até ao novo credor até lhe ser dada caução).
Talvez por isso no direito italiano e nos termos do art.º 1263.º, n.º 2, o cedente não possa transferir para o
cessionário a posse do bem empenhado sem o consentimento do constituinte e, em caso de desacordo, o
cedente permanece como terceiro depositário do bem (e para Rubino, Il pegno cit., pág. 195, se, mesmo
sem acordo do constituinte, o cedente entregar o bem empenhado ao cessionário, o proprietário
reivindicá-la - para a tornar a entregar ao cedente – ou pedir o seu sequestro judiciário, respondendo pelos
danos ocorridos na coisa o cedente, nos termos da responsabilidade contratual – a menos que prove que a
coisa ter-se-ia danificado do mesmo modo se tivesse permanecido em seu poder – e o cessionário, mas
este apenas nos termos gerais da responsabilidade extracontratual). Se o constituinte for um terceiro, este
toma conhecimento da cessão através do pedido de transmissão da posse do bem empenhado ou, se tal
não acontecer e a posse do bem permanecer no seu titular originário, apenas com a notificação do início
do processo executivo (cfr. Rubino, Il pegno cit., pág. 196). Mesmo anteriormente à promulgação do
actual Código Civil, Faggella, ob. cit., pág. 119, admitia já que o efeito automático da transmissão das
garantias juntamente com o crédito não se produzia quando o constituinte tivesse acedido a dar em penhor
o seu bem também tendo em conta a confiança na pessoa do credor e no desempenho, por parte deste, da
função de custódia do bem (especialmente quando este seja uma peça preciosa ou artística), pelo que,
neste caso, o cedente permaneceria responsável, juntamente com o cessionário, pela conservação do
penhor (além de o proprietário do bem – devedor do crédito cedido - se poder opor à transferência do
penhor e requerer uma caução ou o depósito do bem): seguindo o raciocínio deste Autor, estaríamos
perante uma relação pessoal entre o constituinte e o credor – que se une à relação real que decorre da
constituição do penhor – cuja violação seria analisada à luz das normas gerais que regulam a violação
deste tipo de deveres (no entanto, por força do seu carácter relativo, a violação de tal obrigação não
poderia ser invocada contra terceiros e, nomeadamente, a possibilidade de requerer o depósito ou o
sequestro da coisa não pode ser requerida contra o cessionário que já tivesse adquirido a posse do bem
empenhado). Já no direito alemão, o novo credor pignoratício pode exigir do anterior a entrega da coisa
(§1251, n.º 1, do BGB) e, com a obtenção dessa posse, ocupa o lugar do anterior nas obrigações para com
o empenhador e, se não as cumprir, deve o anterior credor indemnizar os danos causados, nos mesmos
termos de um fiador que haja renunciado ao benefício da excussão prévia (a responsabilidade do anterior
credor não existirá quando o crédito seja transferido para o novo credor por força de lei ou seja cedido em
cumprimento de um dever legal – cfr. §1251, n.º 2): de acordo com este regime, Harry Westermann,
Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1551, esclarecem que os
deveres de conservação e restituição apenas se transferem para o cessionário quando este for empossado
do bem, respondendo o cedente pelos actos do cessionário como se fosse fiador, porquanto cedeu a
garantia a alguém da sua confiança
1162
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 20, sustentava que, também neste caso, o cessionário teria
direito à entrega do bem empenhado procedendo, para tal, à notificação da cessão a terceiro. A lei não
responde se será necessária a entrega ao cessionário quando o penhor se encontre na composse do credor
e do devedor, podendo a resposta afirmativa fundar-se na constatação que este meio de surgimento do
penhor implica que o autor do penhor fique privado da possibilidade de dispor materialmente da coisa,
cabendo esse poder apenas ao credor pignoratício, pelo que, para este efeito, é como se a coisa houvesse
sido entregue ao credor originário que, desta forma, poderá continuar a dispor dela em prejuízo do
cessionário (a opinião contrária poderá apoiar-se, paradoxalmente, na mesma circunstância de o autor do
penhor ficar privado da possibilidade de dispor materialmente da coisa, argumentando que, se assim é,
nada impede que o devedor permaneça na (com)posse da coisa, uma vez que não poderá dispor da mesma
sem o consentimento do cessionário). Por nossa parte, inclinamo-nos para esta segunda alternativa,
porquanto a lei apenas exige a entrega ao cessionário quando o bem se encontre no poder exclusivo do
devedor (e este dele possas dispor autonomamente), dispensando tal requisito sempre que a retirada
daqueles poderes de disposição ocorra por outra via (entrega do bem a terceiro ou composse), embora seja
indispensável que a substituição do cessionário ao cedente na situação de composse seja contemporânea
do negócio de cessão, assim impedindo que o empenhante retome, ainda que temporariamente, aqueles
poderes de disposição.
301
Quando o penhor se tiver constituído por meios alternativos ao desapossamento
do devedor (nomeadamente através de inscrição no registo), não haverá lugar è entrega
ao cessionário, uma vez que, nestes casos, a garantia ter-se-á constituído em termos
muito semelhantes às demais e não do modo específico – entrega do bem – regulado no
n.º 2 do art.º 582.º.
Enquanto o cessionário não obtiver a posse do bem empenhado, não fica
onerado com as obrigações resultantes da relação pignoratícia – designadamente a
guarda do penhor e a sua restituição - pois estas, por essência, dependem da posse da
coisa, muito embora se duvide se essa responsabilidade lhe caberá apenas a ele ou
também ao cedente.1163
Assim, caso o bem haja sido danificado pelo seu primeiro possuidor, este
responderá pelos danos causados, pelo menos desde que o cessionário possa provar que
os danos ocorreram antes do bem lhe ter sido entregue;1164 caso esses actos tenham sido
praticados, após a cessão, pelo cessionário, a responsabilidade será deste.1165
No que respeita às duas excepções ao efeito automático da transmissão das
garantias juntamente com o crédito caucionado, ou seja, à cessão do crédito
desacompanhado das garantias, a existência de convenção em contrário não suscita
grandes interrogações.1166
Já no que respeita à segunda – o carácter inseparável da garantia relativamente à
pessoa do credor cedente1167 – diremos que a mesma apenas operará quando o
constituinte da garantia a tenha prestado em vista de determinadas qualidades pessoais
do credor ou especiais ligações de proximidade que o unam a este último, não sendo,
por isso, invocável na generalidade dos contratos celebrados no giro comercial.1168
1163
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 23 é partidário deste segundo entendimento, por entender
que “a cessão não pode libertá-lo das obrigações resultantes para ele do contrato de penhor, porquanto
não pode um devedor liberar-se para com o credor sem o assentimento deste”.
1164
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 197, concluindo, por isso, que a melhor solução para o
cessionário será receber o bem empenhado sob reserva dos danos que esta entretanto este tenha sofrido.
1165
De acordo com Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 23 e 24, a responsabilidade será também
do cedente, pois o cessionário foi escolhido pelo cedente sem o assentimento do empenhador.
1166
Esta convenção, quando exista, fará com que o crédito seja cedido sem o penhor, ou seja, o titular da
garantia permanece o credor originariamente garantido (cedente do crédito). Porém, Rubino, Il pegno cit.,
pág. 195, nota 2, entende que tal pacto apenas será válido se o cedente dispuser de outro crédito para com
o mesmo devedor (caso contrário, considera que ocorrerá a nulidade da cláusula – e não a extinção do
penhor - mas sem prejudicar a validade da cessão do crédito, que assim será acompanhada da cessão do
penhor). Esta solução é contestada por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 16, nota 688-j, por
entender que semelhante cláusula é inválida (não sendo legítimo ao cedente, quando possua outro crédito
contra o devedor, determinar que o penhor fique a garantir um crédito diverso do originário) e que a
nulidade da cláusula sem extinção do penhor é inadmissível, por implicar a transmissão do penhor contra
a vontade das partes, que haviam convencionado exactamente o contrário (finalizando com a constatação
que a validade da cessão do crédito pode ser afectada pela invalidade da reserva de penhor, sempre que a
mesma não se teria efectuado caso se soubesse que a reserva de penhor era nula).
1167
Como já tivemos oportunidade de afirmar noutra sede (cfr. o nosso Dos privilégios cit., pág. 76, nota
166 e a doutrina aí citada em sentido convergente), na generalidade dos casos em que a garantia não seja
inseparável da pessoa do cedente não será a garantia que não acompanha a transmissão do crédito, mas
antes o próprio crédito que não será cedível, nos termos do art.º 577.º.
1168
A nosso ver, esta segunda excepção deve ser interpretada em termos restritivos, de modo a impedir
que a sua operatividade conduza a dois efeitos perversos: primeiro, que o cessionário se veja privado de
uma garantia com a qual poderia, legitimamente, contar, por força de factos que, na esmagadora maioria
dos casos, lhe são desconhecidos (o carácter pessoal da concessão da garantia originária); depois, porque
fragiliza a posição do próprio cedente, na medida em que este terá grandes dificuldades em negociar o seu
crédito desprovido das garantias.
302
Noutra ordem de considerações, o cessionário da garantia terá direito aos frutos
maturados desde a data da cessão, enquanto os vencidos anteriormente serão imputados
a título de juros e de capital do crédito originariamente garantido.1169
Mais complexo se afigura o tratamento jurídico a dar aos casos em que é cedido
apenas um único crédito englobado numa relação de crédito duradoura assegurada por
penhor – v.g. uma abertura de crédito em conta corrente -, parecendo que a cessão
particular de um crédito não implica a transmissão da garantia, a qual continua a tutelar
o resto dos créditos presentes e futuros integrados na relação jurídica garantida.1170
Estas mesmas conclusões valem para os casos de sub-rogação,1171 não apenas
por força da remissão do art.º 594.º para o regime da cessão, mas ainda porque o art.º
593.º, n.º 1, atribui ao sub-rogado os poderes que o credor detinha, na medida em que
satisfaça o direito deste.
Contudo, a lei prevê uma regra específica para a sub-rogação legal, nos termos
da qual o terceiro que cumpra a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor quando
tiver garantido o cumprimento ou quando tiver um interesse directo na satisfação do
crédito (art.º 592.º).1172 1173
Assim, como noutro local afirmámos a respeito dos privilégios creditórios, mas
com inteira aplicação ao penhor, “poder-se-á afirmar que na sub-rogação legal existe
uma sobrevivência do privilégio à extinção do crédito originário, justificada pelo facto
de permanecer a obrigação do devedor inicial, cujo titular activo agora é o
solvens”.1174
1169
Rubino, Il pegno cit., pág. 197.
1170
Neste sentido, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann,
ob. cit., págs. 1548 e 1549.
1171
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 22, apenas advogava a aplicação do regime da cessão à
sub-rogação voluntária por vontade do credor (mas importa salientar que o regime proposto por este
Autor não coincide integralmente com o que veio a ser consagrado), mas, tratando-se de sub-rogação por
vontade do devedor este negócio constituiria um consentimento a que o bem fosse entregue ao novo
credor (a menos que o penhor tivesse sido constituído por terceiro, caso em que o regime seria idêntico ao
da cessão por força da lei, isto é, o antigo credor não poderia transferir o bem sem o consentimento do
empenhador). Do mesmo modo para o direito francês, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs.
138 e 139, precisando que para a transmissão das garantias não é sequer necessária a estipulação de uma
cláusula contratual nesse sentido.
1172
Decorre do exposto que, em ordem à aplicação deste preceito, é necessário, em alternativa, que o
terceiro tenha assegurado o cumprimento da obrigação (através da prestação de qualquer garantia,
incluindo o penhor) ou que tenha um interesse directo, aqui se incluindo – segundo Pires de Lima e
Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 608 – os casos em que o terceiro vise evitar a perda de uma limitação
dum direito seu, bem como aqueles em que o solvens apenas pretenda acautelar a consistência económica
do seu direito, mas já não as hipóteses em que o cumprimento se realize no interesse exclusivo do
devedor ou por mero interesse moral ou afectivo do terceiro (como sucederá com o terceiro prestador da
garantia ou com o terceiro adquirente de um bem empenhado, pois, como salienta Vaz Serra, Direito de
satisfação ou resgate e sub-rogação legal nos casos de hipoteca ou penhor, in BMJ n.º 39, pág. 14, ainda
que não estejam pessoalmente obrigados ao pagamento, têm os seus bens onerados com a garantia e, por
isso, estão obrigados ao pagamento de uma dívida alheia). Um caso específico de sub-rogação acontece
quando um terceiro exerça o chamado direito de resgate (acerca deste, vide infra n.º 8 do Capítulo I),
apontando Vaz Serra, Direito de satisfação cit., pág. 6, como exemplo o caso em que o terceiro tenha um
direito real sobre uma coisa afecta à garantia de uma dívida alheia e tenha interesse em satisfazer o credor
para não perder esse direito, bem como o de o terceiro ser titular de um direito real sobre um bem do
devedor que esteja em risco de perder por força de uma execução entretanto movida pelo credor.
1173
Para além do direito de sub-rogação, o terceiro constituinte do penhor e o terceiro adquirente do bem
empenhado (depois de efectuado o pagamento ao credor ou de terem suportado a execução do bem
empenhado) poderão ainda dispor do direito de regresso contra o devedor, desde que pré-exista uma
relação entre esses terceiros e o devedor – assim, Vaz Serra, Direito de satisfação cit., págs. 12 e 13.
1174
Cfr. o nosso Dos privilégios cit., pág. 78. A justificação para este tratamento diverso da sub-rogação
legal relativamente ao regime geral da figura poderá residir no facto de naquela primeira não ocorrer uma
303
A sub-rogação, havendo vários devedores solidários, poderá ser exercida por
inteiro contra qualquer deles e, se o sub-rogante for um terceiro dador da garantia,
abrangerá outras garantias constituídas pelo devedor, mas, quanto às prestadas por
terceiro, o solvens apenas se sub-rogará contra os demais na sua respectiva parte (ou
seja, por quotas iguais, se o contrário não resultar da relação entre eles).1175
Maiores dúvidas se levantam a respeito da cessão e da sub-rogação parciais1176
de créditos, nomeadamente para efeitos de estabelecer a graduação recíproca do
remanescente do crédito do cedente/sub-rogante e do crédito do cessionário/sub-
rogado.1177
Uma primeira resposta, inspirada no princípio da indivisibilidade do penhor1178,
conclui que a garantia tutelará qualquer destes créditos, pelo que “o crédito originário
conserva, não obstante a sua cisão, o seu carácter unitário, para efeitos de
graduação”,1179 devendo abrir-se, em caso de concurso, rateio entre os respectivos
modificação subjectiva da relação obrigacional, mas antes uma hipótese em que um terceiro extinga um
crédito do originário credor, fazendo valer esse mesmo crédito, no seu próprio interesse: ora, se ao
reclamar do devedor este crédito, o fizesse desacompanhado das garantias que o asseguravam, as
possibilidades de ser satisfeito seriam consideravelmente reduzidas.
1175
Neste sentido, Vaz Serra, Direito de satisfação cit., págs. 14 a16, acrescentando que na hipótese de o
sub-rogante ser o terceiro adquirente, este se sub-rogará nos direitos do credor contra outros terceiros
donos de coisas empenhadas, podendo assim invocar contra estes o penhor do credor, embora limitado à
sua respectiva parte.
1176
De acordo com Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 110 e segs., estes são dois exemplos de constituição
plúrima de garantias sobre o mesmo bem sem o consentimento do devedor, uma vez que este apenas é
chamada à colação após a notificação da cessão parcial. Com efeito, “Non essendo richiesto il concorso
del debitore ceduto, si ha qui un altro caso culminante in cui la elezione del terzo debitore non è per
nulla richiesta. Se così non fosse la disponibilità parziale del credito pignoratizio dipenderebbe
sostanzialmente non più dalla volontà del titolare, ma da quella del debitore il cui rifiuto al concorso
nella elezione distoglierebbe chiunque da un acquisto privo di ogni efficacia, cioè privo della garanzia
reale pur limitata alla misura dell’acquisto”. Nesta conformidade, após a cessão parcial “chiunque dei
creditori detenga la cosa diviene depositario e quindi rappresentante dell’altro di fronte alla massa
chirografaria. Si tratta di una compossessio in parti ideali non fissabili (…)”, com a consequência de
qualquer dos credores satisfeito permanecer obrigado a não restituir o bem até integral satisfação de todos
os co-credores. Se a coisa, no acto de cessão, passar materialmente para o credor cessionário, a entrega já
revela o título de depósito; mas o mesmo se passa se, ao invés, a coisa permanecer em poder do cedente,
por se tratar de “un vero e proprio costituto possessorio giacchè il deponente acquista e nello stesso
tempo lascia il possesso della cosa”, assistindo ao cessionário uma acção para a entrega do bem contra o
devedor, mesmo que a este não tenha sido notificada a cessão parcial.
1177
Poder-se-á, todavia, duvidar da admissibilidade de endosso parcial dos títulos de crédito
(nomeadamente das letras de câmbio) garantidos por penhor, podendo opor-se a este negócio “che chi
paga la cambiale abbia diritto di avere senz’altro il titolo e che ciò sarebbe impossibile nella girata
parziale”. Não obstante, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 116 e segs., admite-o, contrapondo que “Nella
identica condizione si trova il debitore se originariamente c’erano più creditori o più giratari o se
codesta pluralità sia sopravvenuta per sucessione ereditaria”, pelo que, quando o título se encontrar
garantido por penhor, o respectivo endosso parcial produzirá a constituição automática de penhor em
favor de diversos credores (sendo a prioridade entre eles estabelecida do seguinte modo: em regra e como
o endossante se encontra – também - cambialmente obrigado em via de regresso, o endossatário
prevalecerá; só assim não será quando o endosso parcial seja posterior ao vencimento, pois, nesta
hipótese, dar-se-á o concurso proporcional sobre o produto da alienação do bem empenhado entre o
endossante e endossatário, em virtude da remissão legal para o regime da cessão). Da figura analisada
distingue-se o endosso a título de penhor, para o qual se exige a notificação do devedor cedido,
determinando-se a prioridade entre os diversos direitos pela prioridade do endosso.
1178
Acerca desta característica, vide infra n.º 7 do Capítulo I.
1179
Cfr. o nosso Dos privilégios cit., pág. 81.
304
credores, ou seja, nem o crédito remanescente do cedente gozará de nenhuma prioridade
sobre o do cessionário, nem o inverso.1180
Pelo contrário, o mesmo princípio da indivisibilidade é utilizado por alguns para
justificar a inadmissibilidade, no que respeita ao penhor, da sub-rogação parcial.1181
Uma terceira alternativa – que goza se suporte legal para a sub-rogação, por
força do n.º 2 do art.º 593.º (nos termos do qual a sub-rogação parcial não prejudica os
direitos do credor, salvo se outra coisa houver sido estipulada) – passa por graduar
preferencialmente o crédito remanescente do credor originário face ao do sub-rogado.
Em nosso entender, a resposta diverge consoante estejamos perante uma cessão
parcial, caso em que, salvo disposição em contrário da lei ou do negócio de cessão, a
solução primeiramente aventada é a que melhor se coaduna com os diversos interesses
em jogo, fundando-se na natureza acessória da garantia e na ausência de justificação
plausível para privilegiar um dos credores parciais face ou outro (podendo até ficcionar-
se que, para este efeito, o crédito garantido mantém uma configuração unitária), excepto
se as partes convencionarem algo em contrário.
Já para a sub-rogação, deverá acolher-se a terceira alternativa apresentada,
justificando-se esta diferença de regime face à cessão, levando em consideração o já
mencionado art.º 593.º, n.º 2 e, sobretudo, com o facto de a sub-rogação ser uma
1180
É esta a solução do art.º 1205.º do CCI e defendida por Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit.,
págs. 346 e 347, considerando que ambos os créditos gozam do mesmo grau de preferência conferido pela
garantia, caindo, por isso, sob a alçada do art.º 2097.º do CCF (nos termos do qual os credores com
idêntico grau de preferência serão pagos em concorrência), acrescentando ainda que a mesma solução se
deverá aplicar quando o cedente transferir, pouco a pouco, o crédito através de diversos actos sucessivos,
uma vez que os cessionários adquirirão vários créditos com o mesmo grau de preferência, devendo
concorrer entre si (no entanto, estes Autores entendem que estas regras não são de ordem pública, antes
admitindo estipulações em contrário, nomeadamente através das quais o cessionário se reserve uma
prioridade sobre o cedente - podendo esta prioridade estar implícita na garantia de solvabilidade do
devedor conferida pelo cedente ou simplesmente na obrigação pessoal assumida pelo cedente de pagar a
dívida - e, em caso de várias cessões parciais sucessivas, a atribuição de prioridade a um dos cessionários
- muito embora alertem que a este apenas será legítimo invocar essa prioridade a partir da data em que a
cessão seja notificada ou aceite pelo devedor cedido). Se, porém, o devedor cedido, na sequência de uma
acção interposta pelo cedente, pagar a este a totalidade do crédito inicialmente garantido, esta conduta
apenas será válida se, nessa data, ainda não tivessem sido cumpridas as formalidades destinadas a tornar a
cessão oponível a terceiros, porque até essa data o devedor cedido é terceiro face à cessão e esta não lhe
pode ser oposta (se, pelo contrário, a cessão já tiver sido notificada ou aceite pelo terceiro devedor e por
força da indivisibilidade do penhor, quer o cedente, quer os cessionários parciais poderão executar a
garantia na sua totalidade, embora o preço de venda deva ser repartido entre eles proporcionalmente às
respectivas partes de crédito. Acrescentam ainda os Autores citados que o devedor cedido não tem, neste
caso, obrigação de alertar os cessionários parciais que não tenham intervindo no processo desencadeado
pelo cedente, nem pode ser responsabilizado pelo seu silêncio). A mesma solução do concurso era já
sustentada, mesmo em face do anterior Código Civil Italiano, por Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 112 e
segs., não só a respeito da cessão parcial (ao afirmar que “resta la comunione del credito pignoratizio
nelle proporzioni che la cessione ha fissato e quindi il concorso proporzionale di pari grado”), como
também da sub-rogação parcial (assegurando que “Anche la surroga parziale è rimessa alla libera
volontà del creditore, cui la legge non potrebbe imporre un concreditore con diritti uguali o poziori.
Dalla volontarietà del fatto nasce la identica soluzione chi se è tratta nella cessione parziale”, muito
embora reconheça a existência de uma posição propendendo para a subordinação do crédito do sub-
rogatário face ao do sub-rogante, pois o pagamento com sub-rogação extingue a obrigação e apenas por
uma ficção legal aquela obrigação sobrevive com outro titular: daí o grau subordinado do sub-rogatório,
em homenagem à vontade presumível do cedente).
1181
Rubino, Il pegno cit., pág. 196. Vaz Serra, Direito de satisfação cit., pág. 16, critica esta posição,
argumentando que “a indivisibilidade do penhor não se opõe a que este continue a garantir o crédito
subsistente do credor primitivo e garanta o crédito do sub-rogado (que é afinal uma parte do mesmo
crédito). O penhor não se divide. O que pode discutir-se é se o credor primitivo deve ter preferência, em
relação ao sub-rogado, para o efeito de se pagar pelo valor do penhor”.
305
transmissão do crédito com base num pagamento, pelo que tendo esse pagamento sido
apenas parcial, o credor deverá conserva a garantia pelo restante, não podendo a sub-
rogação afectar este status quo.1182
Finalmente, verificando-se a transmissão de dívidas, as garantias não se
manterão se tiverem sido prestadas por terceiro ou pelo antigo devedor desde que, neste
último caso, tal sujeito não tenha consentido na transmissão da dívida (art.º 599.º, n.º 2).
Assim, quando o penhor tenha sido prestado por terceiro1183 ou, sendo
constituído pelo devedor, este não tenha manifestado o seu acordo à transmissão da
dívida, esta será transferida desacompanhada das garantias que a oneravam.
306
posse do cedente, ser entregue ao cessionário, a menos que se encontre em poder de
terceiro (art.ºs 676.º, n.º 2 e 582.º, n.º 2):1188 mais discutível é a possibilidade de
oneração autónoma do penhor, desprovido do crédito cujo cumprimento assegura,
parecendo que a respectiva admissibilidade se encontra restrita à hipótese de oneração
do próprio crédito garantido.1189
direito alemão não permite a transmissão do penhor desacompanhado do crédito que assegura (afirmando
expressamente o §1250, n.º 1, que o penhor não pode ser transferido sem o crédito, acrescentando o n.º 2
que se, na transmissão do crédito, for excluída a transmissão do penhor, este último se extingue) –
corroboram esta leitura Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter
Eickmann, ob. cit., págs. 1547 e segs., admitindo, ao invés, a cedência do crédito sem a garantia, com a
consequente extinção desta.
1188
No direito italiano e na ausência de norma expressa a este respeito, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 50,
admite (acrescentando ser esta a posição unânime da doutrina, muito embora Gabrielli, Il pegno cit., págs.
89 e 90, dê conta de diversas opiniões contrárias) a cessão autónoma do penhor com o consentimento do
constituinte da garantia, mesmo a favor de um terceiro credor quirografário e mesmo que este não seja
credor do mesmo devedor do cedente, mas hesita em admiti-la quando falte esse consentimento, enquanto
Mauro Bussani, Il modello cit., págs. 177 e 178, se limita dar conta da existência diversas posições (a
jurisprudência mais inclinada para considerar tal pacto como apenas produtor de efeitos obrigacionais
entre as partes, a doutrina dominante a negar a validade das mesmas e uma doutrina minoritária a admiti-
las, desde que não fossem prejudiciais para o proprietário do bem dado em garantia – nomeadamente
desde que, após a cessão, a garantia continuasse acantonada nos limites da soma originariamente
garantida). Negam a cessão autónoma do penhor, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 26 e 27 e Realmonte, Il
pegno cit., pág. 637, tendo em conta o prejuízo que dele pode advir para o constituinte, nomeadamente
por entenderem que este pode ter um interesse legítimo em extinguir um crédito em vez de outro, obtendo
a restituição do bem após a extinção do crédito originariamente garantido, enquanto Rubino, Il pegno cit.,
págs. 196 e 197, apenas a admite com o consentimento do proprietário (adiantando que, mesmo a admitir-
se a opinião contrária, sempre será necessário o consentimento do constituinte para operar a transferência
da posse do bem e também que o novo crédito garantido não exceda o valor do crédito originário. Por
outro lado, sempre seguindo o entendimento contrário ao do Autor, a necessidade de evitar um prejuízo
para o concedente impedirá que, sem consentimento deste seja admissível a transferência do penhor para
garantir outra obrigação cujo devedor seja outro sujeito – uma vez que o constituinte poderia perder o
bem empenhado sem obter a extinção do seu próprio débito - , bem com quando o penhor haja sido
constituído por terceiro ou quando a coisa tenha sido entretanto adquirida por um terceiro). Pelo contrário,
Montel, Pegno cit., págs. 792 e 793, admite uma solução muito próxima da consagrada na lei portuguesa,
negando que a acessoriedade constitua um obstáculo à cedência autónoma do penhor, mesmo sem o
consentimento do constituinte, desde que em favor de outro credor do mesmo devedor (“La accessorietà
del pegno non implica infatti che questo debba necessariamente accedere come garanzia al credito in
relazione al quale fu originariamente costituito, ma unicamente che esso acceda ad un credito; essa può
quindi valere ad impedire unicamente la cessione del pegno a chi non sia creditore del comune debitore
(…) Ora la cessione non nuoce agli altri creditori che conservano la stessa posizione giuridica di prima e
neppure nuoce al debitore la cui obligazione complessiva é sempre la stessa. È appena il caso di
soggiungere che la cessione del pegno si può fare soltanto nei limiti del credito originariamente
garantito del pegno”). No direito francês, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 353 e 354,
admitem igualmente a cessão isolada da garantia a favor de um terceiro que não haja pago nenhuma parte
do crédito do cedente, podendo este terceiro ser um outro credor do mesmo devedor ou credor do cedente
(realçam os mesmos Autores que este tipo de negócio tem um limite importante: a garantia cobrirá, no
máximo, o mais baixo dos dois valores – do crédito do cedente e do cessionário).
1189
Nesta conformidade, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 25, asseverando que “O crédito
pignoratício pode ser onerado e o ónus abrange o direito de penhor, como acessório do crédito: assim,
se o crédito pignoratício for dado em penhor, o novo credor pignoratício ficará tendo um direito de
penhor sobre o crédito empenhado, direito esse que compreende o penhor que assegura esse crédito; se o
crédito for dado em penhor, sem o penhor que o garante, este penhor ficará a garantir os direitos que o
credor autor do novo penhor conservar” (realçando que, deste modo, se contorna uma eventual violação
da proibição do sub-penhor).
307
No entanto, a lei limita-se a prever esta possibilidade, remetendo a respectiva
regulamentação para o regime traçado para a transmissão autónoma da hipoteca, com as
necessárias adaptações (cfr. art.ºs 727.º a 729.º).1190
De acordo com o primeiro destes preceitos, a cessão apenas será válida se,
cumulativamente, a hipoteca não for inseparável da pessoa do devedor, se o cessionário
for credor do mesmo devedor,1191 se forem observadas as disposições relativas à cessão
de créditos e, caso a coisa ou direito dado em garantia pertençam a terceiro, o
assentimento deste é obrigatório (art.º 727.º, n.º 1).1192
Da remissão para o regime da cessão, a doutrina dominante retira que a eficácia
da cessão autónoma da hipoteca depende da sua notificação ao devedor (art.º 583.º, n.º
1):1193 permitimo-nos discordar da necessidade de observância deste requisito, uma vez
que a razão de ser do mesmo no caso da cessão de créditos (identificar o sujeito a quem
o devedor deverá efectuar a prestação, em virtude da alteração do outro titular da
relação obrigacional originária) não releva no negócio de cessão autónoma da garantia,
uma vez que esta é inócua para o devedor (que continua obrigado a liquidar os créditos
dos seus credores intervenientes no negócio) e a garantia se destina, essencialmente, a
produzir efeitos na eventualidade de incumprimento daquela obrigação.
Por último, caso o credor disponha de hipoteca sobre mais de uma coisa ou
direito, apenas lhe será legítimo ceder a garantia na íntegra e ao mesmo sujeito (art.º
727.º, n.º 2), no que pode ser considerada uma consequência do princípio da
indivisibilidade da garantia, assim impedindo a sua divisão, mediante a cedência parcial
ou a várias pessoas.1194
Como bem se compreende, quanto mais não seja pelo facto de a cessão não estar
sujeita ao consentimento do devedor, a posição deste último não pode ser agravada pelo
1190
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 748, asseveram que a admissibilidade da cessão
da hipoteca – mas a consideração é extensível ao penhor (cfr. n.º 1 do art.º 676.º) – “corresponde, ou pelo
menos conduz, à figura da sub-hipoteca, ou seja, a hipoteca de uma hipoteca”. Salvo o devido respeito,
que é muito, não concordamos com esta qualificação, porque do que se trata é da transferência da
hipoteca para garantir um outro crédito de outro credor do mesmo devedor (sem que se verifique a
constituição de uma nova garantia), ao invés do que sucede na sub-hipoteca, em que o credor hipotecário
utiliza a garantia a seu favor prestada para assegurar uma dívida por si contraída (ou seja, a garantia é
usada para assegurar outro crédito, do mesmo devedor, para com outro credor): aliás, caso se entendesse
que a cessão autónoma da garantia configura um sub-penhor, tal negócio afrontaria a proibição legal de
tais negócios (vide infra n.º 9.2.2 do Capítulo I). Daí que estejamos mais de acordo da qualificação como
cessão de hipoteca, adoptada por Meneres Campos, ob. cit., pág. 72.
1191
No mesmo sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 15, alertando que a cessão do penhor
para garantia de uma obrigação de pessoa diferente do devedor da primeira só deverá ser possível com o
assentimento do empenhador, pois ”Se assim não fosse, o empenhador seria prejudicado, visto que, com
a venda do penhor, não se extinguiria uma dívida sua” e que quando o empenhador seja um terceiro ou se
o bem for entretanto adquirido por um terceiro a cessão autónoma do penhor será inviável sem o
consentimento desses terceiros, pois, caso contrário, os mesmos poderiam ser prejudicados. Do mesmo
modo Montel, Pegno cit., pág. 792, nota 8, contesta a posição daqueles que admitem a cessão do penhor
por parte do credor pignoratício a um seu credor, argumentando que, desse modo, o devedor se
encontraria duplamente obrigado (contra o cedente e contra o cessionário). Pelo contrário, mesmo
ocorrendo a cessão de um dos vários penhores detidos pelo credor pignoratício (conservando outros) a
outros credores do mesmo devedor, nenhum prejuízo advirá para o devedor, na medida em que a garantia
assegurará sempre a mesma soma (assim, Montel, Pegno cit., pág. 793, nota 2).
1192
Como bem nota Montel, Pegno cit., pág. 793, nota 1, a garantia dada por um crédito alheio não pode
ser cedida em benefício de um credor pessoal do constituinte (embora o mesmo Autor sustente que tal
questão extravasa da questão da cedibilidade autónoma da garantia, pois, para este efeito, apenas deverão
ser considerados os credores do devedor da obrigação garantida), nem tão pouco em seu prejuízo.
1193
Neste sentido, Pestana de Vasconcelos, Direitos das garantias cit., pág. 214 e Menezes Leitão,
Garantias cit., pág. 229 e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 748.
1194
Como bem salientam Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 748.
308
negócio celebrado, pelo que a garantia cedida apenas assegura o crédito do cessionário
nos limites do crédito cedido (art.º 728.º, n.º 1);1195 contudo, também é necessário
proteger a posição do cessionário, razão pela qual, uma vez registada a cessão, a
extinção do crédito originário não afecta a subsistência da garantia (art.º 728.º, n.º 2).1196
É precisamente a sujeição a registo da cessão da hipoteca (cfr. art.º 2.º, n.º 1,
alínea h), do Código do Registo Predial)1197 e da própria hipoteca (art.º 687.º) – e, mais
em particular, a protecção do cessionário que advém desse registo – que determina
algumas adaptações na aplicação daqueles preceitos ao penhor, porquanto a constituição
e a cessão desta garantia não estão, em regra, sujeitas a registo (no caso em que o
estejam vigorarão, naturalmente, as regras ditadas para a hipoteca, ao menos desde que
tal registo seja público).
Em harmonia com a norma que estabelece como forma de constituição típica do
penhor a entrega do bem ao credor (ou a terceiro ou a criação de uma situação de
composse),1198 a lei determina que o bem deverá ser entregue (mesmo que o penhor
houvesse sido constituído por terceiro), na sequência da cessão, ao credor cessionário da
garantia (art.ºs 676.º, n.º 2 e 582.º, n.º 2), sendo a partir do cumprimento desta
formalidade que este último se encontrará protegido contra a extinção do crédito do
cedente da garantia, do mesmo modo que se alcança, com tal entrega, uma publicidade
satisfatória do negócio de cessão.11991200
1195
Como escreve Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 40, “o credor pignoratício não dispõe de legitimidade
para estender unilateralmente o âmbito de aplicação do penhor, nem para transferir um direito mais
amplo do que aquele que detém”, assim protegendo o constituinte da garantia, que não pode ser
prejudicado pela cessão, o que sucederia se a garantia passasse a assegurar uma soma maior do que a
inicialmente acordada - Meneres Campos, ob. cit., pág. 73.
1196
Não fora esta regra especial e poder-se-ia entender que a extinção do crédito inicialmente garantido
implicaria, nos termos do art.º 730.º, alínea a), ex vi do art.º 677.º, o mesmo efeito relativamente à
garantia, mesmo que esta assegurasse, nesse momento, um outro crédito (dizemos poderia porque, em
bom rigor, duvidamos desse entendimento, na medida em que a garantia apenas se extingue “pela
extinção da obrigação a que serve de garantia”: ora, se no momento da extinção do crédito originário, a
garantia já assegurava outro crédito distinto, a extinção do primeiro crédito não implicará o mesmo efeito
relativamente à garantia, pois esta já tutelava um crédito diverso. Nesta conformidade, o sentido útil do
n.º 2 do art.º 728.º é o de apenas proteger a garantia do crédito do cessionário, em caso de extinção do
crédito do cedente, a partir do momento em que este proceda ao registo da cessão). Defendendo
igualmente a sobrevivência do penhor cedido em caso de extinção do crédito originariamente garantido,
Rubino, Il pegno cit., pág. 197 e, para o penhor de créditos, Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 40 e 41
(concretizando que o penhor só será afectado pela extinção do crédito inicialmente garantido se o devedor
deste não tiver sido notificado ou não tiver tido conhecimento da cessão). Contesta esta solução Meneres
Campos, ob. cit., págs. 74 e 75, questionando por que razão, não sendo necessário o consentimento do
onerante para a cessão, “terá ele que suportar uma oneração mais prolongada no tempo se, por hipótese,
a dívida originária se extinguiu?”, podendo até ter um interesse legítimo “em ver o prédio desonerado o
quanto antes, num determinado lapso temporal que inicialmente previra”.
1197
Sustentam Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 748 e Pestana de Vasconcelos,
Direito das garantias cit., pág. 214, que o registo não é constitutivo (ao contrário do que sucede, nos
termos do art.º 687.º, em matéria de constituição da hipoteca), pelo que, em caso de falta de registo da
cessão, esta será apenas ineficaz relativamente a terceiros, mas não entre as partes.
1198
Existindo, para um dado penhor, uma forma diversa de constituição da garantia, será essa mesma que
deverá ser observada para a sua cessão separadamente do crédito assegurado (por exemplo, sendo cedido
um penhor de créditos, a cessão apenas produzirá efeitos a partir da data da notificação do devedor do
crédito empenhado).
1199
Parece inclinar-se neste sentido Menezes Leitão, Cessão cit., pág. 330, ao afirmar que a posse do bem
empenhado apenas se transmite com a entrega da coisa, atendendo à função publicitária daquela entrega.
Ou seja, se para a hipoteca a condição de oponibilidade da cessão é idêntica à prevista para a sua
constituição (a inscrição no registo), já para o penhor, de entre as várias formas possíveis de nascimento
da garantia, a lei identifica apenas uma delas (a entrega ao credor/cessionário) como idónea para efeitos
de cessão autónoma da garantia, por ser essa – entrega ao credor - a tradicional forma de constituição da
309
As maiores reticências, em nosso entender, advêm da hipótese em que o bem
empenhado se encontrava em poder de um terceiro - atendendo à desnecessidade de este
se desapossar do objecto da garantia (art.º 582.º, n.º 2, parte final) – em razão da
ausência de publicidade do negócio de cessão face a terceiros, podendo o mesmo ser
totalmente oculto relativamente a estes: contudo, em face do direito constituído e
conforme salientado anteriormente, a cessão produzirá efeitos, apesar da ausência de
alteração da situação possessória decorrente do penhor inicialmente constituído, desde o
momento da realização do negócio (de acordo com a regra geral segundo a qual a
constituição ou transferência de direitos reais se produz por mero efeito do contrato –
art.º 408.º, n.º 1 – reforçada pela circunstância de cessão produzir efeitos entre as partes
também em virtude do simples consenso das partes).1201
As conclusões acabadas de expor nos dois parágrafos anteriores encontram-se
em consonância com a desnecessidade (anteriormente defendida) de notificação do
negócio de cessão autónoma do penhor ao devedor, resultando da conjugação destas
premissas que, sendo esta última um negócio não solene quanto à forma (à semelhança
da própria constituição da garantia), apenas se encontra sujeita ao preenchimento dos
requisitos expressamente requeridos por lei para o efeito - em regra, a entrega do bem
onerado ao cessionário (cfr. art.º 676.º, n.º 2 e 582.º, n.º 2) - ou até, no caso do bem se
encontrar em poder de terceiro, a nenhuma condição que não a sua celebração (art.º
582.º, n.º 2, parte final).
Verificando-se a transmissão autónoma da garantia sem observância dos
requisitos legais, importa determinar quais as consequências que daí resultam,
afiançando alguns impor-se a extinção da garantia (por, em razão da sua acessoriedade,
não poder subsistir separada de um crédito),1202 muito embora se nos afigure preferível
conceber que a garantia continua a assegurar o cumprimento do crédito originário, nos
termos em que este se encontrar (porquanto a invalidade atinge unicamente o negócio
de cessão da garantia, em nada contendendo com a obrigação garantida e com os termos
em que o cumprimento da mesma era, não fora aquela cessão entretanto invalidada,
assegurada).1203
No que tange à qualificação jurídica deste fenómeno de transmissão isolada do
penhor, ele será potencialmente enquadrável no âmbito da sub-rogação, da novação
subjectiva ou da simples sucessão na situação jurídica pignoratícia.1204
garantia (não nos repugnando, apesar disso, que a cessão possa implicar a criação de uma situação de
composse entre o empenhante e o cessionário ou a entrega do bem a terceiro, até porque qualquer delas
normalmente implicará uma alteração da situação de empossamento anterior – o bem estaria em poder do
cedente – e tornará o negócio cognoscível a terceiros).
1200
Questão diversa é a que se prende com os eventuais efeitos de uma cessão autónoma do penhor sem
cumprimentos dos requisitos enumerados na lei – Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 16, entende
que o penhor se extingue, uma vez que, separado do crédito, não tem condições de subsistência.
1201
Relativamente a este efeito da cessão, ele parece pacífico, sempre que a lei não imponha condições
especiais – neste sentido, por todos, Menezes Leitão, Cessão cit., pág. 315.
1202
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 16.
1203
A admitir-se a solução inversa, a que se faz alusão no texto, o empenhante seria injustamente
beneficiado, pois veria extinta a garantia por si prestada por um facto totalmente alheio à sua vontade e
para a qual não concorreu; pelo contrário, o credor pignoratício originário perderia definitivamente a sua
garantia unicamente em razão do incumprimento de regras atinentes à respectiva cessão posterior
daquela.
1204
Opta por este último entendimento Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 39 e 40, acrescentando que a
mesma apenas produz efeitos ex nunc, reportados à data da cessão do direito (excluindo, por isso, a
aplicabilidade do n.º 3 do art.º 685.º, por não haver uma concorrência de pretensões entre credores
pignoratícios). Rejeita tratar-se de um caso de sub-rogação por a substituição não decorrer do
cumprimento da obrigação garantida, refutando igualmente o baptismo de novação subjectiva por não
ocorrer a extinção da obrigação ou a exoneração do devedor.
310
Perante esta admissibilidade de cessão autónoma do penhor será então legítimo
reconhecer uma autonomia estrutural e independência funcional, podendo concluir-se
pela acessoriedade do penhor relativamente a um crédito, mas não necessariamente ao
crédito originário.1205
Finalmente, cumpre aludir a uma outra possível excepção ao princípio da
acessoriedade, resultante da figura do sub-penhor - negócio através do qual o credor
pignoratício dá em penhor a coisa ou direito recebida em garantia, para assegurar um
débito seu, assim separando o penhor do crédito cujo cumprimento inicialmente
assegurava -, embora essa possibilidade enfrente obstáculos legais.1206
Uma questão pertinente respeita à admissibilidade da cessão do grau
pignoratício,1207 à semelhança da cessão do grau hipotecário, expressamente admitida
pelo art.º 729.º,1208 aplicando-se igualmente o regime da cessão de créditos.1209
À primeira vista, a reposta afirmativa parece impor-se, tendo em conta a
remissão contida, a respeito da cessão autónoma do penhor, no art.º 676.º, n.º 1, para o
regime da cessão autónoma da hipoteca (art.ºs 727.º a 729.º), do qual consta, entre
outras, a norma que permite a cessão apenas do grau conferido por esta garantia.
Todavia, o entendimento contrário também é defensável, entendendo que a
remissão apenas se dirige ao regime da cessão autónoma da garantia – e já não do seu
grau1210 -, argumento reforçado pelo facto de no art.º 676.º apenas se fazer referência a
esta forma de cessão e de, por outro lado, o art.º 729.º não se inserir nas normas do
regime geral da hipoteca que o art.º 678.º manda aplicar ao penhor.
Por outro lado e principalmente, o facto de esta cessão do grau se encontrar
sujeita a registo (art.º 2.º, n.º 1, alínea h), do Código do Registo Predial) e de a
generalidade dos penhores – e dos factos jurídicos atinentes aos bens empenhados - não
estar sujeita a esta formalidade pode condicionar a aplicação desta figura ao penhor, até
porque a necessidade de registo é inspirada pela protecção de terceiros que devem poder
1205
Ciccarello, ob. cit., págs. 684 e 685.
1206
Acerca da admissibilidade do sub-penhor, vide infra n.º 9.2.2 do Capítulo I.
1207
Do mesmo modo, parece admissível a chamada sub-rogação do grau, nos termos da qual o credor
pignoratício posterior fica sub-rogado no grau de um outro credor pignoratício anterior, desde que pague
a este último ou ofereça ao devedor os meios para o fazer – neste sentido em face do direito italiano
anterior ao CCI, Enrico Poggi, ob. cit., pág.464.
1208
Admitia já esta hipótese Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 15 e 16, argumentando que este
negócio, desde que respeitados os requisitos consagrados na lei, não lesa os direitos do empenhador ou de
outros credores (constam igualmente a licitude da cessão do grau de prioridade pignoratícia, Neves de
Oliveira, ob. cit., pág. 41 - ancorando a sua posição na cedibilidade do direito de penhor e na autonomia
privada - e Joana Dias, ob. cit., pág. 142, nota 376). No direito italiano e apesar da ausência de norma
expressa, a doutrina pronuncia-se em termos favoráveis à admissibilidade da cessão do grau entre dois ou
mais credores com penhor sobre o mesmo objecto (cfr. Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 27, Rubino, Il pegno
cit., pág. 197, Realmonte, Il pegno cit., pág. 637 - este último enfatizando que tal acordo apenas será
válido nos limites de valor do crédito de grau anterior, ao menos quando existam credores de grau
intermédio – e, em face do direito anterior, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 158, pelo menos por efeito
da sub-rogação – afirmando que “La inversione o l’ampiamento dei gradi può verificarsi per mezzo di
surroga convenzionale o legale tra i diversi creditori pignoratizi”). No direito francês, Jacques Ghestin e
outros, Droit commun cit., pág. 354, noticia que este negócio também é aceite e apelidado de “exchange
de rang”.
1209
Advogamos, também aqui, a desnecessidade de notificação do negócio ao devedor, pelos mesmos
motivos expostos relativamente à cessão autónoma do penhor.
1210
Parecem inclinar-se neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 696, ao
afirmarem que “Neste artigo 676.º pretende-se, porém, estabelecer uma nova doutrina – a da
possibilidade de transmissão do penhor sem transmissão do crédito. Pela remissão feita para o regime
estabelecido em matéria de hipoteca, vê-se que foram tomadas as providências para que o autor do
penhor não possa ser prejudicado. As disposições aplicáveis são as dos artigos 727.º e 728.º”.
311
confiar na graduação de créditos definidos por lei, impedindo que uma simples
convenção particular oculta altere tal escala.
Assim e relativamente aos bens móveis sujeitos a registo ou a penhores
submetidos a tal formalidade em ordem à sua constituição e desde que tal registo seja
público, nenhum obstáculo se ergue à cessão do grau pignoratício.
Pelo contrário, quanto aos demais bens, a ausência de publicidade da convenção
gera dúvidas no que concerne aos seus efeitos e mesmo à sua legitimidade.
Importa, porém, esclarecer que a cessão de grau não pode colocar o cessionário
em melhor posição do que aquela em que se encontrava o cedente, destarte impedindo a
atribuição ao primeiro de direitos de que não gozasse o cedente (ou seja, a garantia cujo
grau foi cedido assegura os créditos objecto de cessão do grau apenas nos limites
originariamente garantidos), assim se evitando a lesão dos direitos de terceiros.1211
Nesta conformidade e não obstante a falta de publicidade da convenção,
advogamos a licitude das cessões de grau pignoratício e a sua eficácia não apenas
obrigacional, entre o cedente e o cessionário, mas erga omnes,1212 pois da mesma não
resulta qualquer prejuízo para terceiros.1213
Um outro domínio onde é patente a autonomia da garantia face à obrigação
principal diz respeito aos mecanismos de protecção independentes da primeira, seja
contra os comportamentos do devedor (nomeadamente através do recurso à acção
1211
Evitando-se, deste modo, que o credor pignoratício graduado, de acordo com os critérios legais, em
primeiro lugar e possuidor um crédito de apenas 1.000 euros pudesse ceder a sua posição a um outro
credor pignoratício, que ocupava um lugar na cauda da graduação legal, cujo crédito ascendia a 100.000
euros (com claro prejuízo para os credores intermédios, ou seja, cujo crédito se encontrasse
originariamente graduado entre os crédito alvo do negócio de cessão do grau). Neste sentido, Pires de
Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 750 e Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág.
215.
1212
Rubino, Il pegno cit., pág. 197, atribui a esta convenção de cessão de grau eficácia erga omnes,
argumentando tratar-se de um acto de disposição que não pode ser ignorado pelos interessados
(proprietário, devedor e credores quirografários). Pelo contrário Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág.
16, sustenta que a mesma não pode ter senão efeitos obrigacionais “pois uma modificação real, isto é,
com eficácia erga omnes, não pode derivar de uma simples convenção privada sem publicidade suficiente
(…) Mas, entre as partes, pode a convenção ter efeito, assim como o pode ter em relação àqueles outros
que não devam considerar-se terceiros (v.g., herdeiros ou credores comuns das partes”. O argumento da
falta de publicidade, a nosso ver, não procede quanto à cessão de grau da hipoteca (que depende de
registo) ou de penhores sujeitos a registo, mas bem pode ser utilizada para contestar a cessão autónoma
do penhor, que está isenta de qualquer formalidade publicitária. A utilidade da discussão traduz-se no
seguinte: se à convenção for atribuída eficácia real, tudo se passará, mesmo em relação a terceiros, como
se as posições dos credores intervenientes na cessão fossem as que resultam desse negócio; se lhe for
atribuída eficácia meramente obrigacional, a graduação dos créditos dos participantes na cessão será
efectuada, relativamente a terceiros, nos termos da graduação originária (ficando no domínio da relação
entre as partes concretizar os efeitos da inversão da graduação). Em face do direito alemão, Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1544 e
1545, noticiam que a generalidade da doutrina alemã atribui a estes negócios eficácia meramente
obrigacional, muito embora os Autores apenas a ratifiquem quando não exista nenhum titular intermédio
carecido de protecção (caso em que tal acordo modificativo pressupõe o seu consentimento): na hipótese
inversa, aceitam a eficácia real do pacto de cessão do grau.
1213
Com efeito, os demais credores do empenhante, em razão da circunstância de o cessionário não poder
obter maiores direitos que os transmitidos pelo cedente, o devedor da obrigação principal porque a
alteração das garantias desta em nada contendem com o dever de a liquidar e os terceiros adquirentes de
direitos sobre o mesmo bem, uma vez que, mesmo na ausência da cessão, sempre teriam que respeitar as
garantias do cedente e do cessionário.
312
pauliana), seja contra a modificação da consistência da garantia (cfr. art.º 670.º, alínea
c)).1214
Dentro destas últimas, cumpre salientar a possibilidade de a modificação do
conteúdo da garantia servir para aumentar a abrangência desta (designadamente através
do seu alargamento aos melhoramentos ou acessórios da coisa dada em garantia), assim
como a insusceptibilidade de essa modificação prejudicar a própria garantia (seja por
força do princípio da indivisibilidade em caso de destruição ou desaparecimento parcial
da coisa empenhada,1215 seja em virtude do instituto da sub-rogação real).1216
Indo um pouco mais longe, por vezes é a própria obrigação principal que se
encontra influenciada pelas vicissitudes da garantia1217 - podendo a diminuição desta
originar a novação,1218 o agravamento1219 ou o aligeiramento1220 daquela, assim como a
1214
Chamam a atenção para estes aspectos Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 359 a 370.
Acerca dos meios de que o credor dispõe para se acautelar contra a diminuição ou extinção da sua
garantia, vide infra n.ºs 9.1.3 e 9.1.4 do Capítulo I.
1215
A lei, sensível ao risco de depreciação da garantia, prevê outros mecanismos destinados a completar a
indivisibilidade, sempre tendo em vista a preservação da consistência daquela, nomeadamente a
possibilidade de o credor, no caso de a coisa empenhada perecer ou se tornar insuficiente para segurança
da obrigação por motivos a ele não imputáveis, exigir que o devedor a substitua ou reforce e, se este não o
fizer, exigir o imediato cumprimento da obrigação garantida ou, tratando-se de obrigação futura,
constituir uma garantia sobre outros bens do devedor (cfr. art.º 701.º, n.º 1, ex vi do art.º 678.º).
1216
Embora, na ausência de um princípio geral, se possa duvidar da aplicação desta figura na ausência de
norma legal expressa e específica (para mais desenvolvimentos sobre este assunto, vide infra n.º 3.2.5 do
Capítulo II). No entanto, Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 367, aceitam o efeito sub-
rogatório, mesmo na ausência de norma específica, quando a garantia seja composta por bens móveis
fungíveis, argumentando que, nestes casos, não se trata de desaparecimento do objecto da garantia, mas
antes da sua renovação (ou, em alternativa, sustentando que, no penhor, a obrigação de restituição do bem
empenhado não obriga o credor a devolver o mesmo bem, mas antes uma coisa da mesma espécie,
quantidade e qualidade).
1217
Contra, Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2136, asegurando que “la relación de accesoriedad no
se produce en sentido inverso, de manera que las visicitudes de la garantía real no afectan a la
obligación garantizada”.
1218
Apesar de o princípio ser o de que as fatalidades relativas à garantia não serem de molde a provocar a
novação da obrigação principal, pelo que nem a adjunção, nem a supressão de uma nova garantia para
assegurar o cumprimento desta produzirão aquele efeito novatório. Há, porém, casos em que tal se
verifica, como os relatados por Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 374: quando o terceiro
dador da garantia se torne obrigado a título principal; quando seja suprimida uma garantia e resulte da
convenção das partes que estas consideraram a garantia como um elemento essencial do contrato (valendo
aquela supressão como expressão do animus novandi); e quando ocorra a novação da própria garantia,
através da sua substituição por outra a qual, em princípio, será pelo menos tão consistente como a
primeira (sendo esta novação da garantia regida por uma tendencial equivalência entre as duas garantias,
coloca-se a questão de saber qual a sanção quando essa equivalência falhe, entendendo os Autores
mencionados que a resposta varia consoante o momento em que ela se verifique: se for aquando da
execução da substituição da garantia, permitir-se-á a rescisão do contrato; se for no momento da decisão
que ordene a substituição, o tribunal poderá ordenar a constituição de uma outra garantia, mas não a
resolução do contrato a pedido do credor).
1219
Tem-se em vista aqui essencialmente a perda do benefício do prazo (vide, para a generalidade das
obrigações o art.º 780.º, n.ºs 1 e 2) em caso de diminuição ou o desaparecimento das garantias imputável
ao devedor, embora no direito francês tal efeito apenas se produza no seguimento de uma decisão judicial
(e sem prejuízo de as partes preverem outras causas ou outras condições para a perda do benefício do
prazo). Este efeito, como afiançam Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 377 e 378,
constitui uma sanção para o devedor e uma precaução para o credor, permitindo-lhe actuar antes que a
solvabilidade do devedor esteja definitivamente comprometida, acrescentando não ser necessária, em
ordem à aplicação deste preceito, que tenha havido dolo por parte do devedor, bastando a simples
negligência.
1220
Nomeadamente a renúncia do credor à sua garantia poderá ser interpretada, pelo menos nalguns
casos, como sintoma da vontade do credor libertar o devedor da sua obrigação – sobre este assunto, vide
infra n.º 10.2 do Capítulo I.
313
manutenção do status quo a favor do credor)1221 – ou até mesmo pela sua
constituição.1222
No caso específico do penhor rotativo ou assistido de um pacto de rotatividade, a
questão da autonomia da garantia face à obrigação assegurada coloca-se em termos
ligeiramente distintos.1223
Por último, cumpre salientar as especificidades da acessoriedade no penhor de
créditos, em particular no que concerne à transmissão do crédito garantido, operação
que não deve ser qualificada como sub-penhor,1224 nem tão pouco como uma sub-
rogação do credor pignoratício.1225
7 - Indivisibilidade
1221
Maxime quando se pretenda a repetição do indevido, o qual não pode ser exercido contra o credor que
haja perdido as suas garantias – Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., pág. 379.
1222
Assim, a existência de uma garantia pode constituir um indício para comprovar a existência de um
contrato de mútuo, sempre que este seja ou possa ser celebrado verbalmente e possa ser provado por
qualquer dos meios legalmente admissíveis; pode o contrato principal ser subordinado à constituição de
garantias, funcionando a obtenção desta como condição suspensiva ou resolutiva de celebração daquele
contrato; ou até fazendo com que a concessão de garantias surja como requisito essencial do contrato, no
sentido em que a celebração deste será retardado até à obtenção daquelas, podendo mesmo gerar a
responsabilidade pré-contratual do devedor que não tenha levado a cabo os esforços necessários para
fornecer a garantia; por último, se o devedor se tiver obrigado, no âmbito do próprio contrato, a fornecer
uma garantia, poderá o credor opor-lhe a excepção do não cumprimento do contrato ou a resolução por
incumprimento do contrato principal – Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 384 a 391.
1223
Neste âmbito, Joana Dias, ob. cit., págs. 129 a 131, chama a atenção para o facto de, havendo
cláusulas de rotatividade, estas contenderem com o cumprimento da obrigação principal, na medida em
que “a sorte do objecto principal fica, de certo modo, dependente da observância destas cláusulas (…)
Não será, contudo, uma acessoriedade típica, tout court, se é que assim a podemos designar, porque não
se verifica aqui uma das suas manifestações típicas: a da exigibilidade da observância destas cláusulas
quando não se efectua, ou se efectua defeituosamente, o cumprimento da obrigação principal. Mesmo no
caso de não se ter vencido a obrigação principal, estas cláusulas poderão ser violadas”. Todavia,
entende subsistir a acessoriedade, tendo em conta que estas cláusulas exigem uma obrigação validamente
constituída, em caso de transmissão da obrigação a garantia segue o mesmo caminho acompanhada da
cláusula de rotatividade.
1224
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 166, realçando “não nos depararmos com uma sobreposição de
contratos, dado que o credor pignoratício se limita, pura e simplesmente a transmitir, rectius, a ceder a
posição que tem no contrato de penhor”.
1225
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 166, afirmando que o novo credor não ingressa na posição do
anterior titular da garantia por efeito do cumprimento da obrigação garantida (acrescentando não se tratar,
tão pouco, de uma novação objectiva, uma vez que não existe a extinção de qualquer obrigação, nem a
exoneração do devedor), limitando-se a operar a transmissão do crédito garantido, razão pela qual não
poderá implicar um aumento do valor garantido (isto é, o novo crédito garantido apenas usufrui da
garantia nos mesmos termos do crédito original).
1226
Utiliza o vocábulo “intangibilidade” como sinónimo de indivisibilidade, no sentido em que a garantia
permanece imune, até à integral satisfação do credor pignoratício, a qualquer divisão física do bem ou
jurídica da obrigação garantida, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 463.
1227
Rubino, Il pegno cit., pág. 199, vai mesmo ao ponto de estender o princípio da indivisibilidade ao
contrato-promessa de penhor, asseverando que, se antes da celebração do contrato definitivo, o montante
do crédito diminuir o penhor deve constituir-se sobre a(s) coisa(s) predeterminada(s) na sua totalidade (no
mesmo sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 20 e 21, embora alertando para o facto de esta
ser uma questão de interpretação, ou seja, de saber se, diminuindo o crédito, se pretendeu que o penhor
314
A ratio legis deste princípio funda-se na necessidade de manter a relação
pignoratícia de garantia imune face a circunstâncias que pudessem produzir uma divisão
ou diminuição do bem empenhado ou, noutro plano, que o fraccionamento do lado
activo ou passivo da obrigação garantida possa impedir a operatividade plena da
garantia, assim dificultando a cobrança do crédito assegurado.
Nesta conformidade, a indivisibilidade contribui decisivamente para o reforço da
garantia do credor, até porque a divisibilidade seria fonte de sérios entraves e
inconvenientes em sede de execução do penhor.1228
Naturalmente que, se o crédito assegurado se encontra originariamente divido
entre vários credores, de modo a que a parte correspondente a cada um deles seja
assegurado por garantias distintas, a extinção de parte da dívida apenas determina
idêntico efeito relativamente às garantias que tutelavam tal parcela.1229
Analogamente, a indivisibilidade não se opõe a que o penhor constituído por um
ou mais objectos seja, unitariamente, concedido em garantia de mais de um crédito,1230
(apenas se extinguindo quando todos eles forem liquidados) nem, por outro lado, que
vários objectos sejam, unitariamente, dados em penhor para garantir apenas um crédito
principal.
Neste último caso, estamos perante aquilo a que se convencionou chamar um
penhor solidário, sendo o seu reconhecimento, desde logo, uma primeira manifestação
da indivisibilidade da garantia.1231
abrangesse a totalidade dos bens). Todavia, o mesmo Autor sustenta que a obrigação de dar em penhor é
divisível, pelo que se o promitente devedor falecer antes da conclusão do contrato definitivo e o bem a dar
em penhor não se tornar propriedade exclusiva de nenhum dos herdeiros, o credor poderá exigir, para
garantia da totalidade do seu crédito, a cada um destes a constituição de penhor sobre uma parte da coisa
proporcional à sua quota hereditária (em termos concordantes, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág.
21).
1228
Neste sentido, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 90 e Il pegno anomalo cit., pág. 72. Por seu turno Montel,
Pegno cit., pág. 791, acrescenta que a indivisibilidade se fundamenta ainda na vontade presumível das
partes.
1229
Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2141.
1230
Salientando este aspecto, vide o Acórdão da Cassazione Italiana de 5/7/200, citado por Barbara
Cusato, ob. cit., pág. 54 (no caso, como apenas um dos créditos garantidos se encontrava determinado, o
aresto considerou que apenas relativamente a esse se produziria o efeito da indivisibilidade, isto é, o
penhor garantiria o integral cumprimento desse crédito).
1231
A este respeito, Cordero Lobato, Comentarios cit., págs. 2140 e 2141, Caio Mário da Silva Pereira,
ob. cit., pág. 339 (definindo-o como aquele em que qualquer das coisas oneradas se encontre sujeita ao
pagamento integral do crédito garantido, como normalmente sucederá em razão do princípio da
indivisibilidade e Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann,
ob. cit., págs. 1485 e 1486 (realçando que tal solidariedade pode ser originária ou advir de divisão do
objecto empenhado posterior à constituição da garantia e mesmo quando os bens sejam onerados por
diferentes sujeitos e em momentos diversos, desde que em garantia de um mesmo crédito: quanto ao
regime desta garantia, os Autores relatam que cada um dos bens responde pela totalidade do crédito -
§1222 do BGB – podendo o credor escolher livremente, salvo pacto em contrário, qual dos bens executar,
nos termos do §1230 do BGB, embora não tenha o direito de exigir a divisão do penhor solidário em
vários penhores autónomos). O chamado penhor solidário é aquele que, recaindo sobre vários objectos,
implica que cada um deles assegure a totalidade do crédito (contrapondo-se ao penhor simples, no qual o
penhor recai igualmente sobre mais de um objecto, mas designa-se a parte do crédito pela qual cada um
responde): no silêncio das partes e quando recaia sobre mais de um bem, deve presumir-se ser o penhor
solidário. A figura do penhor solidário pode gerar algumas questões, nomeadamente de constituição,
quando os bens a empenhar não pertençam ao mesmo proprietário (caso em que deverá ser estabelecido
um direito de regresso entre estes, calculado dividindo entre os empenhantes, por igual, o montante da
dívida e não na proporção do valor dos bens empenhados, pois todos os penhores foram concedidos para
garantia da totalidade do crédito) - acerca destas questões, vide Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58,
págs. 56 a 59 e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 67 e, no direito espanhol, De la Santa Garcia, Prenda de
315
Porém, esta figura apresenta riscos para o empenhante (ao tornar a posterior
obtenção de crédito muito improvável, tendo em conta que cada um dos bens onerados
responde pela anterior dívida) e para os (eventuais) credores pignoratícios subsequentes
(por manter onerado um conjunto vasto de bens, mesmo em caso de pagamento parcial
do débito).
Ainda assim, a figura do penhor solidário parece admissível, até porque, para
paliar aqueles inconvenientes (especialmente o mencionado em último lugar), a lei
determina que, em sede de execução, o devedor se pode opor a que a execução se
estenda além do necessário para satisfação do direito do credor (art.º 697.º); para
salvaguardar a posição dos (eventuais) credores pignoratícios posteriores, gozam estes
da faculdade pagar ao credor garantido anterior, ficando sub-rogado nos direitos deste
(art.º 592.º).1232
valores cit., pág. 122. Por outro lado, dispõe o §1222 do BGB, o princípio da indivisibilidade significa
também que, recaindo o penhor sobre vários bens, cada um deles responde pela totalidade da dívida.
1232
Meneres Campos, ob. cit., pág. 119 e segs. e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág.
719.
1233
Rubino, Il pegno cit., pág. 198 acrescenta que, em caso de sucessão hereditária, tal efeito se produz
ainda que a coisa empenhada tenha passado para a propriedade exclusiva de um dos herdeiros do devedor.
Já Afonso Dionysio Gama, ob. cit., págs. 22 e 23, salienta não ser lícito aos sucessores do devedor remir o
penhor na proporção dos seus quinhões, embora admita que qualquer deles o possa fazer no seu todo (no
mesmo sentido, vide o actual art.º 1429.º do CCB, no qual se acrescenta que o herdeiro ou sucessor que
efectue a remição fica sub-rogado nos direitos do credor pelas quotas que houver satisfeito).
1234
Guillouard, ob. cit., págs. 165, 166, Faggella, ob. cit., pág. 125 e Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs.
1868 (assinalando este último que, em caso de divisão do crédito garantido, “cada uno de los distintos
acreedores podrá actuar por la parte de crédito que le ha correspondido sobre la totalidad de la cosa
gravada, sin que, en otro sentido, esté facultado para restituir ésta o cancelar la garantía en tanto no se
haya satisfecho integralmente la cantidad debida a los restantes acreedores”). Francesco Pellegrini, ob.
cit., pág. 93 e segs., aponta este como um dos exemplos de constituição de múltiplos direitos pignoratícios
sobre o mesmo bem, residindo o fundamento desta responsabilidade de cada um dos co-herdeiros na
necessidade de evitar que o bem regresse ao poder do empenhante, desse modo extinguindo a garantia
(noutros termos, “Al creditore chirografario importa di vedere che la cosa sia uscita dalla potestà del
debitore (…) il quale scopo è raggiunto sempre che la cosa passi al creditore o al terzo eletto delle due
parti contraenti (…) ma, ciò fatto, non ha da ficcare il naso sul modo come il creditore od i contraenti
esercitino quel pottere per mezzo dei rappresentanti diretti”). Contudo, caso o de cuius decida fraccionar
o crédito de modo a excluir algum dos seus herdeiros ou inclua o crédito em questão num legado
efectuado a terceiros não herdeiros, parece que, por força da acessoriedade da garantia “gli eredi esclusi
non avrebbero più alcun diritto di ritenere la cosa pignorata e dovrebbero consegnarla senz’altro al
nuovo titolare del credito”, embora o Autor citado se incline para reconhecer que aqueles apenas têm o
direito, mas não o dever, de o fazer - correndo do risco exclusivo se o fizerem sem o assentimento do
316
Todavia, importa determinar qual a responsabilidade dos co-herdeiros em caso
de impossibilidade de restituição do bem empenhado, cabendo distinguir consoante a
coisa pereça antes da abertura da sucessão ou posteriormente.1235
Situação análoga se verifica quando se produza uma cessão parcial do crédito
garantido, caso em que o penhor permanece íntegro apesar da dispersão da titularidade
do crédito originário.1236
Noutro plano, a indivisibilidade do penhor no que respeita ao crédito garantido
também se manifesta mesmo quando não ocorra qualquer divisão deste, não obstando a
que, tendo o crédito garantido prazos de vencimento parciais, o credor possa instar a
execução relativamente à parte do crédito vencido, permanecendo a restante parte do
crédito garantida pelos mesmos bens iniciai.1237
Analogamente, verificando-se o cumprimento parcial da obrigação garantida, o
penhor continua a onerar, para garantia do crédito remanescente, a totalidade do bem ou
dos bens inicialmente empenhados, não sendo lícito ao constituinte da garantia requerer
uma redução proporcional do valor ou da quantidade dos bens dados em garantia.1238
Por isso se pode afirmar que, nesta derradeira hipótese, indivisibilidade conduz a
que garantia apresente uma maior intensidade à medida que o montante da obrigação
garantida diminui,1239 o que, no limite, poderá colocar questões de grande desproporção
entre o montante assegurado e a objecto onerado.1240
empenhante, assentimento este que, a verificar-se, originará a novação do contrato originário – com base
na circunstância de “Il diritto reale di pegno, dunque, passa senz’altro al benificato, ma in virtù del
contratto di deposito (…) il testator, e quindi i suoi eredi universali, hanno l’obbligo imprescindibile ed
irrevocabile di restituir ela cosa al proprietario deponente. Il testatore (…) non può comunque limitar ela
garanzia del debitore per quel che riguarda l’azione diretta principalissima, nascente dal contratto
pignoratizio, quale azione, in caso di mancata restituzione, ha per garanzia ultima l’intero patrimonio
del creditore depositario”. Confirma esta solução com base no art.º 1860.º, n.º 3, do CCE, Veiga Copo,
La prenda de acciones cit., pág. 69, nota 36 (estabelecendo que, em caso de falecimento do credor e de
divisão do crédito entre os seus herdeiros, se a um deles for conferida a posse do bem onerado e este
proceda à respectiva cobrança, não poderá restituir o bem ao empenhante: se o fizer, os demais herdeiros
poderão exigir deste último a devolução do bem).
1235
Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 96 e segs.. Segundo este Autor, no primeiro caso o devedor apenas
será obrigado a pagar no momento da restituição do bem empenhado e, como o perecimento do bem é
imputável ao de cuius (e, por isso, a obrigação já se tinha constituído), a compensação judicial de créditos
é legítima. Já na segunda hipótese, “il debitore è tenuto a consentire il nuovo deposito colla pluralità dei
depositari, sia perchè il contratto di deposito, normalmente, non è un contratto intuitu personae, sia
perchè quello specialissimo nascente del pegno e che avviene nell’interesse del depositario, non può
sciogliersi se non con la estinzione del debito pignoratizio”, concluindo que os danos sofridos pelo
objecto da garantia “siano addebitabili al creditore, i molteplici depositari soprevvenuti debbano
rispondere solidalmente” (esta responsabilidade assenta no facto de a escolha do novo depositário ocorrer
sem intervenção do empenhante, o qual não é sequer auscultado para este efeito).
1236
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 70.
1237
Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2140.
1238
Rubino, Il pegno cit., pág. 198, Faggella, ob. cit., pág. 150 e Afonso Dionysio, ob. cit., pág. 22
(admitindo, porém, convenção em contrário). Em termos aproximados, o art.º 1421.º do CCB estabelece
que o pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da
garantia, ainda que esta compreenda vários bens.
1239
Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 697, aponta como exemplo um crédito de 300, relativamente
ao qual se dá um pagamento parcial de 200: ora, por força da indivisibilidade, a garantia continua a
assegurar os remanescentes 100 com o mesmo valor, sendo bem mais provável que o credor consiga
alienar os bens onerados por 100 (valor actual da obrigação garantida) do que por 300 (valor inicial da
mesma).
1240
Salienta este aspecto, a propósito da hipoteca (a respeito da qual a desproporção poderá ser mais
significativa, nomeadamente nos créditos bancários para aquisição de imóveis), Meneres Campos, ob.
cit., págs. 132 e 133.
317
Pelo contrário, operando-se a divisão do lado passivo do crédito assegurado, se
um dos novos devedores extinguir a sua parte do débito não poderá exigir uma
restituição proporcional (e muito menos total) do bem empenhado até que a dívida
original seja integralmente satisfeita.1241
1241
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 198, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 91 e Faggella, ob. cit., pág.
125.,
1242
Rubino, Il pegno cit., pág. 198.
1243
Meneres Campos, ob. cit., pág. 124, acrescenta que, deste modo, o credor pode executar apenas uma
das partes em que o objecto inicial se dividiu e, não obtendo integral pagamento, intentar nova execução
sobre outra das partes (assistindo-lhe, por outro lado, o direito de executar logo todos os bens que
resultaram da divisão).
1244
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1868.
1245
Cfr. o nosso Dos privilégios cit., págs. 82 e 83, em especial nota 183.
1246
Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 23.
1247
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1869, adiantando ser já mais plausível a divisão do crédito ou da
dívida, sendo até frequente o caso de morte do credor ou do devedor: se na segunda hipótese o principal
efeito será impedir que o herdeiro do devedor que tenha pago parte da dívida possa pedir uma extinção
proporcional da garantia, na primeira o herdeiro do credor que recebeu a sua parte não pode devolver o
bem empenhado em prejuízo dos demais herdeiros que ainda não tivessem sido satisfeitos (podendo estes,
318
7.3 - Excepções e limites à indivisibilidade
se tal suceder, exigir do devedor a reintegração na posse do bem e até, se o bem já não se encontrar no
património do devedor, exigir uma indemnização ao herdeiro incumpridor), o mesmo se aplicando se a
garantia houver sido constituída por terceiro (em termos semelhantes, vide Guillarte Zapatero,
Comentários cit., págs. 467 e 468).
1248
A lei espanhola parece consagrar (ao menos aparentemente) uma excepção à indivisibilidade do
penhor (e da hipoteca) nos casos em que, sendo várias as coisas dadas em penhor, cada uma delas garanta
apenas uma determinada porção do crédito, tendo o devedor direito a que o penhor se extinga à medida
que seja satisfeita a parte da dívida pela qual cada coisa respondia especialmente (art.º 1860.º, n.ºs 4 e 5
do CCE): porém, Diez-Picazo, ob. cit., págs. 487 e 488, entende não estarmos perante uma excepção ao
princípio da indivisibilidade, mas antes diante da consideração independente de cada parte do crédito,
cada uma munida da sua própria garantia (em termos concordantes, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs.
1868 e 1869, asegurando que “Afectadas varias cosas para asegurar las distintas cuotas o porciones de
un crédito, dividido a estos efectos por la voluntad de los interesados, no procede, en rigor, hablar de
una sola garantía, sino que ha de considerarse que existen tantas deudas cuantas sean las porciones en
que se haya dividido el crédito y el mismo número de derechos reales de garantía. Así, pues, no parece
proprio hablar de excepción al principio de indivisibilidad de ésta cuando, en realidad, ya nece dividida.
Para ello, se requeriría no sólo que se produjera el fraccionamiento del crédito, al menos a efectos de
seguridad, sino también la existencia de varias cosas que individualmente aparecieran sometidas al
gravamen de cada una de las partes en que se ha dividido aquél” (em termos similares, Guillarte
Zapatero, Comentario cit., págs. 465 e 466). Noutros termos, um conjunto de coisas pode ser afecto em
garantia de uma dupla forma, seja estabelecendo que toda e qualquer delas reponde unitária e
conjuntamente pela totalidade da obrigação garantida (caso em que o princípio da indivisibilidade é
plenamente aplicável, pois trata-se de apenas uma garantia que recai sobre diversos bens); ou, pelo
contrário, determinando que cada coisa responde apenas por uma parte do crédito em que, para estes
efeitos, se divide o crédito (caso em que não se poderá falar de invisibilidade, porquanto existem desde o
início diversos direitos reais de garantia e a indivisibilidade, ao invés, pressupõe a existência de uma
única garantia, destinando-se a evitar a divisão desta garantia unitária): ora, nesta segunda hipótese, o
devedor tem direito a que se extinga a garantia à medida que seja satisfeita a parte da dívida pela qual
responde cada um dos bens, significando a indivisibilidade que “la extinción del gravamen que afecta a
cada una de aquéllas cosas sólo tendrá lugar si se produce el total pago de la parte del crédito que
estaba garantizando. Una vez que, mediante el pago efetuado, se extingue la garantía que afectaba a
cada una de las cosas en concreto, ésta queda totalmente liberada de responsabilidad aunque el
acreedor no logre cobrar la totalidad del crédito, cuando al realizarse el valor de las otras cosas
gravadas no se obtiene cantidad suficiente para cubrir el importe total de la deuda”). Por outro lado, no
direito italiano o art.º 1849.º do CCI prevê, em sede de antecipação bancária, que o constituinte da
garantia possa retirar parte dos títulos ou das mercadorias dadas em penhor, desde que restitua uma parte
proporcional das somas que lhe tenham sido atribuídas (e de outras despesas de que a banca seja credora).
1249
Barbara Cusato, ob. cit., pág. 53, justifica a admissibilidade desta derrogação com a própria razão de
ser da indivisibilidade – reforço da garantia, na medida em que a divisibilidade produziria inconvenientes,
nomeadamente em sede de execução do penhor – por isso admitindo que as partes a ela renunciem.
Também Ciccarello, ob. cit., pág. 685 e Montel, Pegno cit., pág. 791, reconhecem, sem mais, a
possibilidade de as partes renunciarem à indivisibilidade. No direito francês aceitam igualmente a
validade destas cláusulas Baudry-Lacantinerie, ob.cit., pág. 108 (com fundamento no facto de a lei nada
mais fazer que interpretar a vontade presumível das partes, pelo que será legítimo a estas afastar a
presunção) e Guillouard, ob. cit., pág. 166 (por entender não ser a indivisibilidade um princípio de ordem
pública). No direito espanhol, Diez-Picazo, ob. cit., pág. 488 e Malo Concepción, ob. cit., pág. 840,
aceitam que a indivisibilidade possa ser afastada por acordo das partes (este último, escreve ser “possible
un pacto que conceda al constituyente de la prenda la possibilidad de ver liberadas las participaciones a
medida que se vaya satisfaciendo el importe de la obligación principal”).
319
indivisível por natureza, mas não por essência1250 - do mesmo modo que o credor a ela
pode renunciar.1251
Tendo em conta a possibilidade de afastamento convencional do efeito da
indivisibilidade, alguns Autores preferem falar da exigência “que a coisa seja mantida
indivisa ao penhor”.1252
Estas convenções podem assumir contornos bastante diversos, como por
exemplo se as partes estipularem as partes que, em caso de pagamento parcial, o
constituinte terá direito a uma restituição proporcional da coisa empenhada, cláusula
esta que não levantará problemas jurídicos de maior (salvo, eventualmente, os que
decorrem da dificuldade em proceder a uma avaliação e/ou divisão do bem empenhado
para, em seguida, proceder à sua restituição ao constituinte).1253
Outra convenção de exclusão da indivisibilidade poderá consistir em determinar
que a garantia se encontre, desde o início, limitada a uma parte do crédito, (que pode
coincidir com a quota de um dos devedores de uma obrigação solidária),1254 1255
1250
Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 109 (ou, como prefere Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 66, não se
trata de uma norma de ordem pública, mas tão somente de uma disposição supletiva). Já Guillarte
Zapatero, Comentario cit., págs. 463 e 464, considera que a indivisibilidade “ni deriva de principios
lógicos inderogables, ni es una nota de carácter institucional, por lo que no debe considerarse como
esencial a prenda e hipoteca, sino simplemente natural. Sua sanción legislativa se explica por razones
prácticas de reforzamiento de la garantía, deriva (…) de la voluntad presunta de los interesados,
entendiéndose consecuentemente por la generalidad de la doctrina que puede ser objeto de supresión
mediante pacto o renuncia. Entre las razones de orden práctico para justificar la indivisibilidad de la
garantía se suele aducir la dificuldad que supondría dividir la cosa gravada en proporción al crédito, lo
que frecuentemente daría lugar a duas y litigios” (em termos aproximados, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit.,
pág. 1867). No mesmo sentido, para a hipoteca, Meneres Campos, ob. cit., pág. 115, afirmando que a
indivisibilidade “é uma característica que, embora não essencial, resulta da natureza real do direito de
hipoteca”.
1251
Meneres Campos, ob. cit., pág. 129, admite a renúncia resultante de cláusula aposta no acto de
constituição da garantia ou resultante de um acto posterior do credor (aponta como exemplo o caso em
que o credor renuncia à indivisibilidade quanto ao objecto onerado, passando cada uma das coisas
oneradas a responder por uma parte do crédito). Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 270
Diez-Picazo, ob. cit., pág. 488, admitem a renúncia unilateral do credor, por ser exclusivamente em seu
favor que a indivisibilidade opera.
1252
Faggella, ob. cit., pág. 151.
1253
Admitem esta cláusula Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 72, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 52,
Realmonte, Il pegno cit., pág. 638, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 69, Albaladejo, Derecho
Civil III cit. cit., pág. 698, De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 122 (acrescentando que, não
raras vezes, tal cláusula é utilizada conjuntamente com outra que reparte a responsabilidade pela
obrigação garantida entre diversos bens onerados) e, especialmente, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág.
171 e segs. (ressalvando que o bem empenhado deverá ser divisível – como as mercadorias homogéneas -
e que a divisão pode ser em partes iguais ou desiguais) e, no nosso direito, Hugo Ramos Alves, ob. cit.,
pág. 67. Por seu turno Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 83 e 84, aceita que, no penhor de créditos, se
estabeleça que em caso de cessão parcial ou satisfação parcial do crédito empenhado o penhor apenas se
mantenha sobre determinados créditos.
1254
Desde logo, cada um dos condevedores pode empenhar um bem em garantia de toda a obrigação
solidária, tendo, nessa hipótese e se for executado o bem empenhado, direito de regresso contra os demais
condevedores, na proporção das respectivas relações internas; se, ao invés, a garantia houver sido
prestada por terceiro, este, depois de efectuar o pagamento e de ser expropriado do bem, fica sub-rogado
nos direitos do credor – cfr. art.º 592.º, n.º 1 - podendo exercê-los por inteiro contra qualquer dos
devedores - Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58 cit., págs. 22 e 23 (havendo pluralidade de credores e
sendo divisível o objecto do penhor, o credor pago parcialmente deverá poder restituir a parte
correspondente do penhor, de modo que se A empenhou a favor de B, C e D uma determinada quantia em
dinheiro e tendo A pago a B a parte que lhe cabia na dívida, poder-se-á concluir que se pretendeu poder A
exigir a restituição da parte correspondente do objecto empenhado), mas, ao invés, quando o penhor tiver
sido constituído por vários devedores e um deles liquide a sua parte da dívida, este não poderá, salvo
acordo em contrário, reclamar do credor a restituição de parte proporcional do objecto empenhado,
320
predeterminando o montante abrangido pela garantia1256 e extinguindo-se o penhor
quando tal montante for liquidado.1257
Admite-se, ainda, que as partes possam acordar (por pacto contemporâneo à
criação da garantia ou posterior à divisão) a divisão do direito de garantia em caso de
divisão da coisa onerada, passando cada uma das porções desta a responder por uma
parte da dívida originária.1258
Se as partes houverem excluído apenas uma das diversas manifestações da
indivisibilidade do penhor, esta exclusão não deverá estender-se, por via interpretativa
ou presuntiva, às restantes, excepto se as circunstâncias do caso concreto permitam
concluir em sentido contrário.1259
8 - Execução da garantia
atendendo à indivisibilidade do penhor (cfr. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 22 a 24). Por
outro lado e este é o aspecto que mais convém realçar, Rubino, Il pegno cit., pág. 200, admite que, nas
obrigações solidárias e nas indivisíveis por convenção das partes (mas já não nas indivisíveis por natureza
ou por força da lei, pois nestas duas últimas hipóteses qualquer renúncia à indivisibilidade encontra-se
excluída), as partes possam limitar o penhor a uma parte da dívida, embora, salvo convenção em
contrário, a parte da obrigação garantida vincule todos os devedores em favor de todos os credores (é,
assim possível, que o penhor seja constituído apenas por um dos diversos devedores – para assegurar o
pagamento da sua quota - ou em favor de um dos diversos credores, caso em que a garantia apenas poderá
ser invocada, respectivamente, depois de interpelado infrutiferamente esse devedor ou quando o referido
credor actue isoladamente - solução esta encontra conforto no art.º 1293.º do CCI, de acordo com o qual
não obsta à solidariedade o facto de algum dos devedores se encontrar obrigado em moldes diversos ou de
o devedor comum assumir responsabilidades distintas para com cada um dos credores e é defendida
também por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58 cit., pág. 23). Aliás, a possibilidade de cada um dos
devedores se obrigar em termos diversos dos demais, é expressamente prevista pelo art.º 512.º, n.º 2
(preceito do qual Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 528, retiram expressamente a
admissibilidade de um dos créditos se encontrar garantido e outro não), norma essa que prescreve
igualmente a hipotética diversidade da obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores,
destarte confortando as soluções preconizadas na presente nota.
1255
No entanto, Rubino, Il pegno cit., pág. 200, não admite, no caso da solidariedade activa, que, por
acordo entre o devedor e um dos vários credores, se limite a garantia a uma parte do crédito
correspondente a esse credor no âmbito das relações internas, salvo se os demais credores derem o seu
consentimento, assim renunciando ao benefício da solidariedade, pois, se tal fosse admitido, a garantia
não poderia ser utilizada pelos outros credores, os quais nem sequer poderiam ficar com um proporcional
ao montante obtido pelo credor interveniente no acordo com o devedor. Ao invés, parecem não subsistir
dúvidas, na hipótese de solidariedade passiva, quanto à licitude do pacto através do qual o credor consinta
limitar a garantia a um só devedor e à quota desse devedor nas relações internas, destarte rompendo a
solidariedade, mas sem qualquer prejuízo para os demais devedores solidários (aceita igualmente uma
convenção com este teor Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 23).
1256
Rubino, Il pegno cit., pág. 199, admite esta fixação do montante mesmo quando no momento da
constituição da garantia o crédito a assegurar não seja de natureza pecuniária ou não tenha por objecto
uma prestação divisível e que se a soma em questão se mostrar igual ou superior ao valor total do crédito,
o penhor garantirá todo o crédito.
1257
Se, porém, o inadimplemento for total – ou, pelo menos, abranger também uma parte do crédito
garantido – o credor apenas só gozará da preferência pignoratícia relativamente ao montante garantido –
ou à parte dele que tenha ficado por liquidar – surgindo quanto ao restante como credor quirografário
(Rubino, Il pegno cit., pág. 199 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 91 e também Il pegno anomalo cit., pág.
72). Aceitam igualmente esta cláusula Realmonte, Il pegno cit., pág. 638 e Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 69.
1258
Consagrando, deste modo, um fraccionamento da garantia originária – admite este tipo de acordos
Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 698.
1259
Rubino, Il pegno cit., pág. 199.
321
Em caso de vencimento da obrigação garantida1260 - o qual poderá ocorrer em
momento anterior ao inicialmente fixado para o efeito, seja por força da verificação de
determinados factos que, por convenção das partes, desencadeiam tal efeito,1261 seja
porque tal vencimento antecipado decorre da própria lei (cfr. art.ºs 670.º, alínea c) e
701.º)1262 – e em caso de não cumprimento voluntário daquela, assiste ao credor
pignoratício o poder de se satisfazer pelo valor da coisa (ou das coisas) objecto da
garantia,12631264 mas não terá o dever de o fazer,1265 embora se suscitem dúvidas a
propósito de bens cujo valor seja alvo de oscilações frequentes.1266
1260
Se o crédito garantido pelo penhor não for pecuniário, o penhor não se vencerá enquanto não for
convertido em dinheiro, sob pena de não se poder determinar qual a quantia a retirar do produto da venda
do bem empenhado (cfr. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58., pág. 211). Por outro lado, tratando-se de
um contrato de compra e venda a prestações, o não pagamento de uma delas importa o vencimento das
restantes (art.º 781.º), pelo que bastará o incumprimento de uma daquelas prestações para legitimar o
recurso do credor pignoratício à via executiva, independentemente de interpelação para pagamento das
demais prestações (nesse sentido, Acórdãos do STJ de 29/6/1995, in www.dgsi.pt, e da Relação de Lisboa
de 12/5/1994, in CJ, III, pág. 89 e segs.).
1261
Nos termos do art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, nos penhores sob a alçada deste diploma é
legítimo às partes convencionar o vencimento antecipado da obrigação de restituição do credor
pignoratício e o cumprimento da mesma por compensação, caso ocorra um facto que desencadeie a
execução, designadamente o não cumprimento do contrato ou qualquer facto a que as partes atribuam
efeito análogo (assim se concedendo uma segurança adicional ao credor, que não terá de aguardar pelo
incumprimento da obrigação garantida, podendo antes executar a garantia após a verificação de um facto
previamente definido pelas partes e que, normalmente, se encontra associado a circunstâncias que possam
afectar a solvabilidade do devedor). Não obstante, a possibilidade de inserir cláusulas de vencimento
antecipado parece decorrer do próprio regime geral dos contratos, em razão do disposto no art.º 432.º
(neste sentido, Patrícia Fonseca, O penhor financeiro - contributo para o estudo do seu regime jurídico,
Universidade Clássica de Lisboa, 2005, págs. 46 e 47).
1262
Por exemplo, o art.º 1425.º do CCB elenca um conjunto de circunstâncias cuja verificação determina
o vencimento imediato da obrigação garantida, ainda que o prazo fixado para o efeito ainda não tenha
expirado: a deterioração ou depreciação do bem que diminua a consistência da garantia (excepto se o
devedor, intimado para o efeito, não substituir ou reforçar a garantia), a insolvência do devedor, o
perecimento do bem dado em garantia (a não ser que se produza a respectiva substituição e sem prejuízo
do direito do credor a sub-rogar-se na indemnização paga pelo segurador ou por terceiro responsável por
aquele perecimento), o não pagamento das prestações devidas (porém, o recebimento por parte do credor
da prestação seguinte à vencida e não paga implica renúncia ao seu direito de execução imediata) e a
venda particular do bem empenhado (caso em que o produto da venda deverá ser depositado em quantia
necessária à satisfação do credor pignoratício).
1263
O Código de Seabra (cfr. art.º 865.º), previa a possibilidade de o devedor exercer o direito de resgate,
que consistia na faculdade que lhe assistia de fazer suspender a venda, oferecendo-se para efectuar o
pagamento da quantia devida no prazo de 24 horas, assim extinguindo a dívida. Apesar da inexistência de
preceito semelhante no actual Código Civil, nem por isso deixa de ser possível ao executado ou a
qualquer outra pessoa liquidar a dívida exequenda (além das custas), assim fazendo cessar a execução
(cfr. art.º 916.º, n.º 1, do CPC). Todavia, caso já tenha ocorrido a venda ou a adjudicação do bem, a
liquidação tem de abranger também os créditos reclamados para serem pagos pelo produto desses bens,
conforme a graduação e até onde o produto obtido chegar, salvo se o requerente exibir título extintivo de
algum deles, que então não é compreendido; se ainda não estiver feita a graduação dos créditos
reclamados que tenham de ser liquidados, a execução prossegue somente para verificação e graduação
desses créditos e só depois se faz a liquidação (art.º 917.º, n.º 2, do CPC). Mas o vocábulo “resgate” pode
ter um significado diferente, qual seja o de um acto de terceiro que adquira o direito de penhor
pertencente ao credor, por força do instituto da sub-rogação (salienta este aspecto Vaz Serra, Penhor cit.
in BMJ n.º 58, pág. 232 e também no seu Direito de satisfação cit., pág. 6): ora, também esta
possibilidade é admitida pelo n.º 5 do art.º 917.º do CPC, nos termos qual em caso de pagamento da
quantia exequenda por terceiro, este fica sub-rogado nos direitos do exequente, mostrando que os adquiriu
nos termos da lei substantiva). No entanto, cumpre determinar se, quando o penhor seja resgatado pelo
proprietário ou pelo empenhador, o autor do resgate terá contra o outro um direito de regresso (para Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 234 e 235, tudo dependerá das relação interna entre ambos: se o
empenhante dispunha de mandato do proprietário para onerar o bem e este último resgata o penhor, não
tem qualquer direito de regresso, apenas o tendo se a oneração tiver sido efectuada sem o seu
322
consentimento); quando, por outro lado, se empenhem vários bens – pertencentes a sujeitos diversos -
para garantia de uma dívida alheia e um dos proprietários resgatar o seu bem, adquirirá, por via da sub-
rogação, o penhor sobre os demais bens que asseguravam o cumprimento da mesma obrigação
(repartindo-se, na falta de convenção em contrário, em partes iguais o encargo – Vaz Serra, Penhor cit. in
BMJ n.º 58, págs. 235 e 236). No direito alemão e segundo Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1522 e segs., esta faculdade de resgate
pode ser exercida pelo empenhante, pelo proprietário ou por qualquer titular de um direito real sobre o
bem empenhado, desde o momento do vencimento do crédito empenhado, adquirindo o redentor o crédito
garantido e o penhor (em caso de satisfação parcial, o empenhante não pode fazer valer o crédito
adquirido em prejuízo do credor pignoratício) e, quando o crédito se encontre assegurado por penhores
pertencentes a diversos proprietários, cada um destes pode exercer o direito de resgate e, desse modo,
adquirir o crédito com penhor sobre os diversos objectos, extinguindo-se o penhor sobre a coisa
empenhada pelo resgatante (embora, quando este pretenda executar o bem empenhado por outro
empenhante, apenas pode exigir a quantia que corresponda ao respectivo proprietário), devendo a quantia
a liquidar ao credor pignoratício ser dividida em função do valor de cada um dos bens onerados ou
dividindo o valor do crédito empenhado pelo número de empenhantes (mais complexa se afigura a
hipótese de um crédito ser garantido por um penhor prestado por terceiro e uma fiança, alertando os
Autores para a existência de três posições diversas: uma primeira, nega que aquele que tenha pago ao
credor goze de um direito de regresso face ao outro garante; uma segunda, maioritária, aceita tal direito de
regresso e propõe um ressarcimento proporcional no plano das relações internas, em termos análogos ao
defendido para o penhor solidário; uma última, atribuindo aquele direito de regresso unicamente quando
exercida pelo fiador).
1264
Para determinado tipo de bens, não se afigura tarefa fácil a fixação do respectivo valor, como sucede
com as acções – a respeito destas, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 445 e segs., sustenta que o
ideal será a pré-fixação pelas partes do respectivo valor pois, se tal não suceder, o valor nominal
raramente coincidirá com o valor real (uma vez que a cifra do capital usualmente não corresponde ao
valor do património social), nem este decorrerá da cotação bolsista (pois esta antecede sobretudo ao
dividendo), sendo ainda mais difícil de determinar para os valores não cotados em bolsa. Neste contexto e
apesar de repudiar a necessidade de fixação prévia do valor das acções a alienar, o Autor sublinha a
necessidade de protecção do devedor, impedindo o enriquecimento injustificado para o credor da
adjudicação dos bens por valor notoriamente inferior ao real (pelo que deve ser dada a possibilidade ao
devedor de demonstrar essa desproporção, nomeadamente facultando-lhe um relatório de auditoria que
fixe o valor contabilístico das acções no momento da execução). COPO 445
1265
Relativamente a este último aspecto, Rubino, Il pegno cit., pág. 257, avança que o devedor não poderá
forçar o credor a cumprir este pretenso dever, nem mesmo quando prove não possuir nenhuma outra
forma de liquidar a dívida, enquanto Gabrielli, Il pegno cit., pág. 320 e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 125,
salientam que tal dever não existe nem mesmo após uma eventual solicitação do devedor (até porque a
este assiste o direito de alienar o bem empenhado – se bem que, nesta última hipótese, só poderá entregar
o bem ao adquirente depois de pago o credor pignoratício, uma vez que este goza do direito de retenção
que ao empenhador cumpre respeitar), nem tão pouco por indicação dos outros credores do constituinte,
pois também eles têm o poder de fazer vender o bem (em termos aproximados, Mirabelli, ob. cit., págs.
443 e 444, evidenciando que o credor dispõe do direito de retenção até integral pagamento, pelo que ao
devedor não resta senão “riscattare il pegno, pagando il creditore. Se egli non ha danaro, può vendere il
pegno e col danaro che ritrae pagare il creditore”). Por ser assim, pode decorrer um longo período de
tempo entre o vencimento do crédito e a execução, sem que tal viole o princípio da boa fé (nestes termos,
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 319 e também Pegno cit., pág.700, citando, em seu abono, o Acórdão do
Tribunal de Milão de 21/1/1991). Em termos internos, no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/3/1991 (in
www.dgsi.pt) decidiu-se que o credor pignoratício não tem a obrigação de vender o bem empenhado, nem
o devedor pode constrangê-lo a isso, enquanto Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág.
244, nota 688, concorda com a inexistência de qualquer dever desta índole que impenda sobre os ombros
do credor – “sendo perfeitamente concebível, neste quadro, que o credor procure que o devedor cumpra
sem ter que executar a garantia” - , embora reconheça o período de tempo que medeia entre o
vencimento da obrigação e a execução da garantia não pode ser “demasiado extenso sempre que se trate
de bens que já estejam a sofrer quedas de valor” (até porque o risco de desvalorização dos bens corre por
conta do devedor – cfr. Acórdão do STJ de 23 de Outubro de 2008, in www.dgsi.pt). Em termos
análogos, Guilarte Zapatero, ob. cit., pág. 561, afirma que “el acreedor no viene obligado a instar la
venta, ocurrido el vencimiento de la obligación” (não podendo, por isso, afirmar-se que possa incorrer em
mora e ser chamado a indemnizar os danos daí decorrentes), Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 719,
nota 21bis (escrevendo que “el acreedor pignoraticio tiene el derecho (podrá, dice el art. 1872) de
323
O valor pelo qual responde o bem onerado é aquele que a dívida garantida
apresente no momento da execução, uma vez que a garantia assegura o cumprimento da
obrigação principal, nos termos e montante que esta apresenta aquando da sua
excussão.1267
É certo que este chamado ius distrahendi é atribuído a qualquer credor que não
veja a sua obrigação satisfeita, e não somente ao credor pignoratício, embora possa
assumir contornos diversos quando exercido por parte do titular de uma garantia
real.1268
Em termos gerais, poderá afirmar-se que constituem requisitos inderrogáveis de
qualquer procedimento de execução pignoratícia a avaliação do bem a executar e a
inadmissibilidade de o credor receber uma quantia superior ao montante da obrigação
garantida, acrescida dos juros eventualmente vencidos (devendo, por isso, a execução
limitar-se ao número de bens suficiente para perfazer tal quantia).1269
promover la enajenación de la prenda para hacerse pago de su crédito. Pero que ello constituye una
facultad, y no una obligación, de modo que puede no usarla, o retrasar su uso, es decir, no ejercitarla
inmediatamente del incumplimiento de la obigación asegurada. Así que la disminución de valor de la
cosa desde el momento de tal incumplimiento al de la ejecución, no ha de ponerse a cargo del acreedor
pignoraticio. Otro tema es que su conducta encierre incumplimiento de los deberes que le incumben
respecto a la conservación de la cosa”) e De la Santa García, ob. cit., pág. 137 (“No está, a nuestro
juicio, en ningún caso, la entidad acreedora obligada a ejecutar la prenda de inmediato, ni siquiera en
un plazo determinado (…). Debemos, por tanto, establecer el fraude o el abuso de su derecho como límite
al plazo que posee para poder ejecutar la prenda. El acreedor deberá hacer uso de su derecho de manera
diligente y conforme a los criterios de la buena fe, pudiendo del deudor exigirle los daños e perjuicios
que le cause, el comportamiento negligente o doloso del acreedor en la ejecución de la prenda”). Em
face do direito alemão e apesar de reconhecerem a ausência de qualquer dever geral do credor
pignoratício executar a garantia, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky,
Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1531, admitem que tal obrigação possa resultar da boa fé objectiva,
mormente quando o empenhante não se encontre em condições de resgatar o objecto empenhado e a não
execução da garantia lhe cause prejuízos assinaláveis (por exemplo, um aumento substancial dos juros).
1266
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 381 e 382, aponta como exemplo os valores mobiliários -
em particular as acções – que, além das constantes flutuações de valor, podem representar um poder de
decisão sobre determinadas sociedades. O Autor, embora reconheça que a generalidade da doutrina recusa
a imposição da obrigação de o credor executar a garantia após o vencimento do crédito, sustenta que para
objectos como os valores mobiliários a protecção do devedor (recusando não ser indiferente para este o
momento da execução da garantia – ao contrário do argumento muitas vezes invocado segundo o qual,
qualquer seja a data, o credor receberá unicamente a quantia exequenda – uma vez que “el posible
sobrante puede variar mucho según el momento en el que se produzca la venta”) impõe uma resposta não
tão assertiva, concluindo que o credor deverá dispor de um prazo razoável (a determinar de acordo com as
regras da boa fé e do tipo de valor em questão, nomeadamente a rapidez do tráfico de cada um deles), a
contar da data de vencimento do crédito garantido, para optar pela venda (ou por qualquer outra via de
execução alternativa) e, se o não fizer, responderá pelos danos causados ao devedor (embora nem neste
caso o devedor possa forçar o credor a executar a garantia).
1267
Assim, entre outros, Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 720, nota 22bis (por ser assim, em caso de
cumprimento parcial da obrigação garantida em momento anterior ao da execução, nesta o credor
pignoratício apenas poderá obter o valor do crédito ainda em falta).
1268
Isso é particularmente evidente no direito espanhol (e, em certa medida, já o foi no nosso direito,
quando se previa um procedimento especial de execução do penhor), uma vez que o credores comuns
apenas poderão executar bens do património devedor depois do tribunal reconhecer a o incumprimento da
obrigação garantida, enquanto para os credores pignoratícios e hipotecários o simples vencimento da
obrigação garantida determina, “sin necesidad de otros requisitos, la procedencia de ejecutar los bienes
gravados, cualquiera que sea el patrimonio donde se encuentren, mediante el ejercicio de los oportunos
procedimientos de naturaleza especial y acomodados a la propria esencia de la garantía cuestionada”
(de que constitui exemplo paradigmático a execução notarial do penhor – cfr. art.º 1872.º do CCE) –
Albaladejo, Comentário cit., págs. 451 e 452.
1269
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 259.
324
Esse direito de satisfação exerce-se, essencialmente, por meio da venda do
objecto do penhor ou da adjudicação em pagamento ao credor pelo valor fixado pelo
tribunal (art.º 675.º, n.ºs 1 e 2),1270 discutindo-se se as partes poderão amputar o penhor
de alguma destas faculdades.1271
1270
No direito italiano, a lei prevê também o recurso à venda do bem empenhado, (sujeita a regras
particulares – cfr. art.ºs 2796.º e 2797.º do CCI) ou à adjudicação (art.º 2798.º do mesmo Código) em
pagamento, não se encontrando esta última possibilidade dependente de um acordo nesse sentido, antes
bastando um requerimento do credor (que, segundo Ciccarello, ob. cit., pág. 700, poderá ter lugar mesmo
depois de iniciado o procedimento de venda) e uma autorização judicial (destinada a averiguar da
inexistência de tentativas de afastamento da proibição do pacto comissório – cfr. sentença da Cassação de
24/6/1963, n.º 1711, citada por Francesco Caringella, ob. cit., pág. 3661), sendo que a opção pela
atribuição do bem em pagamento só poderá ser efectuada após o decurso do tempo previsto na intimação
dirigida ao devedor, podendo ser solicitada independentemente do tipo de bem empenhado, fazendo-se a
respectiva avaliação de acordo com uma perícia ou com o preço corrente ou de mercado (art.º 2798.º). Em
termos semelhantes, no direito francês, o art.º 2078.º, além da proibir o pacto comissório ou a execução
sem observância das formalidades previstas na lei (n.º 2), estabelecia que o credor podia, em caso de
incumprimento, optar por requerer judicialmente a venda do bem empenhado em leilão ou a sua
adjudicação em pagamento, após uma avaliação efectuada por peritos (n.º 1). Apesar da proibição de toda
a execução contrária ao disposto no próprio Código, Guillouard, ob. cit., págs. 184 a 186, admitia a
validade de uma cláusula prevendo a possibilidade de o credor vender o bem em leilão sem intervenção
judicial (do mesmo modo, consentia a dispensa da ingerência judicial quando o credor disponha de um
título executivo), por considerar que o interesse visado pela lei – protecção do devedor – era alcançado
através da publicitação da venda e não pela intervenção judicial (contra, Baudry-Lacantinerie, ob. cit.,
págs. 130 a 132 e Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 73 e Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit.,
pág. 284, por entenderem ser a intervenção da justiça indispensável para salvaguardar os interesses do
devedor, mesmo quando o credor disponha de um título executivo), enquanto Planiol, Ripert, Becqué, ob.
cit., pág. 117, admitiam a postergação, por decisão judicial, das formalidades de venda previstas na lei em
caso de necessidade de venda dos bens empenhados (admitindo mesmo, neste caso, a venda particular,
por entender tratar-se um acto de gestão de negócios). Quanto à adjudicação, era legítimo ao credor, em
caso de incumprimento da obrigação garantida, requerer judicialmente a atribuição do objecto
empenhado, pelo valor que fosse fixado por peritos, aceitando Guillouard, ob. cit., págs. 186, 187 e 192 e
Troplong, ob. cit., pág. 113, que, havendo convenção nesse sentido, a apropriação pudesse ocorrer sem
necessidade de intervenção judicial (contra, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 120 e Baudry-
Lacantinerie, ob. cit., pág. 130), rejeitando, porém, a cláusula nos termos da qual o objecto seria atribuído
em pagamento ao credor por um valor fixado no momento da celebração do contrato, por entender ser a
mesma nociva para o devedor, que seria tentado a aceitar uma avaliação abaixo do real valor do bem, na
esperança, tantas vezes ilusória, de liquidar a dívida no momento do seu vencimento (em consonância,
Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 129), admitindo também que a avaliação pudesse ser efectuada pelos
juízes quando dispusessem de meios para o fazer, por exemplo quando os bens tenham um preço de
mercado (do mesmo modo, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 120 e Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 298 – este último admitia igualmente que o juiz pudesse efectuar uma avaliação diferente
da realizada peritos). Com a reforma de 2006, a lei passou a dispor que o credor pignoratício poderá
executar a garantia através de venda (a qual deverá obrigatoriamente e sem que as partes possam
convencionar em contrário, nos termos gerais do processo executivo – art.º 2346.º), ou de atribuição
judicial do bem empenhado em pagamento (devendo, neste caso, restituir o eventual excedente ao
devedor ou, existindo outros credores, consigná-lo em depósito - art.º 2347.º), permitindo-se ainda, dentro
de certos limites, que o credor se torne proprietário do bem onerado (art.º 2348.º): manteve-se, assim, a
necessidade de a venda do bem empenhado tem que ocorrer judicialmente e de acordo com as regras do
processo executivo comum (e não de forma particular ou extra-judicial), subsistindo, assim, a proibição
das cláusulas de voie parée, o que não deixa de ser estranho face à abertura demonstrada relativamente às
convenções comissórias – sobre este último aspecto, vide infra n.º 4 do Capítulo II); no que toca à
atribuição em pagamento, deixou de se prever (contra a proposta do Groupe de Travail cit., pág. 12) a
necessidade de determinação prévia, por parte de peritos, do valor do objecto da garantia (dispensável
apenas no caso de o bem possuir uma cotação oficial). No direito espanhol, o art.º 1872.º do CCE (sobre
este preceito, vide infra neste mesmo n.º) estabelece como modo preferencial de execução do penhor a
venda conduzida por notário sem que, porém, a existência deste procedimento especial impeça o credor
pignoratício de, querendo, usar o processo judicial de execução, actualmente vertido na Lei n.º 1/00, de 7
de Janeiro, conhecida como Lei de Enjuiciamiento Civil, da qual, aliás, constam algumas normas
325
específicas – cfr. art.º 681.º a 698.º - para a execução de bens previamente hipotecados ou empenhados
(Puig Brutau, ob. e loc. cit., Reglero Campos, Ejecución de las garantias reales mobiliarias e interdicción
del pacto comisorio, in Tratado de garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996,
págs. 452 e 453 e, principalmente, Caballol Angelats, Dimensión procesal de la ejecución de las garantías
reales sobre cosa mueble, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan
Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 300 e segs., salientando este último que se trata de uma escola
discricionária do credor, assistindo-lhe até o direito de prosseguir simultaneamente mais de uma destas
vias). Este procedimento judicial executivo caracteriza-se pela sua rapidez, pela limitação ao objecto dado
em garantia (mas sem prejuízo de posterior seguimento, em caso de não liquidação total da dívida, contra
outros bens do devedor), pela restrição dos fundamentos de oposição invocáveis e pelo ónus do devedor
alegar e provar a improcedência do pedido do credor (cfr. art.º 695.º e Caballol Angelats, ob. cit., pág.
305 e segs.), pelo direito do credor requerer a entrega directa em pagamento de alguns bens executados
(tais como o dinheiro e os saldos de contas bancárias, divisas convertíveis ou qualquer outro bem cujo
valor nominal coincida com o valor de mercado ou, ainda que inferior, o credor aceite a sua entrega pelo
valor nominal – cfr. art.º 634.º, n.º 1) ou, ocorrendo a venda, as condições desta sejam acordadas pelas
partes (embora tal acordo esteja sujeito ao crivo do juiz, a quem compete a respectiva aprovação - cfr.
art.ºs 636.º, n.º 1 e 640.º e Priego Fernández, La prenda: realización del valor de la cosa pignorada.
Distintas opciones del acreedor pignoraticio. Procedimientos alternativos a las subastas públicas, in
Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons,
Madrid, 2006, pág. 525) ou, não havendo tal acordo, esta possa, por decisão judicial, obedecer a um
formalismo alternativo à hasta pública (nomeadamente a realização da venda por uma entidade
especializada – cfr. art.ºs 636.º, n.º 2 e 641.º a 642.º): em qualquer caso, deverão ser estabelecidas regras
sobre a avaliação dos bens executados (dando-se primazia à avaliação convencional e recorrendo-se à
judicial, que se baseia no relatório de um perito, apenas na falta daquela – cfr. Priego Fernández, ult. ob. e
loc. cit.). De igual modo, o procedimento previsto no art.º 1872.º não prejudica a existência de outros
específicos para determinados tipos de penhor (cfr. art.º 1873.º para os montes de piedade), do mesmo
modo que o regime comum das execuções estabelece regras específicas quando tenham sido empenhados
valores mobiliários admitidos a negociação em mercado secundário ou em qualquer outro mercado
regulamentado com preço oficial (art.º 635.º, n.º 1, remetendo para a legislação que regulamenta o
funcionamento destes mercados) ou para as participações sociais não cotadas em bolsa (art.º 635.º, n.º 2,
mandando aplicar as normas legais e estatutárias sobre a alienação das ditas participações e, no silêncio
destas, determinando que a venda se faça através de notário). Por seu turno, no direito catalão, além das
execuções notariais e judiciais previstas no direito espanhol, prevêem-se diversos procedimentos
extrajudiciais de realização do penhor (venda directa, hasta pública notarial, realização de penhor sobre
valores mobiliários com cotação oficial e de penhor sobre dinheiro), aos quais apenas é permitido recorrer
depois de, uma vez vencido o crédito garantido e interpelado o devedor para pagamento, não ter sido
apresentada oposição judicial no prazo de um mês, acompanhada da consignação em depósito ou da
apresentação de aval por parte de uma entidade de crédito no valor da dívida (art.º 569-20 do Código
Civil da Catalunha). Procurando caracterizar cada uma delas em termos sintéticos, diremos que a venda
directa supõe o acordo prévio das partes formalizado em escritura pública e notificado aos titulares
conhecidos de direitos reais sobre o bem em questão - no qual se deverá indicar a pessoa encarregue de
efectuar a venda - não podendo o adquirente ser o credor pignoratício, sob pena de violação da proibição
do pacto comissório (nem mesmo quando não se consiga alienar a coisa nas condições acordadas). A
realização notarial inicia-se com um requerimento dirigido pelo credor ao notário, devendo a data e o
local da mesma ser publicitadas com um mínimo de 5 dias relativamente à data da sua celebração,
devendo ser citados o devedor e o proprietário do bem e podendo estes opor-se até ao momento da
adjudicação do bem (na hasta podem participar o proprietário e o próprio credor, mas o bem apenas lhe
poderá ser adjudicado se, por falta de interessados, a primeira e a segunda hastas ficarem desertas, sem
prejuízo de algumas restrições no que respeita à alienação de acções nominativas e de participações
sociais). Quanto à execução de penhores sobre valores sujeitos a cotação oficial, aplicar-se-á o regime do
Código Comercial, devendo o bem empenhado ser vendido no prazo de 3 dias úteis a contar da data de
vencimento do crédito garantido (este prazo tão curto destina-se a evitar uma especulação, por parte do
credor, relativamente ao preço dos valores empenhados), sem necessidade de citação prévia do devedor
e/ou do proprietário do bem, entregando o credor ao organismo encarregue de gerir o mercado oficial uma
cópia do documento comprovativo do seu crédito, entidade essa que promoverá a venda através da
correspondente ordem pelo preço aplicável àquele valor no dia da venda. Finalmente, quando a garantia
incida sobre dinheiro, o credor pode apropriar-se do objecto do penhor, sem necessidade de executar a
garantia, bastando notificar antecipadamente o devedor e o empenhador, para que estes possam evitar
aquela apropriação – acerca do direito catalão, vide Barrada Orellana, ob. cit., págs. 371 a 410 e 420 a
326
429 e Priego Fernández, ob. cit., pág. 528 a 530. O direito navarro, por sua vez e segundo Elsa Sabater
Bayle, Las garantías reales en el derecho civil navarro, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord.
Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 404, apesar de proibir o pacto
comissório nos contratos de penhor, admite a validade da venda livre, sem sujeição a qualquer licitação
ou controlo judicial ou notarial, o que permite que o credor “venda la cosa objecto de la garantía por el
importe de la deuda aunque sea muy inferior, con grave perjuicio para el deudor proprietario del bien”.
Finalmente no direito alemão, a satisfação do credor ocorrerá normalmente através da venda do bem
empenhado (§1228, n.º 1), sem prejuízo da possibilidade de satisfação através de depósito ou de
compensação (§1224).
1271
Não obstante, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 211 e 212, admite que as partes
convencionem a não atribuição ao credor pignoratício do direito de venda, mas apenas o de se pagar pelos
proveitos da coisa, dando vida a uma anticrese mobiliária desacompanhada do direito de venda do penhor.
Também Rubino, Il pegno cit., pág. 267, aceita tal cláusula, mas entende que a mesma transforma o
penhor num mero direito pessoal, compreendendo a posse e a apropriação dos frutos do bem em causa.
Contra, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 695, argumentando estarmos perante uma
consignação de rendimentos sobre bens móveis e esta não poder incidir, em regra, sobre bens móveis
(art.º 656.º, n.º 1), Santos Justo, ob. cit., pág. 472 (alegando que o penhor é uma garantia real, pelo que o
afastamento da venda traduzir-se-ia numa descaracterização do instituto), Salinas Adelantado, El régimen
cit., pág. 379, nota 32 (configurando um penhor com estas características como atribuindo ao credor
unicamente o direito aos frutos da coisa onerada e recusando a licitude desta cláusula tendo em conta a
essencialidade do direito de alienar a coisa na garantia pignoratícia e, por outro lado, “se crearía un
derecho real no previsto por el legislador, que sería una especie de anticresis mobiliária (…) muy dañino
para el tráfico, porque supondría sustraer un bien por um tiempo previsiblemente muy largo de la
posibilidad de circulación”), Diaz Moreno, ob. cit., pág. 390 (alegando que, se assim fosse, se
desnaturaria o direito do credor pignoratício), Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 444 (pois, “De
un lado, porque se crearía un derecho de vinculación real no previsto y a expensas del legislador, que se
plasmaria en el derecho de retención de la garantía y en la percepción de los frutos futuros. Y de otro
lado, porque el bien quedaría sustraído a la circulación en tanto el deudor no pague o el acreedor no
cobre la totalidad del crédito debido con los frutos. De otra parte, debemos descartar la validez de un
gravamen que tenga carácter perpetuo, que obligue el propietario (deudor o no) a soportarlo
indefinidamente”) e Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 451 a 453 (considerando que o ius
distrahendi é essencial para a qualificação do penhor como direito real, de modo que se o mesmo está
ausente, por pacto ou renúncia, não estaremos perante um direito real de garantia); no direito italiano,
Protettí, ob. cit., pág. 288, Ciccarello, ob. cit., pág. 699, Gabrielli, Il pegno cit., págs. 320 e 321 e Gorla e
Zanelli, ob. cit., pág. 119, considerando nulos tais pactos, uma vez que o reconhecimento de direitos reais
apenas compete ao legislador, desse modo se evitando a criação de vínculos que tenham por efeito a
subtracção de bens do comércio jurídico, efeito este que se produziria e por tempo indefinido caso fosse
admitida tal cláusula (quanto aos efeitos da nulidade, os dois últimos Autores mencionados afiançam que
estes apenas respeitam a terceiros, dando o pacto origem a um vínculo de garantia com efeito apenas entre
as partes - com o conteúdo de facilitar ao credor a retenção e a percepção dos frutos do bem – pelo que o
terceiro adquirente a quem o devedor houvesse alienado o bem poderá reclamar a sua entrega ao credor.
Pelo contrário Protettí, ob. e loc. cit., entende que a nulidade afecta igualmente as relações entre o
devedor e o credor pignoratício), enquanto Guilarte Zapatero, ob. cit., pág. 558, sustenta que o acordo que
exclui a venda do bem onerado deve ser considerado ineficaz (admitindo, porém, que se convencione a
exigência de requisitos mais apertados do que os legalmente previstos para a venda, desde que a sua
observância não inviabilize a alienação do bem). Outros admitem que o credor possa renunciar a um dos
mecanismos - venda ou adjudicação - legalmente ao seu dispor para executar a garantia, mas não aos dois
conjuntamente (Faggella, ob. cit., pág. 128 e Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 286 e 287,
este último apontando o penhor de dinheiro como um caso em que o credor nem sequer dispõe de opção,
por ser inconcebível a sua venda), enquanto Guillouard, ob. cit., pág. 195 e Baudry-Lacantinerie, ob. cit.,
pág. 117, advogam a invalidade da renúncia a qualquer desses meios. Finalmente, refira-se que Gabrielli,
Gorla e Zanelli, Protettí, ults. obs. e locs. cits. e Faggella, ob. cit., págs. 129 e 130, se pronunciam a favor
da validade do pacto que impeça a venda abaixo de um determinado preço, desde que esse limite seja
razoável (se esse limite tornar praticamente impossível a venda, caberia ao juiz autorizar a venda a um
preço que entenda conveniente).
327
A opção por um ou outro dos instrumentos colocados ao dispor do credor
pignoratício pelo ordenamento jurídico caberá ao credor, constituindo um reflexo da
liberdade de realização da garantia que lhe assiste.1272
Para além disso, existem no nosso ordenamento1273 normas especiais relativas à
execução (que se afastam, em maior ou menor medida, do processo executivo comum)
de determinados tipos de penhores, incidindo principalmente sobre as modalidades da
venda, atendendo à natureza do bem onerado ou à identidade do credor pignoratício,
dentre as quais cumpre salientar o art.º 401.º do Código Comercial1274 (permitindo a
1272
Também no direito gaulês, a opção entre os diversos meios de execução disponibilizados pela lei
cabia ao credor, não sendo sindicável pelo tribunal (Weil, ob. cit., pág. 95, Guillouard, ob. cit., pág. 189,
Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 119, Troplong, ob. cit., pág. 112, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág.
118 e Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 285 e 286, precisando este último que o poder de
decisão do tribunal apenas existiria quando o credor efectuasse um pedido alternativo ou não efectuasse
qualquer escolha: em tais casos, Planio, Ripert, Becquè., ob. e loc. cit., entendiam que o tribunal deveria
dar primazia à modalidade que melhore tutelasse o credor; ao invés, Mestre, ob. e loc. cit., entendia dever
o juiz decidir em função dos interesses do empenhador e, por isso, inclinar-se para a adjudicação), decisão
essa que seria irrevogável partir do momento em que existia uma decisão definitiva (neste sentido,
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 286, apontando como exemplo a possibilidade de o
credor, depois de ter requerido a adjudicação mas antes da avaliação do bem, solicitar a venda do
mesmo): os últimos Autores citado aludem mesmo a um princípio da liberdade da realização da garantia,
ou melhor, de escolha das medidas de execução forçada (embora com limites, especialmente o decorrente
da teoria do abuso do direito – especialmente quando o credor actue de forma imprudente ou
desproporcionada, tendo em conta o fim visado pela execução - muito embora reconhecendo a parca
utilização da mesma por parte dos tribunais), como corolário do princípio de liberdade de escolha das
garantias reais. Também Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 141 e 142, colocam nas mãos do credor a opção
pelos meios de execução colocados ao seu dispor, precisando que tal faculdade é irrenunciável e negando
que a mesma caiba ao constituinte da garantia (do mesmo modo, vide o aresto da Cassação de 24/6/1963,
n.º 1711 citado por Francesco Caringella, ob. cit., pág. 3661), esclarecendo ainda que o devedor não
poderá requerer ao juiz que, em vez da adjudicação, proceda à venda do bem, não podendo o juiz opor-se
à opção efectuada pelo credor (em termos análogos, Mirabelli, ob. cit., pág. 442, realçando que, caso o
juiz dispusesse da faculdade de impor ao credor atribuição em pagamento do objecto empenhado, tal
significaria uma aquisição contra a vontade daquele; pelo contrário, Faggella, ob. cit., pág. 127, admite
que o devedor possa requerer ao juiz a opção pelo procedimento não solicitado pelo credor, devendo esse
pedido ser aceite se os interesses do credor ficarem devidamente acautelados).
1273
O mesmo se passa, conforme já decorre da exposição anterior, noutros ordenamentos,
1274
A interpretação deste preceito, ou melhor, a sua compatibilização com o regime do Código Civil,
suscita diversas interrogações. Desde logo, se, no caso do penhor mercantil, não será necessária a
estipulação das partes para proceder à venda extra-judicial, bastando ao credor entregar os valores a um
corrector para venda ou, pelo contrário, se o art.º 401.º do Código Comercial apenas visa garantir o
recurso a um profissional qualificado, sendo aplicável quando as partes tenham previamente acordado na
venda extrajudicial, nos termos do art.º 675.º (Fazenda Martins, Direitos reais de gozo e garantia sobre
valores mobiliários, in Direito dos valores mobiliários, Lex, Lisboa, 1999, págs. 112 e 113, perfilha o
primeiro entendimento, sugerindo que “se pretende fixar um procedimento expedito e suficiente para a
execução de dívidas mercantis garantidas por penhor e não apenas caucionar o recurso, em qualquer
espécie, aos serviços de um intermediário profissional para a venda”; a posição contrária é sustentada
por Isabel Andrade de Matos, O pacto comissório - contributo para o estudo do âmbito da proibição,
Almedina, 2006, págs. 137 e 138, por ser “mais consentânea com as limitações e as cautelas necessárias
à protecção dos interesses do devedor que, de outro modo, poderia ver os valores empenhados serem
vendidos extraprocessualmente sem o seu consentimento”; já Rui Pinto Duarte, ob. cit., pág. 236, escreve
que este preceito “não tem (nunca teve) o sentido de, por si só, autorizar a venda extrajudicial, mas
apenas o de indicar uma modalidade possível de venda, mesmo na execução judicial)”; finalmente,
Salvador da Costa, ob. cit., pág. 51, atesta que esta é uma modalidade de venda a que as partes podem
recorrer como alternativa à execução executiva ou particular. Outra dúvida, reside na eventualidade deste
preceito contender com a proibição do pacto comissório, respondendo negativamente Tiago Soares da
Fonseca, ob. cit., págs. 113 e 114 (acrescentando que a expressão “corrector”, usada pelo legislador, deve
actualmente ter-se por referida aos “intermediários financeiros com capacidade para dar ordens”) e
Fazenda Martins, ult. ob. e loc. cit., sustentando este último que a proibição apenas pretende evitar a
apropriação, por parte do credor pignoratício, de bens de valor superior ao do crédito garantido, pelo que
328
venda do penhor mercantil, independentemente do seu objecto, através de corrector,
desde que notificado o devedor)1275 e os art.ºs 19.º e segs. do Decreto-Lei n.º 365/99, de
não alcança a alienação efectuada ao abrigo do art.º 401.º do Cód. Com., porquanto esta é efectuada por
meio de pessoa idónea e independente do credor (aliás, segundo o mesmo Autor, tendo os bens em
questão um preço corrente, a avaliação do bem é efectuada de acordo com o juízo do mercado, dando o
credor ordem ao corrector para efectuar a venda ao preço correspondente à última cotação. A única
ressalva diz respeito aos valores que não tenham, por qualquer motivo, liquidez, mas, mesmo neste caso,
a apertada supervisão e os deveres de diligência na execução das ordens de venda a que se encontram
sujeitos os correctores afasta as eventuais dúvidas). Finalmente, discute-se ainda se o preceito se encontra
em vigor – para uma resposta negativa, vide, nomeadamente, Sofia Maltez, Penhor de acções, Relatório
de mestrado, 2006, Biblioteca da FDUL, pág. 56, ancorando a sua posição na desactualização do regime
nele contido; defendendo, ao menos implicitamente, a sua vigência, vide, por todos, Salvador da Costa,
ob. cit., pág. 51.
1275
A maior rapidez do tráfego comercial desde sempre não se compadeceu com o maior formalismo da
lei civil, pelo que também em França o art.º 93.º do anterior Código Comercial já permitia ao credor
pignoratício, oito dias depois de notificar o devedor e sem necessidade de autorização judicial, efectuar a
venda pública dos bens dados em garantia (cfr. Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 72) – actualmente, o art.º
L521-3 do Code de Commerce vigente permite ao credor, na falta de pagamento do seu crédito na data de
vencimento, efectuar a venda pública dos bens empenhados (nos termos e nas condições fixadas nos art.ºs
L322-9 a L322-13 do mesmo Código) oito dias após a notificação ao devedor (sem que a convenção das
partes possa afastar esta possibilidade), vendas estas de que são encarregues os “correctores” (excepto no
caso de vendas de que sejam encarregados os prestadores de serviços financeiros ou, em geral, se o
presidente do tribunal do comércio, a requerimento das partes, indicar outros oficiais públicos): todavia, o
credor pode sempre optar por, em alternativa, solicitar a atribuição judicial em pagamento, nos mesmos
termos do penhor civil. Do mesmo modo, o §1259 do BGB suaviza as exigências de realização do penhor
quando se trate de penhor comercial, admitindo que as partes acordem na venda de bens com um preço de
bolsa ou de mercado pelo credor pignoratício ou por um terceiro, através de negociação particular ao
preço corrente ou, em alternativa, que a propriedade da coisa caiba ao credor no momento do vencimento
do crédito (deste modo afastando, ao menos aparentemente, a proibição das convenções comissórias),
atribuindo-se ao crédito o valor correspondente ao preço de bolsa ou de mercado dos bens empenhados no
dia do seu vencimento, como se tivesse sido pago pelo proprietário. No direito espanhol, os art.ºs 196 e
segs. do Código Comercial prevêem um procedimento especial de execução dos warrants constituídos
sobre mercadorias depositadas em armazéns gerais, nos termos do qual o credor pode requerer a estas
entidades depositárias que procedam à alienação dos bens onerados, a qual decorrerá em termos bastantes
céleres (contudo, Reglero Campos, Ejecución cit., págs. 460 e 461, salienta que este procedimento não é
extensível a outros títulos representativos de mercadorias, para cuja execução deverá seguir-se o
procedimento de execução comum), enquanto os art.ºs 320.º a 324.º do mesmo regulam a execução de
créditos decorrentes de empréstimos (incluindo aberturas de contas correntes de crédito, desde que, no
caso destas últimas, as partes tenham convencionado que, em caso de execução, a quantia exequenda será
a especificada num documento emitido pelo credor – De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 252)
garantidos por valores (Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 479 e segs., admite que as partes possam
pactar um procedimento diferente – por exemplo, com prazos diversos - desde que se garanta a não
violação da proibição do pacto comissório e a alienação seja efectuada por um membro do mercado no
qual os valores são negociados; também Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 413 e 414, aponta no
mesmo sentido, desde que não seja violado o limite decorrente da proibição das convenções comissórias;
por seu turno Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 474 e 475, aponta como requisito perceptivo
a intervenção de um membro do mercado no qual os valores onerados são negociados), admitidos a
negociação em mercados oficiais secundários, como as bolsas de valores ou o mercado de dívida pública
(os não negociáveis deverão alienar-se nos termos previstos para o penhor comum: é o que sucede,
segundo afirma Malo Concepción, ob. cit., pág. 844 e segs., como as participações em fundos de
investimento mobiliários; recusam a extensão deste procedimento a valores que não cumpram este
requisito Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 305, Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, ob. cit., pág. 676
e Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 225), exigindo, ainda, a verificação cumulativa de diversos requisitos, a
saber, que o empréstimo (é discutível se também a constituição da garantia tem que obedecer a estes
requisitos formais, respondendo negativamente Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 465 -
sobretudo porque as acções cotadas em bolsa assumem a forma escritural e “goza ya de un sistema de
comprobación y supervisión de determinadas entidades que le otorga suficiente seguridad y garantía,
pudiendo el organismo rector del mercado comprobar la existencia y veracidad de la prenda sobre esos
valores a través de otros medios (...) sin que sea necesario que se haya otorgado en documento público”
329
17 de Setembro (consentindo, nos penhores prestados a favor de prestamistas, a venda
– e De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 253, especialmente tendo em conta que alguns
penhores, como os de valores mobiliários escriturais, não têm que ser celebrados por documento público)
se tenha constituído através de escritura pública ou de documento autenticado por um Corredor de
Comercio Colegiado (e, para proceder à execução, deverá o credor demonstrar o registo da garantia dos
valores escriturais, exibindo o correspondente certificado comprovativo dessa inscrição), da qual conste
uma suficiente identificação dos valores dados em garantia (a forma genérica e vaga com que a lei impõe
esta identificação constitui, segundo Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 403 e 404, “un argumento
importante para defender en el Derecho español la posibilidad de sustituir los elementos concretos que
componen una prenda de valores sin que se considere modificado su objeto”; termos paralelos, Veiga
Copo, La prenda de acciones cit., págs. 466 e 467, alegam que a formulação legal “no se debe tanto a un
descuido en la dicción del precepto, como a la preclara intención de abrir una vía a la admisibilidad de
la sustitución de unos valores por otros”, partindo da qualificação do penhor como garantia que incide,
não tanto sobre concretos bens, mas antes sobre o seu valor económico), valores esse que têm de se
encontrar admitidos à negociação num mercado secundário oficial e que, ao requerer a execução, o credor
entregue aos organismos gestores do mercado negocial estes documentos e valores ou o certificado
comprovativo da inscrição da garantia e, por último, que a execução seja iniciada no prazo de 3 dias a
contar da data de vencimento do empréstimo. No que diz respeito ao procedimento de execução e apesar
de a lei não o regular minuciosamente (designadamente ao nem sequer prever a necessidade de citação do
devedor - silêncio este que Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 309, interpreta como devendo-se à
existência de um preço de mercado para estes bens, sobre o qual a actuação do devedor e do credor é
irrelevante – nem de hasta pública), o mesmo terá que ser instaurado no prazo de 3 dias úteis a contar da
data de vencimento da obrigação garantida (prazo este que pode ser ampliado por acordo das partes -
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 473, mas apenas desde que não excessivamente e com a
notificação do devedor - e cuja exiguidade é criticada por Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág.
467, pois, para além de não “defender convenientemente los intereses del constituyente de la prenda,
perjudica tanto al acreedor como al deudor y en su caso al tercero pignorante”, embora reconhecendo
que a sua ratio é a de “obstaculización a presumibles prácticas especulativas por parte del acreedor
dadas las oscilaciones de los precios en los mercados”; de acordo com De la Santa Garcia, Prenda de
valores cit., pág. 256, tal prazo justifica-se pela volatilidade dos preços deste tipo de bens, embora o
Autor considere que tal prazo é para se iniciar o procedimento e não para a sua conclusão), sem
necessidade de intimação para pagamento ao devedor ou ao constituinte da garantia (o que, segundo De la
Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 256, pode ser explicado pela existência de um preço de mercado
dos bens exequendos, que as partes são impotentes para alterar), começando pela designação do
intermediário bolsista que efectuará a venda, a qual deverá ocorrer (após a comprovação da regularidade
formal do pedido e que exige a junção do contrato principal, do contrato de garantia e de outros exigidos
pelo mercado em que os valores sejam negociados) no dia em que recebeu a comunicação do credor (ou,
o mais tardar, no dia seguinte, como sucederá se a venda se encontrar dependente de autorizações
administrativas prévias). Para além de tudo isto, importa ainda salientar que o art.º 324.º do Código
Comercial vem reforçar a protecção do credor pignoratício contra uma eventual reivindicação por parte
do proprietário do bem que não tenha constituído ou consentido na constituição da garantia, não podendo
a reivindicação lograr sucesso mesmo em caso de perda, furto ou privação legal (Salinas Adelantado, El
régimen cit., págs. 408 e 409 e Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 468, considerando este
último que a posse do credor pignoratício se torna inatacável). Inversamente e na medida em que a venda
se fará através de uma ordem que produza a transferência do direito, sem necessidade citação prévia do
devedor ou do proprietário dos valores onerados, surge um problema atinente à protecção dos direitos do
devedor – uma vez que a lei não consente que este oponha qualquer excepção, nem discuta a quantia com
base na qual o credor intenta a execução, residindo a única medida de controlo na comprovação que o
organismo supervisor deve efectuar antes de proceder à alienação, comprovação esta que será de natureza
meramente formal -, entendendo Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 476 e segs. que, por precaução, o
devedor deverá notificar imediatamente a entidade gestora e solicitar o cancelamento da inscrição, em
caso de extinção, total ou parcial, da obrigação garantida). Finalmente, importa verificar em que medida
este regime se afasta do previsto para a generalidade dos penhores (cfr. art.º 1872.º do CCE), noticiando
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 468 e segs., a desnecessidade de citação do devedor
(justificada com a existência de um mercado bolsista que proporciona um preço objectivo, assumindo
particular relevo na tutela da posição do empenhante a figura do membro do de mercado, cuja intervenção
é obrigatória) e a imposição de um prazo curto para a sua instauração (conjugado com a obrigação do
organismo encarregue da venda a efectuar no mesmo dia em que tenha sido solicitada ou, o mais tardar,
no dia seguinte).
330
em condições especiais e sem necessidade de recurso à via judicial),1276 muito embora,
ao contrário de outros, o ordenamento pátrio não consagre soluções autónomas no que
diz respeito à alienação executiva de valores mobiliários.1277
Contudo, o art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 105/04, de 8 de Maio, admite, no penhor
financeiro, que o credor possa fazer seus os instrumentos financeiros dados em garantia,
desde que tal tenha sido convencionado pelas partes e se houver acordo relativamente à
1276
Mais concretamente, estes preceitos permitem que o estabelecimento prestamista, em caso de mora
por período superior a três meses, venda o bem empenhado por meio de proposta em carta fechada, em
leilão ou por venda directa a entidades que, por determinação legal, tenham direito a adquirir
determinados bens, não podendo, em qualquer caso, o valor base de licitação das coisas em venda ser
inferior ao valor da avaliação efectuada no momento da celebração do contrato (art.ºs 11.º, n.º 3, alínea a)
e 20.º, n.ºs 1 e 2). Estas vendas são abertas a qualquer interessado, incluindo o prestamista (art.º 27.º),
podendo, no entanto, o bem empenhado ser resgatado pelo mutuário até ao momento da adjudicação (art.º
26.º). Finalmente, atendendo ao silêncio do diploma a esse respeito, Isabel Matos, ob. cit., pág. 159,
advoga que a proibição do pacto comissório também vigora neste domínio.
1277
No direito espanhol, o procedimento específico consagrado nos art.ºs 320.º e segs. do Código
Comercial será unicamente aplicável aos valores admitidos a negociação num mercado oficial,
abrangendo assim os valores públicos e privados representados por títulos ou através de anotações em
conta (para valores não admitidos a negociação nos mercados oficiais, restará o recurso ao procedimento
extrajudical consagrado no art.º 1872.º do CCE e que prevê a execução através de notário: em qualquer
dos casos (valores admitidos ou não admitidos a negociação), resta sempre a alternativa da via judicial, a
qual, segundo o Autor, “es recomendable, cuando el valor de realización de las acciones pignoradas en
un procedimiento extrajudicial resulta insuficiente para satisfacer la deuda derivada de la obligación
garantizada”. No direito francês, Daniel Fasquelle, Le nantissement des valeurs mobilières, in RTDC,
1995, pág. 29 e segs., destaca a inaptidão das vias normais de execução para o penhor de valores
mobiliários, razão pela qual a lei admite, para os que se encontrem contados num mercado secundário, a
venda através de intermediário financeiro habilitado para o efeito (sem prejuízo para o devedor,
atendendo à cotação oficial que tais bens possuem), surgindo a atribuição judicial como uma alternativa
não descartável (normalmente, esta via apresenta o inconveniente, para o credor, de o tornar proprietário
de um bem do qual não carece e cuja revenda se pode revelar difícil ou mal sucedida: todavia, no caso dos
valores mobiliários – especialmente os cotados – tais inconvenientes são paliados pela relativa facilidade
de cessão dos mesmos no mercado bolsista e pela relativa ausência de depreciação de tais valores), muito
embora apresente a desvantagem de a atribuição ter que ser judicialmente decretada – com as demoras e
custos inerentes - no seguimento de uma avaliação realizada por peritos (o Autor, no entanto, descarta a
necessidade desta avaliação quando sejam empenhados títulos cotados em bolsa, atendendo a que esta
cotação fornece o valor dos bens). Actualmente, o n.º 5 do art.º L211-20 do Code Monétaire et Financier
determina que “Le créancier nanti titulaire d'une créance certaine, liquide et exigible peut, pour les titres
financiers, français ou étrangers, négociés sur un marché réglementé, les parts ou actions d'organismes
de placement collectif, ainsi que pour les sommes en toute monnaie, réaliser le nantissement, civil ou
commercial, huit jours ― ou à l'échéance de tout autre délai préalablement convenu avec le titulaire du
compte ― après mise en demeure du débiteur remise en mains propres ou adressée par courrier
recommandé. Cette mise en demeure du débiteur est également notifiée au constituant du nantissement
lorsqu'il n'est pas le débiteur ainsi qu'au teneur de compte lorsque ce dernier n'est pas le créancier
nanti”. Esta intimação, nos termos do art.º D211-12, deverá conter, sob pena de nulidade, a indicação que,
em caso de falta de pagamento, a garantia poderá ser executada no prazo de 8 dias (ou de outro
eventualmente acordado pelas partes) e a menção que o titular da conta empenhada poderá, até ao termo
daquele prazo, dar a conhecer ao gestor da conta a ordem pela qual as quantias ou os instrumentos
financeiros deverão ser atribuídos em propriedade ao credor ou vendidos, cabendo a opção por uma
destas duas modalidades ao credor. Não existindo, ainda assim, cumprimento da obrigação garantida, o
credor pignoratício notifica o gestor da conta empenhada para que este proceda à execução da garantia
(art.º D211-13, n.º 2), a qual terá lugar de modo diverso para as somas em dinheiro constantes da conta
(mediante transferência directa da propriedade para o credor pignoratício) e para os instrumentos
financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado (através da sua venda num mercado da
mesma índole ou da atribuição da propriedade da quantidade indicada pelo credor pignoratício, de acordo
com a última cotação disponível no mercado regulamentado) – art.º D211-12. Relativamente aos demais
instrumentos financeiros não enumerados no n.º 5 do citado art.º L211-20, a execução decorrerá, por
força da remissão contida no n.º 6 do mesmo artigo, nos termos do Código Comercial (acerca deste
último procedimento, vide o que se disse supra neste mesmo n.º 8 do Capítulo I).
331
avaliação dos instrumentos financeiros, sem prejuízo de o credor ficar obrigado a
restituir ao prestador o montante correspondente à diferença entre o valor do objecto da
garantia e o montante do crédito garantido:1278 esta solução vai para além da mera
criação de uma modalidade de venda dos bens empenhados, permitindo mesmo que a
execução de uma garantia com semelhante objecto prescinda dessa mesma alienação.
Tendo em conta que os credores habilitados a recorrer a estas formas especiais
de venda não ficam precludidos de recorrer às vias comuns de alienação, coloca-se a
dúvida, havendo mais do que um credor pignoratício e não existindo acordo quanto à
modalidade de execução a seguir, qual a forma de realização da garantia.1279
Existe, ainda, o procedimento especial de execução quando o empenhante se
encontre em processo de insolvência,1280 (cfr., em especial, o art.º 149.º e segs. do
CIRE), merecendo especial destaque a preferência dada à venda conjunta do
estabelecimento, apenas apontando para a venda separada dos elementos que o
compõem quando não haja proposta satisfatória para a aquisição global ou se reconheça
existirem vantagens na alienação parcelar (art.º 162.º, n.º 1) e as regras ditadas para a
graduação de créditos, as quais embora não afastando o regime substantivo do concurso
de credores (cfr. art.º 172.º e segs.), possui algumas especificidades derivadas da
extinção dos privilégios creditórios e de outras garantias que decorre da declaração de
insolvência (cfr. art.º 97.º)1281 e da classificação dos créditos sobre a massa insolvente
1278
Esta última excepção vale igualmente par ao direito italiano, nos termos do art.º 4.º do d. lgs. n.º 170,
de 21/5/2004, que impõe como única limitação os deveres do credor informar, por escrito, o órgão
encarregue de um eventual processo de falência em curso contra o empenhante e, ainda, de devolver um
eventual excesso (cfr. Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 177).
1279
Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 177 e segs., distingue consoante os diversos credores pignoratícios
tenham ou não o mesmo grau de preferência: na primeira hipótese, assegura que a solução não poderá
deixar de ser a de “scegliere la forma di esecuzione che offre le maggiori garanzie al debitore e ai
creditori” (por exemplo, quando um pretenda vender pelo preço comum e outro através de leilão, sustenta
ser preferível este última modalidade, tendo em conta que para algum dos licitantes o bem pode ter um
valor subjectivo superior ao valor de mercado); já no caso de um dos credores ter uma preferência sobre
os demais, o direito do credor não preferente está limitado pelo do seu congénere anterior, não só no que
respeita ao valor da coisa (apenas o remanescente após a satisfação do primeiro), mas igualmente no que
concerne a todos os direitos do outro credor que, eventualmente, estejam em conflito com os seus,
designadamente o direito de adjudicação (direito que o Autor nega possa ser invocado pelo segundo
credor, mesmo se o seu crédito se vença antes do primeiro, devendo antes “attendere la scadenza del
debito anteriore e soltanto quando il creditore di grado poziore non vi si opponga, egli userà del diritto
di aggiudicazione. La facoltà di scelta (vendita o aggiudicazione) è acquistata col contratto al creditore
anteriore, il quale durante il pegno non può subire imposizioni da un creditore pignoratizio
sopravvenuto”).
1280
Acerca da venda em processo de falência no direito italiano, Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 176 e
segs., abordando especialmente a questão de saber se, em caso de penhor concedido pelo falido em
benefício de uma dívida alheia, a pretensão do titular da garantia deveria ser exigida em sede falimentar
(respondendo afirmativamente, alegando que no processo de falência deverão ser examinados, não apenas
os créditos reclamados ao falido, mas igualmente “diritti di natura reale, quali che consentono ai terzi di
rivendicare le cose mobili possedute dal falito”: deste modo, uma vez reconhecido o direito de
preferência do credor, o administrador da insolvência deverá agir, com base no direito de regresso, contra
o terceiro cuja dívida havia sido garantida pelo falido). Na hipótese inversa de ter sido prestada uma
garantia por terceiro para assegurar um débito do falido, o mesmo Autor (ob. cit., pág. 171) sustenta que o
crédito do credor será admitido como quirografário, embora se o credor vender o bem e satisfizer o seu
crédito, a sua pretensão para com o falido extinguir-se-á.
1281
Acerca desta norma, vide supra n.º 9 do Capítulo I. Merecem especial referência, na óptica do credor
pignoratício, as alíneas d) - que determina a extinção das garantia que não sejam independentes de
registo, sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo integrantes da massa insolvente, acessórias de créditos
sobre a insolvência e já constituídas, mas ainda não registadas nem objecto de pedido de registo – e a
alínea e), respeitante às garantias sobre bens da massa insolvente acessórias de créditos subordinados
332
efectuada por lei (cfr. art.ºs 47.º a 51.º e 98.º e, muito em particular, a figura dos créditos
subordinados, os quais merecem ao legislador um tratamento francamente desfavorável,
sendo pagos mesmo depois dos créditos comuns – art.º 177.º).
Ainda em sede falimentar, cumpre esclarecer qual a eventual sujeição ao regime
insolvencial das garantias de natureza fiduciárias, ou seja, que impliquem a
transferência da propriedade do bem onerado para o credor, como sucede, pelo menos
segundo alguns, com o penhor irregular.1282
8.1 - Adjudicação
(enumerados no art.º 48.º): em qualquer destes casos, o credor pignoratício perde a sua garantia, sendo o
seu crédito degradado para a posição de comum.
1282
Uma vez que o credor se torna proprietário do bem onerado, torna-se necessário coordenar a função
de garantia com a transferência da propriedade para o credor, com o inerente direito de disposição. A
respeito da cessão de créditos em garantia (mas com aplicação, segundo o mesmo Autor, aos demais
negócios de matriz fiduciária), Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., págs. 962 e 963, admite a aplicação
analógica do art.º 104.º do CIRE, norma ditada para a reserva de propriedade (uma vez que, em seu
entender, “esta norma regula uma questão mais ampla, qual seja a da admissibilidade do recurso à
titularidade de um direito com função de garantia e estabelece um regime insolvencial potencialmente
aplicável a outras figuras além daquelas aí directamente previstas que recorram a um instrumento
garantístico semelhante”) e do regime geral do art.º 102.º (que consente ao administrador da insolvência
escolher entre o cumprimento ou não do negócio): ou seja, se optar por cumprir, “a dívida do insolvente
torna-se dívida da massa, mas o crédito objecto da garantia só se tornará parte da mesma quando o
credor garantido cumprir a obrigação de retransferência que só surge em seguida ao cumprimento (pelo
administrador) das obrigações garantidas” (se o administrador, depois de optar pela execução, vier,
afinal, a não cumprir, pode o credor recorrer ao meio de actuação da garantia); optando, pelo contrário,
pelo incumprimento, o credor terá o direito a ser indemnizado, contabilizando-se, para o efeito, os danos
decorrentes de tal incumprimento. Neste contexto, a jurisprudência italiana oscila entre a desnecessidade
de o credor reclamar o seu crédito na falência do devedor (alegando que, com a abertura do processo, o
crédito se extingue “in forza di una mera operazione contabile, che consiste nell’imputare il valore dei
beni fungibili ricevuti in garanzia, ed entrati nel patrimonio del creditore, all’obbligazione rimasta
inadempiuta”, cabendo-lhe apenas devolver um eventual excesso) e decisões que outras lhe impõem esse
ónus (acentuando a função de garantia do instituto e desvalorizando a transferência da propriedade para o
credor): em face desta dissonância, o aresto do Plenário da Corte de Cassação de 4/5/2001 adoptou o
primeiro entendimento, reconhecendo que a necessidade de reclamação de créditos é excluída em razão
da possibilidade de satisfação do crédito fora do concurso (maxime por via de compensação) e sobre bens
que não pertencem ao património do devedor falido (posição esta corroborada pelo art.º 4.º do regime do
penhor financeiro). Sobre este assunto, Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 216 e segs..
1283
Gabrielli, Il pegno cit., págs. 344 e 345, precisando que esse excesso será devolvido ao empenhador
ou, caso existam outros credores deste, colocado à sua disposição.
1284
Qualificam a atribuição como uma dação em pagamento Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 121
(retirando dessa qualificação a consequência de, a partir da data em que o juiz aceite a pretensão do
credor pignoratício, este se tornar proprietário do bem, não podendo o anterior proprietário reclamá-lo),
Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 118, Weil, ob. cit., pág. 94. Porém, Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 291, discordam dessa qualificação, porquanto a atribuição dispensa o consentimento do
devedor/empenhador (em termos aproximados, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 72 e Simler e
Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 548, falando de uma dação em pagamento forçada). Já Lisanti-
Kalczynsky, ob. cit., pág. 206, alude a uma controvérsia entre a sua qualificação como dação em
pagamento (alegando a Autora que comunga dos traços desta figura pela realização do pagamento através
de um objecto distinto do inicialmente previsto, mas dela se afasta por os seus efeitos de produzirem por
decisão judicial e não por convenção das partes) e exercício indirecto do direito de preferência.
333
Esta alternativa, já prevista do Código Civil de 1867 (art.º 864.º),1285 poderia
constituir uma porta aberta para contornar a proibição do pacto comissório,1286 pelo que
o n.º 2 art.º 675.º do actual Código Civil exige que a adjudicação seja efectuada por um
valor a fixar pelo tribunal.1287
Porém, o interesse do credor em socorrer-se desta forma de execução da garantia
está directamente relacionado com natureza do bem empenhado, mais concretamente
com a maior ou menor dificuldade de revenda do bem.1288
A grande vantagem, para o credor, do recurso a esta via poderá ser evitar o
concurso de credores (conseguindo, deste modo, superar os detentores de causas de
preferência legalmente prioritárias) - contudo, importa considerar os legítimos interesses
dos terceiros credores do empenhante, cujos direitos serão preteridos, pois, em caso de
venda, tais preferências suplantarão a do credor pignoratício.1289
1285
Nos termos desse preceito, as partes podiam acordar que o credor se pagasse com o penhor pela
avaliação feita por louvados nomeados de comum acordo. Em face do teor desta norma, Cunha
Gonçalves, ob. cit., pág. 254, admitia mesmo uma avaliação previamente acordada, no momento do
surgimento da obrigação garantida (desvalorizando o facto de o devedor se encontrar, nesse momento,
num hipotético estado de necessidade), enquanto Alberto dos Reis (apud Isabel Matos, ob. cit., pág. 130),
repudiava tal convenção, invocando os mesmos fundamentos que sustentam a proibição do pacto
comissório. Em face do actual regime, Isabel Matos, ob. cit., págs. 130 e 131, adere a este segundo
entendimento, invocando que a necessidade de avaliação judicial não pode deixar dúvidas relativamente à
invalidade de semelhante convenção.
1286
Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 331, entende que a autorização prévia do juiz permite contornar
a proibição do pacto comissório, traduzindo-se a adjudicação em pagamento num pacto marciano, uma
vez que o credor deve restituir um eventual excesso de valor do bem onerado face ao crédito garantido
(exigindo, inclusive, a autorização judicial para o caso de penhor irregular, no qual os bens em questão já
se haviam tornado propriedade do credor).
1287
Realça este aspecto Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 181 e 182 (advertindo que “se a avaliação
fosse feita pelo próprio credor ou por qualquer pessoa por si escolhida, o devedor ficaria sujeito aos
perigos e inconvenientes que a proibição do pacto comissório visa acautelar”). Em França e mesmo
antes da reforma de 2006, já o art.º 2078.º do CCF atribuía a qualquer credor pignoratício a faculdade de
requerer a atribuição judicial do bem empenhado, mesmo que se tratasse de um penhor sem
desapossamento e salvo raras excepções (a mais relevante das quais respeitava ao penhor de
estabelecimento comercial). De acordo com Philippe Delebecque, L’atribution du bien, l’originalité du
gage commercial, in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11, pág. 127 e segs., a opção de
requerer a atribuição do bem em pagamento torna-se irreversível a partir do momento em que a decisão
judicial nesse sentido transite em julgado (devendo o juiz recusar o pedido de atribuição apenas em caso
de inexistência do crédito ou de contestação por parte do devedor ou de terceiros), podendo mesmo ser
solicitada no caso de o bem originário ter sido, por efeito de sub-rogação, substituído por outro (pois,
como salienta o Autor, “C’est le bien qui se trouve actuellement grevé par le gage qui susceptible
d’attribution et pas nécessairement le bien initial”) e cabendo a avaliação do bem a um perito designado
para o efeito (embora o Autor saliente que o resultado da perícia não é vinculativo para o juiz, podendo
este optar por uma avaliação diversa, desde que devidamente fundamentada – no mesmo sentido, Lisanti-
Kalczynsky, ob. cit., pág. 444). No que respeita à atribuição extra-judicial, a mesma enfrentava os
escolhos resultantes da proibição do pacto comissório (sobre esta, vide infra n.º 4 do Capítulo II) e das
cláusulas de voie parée (da qual decorre a interdição de todas as cláusulas que permitam ao credor dispor
do bem empenhado sem respeitar as formalidades previstas na lei, embora também a este respeito a
jurisprudência admita alguns desvios, validando, por exemplo, a estipulação em que o credor se arroga o
direito de solicitar a atribuição do bem em caso de a venda ter ficado deserta).
1288
Philippe Delebecque, L’atribution du bien cit., pág. 125.
1289
Salienta este aspecto Philippe Delebecque, ob. cit., pág. 125, assegurando, por outro lado, ser a
necessidade de protecção destes outros credores (e do próprio devedor) a reclamar que a atribuição do
bem em pagamento ao credor tenha que ser realizada judicialmente. Em face do direito francês (no qual a
possibilidade de atribuição judicial se encontra prevista no actual art.º 2347.º do CCF), Simler e
Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 548, relatam ser esta uma “arma absoluta”, porquanto a
jurisprudência dominante consente aos credores que optem por esta via obter uma pagamento prioritário
(através da aquisição, plena e incondicional, da propriedade do bem onerado), em detrimento dos demais,
sem sujeição a qualquer concurso, tanto mais que a atribuição apenas será descartada em presença de uma
334
Nesta conformidade, se for o credor detentor de uma preferência prioritária a
requerer a atribuição, nenhum obstáculo se ergue ao recurso a esta via de execução da
garantia.
Todavia, já não será tão pacífica a sua utilização na eventualidade de ser
invocada por um credor pignoratício (ou outro) não preferente1290 ou até com o mesmo
grau de preferência (podendo sustentar-se, neste caso, que a adjudicação a qualquer um
deles pressupõe o consenso dos restantes, o que dificultará sobremaneira o recurso a
este expediente). 1291
Em face da nossa lei processual e tendo desaparecido o regime especial de venda
ou atribuição judicial do bem empenhado (cfr., quanto a esta última modalidade, o já
disposição legal expressa (este alargamento é contestado pelos Autores, com o argumento que a
atribuição judicial foi originariamente concebida como o prolongamento do direito de retenção e como
contraponto da impossibilidade de o credor reter indefinidamente o bem, não sendo a via normal de
execução da garantia). Também Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs.453 a 455 (vide
também Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 291), entende que o direito de atribuição exclui
qualquer conflito com outros credores do mesmo devedor, ou seja, “le droit d’attribution est indépendant
des règles concernant l’ordre dans lequel s’exercent sur le prix les divers privilèges en cas de vente du
bien nanti”, fazendo da atribuição um modo de o credor pignoratício escapar ao concurso de credores,
subvertendo a hierarquia entre estes (em face de todas estas vantagens para o credor que a ela recorre, a
adjudicação é vista como o modo de realização preferencial, apresentando como principal desvantagem o
facto de o credor muitas vezes não estar interessado em tornar-se proprietário do bem em causa, até pela
dificuldades que poderá enfrentar aquando duma eventual revenda), posição esta seguida por Legeais,
Sûretés 1999 cit., pág. 263, Ancel, Droit des sûretés, 2.ª Edição, Litec, 2000, pág. 117, Marty, Raynaud e
Jestaz, ob. cit., pág. 72. Contudo, Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 239, recusam que a ela possa
recorrer o credor titular de um penhor com desapossamento, quando a coisa já não se encontre em seu
poder, por exemplo quando tenha sido voluntariamente entregue ao vendedor titular de uma cláusula de
reserva de propriedade, uma vez que a atribuição não pode ser imposta ao proprietário, que se tornou
possuidor, pelo que, na ausência de posse actual, a protecção do possuidor de boa fé não pode beneficiar o
credor pignoratício (pelo contrário, tratando-se de um penhor sem desapossamento, a atribuição judiciária
pode ser exercida contra o constituinte, podendo o bem ser reclamado ao terceiro detentor). Por último,
Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 736 e segs., evidenciam como as razões que
motivaram a consagração originária deste modo de execução do penhor (os menores custos e a maior
rapidez face à venda judicial) estão longe de estar demonstrados (pois era necessária a intervenção do juiz
e porque era necessário remunerar o perito avaliador), sendo o recurso a ela justificado pelo facto de os
credores pignoratícios poderem ver o seu direito prevalecer sobre outros hierarquicamente superiores
(assim se consagrando o absurdo de fazer variar a hierarquia dos credores em concurso de acordo com o
modo de execução escolhido por um deles), tendo-se a reforma de 2006 limitado a generalizar esta forma
de execução a todos os penhores, com e sem desapossamento.
1290
Sendo o grau diverso, Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 367, entende que um credor pignoratício poderá
requerer a atribuição do bem em pagamento mesmo que existam outros credores com garantias sobre o
mesmo bem, desde que sejam respeitados os direitos dos hierarquicamente superiores. Também para
Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 736 e segs., em caso de pluralidade de credores com
garantia sobre o mesmo objecto, apenas o com preferência superior – sem que os demais se possam opor,
restando-lhes fazer-se pagar pelo eventual remanescente - poderá requerer e obter a atribuição (no mesmo
sentido, Philippe Delebecque, L’atribution du bien cit., pág. 127). Pelo contrário, Lisanti-Kalczynsky, ob.
cit., pág. 206, destaca como esta figura pode perturbar a hierarquia entre os diversos credores, (excluindo
qualquer concurso entre eles) e, por isso, (cfr. págs. 447 e 448) conclui que “l’attribution judiciaire ne
peut être opposée aux créanciers inscrits antérieurement à celui qui la sollicite”, razão pela qual esta
faculdade apenas poderia ser exercida pelo credor com a garantia prioritária.:
1291
Neste sentido, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 172 e 173, concluindo que, na falta de acordo,
restará o recurso à venda. Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 736 e segs., entendem que a
melhor solução será a de lhes atribuir a propriedade indivisa, desde que todos se encontrem de acordo
quanto ao pedido de atribuição (contra, Philippe Delebecque, L’atribution du bien cit., pág. 127,
entendendo tratar-se de um direito exclusivo de cada credor).
335
revogado art.º 1011.º),1292 a adjudicação em pagamento de um bem previamente
empenhado deverá obedecer às regras ditadas para as execuções comuns, das quais
resulta que o exequente ou qualquer credor com garantia real sobre o bem penhorado
pode requerer que lhe seja atribuída a propriedade deste (indicando, para o efeito, o
valor que oferece), requerimento esse que será deferido caso não surjam propostas
superiores, nem seja exercido nenhum direito de preferência (cfr. art.ºs 875.º, n.ºs 1 a 3
e 877.º, n.º 1, do CPC).1293
Desde logo, parece que o recurso a esta via deixa de pressupor uma convenção
entre as partes anterior ao início da execução, como decorre do art.º 675.º, n.º 2, do
CPC1294 (pois a ela pode recorrer qualquer exequente, ainda que não preferente), ou
seja, mesmo não havendo tal acordo, será possível ao credor requerer a adjudicação: em
suma e no limite será legítimo inferir que, existindo tal pacto e optando o credor pela
venda executiva, o seu efeito útil será de consagrar esse como o modo de pagamento do
credor pignoratício (admitindo que nenhum outro credor é detentor de uma causa legal
de preferência graduada anteriormente à sua).
Mais ainda, o recurso à adjudicação passa antes a pressupor a prévia instauração
de um processo executivo que, não fora a opção pela atribuição judicial, culminaria na
venda do bem onerado.
Ora, decorre deste regime legal que qualquer credor, pignoratício ou não (desde
que munido de uma garantia real, se não for o exequente), munido ou não da causa de
preferência prioritária, poderá socorrer-se deste mecanismo (podendo adquirir o bem
por um preço inferior ao real), sendo a tutela do devedor e dos demais credores
assegurada pela mediação do agente de execução (art.ºs 875.º, n.º 4 e 876.º, n.º 3), pela
publicitação da apresentação do requerimento de adjudicação (art.º 876.º, n.ºs 1 e 2) e
pela possibilidade de os credores com preferência sobre o bem onerado oferecerem um
preço superior ao do requerente e tornarem-se adjudicatários (art.º 877.º, n.º 2).
Não obstante estas cautelas, a adjudicação em pagamento poderia conduzir a
uma subversão da hierarquia das preferências, originando que um credor dotado de uma
preferência inferior (ou até o credor comum exequente) obtenha pagamento do seu
crédito antes de outro hierarquicamente colocado acima no concurso de credores.
Para obviar a este resultado e em consonância com o defendido a respeito da
venda antecipada do penhor,1295 a circunstância de a faculdade de requerer atribuição se
1292
Em cujo n.º 1 expressamente se afirmava ser esta a forma de execução do penhor, sempre que as
partes houvessem previamente acordado nesse sentido. Acerca deste procedimento especial e das dúvidas
que o mesmo suscitava, vide infra n.º 9.1.4 do Capítulo I.
1293
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 182.
1294
O revogado regime especial de venda do penhor apenas permitia a adjudicação do bem em pagamento
quando houvesse convenção nesse sentido, em harmonia com a lei civil, solução esta defendida por Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 279 (concluindo que tal acordo não implicará grande prejuízo para
o empenhador, porquanto apenas o priva da eventual diferença de valor que, em sede de venda judicial,
viesse a ser obtido), colocando dúvidas à possibilidade de adjudicação sem convenção, pelo facto de a
mesma ser susceptível de causar um prejuízo para o empenhador, sempre que o valor da avaliação seja
inferior ao que resultaria da venda judicial (apesar de apresentar a vantagem de ser, à partida, mais fácil e
menos dispendiosa face a esta). Por isso, na ausência de acordo o Autor citado apenas admite a
adjudicação quando o bem empenhado tenha um preço corrente, ou seja, pelo valor que qualquer terceiro
ofereceria acaso ocorresse a venda.
1295
Sobre a venda a antecipada, vide infra n.º 9.1.4 do Capítulo I. Conforme exposto nesse local, era
discutido, no domínio da vigência do processo especial de venda do penhor, se este exigia ou não o
concurso de credores, dúvida essa extensível à adjudicação, por força da redacção originária do art.º
1011.º, n.º 1 (a qual remetia a tramitação da adjudicação para o disposto a respeito da venda) e talvez
mais ainda na sequência da redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 47690, de 11 de Maio de 1967
(passando a afirmar-se tão somente que “não havendo contestação, sendo esta julgada improcedente, ou
336
encontrar regulada no seio do processo executivo comum, no qual é obrigatória a
citação dos credores garantidos (art.º 864.º) e a graduação dos créditos em concurso
(cfr. art.º 868.º),1296 impõe que esta não possa ser adulterada por aquela especial forma
de execução, destarte apenas permitindo ao credor titular de um crédito subalterno optar
por esta alternativa depois de liquidar os créditos preferentes reclamados nessa
execução, o que constitui um nítido desincentivo ao recurso à adjudicação.1297
Paralelamente e apesar de o n.º 2 do art.º 675.º prescrever a necessidade de
intervenção judicial – traduzida na fixação do valor do bem em questão - para a
adjudicação do bem em pagamento ao credor, não se pretende “instituir uma reserva de
competência jurisdicional, mas apenas garantir que a avaliação do bem é respeitada e
que não é arbitrariamente realizada pelo credor”,1298 pelo que serão admissíveis
formas alternativas de avaliação que confiram garantias idênticas (como sucede com o
pacto marciano, sempre que a avaliação seja feita por perito ou decorra de uma
atribuição automática de valor no âmbito de um mercado organizado), mas apenas
desde que a convenção seja invocada pelo credor munido da causa de preferência
prioritária no âmbito do concurso de credores, assim se salvaguardando a hierarquia
entre estas legalmente prescrita.
Discute-se, porém, se este direito de atribuição se encontra ou não
umbilicalmente ligado ao direito de retenção, constituindo um prolongamento deste (e,
em consequência, se tal direito de adjudicação subsistirá mesmo nos penhores em que
não se verifique o credor pignoratício não exerça um poder material sobre o quid
onerado1299): a amplitude com que os preceitos acabados de mencionar conferem este
337
direito, reclama a absoluta independência do direito de atribuição face ao (eventual)
direito de retenção de que o credor pignoratício fosse titular.1300
Salvo melhor juízo, a configuração do direito de atribuição como uma mera
extensão da retenção pignoratícia (para além de excluir, sem base legal, a outorga
daquele a credores pignoratícios que não tivessem o bem onerado seu poder, seja porque
este fora entregue à custódia de terceiros, seja por se tratar de um bem incorpóreo ou de
um crédito), poderia redundar na criticada subversão da hierarquia legal das causas de
preferência, ao permitir que o credor pignoratício apenas fosse desapossado do bem
contra o pagamento do seu crédito, destarte postergando credores posicionados à sua
frente em sede de concurso.
Por fim, são ainda de considerar as especificidades que este direito de atribuição
assume quando o penhor incida sobre um crédito (a reclamar, porventura, uma
adequação do regime geral)1301 atenta a especialidade deste objecto e, sobretudo, o
possível contraste com a proibição do pacto comissório.1302
8.2 - Venda
modo, nomeadamente através da interdição de alienação do bem em questão, pelo que a faculdade de
atribuição judicial pode bem prescindir da prévia retenção do bem onerado), mas apenas desde que seja
titular de um penhor com desapossamento (desde logo, porque na data da entrada em vigor do preceito
legal que outorga ao credor o direito de atribuição apenas existiam penhores com essa característica e os
que foram posteriormente criados são sem desapossamento, o que significa que “Le législateur, instituant
des gages sans dépossession, s’est placé dans un autre système (…) la publicité, qui remplace la mise en
possessoin, rapproche les divers gages spéciaux – et noveaux - de l’hypothèque. Or, il n’a jamais été
envisagé d’autoriser les créanciers hypothécaires à pouvoir se faire attribuer le bien hypothéqué au
mépris des droits réconnus aux autres créanciers”). Na opinião do Autor, não é possível analisar
isoladamente os direitos de retenção e de atribuição, pelo que “Dans tout les cas où il y aura un gage avec
dépossession, on reconnaîtra au créancier un droit de rétention et le droit d’attibution du gage. Il
importe peu qu’il y a possession par un tiers (corpore alieno) pour le compte du créancier nanti (…). Il
emporte tout aussi peu qu’il y ait possession fictive (…). Dans ces hypothèses, en effet, le législateur n’a
pas voulu soumettre le gage à un régime dérogatoire du droit commun: il existe bien une dépossession –
ou quasi-dépossession, dans une forme différente mais équivalente à celle du droit commun (…). Dans
toutes les autres hipothèses, qu’il y ait hypothèque mobilière ou gage sans dépossession, le créancier doit
se voir refuser à la fois le droit de rétention et le droit à l’attribution judiciaire du bien donné en gage“.
Em termos mais gerais, defendem que a faculdade de requerer a atribuição do bem em pagamento não se
encontra ligada ao direito de retenção, pelo que mesmo o titular de um credor sem desapossamento a
poderá solicitar Ancel, ob. cit., pág. 117, Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 207 e Théry, ob. cit., pág.
326. Contra, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 72, sustentando que o direito de atribuição constitui
um prolongamento da prioridade absoluta conferida pelo direito de retenção, enquanto que nos penhores
sem desapossamento a posição do credor pignoratício poderá ser suplantada por outros credores,
constituindo a possibilidade de invocar a atribuição uma forma de contornar a supremacia desses outros
credores).
1300
Lisanti-Kalczinsky, ob. cit., pág. 140 e segs., noticia que, ao entendimento tradicional segundo o qual
a este direito se encontrava condicionado (e era um prolongamento) ao direito de retenção, contrapõe-se
uma tese mais recente e cada vez mais consolidada, de acordo com a qual a faculdade de requerer a
atribuição é independente da existência de um direito de retenção (apenas sendo excluída havendo
disposição legal nesse sentido), o que significa, no parecer da Autora, que, mesmo admitindo que o
penhor de bens incorpóreos não atribui ao respectivo credor um direito de retenção, ainda assim não será
de excluir a possibilidade de recurso à atribuição judicial em pagamento.
1301
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 97 e segs., destaca como o regime legal, embora
aplicável a qualquer penhor, independentemente do seu objecto, exige uma adaptação no que ao penhor
de créditos diz respeito, nomeadamente em relação à necessidade de avaliação do bem onerado
(considerando, de lege ferenda, que “la valeur du bien étant déterminée, il ne pouvait y avoir de risque de
fraude”, propondo, por isso, uma reforma legislativa no sentido de abolir esta exigência quando o penhor
recaia sobre créditos).
1302
Relativamente ao pacto comissório, vide infra n.º 4 do Capítulo II.
338
8.2.1 - Venda extrajudicial
1303
Como salienta Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 213, nos casos em que o credor pignoratício
não se encontre na posse exclusiva do bem empenhado – seja porque se encontra em poder de terceiro,
seja por estar numa situação de composse, seja por estar poder do próprio empenhador – este deverá ser
retirado ao seu possuidor e entregue ao tribunal. Contudo, se a venda for efectuada pelo credor, o bem
deverá ser devolvido a este (excepto se já estivesse numa situação de composse, uma vez que não será de
exigir a posse exclusiva para proceder à venda). Para precaver estas hipóteses, o §1231 do BGB prevê
que, não se encontrando o credor pignoratício na posse exclusiva do bem empenhado, pode, após adquirir
o direito de venda da coisa, exigir a sua entrega para proceder à respectiva venda (embora, a pedido do
empenhador, em vez da entrega ao credor, a coisa possa ser entregue a um depositário comum,
encontrando-se este obrigado disponibilizar o penhor para venda). Por outro lado, existindo mais de um
penhor constituído sobre o mesmo bem, o § 1232 do BGB dispõe que o credor pignoratício de grau
preferente não está obrigado a entregar, para efeitos de proceder à respectiva venda, a coisa a um outro
credor pignoratício de grau inferior (no entanto, se o primeiro credor não se encontrar na posse do bem e
não proceder à venda do bem empenhado, não poderá impedir que os outros credores pignoratícios o
façam).
1304
Estes preceitos foram revogados pelo art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com
o argumento que o alargamento dos títulos executivos admitidos por lei tornaria desnecessária a fase
declarativa (segundo os Acórdãos da Relação do Porto de 10/7/1997, in www.dgsi.pt, e de 30/4/1996, in
CJ 1996, II, pág. 225 e segs., este procedimento era, simultaneamente, declarativo e executivo) inicial
desse procedimento especial destinada a obter tais títulos (cfr. preâmbulo do diploma citado; já para Hugo
Ramos Alves, ob. cit., pág. 177, o objectivo principal da eliminação do processo especial de venda do
bem empenhado foi o de unificar a tramitação da acção executiva) – acerca da necessidade ou não de
citação de outros credores com garantias sobre o bem empenhado, nos termos do art.º 864.º do CPC, bem
como da obrigatoriedade ou não de realizar o concurso de credores, no domínio desta legislação (sobre
este assunto, vide infra n.º 9.1.4 do Capítulo I). Uma outra questão que se debatia era a da admissibilidade
da reconvenção (em sentido afirmativo, Acórdão da Relação de Lisboa de 5/11/1991, in www.dgsi.pt).
Finalmente, cumpre esclarecer que, mesmo na vigência desse procedimento especial, o recurso a essa
forma de execução da garantia não era obrigatória para o credor (tratando-se tão só de uma faculdade da
qual lhe seria legítimo prescindir), podendo este optar pela execução comum (assim, Acórdão do STJ de
12/7/1979, in BMJ n.º 289, pág. 253 e segs.).
1305
Em Espanha e de acordo com Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 216 e segs., essas diferenças
traduzem-se, essencialmente, na limitação da actuação do devedor e de terceiros, assim evitando demoras
na execução do bem empenhado. Com efeito, apenas constituem causas de oposição (originando a
suspensão da mesma) a extinção da obrigação garantida, o erro na determinação da quantia exigível
(unicamente se a dívida garantida resulte do saldo de uma conta corrente existente entre o credor e o
executado) e a reivindicação do bem empenhado por parte de terceiro (para o que este terá que juntar ao
processo documento comprovativo da sua titularidade). Para além disso, existem regras específicas
quanto à alienação executiva dos bens empenhados em função da especial natureza de alguns deles: por
exemplo, para os valores mobiliários admitidos a negociação a venda far-se-á de acordo com as leis que
regem esses mercados (devendo o juiz notificar a entidade gestora desse mercado, a qual adoptará as
medidas necessárias para efectuar a venda, identificando a entidade aderente na qual se encontrem
registados os bens, designando a entidade que procederá à alienação e o modo como este se processará),
enquanto para os não admitidos e na falta de disposição estatutária ou constante do título constitutivo da
garantia se fará através de notário e mediante a hasta pública, à qual deve ser dada a devida publicidade
(porém, antes de proceder à alienação, o notário deve assegurar o respeito pelas normas estatutárias e
societárias aplicáveis – nomeadamente as que consagrem direitos de aquisição preferentes a favor dos
339
Porém, é legítimo às partes convencionar que a venda se efectuará
extrajudicialmente, ou melhor, extraprocessualmente (art.º 675.º, n.º 1, parte final, na
redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março),1306 isto é, sem
sócios – e, quanto ao valor inicial dos bens na hasta pública, deverá ser, caso não haja estipulação em
contrário, o correspondente ao valor total do crédito exequendo; no final da hasta, o notário comunicará o
nome do vencedor e o valor de arrematação, procedendo às comunicações devidas à sociedade emitente
dos valores vendidos – designadamente quando se trate de acções nominativas, para efeito de anotação da
transmissão no livro dos sócios - e/ou às responsáveis pelo registo dos mesmos valores).
1306
Bem mais restritivo é o direito francês, mesmo após a reforma de 2006, pois o art.º 2346.º do CCF
continua a proibir as chamadas cláusulas de voie parée, ou seja, a admissibilidade de, por convenção das
partes, se estabelecerem condições de venda diversas das prescritas pelas leis que regulam o processo
executivo (conforme salientam Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 547, o credor deverá
dirigir-se sempre ao tribunal, que promoverá a venda “aux enchères”, podendo o credor licitar e tornar-se
o adquirente do bem). No direito catalão, prevê-se a possibilidade que as partes convencionem que a
venda será efectuada por qualquer delas ou um terceiro, exigindo, contudo, que tal convenção conste de
escritura pública contendo os critérios de alienação, a qual terá que ser notificada aos titulares de direitos
reais sobre a coisa para que estes, se assim o entenderem, paguem a dívida e se sub-roguem na posição do
credor (na inexistência de pacto, a alienação será realizada notarialmente, embora Daniel Ripley,
Derechos reales de garantia en el derecho civil de catalunya, in www.indret.com, pág. 12, realce que “Si
la prenda recae sobre una cantidad líquida y exigible de dinero, el acreedor los podrá hacer suyos sin
subasta previa, exigiéndose únicamente la notificación previa al deudor”). Já o direito brasileiro admite a
venda amigável, desde que tal hipótese se encontre contemplada no contrato ou exista autorização do
devedor para o efeito (art.º 1434.º, IV), embora Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 343, advirta
que, por força da proibição das convenções comissórias, o credor não poderá adquirir directamente o bem
(podendo fazê-lo apenas, se promover a venda judicial e for sua a melhor proposta). Também no
ordenamento alemão se admite a execução privada, salientando Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1531 e segs., que o recurso a este
procedimento depende da validade do penhor, do vencimento da obrigação garantida, da posse exclusiva
do bem empenhado por parte do credor (podendo o bem encontrar-se na posse do terceiro encarregue da
sua custódia), da intimação prévia e do decurso de o prazo de um mês entre tal intimação e a alienação
propriamente dita, não sendo necessária qualquer decisão condenatória prévia (sendo a defesa do devedor
assegurada pela possibilidade de invocar excepções contra o crédito, contra o penhor ou contra a relação
jurídica garantida): a venda em si decorrerá normalmente através de hasta pública (realizada pelo
funcionário judicial competente ou por um oficial público designado para o efeito – que actuam como
representantes do credor pignoratício -, devendo ser anunciado publicamente o local da sua realização e
notificados o proprietário e terceiros titulares de direitos reais sobre o bem a vender, hasta essa na qual
qualquer interessado pode licitar, tornando-se proprietário aquele que haja efectuado a melhor oferta,
mesmo que seja o credor pignoratício ou o empenhante. Um vez efectuada a venda, o comprador deverá
liquidar de imediato o preço de compra, adquirindo a propriedade do bem, mesmo que este houvesse sido
alvo de perda ou privação ilegal, extinguindo-se todos os direitos reais que o onerassem, com a única
ressalva do usufruto, que apenas se extingue em caso de boa fé do adjudicatário. Quando a alienação seja
efectuada sem que a garantia seja válida, sem que o crédito se ache vencido, sem publicitação adequada
da hasta ou quando esta não seja pública, o arrematante não adquirirá a propriedade do bem, embora se o
proprietário ratificar a posteriori a actuação do credor pignoratício ou quando o adquirente se encontre de
boa fé – traduzida na crença, sem culpa grave, da existência do penhor e de legitimidade para a sua
execução – estas invalidades sejam convalidadas, com excepção da realização da hasta pública: se o não
forem, o credor responde perante o proprietário e o empenhante pelos danos causados (pelo menos pelo
cumprimento defeituoso do contrato e penhor), excepto quando se trate de bens com uma cotação em
bolsa ou preço de mercado (caso em que a alienação poderá ocorrer apenas por intermédio de pessoa
especializada e habilitada para o efeito, transmitindo-se a propriedade mesmo que o bem seja vendido por
um valor inferior ao de mercado – sem prejuízo de uma eventual indemnização por parte do alienante
pelos danos causados - e aplicando-se supletivamente o regime previsto para a venda em hasta pública):
todavia, estes Autores admitem, de acordo com a lei processual, que o juiz modifique o modo de
realização da hasta pública ou até que imponha outro modo de alienação do bem onerado (sempre que,
neste último caso, entende ser preferível em face dos interesses das partes).
340
necessidade de recorrer ao processo executivo,1307 norma esta igualmente aplicável ao
penhor de direitos.1308
Ou seja, o ordenamento jurídico coloca ao dispor do credor pignoratício um
mecanismo de tutela não judiciário e, em certo sentido pelo menos, de auto-tutela1309.
1307
Na redacção originária do preceito falava-se da possibilidade de as partes convencionarem na venda
“extrajudicial”, enquanto que a actual se refere à legitimidade da venda “extraprocessual”. Quiçá esta
alteração se prenda com a intenção de eliminar as dúvidas, surgida antes da reforma da acção executiva
de 2003, acerca do alcance da faculdade concedida às partes, tendo em conta que, antes dessa data, a
venda em processo executivo tanto poderia ser feita judicial como extrajudicialmente (por exemplo, a
venda em bolsa, a venda directa, a venda por negociação particular ou em leilão): daqui resultava a
discussão se centrava em saber se a menção à venda extrajudicial do art.º 675.º se referia ainda a uma
venda dentro do processo executivo (ainda que extrajudicial) ou, ao invés, contemplava antes uma venda
fora do processo executivo (interpretação esta que, segundo Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 201, nota
477, era a prevalente na doutrina). Contudo, com a reforma da acção executiva de 2003, a diferença entre
venda judicial ou extrajudicial desapareceu, porquanto toda a venda é efectuada por um agente da
execução (no mesmo sentido, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 178, acrescentando que, caso se opte pela
venda através deste agente, existam várias modalidades possíveis: carta fechada, em bolsas de capitais ou
de mercadorias, em depósito público, venda directa, por negociação particular ou através de um leiloeiro),
pelo que a interpretação do art.º 675.º, actualmente, passa por ler essa norma como autorizando a venda
fora do processo executivo e sem a intervenção do agente da execução (no mesmo sentido, Isabel Matos,
ob. cit., págs. 125 126, Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., págs. 550 e 551, nota 1074 e Catarina
Monteiro Pires, ob. cit., pág. 266, nota 724, concluindo esta última ser “hoje inquestionável a dispensa de
acção executiva”): em suma e como remata Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 243
e 244, nota 687, “venda extraprocessual, por oposição a venda executiva, significa aquela que é
realizada fora do processo, o que aponta no sentido de o credor não ter que recorrer à interposição de
uma acção executiva para se pagar pelo produto da venda do crédito, mas pode, sem ter que recorrer ao
processo executivo, ele próprio realizar a venda” (em termos concordantes, Hugo Ramos Alves, ob. cit.,
pág. 180, destacando a licitude da inserção de uma cláusula no contrato de penhor prevendo a
possibilidade de a venda ser realizada directamente pelo credor pignoratício).
1308
Neste sentido, Sofia Maltez, ob. cit., págs. 56 e 57. No direito alemão, a lei admite, também para o
penhor de créditos (e de direitos, em geral), que as partes convencionem a venda particular do objecto
onerado, embora a mesma apenas possa ser desencadeada após o vencimento da obrigação garantida (com
uma nuance, qual seja a necessidade a apreensão prévia, precedida de decisão judicial, uma vez que, ao
invés do penhor de coisas, o credor pignoratício não se encontra na posse do bem a executar) - Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1576.
1309
Adopta esta qualificação Gabrielli, Il pegno cit., pág. 316, concretizando tratar-se de um mecanismo
que fica paredes meias com a auto-tutela consensual satisfatória e a auto-tutela unilateral (importa,
todavia, ressalvar que o faz a respeito do procedimento especial de venda do penhor – art.ºs 2796.º e
2797.º do CCI – que se distingue do sistema português, na medida em que o modelo italiano opera
independentemente da vontade do empenhador e do seu prévio consentimento, sendo um procedimento
que se inicia com a intimação judicial do devedor para pagamento – juntamente com a advertência que o
não pagamento implicará a venda do bem – e, se tal intimação não for cumprida, se não for apresentada
oposição ou esta for rejeitada, o credor pode fazer vender o bem em leilão público ou, se o bem possuir
um valor de mercado, pelo seu preço corrente através de pessoa habilitada para o efeito). Por ser assim,
este processo especial apresenta dois aspectos que o distinguem do processo executivo comum: antes de
mais, a iniciativa e a condução do procedimento cabem ao credor (art.º 2797.º, n.º 1); depois, a venda
poderá ser efectuada por pessoa autorizada a realizar alienações de determinados bens (quando estes
detenham um valor de mercado) e até, havendo acordo das partes, pelo próprio credor (art.º 2797.º, n.ºs 2
e 4), ao contrário das execuções ordinárias, nas quais a venda é realizada por um órgão estadual ou por
pessoas por este indicadas. Todavia, Albina Candian, Le garanzie cit., págs. 328 a 332, critica este
procedimento especial de venda dos bens empenhados, em razão do efeito suspensivo da oposição
eventualmente apresentada pelo devedor (pelo que, enquanto o juiz não decida tal oposição, a venda fica
bloqueada), da circunstância de, tendo o bem um preço de mercado e apesar de a venda poder ser
realizada por pessoa autorizada, a venda não poder efectuar-se por um valor inferior a esse (o que permite
ao devedor “bloccare sine die tale vendita facendo semplicemente opposizione fa si che alla vendita senza
incanto si possa procedere solo con il consenso del debitore” e, a não ser assim, a venda seguirá os
trâmites das execuções comuns), até porque a tal possibilidade de venda particular se podem opor os
demais credores do devedor (ou melhor, podem promover a venda de acordo com o procedimento comum
341
Poder-se-á, todavia, discutir-se se essa faculdade terá que ser acordada no
momento da constituição do penhor ou, pelo contrário, será legítimo que as partes o
conevencionem em data posterior (mas, naturalmente, não depois da execução do
penhor).1310
Salvo o devido respeito, não detectamos qualquer impedimento legal a que a
convenção de execução extra-judicial do penhor seja subscrita em momento posterior ao
da constituição da garantia, não apenas por invocação de argumentos literais (quando o
n.º 1 do art.º 675.º afirma “se as partes assim o tiverem convencionado”, tal significa
que o tenham feito em momento anterior ao do início da execução, ou seja que o tenham
acordado antes do começo da execução), mas sobretudo por razões substanciais (sendo
esta uma faculdade concedida às partes e não se vislumbrando qualquer motivo válido
para a coarctar ou limitar, resulta que a liberdade das partes relativamente ao momento
de conclusão deste negócio não deve sofrer outra restrição que não seja a de a
convenção dever ser anterior à execução).
Noutros direitos, como por exemplo o espanhol (art.º 1872.º do CCE), prevê-se
uma forma especial de execução pignoratícia não judicial, por via notarial1311 - a qual se
aplicará mesmo na ausência de pacto das partes nesse sentido,1312 mesmo que o bem
tenha sido, aquando da constituição da garantia, entregue a um terceiro1313 e sem que o
credor disponha de algum prazo para iniciar o procedimento1314- sendo discutível se tal
regime pode ser ajustado, por via convencional, aos interesses das partes,1315 embora o
de execução – sem que a tal se possa opor o credor pignoratício - com o argumento que aqueles credores
não podem ser forçados a renunciar às formas comuns de execução, nem a confiar na pessoa encarregue
da venda particular): em face deste cenário, os credores munidos de título executivo optam pelas vias de
execução ordinárias (o que, na opinião da Autora, constitui a melhor demonstração da inidoneidade do
procedimento especial).
1310
Pronunciam-se a favor da primeira alternativa, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág.
695, alegando que o próprio texto da lei fundamenta tal entendimento (ao afirmar ser necessário que as
partes “o tenham convencionado”, não bastando que o convencionem) e Salvador da Costa, ob. cit., pág.
37.
1311
Porém, Campo Güerri, ob. cit., pág. 292 e segs., entende que a venda não é realizada pelo notário (“el
notario no es un ejecutor del bien a enajenar, no es una autoridad revestida del ius imperium para actuar
coactivamente. Es simplemente un órgano público a quien la ley o la voluntad de los particulares le
atribuyen, conforme a su función, la de constatar las diversas actuaciones que se realizan y controlar su
legalidad”), limitando-se este a controlar a legalidade do procedimento (tanto a nível adjectivo como
substantivo) e a segurança dos interesses em jogo.
1312
Campo Güerri, La realización notarial de las garantías reales, in Garantías reales mobiliarias en
Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 291, destaca como
a intervenção notarial decorre directamente da lei, isto é, mesmo na ausência de pacto nesse sentido, não
apenas na execução do penhor civil (art.º 1872.º), mas igualmente para execução do penhor, direito de
retenção e anticrese regulados pela lei catalã, da alienação de acções por falta de pagamento de
dividendos passivos (art.º 45.º da LSA) ou acções e participações não cotadas em bolsa. Para além disso,
a lei consente que a autonomia privada atribua ao notário a execução das garantias, seja no âmbito de uma
execução judicial, seja na execução extrajudicial das hipotecas mobiliárias e dos penhores sem
desapossamento.
1313
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1891, Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2149 e De la Santa
García, ob. cit., pág. 139 (esclarecendo este último que o bem pode permanecer em poder do terceiro até à
sua entrega ao notário).
1314
De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 249.
1315
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 388 e 389, dá conta de opiniões contraditórias, mas
responde afirmativamente, desde que se respeite a proibição do pacto comissório, ou seja, “1. Que exista
una valoración del bien que se quiere ejecutar. 2. Que el acreedor pignroaticio reciba como máximo la
cantidad que se le debía” (admitindo, por isso, que as partes prescindam da notificação ao devedor, do
prazo de espera para realizar a execução, da intervenção do notário – quando o bem tenha um preço de
mercado – e mesmo da avaliação do bem, quando o penhor incida sobre dinheiro). Em termos análogos,
Diaz Moreno, ob. cit., pág. 438 e segs., admitindo pactos que afastem o regime legal (seja o regime geral
342
seu âmbito de aplicação seja restrito ao penhor comum com desapossamento do
devedor.1316
Todavia, o recurso a este procedimento é facultativo, podendo os credores
pignoratícios optar pela via das execuções comuns ou até iniciar a execução notarial e,
perante o insucesso ou a iminência de insucesso desta, enveredar pela outra
alternativa.1317
Porém, a não regulamentação pela lei dos pressupostos1318 e da tramitação deste
procedimento1319 conduz a diversas interrogações,1320 parecendo impreteríveis a citação
previsto no art.º 1872.º do CCE, seja, sobretudo, o consagrado no art.º 320.º e segs. do Código Comercial
para os valores mobiliários) com o limite decorrente da proibição do pacto comissório (assim, por
exemplo, considera válida uma cláusula que permita ao credor efectuar a alienação de um valor
mobiliário após o termo do prazo de 3 dias e mesmo que o empréstimo garantido não conste de
documento público) e Guilarte Zapatero, ob. cit., pág. 559 (especificando que o problema se relaciona
com a inadmissibilidade do pacto comissório). Também Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág.
462, aponta no sentido do carácter dispositivo do procedimento legal, “siempre que se respete la
prohibición del pacto comisorio strictu sensu y la enejenación de los valores se lleve a cabo respetando
los intereses del constituyente de la prenda”, posição igualmente subscrita por De la Santa García, ob.
cit., págs. 139 e 140 (apontando como exemplo a fase do leilão do bem onerado, a qual poderá ser
regulamentada pelas partes de modo diverso do previsto para os procedimentos judiciais, assim obviando
aos inconvenientes destes. Em termos mais gerais, o Autor sustenta que, no âmbito da liberdade
contratual – e, ainda, por força da intervenção do notário, garante do cumprimento das normas e
princípios legais, sobretudo aqui no que toca à protecção da parte que se encontra numa mais débil, o
executado -, as partes podem acordar uma adaptação do regime legal de execução notarial, desde que o
sistema acordado consinta uma fixação do preço, impeça a passagem automática do bem para a
propriedade do credor em caso de incumprimento da obrigação garantida, sem necessidade de devolução
de um eventual excedente e até, quando os bens possuam um valor de mercado calculável de modo
objectivo, a supressão da intervenção notarial na execução).
1316
Assim, Verónica de Priego-Fernández, ob. cit., pág. 521 (esclarecendo que a execução poderá ser
promovida mesmo que o bem se encontre em poder do terceiro depositário da garantia), Caballol
Angelats, ob. cit., pág. 302 (“no será posible acudir a las vías no judiciales si la cosa no se halla en
poder del deudor o de un tercero, salvo que éstos la entreguen voluntariamente al acreedor o que la cosa
se recupere mediante el proceso judicial correspondiente”, até porque “la aprehensión del bien es un
acto de coerción sobre el deudor o tercer poseedor y esta potestad, en el Derecho privado, está atribuida
en exclusiva a los tribunales”. Salienta ainda que, caso o produto da venda do bem executado seja
insuficiente para satisfação da quantia exequenda, o credor não poderá utilizar este procedimento para
atacar outros bens do devedor não empenhados a seu favor) e, sobretudo, Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 425 e segs., que, depois de salientar que este procedimento surge como uma
consequência e um complemento da proibição do pacto comissório, destaca como o mesmo “es operativo
en el ámbito de las prendas comunes, esto es, con excepción de la ejecución de la prenda sin posesión y
la prenda de valores cotizables, que gozan de una especifica forma de ejecución”. Por último, resta aludir
à possibilidade de licitações por parte do credor (provocando uma alteração do título possessório) e do
devedor proprietário (assim libertando o bem do ónus que sobre ele impendia, “Se produciría una suerte
de consolidación pues sería absurdo hablar de una venta ya que éste era titular de dominical del bien”),
mas já não do devedor quando o bem dado em garantia e executado pertença a terceiro (pois, se assim
fosse, “el deudor no sólo no pagaría, sino que además de su incumplimiento, adquiriría a precio de saldo
un bien afecto a garantía por un tercero. El problema se agrava aúm más cuando un tercero o una
sociedad interpuesta en conivencia con el deudor acude a la subasta y licita. No sería más indigno si
cabe, este subterfugio que el pacto comisorio ex intervallo?”) - Veiga Copo, La prenda de acciones cit.,
pág. 449 e segs..
1317
Assim, Guilarte Zapatero, ob. cit., pág. 559, defendendo tal solução, não só quando a execução
notarial se revele infrutífera, mas ainda quando, antes de esgotados os trâmites desta, seja de prever o seu
insucesso (por exemplo, se a primeira hasta ficou deserta); no mesmo sentido, De la Santa García, ob. cit.,
pág. 137.
1318
Por exemplo, é debatido se o credor aliena o bem empenhado em nome próprio ou em nome do
proprietário, optando Guilarte Zapatero, ob. cit., pág. 661, pela primeira alternativa (acautelando que o faz
enquanto titular de um direito real de garantia e não enquanto proprietário), embora notando que não será
responsável pelos danos da coisa ou por evicção, uma vez que o bem permanece na propriedade do
343
do devedor,1321 a publicitação da venda no jornal oficial e nos meios de
comunicação,1322 a inadmissibilidade de ofertas para a primeira tentativa de venda que
constituinte da garantia (quanto a este último aspecto, vide, em termos concordantes, De la Santa García,
ob. cit., pág. 138).
1319
Um dos aspectos omissos mais relevantes é o que se prende com a eventual possibilidade de
suspensão da execução quando se verifique algumas das causas que, nas execuções comuns, permitem ao
executado opor-se à execução e originar a sua paralisação – respondem afirmativamente, Cordero Lobato,
Comentarios cit., pág. 2150 e De la Santa García, ob. cit., pág. 140 (contra, Salinas Adelantado, El
regímen cit., pág. 385, especialmente se a tal oposição for conferida eficácia suspensiva da execução).
Outra questão, prévia, respeita à eventual obrigatoriedade de o notário que proceda à execução ter sido o
mesmo que tenha formalizado a constituição do penhor que irá ser executado – responde negativamente
De la Santa García, ob. cit., pág. 139 (atendendo a que a fé pública verifica a licitude do procedimento
por qualquer dos representantes autorizados para a conceder).
1320
O processo de venda iniciar-se-á com o requerimento do credor (sublinhando Salinas Adelantado, El
régimen cit., pág. 383, não ser indispensável que este tenha a posse do bem para poder instaurar o
procedimento; contra, Guilarte Zapatero, ob. cit., pág. 560, alegando que o credor não possuidor não pode
entregar o bem ao adquirente e, desse modo, consumar a transmissão da propriedade, apenas exceptuando
a hipótese de o penhor ter sido constituído mediante entrega a terceiro, caso em que este deve manter a
posse do bem e entregá-lo apenas ao adjudicatário), sendo discutível se será necessária a intimação do
devedor (respondem negativamente Guilarte Zapatero, ob. cit., pág. 561, Reglero Campos, Ejecución cit.,
pág. 453 – acrescentando que nem tão pouco será indispensável a interpelação para pagamento –, Priego
Fernández, ob. cit., pág. 521 e Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 426, este sugerindo que o
credor se encontra legitimado para instar o procedimento desde a data do vencimento da obrigação, mas
entendendo ser necessária uma comunicação anunciando que se procederá à execução da garantia,
podendo o devedor liquidar o crédito garantido até alguns dias data indicada para a alienação; respondem
afirmativamente Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 384 - alegando que a finalidade de tal
comunicação é a de informar o devedor do valor que deve pagar para impedir a venda do bem e se
sobrará algum remanescente em caso de alienação do bem – e Diaz Moreno, ob. cit., pág. 430), citação do
devedor e do terceiro dador do penhor (com uma antecedência razoável de modo a permitir a reacção
destes – Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 384) e a venda em hasta pública: não havendo
compradores, far-se-á uma segunda tentativa de venda e, caso venha a revelar-se infrutífera, permite-se ao
credor “hacerse dueño de la prenda” (devendo dar quitação da totalidade do crédito, no montante que
apresentar no momento da execução e não no momento da constituição da garantia ou da dívida - Guilarte
Zapatero, ob. cit., pág. 563), pelo que o credor poderá tornar-se adjudicatário do bem objecto da sua
garantia se for quem apresente a melhor oferta ou se a segunda hasta ficar deserta (assim, Puig Brutau, ob.
cit., pág. 42), sem prejuízo de a instauração deste procedimento prescrever no prazo ordinário de 15 anos
a contar da data do vencimento da obrigação garantida (Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 454).
Contudo, ainda antes de proceder à alienação, o notário deverá certificar-se da titularidade dos bens a
licitar (no caso dos valores mobiliários, exigindo a entrega dos títulos ou a apresentação dos certificados
de legitimação) e, por outro lado, apenas deverão ser vendidos os bens depois de cumpridas as
formalidades exigidas nas execuções judiciais para a publicidade da hasta e de avaliação dos mesmos,
assim como as comunicações subsequentes à alienação (não parecendo necessária uma prévia avaliação
dos bens a alienar - Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2150, entende que, salvo pacto em contrário,
o valor de tais bens será, à imagem do que sucede nas execuções comuns, o suficiente para pagar a
quantia exequenda). Outra questão a que a lei não responde é a relativa ao prazo de que o credor dispõe
para optar por este procedimento em detrimento dos demais existentes, afirmando Veiga Copo, La prenda
de acciones cit., pág. 430 e segs., que não se pode exigir uma decisão imediatamente após o vencimento
do crédito, mas também não se deverá admitir uma dilação excessiva (até porque o risco de eventual
perda, deterioração ou desvalorização do bem corre por conta do credor – pelo menos quando tais efeitos
se produzam em razão de uma actuação negligente do mesmo - e, no limite, poderia mesmo consistir
numa apropriação do bem do devedor pelo credor em termos análogos aos vedados pela interdição do
pacto comissório). Perante todas estas omissões Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1891, entende que as
mesmas devem ser supridas através do recurso às normas gerais da legislação notarial e hipotecária (como
sejam as que impõem uma prévia avaliação do bem a licitar, a publicitação da hasta pública pelos meios
idóneos e com uma antecedência razoável e a não exigência de qualquer caução para poder participar na
licitação), enquanto Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2150, remete para a as normas relativas à
execução de bens móveis.
1321
No mesmo sentido, Priego Fernández, ob. cit., págs. 521 e 522.
344
não atinjam o valor da dívida (acrescido de 20% para as custas do processo), a
necessidade de uma segunda tentativa de venda no caso de a primeira ficar deserta e, em
caso de insucesso de ambas, a possibilidade de o credor se tornar adjudicatário do
bem1323 (faculdade esta que parece não afrontar a interdição do pacto comissório).1324
Este carácter lacunoso do procedimento notarial (associado a outros aspectos
menos bem conseguidos)1325 é, aliás, tido como uma das principais causas do seu
insucesso, tanto mais que não se afigura pacífica a determinação das normas a chamar à
colação para colmatar tais brechas.1326
1322
Reconhece igualmente o carácter insuprível da publicitação da venda, embora sem concretizar o meio
através do qual tal publicitação deverá ser efectuada, Priego Fernández, ob. cit., pág. 522 (acrescentando
ainda a necessidade de mediação de um prazo entre a tal publicitação e a realização da venda). Declara a
nulidade de um procedimento de execução notarial cuja divulgação fora efectuada na véspera da hasta e
num jornal desportivo, a sentença do Supremo Tribunal n.º 1050/2000, de 21 de Novembro (apud Lerena
Cuenca e outros, ob. cit., pág. 535 e 536).
1323
Caballol Angelats, ob. cit., págs. 301 e 302 e Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1891. Por seu turno
Priego Fernández, ob. cit., págs. 522 e 523, acrescenta a estes requisitos a indispensabilidade de avaliação
objectiva do bem empenhado, que corresponderá ao valor pré-estabelecido pelas partes ou, na sua falta, o
valor dos bens para a primeira hasta será o equivalente ao do crédito garantido, acrescido dos juros e das
custas.
1324
Assim, Pérez García, El sistema de ejecución de la prenda y el pacto comisorio: el artículo 1.872 del
Código Civil, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal),
Marcial Pons, Madrid, 2006, págs. 610 e 611, salientando como, por um lado, o credor não se apropria
directamente do bem (adquirindo antes a propriedade no termo de um procedimento legalmente
estabelecido) e, por outro, porque no momento em que adquire a propriedade do bem o credor mais não
faz do que receber uma dação em pagamento. Menos assertivo se mostra Paz-Ares Rodriguez, ob. cit.,
pág. 1891, para quem “por esta vía indirecta se produce una especie de pacto comisorio”. Já De la Santa
García, ob. cit., págs. 140 e 141, entende estarmos perante uma excepção à interdição das convenções
comissórias, uma dação em pagamento “lo cual significa que el acreedor, si opta por aceptar la dación,
deberá dar carta total de pago con independencia de que el importe adeudado sea superior al valor de
los bienes, y que si el valor de los bienes pignorados es superior a la deuda, quedará en beneficio del
acreedor el sobrante”, ou seja, sem necessidade de o credor devolver ao devedor um eventual excedente
face ao montante da obrigação exequenda (aliás, quanto ao alcance de proibição, o Autor entende que a
mesma não alcança as convenções através das quais as parte pré-fixam um justo preço para a eventual
futura alienação do bem onerado, consentindo ao credor tornar-se adquirente, desde que aquele preço seja
fixado objectivamente por um terceiro, até porque “negar esta posibilidad sería negar la posibilidad de
que el constituyente de la prenda pudiera hacer convenios con un acreedor, lo cual es inamissible, sobre
todo teniendo en cuenta que a los demás acreedores ya les protegen las acciones rescisorias”). Por fim,
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 299, salienta que esta norma consagra uma possível excepção à
proibição do pacto comissório “si bien la adjudicación al acreedor en estas condiciones no significa
exactamente que se autorice excepcionalmente tal pacto, ni la apropriación directa de las acciones, ya
que sólo pueden adjudicarse al acreedor las acciones, una vez celebradas las dos subastas que se
estabelecen” (entendimento contrariado por Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 387, pois, por um
lado, tendo em conta o modo de realização das hastas públicas “puede muy facilmente suceder que, a
pesar de que no hayan habido postores, el valor del bien sea claramente superior al del crédito
garantizado” e, por outro, que “para ajdudicarse la prenda deberá el acreedor pignoraticio pagar el
sobrante, si existe”).
1325
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 425 e segs., formula um juízo negativo acerca deste
procedimento (considerando-o “demasiado benevolente hacia un acreedor que puede, a su antojo,
tergiversar los presupuestos del artículo y otras, con cierta acritud para un deudor que se ve indefeso
ante una subasta a la que acuda únicamente el acreedor, y que presumiblemente tras la celebración de
una segunda subasta se declare ésta desierta y dé aquél carta de pago por una cantidad notablemente
ínfima al valor objetivo de la garantía, subsistiendo por tanto un remanente a favor del acreedor”).
1326
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 425 e segs., destaca a ausência de qualquer referência ao
prazo entre a comunicação ao devedor do início do procedimento e a data da realização da venda (embora
desvalorize essa lacuna, assegurando que “ambas as partes son conocedoras de su situación, y si el
deudor está decidido al pago lo hará (…) o no hará nada, y esperará a que proceda la subasta (...) Y
aunque en puridad esta articulo nada dice, que impide al notario de conminar al deudor al pago, o
sugerir la conveniencia de hacerlo?”), bem como às formas de publicitação desta (entendendo o Autor
345
Todavia, o (pretenso ou efectivo) monopólio judicial da acção executiva – e, em
particular, a necessidade de autorização judicial para a ingerência na esfera jurídica do
executado – conduzem a dúvidas relativamente à constitucionalidade deste
procedimento de execução.1327
A opção pela venda fora do processo executivo apresenta inúmeras vantagens,
nomeadamente evitando as demoras e os custos inerentes a este último, mas também
poderá representar uma diminuição das garantias do devedor, designadamente por
permitir a venda a um preço que não seja justo ou a mesma ocorra antes de vencida a
que deverá efectuar-se a um anúncio público do lugar e data da celebração da venda, com indicação dos
bens objecto de alienação, e se serão ou não admitidos licitadores externos), à influência das excepções
apresentadas pelo devedor sobre a marcha do procedimento (entendendo o Autor que essa oposição deve
ser judicialmente apresentada e, se assim for, poderá provocar a suspensão daquele procedimento) e ao
modo como decorrerá a venda propriamente dita (se será efectuada em carta fechada, se será necessário o
pagamento de uma caução para participar na venda, etc.): perante este silêncio, o Autor advoga a
aplicação das regras de execução judicial no que concerne aos efeitos de uma primeira hasta deserta, isto
é, concedendo ao credor a faculdade de requerer uma segunda hasta (sem que tenha que mediar qualquer
prazo entre as duas hastas) e, se esta permanecer sem ofertas, permitindo-lhe tornar-se proprietário do
bem empenhado (produzindo-se, assim, uma dação em pagamento, não sem que sejam dissipadas as
dúvidas relativamente a uma possível violação da proibição das convenções comissórias). Por sua vez
Priego Fernández, ob. cit., pág. 523, realça como, entre outras, a ausência de regras de licitação, a não
fixação de um valor mínimo pelo qual a coisa poderá ser adjudicada ao credor ou a um terceiro, a não
tipificação das causas de oposição à execução, conduz “al fracaso de este procedimiento”. Já Pérez
García, ob. cit., págs. 608 a 611, depois de colocar em relevo alguns dos aspectos omissos do
procedimento de execução (além dos já enumerados, assinala a falta de critérios para a determinação do
notário competente e para a avaliação do bem), evidencia como alguns propendem para o recurso às
normas que regulam os processos comuns de execução de bens, ao passo que outros asseguram não se
tratar de uma lacuna, mas antes de uma omissão consciente do legislador com a finalidade de reconhecer
ao credor a possibilidade de se socorrer de um mecanismo de execução alternativo capaz de assegurar os
seus interesses, sem defraudar os do devedor. Em face desta lacuna e quanto aos demais requisitos a que
deve obedecer a hasta, alguns sugerem a aplicação das normas que regem essas mesmas hastas nos
processos judiciais (Barrada Orellana, ob. cit., pág. 399, nota 649), outros daquelas outras ditadas para a
execução extrajudicial contidas na lei sobre hipoteca mobiliária e penhor sem desapossamento (Reglero
Campos, Ejecución cit., pág. 453 e Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 285) e outros ainda de normas
específicas para determinadas categorias de bens - como sejam os valores mobiliários admitidos a
negociação (Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 383) – e até o direito das comunidades autonómicas
(Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 429, invoca a norma do direito catalão que prevê a venda
notarial).
1327
A este respeito vide Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 433 e segs., noticiando a existência
de arestos no sentido da inconstitucionalidade, embora a propósito das execuções hipotecárias e com base
numa leitura restritiva do princípio da exclusividade da actividade jurisdicional, refutada pelo Autor, que
contrapõe outra mais ampla que “no impide que órganos no juridicionales ejerzan potestades
jurisdicionales, siempre que haya un posterior control judicial al ejercicio de dichas potestades”
(todavia, a controvérsia centra-se mais nas possibilidades de defesa que o devedor pode utilizar no
procedimento extrajudicial - por contraponto com o judicial -, acabando o Autor por não emitir opinião
acerca da conformidade do mesmo com a lei fundamental). Já para Campo Güerri, ob. cit., págs. 289 e
290, a posição que advoga a inconstitucionalidade, com fundamento na pretensa atribuição exclusiva ao
poder judiciário da faculdade de julgar e executar as suas decisões, não pode admitir-se, uma vez que o
direito a uma tutela jurisdicional efectiva não é lesado pela execução notarial, pois o executado pode
opor-se judicialmente a tal execução, invocando, por exemplo, a nulidade do título ou do procedimento
ou requerendo as medidas cautelares que entenda convenientes (todavia e de modo a evitar o
entorpecimento do procedimento, o Autor sustenta que tal oposição deverá ser proposta no prazo de um
mês a contar da notificação da execução e, por outro lado, que seja exigida a prestação de caução por
parte do executado). Para além disso, o Autor especifica que “No es cierto que los órganos de la
Jurisdición Ordinaria tengan la exclusividad de la función ejecutiva. La estricta función que
constitucionalmente tienen asignada no es la de ejecutar sino la de hacer ejecutar lo juzgado y muestra
de ello es que la ley, en ocasiones, confiere la función de ejecutar a órganos que no pertenencen al poder
judicial: las Administrciones públicas, y entre ellas la fiscal”).
346
obrigação garantida (para além da circunstância de o empenhante tantas vezes apenas
aceitar esta modalidade de execução por se encontrar de algum modo forçado a fazê-lo).
A nossa lei limita-se a prever a possibilidade de as partes convencionarem a
venda particular,1328 isto é, sem recurso ao tribunal, embora não regulando os requisitos
a que a mesma deve obedecer, nem tão pouco a respectiva tramitação ou as modalidades
que essa convenção possa assumir.1329
No silêncio da lei,1330 há quem entenda que, havendo tal convenção, o credor
pignoratício pode vender o bem empenhado “sem que tenha de observar quaisquer
normas de protecção do devedor”,1331 embora VAZ SERRA1332 identifique um conjunto
de requisitos, cautelas e efeitos a que a venda particular deva obedecer.1333
1328
Afirmam, contudo, que o recurso à venda particular é vedado pelo espírito que enforma a proibição
do pacto comissório, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 718.
1329
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 268 e 269, aponta como uma das convenções admissíveis
aquela que permite ao credor vender o bem empenhado antes do vencimento do crédito garantido, por
considerar ser legítimo ao proprietário autorizar a venda quando lhe aprouver. Guillouard, ob. cit., pág.
188, por seu turno, admite mesmo uma convenção, posterior à constituição da garantia, permitindo ao
próprio empenhador vender o bem empenhado ao seu credor, independentemente de a venda ser
celebrada antes ou depois do vencimento da obrigação garantida (mais longe ainda vai Baudry-
Lacantinerie, ob. cit., pág. 133, admitindo a venda pelo empenhador, mesmo na ausência de uma cláusula
nesse sentido e aceitando ainda a concessão, através de um mandato revogável, ao credor de poderes para
vender o penhor sem observância das formalidades legais) - aprovam igualmente a venda por parte do
empenhador ao seu credor após a conclusão do contrato de penhor, Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 296, Bustos Pueche, ob. cit., pág. 564 e Puig Brutau, ob. cit., pág. 21, qualificando tal
acto como uma dação em pagamento perfeitamente legítima). Mais renitentes se mostram Pires de Lima e
Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 718, apenas aceitando tais pactos se o empenhador não usufruir de
nenhuma vantagem – v.g., moratória ou dilação do prazo de pagamento - em troca da celebração da
convenção (pois, se assim não for, a convenção ficará sob o jugo da proibição do pacto comissório, uma
vez que o cumprimento da obrigação é protelado para um momento posterior).
1330
Mesmo em matéria de penhor financeiro, o n.º 2 do art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, limita-se a
afirmar que execução da garantia pelo credor não está sujeita a nenhum requisito, nomeadamente a
notificação prévia ao prestador da garantia da intenção de proceder à execução. Em face desta omissão,
Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 42, entende que cabe às partes a definição dos mecanismos de execução –
nomeadamente através do pacto marciano (quando o penhor incida sobre instrumentos financeiros – cfr.
art.º 11.º) ou da compensação (quando o penhor recaia sobre numerário e se encontram verificados os
requisitos legais daquele instituto) – sempre com respeito dos princípios gerais da ordem jurídica
nacional, bem como da boa fé.
1331
Sofia Maltez, ob. cit., págs. 57 e 58, salvaguardando apenas a proibição do pacto comissório e,
especialmente, Isabel Matos, ob. cit., págs. 126 a 129. Esta última Autora começa por verberar o silêncio
do legislador (“era possível – e conveniente – que o legislador eliminasse ou, pelo menos, reduzisse o
risco do devedor, regulamentando a venda extraprocessual de forma pormenorizada e garantística. É
certo que o credor só poderá proceder à venda extraprocessual do bem empenhado desde que tal tenha
sido estipulado aquando da constituição da garantia, mas certamente não será difícil ao credor levar o
devedor a consentir convencionar essa modalidade (…) Para ser coerente com a proibição do pacto
comissório e a restrição da admissibilidade da convenção de adjudicação às situações em que o bem seja
avaliado pelo tribunal, o legislador não deveria ter autorizado tão amplamente o recurso à venda
extraprocessual do penhor”), concluindo que esse silêncio conduz a que “a posição do devedor poderá
não ficar devidamente salvaguardada, tornando o nosso sistema de garantias reais contraditório porque
nem sempre atende à mesma conciliação de interesses”, ressalvando “que o devedor terá sempre a
possibilidade de recorrer a juízo para salvaguardar os seus direitos e, além do mais, nada garante que
eles sejam mais eficazmente protegidos através da venda feita em juízo”. Em termos análogos e tendo por
base o art.º 1872.º do CCE – que estabelece como regra a execução notarial – Malo Concepción, ob. cit.,
págs. 845 e 846, hez revendo que “las partes pueden pactar otros procedimientos de enajenación que
sean suficientemente seguros para el dueño de la cosa, es decir, que se garantice que el acreedor no se
adueñará de los valores (prohibición del pacto comisorio) y que la enajenación se hará al mejor precio
posible. Ello será muy frequente en el caso de valores no admitidos a negociación pudiendo pactarse que
la enajenación se realice con intervención de Corredor de Comercio Colegiado o con la mediación de
una Sociedad o Agencia de Valores”.
347
1332
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 242 a 266, seguindo de perto as soluções consagradas no direito
alemão. Já Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 116 e 117, considera, a propósito do penhor de acções,
que “a possibilidade de execução do penhor pelo credor pignoratício não pode ser entendida como uma
carta branca para a sua venda”, alegando que esta deverá ser levada a cabo de acordo com a regra da boa
fé e nas melhores condições de mercado (impedindo, por exemplo, a venda simultânea de um número
elevado de acções, assim diminuindo o seu preço), obrigação esta expressamente imposta aos
intermediários financeiros (cfr. art.º 304.º e segs. do CVM).
1333
Também Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 292 e 293, apesar de reconhecer que do texto da lei
não decorrem quaisquer regras quanto à avaliação do bem (nem tão pouco se exige que o preço da venda
seja um preço real ou de mercado), entende que a letra da lei ficou aquém do seu espírito, não podendo a
venda a terceiro ser realizada de modo arbitrário e em prejuízo do devedor. Em abono da sua posição, a
Autora procede a um confronto com a proibição do pacto comissório, concluindo que “não há motivos
substanciais que possam justificar o tratamento diverso de uma venda a terceiro e de uma adjudicação
ao credor. Em ambos os casos, a execução da garantia representa um risco para o devedor e para os
demais credores, que justifica determinadas cautelas. Quer dizer, quando procede à venda
extraprocessual (…) o credor vende em nome e por conta do devedor e não em nome próprio. Ora,
tratando-se de um acto praticado quanto a um património alheio, impõem-se deveres especiais de
cuidado, tanto mais que o devedor deve poder reclamar ao credor pignoratício a devolução do excesso
apurado entre o valor do crédito insatisfeito e o valor do bem ou do direito empenhado conforme resultar
da execução”. Em termos análogos, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 243 e 244,
admitindo igualmente existir um vazio legal, assegurando que “Impõe a boa fé que esta venda seja
realizada com as cautelas necessárias e de forma comercialmente mais adequada para que se possa
obter o preço mais elevado que as condições de mercado, nesse momento, permitam”, não se consentindo
que o credor pignoratício possa ignorar os legítimos interesses do devedor – e até os seus, pois o preço
obtido pode não ser suficiente para extinguir a dívida - alienando o bem de qualquer forma e a qualquer
preço. Em face do direito alemão, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky,
Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1541, invocam o §1245 do BGB para consentir a modelação contratual das
condições em que ocorrerá a venda particular, não impondo restrições ao agravamento do regime legal,
mas fazendo-o na hipótese de enfraquecimento daqueles requisitos (permitindo apenas o afastamento
daqueles expressamente previstos na lei e não de outros, enfatizando o limite inderrogável resultante da
proibição das convenções comissórias). Em face do direito italiano (no qual o art.º 2797.º, n.º 4, do CCI
admite a possibilidade de as partes convencionarem formas diversas, face às previstas na lei, de proceder
à venda), Rubino, Il pegno cit., págs. 266 a 268, sustenta a existência de apenas três limites: a
impossibilidade de eliminar a intimação, a necessidade de intervenção de um agente público na venda e,
finalmente, o decorrente da proibição do pacto comissório (por força deste último limite, serão nulas não
as cláusulas eximindo o credor de devolver ao proprietário o eventual excedente do preço de venda do
bem relativamente ao crédito, bem como aquelas aleatórias, nos termos das quais o credor ficará eximido
de restituir o eventual excedente ou o devedor de pagar a parte do débito não extinta com o produto da
venda do bem empenhado – no mesmo sentido, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 334, Guillouard, ob. cit.,
pág.192, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 129 e Troplong, ob. cit., pág. 113). Em sentido próximo,
Protettí, ob. cit., págs. 287 a 290 (transcrevendo, como comprovativo da sua tese, o Acórdão do Tribunal
de Milão de 21/12/1961, no qual se julgou nula uma cláusula de um contrato atribuindo ao credor o
direito de vender o bem empenhado sem necessidade de proceder à intimação prévia), Realmonte, Il
pegno cit., pág. 669 e principalmente, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 133 a 135 entendem serem
inderrogáveis pelas partes as disposições dos n.ºs 1 e 2 do art.º 2797.º (a intimação, o prazo para o
executado se defender, o efeito suspensivo da oposição, bem como as formas de proceder à venda), por
considerarem serem garantias mínimas para o devedor e o terceiro dador do penhor, admitindo apenas a
derrogação das normas atinentes às modalidades da venda (por exemplo, estabelecendo que a venda
decorrerá em local diverso daquele onde se encontre o bem ou que será sempre vendido por um oficial
público) e, por último, Faggella, ob. cit., pág. 134 (reconhecendo ser indispensável dar conhecimento
antecipado da venda ao devedor, possibilitar-lhe a invocação de meios de defesa e evitar que as
convenções sobre a execução pignoratícia não escondam qualquer pacto comissório). Já Gabrielli, Il
pegno cit., págs. 333 e 334, embora comungando das ideias gerais de Gorla e Zanelli, dá conta de
posições doutrinais e jurisprudenciais admitindo a derrogabilidade de algumas formalidades previstas nos
n.ºs 1 e 2 do art.º 2797.º do CCI, nomeadamente aceitando a validade dos pactos - em particular de
contratos bancários, nos quais tal termo é suprimido - que reduzam o prazo para o executado se opor à
execução, maxime nos casos em que a comercialidade do bem possa estar em risco com o passar do
tempo, enquanto Giacomo Molle, In tema di vendita del pegno nell’apertura di credito garantita da titoli
di credito, in BBTC, 1957, Tomo II, pág. 3 e segs., dando o seu aval a uma decisão da Corte de Cassação
348
Desde logo, neste tipo de venda e ao contrário da venda judicial,1334 o credor
actua por conta própria (embora eventualmente se possa conceder que o faz em nome e
como representante do empenhador ou proprietário do bem), alienando um bem alheio,
produzindo-se, por isso, predominantemente direitos e obrigações e direitos para ele.1335
Mais ainda, para proceder à venda é necessária a verificação cumulativa de
vários pressupostos, como a existência de um direito de penhor válido e vencido no
momento da alienação, uma moderação da venda1336 e a obrigatoriedade de esta ser
efectuada (e publicitada).1337
Este último aspecto reveste-se de capital importância, pois será imperioso
garantir a participação do maior número possível de interessados na aquisição do bem e,
paralelamente, assegurar a notificação dos titulares de direitos reais sobre os bens alvo
da execução (pelo menos quando graduados antes do crédito pignoratício
exequendo).1338
de 13/6/1956 que considerou que a interpelação ao devedor “non è prescrita a pena di nullità, onde la
diffida raggiunge ugualmente il suo effetto ove, pur non essendosi adempiuto alle formalità prescrite, che
hanno lo scopo di rendere certa la ricezione e la data della diffida, tale certeza risulti incontestabilmente
da una dichiarazione del debitore non disconosciuta” (no caso tratava-se de um abertura de crédito de
garantida por títulos de crédito, na qual havia sido fixada uma constante proporcionalidade entre a soma
usada pelo cliente e a garantia por ele prestada, pelo que, verificando-se um desfasamento entre estes dois
valores, ao credor pignoratício assistiria o direito de exigir do seu devedor um suplemento de garantia,
sob a cominação de, não o fazendo, proceder à venda do bem empenhado).
1334
Na venda judicial, ao invés, quem transmite o bem empenhado é o seu proprietário, ainda que
fisicamente o adquirente o possa receber do credor pignoratício, pois é este quem o conserva em seu
poder (Barrada Orellana, ob. cit., págs. 372 e 372, retirando a conclusão que a responsabilidade por
eventuais vícios ou defeitos ocultos ou pela reivindicação do bem recai sobre o proprietário empenhador).
1335
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 242, enumera, entre estes direitos e obrigações do credor, o
direito ao preço, a obrigação de entrega do bem e a responsabilidade pelos vícios da coisa, excepto, neste
último caso, se vender a coisa com a indicação de o fazer no exercício de um direito pignoratício e caso
os vícios sejam ignorados, sem culpa, pelo credor: se assim for, responsável pelos vícios será o
empenhador (em sentido próximo Faggella, ob. cit., pág. 136, indo ao ponto de responsabilizar o credor,
não só pelos vícios do bem, mas também face a uma possível evicção). Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 125
e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 332, por seu turno e em face do processo especial de venda do penhor
consagrado no art.º 2797.ºdo CCI, sugerem dever o credor usar da diligência comum, de modo a
salvaguardar igualmente os interesses do empenhador, concretizando-se tal dever na escolha do agente
encarregue e das modalidades da venda, bem como na obrigação de alertar o empenhador do resultado da
venda (mas já não a escolha do momento oportuno para realizar a venda, aspecto relativamente ao qual o
credor é soberano – em conformidade, relativamente a este último aspecto, Faggella, ob. cit., pág. 134,
acrescentando não ser o credor responsável por um eventual menor valor do bem empenhado,
relativamente ao momento do vencimento da obrigação garantida, na data da venda).
1336
Isto é, o credor titular de vários penhores deve apenas vender os necessários para satisfação do seu
crédito. Se forem alienados mais bens do que os necessários, serão inválidas todas as vendas (caso sejam
simultâneas) ou apenas as realizadas depois de satisfeito o credor (caso sejam celebradas em momentos
sucessivos), muito embora sejam admissíveis convenções atribuindo ao credor o direito ou o dever (por
exemplo, quando se empenhe uma universalidade e a venda de um dos seus elementos destrua a unidade
económica ou diminua o valor das coisas singulares restantes) de alienar mais bens do que os necessários
à satisfação do crédito, ao menos quando tais convenções aproveitem também ao empenhador – Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 243 e 244.
1337
Para tal, será ainda necessário tornar públicos o local e a data da venda, bem como notificar o devedor
(e o empenhador, no caso de não ser o devedor).
1338
Neste sentido, Pestana de Vasconcelos, Penhor, privilégio mobiliário geral cit., pág. 7 e segs.,
apontando como exemplo o privilégio mobiliário geral da Segurança Social que, nos termos do art.º 204.º,
n.º 2, do Código Contributivo para a Segurança Social, prevalece sobre qualquer penhor, mesmo que este
seja de constituição anterior. Segundo o Autor, a posição contrária – desnecessidade de citação dos
credores privilegiados e exclusão destes do concurso – significaria que bastaria a convenção no sentido de
a venda ser realizada extra-judicialmente para excluir a prevalência que a lei atribui a estes créditos
privilegiados, razão pela qual “se deverá aplicar aqui, por analogia com o disposto no seio do processo
executivo, o dever do credor pignoratício comunicar à segurança social, tanto a existência do penhor
349
Com efeito, a não citação destes últimos é susceptível de abalar a escala legal de
graduação dos créditos preferentes, razão pela qual, pelos mesmos motivos expostos a
respeito da atribuição do bem, advogamos a inadmissibilidade do seu não chamamento.
Para atingir estes objectivos, parece como mais idónea para este a hasta
pública,1339 salvo se o bem tiver um preço de bolsa ou de mercado (caso em que o
credor pode optar pela alienação a preço corrente a efectuar por um agente oficialmente
habilitado para negociar esse tipo de bens)1340 ou, ainda, quando o valor dos bens não se
coadune com as despesas inerentes à hasta, em situação de urgência ou quando a
equidade o imponha.1341
Parece igualmente de impor o aviso prévio ao proprietário do bem a alienar,
(igualmente dirigido ao devedor, se este não for o empenhante), a observância de um
prazo de espera entre o aviso da venda e a sua realização (destinado a o devedor possa
resgatar o bem, liquidando a quantia exequenda),1342 da realização da venda no local
onde se encontre o objecto empenhado,1343 da comunicação do resultado final da
venda,1344 e, finalmente, da necessidade de pagamento imediato do preço por parte do
terceiro adquirente.1345
Sendo a hasta pública, tanto o credor, como o proprietário do bem empenhado
encontram-se legitimados para nela participar e, por maioria de razão, qualquer um
deles poderá vir a ser o comprador.1346
sobre aquele bem, como que pretende proceder à execução”, ressalvando apenas os casos em que, de
acordo com a lei processual civil, os credores detentores de privilégios mobiliários gerais se encontram
impedidos de reclamar os respectivos créditos em execuções alheias. Todavia e de um modo um tanto
contraditório, o mesmo Autor (in A cessão de créditos cit., págs. 550 e 551, nota 1074), advirta que a
venda extraprocessual pode permitir ao credor pignoratício satisfazer-se com postergação de credores
hierarquicamente prevalecentes, nomeadamente os titulares de privilégios mobiliários que, no âmbito da
venda executiva, seriam citados para o processo.
1339
Para além de ser um meio eficaz para a obtenção de um preço justo. Quanto ao decurso da hasta, ela
seria conduzida por um funcionário judicial ou conduzida por uma casa de leilões designada pelo juiz,
nela podendo licitar qualquer sujeito (mesmo o empenhador, o devedor e o credor pignoratício) e, se na
primeira hasta não for oferecido um preço aceitável, deverá admitir-se a realização de outras hastas até
que o credor entenda ter sido alcançado um valor razoável (sem prejuízo do empenhador ou do devedor
poderem evitá-lo, pagando a dívida ou oferecendo um preço não inferior ao montante desta).
1340
Optando o credor por esta alternativa, deverá a venda ser efectuada pelo preço corrente (considerando
Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 116 e 117, ser o que sucede com as acções cotadas em bolsa,
admitindo, em conformidade, que o credor pignoratício possa emitir a ordem de venda, mas colocando
mais dúvidas no que respeita às acções não cotadas, tendo em conta que o valor real destas não
corresponde ao seu valor nominal, nem pode assentar apenas no valor contabilístico da empresa). Se, pelo
contrário, recorrer à hasta pública (o que, em razão do carácter mais dispendioso desta, só deverá suceder
quando seja de esperar que daí possa advir um preço mais alto) não deverá o bem vender-se por preço
inferior ao corrente de mercado – Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 247.
1341
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 245.
1342
Prazo esse que deverá oscilar entre uma semana e um mês.
1343
Ou, se não for de esperar um resultado justo, noutro local adequado. Porém, Vaz Serra, Penhor cit. in
BMJ n.º 58, pág. 255, apenas admite a verificação deste requisito quando o proprietário tenha sido
avisado da venda (caso contrário, entende poder ser demasiado oneroso para o credor).
1344
Designadamente para assegurar a devolução ao proprietário de um eventual excedente da venda.
1345
A justificação para esta exigência reside na protecção do proprietário, uma vez que um eventual
excedente da venda reverterá a seu favor, sendo arriscado que o comprador fique a dever.
1346
Relativamente ao credor, aceitam-no como adquirente Guillouard, ob. cit., págs. 193, Puig Brutau, ob.
cit., pág. 20 e 194, Mirabelli, ob. cit., pág. 443 (considerando que o credor, ao efectuar a venda particular,
actua em nome próprio – e não em representação do devedor – pelo que não estaremos perante um
negócio consigo mesmo, além de o credor ter também interesse em elevar o valor da venda para exercer o
seu direito de preferência), Reglero Campos, Ejecución cit., págs. 436 e 437 (considerando que alguma
jurisprudência interpreta esta possibilidade como uma excepção à proibição do pacto comissório) e Vaz
Serra, ult. ob. e loc. cit., realçando a necessidade de observância dos requisitos anteriormente expostos
350
O pagamento do preço por parte do comprador produzirá como efeito, nas
relações entre o credor pignoratício vendedor e o proprietário do bem empenhado, a
satisfação – total ou parcial – do crédito assegurado, desde que a venda tenha obedecido
aos pressupostos explanados.1347
Faltando alguns destes pressupostos, há que fazer uma destrinça entre aqueles
que devam considerar-se insubstituíveis (no sentido em que a sua falta impede até o
adquirente de adquirir a propriedade) e os que poderão ser substituídos (no sentido em
que a boa fé do adquirente poderá ultrapassar a sua omissão), parecendo caber no
âmbito dos primeiros a necessidade de a venda ser efectuada em hasta pública (com
citação dos demais credores preferentes e sem prejuízo dos ditames da lei em matéria de
concurso de credores) ou, tratando-se de coisas com preço de bolsa ou de mercado, se
realizar por intermédio de pessoa autorizada para o efeito.1348
Relativamente às demais condições, a sua inobservância apenas acarreta, em
1349
regra, o pagamento de uma indemnização ao proprietário,1350 não afectando a
validade e eficácia da venda.
acautela suficientemente os direitos do proprietário e, além do mais, há até uma certa conveniência em
admiti-lo como comprador, na medida em que pode ter interesse em adquirir o bem (uma vez adquirida a
coisa pelo credor, este compensará a dívida do preço com a crédito, até onde coincidam), até porque
mesmo na execução judicial é permitido ao credor adquirir o bem onerado (cfr. implicitamente o art.º
887.º, n.º 1, do CPC e, inequivocamente, Lebre de Freitas, Código de processo civil anotado, Coimbra
Editora, 2003, pág. 569). No que concerne ao proprietário, Vaz Serra sustenta que a aquisição terá como
efeito libertar a coisa do encargo pignoratício. Todavia, a possibilidade de aquisição por parte destes
sujeitos é controversa, manifestando-se Faggella, ob. cit., pág. 138, Rubino, Il pegno cit., pág. 266 e Gorla
e Zanelli, ob. cit., pág. 136, contra a aquisição por parte do devedor empenhador, mas já não do terceiro
concedente da garantia (admitindo, pelo contrário, que o empenhador possa ser adquirente, Gabrielli, Il
pegno cit., pág. 333), negando mesmo Gorla e Zanelli e Gabrielli, ult. obs. e locs. cits., que o credor e os
terceiros – adquirente e/ou empenhador - o possam fazer quando tenha lugar a venda privada, mas já não
quando se trate de venda efectuada por uma entidade pública. Protettí, ob. cit., pág. 303 e Faggella, ob.
cit., pág. 138 não admitem como comprador o credor pignoratício.
1347
Se, por hipótese, a venda for efectuada com preterição das formalidades substituíveis, o preço pago
pelo comprador deve pertencer ao proprietário do bem alienado, sem prejuízo da manutenção do crédito
pignoratício, podendo este reivindicá-lo ao credor (Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 262,
justifica esta solução com a irrazoabilidade que resultaria da possibilidade de o credor se apropriar do
produto de uma venda ilegalmente por si efectuada). Se a venda for realizada com preterição das
formalidades insubstituíveis, a alienação é inválida e a propriedade do bem permanece no empenhador,
pelo que não se torna dono do preço.
1348
Assim, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 248 a 250, salientando que a imposição de
requisitos insubstituíveis se justifica pela necessidade de tutela do proprietário do bem e que, dado o seu
número exíguo, serem de relativamente fácil comprovação pelo comprador.
1349
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 253, sugere que a omissão do aviso prévio não gere apenas
uma obrigação de indemnizar, mas deva considerar-se como substituível (no sentido, recorde-se, em que
apenas a boa fé do adquirente o poderia suprir). Por outro lado, a cominação para o não pagamento
imediato (antes do fim da hasta ou, não havendo lugar a esta, até à entrega da coisa) será a perda dos
direitos do comprador e uma ficção de pagamento nas relações entre o credor e o proprietário,
considerando-se este como pago e tendo aquele direito a exigir o pagamento do adjudicatário (sem
prejuízo de, sendo a venda efectuada por um valor superior ao do crédito pignoratício, o proprietário ter
direito, como credor do credor vendedor pelo excedente, o direito de exercer o crédito do vendedor contra
o comprador, bem como de, nesse caso, exigir uma indemnização do vendedor por ter tido necessidade de
accionar o comprador). Caso o credor pignoratício não notifique os titulares de créditos preferentes ao
seu, estes últimos não se extinguem, transferindo-se antes para o produto da venda do bem, nos termos do
art.º 824.º, n.º 3 – Pestana de Vasconcelos, Penhor, privilégio mobiliário geral cit., pág. 8).
1350
Resulta do exposto poder uma venda ser desconforme com exigências impostas pelo ordenamento
jurídico – por falta de algum dos pressupostos – e, ainda assim, ser eficaz, desde que estejamos perante a
preterição de um requisito não insubstituível (por exemplo, não ter o credor o direito de proceder à venda)
e o adquirente se encontre de boa fé (quando julgar, sem culpa, ter o alienante o direito de penhor e
estarem verificados os demais requisitos impostos para a licitude da venda). Neste caso, o credor
351
Há, todavia, um aspecto em que a actual lei limita a autonomia privada neste
domínio, uma vez que não admite, mesmo havendo convenção nesse sentido, que o
credor fique com o bem empenhado sem avaliação (ou através de uma simples
avaliação por si efectuada), pois tal configuraria uma violação da proibição do pacto
comissório (cfr. art.º 694.º, por remissão do art.º 678.º).1351
O efeito de uma convenção destas seria o de transformar o penhor numa venda
condicional – sujeita à verificação do inadimplemento da obrigação garantida - e
absoluta – no sentido em que não existiria qualquer concorrência entres os potenciais
interessados na aquisição.1352
Por força desta imposição, o vencimento da obrigação garantida não é
susceptível de, por si só, provocar a transferência da propriedade do objecto empenhado
para o credor,1353 muito embora seja admissível que, mesmo sem acordo prévio nesse
sentido, seja entregue ao credor, após o incumprimento, uma coisa do devedor em vez
do pagamento (o que, no fundo, corresponde à figura da datio in solutum).1354
Uma outra limitação decorre do facto de o pacto apenas produzir efeitos entre os
contraentes, mas já não em relação a terceiros a quem possa prejudicar (designadamente
aqueles cujos direitos possam ser afectados pela venda, como outros credores com
garantias sobre os bens a vender), excepto se estes derem o seu consentimento1355 ou se
intervierem nesse mesmo procedimento de alienação convencionalmente acordado: isto
é, se essa alienação for realizada com preterição dos direitos de tais terceiros
(nomeadamente por os seus créditos serem graduados hierarquicamente acima dos do
credor exequente e não terem sido notificados para a execução), poderão estes arguir a
invalidade da alienação (analogamente ao que sucede com o exercício da faculdade de
requerer a atribuição judicial).
Na falta de estipulação contratual em contrário (ou, quando ela exista, por opção
do credor) e sem prejuízo de o credor pignoratício ser citado sempre que, numa
execução promovida por outro credor, seja penhorado o bem previamente empenhado a
seu favor (art.º 864.º, n.º 3, alínea b), do CPC) - aí podendo reclamar o pagamento do
seu crédito, invocando a respectiva preferência - a execução da garantia ocorrerá por via
judicial,1356 resultando do art.º 835.º do CPC1357 que deverá recair, primeiramente, sobre
alienante poderá ter de indemnizar, nos termos gerais de responsabilidade civil, o proprietário do bem
pelo facto de ter disposto ilegitimamente do seu direito, sem prejuízo da transmissão da propriedade por
parte do terceiro adquirente.
1351
Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 695. De acordo com Catarina
Monteiro Pires, ob. cit., pág. 252 e segs., o pacto comissório reúne três elementos: a atribuição de uma
faculdade de apropriação imediata, a ligação dessa faculdade ao bem de garantia e a respectiva imputação
ao credor garantido.
1352
Assim, Troplong, ob. cit., pág. 108 e Massimo Bianca, Patto comissorio, in Novissimo Digesto
Italiano, 3.ª Edição, 1957, Vol. XII, pág. 714 (este último sentenciando que, deste modo, se asseguraria ao
credor a aquisição do bem, independentemente dos sucessivos actos dispositivos do devedor ou das
pretensões de outros credores concorrentes, destarte garantindo uma satisfação secundária do seu crédito).
1353
Contudo, já se decidiu (cfr. Acórdão do STJ de 9/12/1999, in www.dgsi.pt) não constituir violação da
proibição do pacto comissório o facto de o credor adquirir o bem ao proprietário do bem, em satisfação da
sua obrigação e ainda que para o caso de incumprimento desta, alegando que tal cláusula não confere um
direito ao bem empenhado directamente relacionado com o incumprimento da obrigação garantida.
1354
Sobre o pacto comissório e a dação em pagamento, vide infra n.º 4 do Capítulo II.
1355
Assim, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 286 e 289.
1356
Porém, se o credor – por exemplo, para obtenção de um título executivo – lançar mão de uma acção
declarativa de condenação, não será legítimo ao devedor, para se defender, invocar a suposta obrigação
de, uma vez vencida a obrigação garantida, executar o bem empenhado (neste sentido, Acórdão do STJ de
352
o objecto da garantia, (sem necessidade sequer de nomeação à penhora), apenas
podendo incidir sobre outros bens quando o produto da venda daqueles for insuficiente
para a satisfação do crédito garantido1358 (art.º 697.º, aplicável por remissão do art.º
678.º), tendo o devedor o direito de se opor a que, mesmo relativamente aos bens
onerados, a execução se espraie para além do necessário ao pagamento do credor.1359
Contudo, a possibilidade de o credor pignoratício excutir (para além e
normalmente depois do bem empenhado) outros bens do devedor pode ser aniquilada,
mediante acordo das partes no sentido de cingir a responsabilidade pelo cumprimento da
obrigação garantida ao objecto da garantia.1360
Todavia, o disposto no citado art.º 835.º do CPC apenas se aplica quando os bens
onerados pertençam ao devedor, devendo a sua invocação ser entendida em termos
hábeis quando estejam em causa bens pertencentes a um terceiro que os tenha dado em
penhor em garantia de uma dívida alheia: nesta última hipótese e como, salvo
estipulação em contrário, nem o terceiro, nem o devedor, gozam do benefício da
excussão, o credor poderá optar por executar o bem empenhado ou, em alternativa,
qualquer dos bens do devedor.1361 Se, porém, o terceiro, para evitar a execução, pagar
4/7/1980, in BMJ n.º 299, pág. 215 e segs.), pelo que as questões relativas à possibilidade de o credor
executar outros bens além do objecto do penhor apenas deverão ser discutidas no decurso da acção
executiva e não no âmbito do processo declarativo (cfr. Acórdão do STJ de 12/6/1962, in BMJ n.º 118,
pág. 404 e segs.).
1357
Chegando à mesma conclusão em face da anterior legislação civil e processual civil, vide o Acórdão
da Relação de Lisboa de 19/4/1961, in Jurisprudência das Relações, ano 7 (1961), Tomo I, pág. 322 e
segs..
1358
Do mesmo modo em face do direito italiano, Protettí, ob. cit., pág. 303, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág.
126, Montel, Pegno cit., pág. 787, Rubino, Il pegno cit., págs. 258 e 259, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 318
e o art.º 2911.º do CCI.
1359
Vide, por todos, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 241 e 242.
1360
Esta possibilidade é expressamente prevista para a hipoteca no direito espanhol (art.º 104.º da Lei
Hipotecária), defendendo Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 695, a sua aplicação a qualquer garantia
real, assegurando que, quando tal convenção seja acordada, a posição do credor será mais sólida do que a
de um credor comum, em razão da preferência especial que, sobre o bem objecto de garantia real, lhe
assiste (acrescentando que a admissibilidade de tais convenções se pode fundar, desde logo, na liberdade
contratual e no carácter não imperativo da cumulação da responsabilidade patrimonial geral do devedor
com a sua responsabilidade real reflectida em determinados bens). Malo Concepción, ob. cit., pág. 830,
admite expressamente a validade do pacto nos termos do qual, para pagamento da obrigação assegurada,
o credor possa apenas excutir o bem empenhado. No direito italiano, a doutrina reconhece a
derrogabilidade destas regras gerais, chegando Rubino, Il pegno cit., págs. 258 e 259, a reconhecer a
admissibilidade de pactos estabelecendo que a execução deva começar por certos bens, que o credor
pignoratício apenas possa executar o bem empenhado (mesmo que o valor deste seja insuficiente para
cobrir o montante da dívida) ou, por último, que a execução comece por qualquer bem do devedor que
não aquele dado em penhor (acrescentando mesmo que tal pacto terá eficácia geral, na medida em que
representa uma renúncia do credor ao benefício que lhe é concedido pelo art.º 2911.º do CCI e, por isso,
os credores quirografários não podem pretender a aplicação da ordem legalmente prevista. Além do mais,
desta convenção não resulta qualquer prejuízo para estes outros credores, porquanto, uma vez satisfeito o
credor pignoratício, o bem empenhado fica à sua mercê). No nosso País, tal possibilidade é
expressamente admitida pelo art.º 602.º, que admite a limitação da responsabilidade do devedor a alguns
dos seus bens (embora, como ressalvam Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, págs. 618 e 619,
tal convenção seja inválida quando esteja em causa a garantia de um crédito irrenunciável, como sucede
com a obrigação de alimentos).
1361
Sustentam esta posição Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 221 a 227 (justificando a não
aplicação do regime do art.º 835.º do CPC por admitir não ser de presumir ter sido essa a intenção das
partes) e Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 242, nota 685 (alertando que, se o credor
decidir executar o bem de terceiro onerado, poderá demandar desde logo também o devedor – nos termos
do art.º 56.º, n.º 2, do CPC e para a eventualidade de o produto da venda do bem onerado ser insuficiente:
caso não o faça e se venha a demonstrar a referida insuficiência, poderá, no mesmo processo, ordenar o
prosseguimento da acção contra o devedor – cfr. art.º 56.º, n.º 3, do CPC. Em qualquer dos casos, o
353
ao credor, fica sub-rogado nos direitos deste (art.º 592.º)1362, exercendo, em seguida, um
eventual direito de regresso contra o devedor.1363
Quando o bem se encontre empenhado a favor de diversos credores, a todos
assiste o ius distrahendi, pelo que qualquer deles pode promover a respectiva execução
(desde que, naturalmente, o respectivo crédito se encontre vencido),1364 mesmo que o
seu crédito não seja o preferente,1365 uma vez que os direitos do credor com a garantia
anterior são tutelados pela chamada à execução (art.º 864.º), pela possibilidade de aí ver
reconhecida a sua preferência (art.º 868.º) e porque, conforme salientado anteriormente
e mesmo que a coisa se encontre em seu poder, essa retenção será oponível a
terceiros.1366
terceiro concedente do penhor pode opor ao credor os meios de defesa que o devedor tenha contra o
crédito – ainda que este a eles tenha renunciado o devedor e com exclusão das excepções que são
recusadas ao fiador -, tendo ainda o direito de se opor à execução enquanto o devedor puder impugnar o
negócio donde provém a sua obrigação, ou o credor puder ser satisfeito por compensação com um crédito
do devedor, ou este tiver a possibilidade de se valer da compensação com uma dívida do credor – cfr. art.º
698.º, n.ºs 1 e 2, aplicáveis por remissão do art.º 678.º do mesmo Código). Em termos convergentes, no
direito italiano Gabrielli, Il pegno cit., págs. 318 e 319, Protettí, ob. cit., pág. 303, Gorla e Zanelli, ob. cit.,
pág. 126 e Rubino, Il pegno cit., págs. 259 e 260, comungando das mesmas justificações - e
acrescentando não existir qualquer analogia com a situação em que o penhor é prestado pelo próprio
devedor, uma vez que, neste caso, são diversas as pessoas do devedor e do concedente - mas admitindo
poderem as partes convencionar a atribuição do benefício da excussão a favor do terceiro (embora com
efeitos limitados à relação entre este e o devedor – podendo, por isso, ser violado pelo credor e não
podendo ser invocado por adquirente sucessivo do bem – pois, caso contrário, significaria a imposição de
uma sujeição ao credor contra a sua vontade e sem fundamentação legal). Porém, se o credor executar
conjuntamente o bem empenhado pertencente a terceiro e um bem do devedor, o juiz (oficiosamente ou
no seguimento da oposição do devedor ou do terceiro) poderá excluir do âmbito da execução qualquer um
daqueles bens, nos termos do art.º 2797.º, n.º 3, do CCI.
1362
Relativamente aos efeitos da sub-rogação e de acordo com Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs.
237 e 238, se o dono do bem empenhado em garantia de uma dívida alheia satisfizer o credor, pode o
devedor opor-lhe as excepções que tinha contra o credor (embora com os limites decorrentes da relação
entre o devedor e o proprietário do bem) e, havendo vários devedores solidários, o direito de sub-rogação
poderá ser exercido por inteiro contra qualquer um deles (se a satisfação do credor for apenas parcial, a
sub-rogação também o será, abrangendo, nessa parte, as respectivas garantias) – concluindo serem estas
conclusões aplicáveis quando a sub-rogação se der a favor de outras pessoas, nomeadamente do terceiro
adquirente do bem.
1363
Rubino, Il pegno cit., págs. 264 a 266, adverte para o facto de esta possibilidade de pagar ao credor
pignoratício, concedida ao terceiro constituinte da garantia e ao terceiro adquirente, apenas poder ser
exercida até ao momento da venda e, uma efectuada a proposta, não ser admissível a sua recusa por parte
do credor (admitindo ser esta uma opção a ter em conta quando algum daqueles terceiros pretenda manter
a propriedade de bem, sobretudo tendo em conta que, em sede pignoratícia e ao invés do que sucede com
a hipoteca, não é admissível a expurgação). Já Gabrielli, Il pegno cit., pág. 323, este direito de regresso é
um direito novo, independente do que assistia ao credor satisfeito e de conteúdo variável consoante a
totalidade do valor do bem tenha servido para pagamento do débito alheio ou apenas tenha sido
necessário utilizar uma parte daquele valor – Gabrielli, Il pegno cit., pág. 323).
1364
Outra alternativa será o pagamento ao credor preferente no concurso, com o correspondente efeito
sub-rogatório, extensível à garantia daquele (cfr. art.ºs 592.º, n.º 1, 593.º, n.º 1 e 582.º, este último por
remissão do art.º 594.º).
1365
No penhor de créditos, o art.º 685.º, n.º 3, dispõe que apenas ao credor preferente assiste legitimidade
para cobrar o crédito empenhado, acrescentando que aos demais credores pignoratícios cabe a faculdade
de compelir o devedor a satisfazer a prestação ao credor preferente – do regime legal decorre, assim, que
estes últimos possuem legitimidade para executar a garantia, embora não possam receber directamente o
produto dessa execução.
1366
Em termos análogos, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 455, que “correponde a todo
acreedor la facultad de instar la venta de la prenda, pero como unicámente uno sólo es el que posee, el
primero, sólo a través de éste podrá llevarse a cabo materiamente la ejecución”: todavia, “Llegado el
vencimiento del crédito inmediato al vencido, el acreedor posterior poderá obtener de su titular la
posesión de la prenda, pagándole las cantidades que le correspondián y proceder a la venta de la
354
Importa igualmente solucionar a questão dos bens a executar quando existam
várias garantias assegurando o cumprimento da mesma obrigação, tanto mais que parece
não existir nenhuma regra explícita no sentido de proibir a constituição de várias
garantias para assegurar o cumprimento de uma mesma obrigação ou sequer que
interdite a desproporção entre os valores da garantia e do crédito assegurado, nem tão
pouco que vede a oneração simultânea da totalidade do património – mesmo que futuro
– em garantia de um mesmo crédito (do mesmo modo que nada obriga – antes a
indivisibilidade da garantia a tal se opõe – a uma liberação proporcional dos bens
onerados em consequência de uma amortização parcial da dívida garantida)1367 - restam,
porém, os paliativos gerais, como os instituto da boa fé e o abuso do direito, para
invalidar garantias cujo montante (por contraponto com o do crédito garantido), a
abrangência (tendo em conta a totalidade dos bens do credor) ou a natureza futura (ao
condicionar a posterior capacidade de endividamento do devedor) se mostrem
desproporcionais, especialmente quando tais critérios se verifiquem cumulativamente.
Verificando-se uma cumulação de garantias para tutela de um mesmo crédito,1368
embora a regra seja a da liberdade de escolha, por parte do credor, da garantia a
misma” (naturalmente que o produto da venda do bem servirá para satisfazer cada um dos credores em
função do seu grau de preferência e, quando os respectivos créditos não se encontrarem vencidos,
constituir-se-á um penhor irregular sobre aquele produto). Já Guilarte Zapatero, ob. cit., págs. 564 e 565,
defende que só através do credor possuidor é possível instar a venda, a qual deve ser promovida com
citação dos demais credores pignoratícios, embora esclarecendo que “los acreedores posteriores no
pueden forzar a los preferentes a la venta de la prenda mientras no esté vencido el crédito anterior y que,
llegado el vencimiento del crédito preferente, el acreedor posterior puede obtener de su titular la
posesión de la prenda, pagándole las cantidades que les corresponden e instar la venta de la misma” (se,
ao invés, for o credor preferente pretender desencadear a execução do bem onerado, será pago com o
produto da venda - assim como todos os demais credores pela sua ordem e até ao montante da venda -
extinguindo-se os penhores posteriores, porquanto o objecto é alienado livre de quaisquer ónus, sem que
se verifique qualquer conversão da garantia originária num penhor irregular sobre o produto da venda).
Também em face do direito alemão, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky,
Dieter Eickmann, ob. cit., págs.1545 a 1547, entendem que apenas o credor pignoratício detentor da causa
de preferência graduada em primeiro lugar pode desencadear a execução, podendo até exigir dos demais a
concessão da posse do bem para esse efeito, caducando todas as causas de preferência, as quais se
transferirão, de acordo com a respectiva hierarquia, para o produto da alienação.
1367
Nestes termos para o direito espanhol, Garcia Vicente, La prenda cit., págs. 91 a 93, embora notando
que a jurisprudência, a respeito do penhor omnibus, tem invocado a boa fé e a ordem pública para
invalidar as cláusulas que não preencham os requisitos legais de determinação da obrigação garantida,
postura esta que merece o aplauso do Autor, para quem os tribunais “deberán, por su parte, conjurar el
peligro de sobregarantía que agote o disminuya gravemente la capacidad del deudor de obtener nueva
financiación que pueden representar las cesiones globales anticipadas de créditos futuros en garantía: a
través de un riguroso control de contenido de las condiciones generales de la contratación, prerredactas
por las entidades financieras, y utilizando, para las condiciones particulares, el orden público
econoómico como límite a la libertad contractual”.
1368
O §1230 do BGB estabelece que, existindo diversos penhores, o credor pignoratício pode, desde que
nada tenha sido estipulado em contrário, escolher vender aqueles que pretender, com o limite decorrente
do facto de apenas pode proceder à venda daqueles necessários à sua satisfação. Em termos aproximados,
Francesco Pellegrini, ob. cit., págs. 158 e 159, advogam que “Dal principio che il pegno come la ipoteca
sono indivisibili nasce la conseguenza che il creditore ha la libera scelta nella escussione delle singole
cose date in pegno”, mesmo que sobre algum ou alguns desses bens existam outros penhores, porquanto
“Codesta scelta non può essere normalmente ostacolata dal creditore posteriore”, na medida em que o
credor anterior pode ser movido por diversas razões que conduzam à postergação do direito do credor
posterior que tenha uma garantia mais limitada. Como forma de paralisar este direito de escolha que
assiste ao credor pignoratício de grau superior, os eventuais credores posteriores poderão socorrer-se do
pagamento com sub-rogação legal no grau (o qual prescinde da anuência do credor preferente, podendo o
sub-rogante compeli-lo a aceitar o pagamento) ou, em alternativa e dispuserem de um crédito exigível,
provocar a execução dos diversos penhores – e, assim, o concurso sobre o preço de todos os bens -
forçando o credor pignoratício prioritário a pagar-se sobre o produto da venda de todas as garantias.
355
executar,1369 cabe determinar se, em alguns casos, não será forçoso estabelecer a ordem
pela qual o credor se deverá satisfazer.1370
Assim, sendo todas as garantias reais constituídas pelo devedor ou pelo mesmo
terceiro ou por vários terceiros, poderá o credor iniciar a execução por aquela que lhe
aprouver, independentemente da data de constituição recíproca, sem prejuízo da sub-
rogação de quem seja executado nos direitos do credor contra os demais.1371
Mesmo que uma das garantias reais tenha sido constituída pelo devedor e outra
por terceiro, caberá ao credor optar por executar qualquer delas.1372
Parece, porém, que no caso de garantia real prestada pelo devedor e uma fiança,
o credor deverá executar primeiramente o penhor, uma vez que caímos no âmbito de
aplicação do art.º 835.º do CPP, na medida em que existe uma garantia real sobre um
bem do devedor, interpretação esta corroborada, pela atribuição ao fiador – salvo
convenção em contrário, hipótese na qual será legítimo ao credor optar por executar, à
sua escolha, bens do devedor ou do terceiro fiador, sendo que, optando pela primeira
alternativa, deverá nomear à penhora o bem empenhado - do benefício da excussão (art.º
638.º).
A conclusão acabada de alcançar impõe-se, com ainda mais vigor, em caso de
concurso, para garantia do mesmo crédito, de uma fiança e de um penhor concedido por
terceiro (que não o fiador),1373 atendendo a que o n.º 1 do art.º 639.º determina o direito
do fiador exigir a execução prévia dos bens sobre os quais incide a garantia real, desde
que esta seja contemporânea ou anterior à fiança.
1369
Considerando ser legítimo ao credor, em acções diferentes, executar uma garantia pignoratícia e outra
hipotecária que garantam o mesmo crédito, sem que exista litispendência (em razão das diversas causas
de pedir), vejam-se os Acórdãos da Relação de Lisboa de 9/12/1993 e da Relação do Porto de 9/6/1992,
ambos in www.dgsi.pt (todavia, neste segundo aresto ressalva-se a necessidade de ordenar a suspensão da
instância num dos processos, a fim de se apurar se, no outro, o produto da venda será ou não suficiente
para pagamento integral do crédito).
1370
Seguimos, a este respeito, as considerações de Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 227 a 231.
1371
A diversa data de constituição não significa ter o credor aceite a necessidade de obter a satisfação do
seu crédito através da execução da garantia mais antiga ou, no plano inverso, que o empenhador
pretendesse que a sua garantia apenas se realizasse depois das anteriores (além do ónus excessivo que
representaria, para o credor, ter de determinar a data de constituição de cada uma das garantias e, além
disso, o incómodo que seria ter de executar todas elas para obter de cada uma delas numa parte
proporcional – ademais, tal representaria uma postergação do princípio da indivisibilidade da garantia).
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 285, confirmam não poder o devedor, em caso de
pluralidade de penhores, forçar o credor a proceder à realização de um penhor em detrimento de outro.
1372
No mesmo sentido, relativamente à hipótese de concurso entre um penhor constituído pelo devedor e
outra garantia real constituída por terceiro, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 228, admitindo que
ao credor deverá ser dada a possibilidade de executar alternativamente qualquer das garantias
(argumentando não ser de presumir que o terceiro, ao conceder a garantia, apenas pretende assegurar o
cumprimento após a execução da garantia prestada pelo devedor, podendo até esta ser mais recente) e
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 695 (invocando o facto de o terceiro não gozar do
benefício da excussão).
1373
Havendo, pelo contrário, um penhor e uma fiança prestada pelo mesmo terceiro, poderá o credor optar
por executar o bem empenhado ou o património do fiador ou o património do próprio devedor (mas,
executando o património do fiador, poderá este exigir que a execução comece pelo penhor, à imagem do
que sucede com o penhor constituído por terceiro). Por último, existindo fiança e penhor para garantia
desta, pode o credor dirigir-se contra o devedor principal ou contra o fiador (todavia, se optar por este
último e se o penhor foi concedido pelo mesmo fiador, deverá executar primeiro a coisa empenhada –
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 229 e 230.
356
Relativamente à tramitação, esta venda obedecerá às regras previstas para as
execuções ordinárias, embora algumas particularidades inerentes à garantia pignoratícia
pareçam impor alguns desvios ou enviesamentos àquelas disposições legais.1374
Desde logo e à imagem do que sucede com a generalidade das execuções, a
venda judicial do bem empenhado deve ser precedida da obtenção de um título
executivo.1375
Por outro lado e na medida em que o processo comum de execução – ao
contrário do que sucedia no revogado processo especial de venda do penhor (cfr. art.º
1007.º do CPC) – não prevê a necessidade de, antes de se proceder à execução, intimar
o devedor (e, no caso de penhor constituído por terceiro, também este)1376 com a
advertência que, não pagando, se efectuará a venda, o cumprimento de tal formalidade
afigura-se dispensável,1377 bastando a sua citação, nos termos gerais, após a interposição
do requerimento executivo.1378
1374
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 267 e 268, sugere que, no caso de o proprietário não ser o
empenhador, este último valha como proprietário para o credor de boa fé (consistindo esta na crença, sem
culpa, na existência de que o empenhador será proprietário e sendo a mesma avaliada no momento da
propositura da acção), sem prejuízo de, após esse momento e quando tenha conhecimento do verdadeiro
proprietário, a acção dever continuar contra ele, nos termos previstos para a substituição processual (as
mesmas considerações valem para o caso de o empenhador ser o proprietário no momento da constituição
da garantia, mas ter deixado de o ser em momento anterior ao da execução). Porém, o facto de a coisa
vendida não pertencer ao executado e ser reivindicada pelo seu proprietário constitui fundamento para
tornar a venda sem efeito (art.º 909.º, n.º 1, alínea d), do CPC).
1375
No mesmo sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 266, 267 e 269 e, implicitamente, o
Acórdão da Relação de Évora de 11/1/1996, in CJ 1996, I, pág. 264 e segs.. O extinto procedimento
especial de venda do penhor (art.ºs 1008.º a 1012.º do CPC) era, como já se salientou numa nota anterior
deste Capítulo, simultaneamente, declarativo e executivo, pelo que o credor podia lançar mão dele para
procurar obter um título executivo. Em face deste regime, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs.
272, sugeria que, quando o penhor tivesse sido constituído pelo devedor, a obtenção do título ocorresse
através da sua citação para pagar ou contestar dentro de um determinado prazo e, se não o fizer nem pagar
durante esse prazo, poderia o credor requerer a venda, por se entender ter obtido título executivo contra o
devedor proprietário do penhor (tratando-se de penhor constituído por terceiro, o título executivo obter-
se-ia citando-o também para pagar ou contestar). Actualmente, resta ao credor intentar uma acção
declarativa de condenação para o obter, salvo quando disponha de um título executivo não judicial - cfr.
art.º 46.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) e Salvador da Costa, ob. cit., pág. 37). No direito italiano e embora o
preceito relativo ao procedimento especial de venda do penhor não lhe faça referência, Rubino, Il pegno
cit., pág. 260, entende ser necessário tal título, mas a posição contrária é defendida por Gabrielli, Il pegno
cit., pág. 317, Realmonte, Il pegno cit., pág. 668, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 126, argumentando que a
garantia assegurada pelo título executivo é substituída, no processo especial de venda do penhor, pelo
efeito suspensivo da oposição à execução, o que não sucede no processo comum (no mesmo sentido
Protettí, ob. cit., pág. 295, citando várias decisões judiciais concordantes). Em face do direito alemão,
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1540,
advogam igualmente a obrigatoriedade de obtenção prévia de um título executivo como condição de
instauração da execução judicial do penhor.
1376
No direito italiano, discute-se se será forçosa a notificação do eventual terceiro adquirente do bem,
(repondem negativamente Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 127, tendo em conta a dificuldade em localizá-lo).
Já Gabrielli, Il pegno cit., pág. 322, considera esta questão dúbia, bem como a da necessidade da
notificação do terceiro cessionário do crédito.
1377
Sugeria a obrigatoriedade desta intimação, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 269 e 270 e a
mesma é imposta no direito italiano pelo art.º 2797.º, n.º 1, do CCI, acrescentando Rubino, Il pegno cit.,
págs. 260 e 261, que, juntamente com essa intimação, deve ser comunicada a existência de um título
executivo (esta intimação apenas será dispensável relativamente a um potencial adquirente do bem a
quem este tenha sido alienado antes da notificação da intimação, podendo conduzir a execução contra o
empenhador, sem prejuízo de o actual dono poder ser chamado, pelo empenhador, a intervir no processo
ou de o fazer espontaneamente: a solução é fundamentada pela ausência de publicidade das alienações
mobiliárias), ao passo que Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 127, entendem que tal intimação deva conter a
indicação da soma devida – capital e acessórios – e o alerta para o facto de, na falta de pagamento, se
proceder à venda, não sendo necessário indicar o prazo para pagamento, pois tal resulta da lei (também
357
A marcha do procedimento pode ser travada pela oposição à execução, apesar de
esta se encontrar cingida aos fundamentos indicados nos art.ºs 813.º a 816.º do CPC
(variando em função do título executivo que suporta a pretensão do exequente),1379 uma
vez que a sua apresentação poderá suspender o andamento do processo,1380 o mesmo
faz parte dos poderes atribuídos ao credor, segundo Gabrielli, Il pegno cit., pág. 332, determinar o
momento e o local – quando a este último aspecto, também Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit.,
pág. 288 - da venda, embora Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 132 e 133, se inclinem para a o local onde o
bem se encontre, salvo quando particulares circunstâncias imponham a venda em local diverso para obter
um preço mais elevado). Interpretando este art.º 2797.º, a jurisprudência, citada por Francesco Caringella,
ob. cit., pág. 3559, entende que o conteúdo da intimação se basta com a indicação do montante da quantia
exequenda, dos juros – não na sua quantia precisa, bastando a indicação da data de vencimento da
obrigação e da taxa de juros acordada - e das despesas (Sentença da Corte de Cassação de 16/5/1977, n.º
1968), não sendo esta intimação uma formalidade prescrita sob pena de nulidade, pelo que será legítimo o
procedimento quando “pur non essendosi adempiuto a tale formalità, la diffida sia comunque perventua
all’interessato” (Sentença da Corte de Cassação de 5/2/1977, n.º 496) e, no que tange ao prazo de 5 dias
que deve mediar entre a intimação e o início da execução, aceita-se que as partes possam convencionar
um prazo mais breve (desde que se demonstre que o destinatário da intimação dela tenha conhecimento
efectivo antes do início da execução) e, no que toca à publicitação da venda em leilão público, esta “deve
essere annunziata con le forme di una pubblicità commerciale adeguata alla natura ed al valore delle
cose poste a vendita, senza che di conseguenza possa ritenersi equipollente la notificazione, al solo
debitore, a mezzo di ufficiale giudiziario, di un atto di preavviso di vendita di beni mobili” (Sentença da
Cassação de 11/8/1987, n.º 6894). Também no direito alemão e nos termos do §1234, o credor
pignoratício deve avisar antecipadamente o proprietário da venda da coisa, indicando o montante em
dívida, apenas podendo este aviso ter lugar depois de o credor ter adquirido o direito de vender a coisa
(todavia, o aviso não se efectuará quando for impraticável), não podendo a venda ter lugar antes de
decorrido o prazo de um mês a contar da data do aviso (sendo o aviso for impraticável, o prazo de um
mês conta-se a partir do momento em que o credor tenha adquirido o direito de vender a coisa).
1378
Sem prejuízo da execução se poder iniciar sem citação prévia do executado (cfr. art.ºs 810.º, n.º 1,
alínea j), 812.º-C e 812.º-F, todos do CPC.
1379
No direito italiano e de acordo com Rubino, Il pegno cit., págs. 262 e 263, podem opor-se à execução
o devedor, os seus credores (desde que já tenham intervido na execução) e, se o penhor tiver sido
constituído por terceiro, também por este, muito embora os fundamentos invocáveis por cada um deles
não sejam integralmente coincidentes. Assim, ao devedor apenas será legítimo contestar a existência e
exigibilidade do crédito, mas não a existência do penhor ou a regularidade formal da execução (dado que
tais circunstâncias deixam inalterado o seu débito); já o terceiro concedente do penhor poderá invocar
qualquer facto relativo ao penhor e, no que respeita ao crédito, socorrer-se de qualquer causa de extinção
ou de nulidade do mesmo (quanto às causas de anulabilidade, o direito de impugnação caberá, em
princípio ao devedor, mas ao terceiro será legítimo valer-se daquelas que não tenham carácter
estritamente pessoal para com o devedor), posição subscrita por Guilherme Moreira, ob. cit., pág. 338;
finalmente, os credores do proprietário do bem (ou seja, no caso de o penhor ter sido prestado por
terceiro, apenas os credores deste) apenas terão legitimidade para intervir após a realização da venda,
podendo então alegar quaisquer factos relativos ao crédito ou à garantia (coloca algumas dúvidas à
admissibilidade da oposição por parte destes sujeitos, tendo em conta as normas processuais, Gabrielli, Il
pegno cit., pág. 326). Quando a oposição seja julgada procedente e, apesar disso, o credor tenha
procedido à venda ou quando esta tenha sido impugnada vitoriosamente, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág.
137, sustentam a existência de um dever de indemnização do credor perante o empenhador e/ou o devedor
(excepto se este conseguir recuperar o bem do adquirente) e ainda perante o adquirente, caso este se
encontre de boa fé (isto é, ignorando os vícios da venda).
1380
De acordo com o n.º 1 do art.º 818.º do CPC, o recebimento da oposição só suspende o processo de
execução quando, tendo havido citação prévia, o oponente preste caução ou quando, tendo o oponente
alegado a não genuinidade da assinatura do documento particular e apresentado documento que constitua
princípio de prova, o juiz, ouvido o exequente, entenda que se justifica a suspensão (de acordo com o n.º
2 do mesmo artigo, o recebimento da oposição suspende igualmente o processo de execução quanto não
tenha ocorrido a citação prévia, sem prejuízo do reforço ou da substituição da penhora). Pelo contrário, no
direito italiano a apresentação de oposição à execução tem efeitos suspensivos, nos termos do art.º 2797.º,
n.º 2 (no mesmo sentido, Protettí, ob. cit., pág.300 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 328, embora este último
Autor admita a possibilidade de apresentação de uma oposição fora do prazo legal, desde que anterior à
venda, mas privada de efeitos suspensivos) e a sua rejeição legitima o credor a proceder imediatamente à
358
sucedendo, embora em menor medida,1381 com a oposição à penhora (cujos motivos
constam do art.º 863-A, do CPC).
Por outro lado, o art.º 886.º-B, n.º 1, do CPC, dispõe que, a requerimento do
executado, a venda dos bens penhorados sustar-se-á logo que o produto dos bens já
vendidos seja suficiente para pagamento das despesas da execução, do crédito do
exequente e dos credores com garantia real sobre os bens já vendidos.1382
Alguns Autores sugerem que um desvio ao regime comum do processo
executivo passaria pela desnecessidade da penhora, porquanto as funções desta – defesa
da posição do credor face a actuações posteriores do devedor, nomeadamente que
possam conduzir à sua destruição ou deterioração do património do devedor - seriam
asseguradas, no penhor, pela entrega do bem ao credor (ou a terceiro):1383 todavia, o
art.º 831.º do CPC impõe a penhora e apreensão dos bens objecto da execução ainda que
estes, por qualquer título, se encontrem em poder de terceiro (n.º 1), aludindo-se
expressamente à hipótese de aí estar por força de um contrato de penhor (n.º 2,
esclarecendo-se que, se assim for, se procederá imediatamente citação do credor
pignoratício).
Curioso é verificar que, à semelhança do que sucede a constituição do penhor,
também a forma como se efectiva a penhora diverge consoante o tipo de bem em causa,
coincidindo, aliás, quase integralmente com as modalidades de surgimento do penhor,
como se comprova pela regra da necessidade de entrega do bem para a penhora da
generalidade dos bens móveis (art.º 848.º, n.º 1);1384 da inscrição no registo, quando se
trate de penhorar bens móveis sujeitos a registo (art.ºs 851.º, n.º 1 e 838.º);1385 da
notificação do terceiro devedor, no caso da penhora de créditos (art.º 856.º, n.º 1); para
os valores mobiliários, as diferentes modalidades variam consoante se encontrem ou
não integrados em sistema centralizado - e, por isso, registados ou depositados em
intermediário financeiro ou registadas junto do emitente -, cuja penhora se realiza de
acordo com o regime previsto para os saldos de conta de depósitos bancários (cfr. art.ºs
861-A, n.º 14, do CPC e 82.º do CVM)1386 ou, sendo titulados e não integrados naquele
venda; se, ao invés, vier a ser julgada procedente, o credor não poderá exercer o ius vendendi (caso o faça,
a coisa poderá ser reivindicada pelo proprietário junto do adquirente – excepto se este se encontrar de boa
fé, caso em que se encontra protegido pela regra “posse vale título” – ficando o credor que haja procedido
à venda obrigado a restituir o preço pago pelo adquirente).
1381
Pois, nos termos do art.º 863-B, n.º 3, a execução só é suspensa se o executado prestar caução,
circunscrevendo-se aos bens a que a oposição respeita, podendo a execução prosseguir sobre outros bens
que sejam penhorados.
1382
Não divergentemente, no direito italiano o constituinte da garantia tem igualmente a possibilidade de
se opor à venda, solicitando a restrição da venda a alguma de entre as várias coisas dadas em garantia
(art.º 2797.º, n.º 3, do CCI), devendo, para tal, alegar e provar a suficiência desses bens para satisfação do
crédito, sem necessidade de indicar aqueles que entende serem suficientes (embora o possa fazer e, nesse
caso, o juiz deverá ater-se a essa nomeação) e sem que tal implique, em caso de deferimento do pedido
por parte do juiz, que a garantia não possa subsistir sobre os demais bens, sempre que se comprove que o
valor obtido com a venda foi insuficiente para liquidar a totalidade do crédito (Gorla e Zanelli, ob. cit.,
pág. 131).
1383
No mesmo sentido, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 122, Rubino, Il pegno cit., págs. 261 e 262 e
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 217, 270 e 271, acrescentando os dois últimos que tal
desnecessidade apenas fará sentido quando o bem previamente empenhado tiver sido entregue ao credor
ou a terceiro, mas já não quando tenha permanecido em poder do respectivo proprietário.
1384
Essa entrega é feita através da remoção para depósitos, assumindo o agente de execução a qualidade
de fiel depositário.
1385
Porém, para certos bens móveis sujeitos a registo, como os automóveis, navios e aeronaves, a lei
prevê mecanismos específicos (cfr. art.º 851.º, n.ºs 3 a 5).
1386
A ordem de penhora é dada pelo juiz, através de despacho, e notificada às entidades registadoras ou
depositárias, preferencialmente através de comunicação electrónica, para que estas cativem as acções de
que o executado seja titular (quando não seja possível identificar essas acções, serão penhoradas todas
359
sistema, através de apreensão do título e depósito em instituição bancária à ordem do
agente de execução (art.º 857.º, n.ºs 1 e 3).1387 1388
O pagamento do credor far-se-á de acordo com as diversas possibilidades
previstas na lei de processo, ou seja, mediante a entrega de dinheiro, a adjudicação dos
bens executados, a consignação do rendimento destes ou o produto da competente
venda (art.º 872.º e segs. do CPC).1389
Relativamente às diversas modalidades da venda, de entre todas as previstas na
lei (cfr. art.º 886.º, n.º 1, do CPC),1390 a única liminarmente excluída será a venda
através de propostas em carta fechada - uma vez que esta apenas será aplicável quando
se trate de bens imóveis (art.º 889.º, n.º 1, do mesmo Código), excepto tratando-se de
um estabelecimento comercial de valor substancialmente elevado (art.º 901.º-A) -,1391
aquelas de que o executado seja titular até à quantia exequenda), devendo essa notificação conter a
menção expressa de que as acções ficam bloqueadas desde a data da notificação, mantendo-se o bloqueio
enquanto se mantiver a penhora (art.ºs 861-A, n.º 5, do CPC e 72.º, n.ºs 1 e 3 do CVM). No entanto, não é
imperioso que o agente da execução indague se o executado é o proprietário das acções (mas, se entender
fazê-lo, as entidades registadoras deverão fornecer tais dados, não obstante o dever de sigilo que sobre
elas recai – cfr. art.º 79.º, n.º 2, alínea d), do RGICSF). Sobre estes aspectos, vide Sofia Maltez, ob. cit.,
págs. 51 a 55.
1387
Quanto aos valores titulados ao portador não integrados em sistema centralizado e na medida em que
a respectiva constituição pressupõe a entrega ao credor ou ao depositário por ele designado (art.ºs 101.º,
n.º 1 e 103.º do CVM), estas acções devem ser entregues ou ser apreendidas pelo agente da execução,
para que este proceda ao averbamento do ónus resultante da penhora e as deposite numa instituição de
crédito, à ordem da execução, nos termos do art.º 857.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, vide Sofia Maltez, ob. cit.,
págs. 52 e 53). O mesmo não sucederá com as acções tituladas nominativas não integradas em sistema
centralizado, em relação às quais o surgimento do penhor não exige a entrega do título, mas apenas a
declaração escrita no título, seguida de registo junto do emitente ou do intermediário financeiro que o
representa (art.ºs 102.º, n.º 1 e 103.º do CVM). No entanto, a penhora destas acções segue o regime
previsto no art.º 857.º e não do art.º 861-A, por força da não inclusão no n.º 14 desta última norma.
1388
Existem, ainda, regras específicas para determinados tipos de bens cuja constituição em penhor (ou,
pelo menos, os requisitos a que a mesma deve obedecer) se afigura problemática, designadamente o
estabelecimento comercial, os depósitos bancários, bens indivisos ou direitos em geral (cfr.,
respectivamente, art.ºs 862-A, 861-A, 862.º e 860-A, embora, neste último caso, a lei remeta para o
regime ditado para a penhora de créditos).
1389
Naturalmente que nem todas estas formas de pagamento se adequam aos possíveis objectos do
penhor. Assim, a entrega em dinheiro apenas será viável quando o bem executado for moeda corrente,
depósito bancário ou dinheiro, outro direito de crédito pecuniário cuja importância tenha sido depositada,
bem como o pagamento por cheque ou transferência bancária (cfr. n.ºs 1 e 2 do art.º 874.º do CPC). Já a
adjudicação não poderá ser requerida pelo credor relativamente a bens vendidos em bolsas, a bens que,
por lei devam ser entregues a determinadas entidades ou a bens objecto de um contrato-promessa de
compra e venda com eficácia real (art.ºs 875.º, n.º 1, 902.º e 903.º do CPC). No que tange à consignação
de rendimentos, apenas poderá ser solicitada quando o bem em móvel em questão esteja sujeito a registo
(art.º 879.º, n.º 1, do CPC – esta possibilidade era já sugerida por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58,
págs. 291 a 293, embora este limitasse tal modalidade de satisfação às situações em que o empenhador ou
outros interessados a tal não se opusessem).
1390
A saber, venda mediante propostas em carta fechada (art.ºs 889.º a 901.º-A), venda em bolsas de
capitais ou de mercadorias (art.º 902.º), venda directa a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir
os bens (art.º 903.º), venda por negociação particular (art.ºs 904.º e 905.º), venda em estabelecimento de
leilões (art.ºs 906.º e 907.º) e venda em depósito público (art.º 907.º-A). Já Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ
n.º 58, págs. 274 a 276, entendia poder a venda ter lugar por qualquer dos meios consagrados na lei de
processo.
1391
No direito alemão a venda deverá ser efectuada em hasta pública, excepto tratando-se de bens com
um preço de bolsa ou de mercado, caso em que pode o credor pignoratício proceder à venda por
negociação particular através de um agente comercial oficialmente legitimado ou de pessoa autorizada a
realizar a venda de bens com preço corrente (cfr. §1221 e §1235 do BGB). Aliás, a lei alemã ocupa-se de
outros aspectos relacionados com a venda, como sejam o local onde esta decorrerá (à partida onde a coisa
estiver guardada, salvo quando for de esperar que a venda nesse local não atinja o sucesso adequado, caso
em que a coisa poderá ser vendida em qualquer outro local - §1236), a hora em que a venda se realizará
360
cabendo a opção por uma das restantes, em regra, ao agente de execução (art.º 886.º-A,
n.º 1).
Ocorrendo a venda, o comprador adquire a propriedade da coisa, apenas
podendo esta ficar sem efeito nas hipóteses previstas no art.º 909.º ou ser invalidada, a
requerimento do comprador, nos casos previstos no art.º 908.º.1392 1393
(que será tornada pública com designação genérica da coisa dada em penhor, sendo especialmente
avisados o proprietário e terceiros que tenham direitos sobre a coisa empenhada, não se efectuando,
porém, o aviso quando for impraticável - §1237), a necessidade de o comprador pagar imediatamente o
preço de aquisição do bem (sob pena de ficar privado dos seus direitos - §1238), a admissibilidade de
licitação e arrematação por parte do credor e do empenhador (excepto, no que se refere a este último, se
ele não pagar o montante imediatamente e em numerário, limitação esta igualmente aplicável à
arrematação por parte do devedor quando o penhor tenha sido prestado por terceiro - §1239), a obrigação
do credor pignoratício avisar o proprietário do resultado da venda (a não ser que o aviso seja impraticável
- §1240), e, finalmente, o direito de resgate e consequente pagamento ao credor pignoratício, exercitável
por parte de alguém que possa vir a perder um direito em consequência da venda (§1249). Todavia, nos
termos do §1245, o proprietário e o credor pignoratício podem estipular acordos que afastem a aplicação
dos §§1234 a 1240, mas, existindo um terceiro com um direito sobre a coisa empenhada que se extinga
com a venda, será necessário o seu consentimento (o consentimento deve ser notificado àquele a favor de
quem é prestado e é irrevogável) e, de acordo com o §1246, se corresponder à equidade e ao interesse das
partes, pode qualquer delas exigir que a venda se efectue de modo diverso do previsto na lei e, não
havendo acordo, decidirá o tribunal.
1392
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 281, sugere que a venda deveria ser considerada ineficaz
relativamente aos terceiros não citados pessoalmente para o processo. Em face do actual regime, a falta de
citação de algum dos sujeitos que, nos termos do art.º 864.º do CPC, devesse ter sido citado produz o
mesmo efeito que a falta de citação do réu (nulidade de todo o processado posterior à petição inicial –
art.º 194.º, alínea d)), mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já
efectuados, dos quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário, ficando salvo à pessoa que devia
ter sido citada o direito de ser indemnizada, pelo exequente ou outro credor pago em vez dela, segundo as
regras do enriquecimento sem causa, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos gerais, da pessoa
a quem seja imputável a falta de citação (art.º 864.º, n.º 10).
1393
De entre os casos em que a venda fica sem efeito, cumpre nomear o caso da reivindicação do bem
empenhado, por parte do respectivo proprietário, no caso de aquele não pertencer ao executado (art.º
909.º, n.º 1, alínea d), do CPC), devendo, caso haja acção de reivindicação pendente no momento da
venda, proceder-se nos termos dos art.ºs 910.º e 911.º. No direito italiano, Rubino, Il pegno cit., pág. 267
(seguido por Protettí, ob. cit., pág. 325), entende que das duas uma: ou o proprietário não pode exercer a
reivindicação (designadamente por força da invocação do princípio posse vale título), caso em que o
credor é responsável perante o proprietário pelos danos causados; se, pelo contrário, o proprietário
exercer frutuosamente a reivindicação, deverá o credor abonar-lhe as despesas de recuperação do bem e,
perante o adquirente, devolver-lhe o preço de compra do bem e, caso haja boa fé do adquirente, também
os danos a ele causados (esta última responsabilidade é ancorada no facto de a reivindicação se basear na
culpa do credor alienante ou, no caso de inexistência do penhor, numa causa de que deveria ter
conhecimento). Já Ciccarello, ob. cit., págs. 699 e 700 e, sobretudo, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 122 a
124, com base numa interpretação dos art.ºs 2921.º e 2922.º do CCI, advogam a responsabilidade do
credor perante o adquirente, em caso de reivindicação pelo proprietário, apenas quando tenha vendido o
bem recebido em penhor como próprio e se encontre, por isso, de má fé (não existindo, todavia, qualquer
responsabilidade pelos vícios da coisa), ao passo que se pronunciam pela responsabilidade do constituinte
da garantia pelos vícios da coisa e por uma eventual reivindicação (argumentando que, a partir do
momento em que deu a coisa em penhor, individualizou-a e consentiu na sua venda em caso de
incumprimento e salientando que tal responsabilidade reforça a garantia pignoratícia, na medida em que
será espectável um preço superior por parte de quem saiba que venda engloba tal encargo para o
constituinte da garantia). Entre nós, a questão encontra-se resolvida, quanto à garantia do adquirente em
caso de venda de um bem alheio, pelo art.º 825.º, nos termos do qual este tem direito à restituição do
preço e à indemnização dos danos por parte dos credores e do executado que tenham agido com culpa (n.º
1), excepto se o terceiro reivindicante houvesse protestado no momento da venda ou anteriormente e o
adquirente conhecesse o protesto, caso em que não lhe será lícito pedir a indemnização, mas apenas a
restituição do preço (n.º 2): no entanto, em vez de exigir essa restituição aos credores, pode o adquirente
exercer os direitos destes contra o devedor, por via de sub-rogação (n.º 3). Por outro lado, em sede de
venda executiva, quando for reconhecida a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado
361
O preço resultante da venda será entregue ao credor, na medida do crédito
garantido pelo penhor, ficando a parte do preço que exceda esse montante sujeita aos
direitos de garantia de outros credores que recaíssem sobre o bem vendido ou, se eles
não existirem, será devolvido ao executado.13941395
em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria (não estando
em causa direitos reais de garantia, uma vez que estes caducam nos termos do art.º 824.º do CPC, mas
podendo tratar-se, como refere Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado cit., pág. 613, de
direitos pessoais de gozo), o comprador pode pedir, no processo de execução, a anulação da venda e a
indemnização a que tenha direito (art.º 908.º, n.º 1, do CPC), indemnização essa que pode ser pedida, a
nosso ver, ao empenhador proprietário do bem ou ao credor exequente, consoante tenha sido um ou outro
(ou ambos) os responsáveis pelo erro ou pela falta de conformidade. No que respeita à garantia pelos
vícios do bem empenhado, no nosso direito, decorre do citado n.º 1 do art.º 908.º, n.º 1, do CPC, que a
anulação da venda executiva (acerca da responsabilidade em caso de venda não executiva, vide os art.ºs
913.º a 922.º) em resultado de vícios da coisa alienada – ou melhor, por desconformidade com o bem cuja
venda fora anunciada – apenas se verifica quando tais vícios configurem um erro sobre a coisa
transmitida, aplicando-se, nesse caso, o regime de convalidação previsto para a venda de bens onerados
(cfr. art.º 906.º, de acordo com o qual, uma vez desaparecidos, por qualquer modo, os ónus ou limitações
- leia-se, os vícios da coisa - a que o direito estava sujeito, fica sanada a anulabilidade – n.º 1 –
persistindo, todavia, se a existência dos ónus ou limitações já houver causado prejuízo ao comprador, ou
se este já tiver pedido em juízo a anulação da compra e venda – n.º 2): com base na redacção do art.º
908.º, n.º 1, alguns entendem que o elenco da causas de anulação da venda nele contido é taxativo (neste
sentido, J. M. Gonçalves Sampaio, A acção executiva e a problemática das execuções injustas, 2.ª Edição,
Almedina, 2008, pág. 337), enquanto outros sustentam a possibilidade de invocação dos demais
fundamentos de anulação dos negócios jurídicos (assim, Lebre de Freitas, A Acção Executiva - Depois da
Reforma da Reforma, Coimbra Editora, 5.ª Edição, 2009, pág. 393, argumentando que a protecção do
credor na venda executiva não pode ser inferior à que lhe é concedida numa alienação privada) e, em
particular, os vícios ou defeitos do bem alienado (neste sentido, Romano Martinez, Cumprimento
defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 2001, págs. 486 a 488, alegando
que, pese embora considerar confusa a redacção do art.º 908.º do CPC, “aquele que adquira um bem em
venda judicial pode recorrer às garantias estabelecidas no direito civil (…). Para além dos defeitos de
direito, parece poder interpretar-se o art.º 908.º, n.º 1, CPC no sentido de também fazer referência aos
vícios da coisa. Na realidade, afirma-se que os pedidos de anulação da venda e de indemnização também
podem ser feitos valer caso haja “erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que
foi anunciado”. Apesar de a locução ser um pouco vaga, como é apresentada cumulativamente aos vícios
derivados de ónus, dever-se-á entender como fazendo referência aos defeitos da coisa”, aceitando mesmo
que as consequências de tal responsabilidade poderão ser, para além da anulação da venda e da
indemnização, todos os meios edilícios, por força da remissão para o regime substantivo da venda de
coisa defeituosa. Esta última posição merece a nossa adesão, especialmente porque, na senda de Romano
Martinez, ult. ob. e loc. cit., a publicidade prévia à venda judicial (e a possibilidade de inspecção do bem)
não poder implicar a solução contrária (uma vez que os defeitos se podem manifestar em momento
posterior, em razão da sua utilização), o mesmo valendo para outros argumentos invocados como suporte
desta, como a necessidade de tutela dos credores do executado (o qual não pode justificar um
locupletamento à custa do comprador, o que se verificará sempre que recebam um preço superior ao valor
destes), as custas inerentes à venda judicial (uma vez que, não raras vezes, as vendas particulares
importam despesas igualmente avultadas, sem que tal impeça o recurso à responsabilidade edilícia por
parte do comprador) ou que não pode haver culpa do juiz do tribunal onde corre a execução (pois o poder
judicial não actua como vendedor, mas sim como intermediário “que obriga o proprietário a vender, mais
propriamente substituindo-se à declaração de vontade do alienante”).
1394
Isto partindo do princípio ser o crédito pignoratício do exequente o primeiro a graduar no concurso de
credores, o que nem sempre sucederá – cfr. n.º 9.1.5 do Capítulo I.
1395
No Código de Seabra (art.º 886.º) afirmava-se que o excedente do produto da venda deveria ser
entregue ao devedor, solução esta criticada por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 282,
considerando preferível afirmar que esse excedente ocupa o lugar do bem alienado.
362
Caso o valor obtido não seja suficiente para liquidação da dívida garantida,1396 o
credor poderá executar outros bens do devedor, mas ocupando a posição de mero credor
quirografário, excepto se dispuser de outras garantias sobre outros bens do devedor.
1396
No Acórdão do STJ de 29/10/1981, in www.dgsi.pt, decidiu-se que não incorre em abuso de direito o
credor pignoratício que vende o objecto da garantia por preço inferior ao seu valor real, valor esse que é
também insuficiente para pagamento do seu crédito.
1397
Seguimos de perto, a este respeito, a posição de Rubino, Il pegno cit., págs. 268 e 269.
1398
Garcia Vicente, La prenda cit., pág. 139, assentando no facto de os mecanismos tradicionais de
execução do penhor se revelarem inapropriados para o penhor de créditos, não apenas porque o credor
pignoratício pode pretender não executar a garantia e exercer uma acção pessoal contra o empenhante
(embora o Autor admita a licitude do pacto que exclua a possibilidade de exercer tais acções, impondo
que, em caso de incumprimento da obrigação garantida, seja executada a garantia prestada) e, sobretudo,
porque as formas de execução judicial e notarial do penhor se revelam desajustados ao quid onerado (o
próprio legislador exclui da órbita do procedimento comum de execução judicial os créditos pecuniários,
“en razón de que el importe del crédito está predeterminado (no hay posibilidad de minusvalorar el
crédito pignorado en daño del pignorante o sus otros acreedores), ni tampoco es posible la apropriación
del sobrante”, sendo este regime legal um argumento a favor da licitude do pacto marciano). Perante este
panorama, o Autor sustenta que a execução do penhor de créditos deve passar pela compensação (quando
o credor pignoratício seja também devedor do crédito empenhado, nomeadamente quando se empenhem
depósitos bancários e o credor seja o próprio banco depositário) ou imputação unilateral (quando o credor
pignoratício seja um terceiro, caso em que a cobrança do crédito empenhado por parte do credor
pignoratício serve para extinguir, total ou parcialmente, o crédito garantido), as quais apresentam
vantagens inequívocas (desde logo a rapidez, uma vez que a execução se resume à cobrança do crédito
recebido em garantia; a poupança com os custos da execução judicial ou notarial; e a eliminação do risco
de o credor pignoratício se apropriar do eventual excedente face ao crédito garantido), por isso mesmo
aceitando a validade do pacto em virtude do qual, em caso de incumprimento da obrigação garantida, o
credor pignoratício se tornará titular do crédito empenhado, na medida necessária à liquidação da
obrigação garantida – ou, noutros termos, “el pacto en virtud del cual el crédito será ejecutado mediante
compensación con los créditos que el acreedor ostente contra el pignorante”), mesmo que o crédito
empenhado se vença antes do crédito garantido (nesta eventualidade, deverá optar-se por uma
adjudicação ou dação em pagamento, ou seja, “pacto mediante el cual se cede al acreedor prendario el
crédito pignorado condicionando tal cesión al vencimiento e incumplimiento del crédito garantizado” -
convenção esta que não viola a proibição do pacto comissório, uma vez existe a obrigação de devolução
do eventual excedente -, sem prejuízo do direito do credor pignoratício exercer acção pessoal contra o
devedor do crédito garantido, de modo que o risco de insolvência do devedor do crédito empenhado recai
sobre o empenhante quando este seja o próprio devedor do crédito garantido. Se, ao invés, a garantia for
prestada por terceiro que não o devedor, o não pagamento do crédito empenhado será um risco que
igualmente suporta o devedor do crédito principal, porque frente a ele poderá o credor pignoratício
exercer a acção pessoal derivada da obrigação principal, até porque o empenhante não é seu devedor),
sem que quaisquer destes mecanismos viole a proibição do pacto comissório (para mais desenvolvimentos
(para mais desenvolvimentos sobre este último aspecto, vide infra n.º 4 do Capítulo II). Finalmente, o
Autor alude ainda aos problemas que advêm da sujeição ou não da compensação ou imputação unilateral
às regras concursais previstas para as garantias reais, especialmente nos casos de falência do devedor do
crédito principal e quando seja este quem tenha constituído em penhor um crédito que detenha sobre um
terceiro (respondendo o Autor afirmativamente, isto é, considerando que a compensação é, no penhor de
créditos, uma forma de execução da garantia).
363
Uma vez vencido crédito garantido, importa distinguir consoante o crédito dado
em penhor ainda não se encontre vencido – caso em que caberá ao credor pignoratício
optar entre aguardar pelo respectivo vencimento, para então efectuar a sua cobrança,
proceder à sua venda ou requerer a atribuição judicial - 1399 ou, ao invés, já tenha
ocorrido tal evento.1400
Uma vez vencido o crédito dado em garantia, o credor pignoratício poderá
cobrar esse crédito, mesmo que o seu crédito garantido ainda não se encontre vencido
1399
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 337.
1400
Também o BGB estabelece esta distinção, afirmando o §1281 que, antes desse vencimento, o devedor
apenas pode pagar conjuntamente ao seu credor e ao credor pignoratício, embora Harry Westermann,
Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1583, considerem esta
norma dispositiva e, por isso, passível de ser afastada por acordo das partes, nomeadamente conferindo
legitimidade exclusiva para o efeito ao credor pignoratício (se não pretenderem efectuar a cobrança,
ambos estão reciprocamente obrigados a cooperar para a cobrança, assim que o crédito esteja vencido -
§1285, n.º 1 – para além de qualquer deles poder exigir que a coisa seja entregue a um depositário -
§1281.2), podendo qualquer destes exigir que o pagamento seja efectuado a ambos. Já depois do
vencimento, o §1282 do mesmo Código autoriza o credor pignoratício a cobrar o crédito e o devedor
apenas poderá pagar a ele (notando, porém, que a cobrança de um crédito em dinheiro apenas cabe ao
credor pignoratício na medida necessária à sua satisfação), devendo zelar para que a cobrança ocorra de
modo regular (todavia, antes da cobrança, deve informar imediatamente o credor, a não ser que esse aviso
seja impraticável - §1285, n.º 2). Todavia, estas formas de cobrança podem ser afastadas por acordo entre
o credor pignoratício o credor do crédito dado em penhor, nos termos do §1284. Quanto aos efeitos do
pagamento efectuado pelo devedor do crédito empenhado e independentemente de a cobrança ocorrer
antes do vencimento desse crédito, o credor adquire o objecto prestado e o credor pignoratício um penhor
sobre esse mesmo objecto ou, consistindo a prestação na transferência da propriedade de um imóvel, uma
hipoteca de segurança (§1287.1 e 2 – de acordo com Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-
Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1584, embora alertem que a sua aplicação pressuponha que
a prestação tenha sido efectuada nos termos legais – isto é salvo pacto em contrário, conjuntamente ao
empenhante e ao credor pignoratício – e que a constituição do penhor tenha sido notificada ao devedor do
crédito empenhado: se assim não for e, por hipótese, a prestação for efectuada apenas ao segundo e tiver
por objecto dinheiro ou coisas genéricas, não haverá cumprimento da obrigação, continuando em vigor
crédito e garantia; já quando, tendo o mesmo objecto, a prestação for efectuada apenas ao empenhante, o
Autor entende que o credor pignoratício adquirirá automaticamente um penhor sobre o objecto da
prestação). Porém, se o penhor tiver por objecto dinheiro e a cobrança ocorrer antes do vencimento desse
crédito, o credor e o credor pignoratício estão reciprocamente obrigados a colaborar para que o montante
cobrado seja investido a juros e simultaneamente constituído em penhor a favor do credor pignoratício
(cabendo a escolha acerca do modo de levar a cabo o investimento ao credor) e se, ao invés, a cobrança
apenas teve lugar após o vencimento do mesmo crédito, considera-se o crédito do credor pignoratício
como pago pelo seu devedor/credor do crédito empenhado, desde que o montante cobrado seja usado para
a sua satisfação (cfr. n.ºs 1 e 2 do §1288). Por último, saliente-se que, existindo vários penhores sobre o
mesmo crédito, apenas poderá proceder à cobrança o credor pignoratício cujo penhor preceda os demais
(§1290). Em face do direito italiano, Ruscello, ob. cit., pág. 171 e segs, distingue consoante o crédito
garantido se encontre ou não vencido: na primeira hipótese, caso a prestação consista em dinheiro, o
credor pode reter a quantia necessária para satisfação da obrigação assegurada ou, caso a prestação se
traduza numa coisa diversa de dinheiro, o credor pignoratício deverá vendê-la ou requerer a sua
atribuição; pelo contrário, se o crédito garantido ainda não se encontrar vencido, o credor pignoratício
poderá reter o objecto da prestação decorrente do crédito empenhado ou, caso esta consista em dinheiro, o
devedor pode exigir o seu depósito Em termos aproximados, para o direito espanhol e pese embora a
ausência de regulamentação do penhor de créditos, Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 456 e segs.,
distingue entre os casos em que o crédito dado em penhor se vença ao mesmo tempo ou após o crédito
garantido (assistindo ao credor legitimidade para cobrar o crédito onerado, se este consistir na entrega de
um bem, embora, quando o objecto da prestação seja uma quantia em dinheiro, apenas até ao montante do
crédito garantido: no primeiro caso, o penhor transforma-se num normal penhor de coisa; no segundo, o
credor pode satisfazer-se directamente com o produto do dinheiro cobrado) e aqueles em que o crédito
dado em penhor se vença antes do crédito garantido (caso em que apenas o devedor do crédito garantido
poderá efectuar a cobrança, produzindo-se, em seguida, uma sub-rogação do objecto da garantia, que
passará a recair sobre o objecto da prestação inicialmente onerada).
364
(cfr. art.º 685.º, n.º 1)1401 - e, caso o devedor deste se recuse a pagar, proceder
executivamente contra ele – ou, em alternativa e se o crédito garantido já estiver
vencido, proceder à sua venda.1402
Mais precisamente, quando a prestação tenha um objecto não fungível, é
legítimo (e, em certa medida, constitui mesmo um dever) ao credor pignoratício cobrar
directa e isoladamente (sem o concurso do empenhante) o crédito empenhado (art.º
685.º, n.º 1).1403
Ao invés, quando o crédito garantido tenha como objecto dinheiro ou outro bem
fungível, esta cobrança terá que ser efectuada conjuntamente aos dois credores e, não
havendo acordo entre eles, deverá o devedor do crédito empenhado socorrer-se da
consignação em depósito (art.º 685.º, n.º 2),1404 destarte se evitando o risco de
dissipação do bem onerado.
1401
De acordo com Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann,
ob. cit., págs. 1588 e 1589, esta é a forma ordinária de execução de um penhor de créditos quando a
obrigação garantida já se ache vencida (sem prejuízo da possibilidade de execução, nos termos legais ou
de acordo com o estabelecido pelas partes - mas, neste último caso, sempre com o limite decorrente da
proibição do pacto comissório – ou de exigir a cessão do crédito: todavia, esta última não parece ser uma
solução muito do agrado dos credores, uma vez que, ao produzir a extinção do crédito garantido na
medida da prestação cedida, fará com que passe a ser o credor pignoratício a suportar o risco de
insolvência do devedor do crédito onerado), procedendo o credor pignoratício a tal cobrança em nome
próprio (embora não seja o titular do crédito empenhado, a lei concede-lhe legitimidade para tal
cobrança): tratando-se de um crédito pecuniário, a respectiva cobrança libera o empenhante perante o
credor pignoratício (que se torna proprietário das quantias cobradas) e, se o empenhante não fosse o
devedor do crédito garantido, adquire-o; caso o crédito onerado tenha como objecto outro tipo de coisas e
por força do efeito sub-rogatório, o credor pignoratício pode executar essas mesmas coisas
1402
Esta venda, só se poderá efectuar apenas após o vencimento do crédito garantido, pois só a partir
dessa data dispõe o credor pignoratício do ius distrahendi (funcionando a possibilidade de cobrança em
momento anterior, nos termos do art.º 685.º, n.º 1, como excepcional), segue os termos das execuções
pignoratícias comuns. O objecto da execução será o próprio crédito, caso ainda não se tenha efectuado a
respectiva cobrança, ou o objecto resultante daquela cobrança, quando o mesmo tenha sido cobrado.
1403
Independentemente do objecto da prestação, não pode o titular do crédito empenhado cobrar e receber
directamente a prestação, nem mesmo com o consentimento do credor pignoratício: existindo este
consentimento, o penhor extingue-se (art.º 675.º, n.º 4); faltando este consentimento, o pagamento
efectuado ao empenhante é inoponível ao credor pignoratício, pelo que o terceiro devedor do crédito
empenhado poderá ser chamado a pagar novamente ao titular da garantia real.
1404
Vide, por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 703. Como salienta Isabel
Matos, ob. cit., págs. 133 e 134, esta norma poderá causar dificuldades quando o mesmo sujeito seja,
simultaneamente, devedor do crédito empenhado e o credor pignoratício (o exemplo apontado é do de A
dar em penhor ao banco B, em garantia de um financiamento concedido por este, o depósito da sua conta
bancária depositada neste último banco, caso em que será devedor de A pela quantia existente nesta
conta, mas, ao mesmo tempo, será credor pignoratício), pelo que defende a sua aplicação apenas quando o
credor seja um terceiro e não o próprio banco depositário devedor do crédito empenhado. Pelo contrário,
naqueles ordenamentos onde tal legitimidade para cobrança é atribuída exclusivamente ao credor
pignoratício, discute-se até que ponto não estaremos perante uma cessão de créditos, uma vez que parece
existir uma transferência da propriedade (pois, embora formalmente o empenhante mantenha a
titularidade do crédito onerado, carece de legitimidade para o cobrar). Esta solução do pagamento
conjunto a ambos os credores – pignoratício e empenhante – é defendida, na ausência de regulamentação
a este respeito no direito espanhol, por Finez Ratón, ob. cit., pág. 210 e segs., para o penhor de depósitos
bancários, afirmando que “Si la prenda de créditos implica una especial contitularidad entre el acreedor
pignorante y el acreedor pignoraticio, la solución lógica es que la reclamación del capital deba
efectuarse por ambos conjuntamente y sólo a ambos puede realizarse el pago por deudor con eficacia
liberatória. Si aún no há vencido el crédito garantizado, la prestación realizada por el deudor quedará
sometida a la prenda en lugar del crédito (…). En ningún caso se podrá imputar el saldo del depósito al
pago del crédito garantizado cuando éste aún no ha vencido, salvo que el deudor lo consienta
expresamente”.
365
Em qualquer dos casos, uma vez efectuada a cobrança, a prestação recebida
ocupa o lugar do crédito empenhado, sobre ela passando o credor pignoratício a exercer
os direitos inerentes à garantia, fenómeno este que pode ser enquadrado no âmbito da
sub-rogação real.1405
Contudo, nos casos em que a cobrança seja realizada pelo credor pignoratício
(isolada ou conjuntamente com o empenhante – e a questão coloca-se sobretudo, a
respeito dos penhores sobre créditos cujo objecto seja constituído por uma quantia em
dinheiro ou por um depósito bancário) é discutível, em razão do possível contraste com
a proibição do pacto comissório, se o credor pignoratício poderá invocar a compensação
para reter o montante necessário à liquidação do seu crédito (assim consentindo uma
execução por via de mera imputação ou compensação).
Noutro plano e considerando a natureza pretensamente imperativa da norma que
impõe a necessidade de realização da prestação conjuntamente ao credor pignoratício,
discute-se igualmente a licitude de pactos, acordados entre tais sujeitos, que atribuam
legitimação exclusiva ao credor pignoratício para este efeito.1406
Conforme referido anteriormente, o credor pignoratício poderá, igualmente,
obter a satisfação do seu crédito numa execução alheia em que seja penhorado o seu
bem, pois não só lhe é permitido aí reclamar essa satisfação (art.º 865.º, n.ºs 1 e 3, do
CPC), como terá de ser citado para esse efeito1407 (art.º 864.º, n.ºs 8 e 9, do CPC):
todavia e uma vez que o segundo destes preceitos alude a direitos reais de garantia, ao
passo que o primeiro alude a garantias reais, coloca-se a questão de saber se ambos (e,
em particular, o segundo) abrangem o penhor de créditos.
De facto, considerando a discussão em torno da natureza jurídica deste penhor,
designadamente as dúvidas quanto ao seu carácter real, importa determinar se os
preceitos acabados de citar lhe serão aplicáveis.
A nosso ver e como já tivemos oportunidade de sublinhar noutro local, as noções
de garantia real e de direito real de garantia não são coincidentes, pelo que pode um
determinado credor usufruir de uma causa de preferência não enquadrável na noção
mais restrita de direito real.1408
1405
Como realça Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 41 e 42, quando o objecto do crédito empenhado seja
uma coisa móvel, a cobrança daquele origina a transformação do penhor num penhor de coisa, situação
esta enquadrável no âmbito da sub-rogação real - em termos similares, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág.
157 e Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág.
1584. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 703, realçam como esta substituição do
objecto da garantia não prejudica o empenhante, por ser de presumir que, se este recebesse directamente a
prestação, a daria em penhor em lugar do crédito inicialmente onerado. Acerca desta norma e de outras,
enquanto exemplos de reconhecimento da operatividade da sub-rogação real no âmbito do penhor, vide
infra n.º 3.2.5 do Capítulo II.
1406
Acerca das questões aludidas nestes dois últimos parágrafos, vide infra n.º 4 do Capítulo II.
1407
Todavia, a fala de citação do credor pignoratício não importa a anulação das vendas, adjudicações,
remições ou pagamentos já efectuados, dos quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário,
ficando salvo à pessoa que devia ter sido citada o direito de ser indemnizada, pelo exequente ou outro
credor pago em vez dela, segundo as regras do enriquecimento sem causa, sem prejuízo da
responsabilidade civil, nos termos gerais, da pessoa a quem seja imputável a falta de citação (art.º 864.º,
n.º 10): por isso, se a citação do credor pignoratício apenas ocorrer após a venda executiva, tal não
implica a nulidade desta, podendo o credor reclamar o seu crédito sobre o produto da venda depositado à
ordem do processo (Acórdão da Relação de Évora de 21/9/2006, in www.dgsi.pt).
1408
Cfr. o nosso Dos privilégios cit., pág. 434, citando a posição de Orlando de Carvalho, podendo definir
garantia real como a afectação de um determinado bem ou direito ao cumprimento de uma determinada
obrigação. Em termos análogos se expressa Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 68 a 74, afirmando que “não
existe necessariamente uma relação de sinonímia entre as garantias reais e os direitos reais de garantia,
sem prejuízo de os últimos constituírem o arquétipo das garantias reais (…) A relutância em considerar o
penhor de créditos como uma garantia real pode justificar-se unicamente pelo receio de permitir incluir
366
Assim e por não restarem, a nosso ver, dúvidas quanto ao enquadramento do
penhor de créditos no âmbito das garantias reais,1409 o credor que dele beneficie pode
reclamar o seu crédito em execução alheia.
Porém, tendo em conta a diferente redacção dos art.ºs 864.º, por um lado, e 835.º
e 865.º do CPC, por outro - enquanto o primeiro apenas se refere aos titulares de direitos
reais de garantia, os dois restantes falam de garantias reais – é ainda possível sustentar,
para quem considere não ser o penhor de créditos um direito real de garantia, que o
respectivo credor não terá que ser citado para intervir numa execução em que tal crédito
seja empenhado: contudo, entendemos que o legislador, neste contexto e partindo da
tendencial equiparação entre ambas as categorias, utilizou as expressões “garantias
reais” e “direitos reais de garantia” como sinónimos.1410
Assim sendo e como não podemos restringir a aplicação daqueles preceitos
legais aos direitos reais de garantia, sob pena de, entre outras consequências, não
aplicarmos o ao penhor de créditos do disposto no art.º 835.º (assim permitindo ao
credor pignoratício nomear à penhora qualquer bem do devedor, apesar de dispor de
uma preferência sobre um bem determinado) e, por outro, não impor a citação do seu
titular para reclamar créditos1411 quando ele dispõe de uma preferência sobre o bem
executado e, inequivocamente, pode reclamar o seu crédito.
no elenco dessa categoria determinadas garantias que não correspondem a um direito real de garantia,
mas não existe qualquer dúvida de que os dados jus-positivos do sub-sistema privatístico não exigem que
uma garantia tenha a natureza de direito real para constituir uma garantia real desde que se verifique
uma causa legítima de preferência”.
1409
No mesmo sentido, o já citado Neves de Oliveira, ult. ob. e loc. cit., refutando que a objecção
decorrente de a satisfação do credor pignoratício depender do património do terceiro devedor do crédito
empenhado, pois “a satisfação do direito de crédito do credor pignoratício nunca é realizada à custa do
património do terceiro devedor, não só porque a prestação devida por este constitui um bem que integra
acervo patrimonial do solvens (ou de um terceiro), mas também e sobretudo porque se houver
incumprimento do crédito garantido, a execução do crédito empenhado constitui execução de um bem
específico do património do devedor (ou de um terceiro)” e, ao invés, apontando exemplos da eficácia
erga omnes da preferência conferida pelo penhor de créditos, cujos expoentes máximos são a prioridade
face a outros penhores constituídos sobre o mesmo bem (art.º 685.º, n.º 3) e manutenção em caso de
cessão do crédito empenhado a terceiro (ou seja, consagrando, respectivamente, os atributos da
preferência e da sequela). O mesmo Autor vai mais longe e considera que, mesmo quem refute a
qualificação do penhor de créditos como garantia real, deverá, para efeitos adjectivos, incluí-lo em tal
categoria.
1410
No mesmo sentido, Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 77, nota 164.
1411
A este respeito, um argumento adicional pode ser chamado à colação e que se prende com a expressa
menção que é feita no art.º 864.º, n.º 4, à citação de créditos garantidos por privilégios creditórios gerais,
os quais são também geralmente considerados com exorbitando do âmbito dos direitos reais de garantia,
embora reentrando, salvo melhor juízo, na categoria das garantias reais (sobre este último aspecto, vide o
nosso Dos privilégios cit., pág. 435.
1412
Estes efeitos encontram-se regulados nas diversas legislações a respeito do penhor de coisas corpóreas
e, por isso, deles curaremos também com referência a esse objecto, sem prejuízo de, esporadicamente, nos
referirmos a outros penhores (nomeadamente ao penhor de créditos) cuja especificidade do objecto pode
conduzir a distorções dos efeitos normalmente associados à garantia pignoratícia. Porém, Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1508 e
1509, criticam o facto de o BGB regular os direitos e deveres decorrentes do contrato de penhor por
remissão para o credor pignoratício e o empenhante (partes no contrato de penhor), esquecendo o papel
do proprietário (quando este não seja o empenhante), especialmente relevante quando ocorra a
constituição a non domino da garantia (até porque existem certos de entre aqueles direitos e deveres que
pressupõem a efectiva entrega do bem).
367
Da constituição do penhor emerge uma relação bilateral entre o credor e o
devedor da obrigação garantida, relação essa que pode ser trilateral (no caso de a
garantia ser prestada por terceiro ou de a coisa onerada ser entregue a outrem para
custódia) ou quadrilateral (quando, além do credor e do devedor, intervenham na
relação pignoratícia um terceiro prestador do penhor e outro, distinto, encarregue da
guarda do bem onerado).
Desta relação brotam um conjunto de direitos e deveres para as partes, muito
embora a nossa lei (cfr. art.ºs 670.º e 671.º)1413 apenas enumere os direitos e deveres que
recaem sobre o credor pignoratício, provavelmente por ser em seu poder que o bem
empenhado permaneça.1414
1413
É certo que outros direitos e deveres que assistem ao credor pignoratício não encontram guarida
nestes preceitos, como sejam o direito aos frutos (art.º 672.º) ou, mais genericamente, os que resultam da
remissão para o regime da hipoteca (cfr. art.º 678.º). De modo não diverso, o CCB enumera, no art.º
1433.º, os direitos do credor pignoratício, quais sejam o direito à posse da coisa empenhada, à sua
retenção (até integral ressarcimento das despesas justificadamente realizadas e que não tenham sido
ocasionadas por factos imputáveis ao mesmo credor – Afonso Dionyiso da Gama, ob. cit., pág. 56,
considera como justificadas “todas aquellas que o credor demonstrar haver feito com a conservação,
guarda e defesa da coisa dada em penhor”), ao ressarcimento dos danos sofridos por vícios do mesmo
bem (apontando Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 344, como exemplo o de o rebanho do credor
pignoratício ser contaminado pelo gado recebido em penhor, desde que tal circunstância fosse conhecida
do empenhante), a promover a venda judicial (ou a venda particular, caso tal tenha sido convencionado ou
se o devedor lhe outorgar procuração nesse sentido), a apropriar-se dos frutos da coisa empenhada e a
promover a venda antecipada (mediante autorização judicial, em caso de fundado receio de perda ou
deterioração do bem onerado, salvo se o devedor substituir o bem empenhado ou oferecer outra garantia
idónea). Para um elenco dos principais direitos do credor pignoratício nos vários ordenamento, vide,
nomeadamente, os art.ºs 1866.º e segs. do CCE, 2343.º e segs. do CCF (posterior à reforma de 2006) e
2787.º e segs. do CCI.
1414
Montel, Pegno cit., pág. 783, assegura que outros direitos e obrigações poderão ser estabelecidos no
contrato que institui o penhor. Desde logo, a própria lei admite, em casos contados, que o seu regime
possa ser afastado por vontade das partes (veja-se, no nosso direito, a possibilidade de o empenhador
autorizar o credor pignoratício a usar o bem dado em garantia). Mas tais pactos serão admissíveis mesmo
em derrogação do regime legal, desde que não violem nenhuma proibição especificamente contida na lei
e não descaracterizem o instituto.
1415
No direito espanhol, o art.º 1869.º, n.º 2, do CCE atribui ao credor o direito de exercer as acções que
caibam ao proprietário da coisa para reclamá-la ou defendê-la contra terceiros: com base neste preceito,
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 80 e 81, entende que o credor pode socorrer-se, em nome
próprio – enquanto possuidor – de acções de manutenção e de defesa da posse, bem como de acções não
possessórias – como a de reivindicação - relacionadas com a titularidade do seu direito, com exclusão
apenas daquelas em que o reclamante respeite o direito real limitado do credor e discuta unicamente a
titularidade do bem onerado. No direito alemão, o §1226 do BGB remete, no que à protecção do credor
pignoratício diz respeito, para as normas relativas à defesa do direito de propriedade (por força desta
remissão, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit.,
pág. 1513, sustentam que ao credor pignoratício assistem as acções possessórias – inclusivamente contra
o proprietário – e a acção de reivindicação). No direito brasileiro e apesar da ausência de disposição
expressa, Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 360, atribui ao credor o direito de invocar a
protecção possessória e até de reivindicar o bem recebido em garantia.
1416
Nos penhores sem desapossamento, o direito de usar estas acções cabe exclusivamente ao devedor,
por ser em seu poder que o bem permanece, e não ao credor pignoratício, porquanto este não tem
qualquer tipo de posse (assim, Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 243). Contrariamente, Washington de
368
fazer em caso de inacção por parte do constituinte que possa por em causa a integridade
do bem onerado1417 e, por outro lado, se as exerce em nome próprio ou indirectamente
(em representação ou substituição do proprietário).1418
Tal discussão esvazia-se de alguma da sua importância, na medida em que a
legitimidade para utilizar tais acções é reconhecida ao credor pignoratício1419
independentemente da controvérsia acerca da qualificação da sua relação com o objecto
da sua garantia – possuidor ou mero detentor - isto é, ainda que se opte por esta segunda
hipótese, tal não inviabilizará o uso das acções possessórias por parte do credor
pignoratício.1420
O direito à posse do bem empenhado poderá ser considerado como uma
manifestação do carácter absoluto do penhor, na medida em que serve de fundamento a
que o credor pignoratício possa repelir a pretensão de qualquer sujeito destinada à
Barros Monteiro, ob. cit., pág. 361, entende que o credor, nos penhores sem desapossamento, mantém a
posse indirecta do bem empenhado (apoiando-se no art.º 1197.º do CCB, de acordo com o qual a posse
directa não afecta a subsistência da posse indirecta).
1417
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1887, entende que o credor não terá que aguardar por tal inacção do
constituinte.
1418
Defende a legitimidade directa do credor para o uso, quer das acções possessórias (nas quais defende
o seu próprio direito de posse), quer da reivindicação, Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2148,
escrevendo, relativamente a esta última, que “el acreedor pignoraticio está legitimado directamente para
invocar la condición de propietário del pignorante en la medida indispensable para acreditar la porpia
existencia del derecho de prenda”. Por seu turno Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs. 1887 e 1888 e
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 543, aludem à controvérsia acerca da atribuição destas acções ao
credor em nome próprio ou como mero sub-rogado do empenhante, optando ambos pela primeira
alternativa, porquanto as perturbações do direito do credor podem advir do comportamento do próprio
constituinte da garantia (o segundo dos Autores citados acrescenta, em abono da sua posição, que o
direito de reter o bem empenhado até integral pagamento propicia ao credor o poder de perseguir e
recuperar a coisa caso esta passe para o poder de terceiro, de modo que “no es que el acreedor use de las
acciones correspondientes al dueño, sino que le corresponden, por su derecho real, acciones de defensa
del mismo análogas a las que tendría el propietario” – procurando explicar a letra da lei com o desejo do
legislador “dando por presupuestas una serie de acciones que corresponden al acreedor por la propia
titularidad de su derecho, ha querido (…) reforzar con más vigor las acciones que le asisten, cuando
directamente se refieren a la defensa y protección de la cosa gravada, modelándolas sobre las que, en el
mismo supuesto, corresponden al propietario”- decorrendo a legitimidade para o uso das acções
possessórias directamente da sua qualidade de possuidor e, quanto às demais, maxime a acção
reivindicatória, “si un tercero reclama la cosa gravada con base en su presunta titularidad dominical, el
acreedor deberá limitarse a oponer estrictamente la existencia de su derecho de garantía y,
consecuentemente, su facultad legítima para retener la posesión de la cosa y no entregarla al
reclamante”), até porque as finalidades de qualquer destas acções podem não ser coincidentes (por
exemplo, se o empenhante – aproveitando uma devolução temporária do bem empenhado - aliena e
entrega o bem a terceiro, advertindo-o que a mesma se encontra onerada ou conhecendo este tal oneração:
em tal caso, o dono não beneficiará de nenhuma acção contra o adquirente, mas o mesmo não se poderá
dizer do credor pignoratício).
1419
No caso de penhor constituído mediante entrega a terceiro, este será o legitimado para exercer estas
acções – Rubino, Il pegno cit., pág. 278.
1420
Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 689, que reconhecem ao credor
pignoratício a possibilidade de se socorrer das acções possessórias, mesmo depois de qualificarem a sua
posição como mero detentor (em termos análogos, Almeida Costa, Direito das obrigações cit., pág. 928,
nota 1). Pelo contrário Paulo Cunha, ob. cit., pág. 207, Mirabelli, ob. cit., pág. 414 e Gorla e Zanelli, ob.
cit., pág. 96, sustentam ser o credor pignoratício possuidor e, por isso, lhe caberem, em nome próprio, as
acções possessórias de reintegração e manutenção (esclarecendo o primeiro que o uso de tais meios
resultam da sua posse pignoratícia e não da posse de proprietário de que, obviamente, não é titular o
credor pignoratício). Marc Billiau, ob. cit., pág. 21, apesar de considerar o credor pignoratício como
possuidor relativamente ao direito de penhor, enfatiza que, mesmo a qualificação como mero detentor não
afasta a protecção possessória, nomeadamente a que resulta do princípio da posse vale título.
369
entrega do bem empenhado, mesmo que oriunda do respectivo proprietário:1421 todavia,
tendo em conta a natureza temporária da posse pignoratícia, por ser temporário o direito
de penhor, a protecção possessória cessa com a extinção deste último.1422
O facto de o objecto da garantia se encontrar em poder do credor permite-lhe
evitar os actos de destruição do bem para que, uma vez chegado o momento de
execução do penhor, possa fazer valer o seu direito de preferência,1423 assim se
justificando a necessidade de manutenção da posse do bem empenhado e por isso se
compreendendo que lhe assista o direito de se defender contra as ingerências de
terceiros que prejudiquem ou comprometam a sua posse e, por arrastamento, a sua
garantia.1424
Contudo, este direito à posse não se confunde com o direito de retenção, por ser
diversa a função de ambos, caracterizando-se este último por ser um meio coercivo de
forçar o devedor a cumprir, enquanto o direito à posse se constitui uma condição da
manutenção do direito de penhor.1425
Questão diversa é a de saber se, nos penhores sem desapossamento, o credor
pode gozar de um direito de retenção fictício, o qual é reconhecido por alguns diplomas
legais de outros ordenamentos e, muito em particular, pelo novel direito francês das
garantias mobiliárias (art.º 2286.º, n.º 4, do CCF).1426
1421
Assim, Rubino, Il pegno cit., págs. 241 e 242, não sem dar conta de opiniões contrárias ao carácter
absoluto do penhor (e, por arrasto, à sua qualificação como direito real), considerando não existir um
mecanismo autónomo destinado a proteger o credor pignoratício em caso de danificação do bem
empenhado que lhe permita obter o ressarcimento por eventuais danos causados. O Autor citado rebate
esta argumentação, partindo da distinção entre os danos causados na coisa em si e os danos respeitantes à
garantia em si mesma considerada: o ressarcimento dos primeiros apenas compete ao proprietário,
porquanto o credor pignoratício não sofre um dano, pelo menos actual e directo (pois, das três uma, ou a
coisa, apesar de danificada, continua a ter um valor suficiente para garantir o crédito ou, caso contrário, o
credor poderá obter uma outra garantia idónea ou, por último e se tal não for possível, poderá exigir o
pagamento imediato da soma devida, se necessário for através das somas devidas ao seu devedor a título
de indemnização); quanto ao ressarcimento dos danos causados à garantia em si, o seu titular será o
credor pignoratício, muito embora o Autor duvide da existência de muitos casos em que tal pretensão
possa ser invocada (apontando como exemplos a apropriação dos frutos do bem empenhado por terceiro e
a hipótese em que um terceiro toma posse do bem empenhado, sem o danificar, impedindo que o credor
possa iniciar o processo executivo).
1422
Assim, em temos gerais para todos os direitos temporários, Manuel Rodrigues, ob. cit., págs. 330 e
331, afirmando ser este o caso da generalidade dos direitos limitados, rematando que “a posse directa ou
derivada é, por definição, conceitualmente temporária, porque se funda numa relação de direito
transitório”.
1423
Assim, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 107.
1424
Mas apenas se essas ingerências colocarem em risco o seu direito. De acordo com Montel, Pegno cit.,
pág. 784 e uma vez que qualquer ingerência que lese a detenção lesa necessariamente o penhor, mesmo
algumas que seriam irrelevantes relativamente a outras garantias que não pressuponham a detenção
material do bem, como a hipoteca, não o serão no que ao penhor diz respeito (concluindo, por isso, ser
mais amplo o conteúdo da relação pignoratícia, em comparação com a relação hipotecária).
1425
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 241, acrescentando que o direito de retenção apenas surge
quando o retentor já se encontre na posse do bem e seja titular de um crédito nascido por força dessa
retenção, requisitos estes que não têm necessariamente de concorrer para o nascimento do penhor. Em
termos concordantes, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 120 e 121.
1426
Todavia, este reconhecimento expresso apenas ocorreu com a uma lei de 4/8/2008, que acrescentou
uma alínea ao preceito em questão, na qual se faz alusão directa ao credor com penhor sem
desapossamento (Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 606). O direito de retenção pressupõe,
normalmente, uma detenção efectiva ou, quando muito, fictícia, o que não acontece no penhor sem
desapossamento. Contudo e segundo Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 375, não fora a atribuição deste
poder e o penhor sem desapossamento seria uma garantia pouco atractiva e, com a sua concessão, o
credor beneficiará de uma posição bastante favorável, maxime no âmbito dos processos insolvenciais, nos
quais pode recusar a entrega do bem enquanto não for satisfeito o seu crédito (mesmo fora deste
processos, a concessão de um direito de retenção permite igualmente ao credor recusar a entrega do bem
370
De entre as diversas acções possessórias, aquelas que sem dúvida assumem
maior relevância neste contexto são as de recuperação ou restituição da posse, muito
embora não seja de descartar liminarmente o recurso às acções de manutenção da
mesma (art.º 1278.º, n.º 1),1427 1428 sem prejuízo de um eventual direito de indemnização
pelos danos causados pelo terceiro (art.º 1284.º).1429
e, posteriormente, requerer a atribuição judicial do bem onerado: todavia, se o credor decidir promover a
venda, sujeitar-se-á ao concurso de credores). Realçam igualmente a eficácia quase absoluta deste direito
Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 545, assegurando que o mesmo pode ser oposto ao
adquirente do bem onerado, ao verdadeiro proprietário e aos outros credores do constituinte da garantia,
independentemente do grau de preferência de cada um deles (este últimos Autores, ob. cit., pág. 563,
embora com reticências, admitem a atribuição deste mesmo direito de retenção ao penhor de créditos,
sobretudo por força da circunstância de, após a notificação do devedor do crédito onerado, apenas o
credor pignoratício se encontrar legitimado para cobrar aquele crédito, pelo que poderá “bloquer les
droits du constituant et se trouve donc dans la situation d’un rétenteur”). O retentor pode, no entanto, ser
forçado a desapossar-se do bem retido em caso de processo de insolvência, passando o direito a incidir,
em caso de venda do bem por parte do liquidatário, sobre o preço e, por outro lado, o direito de retenção
faculta ao credor uma mera posição de espera, pelo que em caso de execução da garantia arrisca o
concurso de outros credores com preferências superiores, a não ser que opte pela atribuição judicial do
bem (Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., págs. 241 e 242). Contesta esta opção do legislador, Théry,
ob. cit., págs. 320 e 321, sustentando que o direito de retenção pressupõe uma relação material com o bem
retido, pelo que apenas poderá ser atribuído, no caso do penhor, quando o bem onerado esteja em poder
do credor ou, quando muito, de um terceiro designado pelas partes).
1427
Entre nós, estas acções compreendem, as acções de prevenção, manutenção e restituição da posse (cfr.
art.ºs 1276.º a 1286.º), parecendo ser a última a mais apropriada para defender a posição do credor
pignoratício desapossado (muito embora no Acórdão da Relação de Lisboa de 21/1/1997, in www.dgsi.pt,
se estabeleça que a acção de restituição da posse não poderá ser intentada contra quem esteja na posse de
boa fé da coisa, cabendo, por isso, ao autor alegar que aquele que detém a coisa tem conhecimento do
esbulho), uma vez que, conforme realça Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 319, a acção de manutenção é
indicada para os casos em que, tendo havido perturbação da posse, não tenha existido esbulho (Manuel
Rodrigues, ob. cit., pág. 363, entende haver esbulho “sempre que alguém for privado do exercício da
retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar”; Durval Ferreira, ob. cit.,
pág. 363 e segs., escreve que o esbulho “supõe a privação total ou parcial da posse. O anterior possuidor
é desapossado, não sendo todavia essencial que o autor do esbulho se apodere da coisa” ou melhor,
existe esbulho “se um terceiro adquire, por acto unilateral e originário, para si ou para outrem, uma
situação de posse contraditória (total ou parcialmente) com a primeira. E, corresponde-lhe a acção de
restituição”, distinguindo-o da simples turbação do seguinte modo: “há turbação se o possuidor, embora
ofendido na sua posse, não foi privado da retenção ou fruição: há esbulho no caso contrário”),
consistindo o pedido no reconhecimento da posse do autor e na cessação dos actos que a perturbam,
enquanto a acção de restituição “está reservada para os casos em que a violação da posse se traduz na
sua privação, ou seja, quando há esbulho, independentemente de este ser violento ou não”: noutros
termos, “na manutenção, não chega a haver desapossamento, ao contrário da restituição: o perturbador
dificulta o exercício do direito, mas não o impede” – Menezes Cordeiro, A posse cit., pág. 146 (todavia e
em razão da fronteira entre a perturbação e o esbulho, o art.º 661.º, n.º 3, do CPC, determina que se tiver
sido requerida a manutenção em lugar da restituição da posse, ou esta em vez daquela, o juiz conhecerá
do pedido correspondente à situação realmente verificada, prosseguindo a acção e condenando o juiz de
acordo com a situação realmente verificada. Parece, todavia, que as acções possessórias de manutenção e
restituição não poderão ser invocadas perante actos de natureza jurídica, uma vez que “se para existir
esbulho se pressupõe uma aquisição de posse pelo terceiro, esta por sua vez pressuporá um acto material
(corpus)” – Durval Ferreira, ob. cit., pág. 375. Em face do direito italiano Rubino, Il pegno cit., pág. 278,
sustenta que as únicas acções de defesa da posse invocáveis pelo credor pignoratício são as de
recuperação da posse, uma vez que as de simples manutenção não permitirão que o bem retorne para as
mãos do credor. Estas acções de recuperação da posse, prossegue o mesmo Autor, podendo ser exercidas
mesmo contra o proprietário constituinte da garantia (no caso de ter sido este a recuperar a posse da
coisa), nem afastam a possibilidade de o credor intentar uma acção contratual contra aquele, a qual possui
prazos mais dilatados (além de poder ser intentada mesmo quando o credor prove que tenha devolvido a
coisa ao constituinte temporariamente e sem renunciar ao penhor) - em termos análogos Realmonte, Il
pegno cit., págs. 663 e 664.
371
Todavia, o recurso a este tipo de acções pressupõe a não verificação do prazo de
caducidade de um ano, contado da data do facto da turbação ou do esbulho ou, quando
tenha sido praticado a ocultas, do conhecimento dele por parte do possuidor (art.º
1282.º).1430
Entre nós, para além das acções possessórias - que processualmente assumem a
configuração de verdadeiras acções declarativas de condenação - está facultado ao
credor pignoratício o recurso às providências cautelares,1431 designadamente à
restituição provisória da posse em caso de esbulho violento (art.º 1279.º e art.º 339.º do
CPC),1432 bem como de deduzir embargos de terceiro em caso de penhora ou de outro
acto de apreensão judicial do bem por ele possuído (art.º 1285.º).1433
Apesar de o regime luso do penhor, ao contrário de outros – vide, por exemplo,
o direito italiano, no qual é expressamente atribuída ao credor pignoratício tal
possibilidade, caso dela goze o empenhante (cfr. art.º 2789.º do CCI),1434 - não atribuir
1428
No caso de o bem empenhado se encontrar sob custódia de um terceiro, Barbara Cusato, ob. cit., pág.
246, sustenta que a restituição pode ser exigida através de uma acção contratual de depósito (se o
empenhador e o credor participaram na celebração do contrato de depósito, o depositário deverá restituir a
coisa com o consentimento de ambos).
1429
Porém, Durval Ferreira, ob. cit., pág. 378 e segs, ressalva que o possuidor não terá direito a
indemnização pelo valor da coisa possuída se esta vem a perder-se ou é destruída (salvo quanto ao
momento que medeia entre a turbação e aquela perda ou destruição), pois se a causa da protecção é a
posse, esta já havia cessado no momento daquela perda ou destruição: todavia, tal não invalida a
possibilidade de reclamar uma indemnização com fundamento no direito real – in casu, o penhor – que
sustentava aquela posse.
1430
A ratio legis deste preceito decorre do facto de, após o decurso do prazo de um ano, o possuidor
perder retroactivamente a sua posse, passando o esbulhador a ser reconhecido por lei como possuidor
(art.º 1267.º, n.º 1, alínea d)): por esta razão, a caducidade da acção de restituição determina o mesmo
efeito relativamente a uma eventual acção na qual se pretendesse fazer valer o direito a uma
indemnização pelos danos causados, porquanto o anterior possuidor já o não é (e não o será porque a
acção de restituição já caducou), pelo que não preenche os requisitos de que o art.º 1284.º faz depender o
direito ao ressarcimento dos danos – Durval Ferreira, ob. cit., págs. 405 e 412. Advogando que a
providência cautelar de restituição provisória da posse não suspende este prazo, uma vez que tal efeito
apenas se produz com as acções possessórias propriamente ditas (de prevenção, manutenção ou
restituição), Menezes Cordeiro, A posse cit., pág. 144.
1431
No Acórdão da Relação de Lisboa de 9/2/1994, in www.dgsi.pt, admite-se o recurso a uma
providência cautelar não especificada, solução esta consagrada, desde a reforma do CPC de 1995, no art.º
395.º do CPC, no qual se esclarece que tal meio processual pode ser usado pelo possuidor esbulhado ou
perturbado no seu direito, mesmo que não se verifiquem os pressupostos que legitimam o recurso à
restituição provisória da posse (art.º 393.º do mesmo Código).
1432
Vide Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 318 e, quanto ao recurso à providência cautelar de restituição
provisória da posse, o Acórdão da Relação de Lisboa de 6/4/2000, in BMJ n.º 496, pág. 304). Manuel
Rodrigues, ob. cit., págs. 365 e 366, entende que a violência tanto pode ser exercida sobre o possuidor,
como sobre os objectos possuídos (e mesmo contra outros que constituam um obstáculo ao esbulho) e,
noutro plano, que tanto pode consistir no emprego da força física, como em ameaças (o que, aliás, vai de
encontro à noção de posse violenta vertida no n.º 2 do art.º 1261.º, o qual alude não apenas ao uso da
coação física, mas também da moral). Este procedimento assume uma natureza simultaneamente
declarativa e executiva, efectivando-se autonomamente (sem necessidade de posterior execução e, por
isso, não originando o nascimento de um título executivo), dispensando mesmo a audiência do esbulhador
- Menezes Cordeiro, A posse cit., págs. 143 e 144 e Durval Ferreira, ob. cit., págs. 416 e 417 -, o que, na
óptica do último Autor citado, implica também que aquela não possa apresentar requerimentos ou juntar
documentos.
1433
Durval Ferreira, ob. cit., pág. 435 e segs., coloca em evidência como este incidente tem uma natureza
simultaneamente cautelar (na sua fase introdutória, de recebimento ou rejeição dos embargos) e
possessória, não obstando a sua rejeição à propositura, por parte do embargante, de uma acção autónoma
(quer declarativa do seu direito, quer de reivindicação, quer possessória propriamente dita).
1434
Esta última restrição implica que a acção de reivindicação não possa ser exercida quando o alienante
tenha sido o constituinte da garantia, mas apenas contra o terceiro nomeado depositário do bem
empenhado que a tenha alienado e contra os casos de perda da posse em geral, em especial o esbulho
372
especificamente ao titular do penhor a faculdade de se socorrer de uma acção de
reivindicação, a mesma deve-lhe ser atribuída enquanto titular de um direito real (cfr.
art.º 1315.º).1435
Com efeito, sendo o credor pignoratício titular de um ius in re, tem a faculdade
de o fazer valer contra quaisquer terceiros que o ofendam,1436 invocando o chamado
direito de sequela,1437 gozando, por isso, de legitimidade para interpor uma acção de
violento (excepto se este for cometido pelo concedente, caso em que o credor apenas poderá recorrer às
acções possessórias ou contratuais) ou de perda, sem prejuízo do recurso às acções possessórias – (cfr.
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 99 e Rubino, Il pegno cit., pág. 279). No entanto, Rubino, Il pegno cit., pág.
278, assevera não estarmos perante um caso de sub-rogação, mas antes perante uma autorização legal
para o exercício de um direito alheio, intentando o credor pignoratício uma acção com base no seu direito
de penhor e não por força do seu crédito (como se comprova pela circunstância de a norma ser aplicável
mesmo que o penhor tenha sido prestado por terceiro e mesmo que o bem tenha sido adquirido por
terceiro, desde que nenhum destes dois sujeitos seja devedor do credor pignoratício). Também em face do
direito espanhol Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 290, sustenta que a acção de reivindicação é
exercida pelo credor pignoratício em nome próprio, isto é, “estas acciones son preprias del acreedor
pignoratício (...) porque la prenda es un derecho real” e, em termos coincidentes. López, Montés e Roca,
ob. cit., pág. 444, assegurando que o credor pignoratício pode lançar mão de todas as acções destinadas à
reclamar ou a defender a sua posse, incluída a acção de reivindicação. No direito brasileiro e apesar do
silêncio legislativo, Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 83 e segs., sugere que o credor pignoratício,
além das acções de restituição e manutenção da posse, poderá socorrer-se da acção de execução da
garantia (em caso de não pagamento da obrigação garantida na respectiva data de vencimento) e à acção
pignoratícia contrária (para, deste modo, reaver o penhor – caso este tenha sido retirado das suas mãos –
ou exigir o seu reforço, ou ainda para ser reembolsado das despesas efectuadas no bem objecto da
garantia ou do prejuízo sofrido pelos vícios de que o mesmo bem fosse portador). Admitindo a existência
de tal direito mesmo na ausência de norma expressa a consagrá-lo, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial
cit., pág. 277.
1435
Neste sentido, por todos, Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 271.
1436
Naturalmente, apenas poderá invocar este direito o credor pignoratício que não se tenha desapossado
voluntariamente do bem empenhado pois, se assim for, o penhor extingue-se (Cabrillac e Mouly, Droit
des sûretés cit., pág. 542, concluindo que o credor apenas poderá exercer o direito de sequela em caso de
furto ou de perda do bem) – sobre esta causa de extinção do penhor, vide n.º 10.2 do Capítulo I.
1437
Porquanto esta permite aos terceiros de boa fé que tenham adquirido a posse do bem empenhado
opor-se, com sucesso, à acção de reivindicação interposta pelo credor pignoratício (assim expressamente
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1888), ou seja, a reivindicação só é possível contra um possuidor de má
fé (no caso do direito francês, a reivindicação é também possível, em caso de perda ou furto do bem,
contra um possuidor de boa fé – art.º 2279.º, n.º 2 – excepto se este houver adquirido a coisa furtada ou
perdida numa feira, num mercado ou numa venda pública, caso em que o reivindicante apenas logrará os
seus intentos se reembolsar o actual possuidor do preço por este pago pelo bem – art.º 2280.º). De acordo
com Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 277 e 278, por “perda” deverá entender-se um
desapossamento imputável a negligência do proprietário, a um facto de terceiro ou a um caso de força
maior, ao passo o “furto” designará subtracção fraudulenta da coisa de outrem, isto é, contra a vontade do
seu proprietário (no entanto, o mesmo Autor julga ser necessário distinguir consoante a reivindicação seja
dirigida contra quem tenha furtado ou achado a coisa, por um lado, ou o seu sub-adquirente: no primeiro
caso, o possuidor não poderá ser considerado de boa fé e, por isso, a reivindicação apenas prescreverá no
prazo ordinário e surtirá o efeito desejado; no segundo, o possuidor estará de boa fé, podendo a
reivindicação ser exercida no prazo de 3 anos do art.º 2279.º, n.º 2, com a possibilidade de o possuidor
invocar em seu benefício o art.º 2280.º - no mesmo sentido, Weil, ob. cit., págs. 92 e 93). Todavia,
mesmo nestes ordenamentos e como bem salienta Rojo Ajuria, Las garantias mobiliarias (fundamentos
del derecho de garantias mobiliarias a luz de la experiencia de los Estados Unidos de América), in
Anuario de Derecho Civil, n.º 42 (1989), pág. 782, a protecção do terceiro adquirente de boa fé não
elimina o direito de sequela, ou seja, “El quid iuris está entonces en discriminar al adquiriente de buena
fede del adquiriente de mala fede, pero la reipersecutoriedad existe”, de modo que “quien adquire dentro
del tráfico ordinario de bienes, con buena fe, adquiere un bien libre de cargas” (só não sendo assim
quando seja instituído um registo como substituto da publicidade possessória e esse registo seja de acesso
público, de modo a que todos os potenciais interessados se possam inteirar dos ónus que impendem sobre
os bens do devedor).
373
reivindicação,1438 cuja procedência nem sequer se encontra condicionada pela regra da
posse vale título, a qual não obteve consagração legal no ordenamento luso.1439
Ou seja, apesar de a nossa lei não atribuir ao titular de um penhor nenhuma
tutela não possessória autónoma para defesa do seu direito real – a chamada acção
pignoratícia1440 -, tal desiderato, conjuntamente com a devolução do bem onerado ao
credor pignoratício, pode ser alcançado por via da acção de reivindicação,1441 pelo que o
significado a atribuir ao art.º 670.º, alínea a), é o de, além da reivindicação, facultar ao
credor o uso das acções possessórias.1442
De facto, com a acção de reivindicação, para além do reconhecimento do seu
direito real, o credor peticiona a restituição da coisa reivindicada,1443 pelo que a
procedência do primeiro pedido implica a recuperação da posse sobre o bem onerado, a
fim de permitir a reconstituição do direito de penhor (devendo, para o efeito, o credor
provar que o bem lhe havia sido entregue a título de penhor).1444
Em termos adjectivos e conforme salientado anteriormente,1445 à acção de
reivindicação não corresponde qualquer meio processual específico, devendo esta seguir
a forma de uma acção declarativa comum, consoante os casos ordinária, sumária ou
sumaríssima (cfr. art.º 462.º do CPC).
Para além das acções possessórias e da acção de reivindicação, poder-se-á
admitir que o credor pignoratício goza ainda de uma acção contratual destinada a obter
novamente a entrega do bem empenhado, sempre que este tenha regressado ao poder do
constituinte, sem que tenha havido renúncia ao penhor. 1446
Este direito de exigir a entrega ou devolução do bem abrange, especialmente
quando o penhor seja munido de um pacto antricrético, igualmente o poder de reclamar
1438
Negando, pelo contrário, que o credor pignoratício disponha de uma acção de reivindicação, Hugo
Ramos Alves, ob. cit., pág. 121 (exceptuando apenas o caso dos frutos quando, por força de um pacto
anticrético, estes pertençam ao credor pignoratício).
1439
Théry, ob. cit., pág. 327, destaca como, tratando-se de bens corpóreos (uma vez que a regra não se
aplica aos bens incorpóreos, podendo a oponibilidade da garantia ser assegurada pela notificação ao
devedor ou através de outro mecanismo publicitário), o direito de sequela nos penhores sem
desapossamento enfrenta esse obstáculo insuperável e, nos penhores sem desapossamento, apenas existirá
quando expressamente previsto na lei (sendo que, quando se institua um mecanismo publicitário
alternativo ao desapossamento – v.g., um registo – este, por si só, não permitirá afastar a regra da posse
vale título, mas apenas implicando a má fé dos terceiros adquirentes).
1440
Nega a atribuição de tal acção ao credor pignoratício no direito italiano, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág.
97, (afirmando que o penhor não confere, por si só, qualquer a acção petitória da posse a fim de
reconstituir o penhor) e Rubino, Il pegno cit., pág. 279, considerando que a ausência de qualquer acção
baseada exclusivamente no direito real de penhor se justifica por força da possibilidade, nos termos acima
expostos, de o credor pignoratício se poder socorrer da acção de reivindicação pertencente ao proprietário
(contudo, da ausência de tal acção pignoratícia não é legítimo inferir a não qualificação do penhor como
direito real, porquanto, tendo-se extinto o penhor em razão da perda da posse por parte do credor
pignoratício, inútil se afigurava aquela acção).
1441
Em sentido inverso Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 155 e 156, sustentava a
desnecessidade de atribuir ao credor pignoratício uma acção de reivindicação, uma vez que ele gozaria,
em nome próprio, da acção pignoratícia (simplesmente, quando o bem empenhado pertença a pessoa
diferente do empenhador e o credor exerça contra ele a acção pignoratícia, este pode opor-lhe o seu
direito de propriedade).
1442
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 155.
1443
Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 271 e Vaz Serra, ob. cit., pág. 156 (este último acrescentando que
esta mesma acção serve como fundamento para exigir o afastamento de lesões de outra natureza e, em
caso de receio de lesões futuras, exigir que elas não se venham a verificar).
1444
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 98.
1445
Cfr. supra n.º 2 do Capítulo I.
1446
Rubino, Il pegno cit., pág. 279.
374
os proveitos da coisa empenhada,1447 bem como a indemnização pelos danos causados
ao bem empenhado.1448
Uma vez exigida, por parte do credor, a entrega da coisa empenhada, o
possuidor poderá legitimamente opor-se a tal pretensão, sempre que a sua posse se
funde num título oponível àquele, como sucederá quando estiver munido de um direito
de retenção para pagamento das benfeitorias por si realizadas no referido bem (art.º
754.º), sendo mais duvidoso que tal direito possa ser invocado quando o retentor for o
proprietário do bem empenhado, o devedor pignoratício ou o empenhante.1449
Saliente-se, todavia, que o exercício destas acções por parte do credor
pignoratício constitui uma mera faculdade e não um dever, se bem que, ao menos em
certos casos, do seu não exercício possam resultar algumas consequências.1450
Porém e pese embora a panóplia de mecanismos de protecção do seu direito,
nem sempre ao credor será possível recuperar a posse do bem empenhado,
nomeadamente se considerarmos que as acções destinadas a obter a restituição da quid
onerado (em especial a acção de reivindicação) não são invocáveis em caso de perda da
posse, precisamente porque essa perda pode fazer extinguir o direito real de penhor.1451
1447
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 156, distinguindo consoante o penhor seja com ou sem
anticrese: no primeiro caso, o credor pignoratício poderá reivindicar os frutos percebidos pelo possuidor
de má fé (desde que não consumidos e ainda existentes); no segundo, poderá exigir igualmente a entrega
dos frutos (ou uma indemnização correspondente), não a título de posse em nome próprio, mas antes em
posse a título de penhor.
1448
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 157, mas limitando a medida desse direito ao seu interesse
como credor pignoratício.
1449
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 157, depois de dar conta que a solução do direito alemão é
a de negar a indemnização pelas benfeitorias (e o correspondente direito de retenção) aos sujeitos
mencionados no texto, contesta-a, argumentando que o proprietário (desde que não seja estranho ao
penhor, pois, nesse caso, o credor nem sequer lhe poderá exigir a entrega) terá direito à indemnização na
medida em que as despesas excedam a medida do seu consentimento para o penhor; que o devedor, pelo
simples facto de o ser, não deverá ser privado do direito a essas despesas (ao menos desde que o penhor
ou tais despesas sejam alheias à sua obrigação); e relativamente ao empenhador, este não deve ter direito
à indemnização das benfeitorias úteis (pois sabia – ou devia saber – que a coisa deveria ser entregue ao
credor e ter a obrigação contratual de o fazer, não podendo, por isso, recusar tal comportamento
invocando as despesas efectuadas), mas sim das necessárias a que não pudesse considerar-se obrigado
para com o credor.
1450
Assim Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 100 (sugerindo que, em caso de inacção por parte do credor
pignoratício, este deve informar o constituinte da perda da posse, mesmo que esta não tenha resultado de
culpa sua), Rubino, Il pegno cit., pág. 282 (assegurando que tal suposta obrigação de interpor tais acções
não se inclui no dever de custódia que impende sobre o credor), Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág.
546 (admitindo mesmo que se a perda do bem se dever ao não exercício tempestivo, por parte do credor,
das acções que lhe compitam, deverá responder pelos prejuízos causados ao constituinte, sempre que se
possa considerar negligente a conduta do credor) e, entre nós, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob.
cit., pág. 173 (admitindo também a obrigação de o credor pignoratício, no caso não agir, comunicar ao
proprietário do bem a ocorrência, apontando como exemplo o do esbulho). Contra, Realmonte, Il pegno
cit., pág. 664, assegurando que o exercício destas acções constitui um ónus para o credor pignoratício
(concordando que, caso não deseje agir, deverá informar tempestivamente o concedente da perda da
posse).
1451
Posição defendida por Rubino, Il pegno cit., pág. 279, com base na qual se podem identificar pelo
menos três situações em que o credor pignoratício ficará desprotegido. A primeira ocorrerá quando,
durante o desapossamento do credor ocorrido sem esbulho, a coisa seja alienada pelo proprietário a um
terceiro que tenha obtido a posse do bem (uma vez que não se verificam os requisitos da acção de
restituição da posse e a acção contratual não ser proponível em virtude do facto de a coisa não se
encontrar em poder do constituinte); a segunda quando, durante o desapossamento violento do credor, a
coisa seja alienada pelo proprietário a um terceiro e este tenha obtido a respectiva posse, desde que o
terceiro desconhecesse o esbulho (pelas mesmas razões da hipótese anterior); a terceira, sempre que o
proprietário crie uma nova relação obrigatória relativa à coisa com um terceiro que tenha obtido a posse
do bem, desde que o terceiro desconheça o eventual esbulho (no caso de terceiro ainda não ter sido
375
Como melhor se verá aquando da análise das causas de extinção do penhor, é
discutível, por um lado, se qualquer perda da posse origina a extinção do direito real de
penhor e, por outro, se, ocorrendo a perda da posse da coisa empenhada por parte do
credor, mas, por força do exercício de acções legais para a reaver, este a vier a ser
recuperada, se produziu a extinção do penhor originário ou se, ao invés, o mesmo
poderá renascer automaticamente aquando daquela recuperação.1452
Cabe realçar, noutro plano, que não obstante o credor se encontrar em poder do
bem objecto da sua garantia e dado que a sua posse se restringe ao direito de penhor,
não poderá, conforme anteriormente salientado, adquirir a propriedade de tal bem por
usucapião, pelo menos enquanto não se verificar uma alteração do título de posse.1453
Dúvidas surgem a respeito dos bens não susceptíveis de posse, nomeadamente
em todos os casos em que o desapossamento do constituinte da garantia é substituído
por outro mecanismo alternativo que não implique a transferência da posse,1454 bem
como no domínio específico do penhor de créditos:1455 as interrogações advêm da
própria noção de posse e, ainda, da controvérsia acerca da natureza real de um penhor
que incida sobre direitos ou créditos, a qual poderá comprometer o recurso à acção de
reivindicação.
investido na posse do bem e esta permanecer em poder do seu proprietário, prevalecerá o direito do
credor ou do terceiro, em função da prioridade temporal da propositura da acção judicial de entrega do
bem).
1452
Sobre este assunto, vide infra n.º 10.2 do Capítulo I.
1453
Acerca deste pretenso modo de aquisição do penhor, vide supra n.º 2 do Capítulo I. Neste sentido,
Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 242 e 243, complementando que, se o penhor houver sido constituído por
um não proprietário, será em benefício deste que se dará a prescrição aquisitiva.
1454
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 290 e 291, dá como exemplo o penhor de valores
mobiliários escriturais, para cuja constituição se requer a inscrição no registo deste tipo de bens, razão
pela qual não se poderá o credor pignoratício fazer valer das acções possessórias (e, por outro lado, as
possibilidades de utilizar frutuosamente a acção de reivindicação serão bastante diminutas – tendo em
conta a protecção dada ao terceiro adquirente de boa fé – restando a responsabilidade quase objectiva das
entidades gestoras do sistema por erros relacionados com a inscrição da garantia).
1455
Garcia Vicente, La prenda cit., pág. 130 e segs., entende que, no penhor de créditos, a eficácia da
garantia se manifesta em caso de embargo ou penhora sobre o crédito onerado (desde que a constituição
da garantia seja anterior a qualquer destas duas apreensões) e na faculdade de oposição ao exercício de
direitos que comprometam a garantia (por exemplo, a compensação entre um crédito do empenhante e
outro do devedor do crédito empenhado), sendo, porém, discutível qual o meio processual idóneo para
exercer tais poderes, se a “tercería de domínio” (apenas exercitável por parte do dono do bem embargado
e por aqueles que sejam titulares de direitos que, por disposição legal expressa, possam opor-se ao
embargo ou à execução forçosa de um ou vários bens pertencentes ao executado) se a “tercería de mejor
derecho” (por não se enquadrar a situação do credor com penhor sobre um crédito na hipótese anterior) –
sendo que a primeira conduz o levantamento do embargo, enquanto a segunda determina o
prosseguimento da execução, estabelecendo-se uma escala de preferência entre os direitos dos diversos
credores com garantias sobre os mesmos bens - optando pela segunda alternativa, uma vez que o credor
pignoratício não adquire a propriedade do bem onerado, muito embora admita que este mecanismo é
eficaz quando o crédito garantido já se encontra vencido, mas poderá não o ser na hipótese inversa
(embora o Autor cite jurisprudência reconhecendo o direito do credor invocar esta figura ainda que o seu
crédito não se encontre vencido – à qual adere, porquanto “la preferencia o prioridad temporal del
crédito garantizado con prenda depende del tiempo de su constitución (o, mejor, desde que tal fecha
fuera oponible a terceros) y no del tiempo del vencimiento” – procedendo-se à execução do crédito
empenhado, o qual será depositado e apenas será entregue ao credor pignoratício no momento do
vencimento da obrigação garantida). Na eventualidade de o penhor ter sido prestado por terceiro e este
sofre a execução do bem (ou pretende evitá-la, pagando o crédito garantido), sub-roga-se na posição do
credor pignoratício face ao devedor, devendo ser tratado como um credor preferente. Entre nós e na
medida em que o art.º 670.º a), não excepciona o penhor de créditos, a aplicação desta norma parece
decorrer da remissão genérica para o regime do penhor de coisas contida no art.º 679.º do mesmo Código.
376
Ainda assim e em termos perfunctórios, ousamos afirmar que nos penhores sem
desapossamento, a tutela do credor e a publicidade da garantia atingem-se por meios
alternativos, normalmente o registo, pelo que o recurso à tutela possessória não se
afigura substancialmente relevante, já o podendo ser a invocação da acção
reivindicativa, a qual, porém, depende da qualificação como real do objecto do penhor e
da ausência de excepções ao direito de sequela.1456
Já no penhor de créditos, a tutela do quid onerado é assegurada de uma forma
muito própria, atendendo à especificidade do objecto da garantia, quer no momento da
constituição, quer no da execução da mesma.1457
Outro direito conferido por lei ao credor pignoratício é o de ser indemnizado das
benfeitorias1458 necessárias e úteis, bem como de levantar estas últimas (art.º 670.º,
alínea b)),1459 podendo mesmo equacionar-se se terá igualmente direito a ser ressarcido
dos eventuais danos resultantes da detenção da coisa.1460
1456
Como sucede no caso dos valores mobiliários escriturais, por força da regra segundo a qual a falta de
legitimidade do empenhante não é oponível ao credor pignoratício de boa fé, desde que a constituição do
penhor se ache registada (art.º 58.º, n.ºs 1 e 2).
1457
Acerca da tutela do credor pignoratício no penhor de créditos, vide supra n.ºs 5.2 e 8.3 do Capítulo I.
1458
Nos penhores sem desapossamento, Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 493 e 494, entende não haver
lugar à indemnização do constituinte que tenha permanecido em poder do bem onerado, quer pelo facto
de o credor interesse – enquanto proprietário – na conservação do bem, quer para facilitar o recurso a este
tipo de garantias.
1459
Em termos mais parcos, o art.º 2790.º, n.º 2, do CCI dispõe simplesmente que o constituinte deve
indemnizar o credor pignoratício pelas despesas de conservação do bem empenhado, ao passo que o
§1216 do BGB confere ao credor o direito de ser indemnizado pelas benfeitorias efectuadas, nos termos
previstos para a representação sem mandato e, por força desta remissão, Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1516, entendem que apenas serão
indemnizáveis os danos os gastos que correspondam à vontade presumível do empenhante o que tenham
sido objecto de ratificação (todavia, este direito – assim como o direito de indemnização do empenhador
relativo a alterações ou deteriorações no bem empenhado – prescreve, de acordo com o §1226, no prazo
de 6 meses), enquanto o art.º 2080.º, n.º 2, do CCF (anterior à reforma de 2006), estabelecia que o
devedor deveria indemnizar o credor pelo valor das despesas úteis e necessárias por este efectuadas para a
conservação do bem empenhado. Com base neste último preceito, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial
cit., pág. 265 e Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 140 a 142, sugeriam estarem excluídas do seu âmbito
as despesas voluptuárias e mesmo as de simples melhoramentos, estando apenas incluídas as de
conservação (mas não sem que este último reconheça, no caso da introdução de melhoramentos, que o
credor poderá, por força das regras do direito comum e em particular do enriquecimento sem causa, obter
uma indemnização pelo seu valor, nomeadamente quando essas despesas tenham tornado o bem mais
cómodo e mais rentável para o devedor, sem alterar o seu destino), enquanto Guillouard, ob. cit., págs.
176 e 177, considera serem indemnizáveis as despesas necessárias e as úteis, muito embora os direitos do
credor pignoratício sejam diversos em cada um dos casos (quanto às primeiras, goza de um privilégio
creditório para a sua recuperação, mas para as segundas só usufruirá de um direito de retenção; o valor a
pagar pelas necessárias será equivalente ao valor total delas, ao passo que pelas despesas úteis a
indemnização será limitada ao montante das mais valias introduzidas no bem; relativamente a estas
últimas, se elas forem excessivas relativamente à situação económica do devedor, este apenas deverá
reembolsá-las na medida em que tal situação o permita). Já Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 109 e
Weil, ob. cit., pág. 100, sustentam ser integralmente indemnizáveis as despesas necessárias, enquanto as
úteis apenas o serão sob condição de terem melhorado o objecto do penhor e somente até ao limite das
mais valias que se tenham produzido e desde que não tenham sido efectuadas de modo a tornar
impossível o exercício, pelo empenhador, o direito de restituição. A este propósito, é explícito o art.º
1867.º do CCE, ao determinar que ao credor assiste o direito de ser ressarcido dos gastos originados pelo
dever de conservação do bem, preceito este interpretado por Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1885, no
sentido de desta norma resultar a impossibilidade de o credor justificar o incumprimento do dever de
conservação com a necessidade de antecipar quantias para esse efeito – quando o devedor o não faça –
377
Parece, porém, que o direito a este reembolso deverá ser condicionado à
permanência dos melhoramentos no momento da restituição do bem empenhado ao seu
proprietário ou no momento da execução da garantia, devendo a avaliação do respectivo
valor ser efectuada nesse mesmo momento.1461
Por outro lado, o âmbito deste direito do credor encontra-se limitado às despesas
relacionadas com o bem empenhado,1462 excluindo-se, por isso, uma eventual
compensação pelo desempenho das funções de conservação.1463
Na óptica do devedor e enraizando este direito do credor numa manifestação do
enriquecimento sem causa, o limite do reembolso será o do enriquecimento do
constituinte da garantia.1464
No entanto, da remissão do art.º 670.º alínea b) para o art.º 1273.º resulta que,
quanto às benfeitorias necessárias, há sempre lugar a indemnização, mesmo que o
credor esteja de má fé,1465 enquanto relativamente às úteis apenas se lhe atribui o direito
de as levantar, desde que tal possa ocorrer sem detrimento da coisa (quando tal
levantamento não possa ocorrer, haverá lugar a indemnização).1466
A solução preconizada pela lei encontra uma diversa fundamentação no que
concerne às benfeitorias necessárias – a obrigação de conservação da coisa empenhada a
que se encontra adstrito o credor pignoratício e do interesse nessa conservação como
(pois, “si bien de modo expreso el CC no impone la obligación de anticipar los desembolsos precisos
para la conservación de la cosa, implícitamente se le obliga a ello al concederle el derecho de
resarcimiento”, considerando-se incumprida a obrigação de conservação em caso de não realização das
despesas necessárias para o efeito) e assinalando que, tendo em conta a impossibilidade do credor usar o
bem empenhado e o dever de restituição ao devedor, “los únicos gastos que son los necesarios para tal
conservación; por tanto las mejoras útiles y las de ornato o recero que efectée el detentador de la cosa
no están incluidas en el derecho atribuido en este precepto, pues las mismas no influyen para nada en la
efectividad del cumplimiento de la obligación de conservación”. Já Guillarte Zapatero, Comentario cit.,
págs. 534 e 535, entende que a norma restringe o direito do credor ao reembolso das despesas necessárias,
excluindo as úteis (embora ressalve que alguns Autores defendem o ressarcimento também destas).
1460
Em sentido afirmativo, Rubino, Il pegno cit., pág. 247 e Guillouard, ob. cit., pág. 178. Contra, para o
direito espanhol, Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 535 e 536, alegando que, ao contrário do
contrato de depósito (no qual a lei estabelece expressamente o reembolso de todos os gastos do
depositário com o bem recebido), no contrato de penhor a detenção é realizada no interesse comum de
ambas as partes, pelo que se impõe a não indemnização dos danos sofridos pelo credor detentor
originados por essa mesma detenção do bem (excepto quando tais danos resultam de responsabilidade do
empenhante, caso em que tal indemnização poderá ser-lhe exigida).
1461
Rubino, Il pegno cit., pág. 246.
1462
Faggella, ob. cit., pág. 116, sugere, porém, que o credor não se encontra obrigado a efectuar
pagamentos relativos ao bem empenhado, mas apenas lhe competirá efectuar as reparações absolutamente
necessárias à conservação do bem.
1463
Assim, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 103 e Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 535.
1464
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 122.
1465
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 690, consideram que o credor pignoratício se
encontra de má fé. Pelo contrário, Rubino, Il pegno cit., págs. 246 e 247 e Barbara Cusato, ob. cit., pág.
218, qualificam-no como possuidor de boa fé. Critica a atribuição ao possuidor de má fé do direito de
indemnização pelas benfeitorias necessárias que realize, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 122.
1466
Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 690. Diferentemente Rubino, Il
pegno cit., pág. 246, advoga que o credor pignoratício, de acordo com os princípios gerais, terá direito ao
reembolso mesmo das despesas efectuadas com melhoramentos do bem empenhado (nomeadamente as
despesas necessárias extraordinárias), sustentando a sua posição no facto de o credor pignoratício dever
ser considerado como possuidor de boa fé, na medida em que possui com base num direito próprio. Por
seu turno Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 103, duvidam que, salvo em caso de reparações urgentes, o credor
deva antecipar as despesas, enquanto Montel, Pegno cit., pág. 785, nega que o credor pignoratício tenha
direito ao reembolso das despesas úteis (argumentando, além do silêncio da lei, com o facto de o credor
pignoratício não poder ser considerado possuidor em nome próprio – e, por isso, nem sequer de má fé –
do direito de propriedade).
378
meio de assegurar a manutenção do valor do objecto da garantia – e aos melhoramentos
úteis que tenham aumentado o valor da coisa – apesar de o credor não ter o dever de
efectuar tais despesas (pois sabe que a coisa é alheia e apenas a detém a título de
penhor), o seu não reembolso traduzir-se-ia num enriquecimento injustificado do
empenhador à custa do credor.1467
Sendo certo que o credor terá, nos termos assinalados, direito ao reembolso das
despesas efectuadas, caberá ao empenhador efectuar tal pagamento,1468 parecendo, por
isso, poder concluir-se que ao credor incumbirá, se for caso disso, adiantar tais
quantias.1469
Tendo o penhor sido constituído por terceiro e obtendo o credor a satisfação do
seu crédito à custa do bem recebido em garantia, aquele terá direito a exigir do devedor
o valor das despesas efectuadas no referido bem, sob pena de um injustificado
enriquecimento deste com a extinção do seu débito.1470
Se a coisa empenhada for entregue a terceiro, ocupará este a posição de credor
pelo valor das despesas efectuadas.1471
Importa, no entanto, distinguir as benfeitorias – indemnizáveis nos termos
acabados de explanar – de outras despesas suportadas pelo credor pignoratício,
relativas, por exemplo, à constituição do penhor, à cobrança do crédito, à conservação
do bem empenhado, as quais deverão ser abonadas ao credor pignoratício em
homenagem ao critério geral anteriormente fixado, segundo o qual o penhor garante o
crédito inicialmente onerado, conjuntamente com os decorrentes das consequências,
legais e contratuais, do respectivo incumprimento.
1467
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 161. Pelo contrário Realmonte, Il pegno cit., pág. 665,
(depois de explicitar que o montante da indemnização corresponde ao efectivo aumento de valor da coisa
por força dos melhoramentos, desde que estes subsistam no momento da restituição do bem ou da
execução da garantia) baseia a indemnização deste tipo de melhoramentos na posse de boa fé do credor
pignoratício.
1468
Rubino, Il pegno cit., pág. 246, alega que também o terceiro adquirente e actual proprietário da coisa
pode ser chamado a reembolsar tais despesas. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 163, por seu
lado, acrescenta que o empenhador não se pode eximir dessa obrigação abandonando a coisa porque, se o
fizesse, poderia prejudicar o credor. Quanto ao proprietário, não empenhador, a sua responsabilidade
cingir-se-á aos termos gerais do direito de reembolso entre o proprietário e o possuidor (ou nos termos
referentes à gestão de negócios). Respondendo o empenhador e o proprietário, a responsabilidade de
ambos será solidária, dependendo o direito de regresso da relação interna entre ambos (não havendo
relação interna, tudo dependerá das circunstâncias). No direito espanhol e segundo Guillarte Zapatero,
Comentario cit., pág. 535, quando o penhor tiver sido constituído por terceiro, apenas este responde pelos
gastos de conservação, embora a coisa onerada responda, quer por estes gastos, quer pela obrigação
principal (esclarecendo ainda que, em caso de penhor constituído por um terceiro não proprietário –
válido nos termos supra mencionados – o credor pode reclamar deste o ressarcimento destes gastos).
1469
Pelo contrário, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 532, entende que “como criterio general,
sólo procede entender que el acreedor pignoraticio viene obligado a la antecipación de los gastos
necesarios para la conservación de la cosa si razones de urgencia así lo determinan, es decir, si por el
hecho de no facilitar las cantidades necesarias se arriesga la conservación o el deterioro de la prenda”.
1470
Assim Rubino, Il pegno cit., pág. 247, alertando, todavia, não se tratar de um caso de sub-rogação,
uma vez que o crédito de reembolso das despesas não se dirigia contra o devedor principal. Defende a
mesma solução Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 556, complementando que o terceiro poderá
exercer o direito de retenção do bem conferido por lei até ser reembolsado das despesas realizadas.
1471
Tendo o terceiro, nos mesmos termos do credor, direito a ser ressarcido dos danos causados pela
detenção do bem empenhado. Rubino, Il pegno cit., pág. 247, entende serem aplicáveis, a este respeito, as
regras do contrato de depósito, devendo, em conformidade, tais despesas ser exigidas ao constituinte da
garantia, ao credor pignoratício ou a ambos, consoante o contrato de depósito tenha sido celebrado por
apenas um deles ou por ambos. Já Protettí, ob. cit., pág. 225, sustenta que o terceiro terá direito de exigir
as despesas ao credor e ao proprietário.
379
Questão conexa e uma vez assente que o credor terá direito a ser reembolsado
dessas despesas, prende-se com o eventual carácter preferente do crédito às benfeitorias
e às despesas em geral efectuadas por força da relação pignoratícia, uma vez que, no
silêncio da lei, ambas as posições são defendidas.1472
Do nosso ponto de vista, a resposta será afirmativa, em homenagem ao
postulado anteriormente defendido que o penhor assegura uma dada obrigação de
acordo com a configuração que esta assuma no momento da respectiva execução, pois
os créditos por benfeitorias (e, porventura, também os relativos aos danos sofridos pela
detenção do bem onerado), encontram-se directamente relacionados com a relação
pignoratícia, mais concretamente o dever de conservação do bem empenhado.
Se assim não fosse, o empenhante e os seus demais credores obteriam um
locupletamento injusto às custas do credor pignoratício autor das benfeitorias, uma vez
que este correria sérios riscos de não ser reembolsado das quantias dispendidas na
conservação do bem empenhado, as quais aumentaram o respectivo valor em benefício
daqueles, podendo até, no caso das necessárias, ter sido indispensáveis para a
sobrevivência do bem (paralelamente, este entendimento, a nosso ver, é igualmente
consentâneo com o alargamento da garantia aos acrescentos decorrentes de benfeitorias
realizadas no bem onerado).1473
Nesta conformidade, se as benfeitorias, nos termos legais, forem retiradas,
nenhum crédito adicional surge a favor do credor pignoratício; ao invés, se não forem
ou não o puderem ser, por força da lei, estas acrescem à garantia do credor, tendo este
direito a ser delas indemnizado nos termos expostos, gozando, para o efeito, da
preferência pignoratícia.
1472
Respondem negativamente à questão Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 690
(argumentando que tal preferência não resulta do art.º 666.º, n.º 1 e reconhecendo apenas o direito de
retenção), o nosso Dos privilégios cit., págs. 74 e 75 (relativamente aos privilégios creditórios, com
fundamento no facto de o art.º 734.º apenas fazer referência ao carácter privilegiado dos juros, assim
excluindo os demais acessórios do crédito), Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 70 e 71 (retirando essa
conclusão do confronto entre o n.º 1 – que estabelecia o direito de preferência relativamente ao valor da
dívida garantida - e o n.º 3 – que apenas afirmava, sem mais, ter o credor direito a ser indemnizado das
despesas necessárias e úteis por si efectuadas - do art.º 860.º do Código de Seabra), Menezes Leitão,
Garantias cit., pág. 203, Paulo Cunha, ob. cit., pág. 208, Guilherme Moreira, ob. cit., pág. 333
(salientando os três últimos que o credor poderá socorrer-se do direito de retenção), Diez-Picazo, ob. cit.,
pág. 489 (também reconhecendo um direito de retenção) e, implicitamente, Guillouard, ob. cit., pág. 176.
O entendimento contrário é sustentado por Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz
Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1516 (ancorando-se no disposto no §1210.II, do BGB), Cunha
Gonçalves, ob. cit., pág. 244 (argumentando ter o credor o direito de retenção, o qual confere um direito
de preferência e, por outro lado, abrangendo essa retenção o pagamento integral destas despesas, também
estas se devem considerar asseguradas pela preferência pignoratícia), Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º
58, págs. 163 e 164 (por entender ser esta a solução que melhor de coaduna com a configuração do
crédito garantido nos termos em que ele se apresente no momento da execução), Weil, ob. cit., pág. 100,
Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2147 (uma vez que o art.º 1922.º do CCE expressamente confere
carácter preferente aos créditos por despesas de conservação de bens móveis) Barbara Cusato, ob. cit.,
págs. 215 e 216, Montel, Pegno cit., pág. 785, Realmonte, Il pegno cit., pág. 665 e Rubino, Il pegno cit.,
pág. 247, argumentando este último que o crédito de despesas tem a sua origem na relação pignoratícia e,
por força do princípio da acessoriedade do penhor relativamente ao crédito principal, pode considerar-se
um acessório deste último (importa, contudo, realçar que a posição dos Autores italianos poderá ter um
apoio importante no art.º 2794.º do CCI – nos termos do qual o constituinte do penhor apenas poderá
reclamar a restituição do bem oferecido em garantia depois de liquidado integralmente o capital e os juros
da obrigação principal e de reembolsadas as despesas relativas ao débito e ao penhor – preceito este que
não encontra paralelo na legislação lusa – entre nós, o art.º 671.º, alínea c), limita-se a afirmar que o
credor pignoratício se encontra obrigado a restituir o bem empenhado uma vez extinta a obrigação
garantida, omitindo qualquer referência às despesas por ele efectuadas).
1473
Sobre este assunto, vide supra n.º 3.1 do Capítulo I.
380
Contudo e ainda que se adopte a posição contrária no que respeita à extensão da
preferência pignoratícia ao crédito por benfeitorias (designadamente defendendo uma
autonomia estrutural do crédito por benfeitorias, por não se encontrar relacionado com o
incumprimento da obrigação principal), tal não implica, em nossa opinião, que o credor
pignoratício fique desprotegido no que à cobrança destes créditos diz respeito,
porquanto poderá socorrer-se do privilégio por despesas de conservação (art.º 738.º, n.º
1 e 743.º), uma vez que as benfeitorias úteis e necessárias aproveitam ao proprietário e
aos seus outros credores e não se exige que aquelas despesas tenham sido originadas por
um processo judicial.1474
Ou seja, relativamente às benfeitorias e conforme já tivemos oportunidade de
salientar,1475 ou elas são retiradas e não haverá nenhum crédito por parte do credor
pignoratício ou, pelo contrário, não o são e, então, dispõe aquele do direito a uma
indemnização, debatendo-se se para reclamar o respectivo pagamento poderá invocar ou
não a garantia pignoratícia.
1474
Vide, a respeito do âmbito de aplicação deste privilégio o nosso Dos privilégios cit., pág. 237 e segs..
1475
Vide supra n.º 3.1 do Capítulo I.
1476
Não foi incluída no texto da lei a sugestão de Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 188 e 189,
nos termos da qual o devedor a quem tivesse sido exigia a substituição ou o reforço do penhor poderia,
em alternativa, prestar uma hipoteca quando o perecimento ou deterioração da garantia não fossem
devidos a facto a ele imputável e tivesse nisso um interesse legítimo (se assim não fosse, o credor poderia
opor-se a essa intenção, até porque seria legítimo pretender a manutenção da garantia pignoratícia, até
porque esta, ao contrário da hipoteca, lhe permite continuar em poder do objecto da garantia).
1477
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 724, na expressão “tornar insuficiente”
está incluída a eventualidade de a insuficiência já existir no momento da constituição da garantia e se ter
agravado posteriormente.
1478
Critica a ausência de um preceito análogo no direito italiano anterior ao actual Código Civil (a
redacção do actual art.º 2743.º é praticamente idêntica à do preceito de direito nacional mencionado no
texto), Faggella, ob. cit., pág. 120, asseverando que tal silêncio resulta de uma aplicação excessivamente
rigorosa do princípio segundo o qual a diminuição da garantia corre por conta do titular desse direito
(concluindo que o suplemento do penhor apenas pode ser requerido com base num pacto expresso). O
mesmo reparo, no direito espanhol, é feito por Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 533 e 534,
relatando igualmente a ausência de qualquer preceito destinado a regular as consequências do
perecimento ou desvalorização do bem empenhado, quando esta não seja da responsabilidade do credor
(admitindo, porém e mesmo no silêncio das partes, que tal facto implicará a perda do benefício do prazo,
ou seja, o vencimento imediato da obrigação garantida). Em face do direito alemão, Harry Westermann,
Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1517, entendem que o
§1218 do BGB concede, em caso de destruição ou diminuição de valor do bem onerado, ao empenhante
(e, apesar do silêncio da lei, também ao proprietário, quando não seja o empenhante) a faculdade de
substituir o objecto da garantia (embora a garantia substitutiva não tenha que ser necessariamente um
penhor e, noutro plano, sem que o credor pignoratício seja forçado a aceitar uma nova garantia que,
embora cobrindo o valor presente do débito, seja de valor inferior à inicial, sendo o valor relevante o que
o bem onerado possuía à data da substituição e não no momento da constituição da garantia) e, se o não
fizer, o credor pode executar o objecto da sua garantia (§§1219 e 1220 – de acordo com estes preceitos,
salvo casos urgentes, o credor deve comunicar ao empenhante – e ao proprietário - que vai executar o
bem onerado e, quando se trate de perda de valor do bem, conceder um prazo para a modificação do quid
onerado; se o bem possuir um preço de mercado ou em bolsa, o credor pode vendê-lo sem necessidade de
hasta pública; em qualquer caso, o credor não se pode apropriar directamente do produto da venda,
381
Uma vez que, normalmente, o valor da garantia excede o do crédito garantido, a
diminuição do primeiro apenas poderá ser invocada ou quando atinja uma proporção tal
que desça abaixo do limiar da obrigação assegurada, o que poderá verificar-se pelo
aumento desta (em resultado, por exemplo, do avolumar dos juros) ou pela diminuição
do valor do quid onerado (como consequência da sua depreciação).
Contudo e conforme já se decidiu, a verificação de uma diminuição acentuada
do valor do bem empenhado (ainda que da responsabilidade do credor a quem este tenha
sido entregue aquando da constituição da garantia) não legitima, por si só e salvo
convenção o contrário, o devedor a socorrer-se de tal circunstância para incumprir a
obrigação por garantida.1479
Havendo mais de um credor com penhores constituídos sobre o mesmo bem e
tendo apenas um deles solicitado a substituição e/ou o reforço da sua garantia, coloca-se
a questão se saber se os efeitos indicados no aludido preceito apenas se produzirão
relativamente ao credor requerente ou, pelo contrário, aproveitará aos demais.
A favor do primeiro entendimento, poder-se-á argumentar que, caso o devedor
não proceda ao reforço ou à substituição, a consequência é a legitimidade para exigir o
cumprimento imediato da obrigação, resultado este de natureza eminentemente
subjectiva e que, por isso, não deve der extensível aos demais credores.1480
Mais ainda, mesmo que o devedor opte por reforçar ou substituir o objecto da
garantia, tal conduta apenas deve reverter a favor de quem a reclamou, sob pena de se
beneficiar a inércia dos demais credores e, porventura mais grave, de se admitir a
alteração do objecto da garantia desses credores sem o seu consentimento expresso.
Pelo contrário, é possível contrapor que, caso o devedor proceda ao reforço ou à
substituição, a alteração produzida não pode deixar de aproveitar aos demais, sob pena
de, particularmente no caso da substituição, os outros credores ficarem desprovidos de
garantia.
Neste último sentido poderá, ainda, aduzir-se que, conforme exposto
anteriormente, o penhor incide sobre um determinado objecto, independentemente das
vicissitudes do mesmo desde o momento da constituição da garantia até à sua execução,
salvo em caso de transformações materiais, caso em que se produzirá a sua extinção.
Tomando posição, afigura-se-nos indispensável dissociar a hipótese em que
ocorra um reforço ou uma substituição do bem onerado, daquela outra em que assista ao
credor requerente o direito de exigir o cumprimento antecipado da obrigação garantida:
na primeira e atento o princípio da manutenção da garantia não obstante as vicissitudes
do respectivo objecto, parece-nos preferível sustentar que aquele reforço ou aquela
substituição aproveitam aos demais credores; ao invés, não se operando aquele reforço
ou aquela substituição, disporá apenas o credor requerente da faculdade pessoal de
exigir o cumprimento imediato da sua obrigação, sem prejuízo de, em caso de
incumprimento e uma vez desencadeada a execução, os demais credores manterem as
respectivas garantias em sede de concurso de credores.
A circunstância de no penhor, ao contrário do que sucede na hipoteca, o objecto
da garantia se encontrar em poder do credor ou de terceiro, poderia, de jure condendo,
permanecendo o preço pago na propriedade do empenhante, mas onerado com um penhor, assim
originando um fenómeno de sub-rogação do objecto da garantia).
1479
Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 25/2/1997, in www.dgsi.pt. (embora discordemos da
consideração expandida pelos Ilustres Desembargadores quando afirmam que aquela diminuição de valor
apenas lesa o credor, uma vez que, permanecendo o bem na titularidade do empenhador, também este é
afectado por tal desvalorização).
1480
No primeiro sentido, Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 183 e segs. - pelo menos para o caso em que
os diversos penhores assegurem créditos diversos e separados – avançando que esta solução aplica-se
mesmo que o credor requerente não seja o titular do direito preferente.
382
justificar a não concessão deste direito ao credor pignoratício, por não ser de crer que o
perecimento ou a diminuição de valor sejam imputáveis ao devedor e, sendo devidos a
caso fortuito, caberia ao credor suportar os efeitos daí resultantes (tomando precauções
adequadas para o efeito, nomeadamente segurando o bem).1481
Não foi esta a opção do legislador, sendo esta posição fundada na analogia com
os direitos concedidos ao credor hipotecário, no facto de o bem empenhado também
poder diminuir de valor por motivo imputável ao devedor e, mesmo que diminua por
caso fortuito, aquela diminuição poder não ter resultado de culpa do credor.1482
No entanto, este direito é conferido por remissão para o disposto em matéria de
hipoteca (cfr. art.º 701.º), de onde resulta que tal faculdade apenas existe quando o
perecimento ou a insuficiência do objecto da garantia não forem imputáveis ao credor e
que o direito de exigir o cumprimento imediato da obrigação só é exercitável quando a
garantia não seja substituída ou reforçada (n.º 1).
Ao condicionar este direito à não imputabilidade ao credor do perecimento ou
insuficiência da garantia, a norma abrange os casos fortuitos e os que resultem de culpa
do empenhador, embora estes de possam considerar, por comparação com a hipoteca,
mais raros, atendendo ao desapossamento do constituinte do penhor.
Ora, se no primeiro caso a aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 701.º não
levanta dúvidas de maior, o mesmo não se dirá do segundo, uma vez que se afigura
necessário conjugar aquele artigo com o art.º 780.º,1483 porquanto este último admite
que o credor possa exigir o cumprimento imediato da obrigação, sem que, previamente,
solicite a substituição ou o reforço da garantia (embora, se o desejar, nada o impeça).1484
1481
Outras objecções relatadas por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 185 e 186, prendem-se
com a dificuldade de prova da ausência de culpa do credor (uma vez que a coisa está em seu poder), com
o facto de a coisa poder ser atingida por caso fortuito quando o não teria sido se estivesse em poder do
empenhador e, finalmente, com a demasiada severidade que constitui, para o devedor, a obrigação de
reforço do penhor quando a diminuição de valor seja devida a caso fortuito. O Autor citado supera a
primeira objecção constatando tratar-se de uma mera questão de prova (embora aceite que quando os
factos sejam duvidosos, mas seja de admitir a culpa do credor, o reforço seja recusado), e as duas
restantes argumentando que, ao dar em penhor um determinado bem, o empenhador já sabia que o mesmo
iria ser colocado em local diferente.
1482
Justifica com estas considerações a opção do legislador Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs.
185 e 186, acrescentando que ao credor não será legítimo exigir o reforço quando se encontrava obrigado
a segurar a coisa empenhada e não o tenha feito.
1483
Dispõe este preceito que o credor pode exigir o cumprimento imediato da obrigação, se, por causa
imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito (n.º 1), tendo, nesse caso, o credor o direito de
exigir do devedor, em lugar do cumprimento imediato da obrigação, a substituição ou reforço da garantia
(n.º 2).
1484
Sustenta igualmente a necessidade de articular ambos os preceitos, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág.
123. Idêntica sobreposição (ao menos aparente) de normas se verificava no domínio do Código Civil de
1867 (entre os art.ºs 860.º, n.º 4 e 741.º, correspondentes, respectivamente, aos actuais art.ºs 701.º e
780.º), inclinando-se Paulo Cunha, ob. cit., págs. 210 e 211 para as seguintes conclusões: se a coisa
perecesse por culpa do credor, o penhor extinguir-se-ia, tendo o devedor acção de perdas e danos contra o
credor pignoratício; produzindo-se o perecimento por culpa do devedor, haveria lugar à exigibilidade
imediata do crédito, nos termos do art.º 741.º (semelhante ao actual art.º 780.º); se a coisa desaparecer em
consequência de caso fortuito, deveria o credor exigir, primeiramente, a substituição do penhor por outra
garantia idónea e só em caso de o devedor não o fazer se produzirá a exigibilidade imediata do crédito
(conclusões estas sufragadas, no essencial, por Guilherme Moreira, ob. cit., pág. 333). Pelo contrário,
Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 246, não se coibia de afirmar ser o conflito apenas aparente, uma vez que,
tendo o bem sido entregue ao credor, não poderia diminuir por facto do devedor, concluindo ter o credor
direito a exigir o reforço do penhor, mas não sendo obrigado a pedi-lo ou aceitá-lo contra a sua vontade.
383
Daí que, em suma, na prática, o art.º 701.º apenas será aplicável aos casos de
perda ou diminuição devidos a caso fortuito.1485
Ainda no que respeita aos requisitos que condicionam o exercício deste direito
por parte do credor pignoratício, quando for futura a obrigação garantida, naturalmente
que não poderá aquele, na ausência de reforço ou substituição, exigir o cumprimento
imediato da aludida obrigação.1486
Quando, então, o bem onerado perecer ou se tornar insuficiente para assegurar o
crédito garantido, a lei determina a obrigação do devedor reforçar ou substituir a
garantia (nos termos da lei processual): porém, as consequências da inobservância de tal
intimação são diversas, consoante a obrigação garantida seja presente (originando a
perda do benefício do prazo) ou futura (caso em que, em sede de hipoteca, se lhe
concede a faculdade de registar hipoteca sobre outros bens do devedor (cfr. o n.º 1 do
art.º 701.º).
Nesta última hipótese e como a lei se limita a remeter para o regime da hipoteca,
coloca-se a dúvida, quando tendo sido constituído originariamente um penhor, acerca de
que tipo de garantia se poderá constituir sobre outros bens do devedor, conjecturando-se
a constituição de outro penhor,1487 o registo de uma hipoteca ou até o arresto de bens
móveis.1488
Esta garantia, parece comungar de uma natureza híbrida, simultaneamente
judicial e legal, especialmente quando seja uma hipoteca, porquanto, uma vez havida a
pronúncia judicial condenando o empenhante a substituir ou reforçar o penhor, o seu
não cumprimento confere ao credor pignoratício o direito, ex lege (art.º 701.º, n.º 1,
parte final), a obter uma garantia alternativa.
Caso a nova garantia a constituir seja uma hipoteca, a analogia com as suas
congéneres de fonte judicial é patente, não só porque a sua fonte imediata é a decisão
que atribua ao credor a faculdade de registar uma garantia alternativa, mas uma vez que,
se qualquer sentença condenatória do devedor à realização de uma prestação em
dinheiro ou outra coisa fungível constitui título executivo para registar uma hipoteca
(art.º 710.º), por maioria de razão o constitui a decisão judicial que o condene a
constituir uma garantia desta índole em substituição de outra anteriormente prestada
(art.º 701.º, n.º 1, parte final).
Paralelamente, a similitude com as hipotecas legais é patente, na medida em que
estas, apesar de decorrerem da lei, carecem de ser registadas, assumindo este registo
natureza constitutiva (art.ºs 794.º e 687.º), até porque, como se demonstra com o regime
ditado para algumas hipotecas legais (art.º 705.º, alíneas c), e d)), não é pressuposto
necessário destas garantias a identificação concreta dos bens sobre os quais incidem,
podendo antes recair sobre todos os de um determinado devedor, tal qual sucede na
hipótese contemplada no art.º 701.º, n.º 1, parte final.
1485
Neste sentido, Almeida Costa, Direito das obrigações cit., pág. 1017 (salientando que o regime do
art.º 701.º se afasta do consagrado no art.º 780.º na medida em que o primeiro impõe a demonstração de
uma diminuição qualificada garantia – de modo a que a mesma se torne insuficiente para assegurar o
cumprimento da obrigação garantida – e, por outro lado, apenas se consente ao credor a exigência de
substituição ou reforço da garantia e apenas se o devedor e/ou o constituinte não o fizerem, se admite a
antecipação do cumprimento da obrigação) e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 724
(ressalvando estes últimos a hipótese de, por vontade do credor, este pretender exigir o reforço ou a
substituição antes ou em vez de exigir imediatamente o cumprimento imediato da obrigação).
1486
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 724.
1487
De facto, sendo o registo o modo de constituição das hipotecas (cfr. art.º 687.º) e admitindo-se o
registo sobre outros bens do devedor, por analogia se deve admitir que o penhor possa passar a abranger
outros bens do devedor, sendo a respectiva constituição regulada pelas normas gerais sobre essa matéria.
1488
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 187 a 189, sugere o arresto, mas com possibilidade de o
juiz, em alternativa e quando aquele se mostre de difícil realização, decidir pelo registo da hipoteca.
384
Mesmo quando a garantia substituta seja um penhor e apesar da ausência de
qualquer norma análoga ao art.º 710.º (ou seja, na falta da previsão legal de um penhor
integralmente judicial), a fonte mediata da faculdade atribuída ao credor pignoratício de
constituir uma nova garantia é a lei (in casu, art.º 701.º, n.º 1, alínea a), parte final), sem
prejuízo de a sua fonte imediata ser a decisão judicial que determina tal modificação:
daí apelidarmos esta garantia, simultaneamente, de judicial e legal.
Se a nova garantia a constituir for um penhor não sujeito a registo (se for este o
caso, valem as regras ditada para a hipoteca), coloca-se o problema de como forçar o
empenhante a desapossar-se do bem a onerar, podendo credor requerer ao juiz, no
mesmo processo de substituição ou reforço, que ordene ao empenhante a entrega do
mesmo para este efeito (argumentando, por identidade de razão, com o disposto no art.º
994.º, n.º 2, do CPC, que consente ao credor prosseguir, no mesmo processo, com a
execução para cumprimento imediato da obrigação garantida, efeito este que o art.º
701.º, n.º 1, comina para o não cumprimento do dever de reforço ou substituição, se a
obrigação garantida não for futura).
Em alternativa, poderá advogar-se ser esta nova garantia um penhor sem
desapossamento, constituindo-se sem necessidade da entrega do bem ao credor ou a
terceiro, cabendo, porém, estabelecer qual o mecanismo publicitário da garantia e as
condições da sua oponibilidade a terceiros.
Poderá, todavia, questionar-se se nos casos de reforço, mas principalmente de
substituição e de aplicação do art.º 701.º, n.º 1, parte final, a garantia a substituir ou a
constituir nos termos expostos, será a mesma inicialmente prestada – com alteração de
um dos seus termos, o objecto - ou, pelo contrário, se trata de uma garantia nova, cujos
efeitos se produzirão apenas daí em diante: a protecção do credor pignoratício reclama a
adesão à primeira alternativa, com o sacrifício dos credores com garantias anteriores
sobre os bens que passam a estar onerados; ao invés, a defesa dos interesses destes
últimos aponta no sentido inverso.
Se o novo bem a onerar o for através de hipoteca, os efeitos do registo não
consentirão a subsistência da garantia originária, com prejuízo dos credores com
hipotecas registadas medio tempore, pelo que os direitos destes terceiros não poderão
ser afectados, restando ao credor pignoratício registar uma nova hipoteca sobre tais
bens, mas com um grau de prioridade contado da data desse novo registo ou, em
alternativa, sobre outros bens não previamente onerados.1489
Mas ainda que seja um penhor a nova garantia a constituir, a solução não poderá
ser diversa, especialmente se o bem originariamente empenhado se encontrava à guarda
do credor pignoratício (uma vez que, se assim for, poderia este, pelo menos na maioria
dos casos, ter procurado evitar o seu perecimento) ou na sua composse.
Em nosso entender, a mesma solução é defensável mesmo que o bem onerado
houvesse sido entregue à custódia de terceiro, caso em que, havendo responsabilidade
deste pelo perecimento, deverá a mesma ser assacada autonomamente, através de uma
pretensão indemnizatória e não mediante o sacrifício dos direitos dos demais credores
do empenhante (até porque a designação do terceiro pressupõe o acordo do credor).
Todos estes direitos concedidos ao credor pignoratícios poderão, em regra, ser
exercidos contra o devedor,1490 mesmo quando a garantia tenha sido prestada por
1489
Esta última solução valerá igualmente para os penhores sem desapossamento (especialmente se
sujeitos a registo), dado que o mecanismo ditado para a oponibilidade da garantia a terceiros, uma vez
cumprido pelos diversos credores, deve assegurar a protecção face ao credor pignoratício que invoque o
art.º 701.º.
1490
Problema distinto e não resolvido directamente pela lei, é o de determinar contra quem deve o credor
pignoratício exercer estes direitos quando a garantia seja prestada pelo devedor, mas o bem confiado a
385
terceiro (caso em que deste último não poderá ser exigido o cumprimento daqueles
deveres);1491 se, porém, a garantia houver sido prestada pelo terceiro sem o
conhecimento do devedor, será contra aquele e não contra este que o credor exercerá os
seus direitos cfr. n.º 2 do art.º 701.º).1492
A lei, porém, na última hipótese aventada condiciona o direito do credor à
existência de culpa do terceiro na diminuição da garantia, parecendo excluir a sua
responsabilidade (e a tutela do credor) quando aquele efeito se tenha produzido por
causa de força maior (cfr. a parte final do n.º 2 do art.º 701.º, ao invés do n.º 1 do
mesmo preceito que protege o credor sempre que a diminuição da garantia proceda de
causa que não lhe seja imputável).
O procedimento de substituição ou reforço do penhor se encontra regulado nos
art.ºs 991.º a 994.ºdo CPC,1493 a ele podendo recorrer o credor pignoratício
terceiro para guarda. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 187, nota 387, propõe as seguintes
soluções: se o terceiro foi escolhido pelo credor, embora com o consentimento do devedor, não pode
aquele exercer nenhum dos direitos; se a escolha foi do devedor, embora com a anuência do credor,
poderá este exercer os citados direitos; se ambos cooperaram na escolha, deverão repartir-se as
consequências, podendo o credor reclamar nova garantia, proporcionalmente à parte do devedor nessa
responsabilidade e, caso tal não suceda, o cumprimento imediato proporcionalmente a essa mesma parte.
Salvo o devido respeito, parece-nos que esta solução, além de demasiado complexa (especialmente no
que toca à últimas das hipóteses formuladas), deverá ser afastada tendo em conta que a nomeação do
terceiro depende do consentimento do credor (e do devedor), pelo que foi por sua vontade que o bem, em
vez de permanecer em seu poder, foi confiado à guarda de outrem, o credor assumiu os riscos inerentes ao
comportamento deste último, não lhe sendo, por isso, legítimo invocar contra o devedor os direitos
reconhecidos pela lei no art.º 701.º (eventualmente poderá reagir contra o terceiro depositário, nos termos
assinalados ao abordar a posição deste sujeito), excepto nas hipóteses residuais em que o empenhante
coloque o bem nas mãos do terceiro às ocultas do credor (admitindo, aqui sim, a invocação do art.º 701.º
contra o devedor-empenhante).
1491
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 724, constatam que, face ao terceiro, o credor
não poderá, nesta hipótese, exercer nenhum direito especial.
1492
A justificação para eximir o devedor da obrigação de substituir ou reforçar a garantia e de o sujeitar
ao cumprimento imediato da obrigação, resulta do facto de ele não se ter comprometido, face ao credor, a
assegurar o cumprimento com uma garantia real. Pelo contrário, quem assumiu esta obrigação perante o
credor foi o terceiro, daí a imposição a este dos deveres de substituição ou reforço da garantia ou, não o
fazendo, de cumprimento imediato da obrigação (ou, no caso de obrigação futura, a possibilidade de o
credor registar a mesma garantia sobre outros bens seus) – Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol.
I, págs. 724 e 725. No mesmo sentido em face do direito brasileiro, vide Afonso Dionysio Gama, ob. cit.,
pág. 53, considerando que “Salvo clausula expressa, o terceiro, que constitue penhor em garantia de
divida alheia, não fica obrigado a substituí-lo, ou reforçá-lo, quando, por culpa de outrem, se perca,
deteriore ou desvalie” (solução esta acolhida pelo art.º 1427.º do actual CCB, precisando apenas que a
não responsabilização do terceiro tem lugar sempre que a deterioração ou a desvalorização se tenha
produzido sem culpa desse mesmo terceiro).
1493
Em termos sumários, o procedimento desenrolar-se-á do seguinte modo. O credor justificará a sua
pretensão de reforço ou substituição, indicando o montante da depreciação ou o perecimento dos bens
dados em garantia e a importância do reforço ou da substituição, apresentando logo as provas (art.º 991.º,
n.º 1). Em seguida, o requerido é citado para, no prazo de 15 dias, contestar o pedido ou impugnar o valor
do reforço ou da substituição e indicar os bens que oferece, devendo apresentar logo as provas (n.º 2 da
mesma norma). Se pretender impugnar apenas o valor, deve o réu indicar logo os bens com que pretende
reforçar ou substituir a garantia, sob pena de não ser admitida a impugnação (n.º 3). Quando a obrigação
de reforçar ou substituir a garantia incumbir a terceiro, será demandado este, e não o devedor, para os
efeitos referidos nos números anteriores (n.º 4). Uma vez efectuada a citação, três hipóteses se colocam:
se o réu não deduzir oposição - e a revelia for considerada operante - nem oferecer bens para o reforço ou
substituição (ou, oferecendo-os, estes forem considerados insuficientes) consideram-se aceites os factos
alegados pelo autor, cabendo ao juiz decidir acerca dos efeitos do incumprimento (ao contrário do que
possa parecer, daqui possa resultar um poder discricionário do juiz, mas tão somente o de determinar o
imediato vencimento da obrigação garantida ou a constituição de garantia sobre outros bens do devedor,
consoante, respectivamente, aquela obrigação seja presente ou futura – cfr. art.º 701.º, n.º 1), sendo que a
execução destinada a exigir o cumprimento imediato da obrigação que o reforço ou substituição visava
386
independentemente do facto de invocar o direito que lhe é concedido pelo art.º 701.º ou
pelo art.º 780.º.
evitar corre no mesmo processo (art.º 994.º, n.ºs 1 e 2); a segunda alternativa ocorre quando o réu não
conteste o pedido, nem impugne o valor do reforço ou substituição, mas se limite a oferecer bens para
este efeito, caso em que caberá ao juiz apreciar a idoneidade destes novos bens (art.ºs 993.º e 984.º); por
último, se o réu contestar - ou, não contestando, a revelia seja inoperante - o juiz decidirá, depois de
avaliação, se a garantia deverá ser substituída ou reforçada e fixará o respectivo valor (podendo, caso
tenha sido requerida a substituição, ordenar o simples reforço, desde que não tenha havido perecimento de
bens), sendo, em seguida, notificado o réu para efectuar o reforço ou substituição decretados (art.ºs 992.º,
984.º e 983.º, n.º 3).
1494
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 183 e 184, identifica os diversos campos de aplicação do
art.º 674.º e do art.º 670.º, alínea c): “O credor, havendo apenas perigo ou receio de o penhor se tornar
insuficiente, pode fazer vender antecipadamente o penhor (não pode exigir outra garantia porque o
penhor ainda se não tornou insuficiente); se o penhor se tornou já insuficiente, deve poder exigir o
reforço da garantia. Agora, não basta a venda antecipada, que não daria o suficiente para segurança do
credor: é necessário o reforço. Isto não exclui que, tendo o penhor diminuído e tendo-se tornado
insuficiente para segurança do credor, este requeira a venda antecipada, nos termos expostos, se for de
recear que a insuficiência se agrave substancialmente; mas o credor pode, além disso, exigir o reforço
da garantia”.
1495
Da redacção do preceito em questão, decorre que desta mesma faculdade não gozará o devedor não
empenhante, o que pode ser justificado pelo facto de a venda antecipada não contender directamente com
os seus direitos, para além de poder reclamar a coisa por outros meios (vide, Pires de Lima e Antunes
Varela, ob. cit., Vol. I, págs. 693 e 694, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 166 e Gabrielli, Il
pegno cit., pág. 311). Porém, em nosso entender, caso na sequência desta venda se obtenha um montante
inferior ao real e ao do crédito garantido, o devedor pode vir a ser prejudicado, tendo que responder pelo
remanescente não satisfeito, pelo que não nos repugnaria a atribuição do mesmo direito ao devedor não
empenhante, ao menos quando o empenhante o não fizesse.
1496
Embora, em face do direito italiano, os pressupostos não sejam integralmente coincidentes consoante
a requerer a venda antecipada se encontre o credor ou o proprietário. Sendo este último a fazê-lo (se for o
credor e como ser verá adiante, a lei é mais abrangente, admitindo a venda mesmo quando a deterioração
do bem não implique um perigo de insuficiência da garantia ou quando a diminuição de valor resulte
apenas de uma diminuição do valor de mercado do bem, além de se permitir a venda com base na simples
existência de uma ocasião favorável (neste sentido, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 116, acrescentando que
estas faculdades apenas cabem ao constituinte do penhor – e não ao devedor não proprietário – muito
embora admitam que a restituição do bem ao terceiro dador do penhor, mediante oferta de outra garantia
idónea ou depósito da quantia devida, possa ser solicitada pelo devedor para evitar um dano ao terceiro
dador. Para Gabrielli, Il pegno cit., pág. 308, o pedido do proprietário pode ter lugar, seja quando a coisa
já tenha sofrido uma deterioração, seja quando aquela vá progressivamente perdendo o seu valor, seja
quando a coisa corra o risco de deterioração, mesmo que ainda não exista uma deterioração em curso).
Por outro lado, em alternativa ao pedido de venda antecipada, o empenhador (e também o devedor não
empenhador, que pode ter interesse em evitar um dano para o terceiro concedente da garantia) pode
requerer a restituição do bem empenhado, oferecendo outra garantia real qualificada como idónea pelo
juiz (art.º 2795.º, n.º 3), nomeadamente para se precaver contra um possível pedido futuro de venda
antecipada por parte do credor (Gabrielli, Il pegno cit., pág. 312). Todavia, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág.
116, sustentam que este pedido apenas pode servir para obter a restituição do bem empenhado, mas não
para evitar a venda do bem empenhado (para obter este segundo efeito, deveria depositar o preço).
387
transferindo-se os direitos do credor para o produto da venda, sem prejuízo da
possibilidade de o tribunal ordenar o depósito do preço (art.º 674.º, n.ºs 1 e 2).1497 1498
Todavia, como forma de obstar à venda do objecto do penhor, o constituinte da
garantia pode oferecer outra garantia real idónea (n.º 3 do art.º 674.º), cabendo ao juiz
avaliar dessa idoneidade.1499
Contudo, o recurso à venda antecipada deverá ser considerado como uma
prerrogativa de que gozam o credor pignoratício e o empenhante, mas não uma
1497
Quanto a este último aspecto e seguindo Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 173 e 176,
diremos que não se justificaria que, não estando vencida a obrigação garantida, o credor recebesse logo o
produto da venda, uma vez que esta se efectua apenas por receio de perda ou diminuição de valor da
coisa. Daí que o produto da venda venha substituir a coisa empenhada, ficando o credor com os mesmos
direitos que tinha em relação a esta (salvaguardando sempre a possibilidade de o juiz, quando entenda
conveniente ou a requerimento do empenhador, determinar o depósito desse produto). No direito italiano,
tal depósito tem carácter obrigatório (cfr. art.º 2795.º, n.º 2), considerando Rubino, Il pegno cit., pág. 253,
que se destina a conservar a garantia em vista de uma futura satisfação, transforma o penhor em penhor
irregular, enquanto Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 117, sugerem que o penhor passa a ter como objecto um
crédito contra o depositário do preço, crédito cujos juros vincendos caberão ao credor pignoratício.
1498
A redacção deste preceito diverge ligeiramente do art.º 2795.º do CCI, na medida em que este apenas
permite a venda antecipada, a requerimento do credor, quando a coisa dada em penhor se deteriore de
modo a fazer temer que se torne insuficiente para garantia do credor (embora Rubino, Il pegno cit., pág.
253, entenda que o referido preceito pode aplicar-se “Invece di un deterioramento già in corso può
bastare un pericolo di deterioramento e spetta al giudice valutare quando la probabilità dell’evento
futuro sia tale da giustificare già attualmente la vendita”), aproximando-se mais do § 1219.º do BGB que
alude ao perigo para a segurança do credor por força de ameaça de perda do objecto do penhor ou de
diminuição essencial do seu valor. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 171, aplaude esta solução,
afirmando: “O que importa é que haja fundado receio de que a coisa se perca ou diminua
substancialmente de valor (não interessando que se já tenha produzido uma deterioração ou diminuição
de valor dela, a qual pode ser logo tão grave que o penhor fique sem mais nada insuficiente ou se perca),
de modo a tornar-se insuficiente para segurança da obrigação (ou a agravar-se essa insuficiência). A
exigência de deterioração ou diminuição de valor poderia ter a vantagem de evitar que se faça a venda
antecipada com base em simples previsões (…); mas tem o inconveniente referido de poder inutilizar em
muitos casos a providência em questão. Quando muito, poderia exigir-se que, se ainda se não tivesse
dado uma diminuição de valor, fosse muito provável que o penhor se perderia ou diminuiria
substancialmente de valor, de modo a tornar-se insuficiente para segurança do credor (ou a agravar-se
essa insuficiência)” No direito alemão, verificando-se a existência de um receio de deterioração da coisa
dada em penhor ou de redução considerável do seu valor, quer o empenhador, quer o credor pignoratício
podem reagir: simplesmente, enquanto o credor pode requerer a venda antecipada, ocupando o produto da
venda o lugar do objecto empenhado - mas, a pedido do constituinte do penhor, pode aquele produto ser
depositado (§1219 do BGB); já o empenhador apenas pode solicitar a restituição do bem contra a
prestação de outra garantia, excepto a fiança (§1218 BGB). No direito brasileiro, o art.º 1433.º, VI, atribui
ao credor o direito a promover a venda judicial, mediante prévia autorização judicial, em caso de fundado
receio de perda ou deterioração do bem onerado, podendo o proprietário deste evitar tal efeito
substituindo-o ou prestando outra garantia real idónea (e, caso o credor não aceite nenhuma destas
alternativas, caberá ao juiz decidir): promovida a venda, o credor consignará em depósito o produto da
alienação, nos termos e condições impostas pelo juiz - Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., págs. 343 e
344. No direito espanhol, não existem preceitos análogos aos acabados de citar, facto este censurado por
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 302 e 303, que, para minorar tal omissão, sugere que as partes
expressamente convencionem a possibilidade de recurso à venda antecipada, bem como os respectivos
pressupostos (quando tal não suceda, restará ao credor socorre-se da perda do beneficio do prazo –
solução que o Autor considera um mero paliativo, “porque sólo se aplicaria a los deterioros provocados
por el deudor o por caso fortuito, y no a los que se deban a causas físicas o económicas” - , enquanto que
a ausência de previsão legal da possibilidade de venda antecipada por parte do constituinte não encontra
qualquer alternativa).
1499
Assim, quanto à função do juiz, Rubino, Il pegno cit., pág. 255. Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 184,
entende, tendo em conta a ratio do preceito (evitar o esvaziamento da garantia do credor), que o mesmo
efeito se produzirá se o empenhante depositar a soma devida, não aumentando assim o risco de
incumprimento da obrigação garantida.
388
obrigação que a lei lhe imponha,1500 devendo a contraparte na relação pignoratícia
sujeitar-se ao exercício desta faculdade legalmente consagrada. 1501
Parece dever incluir-se na previsão desta norma, não apenas o receio de perda ou
deterioração material do bem, mas também de perda ou deterioração jurídica ou de
valor, como sucederá com a desvalorização de valores mobiliários.1502
Pelo contrário, não será legítimo requerer a venda antecipada quando o objecto
da garantia já se encontrasse, à data da respectiva constituição, em estado de
deterioração, a menos que seja expectável que o prolongar dessa situação coloque em
risco a suficiência da garantia.1503
Relativamente à tramitação processual1504 1505 da venda antecipada do
penhor,1506 nomeadamente no que concerne à eventual necessidade de o constituinte da
1500
Nestes termos, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 183 (falando mesmo de uma faculdade
discricionária) e, sobretudo, Almeida Costa, Penhor; Ilicitude na guarda da coisa empenhada – venda
antecipada, in CJ, Tomo II, pág. 22 e 25 a 27. Neste parecer, o Ilustre Professor sustenta, em face do
aresto por ele comentado, que o facto de as mercadorias empenhadas se estarem a deteriorar não implica a
obrigatoriedade de o credor pignoratício promover a respectiva venda antecipada, pois o art.º 674.º “não
impõe qualquer qualquer obrigação ao credor pignoratício, limitando-se a outorgar-lhe uma faculdade
que ele, discricionariamente, exercerá ou não, conforme julgar mais vantajoso para a defesa dos seus
interesses”. O Autor justifica esta posição com a circunstância de as partes poderem acordar na realização
extrajudicial da venda antecipada (cfr. art.º 675.º), para além de cada uma delas poder requerer,
independentemente de tal acordo, a autorização judicial para o efeito (art.º 674.º, n.º 1), concluindo que
“se tanto ao credor pignoratício como ao dono dos bens assiste o poder de promover a venda, por que
razão haveria a lei de impor ao primeiro, no interesse do segundo, um acto que este está igualmente
autorizado a praticar?”. É certo que o mencionado Professor não deixa de reconhecer pertinência à
objecção nos termos da qual, estando os bens em poder do credor, este se encontra em melhores
condições de avaliar da eventual existência de um perigo de deterioração - especialmente quando o
proprietário não tenha a possibilidade de saber se os bens por si empenhados correm perigo de destruição
- mas sustenta que, mesmo nestes casos, o credor pignoratício não será forçado a vender antecipadamente
o bem, mas apenas a avisar o proprietário do risco de deterioração (simplesmente, no caso objecto do
parecer, nem esta obrigação de informação existiria, porquanto os bens empenhados eram conservas
alimentares - cujo carácter deteriorável resulta da própria natureza, facto este que o empenhador não
poderia ignorar – que permaneceram armazenadas nas instalações do empenhador). Paralelamente e em
termos mais gerais, o mesmo Autor, in Direito das obrigações cit., pág. 928, nota 4, considera que as
mesmas conclusões valerão para o exercício desta faculdade por parte do empenhante, devendo alertar a
contraparte do risco de deterioração, por força do princípio geral da boa fé, apenas quando esta não se
encontre em condições de apreciar tal perigo (em suma, considera que o art.º 674.º, n.º 1, “atribui uma
simples faculdade, de que o credor pignoratício, ou o autor do penhor, se prevalecerá a seu critério, em
vista dos interesses próprios e não para defesa dos interesses da contraparte, ressalvadas as regras da
boa fé”).
1501
Esta dupla legitimidade para invocar os mecanismos elencados no art.º 674.º poderá originar um
conflito quando o credor pretenda a venda e o empenhador, ao invés, pretenda a restituição em troca de
outra garantia, conflito esse que deve ser resolvido em benefício deste último, porque deste modo se
afasta o perigo que fundamentava o recurso à venda antecipada (Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58,
pág. 177).
1502
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 693 e Rubino, Il pegno cit., pág. 255. Contra,
Realmonte, Il pegno cit., pág. 667 e, principalmente, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 114, seja porque a
coisa pode ter para o constituinte um valor afectivo, seja porque o valor de mercado pode voltar a
aumentar antes do vencimento da obrigação garantida, seja, por fim, para evitar manobras fraudulentas
por parte do credor, concluindo ser válido o pacto que autorize a venda em tal circunstancialismo apenas
se foram garantidos mecanismos de tutela do devedor (designadamente o aviso prévio e o decurso de um
prazo, antes da realização da venda, para permitir evitar a venda através dos mecanismos previstos na lei).
1503
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 114. Ainda segundo os mesmos Autores, tratando-se de uma
deterioração instantânea, relativamente ao qual não seja de prever um agravamento, ou o crédito
permanece, ainda assim, garantido ou, pelo contrário, o crédito deixa de estar garantido (e então o credor
apenas poderá invocar o art.º 2743.º CCI, análogo ao nosso art.º 670.º, alínea c)).
1504
Em face do direito italiano, Rubino, Il pegno cit., págs. 253 e 254, sugere ser este um procedimento
cautelar e não executivo, na medida em que não tem por objectivo permitir a satisfação do credor com o
389
garantia ser previamente alertado relativamente à pendência de tal procedimento, as
respostas são remetidas para a lei processual (muito embora a faculdade – conferida
pela lei civil - de impedir a venda, através da prestação de outra garantia, pressupor, ao
menos implicitamente, tal alerta).1507
produto da venda, que se conclui com o depósito do preço (do mesmo modo, Gabrielli, Il pegno cit., pág.
308). Após esse momento, poderá iniciar-se um procedimento executivo em que será requerida a
adjudicação desse montante. Relativamente à tramitação procedimental, o citado Autor sugere que o
credor pignoratício deverá, antes de requerer a autorização para a venda antecipada, avisar o constituinte
da garantia da sua intenção (caso este não seja o devedor da obrigação principal, este último não terá de
ser alertado – cfr. art.º 2795.º, n.º 1, do CCI), mas não será forçado a indicar o dia e hora da venda. O
mencionado aviso não será propriamente uma citação – não tornando, por isso, o avisado parte processual
– tendo antes como intuito colocar o constituinte em posição de poder intervir no processo e aí fazer valer
os (limitados) poderes de defesa que lhe competem. Por outro lado, não existe nenhum prazo – contado a
partir do envio desse aviso – para propor o requerimento judicial, podendo até o aviso ser posterior a este
requerimento (nesta eventualidade, o procedimento não será inválido desde que seja dado ao proprietário
um período de tempo para se poder opor: caso tal não tenha sucedido, a venda será anulável a
requerimento do proprietário - mesmo que o credor ignorasse o atraso no aviso – desde que este prove a
ausência de deterioração do bem ou ofereça uma garantia alternativa reconhecida como idónea pelo juiz –
no mesmo sentido, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 309). Uma vez recebido o requerimento do credor, o juiz
efectuará uma análise sumária acerca da existência do crédito e do penhor e da deterioração ou iminência
da mesma, cabendo ao proprietário defender-se, mas apenas invocando como excepção a inexistência de
deterioração ou perigo de deterioração da coisa ou, em alternativa, oferecendo outra garantia, cuja
idoneidade é apreciada pelo juiz (nesta última hipótese, o proprietário deverá notificar o credor da nova
garantia alternativa e pedir ao juiz a substituição e, caso o credor já tivesse obtido a autorização para a
venda e proceda efectivamente à alienação antes que o juiz decida acerca da substituição, a venda será
válida e, para mais, o credor não terá que indemnizar o proprietário, porquanto a simples oferta de uma
nova garantia por parte deste último não basta para inibir a acção do credor), mas não lhe será legítimo
invocar outras excepções (uma vez que as demais excepções, como a extinção do crédito, apenas poderão
ser opostas no momento da posterior eventual acção executiva para atribuição do produto da venda
antecipada - por seu lado Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 116, admitem também que o constituinte se pode
defender depositando a quantia em débito). Finalmente, o juiz determinará, se for caso disso, a venda (a
qual decorrerá nos termos previstos para a venda executiva comum, salvo estipulação das partes em
contrário - Gabrielli, Il pegno cit., pág. 310), bem como os termos do depósito do preço em garantia do
crédito, na medida em que o crédito garantido não se encontra ainda vencido (embora, em seguida, o
credor possa solicitar a adjudicação desse preço em pagamento – Gabrielli, Il pegno cit., pág. 311).
1505
Rubino, Il pegno cit., págs. 256 e 257, afirma que as mesmas regras procedimentais se aplicarão
quando a venda for requerida pelo proprietário do bem empenhado, excepto quanto à ausência de
necessidade de aviso ao credor pignoratício, salvo se o juiz assim o ordenar (solução esta justificada com
base no facto de o aviso ao proprietário, quando a venda antecipada é solicitada pelo credor, ter como
objectivo possibilitar àquele a oferta de uma garantia alternativa, o que não faz sentido quanto a venda
antecipada seja requerida pelo constituinte da garantia. Ainda assim, o aludido Autor pensa que seria
oportuno avisar o credor, designadamente para que este se pudesse opor ao pedido, especialmente com
fundamento no facto de o momento não ser particularmente favorável para a venda, posição seguida por
Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 116 e 117) e quanto à possibilidade de o juiz poder, oficiosamente,
estabelecer condições diversas para a venda, quando esta decorra por força da existência de uma ocasião
favorável.
1506
Rubino, Il pegno cit., pág. 255 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 173 e 176, advogam que
a venda antecipada deve seguir os trâmites da venda não antecipada (embora o segundo Autor admita que
o juiz, tendo em conta a urgência do caso, determinar o contrário e o primeiro admita que as partes – mas
não o juiz ex officio - possam afastar essas mesmas regras). Contudo, se o objecto empenhado consistir
em bens com cotação em bolsa ou em mercados, os mesmos Autores defendem que a venda deve ter lugar
pelo valor da cotação desses bens no dia da venda e deve efectuar-se por meio de pessoa autorizada para o
efeito.
1507
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 170 a 172, sustenta que, em regra, o empenhador deve ser
previamente notificado do risco de perda ou de diminuição substancial de valor do bem, para poder evitar
a venda (prestando outra garantia ou impugnando a venda), salvo quando o atraso na venda produza ou
agrave o perigo de perda da coisa empenhada ou de diminuição essencial do seu valor. Quando o
empenhador não tenha sido notificado da venda antes da sua realização, deverá sê-lo sem demora,
390
Tal regulamentação consta do art.º 1013.º do CPC, apesar de o preceito em causa
não responder a todas as questões suscitadas pela venda antecipada – sendo,
nomeadamente, omisso quanto à natureza cautelar deste procedimento - prescreve a
necessidade de citação, para efeitos de contestação, do credor, do devedor e do
proprietário do bem que não sejam os requerentes (cfr. n.º 1).1508
Em seguida, o tribunal ordenará as diligências tidas por convenientes, findas as
quais decidirá e, caso seja ordenado o depósito do preço, este ficará à ordem do tribunal,
a fim de ser levantado após o vencimento da obrigação (n.ºs 1 e 2).
Decretando o tribunal a venda,1509 uma hesitação se nos depara, qual seja a de
saber se esta venda antecipada se realizará nos termos da acção executiva comum –
nomeadamente com as citações por esta exigidas e com a fase do concurso de credores
– ou, pelo contrário, poderá ser efectuada sem observância das ditas formalidades.
O primeiro entendimento,1510 seria, porventura, mais defensável na vigência do
processo especial de execução dos bens empenhados (art.ºs 1008.º a 1012.º do CPC,
entretanto revogados), porquanto também no âmbito desse procedimento se sustentava a
dispensa de citação e de concurso com os demais credores, encontrando esta tese algum
apoio no art.º 1009.º:1511 todavia, este último argumento carece, actualmente, de
fundamento, uma vez que aqueles preceitos não se encontram, como se disse, em vigor.
respondendo o credor pelos danos causados se, por culpa sua, essa notificação se não fizer. Caso a venda
tenha lugar sem que o empenhador seja chamado ao processo – quando devesse sê-lo – será ineficaz
relativamente a ele, estando legitimado para invocar o seu direito de propriedade. As mesmas conclusões
valerão para a venda antecipada efectuada a requerimento do empenhador, nomeadamente no que
concerne à necessidade de aviso prévio ao credor.
1508
No direito alemão, o n.º 1 do §1220 dispõe que a venda antecipada do penhor, por parte do credor
pignoratício, é permitida depois de o constituinte do penhor ter sido avisado (excepto quando o objecto
estiver sujeito a deterioração e o adiamento da venda o ponha em risco, caso em que o aviso é
dispensado). Por outro lado, se a venda se fundamentar na desvalorização do bem empenhado, além do
aviso, é ainda necessário que o credor pignoratício conceda ao constituinte um prazo para prestar outra
garantia e este prazo se vença sem que tal suceda. Após a realização da venda, o credor pignoratício deve
informar imediatamente o constituinte do penhor da venda, sob pena de ter de indemnizar este último (n.º
2 do §1220). Todavia, quer o aviso, quer a concessão de um prazo, quer a informação da realização da
venda não se efectuarão quando forem impraticáveis (n.º 3 do §1220). A venda decorrerá normalmente
em hasta pública (§1235), excepto se o bem dado em penhor estiver cotado em bolsa ou tiver um preço de
mercado, caso em que o credor pignoratício procederá à venda por negociação particular através de um
agente comercial oficialmente legitimado ou de pessoa autorizada a realizar a venda de bens com preço
corrente (§1221).
1509
Não obstante, até ao momento em que a venda seja efectuada o autor do penhor poderá oferecer outra
garantia real, cuja idoneidade será apreciada imediatamente, originando a suspensão da venda (n.º 3). Em
face da redacção deste preceito, entendemos que a suspensão da venda ocorre apenas a partir do momento
em que o tribunal considere tal garantia idónea, e não logo após a oferta de outra garantia alternativa.
1510
Designadamente alegando que se a lei exigisse que a venda do objecto do penhor ocorresse no âmbito
da acção executiva, não se compreenderia a ordem de depósito do preço da venda à ordem do tribunal a
que aludia o n.º 2 do art.º 1013.º do Código de Processo Civil, parecendo que a autorização de venda
antecipada do objecto do penhor ocorreria na forma especial de processo declarativo, mas o acto de
alienação judicialmente autorizado seria extrajudicialmente realizado pelo credor.
1511
Anselmo de Castro, A acção executiva singular, comum e especial, Coimbra, 1970, págs. 336 e 337,
esclarece que, ditando tal preceito que o pagamento do credor se faria pelo produto da venda, após a
satisfação das custas processuais, indiciava a dispensa do concurso de credores: ora, se assim era no
âmbito do procedimento normal de execução do penhor, o mesmo deveria valer para o procedimento
especial de venda antecipada, relativamente ao qual a lei era (como continua a ser) omissa. Contra,
defendendo que mesmo no âmbito do processo especial de venda e adjudicação de credores haveria
chamamento concursal de credores, Antunes Varela, Das obrigações cit., Vol. II, págs. 532 e 533, pois,
apesar de “nas disposições reguladoras do processo especial nenhuma referência se encontra a esse
chamamento, dando assim a impressão de que a lei trata o credor pignoratício como uma espécie de
credor super-privilegiado”, não é menos verdade que “no artigo 463.º, n.º 2, 2.º parágrafo, determina-se
expressamente que, havendo lugar a venda de bens em qualquer processo especial, será a venda feita
391
Propendemos, por isso, para a orientação contrária, não apenas porque do art.º
1013.º não se retira qualquer elemento que permita afastar a regra geral da sujeição do
exequente ao concurso de credores (pelo que, em cumprimento do disposto no n.º 3 do
art.º 466.º, cabe aplicar a esta execução especial, a título subsidiário, as regras ditadas
para as execuções comuns), podendo até interpretar-se a parte final do art.º 1013.º, n.º 1
– ao impor ao juiz, antes da decisão acerca da procedência do pedido do autor, a
realização das diligências convenientes - como impondo ao juiz o dever de proceder às
citações dos demais credores, nos termos do art.º 864.º.1512
Por outro lado e sempre em abono desta posição, refira-se que o entendimento
contrário permitiria uma subversão injustificada do concurso de credores, não se
alcançando qual o fundamento para a ele submeter o exequente numa execução
pignoratícia ordinária, dispensando-o no caso de venda antecipada.
Nem se diga que, deste modo, se prejudica desproporcionadamente o exequente
credor pignoratício, ao sujeitá-lo ao concurso com credores preferentes, não apenas
porque este argumento, a ser válido, poderá ser invocado relativamente a qualquer
exequente numa execução comum, mas até porque o leque de credores garantidos
reclamantes em execuções alheias é hoje muito menor do que antes da reforma da acção
executiva de 2003.1513
Finalmente, um último motivo para alicerçar o caminho por nós trilhado radica
no disposto no art.º 886.º-C, do CPC,1514 o qual vem permitir, no seio da execução
comum, a realização da venda antecipada dos bens, quando exista fundado receio de
deterioração ou depreciação ou exista vantagem nessa antecipação (n.º 1): ora, se
qualquer credor, mesmo fazendo uso da faculdade consentida por este preceito, não se
exime ao concurso de credores, não se alcança uma razão válida para que o mesmo não
suceda com o credor pignoratício que requeira a venda antecipada nos termos do art.º
1013.º, do mesmo Código.1515
Todavia, a nossa lei, ao contrário de outras,1516 não admite a venda antecipada
com fundamento na existência de uma ocasião favorável, nem a requerimento do
empenhador, nem do credor.1517
pelas formas estabelecidas para o processo de execução e precedida das citações ordenadas no n.º 1 do
artigo 864.º, observando-se quanto à verificação dos créditos as disposições dos artigos 865.º e
seguintes, com as necessárias adaptações”, concluindo, por isso, “que, afinal, o processo de venda e
adjudicação do penhor comporta o concurso de credores e que a preferência do credor pignoratício não
se antepõe à dos credores privilegiados”. Na jurisprudência, defendiam a não obrigatoriedade de
proceder à citação de outros credores com garantias sobre o bem empenhado, nos termos do art.º 864.º do
CPC, o Acórdão da Relação de Lisboa de 16/4/1994 e de 5/12/1991, in www.dgsi.pt, enquanto nos
Acórdãos da Relação de Lisboa de 11/2/1992, de 5/12/1991 de 4/10/1990, todos em www.dgsi.pt, e de
14/5/1975, in BMJ n.º 248, pág. 463, e da Relação de Coimbra de 8/5/1980, in BMJ n.º 337, pág. 422 e
segs., se decidiu pela de desnecessidade de realizar o concurso de credores.
1512
No mesmo sentido, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 37.
1513
Acerca deste último assunto, vide supra n.º 8.2.2 do Capítulo I.
1514
Analogamente, no âmbito do processo de insolvência, o art.º 158.º, n.º 2, do CIRE, permite, mediante
prévia concordância da comissão de credores (ou, na sua falta, do juiz), que o administrador da
insolvência promova a venda imediata dos bens da massa insolvente que não possam ou não se devam
conservar por estarem sujeitos a deterioração ou depreciação.
1515
Poder-se-á até questionar, com Antunes Varela, Das obrigações cit., Vol. II, pág. 540, nota 1, qual o
sentido de manter em vigor o art.º 1013.º, quando, por um lado, o processo especial de venda do penhor
foi revogado e, por outro, a possibilidade de venda antecipada do bem executado se encontra prevista,
para todas as execuções, no art.º 886.º-C.
1516
Cfr. art.º 2795.º, n.º 4, do CCI. De acordo com Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 117 e Gabrielli, Il pegno
cit., pág. 312, por “ocasião favorável” deve entender-se aquela em que o resultado da venda seja
suficiente para, pelo menos, satisfazer o crédito garantido. Se o preço a retirar da venda for inferior ao
valor do crédito garantido, importa averiguar se tal sucede por força de uma deterioração do bem
392
Poder-se-á, noutro plano, discutir se, perante uma situação de deterioração
iminente do valor dos bens onerados, a parte que dela tenha conhecimento não deverá
alertar a outra a fim de esta, querendo, utilize a faculdade concedida pela lei.1518
Resulta da circunstância da lei ter consagrado o mecanismo da venda antecipada
para proteger o credor pignoratício em caso de fundado receio de perda ou deterioração
do objecto da garantia, não ser lícito a este requerer, em tal caso, o arresto do mesmo
bem, ainda que este tenha permanecido em poder do empenhador.1519
posterior à constituição da garantia (caso em que se deveria aplicar o n.º 3 do art.º 2795.º, que prevê
precisamente essa eventualidade) ou, pelo contrário, tal insuficiência era originária, contemporânea do
nascimento do penhor e não resulta da alteração das condições de mercado (caso em que caberá ao juiz
avaliar se a ocasião é ou não favorável).
1517
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 177 a 179, concorda com a legitimação do empenhante
para requerer a venda antecipada quando se apresente uma ocasião favorável (com o argumento de não
haver lesão para o credor – uma vez que o produto da venda é depositado para sua garantia – e
desvalorizando a hipótese de a venda em momento posterior poder ser ainda mais rentável, por caber ao
juiz determinar quando a ocasião se apresenta efectivamente favorável), mas recusa a atribuição de
semelhante prerrogativa ao credor (sustentando que o empenhador pode ter interesse em conservar o bem
e que o direito do credor se baseia no valor normal da coisa e não num valor excepcional, só tendo este o
direito de impedir que o valor diminua a ponto de não garantir a obrigação ou agravar a insuficiência da
garantia: ora, seria demasiado forçar o empenhador, para impedir a venda, a prestar outra garantia, apenas
porque o credor se pretende fazer de um momento mais favorável para a venda e não por força da
existência de um risco de insuficiência ou risco de insuficiência da garantia): é esta a solução do direito
italiano (cfr. art.º 2795.º, n.º 4). Por seu turno Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 183, sugere que, em regra,
são irrelevantes, para este efeito, as meras oscilações de valor de mercado do bem empenhado, excepto
quando a diminuição do valor da garantia dependa principal ou exclusivamente de uma baixa do valor de
mercado. Em face do direito espanhol, Lerena Cuenca e outros, ob. cit., págs. 545 e 546, cita a sentença
da Audiência Provincial de Madrid de 3 de Novembro de 1993, na qual se responsabilizou o banco credor
por não ter alienado os valores empenhados, substituindo-os por outros que ficariam igualmente onerados,
no momento em que o devedor o alertou para a previsível baixa de valor (que veio a ocorrer) daqueles
bens.
1518
Aceita a existência deste dever de alerta, ancorando-o no princípio da boa fé, Hugo Ramos Alves, ob.
cit., pág. 183.
1519
Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 18/2/1997, in www.dgsi.pt.
1520
No Código de Seabra, para além do art.º 860.º, n.º 1 (análogo ao actual art.º 666.º, n.º 1), o art.º 886.º,
acrescentava que o credor pignoratício tinha o “privilégio” de ser pago da sua dívida pelo preço do
objecto empenhado, até onde chegasse o referido preço, sendo considerado, pelo resto, como credor
comum. Todavia, o uso da expressão “privilégio” pode induzir em erro, tendo em conta a existência de
uma outra garantia real – o privilégio creditório – que também atribui ao seu titular o direito de ser pago
com preferência sobre os demais credores, pelo que preferimos utilizar a expressão “preferência” para
designar esta característica do penhor (a confusão, no Código de Seabra, era ainda maior porque o citado
art.º 886.º se encontrava colocado na secção relativa aos privilégios creditórios). Talvez por isso, mesmo
ainda na vigência desse Código, Paulo Cunha, ob. cit., págs. 205 e 206, falasse já da preferência como um
dos atributos essenciais do penhor, enquanto Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 241 e 242, alegava a
inutilidade do art.º 886.º, o qual, ademais, ao equiparar o penhor ao privilégio, não tomava em
consideração a distinção entre ambos os institutos. Situação em tudo idêntica ocorre no direito francês,
salientando Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 445 e segs., a equivocidade do termo “privilégio” no direito
gaulês (originariamente significando unicamente uma garantia legalmente atribuída a determinados
créditos, mas cuja noção terá sido posteriormente adulterada pela legislação anterior à codificação “qui a
classé parmi les privilèges des droits d’origine diverse n’ayant pas forcément la même nature et ne
possédant pas les caractères des privilèges véritables”), significando hoje, não um direito real, mas antes
“un simple droit de préference entre créanciers”, isto é, o privilégio deixou de constituir um direito em
393
Em certo sentido, o direito de preferência constitui o núcleo central dos poderes
conferidos ao titular de uma garantia real (podendo, no limite, falar-se numa
identificação entre garantia e preferência, no sentido em que a primeira não existe sem a
segunda),1521 na medida em que a garantia sem preferência não se molda ao fim em
vista do qual foi criada, isto é, atribuir uma prevalência ao seu titular no concurso com
os demais credores do devedor.
Porém e ao contrário do que sucede a outras garantias, o modus operandi
específico do penhor requer, para o exercício da preferência, o desapossamento do
devedor e a permanência desse desapossamento, pelo que regra da prioridade temporal
de constituição, como critério de solução do conflito entre uma pluralidade de penhores
sobre o mesmo bem, significa que prevalecerá aquele em que aquele o empossamento
do credor se verificou primeiro (caso a coisa tenha sido entregue a terceiro, contará a
data a partir do qual este último aceitou deter o bem por conta de cada um dos diversos
credores)1522 ou pela data de cumprimento da formalidade imposta por lei para o
surgimento do penhor (a notificação ao devedor do crédito recebido em garantia, no
penhor de créditos, ou pela inscrição no competente registo, para os penhores
submetidos a essa exigência).
Mesmo no âmbito dos processos de insolvência, o desapossamento do devedor
deve manter-se até à data da reclamação de créditos (art.º 128.º, n.º 1, alínea c), do
CIRE, que obriga os credores, no momento da reclamação, a demonstrar o carácter
garantido do seu crédito – cfr. art.º 47.º, n.º 4, alínea a), do mesmo Código), pois, caso
contrário, a garantia terá de considerar-se extinta e o crédito amputado de preferência.
No que especificamente respeita ao penhor de créditos e em caso de conflito
com uma cessão do mesmo crédito, aquele prevalecerá se notificado ou aceite pelo
devedor antes da cessão (adquirindo o cessionário o crédito onerado com o penhor),
cedendo perante a cessão no caso inverso (caso em que se estará perante a cessão de um
crédito alheio, na medida em que o empenhador já não era proprietário no momento da
concessão da garantia).1523
sim mesmo, para passar a ser uma qualidade inerente, seja a um direito de crédito, seja a um direito real,
traduzindo-se no facto de colocar “la créance dont il est l’accompagnement avant les outres de même
espèce”, mas sem modificar a natureza do direito a que se adicionam (ou seja, num direito de preferência,
de modo que “La préférence reconnue au gagiste est l’effet direct et nécessaire de son droit réel de gage
(...) le gagiste n’aurait d’autre droit que son droit réel de garantie et ce que la loi appelle “privilège”
serait simplement la préférence resultant de ce droit, au profit du gagiste vis-à-vis des autres créanciers
sur le prix du meuble donné en gage”).
1521
Esta questão é particularmente relevante, por exemplo, em Itália, País no qual a lei faz depender a
preferência do credor pignoratício de determinados requisitos (nomeadamente da elaboração de um
documento escrito), não necessários para a validade do penhor (que se alcança com o simples
desapossamento do devedor), mas apenas para a sua oponibilidade. Neste contexto, surge a discussão
entre aqueles que sustentam que sem preferência não faz sentido falar de garantia pignoratícia e, por outro
lado, aqueles que defendem ser a preferência apenas um reforço do direito de penhor, que existirá mesmo
sem esse atributo (acerca desta controvérsia, vide Barbara Cusato, ob. cit., págs. 201 a 204). Esta
problemática manifesta-se igualmente em Espanha, afirmando mesmo Mejias Gomez, La prenda cit., pág.
317 e segs., que “el privilegio concede una situación de mejor derecho a la hora de ejecutar su
patrimonio, de forma que, una garantía que no se encuentre acompañada de un privilegio (…) tendrá
una ejecutividad más aparente que real”. Uma vez que, entre nós, o requisito do desapossamento do
devedor funciona como condição única de surgimento quer do direito de penhor e da preferência, a
questão não se pode colocar nos mesmos termos, sendo, a nosso ver, inevitável que a constituição do
penhor nos termos da lei implique a atribuição da preferência ao seu titular.
1522
Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 52 e 53.
1523
Neste sentido, Menezes Leitão, Cessão cit., págs. 398 e 399, justificando a sua posição com a
aplicação do art.º 584.º (nos termos do qual, em caso de cessão do mesmo crédito a vários sujeitos,
prevalecer a que primeiro for notificada ao devedor ou que por este seja aceite) ao penhor de créditos,
394
Cumpre, ainda, realçar que quando o penhor tenha sido constituído sobre um
bem de terceiro, tal não impede a actuação da preferência do credor pignoratício, a qual,
porém, se manifesta, não no confronto dos demais credores do devedor, mas sim dos
demais credores do terceiro constituinte da garantia.1524
No plano prático e processual, essa preferência manifesta-se em sede de
execução da garantia – intentada pelo próprio credor pignoratício ou por qualquer
credor do mesmo devedor na qual seja penhorado o bem previamente empenhado – ao
permitir que o preço obtido com a alienação do bem seja entregue, até ao montante do
seu crédito, em primeiro lugar ao credor pignoratício.
Em alternativa, pode o titular da garantia pignoratícia solicitar que o objecto da
garantia lhe seja, também em sede de execução, adjudicado em pagamento (art.º 675.º,
n.º 2).
Esta preferência do credor pignoratício que promova a execução da sua garantia
foi reforçada, na sequência da reforma da acção executiva de 2003, com a imposição de
limites à reclamação em execuções alheias de créditos dotados de privilégios
(mobiliários e imobiliários) gerais (art.º 865.º, n.º 4, do CPC), 1525 bem como, nos casos
em que tal reclamação seja admitida, reservando uma percentagem do valor da
alienação para o credor exequente (art.º 873.º, n.º 3, do CPC).1526
Contudo, este direito de preferência pode sofrer algumas limitações, mormente
quando, em sede de concurso, o crédito pignoratício se enfrente com outros credores
detentores de determinados privilégios mobiliários,1527 sejam eles trabalhadores (art.º
333.º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho)1528 o Fisco (art.º 736.º, n.º 1 e diversa
legislação avulsa)1529 e, particularmente, a Segurança Social (cfr. art.º 10.º, n.ºs 1 e 2, do
mesmo na ausência de uma remissão expressa constante do regime deste instituto, por entender que, quer
a cessão, quer o penhor, constituem negócios de disposição sobre o crédito.
1524
Destaca este aspecto Pace, ob. cit., pág. 17, nota 26.
1525
De acordo com este preceito, não é admitida a reclamação por parte do credor com privilégio
creditório geral, mobiliário ou imobiliário, quando a penhora tenha incidido sobre bem só parcialmente
penhorável, nos termos do artigo 824.º, renda, outro rendimento periódico, ou veículo automóvel (alínea
a)); quando, sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, a penhora tenha incidido sobre moeda
corrente, nacional ou estrangeira, depósito bancário em dinheiro (alínea b)); ou, sendo o crédito do
exequente inferior a 190 UC, este requeira procedentemente a consignação de rendimentos, a adjudicação
ou a em dação em cumprimento, do direito de crédito no qual a penhora tenha incidido, antes de
convocados os credores (alínea c)). Porém, de acordo com o n.º 6 do mesmo art.º 865.º, esta restrição não
se aplica aos privilégios dos trabalhadores.
1526
Segundo esta norma, a quantia a receber pelo credor com privilégio geral é reduzida até 50% do
remanescente do produto da venda, deduzidas as custas e as quantias a pagar aos credores que devam ser
graduados antes do exequente, na medida do necessário para o pagamento de 50% do crédito do
exequente, até que este receba o valor correspondente a 250 UC (também esta limitação, nos termos do
nº. 4 do mesmo artigo, não vale para os privilégios gerais dos trabalhadores).
1527
Posteriormente à aprovação do Código Civil, assistiu-se a uma multiplicação dos privilégios
creditórios mobiliários e imobiliários, sendo praticamente inviável enumerá-los todos – para uma resenha
exaustiva, eventualmente já desactualizada, vide o nosso Dos privilégios creditórios cit., pág. 223 e segs..
1528
Com a aprovação do Código do Trabalho de 2003 (tendo a solução sido mantida no Código de 2009,
actualmente em vigor), o privilégio imobiliário de que gozam os trabalhadores foi convertido de geral em
especial (incidindo apenas sobre o imóvel ou imóveis nos quais o trabalhador exerça a sua actividade),
mantendo-se inalterada a natureza geral do privilégio mobiliário – acerca das razões que ditaram esta
alteração, vide Miguel Lucas Pires, A amplitude e a (in)constitucionalidade dos privilégios creditórios dos
trabalhadores, in Revista Questões Laborais, n.º 31, (2008), págs. 59 a 88.
1529
O preceito citado no texto confere apenas um privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos
por impostos indirectos e dos directos (mas, quanto a estes, apenas relativamente aos inscritos para
cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois nos anteriores), sendo esta
mesma garantia conferida, para assegurar o pagamentos destes tributos, pelos art.ºs 111.º do Código do
Impostos sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e 108.º do Código do Impostos sobre o Rendimento
das Pessoas Colectivas, enquanto para cobrança do imposto municipal sobre veículos (bem como das
395
Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, actualmente transpostos para o art.º 204.º, n.ºs 1 e
2, do Código Contributivo da Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16
de Setembro),1530 para não falar dos privilégios de direito marítimo consagrados na lei
comercial (cuja manutenção em vigor é discutível).1531
Todavia e de acordo com as regras ditadas no Código Civil para o concurso dos
créditos privilegiados com outros preferentes, quando aqueles sejam gerais cederão
perante estes (cfr. art.º 749.º),1532 enquanto que se forem especiais a respectiva
graduação obedecerá ao critério da prioridade temporal (art.º 750.º).
Deste modo, a posição do credor pignoratício não será afectada pela existência
de credores detentores de privilégios mobiliários gerais (para além dos já aludidos, vide
os consagrados no art.º 737.º, n.º 1, alíneas a) a d)), podendo ceder perante privilégios
mobiliários especiais,1533 desde que estes se tenham constituído em momento anterior
ao do penhor (art.º 750.º).1534
multas por falta de pagamento e reembolso das despesas de parqueamento e remoção – cfr. art.º 22.º, n.º
5, do Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho, alterado pelo art.º 36.º da Lei n.º 65/90, de 28 de
Dezembro) e do imposto de circulação e camionagem (art.º 10.º do Regulamento aprovado pelo Decreto-
Lei n.º 116/94, de 3 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 89/98, de 6 de Abril) foram criados privilégios
mobiliários especiais, incidentes sobre o próprio veículo.
1530
Depois do n.º 1 deste preceito dispor que os créditos da segurança social por contribuições,
quotizações e respectivos juros de mora, gozam de privilégio mobiliário geral, a graduar nos termos do
art.º 747, n.º 1, do Código Civil (o qual, ao estabelecer a graduação dos créditos com privilégio mobiliário
entre si – e não face a outras garantias – manda pagar em primeiro lugar os créditos por impostos, com
preferência, dentro destes, para os créditos estatais face aos das autarquias locais), o n.º 2 acrescenta que o
dito privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que este seja de constituição anterior. Esta opção
legislativa é fortemente criticada por Pestana de Vasconcelos, Penhor, privilégio mobiliário geral cit.,
págs. 9 e 10, por tornar o penhor uma garantia muitas vezes ilusória, na medida em que “dado o carácter
secreto do privilégio, nunca estará inteiramente certo que não exista já um crédito da segurança social
sobre esse devedor. Por outro, o que é bastante pior, sabe que se o devedor/autor do penhor contrair
dívidas à segurança social, facto que o credor pignoratício não controla, poderá em sede executiva (…)
ver o seu crédito a não ser satisfeito ou a sê-lo só em parte”. Prosseguindo, o Autor escreve que “Do
prisma de política legislativa, a opção é péssima. É certo que se protegem fortemente os créditos da
segurança social, cuja boa saúde financeira é um bem de elevado valor (mas cuja tutela poderia ser
obtida de outra forma). Porém, esse efeito é obtido à custa do penhor, sacrificando-se em grande parte a
eficácia desta garantia real, uma vez que os operadores económicos só com as maiores cautelas irão
recorrer à mesma. Provavelmente exigindo que o valor da coisa empenhada seja muito superior ao do
crédito garantido (…), com os efeitos inerentes, dado o perigo do referido privilégio. E, no entanto, o
penhor é uma garantia da maior importância para os agentes económicos obterem crédito. Debilitando-
o, maiores dificuldades se criam para a concessão desse mesmo crédito e o seu preço, pois o risco
superior terá que se reflectir na taxa de juro. Ora, sem crédito aumentam as dificuldades para as
empresas, limita-se a sua capacidade de expansão e criação de emprego, fulcral para a segurança
social. Tanto porque não tem que pagar subsídios de desemprego, como recebe contribuições que, de
outra forma, não receberia. A criação de uma figura com estes contornos revela deficiências de
conhecimento das realidades da vida económica e empresarial e acaba por gerar resultados opostos aos
que se pretendem. É resultado de uma política legislativa míope”.
1531
Estas garantias, todas elas assumindo a configuração de privilégios mobiliários especiais encontram
consagração legal nos art.ºs 574.º a 583.º do Código Comercial (o primeiro dos quais determina mesmo a
prevalência sobre idênticas garantias consagradas na lei civil), embora a sua manutenção em vigor seja
duvidosa, tendo em conta que o art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 47334, de 25 de Novembro de 1966 (que
aprovou o Código Civil) determinou, com algumas ressalvas, o não reconhecimento futuro dos privilégios
creditórios e das hipotecas legais não consagradas no Código Civil – defendendo a manutenção em vigor
destas garantias, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 167; em sentido contrário, vide o nosso Dos privilégios
creditórios cit., págs. 351 e 352.
1532
Este preceito determina que os privilégios mobiliários e imobiliários gerais, cedem perante qualquer
direito real de garantia constituído sobre os bens do devedor.
1533
Para além dos privilégios mobiliários fiscais a que se fez referência, há que atender aos consagrados
na lei civil, como o atribuído ao crédito por fornecimento de sementes, plantas, adubos, água ou energia
para irrigação ou outros fins agrícolas (art.º 739.º, alínea a), incidindo sobre os frutos do respectivo
396
Todavia, o concurso de credores nem sempre se apresenta tão linear, uma vez
que a lei, em certas ocasiões, manda graduar um privilégio mobiliário geral antes de um
especial (vide, por exemplo, o que sucede com o privilégio mobiliário geral dos
trabalhadores, que o art.º 333.º, n.º 2, alínea a), do Código do Trabalho manda antepor
aos privilégios, gerais e especiais, enumerados no art.º 747.º) e este último, por seu
turno, pode ser de constituição anterior à do penhor (prevalecendo, por isso, sobre este,
nos termos do art.º 750.º):1535 quando tal suceda, a anteposição do privilégio geral ao
especial poderá originar, por arrastamento, a graduação do privilégio geral antes do
penhor, ao arrepio do disposto no art.º 749.º.1536
Mais grave ainda, os citados preceitos respeitantes à Segurança Social, para além
de atribuírem privilégios creditórios, contêm normas específicas relativamente à
respectiva graduação no confronto com outros créditos preferentes (afastando, assim, as
disposições civilísticas supra mencionadas),1537 mandando graduar o crédito
previdencial munido de privilégio mobiliário geral antes de qualquer penhor, mesmo
que este seja de constituição anterior,1538 solução esta que poderá configurar uma
inconstitucionalidade.1539
prédio), ao crédito da vítima de um facto que implique responsabilidade civil (art.º 741.º, o qual recai
sobre a indemnização devida pelo segurador da responsabilidade em que o lesante haja incorrido) e ao
crédito do autor de obra intelectual, fundado em contrato de edição (incidente sobre os exemplares da
obra em poder do editor – art.º 742.º).
1534
Cedendo, contudo, sempre perante os créditos por despesas de justiça, os quais, apesar de munidos de
um privilégios mobiliário especial, prevalecem sobre quaisquer outros da mesma igualha e, ainda, sobre
outras garantias, mesmo que estas sejam anteriores (cfr. art.º 738.º e 746.º).
1535
Na eventualidade de o penhor ser de constituição anterior à do privilégio mobiliário especial, o
concurso afigura-se bem mais simples, porquanto a garantia pignoratícia ocupará o lugar cimeiro, seguido
do privilégio geral e, por fim, do especial.
1536
Acerca desta problemática, vide o nosso Dos privilégios cit., pág. 369 e segs., no qual defendemos
que, neste caso, se deverá indagar se algum dos privilégios, por aplicação das regras dos art.ºs 749.º e
750.º prevalece sobre o penhor, assim concluindo que os gerais deverão ceder perante a garantia
pignoratícia, ainda que tal signifique uma subversão da escala de graduação recíproca dos privilégios em
concurso (pois a solução contrária violaria frontalmente o art.º 749.º).
1537
A este propósito, Pestana de Vasconcelos, Penhor, privilégio mobiliário geral cit., pág. 4, alude à
natureza duplamente excepcional deste privilégio, “tanto porque prevalece sobre os penhores
posteriormente constituídos, à semelhança dos privilégios especiais, quando é um mero privilégio geral,
como, em particular, dado que atinge igualmente essas garantias reais, quando elas sejam de
constituição anterior, o que não sucede nem no regime dos privilégios especiais”.
1538
Com efeito, em caso de concurso entre um crédito pignoratício e um crédito garantido pelo privilégio
mobiliário geral da Segurança Social, não obstante a censura que esta solução possa merecer, a graduação
não poderá deixar de ser a preterição do primeiro face ao segundo (quanto mais não seja em razão da
natureza especial do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, relativamente ao art.º 749.º, regulando ambas
as normas o concurso entre um privilégio mobiliário geral e outras garantias sobre os mesmos bens).
Contudo, a resposta complica-se quando o concurso se produza entre um crédito pignoratício, um crédito
da Segurança Social dotado de privilégio mobiliário geral e outros créditos – mormente fiscais ou laborais
(cujas respectivas normas de criação determinam a graduação preferente face aos créditos previdenciais)
– munidos de semelhante garantia, sendo detectáveis três posições distintas: uma primeira, opta por
graduar em primeiro lugar os créditos pignoratícios, seguidamente os laborais ou fiscais e, por último, os
da Segurança Social (aplicando, deste modo, o art.º 749.º, mas violando o n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-
Lei n.º 103/80); uma outra, passa por antepor o crédito previdencial ao pignoratício, graduando antes de
qualquer deles os créditos fiscais ou laborais (desta foram dando cumprimento ao n.º 2 do art.º 10.º do
Decreto-Lei n.º 103/80, mas não aplicando o art.º 749.º); finalmente, uma outra solução reside em graduar
na posição cimeira o crédito da Segurança Social, seguido do crédito pignoratício e, por último, os
créditos laborais e fiscais (cumprindo o disposto no art.º 749.º, mas recusando a aplicação das regras
especiais que ditam a prevalência dos créditos laborais e fiscais sobre os previdenciais). Conforme
escrevemos noutra sede e sem prejuízo de, de iure condendo, defendermos a revogação deste n.º 2 do 10.º
do Decreto-Lei n.º 103/80 (passando, então, a graduação a obedecer, essencialmente, ao disposto no art.º
749.º, o que significa colocar em posição cimeira o crédito pignoratício, seguido dos créditos laborais e
397
Esta situação é, aliás, comum a outros ordenamentos, nos quais se detecta
igualmente a prevalência de outras garantias – especialmente privilégios creditórios,
gerais ou especiais – sobre o penhor.1540
Refira-se, aliás, que o panorama até se agrava, na perspectiva do credor
pignoratício, no domínio falimentar, em razão da inexistência dos aludidos limites à
reclamação dos respectivos créditos por parte dos credores privilegiados, em especial
daqueles cuja respectiva garantia não se extinga com a declaração de insolvência (art.º
97.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - CIRE).1541
fiscais e, por último, o crédito da Segurança Social), advogamos, à luz do direito constituído, que a
melhor solução “será a de colocar em primeiro lugar os créditos do Estado, seguindo-se os da Segurança
Social e, por último, o crédito garantido por penhor: só dessa forma se assegurará o integral
cumprimento dos n.ºs 1 e 2 do 10.º do Decreto-Lei n.º 103/80, pese embora desse modo se estabeleça um
desvio ao regime plasmado no art.º 749.º do CC” – cfr. Miguel Lucas Pires, Dos privilégios cit., pág. 302.
1539
Sustentando a inconstitucionalidade deste preceito, por determinar a prevalência de um privilégio
mobiliário geral sobre um penhor, vide os nossos Dos privilégios cit., págs. 132 a 134 e A amplitude e a
(in)constitucionalidade dos privilégios creditórios dos trabalhadores, in Questões laborais, n.º 31, págs. 74
a 76, Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., págs. 895 e 896 e Penhor e privilégio mobiliário geral cit.,
págs. 1 a 22. Na jurisprudência, defende a inconstitucionalidade o Acórdão da Relação do Porto de
9/11/2006, in www.dgsi.pt e, em sentido contrário, vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 688/98
(ainda que com o voto de vencido da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza). Relativamente à
fundamentação deste juízo de inconstitucionalidade, este último voto de vencido ancora-a na violação dos
princípios da confiança (uma vez que o exequente corre o sério de risco de ver o seu crédito ultrapassado
por outros que desconhece – e não tem como conhecer, em razão da natureza oculta dos privilégios –
acabando por, não raras vezes, nada conseguir obter em sede de execução, para além de a preferência
concedida à segurança social não ter em conta a prioridade temporal relativa da constituição dos créditos
em confronto, não possuir limites temporais e não ser objecto de publicidade) e da proporcionalidade
(considerando que a garantia outorgada à segurança social é absoluta, não consentindo uma adequada
ponderação dos interesses dos credores pignoratícios preteridos no concurso, os quais serão sempre e
inexoravelmente lesados, sejam quais forem as circunstâncias do caso), enquanto Pestana de Vasconcelos,
Penhor, privilégio mobiliário geral cit., pág. 19 e segs., prefere sustentar tal juízo apenas no princípio da
confiança (pois, embora existam outras garantias ocultas – v.g. direito de retenção - outros casos de
prevalência sobre garantias anteriormente constituídas – v. art.º 751.º, para os privilégios imobiliários
especiais - e sem limites temporais – como sucede com tantos outros privilégios creditórios -, o facto é
que “a conjugação destes três elementos numa única figura, como é o caso, atenta claramente contra o
princípio da confiança”), acrescentando ainda que este juízo de inconstitucionalidade não é afectado pela
supervenientes alterações ao regime da acção executiva (no sentido de limitar a reclamação de créditos,
em execuções alheias, por parte de credores titulares de privilégios gerais) ou a aprovação do regime do
penhor financeiro (mais favorável, pelo menos a nível falimentar, para o credor pignoratício), porquanto
“deste novo quadro legislativo resulta somente que são em menor número os casos em que os créditos
garantidos com um penhor concorrerão com créditos que beneficiem de privilégio mobiliário geral. Mas
eles continuam a poder verificar-se. E não é por serem menores as possibilidades de concurso que isso
afecta a inconstitucionalidade desta disposição”.
1540
Quanto ao ordenamento francês antes da reforma de 2006, vide, por todos, Legeais, Sûretés 1999 cit.,
pág. 262, Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 50 e 51 (embora ressalvando que o penhor prevalecerá sobre
todos os privilégios gerais – excepto o relativo às despesas de justiça – cedendo perante diversos
privilégios especiais, nomeadamente os de natureza fiscal e laboral) e Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 290 (alertando para o facto de, caso o devedor se encontre em processo de falência, o
crédito pignoratício ser ainda postergado por outros créditos). Em Espanha, pode salientar-se, entre
outros, Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 320 e 321, de acordo com o qual os crédito garantidos por
penhor cedem perante os super privilegiados dos trabalhadores (no mesmo sentido, Gómez-Salvago
Sánchez, ob. cit., pág. 509) e os previstos nos tratados internacionais a que Espanha tenha aderido,
nomeadamente os consagrados no Tratado da União Europeia. O mesmo se passa no direito italiano onde,
de acordo com Rubino, Il pegno cit., pág. 270, o penhor prevalece sobre qualquer privilégio geral ou
especial, cedendo apenas quanto ao privilégio especial que tutela as despesas de justiça (vide também
Ciccarello, ob. cit., págs. 700 e 701 e Gabrielli, Il pegno cit., págs. 303).
1541
De acordo com esta norma, extinguem-se, com a declaração de insolvência, os privilégios creditórios
gerais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias
locais e as instituições de segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do início do
398
Há até quem, de modo mais mitigado, afirme que o direito de preferência não
significa que todos os credores concorrentes devam respeitar a prelação do credor
pignoratício, já que esta não pode obrigar aqueles que gozem de direitos
hierarquicamente superiores.1542
processo de insolvência (alínea a); os privilégios creditórios especiais que forem acessórios de créditos
sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança
social vencidos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência (alínea b)).
Extinguem-se igualmente as hipotecas legais cujo registo haja sido requerido dentro dos dois meses
anteriores à data do início do processo de insolvência, e que forem acessórias de créditos sobre a
insolvência do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social (alínea c)) e, se não
forem independentes de registo, as garantias reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo integrantes
da massa insolvente, acessórias de créditos sobre a insolvência e já constituídas, mas ainda não registadas
nem objecto de pedido de registo (alínea d)), bem como as garantias reais sobre bens integrantes da massa
insolvente acessórias dos créditos havidos como subordinados (alínea e)). Para além disso, o art.º 98.º, n.º
1, do mesmo Código dispõe que os créditos não subordinados do credor a requerimento de quem a
situação de insolvência tenha sido declarada passam a beneficiar de privilégio creditório geral, graduado
em último lugar, sobre todos os bens móveis integrantes da massa insolvente, relativamente a um quarto
do seu montante, num máximo correspondente a 500 UC. Pestana de Vasconcelos, Penhor, privilégio
mobiliário geral geral cit., pág. 8 e segs., a respeito do citado art.º 97.º, n.º 1, do CIRE, assegura que,
embora curto, o período de tempo em que os créditos privilegiados mantêm a garantia, “consiste num
período crucial no que toca ao não pagamento de dívidas, porquanto corresponde a uma fase em que o
sujeito começa a ter dificuldades que conduzirão depois à insolvência. Esta surge, em regra, depois de
um processo anterior de deterioração progressiva das condições económico-financeiras do devedor.
Portanto, será nessa altura que, com maior probabilidade, não cumprirá”.
1542
Neste sentido, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 43 e 44, apontando como exemplo
paradigmático a figura dos privilégios creditórios, entendendo até ser a existência deste instituto “que
explica en buena medida la proliferación de las garantías, y en especial las reales, siendo un medio de
esquivar los derechos de preferencia atribuidos por la ley a los acreedores privilegiados”.
1543
Em termos similares, o art.º 1435.º do CCB enumera os deveres do credor pignoratício, elenco do
qual constam a obrigação de custodiar o bem recebido em garantia como depositário (devendo
indemnizar o proprietário da eventual perda ou deterioração de que seja culpado, podendo este montante
ser compensado com a da obrigação garantida), de defender a sua posse (com o ónus de informar o
proprietário das circunstâncias que motivem o recurso às acções possessórias), de imputar o valor do
frutos de que se apropriar nas despesas de guarda e de conservação (e, sucessivamente, nos juros e capital
da obrigação principal), de restituir o bem em caso de pagamento da dívida (com os respectivos frutos e
acessões – segundo Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 60, “A restituição dos accessorios ou fructos é
obrigatoria, ainda quando o principal tenha perecido por caso fortuito (…). Se a conservação dos fructos
tornar-se impossível, como, por exemplo, tratando-se de coisas frugíferas, o credor deverá vendê-las,
imputando o producto da venda primeiro aos juros e depois ao capital”) e de entregar ao empenhante um
eventual excedente do preço, em caso de venda do bem, relativamente ao crédito garantido.
1544
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 485 e segs., discorda que estas obrigações brotem do contrato de
penhor, afiançando antes que a fonte desses deveres se encontra na lei (“ces obligations naissent des
dispositions légales régissant le gage sous l’impulsion combinée d’un fait juridique, la mise en
possession et d’un acte juridique, le contrat de gage”), embora reconheça que o contrato de penhor
contribua para desencadear a aplicação do regime legal (“le contrat de gage contribue dans une certaine
mesure à engendrer les obligations du gagiste, puisque dans le gage conventionnel c’est lui qui, joint au
fait de la possession, déclenche tout le mécanisme de l’institution”).
1545
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 266 e Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 138,
sugerem que a obrigação de restituição abrange, além do bem originariamente empenhado, as acessões e
os acessórios – incluindo os frutos – que esse bem tenha produzido, (salientando este último Autor que,
399
ou, dito de outro modo, o constituinte da garantia não pode exigir essa devolução antes
da extinção do débito principal.1547 1548
Com efeito, dado o carácter acessório da garantia, uma vez extinta a obrigação
assegurada, a detenção do bem por parte do credor – em que se consubstancia a garantia
pignoratícia - carecerá de fundamento jurídico.1549
Tendo o bem sido confiado a terceiro para que este o guarde, sobre ele
impenderá a obrigação de restituição e, correspondentemente, o direito de reter o bem
até integral pagamento do crédito garantido.1550
no caso dos frutos, a iminência da sua perda poderá aconselhar à sua venda), enquanto Planiol, Ripert,
Becqué, ob. cit., pág. 112, falam da obrigação de restituir coisa com todos os seus acessórios, seja os já
existentes à data do contrato de penhor, seja os posteriormente recebidos.
1546
No direito alemão, no qual tal dever de restituição encontra igualmente guarida (§1223 do BGB),
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1518
a 1520, esclarecem, contudo, que tal dever de restituição ao empenhante cede perante a acção de
reivindicação exercida pelo verdadeiro proprietário (sempre que este não tenha consentido na constituição
da garantia), pelo que nesta hipótese o bem deverá ser restituído a este último e não àquele.
1547
O art.º 2794.º, n.º 1, do CCI, o art.º 2082.º, n.º 1, do CCF (anterior à reforma de 2006) e o art.º 1870.º
do CCE adoptam esta segunda perspectiva, dispondo que o empenhador não poderá exigir a restituição do
penhor senão depois do integral pagamento do capital, dos juros e das despesas relativas ao débito e ao
penhor (como bem notam Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 104 e Guillouard, ob. cit., pág. 164, a norma
em questão deve ser igualmente aplicável quando a obrigação garantida se extinga por qualquer outro
meio além do pagamento - tendo a lei feito referência apenas a este último meio por ser o mais frequente),
muito embora alguns restrinjam o leque das despesas abrangidas por tais normas (assim, Guillarte
Zapatero, Comentario cit., págs. 554 e 555, considera que as despesas em questão são apenas as
necessárias à conservação do bem). Já o n.º 2 dos mesmos preceitos – que não encontra paralelo na nossa
legislação – atribui, se o penhor tiver sido concedido pelo devedor, um direito de retenção ao credor
relativamente a outro crédito que este possua contra o mesmo devedor, desde que este crédito tenha
surgido depois da constituição do penhor e vencido antes do pagamento do crédito pignoratício
inicialmente contratado. Já o §1223 do BGB dispõe que o credor pignoratício deverá devolver o objecto
empenhado ao constituinte, após a extinção do penhor (n.º 1), acrescentando que o constituinte pode
exigir a restituição contra a satisfação do credor pignoratício, logo que o devedor esteja habilitado a
cumprir a prestação (n.º 2).
1548
Para o efeito, o proprietário do bem empenhado dispõe da acção de reivindicação, bem como uma
eventual acção para ressarcimento dos danos causados ao bem empenhado por culpa do credor, sendo esta
última uma acção pessoal que prescreve no prazo ordinário (20 anos – art.º 309.º) e a acção de
reivindicação, em princípio, imprescritível (contra, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 112 e 113,
argumentando que a acção de reivindicação não sobrevive à acção de restituição, pois, verificando-se este
último condicionalismo, a acção de reivindicação não poderá surtir efeito porquanto o constituinte não
poderá provar que o antigo credor esteja sujeito à obrigação de restituição, uma vez que a acção de
restituição já se havia extinto). Já Troplong, ob. cit., pág. 126, sustenta que a acção de restituição do bem
empenhado não se encontra sujeita a prescrição (por permanecer imutável o título que fundamenta a posse
do credor, isto é, o direito real de garantia), excepto se o proprietário devedor, após a extinção do crédito
garantido, não recuperar o bem (pois esta extinção faz cessar aquele título, pelo que o proprietário apenas
poderá reclamar a devolução do bem de acordo com as acções ordinária de carácter pessoal, sujeitas por
isso ao prazo normal de prescrição). Por seu turno Rubino, Il pegno cit., pág. 288, sustenta que o
empenhante dispõe de dois meios alternativos para requerer a devolução do bem: uma acção de natureza
contratual, correspondente à acção pignoratícia directa do direito romano (a qual deverá ser proposta no
prazo de 10 anos a contar da data de extinção do penhor); e, por outro lado, a acção de reivindicação (uma
vez que cessou o título por força do qual o credor pignoratício tinha o direito de manter a posse do bem),
que é imprescritível (embora admita a usucapião a favor do credor pignoratício, desde que este,
abandonando o seu ânimo de detentor precário do direito de propriedade, comece a possuir animo domini,
muito embora aceite que tal inversão possessória não se pode ter como verificada automaticamente como
simples consequência da extinção da garantia).
1549
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 553.
1550
Assim Protettí, ob. cit., pág. 219 a 221 (citando, a este respeito, o Acórdão da Corte de Apelo de
Bolonha de 23/7/1955, no qual se exime o credor pignoratício deste dever, considerando que tal
constituiria um caso de responsabilidade sem culpa, a qual apenas existirá quando expressamente prevista
pelo legislador, o que não se verifica neste contexto) e Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1882
400
Naturalmente que se o bem empenhado se encontrar em poder de terceiro, a
obrigação de restituição impenderá sobre os seus ombros, sendo contra este que o
proprietário do bem deverá intentar, se for caso disso, as correspondentes acções.1551
Este dever poderá, inclusivamente, ser entendido como o mais típico do contrato
de penhor, uma vez que liquidado o crédito principal - ou extinta, de outro modo a
obrigação garantida – não subsiste qualquer fundamento para o bem permanecer em
poder do credor pignoratício.1552
Todavia, a existência desta obrigação é contestada por alguns, com o argumento
que, após a extinção da dívida, o constituinte da garantia dispõe unicamente do poder de
pretender a devolução.1553
Este dever de restituição tem por objecto o mesmo bem recebido em garantia
pelo credor, mas, sendo este um bem fungível, será legítimo admitir que aquele se isenta
da sua responsabilidade devolvendo outro da mesma qualidade e quantidade.1554 O
mesmo se poderá sustentar relativamente aos bens perecíveis, sendo o dever de
restituição cumprido através da devolução da soma em dinheiro resultante da alienação
daqueles1555 ou de outros do mesmo valor e espécie, assumindo esta obrigação
contornos específicos no penhor de alguns bens incorpóreos.1556
(entendendo que o terceiro “no es titular del derecho real de prenda sino depositario de la misma que
como tal tiene la obligación de conservarla, retenerla por lo tanto, en tanto no sea reclamada por quien
tiene derecho a la devolución, cuya concreción depende dependerá del cumplimiento o no de la
obligación principal”).
1551
Assim, expressamente, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 135.
1552
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 288 e Ciccarello, ob. cit., pág. 698. Diversamente, Montel,
Pegno cit., pág. 785, sustenta que, extinto o penhor, desaparece qualquer justificação para a detenção do
bem, pelo que o credor carece de legitimidade para repudiar as acções intentadas pelo constituinte da
garantia (o que seria confirmado pela ausência de consagração legal da obrigação de devolução do bem
empenhado após a extinção da obrigação, ao contrário do que sucede com outros contratos, como o
depósito).
1553
É o caso de Maiorca, ob. cit., pág. 239 e segs., assegurando que o credor pignoratício (bem como
aqueles que tenham constituído uma garantia para assegurar uma dívida alheia) não se assume como
credor do constituinte para a eventualidade de cumprimento da obrigação garantida, como se comprova
pela circunstância de “il potere di chiedere la restituzione del pegno (…) spetta anche a persone stranee
al rapporto, terzi acquirenti successivi della cosa vincolata in garanzia”: em suma, verificando-se a
ausência de uma causa legítima de manutenção da posse por parte do credor, este fica sem dispor dos
meios destinados à defesa dessa posse, pelo que “diventano attivi ed efficienti i poteri che, durando il
vincolo, risultarono in forza di leggi sospesi (…). Prescindendo dall’essere o meno proprietario, il
costituente potrà – ove ne ricorrono gli estremi – richiedere il possesso della cosa mediante azione
possessorie (…). Ma il potere che principalmente spetta al costituente (anche se non proprietario) è un
generale potere di chiedere la restituzione per indebito. Ciò che non è dovuto è da restituirsi. Non è già
che nel periodo in cui dura il vincolo la cosa sia dovuta, e cessi di essere dovuta in seguito. Il vincolo
importa solo una soggezione reale ed è pressuposto per cui la legge sospende il potere di ripetizione”.
1554
Assim, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 5444, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial
cit., pág. 267, Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 459, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 261 e Théry,
ob. cit., pág. 300, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 70 (advertindo que a avaliação deverá acontecer
no momento do pagamento) e Weil, ob. cit., pág. 102 (criticando aquele momento da avaliação, por poder
conduzir a que o credor seja forçado a devolver um montante superior ao preço de venda por ele
recebido). Contra, Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 184, por entender que esta solução postula uma
transferência da propriedade incerta, devendo o penhor de bens fungíveis ser tratado como um penhor
comum e Montel, Pegno cit., pág. 786, afiançando não poder o credor devolver qualquer outro bem que
não o recebido em garantia, ainda que de qualidade, quantidade e valor equivalentes.
1555
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., págs. 68 e 70, alertando para o facto de o valor do bem restituído
dever ser avaliado no momento da extinção do penhor, o que poderá obrigar o credor a entregar uma
quantia superior ao preço de venda por ele recebido, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 543,
contestando também a forma de avaliação seguida pela jurisprudência – valor dos bens alienados no
momento da restituição – considerando-a adequada apenas quando a faculdade de substituição houvesse
sido acordada entre as partes (devendo o credor restituir uma quantidade de bens equivalente à recebida
401
O dever em análise pode, sob uma outra perspectiva, ser encarado como um
direito do credor pignoratício de reter a coisa empenhada enquanto sobreviver a
obrigação assegurada com o penhor1557 bem como de rejeitar qualquer pretensão
destinada a obter a devolução desse mesmo bem.1558
Atendendo às considerações efectuadas a respeito da extensão do crédito
garantido, este poder do credor subsiste enquanto não forem liquidados os acessórios da
obrigação principal abrangidos pelo penhor (como os juros)1559 e, conforme decorre do
já analisado princípio da indivisibilidade da garantia, em caso de cumprimento parcial
da obrigação, o credor não será obrigado a restituir uma parcela proporcional do bem
empenhado.
Deste modo, reforça-se a função de garantia do penhor, porquanto, por um lado,
se assegura ao credor pignoratício que até ao momento da execução o constituinte não
entrega o bem a terceiro e, por outro, se exerce uma pressão sobre o devedor para que
este cumpra integralmente e, assim, possa recuperar o bem onerado.
Tal direito de retenção do credor pignoratício, contudo, poderá enfrentar
algumas limitações.
Com efeito, se, porventura, outro credor do devedor (ou do terceiro
empenhante), pretender a apreensão do bem empenhado em execução por si promovida,
a não subtracção do credor pignoratício ao concurso de credores impõe que este seja
forçado a desapossar-se do bem (para efeitos de alienação executiva), invocando a sua
preferência naquela execução.1560
ou o valor dessa quantidade determinado na data da execução da obrigação), mas não para os casos em
que tal substituição não tivesse sido prevista, hipótese em que os direitos das partes se reportam, por força
de sub-rogação legal, sobre o preço de venda imposto pelas circunstâncias, Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 267 e Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 184 (este último, apesar de ser contrário a
esta solução, admite ser a mesma aceite pela jurisprudência).
1556
Lisanti-Kalczinsky, ob. cit., pág. 166 e segs., destaca como no penhor de bens incorpóreos, a
obrigação de restituição consiste na obrigatoriedade de devolução ao constituinte de todas as
prerrogativas sobre o bem bloqueadas por força da constituição do penhor.
1557
No direito brasileiro, Sílvio Rodrigues, ob. cit., pág. 350, destaca que o direito de retenção do credor
se mantém, não obstante a extinção da obrigação garantida, até ser indemnizado das despesas
justificadamente realizadas com o bem onerado ou do prejuízo decorrente dos vícios desse mesmo bem
(art.ºs 1433.º e 1434.º).
1558
Excepto se o credor, apesar de não integralmente pago, tiver acordado na devolução do bem
empenhado antes do pagamento do seu crédito ou se tiver aceite outra garantia em troca - Guillouard, ob.
cit., pág. 164.
1559
Vide, por todos, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 523. Contra, Hugo Ramos Alves, ob. cit.,
pág. 131, entendendo que o credor pignoratício poderá reter o bem empenhado para garantia do
pagamento das despesas por si efectuadas para conservação do bem, não através do penhor (que não
garante as mesmas), mas apenas se preenchidos os requisitos legais do direito de retenção.
1560
Reconhecem esta limitação do direito de retenção Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 164,
165, 191 e 192 (concluindo que a lei não deverá fazer referência a um possível direito do credor de
recusar a entrega da coisa enquanto não for pago), Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 175
(“A existência desta garantia (…) não torna os bens empenhados impenhoráveis para os demais
credores. O credor pignoratício não é o único credor a poder promover a liquidação dos bens
empenhados, porque eles não deixam de fazer parte do património do devedor”), Pestana de
Vasconcelos, Penhor, privilégio mobiliário geral cit., págs. 10 a 12 (pelo menos a contrario, uma vez que
considera, no domínio do penhor financeiro, vigorar uma excepção à regra geral, que aponta no sentido da
impossibilidade de penhorar os bens previamente empenhados ao abrigo daquele regime excepcional) e,
na jurisprudência, o Acórdão do STJ de 14/1/1993, in www.dgsi.pt (“O penhor não confere ao credor
pignoratício o direito à exclusiva execução da coisa empenhada. Nada impede que outros credores do
dono dela promovam execução sobre a coisa, visto que esta continua a ser propriedade do autor do
penhor e responde pelas suas dívidas, embora com a preferência do credor pignoratício que pode
intervir na execução, tal como os demais credores com garantia real, e pagar-se pelo produto da
execução, com a preferência derivada do seu direito de penhor”) e o Acórdão da Relação de Coimbra de
402
De facto e segundo uma dada perspectiva, permanecendo o bem em questão na
propriedade do constituinte da garantia, encontra-se integrado na garantia geral que o
património do devedor oferece a todos os seus credores, a estes assistindo legitimidade
para executar tais bens.1561
13/4/199, in www.dgsi.pt (no sumário do qual se pode ler que “A existência do penhor não torna os bens
empenhados - que continuam a ser propriedade do autor da garantia - impenhoráveis para os demais
credores, não sendo o credor pignoratício, embora preferente no concurso com aqueles pelo valor de tais
bens, o único a poder mover a sua liquidação, podendo até a iniciativa da penhora pertencer a qualquer
um deles. Não pode, assim, o senhor Juiz inviabilizar a penhora do credor exequente - que não
pignoratício - sobre os bens antes empenhados”). Noutros ordenamentos, o mesmo entendimento é
apoiado por Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 110, afirmando que “il diritto do ritenzione non si può far
valere nei confronti degli altri creditori, nei cui rapporti è sostituito, se mai, dal diritto di prelazione” e
págs. 138 a 140 (esclarecendo que os terceiros poderão penhorar o bem empenhado, mesmo que o credor
pignoratício já tenha iniciado o processo executivo, mas apenas até ao momento da venda do mesmo bem,
pois a partir desse momento podem penhorar apenas o produto da alienação), Montel, Pegno cit., pág.
787, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 224, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 101, Guillouard, ob. cit., pág.
156, Troplong, ob. cit., págs. 122 e 123 e Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2146 (entendendo que o
credor pignoratício, não obstante o seu direito de retenção, não pode opor tal retenção ao embargo
deduzido por um outro credor do constituinte da garantia, podendo apenas fazer valer o seu direito de
preferência, mesmo que o crédito garantido ainda não se encontre vencido. Contra, embora em termos
não integralmente lineares, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 109, “Il peut opposer le droit de
rétention à tous les titres qui voudraient revendiquer ou saisir le meuble, notamente aux autres
créanciers du proprietaire du gage: sans doute ces derniers conservent en principe le droit de saisir et de
faire vendre l’object donné en gage, mais le créancier gagiste peut exiger un paiment préalable à tout
dessaisement”, Simler e Delebecque, Droit civil cit., págs. 457 e 460, afirmando que a posse do credor
pignoratício poderá ser por ele oposta a terceiros que pretendam obter a penhora do bem previamente
empenhado, Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 62 (admitindo que o credor oponha o seu direito de retenção a
qualquer penhora destinada a uma posterior venda do bem e até ao proprietário não devedor que invoque
uma cláusula de reserva de propriedade), Ancel, ob. cit., pág. 114 (reconhecendo que, em razão da
amplitude desse direito de retenção, se torna desnecessária a atribuição de um direito de sequela ao credor
pignoratício), Aynès e Crocq, ob. cit., pág. 204, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., págs. 66 e 67
(indicando ser essa a posição da jurisprudência) e, em termos mais amplos, Piedlièvre, Les sûretés cit.,
págs. 181 e 182 (admitindo mesmo que o direito de retenção do credor pignoratício possa valer contra
terceiros adquirentes e credores privilegiados do empenhador), Jacques Ghestin e outros, Droit spécial
cit., págs. 274 a 276 (concluindo ser o direito de retenção do credor pignoratício oponível erga omnes e,
muito em particular, aos credores privilegiados do devedor), Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit.,
pág. 541 e Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 156 (para quem, apesar de os terceiros poderem executar e
alienar o bem onerado, mas tais actos alienação não serão oponíveis ao credor pignoratício retentor, o
qual poderá recusar a entrega do bem enquanto não for liquidado o montante que lhe é devido (de modo
que o direito de retenção funcionará como um meio de pressão, não apenas face ao devedor, mas mesmo
relativamente a terceiros, na medida em que estes apenas poderão exercer os seus direitos relativamente
ao bem empenhado depois de satisfazerem o credor pignoratício). Já Weil, ob. cit., págs. 90 e 91, admite
que os outros credores possam penhorar e vender o bem anteriormente dado em penhor, mas podendo o
credor pignoratício exigir o pagamento do seu crédito antes do ser desapossado do bem.
1561
Assim, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 31. Negam que o poder o credor pignoratício possa lançar
mão da figura do embargo de terceiro contra o arresto ou penhora da coisa empenhada em execução
movida por terceiro contra o proprietário desta, os Acórdãos do STJ de 18/2/1966, de 21/11/1979, de
28/1/1983 e de 24/1/1984, (todos disponíveis em www.dgsi.pt, excepto o primeiro, publicado no BMJ n.º
154, 1966, pág. 322 e segs.), da Relação de Lisboa de 23/4/1979 (in CJ 1979, I, pág. 672 e segs.) da
Relação do Porto de 26/9/1996 (in CJ 1996, IV, pág. 199 e segs., no qual se afirma que o penhor apenas
confere ao credor um direito de preferência, não tornando impenhorável o bem onerado, não impedindo
por isso a sua penhora e posterior alienação em execução promovida por terceiro), da Relação de Évora
de 26/1/1983 (in BMJ n.º 325, pág. 618) e do Tribunal Central Administrativo de 26/1/1999 (in BMJ n.º
483, pág. 297), embora com motivações diversas (ora alegando não advir nenhum prejuízo da liquidação
dos bens empenhados no outro processo, porquanto a garantia passa a incidir sobre o produto dessa
liquidação; ora defendendo que o credor pignoratício não tem posse do direito de propriedade do bem
empenhado e, por isso, é apenas possuidor em nome alheio do direito de quem constituiu a penhora; ora
sustentando que a penhora não ofende a posse do credor pignoratício; ora alertando para o facto de a
403
Ou seja, este direito de retenção do credor pignoratício apenas seria invocável
relativamente ao devedor (ou, eventualmente, também face a terceiros que adquiram o
seu direito directamente do constituinte). mas não no confronto com terceiros
(nomeadamente com outros credores do mesmo devedor), caso este em que apenas se
poderá socorrer do seu direito de preferência.1562
A este entendimento poderá contrapor que, sendo a faculdade de reter o bem
empenhado um dos poderes legalmente atribuídos ao credor pignoratício uma vez
percepcionada a garantia, aquela retenção, à semelhança do próprio direito real de
penhor, será oponível erga omnes.
Todavia, o exercício de um direito de retenção oponível a terceiros pode
redundar em prejuízo destes, maxime outros credores do constituinte da garantia,
acabando por subverter o esquema de graduação de créditos delineado pelo legislador,
especialmente quando compaginado com a faculdade legal de atribuição em pagamento
do bem empenhado ao credor.1563
A opção por uma outra alternativa entronca na problemática respeitante à
natureza jurídica do direito de retenção do credor pignoratício (e até do próprio direito
de retenção em geral), confrontando-se os que o qualificam como um verdadeiro direito
de retenção aos que entendem estaremos perante uma consequência do direito real de
penhor.1564
solução inversa criar uma situação de impenhorabilidade dos bens contra a determinação da lei). Por
maioria de razão, não poderá socorrer-se dos ditos embargos o credor pignoratício quando o bem em
causa tenha permanecido em poder do respectivo proprietário (cfr. Acórdão da Relação do Porto de
17/2/1992, in www.dgsi.pt)
1562
Neste sentido, Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 523 e 524, para quem do cumprimento das
formalidades legalmente previstas para a sua constituição, o penhor surge munido de oponibilidade erga
omnes, a qual se afigura inequívoca face a terceiros que tenham adquirido o seu direito do constituinte,
mas se apresenta mais duvidosa relativamente aos demais credores deste último (distinguindo consoante a
obrigação garantida por penhor se encontre vencida – caso em que o credor poderá optar entre opor o
direito de retenção e impedir a devolução do bem enquanto não for pago ou, em alternativa, devolver o
bem e assegurar o cumprimento da obrigação através do exercício do direito de preferência - ou não,
hipótese na qual o credor poderá conservar o direito de retenção e opô-lo aos demais credores do
constituinte, até porque “El acreedor puede estar interessado en mantener la obligación durante el plazo
estipulado por estimar que se trate de una inversión rentable y bien garantizada y no parece que se le
deba forzar a alterar su situación, ni aun ofereciéndole otra garantía”). Também Baudry-Lacantinerie,
ob. cit., págs. 102 e 103, salienta que esta distinção se afigura relevante nos casos em que o credor
pignoratício tenha adquirido o direito de retenção, mas não o direito de preferência (por não
preenchimento dos requisitos legais), Guillouard, ob. cit., págs. 156 e 157, que, depois de considerar o
direito de retenção do credor pignoratício como uma excepção de natureza pessoal invocável apenas
contra o devedor, assegura que nenhum benefício ele retirará pelo facto de poder opor o direito de
retenção aos demais credores do devedor (pois se o penhor houver sido regularmente constituído o direito
de preferência será suficiente para assegurar o pagamento e se, ao invés, o penhor tiver sido
irregularmente criado, não disporá o credor de qualquer direito de preferência ou de retenção). Simon
Quincarlet, ob. cit., pág. 45, destaca ser esta a posição da jurisprudência dominante.
1563
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 77, salienta este aspecto e, de lege ferenda, sugere a
supressão destes dois poderes, sempre que deles possa resultar a deturpação da hierarquia das causas de
preferência estabelecida por lei.
1564
Coloca esta questão Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 341 e segs., advertindo que a mesma se encontra
directamente relacionada com a resposta a dar à oponibilidade (ou não) a terceiros do direito de retenção
(assegurando ser afirmativa a posição dominante). Nesta conformidade, aqueles que recusam a
oponibilidade a terceiros do direito de retenção, consideram ser este mesmo o direito que o credor
pignoratício dispõe (apenas divergindo do direito de retenção propriamente dito pela sua origem
contratual); outros, defendendo embora a oponibilidade a terceiros do direito de retenção comum,
entendem que de tal característica não goza o direito do credor pignoratício (e, por isso, que este não se
identifica com aquele), configurado como “une exception personnelle opposable au débiteur seul et ayant
pour but de permettre au gagiste de conserver la possession de la chose, condition nécessaire à l’exercice
404
Em nosso juízo e passando um pouco por cima desta discussão, o direito de
retenção do credor pignoratício, mesmo quando concebido como uma faculdade
inerente ao penhor, não pode ser oposto a terceiros credores do empenhante. Com
efeito, sendo o penhor um direito real de garantia, o seu desígnio é o de conceder uma
preferência para pagamento ao seu titular no concurso com outros credores do
de son privilège à l’égard des tiers”; finalmente, as posições doutrinais mais recentes defendem a
oponibilidade a terceiros do direito de retenção do credor pignoratício (de modo que “Les autres
créanciers ont le droit de saisir et de faire vendre le gage, mais le créancier gagiste peut exiger son
payment préalablement à tout dessaisissement”, posição esta recusada pela jurisprudência dominante),
embora não seja claro se tal oponibilidade decorre dos princípios gerais do direito de retenção ou, pelo
contrário, será uma consequência do direito real de penhor. A posição do Autor aponta no sentido de o
direito de retenção do credor pignoratício constituir um efeito do seu direito real de garantia, não se
identificando com o direito de retenção propriamente dito, uma vez que a posse (tendo por objecto o valor
do bem) e a detenção (recaindo sobre a coisa em si mesma considerada) parciais do bem onerado por
parte do credor, uma vez que esta última se encontra indissociavelmente ligada à primeira, “lui conférée
en vue de lui permettre d’obternir le payment de sa créance; elle subsiste donc tant que cette créance
n’est pas payé (…). Son droit de garder la chose jusque là n’est pas un véritable droit de rétention mais
l’exercice de son droit réel comportant à la fois le droit de garder une main-mise sur la chose jusqu’au
payment ou à la vente et d’en réaliser la valeur à l’écheance”. Afirmando expressamente que esta
faculdade de retenção não é um direito novo, mas antes um efeito próprio e natural do direito de penhor
(“pues se trata má de una facultad integrante del derecho superior de prenda que de un verdadero
derecho, no obstante la expressión del Código” que alude ao direito de retenção do credor pignoratício),
vide Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1882 (em termos análogos, Pace, ob. cit., pág. 35, nota 68,
justificando que este direito à posse do credor pignoratício não se confunde com o direito de retenção,
uma vez que esta pressupõe uma conexão – ausente no penhor – entre o débito e a coisa possuída, para
além de a recusa do credor devolver o bem onerado ser uma forma de exercício da garantia – surgindo a
obrigação de restituição apenas em caso de cumprimento da obrigação garantida - enquanto o direito de
retenção é uma garantia autónoma, que tem como objectivo assegurar um direito de crédito nascido por
força do bem que se retém). Pelo contrário, defende a autonomia da retenção do credor pignoratício,
recusando a sua configuração como mera consequência do contrato de penhor Catherine Pourquier, La
retention du gagiste ou la superiorité du fait sur le droit, in Revue trimestrielle de droit commerciale et de
droit économique, (2000), pág. 572 e segs., alicerçando a sua posição na circunstância de a faculdade de
retenção subsistir em caso de nulidade do penhor (apoiando-se em decisões judiciais que declaram que
“la détention de rattache à une convention ou à un quasi-contrat qui ait donné naissance à la créance.
Peu importe le fait que le contrat de gage soit nul pour cause d’incapacité d’un des cocontratents”:
embora estas decisões possam ser interpretadas como um efeito do penhor – o qual, apesar da invalidade,
mantém em vigor a obrigação do incapaz devolver aquilo que recebeu -, o Autor lê-as de modo diverso,
considerando que “il suffirait que la chose retenue et la créance soient issues du même rapport juridique.
Peu importe l’anciene qualité de créancier gagiste. C’est la rétention en tant que technique juridique
autonome qui doit serait allors appliquée”) e do reconhecimento desta mesma faculdade ao transportador
(contestando que tal direito de retenção possa ser fundado na ideia de penhor tácito sobre os bens
transportados, advogando, pelo contrário, funcionando tal detenção legítima como “critère de
reconnaissance d’un droit de rétention en faveur du commissionaire de transport. L’idée d’une rétention
légitime serait alors independente de la notion de bonne foi et se rattacherait plus généralement à la
possesion”: ora, extrapolando este mesmo raciocínio para o penhor e partindo do princípio que o critério
de existência do direito de retenção se baseia na conexão jurídica entre a coisa retida e o crédito do
retentor, a Autora sustenta que “La faculté accordée au gagiste procède de sa situation de détenteur de la
chose”), concluindo que, se a detenção é o fundamento do direito de retenção, mesmo do direito de
retenção do credor pignoratício, constitui o ponto comum entre a retenção do credor pignoratício e de
qualquer outro credor (com a única ressalva de, em alguns penhores regulados por leis avulsas – como os
warrants e o penhor de veículos automóveis - a lei admitir uma detenção fictícia, a qual, não obstante,
produzirá efeitos análogos aos da detenção efectiva, cedendo, porém, em caso de conflito com esta),
traduzindo-se, não num direito, mas numa situação de facto reconhecida pelo direito. Por seu lado,
Protettí, ob. cit., pág. 227, admite existir uma controvérsia acerca da amplitude do direito de retenção do
credor pignoratício, confrontando-se duas correntes: uma, advogando tratar-se de um direito pessoal
oponível apenas ao devedor; outra, pretendendo que tal direito seja oponível igualmente aos credores,
embora Gabrielli, Il pegno cit., pág. 313, afirme expressamente que o direito de retenção do credor
pignoratício apenas é exercitável contra o devedor e não contra os outros credores do devedor.
405
empenhante, não se concebendo que o exercício de uma das faculdades acessória a esse
direito – a de reter o bem empenhado até integral satisfação do seu crédito – possa
subverter e até mesmo excluir aquele concurso, em claro prejuízo dos demais credores
do empenhante, alguns dos quais até potencialmente detentores de outras causas de
preferência hierarquicamente superiores.
Seja como for, se o crédito e o penhor subsistirem, o empenhador1565 pode exigir
a restituição do bem contra satisfação do credor e, se o credor exigir o cumprimento,
deve ser concedido ao devedor empenhador o direito de invocar a excepção do não
cumprimento, recusando-se a liquidar a obrigação garantida enquanto não for restituído
o bem empenhado.1566
Mais discutível é aquilatar da existência deste direito de retenção do credor
pignoratício quando o objecto da garantia sejam bens incorpóreos ou, mais
especificamente, um crédito1567 e, noutra ordem de considerações, nos penhores sem
1565
Inversamente, o credor pode reclamar o cumprimento ao devedor, desde que, simultaneamente,
oferecer a restituição da coisa empenhada.
1566
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 192, acrescentando que se o empenhador não for o
devedor, este não tem que tornar o cumprimento dependente da restituição do objecto do penhor, uma vez
que a garantia não foi por ele constituída (neste caso, o proprietário do bem pode exigir a restituição, mas
apenas através da acção de reivindicação e não como condição do cumprimento da obrigação principal,
uma vez que não há relação pignoratícia entre o proprietário e o credor).
1567
A tendência tradicional é a de rejeitar a concessão de tal direito, sobretudo tendo em conta que a
retenção pressupõe, como objecto, um bem corpóreo e, além do mais, não constitui uma garantia e, por si
só, não confere qualquer preferência, pelo que não se pode considerar da essência do penhor, sendo
apenas uma prerrogativa atribuída por lei ao credor pignoratício (neste sentido, entre outros, Piedlièvre,
Les sûretés cit., pág. 194 e, sobretudo, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 268 e 269 -
admitindo estes últimos, no limite, um direito de retenção sobre um crédito comprovado por um título,
caso em que a retenção recai sobre o próprio título, assim se consagrando uma materialização simbólica –
e Théry, ob. cit., págs. 319 a 321, apelidando de ficcional o entendimento oposto, por não ser viável reter
o que não se tem em mãos, e por entender que a proibição de venda ou entrega do bem empenhado sem
consentimento do credor não equivale a um direito de retenção, uma vez que essa interdição apenas se
dirige ao devedor e não torna a venda inválida se o adquirente obtiver a posse de boa fé do bem), podendo
faltar no penhor de créditos pois “une créance est un bien incorporel insusceptible de possession. Le titre
dont la remise est exigée pour la constitution du gage est certes détenu par le créancier. Mais ce n’est
pas la créance elle-même qui est retenue. A supposer même que la possession embrasse les meubles
incorporels, on ne saurait concevoir de détention appliqué a une créance ou un droit. C’est
l’impossibilité d’appréhension matérielle qui justifie (…) le refus de le reconnaître au profit du créancier,
bénéficiaire d’un gage sur créances” - Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 78). Todavia, no
direito francês tem vindo a ser paulatinamente admitido direito de retenção a favor do credor com penhor
sobre um crédito, através do recurso aos seguintes argumentos: antes de mais, a concessão do direito de
retenção ao cedor pignoratício, por parte da lei, é feita em termos gerais, não circunscritos àqueles
credores cujo direito incida sobre bens corpóreos; depois e mesmo que se admita que o direito de retenção
apenas é concedido a estes últimos, a aplicação subsidiária ao penhor de créditos das regra do penhor de
coisas conduzirá à mesma conclusão, tanto mais que a lei considera que também no primeiro caso se
produz o desapossamento do devedor; por força, ainda, da progressiva desmaterialização do direito de
retenção, que conduz ao seu reconhecimento mesmo quando o objecto do direito não se encontre na
disponibilidade física do credor; finalmente, porque com a notificação da constituição do penhor de
créditos ao devedor do crédito cedido se cria uma situação de indisponibilidade análoga à originada com
o desapossamento, no penhor de coisas, ou seja, o direito de retenção “se conçoit beaucoup mieux si l’ont
tient pour essentiel le fait que le débiteur constituant el les tiers ne peuvent plus librement faire valoir
leurs droits à l’encontre du débiteur de la créance nantie. C’est cette paralysie des droits des tiers ser le
bien objet du gage qui caractérise le droit de rétention. Là est son essence qui s’exprime seulement sous
des formes distinctes selon que l’objet du gage est corporel ou incorporel” - Legeais, Les garanties
conventionelles cit., pág. 78 e segs.). Admitem expressamente a concessão de um direito de retenção ao
credor pignoratício com garantia sobre bens incorpóreos, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág.
541 (por entenderem serem estes também penhores clássicos) e sobre créditos Garcia Vicente, La prenda
cit., págs. 116 e 117 (traduzindo-se no direito de recusar a devolução ao empenhante da prestação cobrada
pelo credor pignoratício ao devedor do crédito empenhado e/ou dos documentos dos quais conste o
406
desapossamento (e normalmente sujeitos a registo),1568 pois em ambas as hipóteses o
credor pignoratício carece de um contacto físico com o objecto da garantia (e de
pretensa retenção).
crédito onerado – embora salientando que, neste segundo caso, a entrega destes documentos não pode
equiparar-se a um desapossamento do devedor, nem cumpre qualquer função translativa do direito, sendo
apenas uma obrigação acessória do contrato de garantia, destinada a permitir ao credor pignoratício o
exercício do direito empenhado -. Porém, o Autor evidencia como a recusa da devolução da quantia
cobrada não assume relevância, uma vez que “el cobro del crédito ya es ejecución de la prenda”). Admite
o direito de retenção do credor pignoratício cujo direito recaia sobre valores mobiliários escriturais,
Daniel Fasquelle, ob. cit., págs. 23 e 24, considerando a finalidade do direito de retenção – consentir ao
credor opor-se à restituição de um bem, enquanto o seu crédito não for liquidado – retém que “Dès lors
qu’il a concrètement les moyens de retenir le bien gagé, il faut admettre que le créancier dispose d’un
droit de rétention, et ce, peut importe la nature corporelle ou incorporelle du bien” e, no caso específico
dos valores mobiliários desmaterializados, tal poder de retenção traduz-se na faculdade do credor
pignoratício bloquear os valores onerados, o que significa conceder-lhe uma prerrogativa, senão igual, ao
menos muito semelhante à atribuída pelo direito de retenção (porém, se o gestor da conta na qual figuram
os bens onerados, autorizar a sua transferência para uma outra conta, o credor pignoratício pode invocar o
seu direito de sequela e reivindicar o bem das mãos do terceiro para o qual fora transferido, sem que este
possa valer-se do princípio da posse vale título, em razão da natureza incorpórea do bem empenhado).
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 166 e segs., considera, genericamente, que no que toca ao direito de
retenção, entendido como modo indirecto de compelir o devedor a cumprir a sua obrigação, admite que
este normalmente pressupõe a detenção material do objecto retido, pelo que a doutrina tradicional recusa
a outorga deste poder ao credor titular de um penhor sobre um bem incorpóreo (excepto, eventualmente,
quando esse bem seja representado por um título corpóreo). Contudo, a evolução mais recente demonstra,
segunda esta última Autora e apesar das dúvidas jurisprudenciais (que, a respeito do penhor de créditos,
sempre recusou tal faculdade, demonstrando maior abertura relativamente ao penhor de conta bancária, a
propósito do qual foi defendida a solução inversa, recusando a entrega do bem a um liquidatário judicial o
saldo da conta onerada, com o argumento que o credor pignoratício dispunha de um direito de retenção
traduzido no bloqueio do saldo da conta a favor daquele credor), o surgimento de diversas consagrações
legais de direitos de retenção sobre bens incorpóreos, como no penhor de participações sociais de
sociedades civis imobiliárias de construção (através de um preceito que, vindo limitar o alcance e a
oponibilidade do direito de retenção, implicitamente reconhece a sua existência) e, sobretudo, de contas
de instrumentos financeiros (abrangendo o direito de retenção os instrumentos financeiros e as quantias
constantes da conta empenhada, traduzindo o exercício desse direito no bloqueio da dita conta por parte
do respectivo gestor, o qual, se não for o credor pignoratício, exercerá a retenção por conta deste), ao
ponto de alguns defenderem, com base nesta última previsão legal (e apesar das objecções contra ela
dirigidas por parte da doutrina, designadamente quanto à incompatibilidade entre o direito de retenção e a
permanência da titularidade da conta no constituinte de garantia – argumento rebatido pela Autora,
escrevendo que essa permanência “traduit simplement l’absence de transfert de propriété des actifs au
profit du créancier. La dépossession existe et résulte de la perte des pouvoirs sur le compte par le
constituant. Paradoxalement, cette perte de pouvoirs est par ailleurs reconnue par ces mêmes auteurs
pour affirmer que la reconnaissance du droit de rétention est parfaitement puisque le constituant est
privé des prérrogatives sur le compte gagé” - e pela impossibilidade de constituir outros penhores sobre o
mesmo bem que tal direito de retenção acarreta – facto que é comum à generalidade dos penhores com
desapossamento), a generalização da solução, embora a tal possa obstar o art.º 2082.º, n.º 1, do CCF,
anterior à reforma de 2006 (norma que atribui o direito de retenção ao credor pignoratício), o qual, apesar
de não efectuar qualquer destrinça entre o penhor de coisas corpóreas e incorpóreas (podendo, por isso,
aplicar-se a ambos), é de aplicação limitada as garantias com desapossamento (contudo, a Autora
contorna este obstáculo, porquanto assegura a existência de desapossamento também nos penhores sobre
bens incorpóreos, pelo que conclui “Il n’y a donc aucune raison d’exclure le droit de rétention au
bénéfice du créancier titulaire de toute sûreté avec dépossession des biens incorporels. En outre, le
refuser serit inéquitable parce qu’une discrimination naîtrait entre les gagistes selon que l’assiette de la
sûreté est corporelle ou incorporelle”).
1568
Sobretudo em França, assistiu-se à expressa atribuição de um direito de retenção, por alguns
denominado fictício, a penhores sem desapossamento, o que parece vir baralhar a aparente a posição
tradicional da jurisprudência no sentido de negar ao credor pignoratício, neste caso, o direito de retenção -
traça este panorama Théry, ob. cit., pág. 319 a 321.
407
Uma possível solução – e embora a questão se entrelace com outra
anteriormente abordada respeitante aos possíveis objectos da posse - passa por
considerar o direito de retenção como falta de disponibilidade plena do empenhante
sobre o bem onerado;1569 uma outra, reside na reformulação do próprio conceito de
retenção.1570
1569
Avança esta alternativa a respeito dos valores mobiliários escriturais Mejias Gomez, La prenda cit.,
pág. 249 e, em geral, Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 348 a 351. Segundo este último Autor, no caso dos
chamados penhores sem desapossamento e partindo da sua concepção do credor pignoratício como
possuidor e detentor parcial do bem recebido em garantia, “il y a place ici aussi pour une rétention fondée
sur le droit de gage et sur les carácteres de la possession du créancier; seulement il ne saurait être
question pour celui-ci de conserver la détention, qu’il n’a pas, mais seulement sa possession partielle à
titre de gagiste”: ora, esta posse conservar-se-á através da retenção do título representativo dos bens
onerados (como sucede com os warrant) ou pela manutenção da publicidade legal (impedindo que o
devedor posse exigir o cancelamento do registo antes de extinto o crédito garantido (enquanto a detenção
parcial do constituinte da garantia traduzir-se-á pela interdição – penalmente sancionada – de entregar o
bem a terceiro sem prévia liquidação do crédito garantido, exercendo o devedor o direito de retenção em
nome do credor; ou, em alternativa, pelos terceiros a quem o bem venha a ser entregue, que permanecerão
detentores por conta do credor pignoratício, nos mesmos termos em que o devedor o era). Mais
precisamente e de acordo com Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 179 e180, o direito de retenção traduz-
se no poder de paralisar os direitos de terceiros sobre o bem empenhado, ou seja, impedindo que o
devedor do crédito empenhado possa pagar ao constituinte do penhor (no penhor de créditos) e não
consentindo, salvo acordo do credor, a transferência dos activos pertencentes a uma conta de instrumentos
financeiros bloqueados para qualquer outra (no penhor de contas de instrumentos financeiros). No entanto
e apesar destas especificidades, a Autora retém não se tratar de uma retenção fictícia (o que apenas será
válido para aquelas garantias em que o constituinte não é privado das utilidades fornecidas pelo bem
onerado), desde que se aceite que o direito de retenção se caracteriza pela indisponibilidade do bem
empenhado (e não sendo o silêncio do legislador um obstáculo, uma vez que a consagração genérica do
art.º 2082.º, n.º 1, do CCF abrange os penhores sobre bens corpóreos e incorpóreos). Quanto ao mais,
aplicar-se-ão as regras ditadas para o direito de retenção, quer no que toca ao crédito do retentor (que
deverá existir efectivamente), quer quanto à sua natureza lícita (não pode o direito do retentor resultar de
acto ilícito ou violento) e contínua (perdendo-se o direito de retenção em caso de desapossamento
voluntário do bem retido, mas já não quando tal perda seja excepcional ou involuntária), quer ainda no
que concerne à sua oponibilidade erga omnes (particularmente aos demais credores do constituinte do
penhor: todavia, a natureza incorpórea dos bens onerados impede a aplicação do princípio da posse vale
título, razão pela qual o credor pignoratício não poderá opor o seu direito de retenção sobre os bens
empenhados a um terceiro vendedor dos mesmos, quando estes tenham sido, previamente, vendidos com
reserva de propriedade) e à sua indivisibilidade (por exemplo, no penhor de conta de instrumentos
financeiros, o credor não terá a obrigação de, em caso de pagamento parcial, desbloquear uma parte da
mencionada conta).
1570
Assim, a respeito do penhor de créditos, Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 78 e segs.,
parte da natureza do próprio direito de retenção (distinguindo a detenção e posse unicamente em razão da
ausência, no primeiro caso, do animus domini e reconhecendo que, se nem todo o detentor é possuidor,
todo o possuidor é, a fortiori, detentor, ou seja, concluindo que o direito de retenção “n’est pas un droit
archäique, supposant une mainmise physique sur le bien objet du gage. Une analyse dématérialisée du
droit de rétention nous paraît tout à fait concevable”, o que se comprova pela atribuição expressa de um
direito de retenção a diversos credores titulares de penhores sem desapossamento, como sejam os que
recaiam sobre um veículo automóvel – em que o credor apenas recebe um documento administrativo – ou
sobre participações sociais em sociedades de venda de imóveis), embora alerte para numa postura
conservadora da jurisprudência (negando, por exemplo, a atribuição de um direito de retenção a favor de
um credor titular de um penhor sobre um estabelecimento comercial – posição esta que o Autor entende
compreensível à luz da natureza hipotecária e não possessória desta garantia – e ao beneficiário de um
penhor de créditos, posição esta incoerente - na medida em que “Il n’est pas logique d’affirmer que le
gage sur créance est un gage avec dépossession et, dans le même temps, de refuser de reconnaître un
droit de rétention au motif principal qu’il n’y a pas la dépossession, support nécessaire d’un droit de
rétention” – e iníqua, porquanto alguns credores pignoratícios beneficiarão da faculdade de retenção e
outros não, não por força de um critério objectivo ou da diferença de qualidade dos credores, o que “n’est
pas le cas: des créanciers bénéficiaires d’une même sûreté, se trouvent dans des situations juridiques fort
différentes au simple motif que certains se sont vu reconnaître un droit de rétention et d’autres non”). No
408
Quando o credor não se encontre em condições de restituir o bem empenhado,
nomeadamente em razão da destruição do mesmo, cumpre determinar de quem seja a
responsabilidade por esse facto: se for o resultado de culpa do credor, responderá pelos
danos causados (correspondentes, pelo menos, ao valor do bem onerado),
compensando-se a indemnização com o seu crédito; se a perda se tiver devido a caso
fortuito, responderá o empenhador, pois, tendo permanecido proprietário, suportará esse
risco (embora o ónus da prova do caso fortuito pese sobre os ombros do credor); por
fim, se a perda for consequência de um acto do devedor, o credor fica liberado da
obrigação de restituição e a dívida tornar-se-á imediatamente exigível.1571
Outra obrigação que recai sobre o credor pignoratício é a de não usar o objecto
da garantia sem consentimento do empenhador,1572 salvo se o uso for indispensável à
conservação daquele, (art.º 671.º, alínea b)),1573 uma vez que a coisa é dada em penhor
para garantia do credor e não para que este a use.1574
que especificamente respeita ao penhor sem desapossamento, como o credor pignoratício não pode
exercer o seu (pretenso) direito de retenção contra o empenhante, por ser em poder deste que o bem se
encontra, poderá advogar-se que, até integral satisfação do primeiro, o direito de retenção deste se traduz
na obrigação de conservação a cargo do empenhante, na sujeição da sua alienação ou oneração ao
consentimento do credor pignoratício (e, eventualmente, na sanção penal do desrespeito por tal
imposição) e na indisponibilidade do bem decorrente de, pelo menos para alguns tipos de bens, o
empenhante, apesar de proprietário e possuidor, ficar privado do direito de disposição.
1571
Estas conclusões são subscritas por Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 266 e 267.
1572
De acordo com Rubino, Il pegno cit., pág. 248, esse consentimento pode constar de uma cláusula
inserida no contrato de penhor, de um negócio unilateral de autorização posterior à constituição daquele
(mas anterior ao uso do bem) ou de um negócio posterior ao início do uso da coisa (válido para o futuro e
com o efeito de ratificar o uso até então efectuado), embora Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 128,
saliente que o consentimento pode ser prévio ou posterior ao uso do bem por parte do credor pignoratício.
Em termos substancialmente idênticos, Realmonte, Il pegno cit., pág. 666. Troplong, ob. cit., pág. 115,
ousa mesmo falar de penhores que, de acordo com o costume, pressuponham o uso do bem empenhado
por parte do credor, enquanto Faggella, ob. cit., pág. 119, admite um consenso tácito, subsumível de
determinadas circunstâncias de facto, como sejam a não oposição ao uso quando dele tivesse
conhecimento.
1573
Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 547 e 548, defende, mesmo na ausência de idêntica ressalva
no direito espanhol, a mesma solução, concretizando que o credor poderá usar a coisa “quando del no uso
de la misma se sigan perjuicios que el acreedor viene obligado a impedir en observancia de su deber de
cuidar la cosa diligentemente“. Por seu turno o art.º 2792.º do CCI acrescenta que o credor pignoratício
não poderá dar em penhor o bem recebido em garantia e que, em caso de uso indevido, os eventuais
proveitos obtidos com esse uso deverão ser imputados em primeiro lugar às despesas, depois aos juros e
por fim ao capital. No Código de Seabra, a interpretação do art.º 862.º dava azo a dúvidas, admitindo
alguns que tal preceito autorizava o credor a usar da coisa empenhada, sempre que desse uso não
resultasse perda ou deterioração dessa coisa (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 691),
enquanto outros sugeriam que ao credor estaria vedado o uso, salvo convenção em contrário, constatando
não haver uso do qual não possa resultar deterioração da coisa usada (Cunha Gonçalves, ob. cit., pág.
243).
1574
Como bem nota Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 547, “De la simple posesión de la cosa,
unida a la posibilidad que la misma asegura de ejercitar, en su caso, el ius distrahendi, surge la garantía
para el acreedor que su crédito será satisfecho. Pero, además, para que esto sea así, es preciso que la
cosa soporte del gravamen se conserve en su integridad y en su valor para que aquella garantía inicial
que representa no aparezca envilecida, consecuencia ésta que, normalmente, deriva del uso de la cosa”.
Quando, excepcionalmente, for conferido ao credor o direito de usar a coisa, esse direito é inerente – e
não autónomo – face ao direito de penhor, pelo que a extinção deste implica o mesmo efeito
relativamente à faculdade de uso do bem, não podendo, assim, o credor pretender reter a coisa para
continuar a usá-la – neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 249.
409
Todavia, para determinado tipo de bens a lei consente uma utilização mais ou
menos restrita por parte do credor pignoratício, como sucede com as participações
sociais, porquanto o legislador admite que alguns direitos inerentes a tais participações
possam ser exercidos pelo credor.1575
De igual modo, cumpre esclarecer que, relativamente a certos objectos – maxime
os frutíferos ou perecíveis – o cumprimento do dever de conservação (por exemplo,
através da exploração normal do mesmo ou até da sua alienação) não deve ser entendido
como violação da interdição de utilização.1576
Poder-se-á, todavia, equacionar se esta obrigação de abstenção (de uso)
constituirá um dever específico resultante da relação pignoratícia ou, pelo contrário, não
será uma mera aplicação ou reflexo do dever geral de abstenção do gozo de um bem de
outrem, apenas limitado em virtude da titularidade de um direito real por parte do credor
pignoratício.1577
Sendo o bem empenhado confiado a um terceiro designado por acordo das
partes, naturalmente que também ele não se encontrará legitimado para usar tal bem sem
o consentimento do seu proprietário,1578 pelo que as sanções para incumprimento da
proibição legal que a seguir se discriminam recairão sobre os seus ombros.1579
Se ao credor é vedado, em princípio, o uso do bem recebido em garantia, será
questionável o uso por parte do proprietário, muito embora tal circunstância possa
provocar a perda da posse do credor pignoratício (e a consequente extinção da garantia),
pelo que essa utilização apenas poderá admitir-se quando não prejudique aquela posse,
nem tão pouco o estado da coisa (v.g., para permitir reparações no bem empenhado por
parte do empenhante):1580 naturalmente que, perante um penhor sem desapossamento, o
1575
Sobre este assunto, vide infra n.º 1.2.8.5 do Capítulo II. Salienta este aspecto Veiga Copo, La prenda
de acciones cit., pág. 82.
1576
Assim, Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2148. Barbara Cusato, ob. cit., pág. 219 e Realmonte,
Il pegno cit., pág. 666, acrescentam ser também legítimo o uso do bem empenhado, por parte do credor
pignoratício, para a percepção dos frutos (em termos idênticos Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 127,
realçando que a realização de actos de conservação não é sinónimo de utilização, não considerando como
uso a exploração ordinária da coisa onerada frutífera através da obtenção dos seus frutos).
1577
Esta posição é seguida por Montel, Pegno cit., pág. 784.
1578
Admite o uso do bem empenhado pelo terceiro, mas exige o consentimento do credor pignoratício
Rubino, ult. ob. e loc. cit.. Parecem dispensar este consentimento Ciccarello, ob. cit., págs. 691 e 692 e
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 122 (embora este último apenas se ao terceiro já fosse permitido, antes da
constituição do penhor, esse uso). Noutro plano, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 192, admite mesmo o uso
pelo proprietário, desde que tal uso não seja incompatível com o desapossamento do bem.
1579
Mais concretamente, será a ele que competirá indemnizar os danos causados e contra ele que o
proprietário requererá o depósito ou a prestação de caução (neste sentido, Rubino, Il pegno cit., págs. 250
e 251, notando, porém, que as partes poderão, em caso de uso indevido pelo terceiro, acordar na
nomeação de outro sujeito para desempenhar as suas funções). Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs.
550 e 551, justifica a aplicação da proibição também ao terceiro possuidor com a ratio do preceito
(punição àquele que foi encarregue de guardar e conservar o bem empenhado), esclarecendo que, em caso
de violação do preceito por parte do terceiro, assistirá legitimidade para requerer o depósito, quer ao
constituinte, quer ao próprio credor (uma vez que este não deve responder pela conduta do terceiro, que é
nomeado de comum acordo com o empenhante, e, por outro lado, possui um interesse relevante na
conservação do valor do bem onerado), embora a lei apenas o consinta ao primeiro (pelo que, em última
análise, o credor deverá intimar o constituinte para o fazer, sob pena de lhe exigir uma indemnização
pelos danos que a sua inacção venha a causar).
1580
Por isso, Rubino, Il pegno cit., pág. 250 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 196, admitem
que uma cláusula contratual reconhecendo ao proprietário um direito de uso que praticamente anule a
posse do credor, será inválida (muito embora o segundo Autor entenda, consoante as circunstâncias do
caso e as normas gerais relativas à invalidade parcial dos negócios jurídicos, nula apenas essa cláusula ou
o próprio contrato de penhor, ao passo que o primeiro sustenta que a invalidade da cláusula não inquinará
o restante do contrato de penhor).
410
constituinte permanece legitimado para realizar actos de aproveitamento e fruição do
bem dado em garantia.
Na medida em que a lei veda o uso da coisa por parte do credor pignoratício sem
autorização do empenhador, cumpre determinar, em primeiro lugar, quais as condutas
daquele que violam essa proibição e, em seguida, quais as consequências resultantes
dessa violação.
Relativamente ao primeiro aspecto, deve entender-se que o credor infringe a
interdição legal quando utilize o bem sem autorização do empenhador (excepto de tal
uso for indispensável à conservação da coisa), bem como quando, havendo autorização,
o uso exceda os limites da autorização concedida (art.º 671.º, alínea b), por remissão do
art.º 673.º).1581
Quanto às consequências da violação da proibição legal de uso, o credor que, por
culpa sua, cause a perda ou deterioração da coisa empenhada (ou dela disponha),
responderá, perante o empenhante, pelos danos causados, em termos cíveis1582 e,
eventualmente, penais, como melhor veremos ao abordar os efeitos do incumprimento
do dever de conservação do bem onerado.1583
Em caso de uso indevido da coisa por parte do credor pignoratício (ou de este
agir de modo a que a coisa corra o risco de se perder ou deteriorar, assim violando o
dever de administração e conservação),1584 assiste ainda ao empenhador, nos termos do
art.º 673.º, o direito de exigir a prestação de caução idónea ou que a coisa seja
depositada em poder de terceiro.1585
1581
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 198, sustenta que, havendo autorização, se deve presumir
que esta não abrange a lesão importante do bem, não sendo exigível que tal lesão seja repetida, nem tão
pouco que se mantenha após requerimento do empenhador para que a lesão cesse. Em face do direito
italiano (cujo art.º 2793.º dispõe que o proprietário poderá reagir em caso de abuso da coisa por parte do
credor), Rubino, Il pegno cit., págs. 250 e 251, sustenta que por abuso se deverá entender tanto o
incumprimento da obrigação de custódia (aí compreendido o uso da coisa), como a tentativa de
disposição jurídica da mesma, enquanto Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 109 e Realmonte, Il pegno cit., pág.
666, acrescentam a estas a conduta do credor que não permita que o proprietário do bem desenvolva sobre
a coisa as operações compatíveis com o direito de penhor e, finalmente, Barbara Cusato, ob. cit., pág.
222, sugere também a não percepção dos frutos. Também no direito francês, o abuso da coisa empenhada
acontecerá quando o credor use o bem empenhado sem autorização ou extrapolando os limites dessa
autorização (Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 99).
1582
Neste âmbito, a principal especificidade decorre de o dano a indemnizar será o resultante do uso ou da
disposição indevida do bem empenhado (assim, Realmonte, Il pegno cit., pág. 666). Vaz Serra, Penhor
cit. in BMJ n.º 58, págs. 194 e 195, entende que, se o bem for confiado a terceiro e por este danificado,
responderá, perante o proprietário, também o credor pignoratício - mesmo que os danos sejam devidos a
caso fortuito –, a menos que prove que o dando se teria produzido ainda que a coisa tivesse permanecido
em seu poder.
1583
Vide infra n.º 9.2.3 do Capítulo I.
1584
Apesar do art.º 673.º determinar que a respectiva previsão legal se aplica apenas quando haja violação
da alínea b) do art.º 671.º (na qual se estabelece a proibição de uso do bem empenhado por parte do
empenhador), do conteúdo da norma decorre que a mesma também se poderá aplicar quando exista
violação da obrigação de guarda e administração (art.º 671.º, alínea a)) – neste sentido, Pires de Lima e
Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 693.
1585
Não faltam, em ordenamentos estrangeiros, soluções diversas, como sejam o direito de o empenhador
solicitar o depósito da coisa (art.º 1870.º do CCE) ou o seu sequestro - art.º 2793.º do CCI – (devendo as
despesas com ele relacionadas ser suportadas pelo credor incumpridor, por ter sido a sua conduta
violadora da proibição de uso a desencadear tal providência – cfr. Faggella, ob. cit., pág. 120), ou a
restituição antecipada do bem (art.º 2082.º, n.º 1, do CCF e, após a reforma de 2006, art.º 2344, n.º 1 –
todavia, Weil, ob. cit., pág. 101, admite que o tribunal possa, em alternativa, designar um depositário para
se ocupar do bem empenhado) ou o poder de exigir o depósito do bem empenhado a expensas do credor
ou, encontrando-se o bem em poder de um terceiro depositário, exigir a devolução do bem contra a
satisfação do credor pignoratício (art.º §1217 do BGB) – para uma crítica desta última hipótese, vide Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 199 e 200, argumentando que tal solução é excessiva, por implicar
411
Tendo sido o bem entregue a terceiro e sendo este o responsável pelo uso
indevido do bem empenhado, poder-se-á até equacionar se não assistirá legitimidade
também ao credor pignoratício para, invocando o art.º 673.º, requerer o depósito do bem
nas mãos de outros sujeito.1586
Todavia, para o cabal exercício destes direitos, talvez seja mister reconhecer ao
devedor empenhante a faculdade de inspeccionar e obter informações sobre o estado do
bem dado em garantia.1587
A utilidade obtida pelo credor, em violação da proibição legal de uso, deve ser
imputada ao montante do capital, de juros e de outras despesas e, por conseguinte,
quando o credor pretender executar a garantia deverá esse valor ser tido em conta (em
termos análogos ao disposto no art.º 672.º, n.º 1).1588
Quando, pelo contrário, o devedor consinta que o credor se sirva do bem
empenhado, será este o responsável pelo risco inerente a esse uso, assim como pelos
uma satisfação antecipada do credor que lhe pode ser prejudicial (apenas a admitindo quando houvesse
um abuso especialmente grave, mormente quando o credor, inibido do uso do bem, tenha violado essa
proibição e daí tenha resultado uma lesão significativa daquele). A solução do direito francês, entendida
por Guillouard, ob. cit., pág. 207, como uma condição resolutória tácita, aplicável a todos os contratos
onerosos para o caso em que uma das partes entre em incumprimento, sendo a acção de restituição
imprescritível enquanto a dívida não for paga e prescrevendo no prazo ordinário de prescrição após essa
data (porém, o citado Autor admite, mesmo na ausência de disposição legal nesse sentido, que o tribunal
poderá decretar, em caso de abuso por parte do credor pignoratício, o sequestro do bem empenhado,
alegando que tal solução não prejudica o devedor – cujo direito de propriedade permanece salvaguardado
– nem o credor – sendo menos nociva face à obrigação de devolver o bem ao devedor, assim extinguindo
a garantia) também se poderá considerar excessiva por, ao prever a obrigação de devolução do bem ao
seu proprietário, implicar a extinção da garantia, sem que o credor possa sequer exigir outra em troca
(quanto a este último aspecto, vide o ult. ob. e loc. cit.) e sem que a data de vencimento da obrigação
garantida seja modificada (sobre este ponto Weil, ob. cit., pág. 100 e Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág.
110, aditando estes últimos que a aplicação da regra suscita dificuldades uma vez que o credor, por se
encontrar em poder da coisa, perceberá os seus frutos). No direito espanhol, o art.º 1870.º do CCE
determina que o uso não autorizado do bem empenhado por parte do credor pignoratício confere ao
constituinte da garantia o direito de requerer a consignação em depósito daquele objecto (na falta de
indicação legal, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1889, entende que caberá ao juiz a nomeação do
depositário, que poderá ser qualquer, excepto o constituinte: de lege ferenda, o Autor advoga ter sido
preferível sancionar a conduta do credor com a extinção da garantia, por considerar pouco prática a
sanção cominada pela lei. Para além disso, o Autor ressalva ainda o direito de indemnização pelos danos
causados no bem onerado, o qual é independente do uso do pedido de depósito por parte do empenhante
e, finalmente, assegura que a norma será aplicável mesmo quando o bem tenha sido entregue, aquando da
constituição do penhor, a um terceiro, embora nesse caso e se este violar a proibição de uso, entenda que
o credor pignoratício não pode ser designado depositário – pois se as partes entenderam inicialmente
nomear um terceiro, terá sido porque não pretenderam colocar o bem nas mãos do credor – e, por outro
lado, não admite o Autor que o credor pignoratício, sempre na hipótese de o bem ter sido inicialmente
entregue a terceiro, possa ser ele a requerer o depósito – alegando que a ratio do preceito é a de permitir
ao empenhante recuperá-la); já Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 548 a 550, salienta como o
constituinte poderá fazer valer-se desta prerrogativa sem que da conduta do credor resultem alterações ou
depreciações no bem empenhado, bastando o simples uso não autorizado ou o abuso (ou até quando exista
violação do dever de conservação que impende sobre o credor), enquanto Cordero Lobato, Comentarios
cit., pág. 2148, esclarece que o penhor não se extingue e que tais expedientes legais são cumuláveis com
uma indemnização pelos danos sofridos. No direito brasileiro, o art.º 1435.º, I, do CCB, impõe também ao
credor o dever de indemnizar o proprietário do bem dos danos ou da perda deste de que seja culpado,
admitindo expressamente a possibilidade de compensação dessa quantia com o montante do crédito
pignoratício.
1586
Defende esta solução, Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2148.
1587
Neste sentido, Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 299.
1588
É esta, conforme se deu conta, a solução expressa do direito italiano, defendida por Rubino, Il pegno
cit., pág. 250 e sufragada por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 194 e 195, no caso de a utilidade
ser a retribuição paga por terceiro pelos frutos por ele recebidos (se essa utilidade não é uma retribuição
pelos frutos, a imputação explica-se como reacção contra o acto ilícito do credor).
412
proveitos ou perdas resultantes dessa utilização, devendo, contudo, restituir ao devedor
os proveitos proporcionalmente ao valor ou ao capital usado (estas regras, porém, são
susceptíveis de ser afastadas por disposições inseridas no negócio de constituição da
garantia ou no acordo de concessão ao credor da faculdade de utilizar o bem
empenhado).1589
Questão importante é a de determinar se qualquer violação, por parte do credor
pignoratício, dos deveres de conservação, administração e inibição de uso do bem
empenhado será de molde a justificar a aplicação, a requerimento do empenhante, dos
mecanismos previstos no art.º 673.º ou se, pelo contrário, tal aplicação apenas ocorrerá
em caso violação grave e qualificada de tais deveres.1590
Esta segunda alternativa encontra algum apoio legal no que respeita à violação
do dever de guarda e administração, na medida em que a sua violação apenas legitimará
o constituinte a requerer a prestação de caução ou o depósito se, por força dessa
violação, “a coisa corra o risco de perder-se ou deteriorar-se” – art.º 673.º.
Não estabelecendo a lei qualquer hierarquia ou precedência entre estes dois
mecanismos (e pese embora algumas críticas dirigidas à prestação de caução),1591
competirá ao empenhador optar por aquele que entender mais conveniente, solicitando
judicialmente o respectivo decretamento.1592
Optando o proprietário pelo depósito, a retribuição auferida pelo depositário
deverá ser suportada pelo credor, por ter sido da sua responsabilidade o recurso a este
mecanismo.1593
1589
Neste sentido, Faggella, ob. cit., pág. 118, fundamentando estas conclusões no facto de o uso do bem
ser no interesse exclusivo do credor e de o devedor, ao consentir esse uso, não assumir uma assunção do
risco de perda. Todavia, se o uso fosse desenvolvido no interesse exclusivo do devedor, o credor deveria
ser tratado como um mandatário e, por isso, não suportar as eventuais perdas; se, ao invés, fosse no
interesse comum de ambos (caso em que as perdas e os ganhos serão repartidos entre ambos, em partes
iguais ou conforme o que for acordado entre eles).
1590
Rubino, Il pegno cit., págs. 250 e 251, inclina-se para este segunda alternativa, reconhecendo que nem
todos os actos que constituem violação desses direitos legitimam, necessariamente, o sequestro do bem
empenhado, cabendo antes ao prudente arbítrio do juiz determinar se, em função das circunstâncias do
caso concreto, tal medida se justificará.
1591
Designadamente de Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 198 e 199, considerando que a mesma
“não se afigura aceitável, pois se obriga o credor a uma prestação, que pode não lhe ser possível ou ser
altamente incómoda, quando há outros meios de o empenhador se defender mais eficazmente”. Daí que o
citado Autor demonstre a sua preferência pelo depósito da coisa (salvo se, eventualmente, o credor prestar
outra garantia suficiente), pois “Com o depósito, a coisa continua afecta à garantia do crédito e é
colocada ao abrigo do abuso do credor (…) A coisa será depositada, como no caso de consignação em
depósito, em poder de uma entidade oficial ou de um terceiro.” Mesmo em face do direito italiano – que,
como se aludiu, consagra a figura do sequestro judiciário – Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 109, consideram
que do sequestro resulta uma situação análoga à entrega do bem empenhado a um terceiro designado
pelas partes, admitindo mesmo que o bem possa ser colocado em custódia comum de ambas as partes.
1592
Se for requerida e decretada a prestação de caução, o procedimento a adoptar será o previsto nos art.ºs
624.º e 625.º (no mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 693) e 981.º a
987.º do CPC, pelo que, se o credor não prestar a caução, tem o constituinte o direito de requerer o registo
de hipoteca ou de outra cautela idónea sobre os bens do credor; se for solicitado o depósito, coloca-se a
questão de saber se o procedimento obedecerá ao disposto no art.º 1024.º e segs. do CPC (uma vez que
este se encontra especialmente vocacionado para os casos em que o devedor se quer libertar da dívida e
não tem meio de o fazer particularmente, casos estes previstos no art.º 841.º, no qual a figura da
consignação em depósito encontra guarida: parece responder negativamente Alberto dos Reis, Processos
Especiais, Volume I, Coimbra Editora, 1982, pág. 430 e segs.) ou se, ao invés, deverá socorrer-se de uma
vulgar acção declarativa de condenação à entrega de coisa certa. Quanto às despesas destes
procedimentos, elas estarão a cargo do credor, por ter sido o seu comportamento a dar causa a qualquer
deles (neste sentido a propósito do depósito, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 199).
1593
Rubino, Il pegno cit., pág. 251, admitindo, no limite, que o proprietário pague ao depositário e depois
exija, em via de regresso, o reembolso desse montante ao credor.
413
A lei, ao vedar o uso da coisa por parte do credor pignoratício, parece impedir,
não apenas os actos de disposição material do bem empenhado, mas igualmente a
disposição jurídica do mesmo.1594
Por outro lado e recorrendo ao argumento de maioria de razão, não será de crer
que se a alguém não é consentido conceder a outrem, sem autorização do proprietário, o
uso do bem recebido em garantia, o possa ser a dação em penhor da mesma coisa em
garantia de uma dívida sua ou alheia.15951596
Dos dois argumentos acabados de expor, retira-se a proibição de o credor
pignoratício dar em penhor o objecto da sua garantia, o chamado sub-penhor,1597
proibição essa1598 que, embora não expressamente consagrada pela lei,1599 é reconhecida
pela generalidade dos Autores.1600
1594
A conclusão pode retirar-se do facto de a alínea b) do art.º 671.º aludir, tout court, à proibição de uso
da coisa empenhada, podendo retirar-se daí que não caberá ao intérprete distinguir – para efeitos de
admitir um e recusar o outro - entre o uso material e o uso jurídico, quando o legislador não o fez. Por
outro lado, não custa reconhecer que as consequências da disposição jurídica, para o proprietário do bem,
poderão ser no mínimo tão gravosas como as decorrentes do uso material. Esta é também a posição
dominante em Itália (vide, por todos, Rubino, Il pegno cit., pág. 249 e Realmonte, Il pegno cit., pág. 666).
1595
Rubino, Il pegno cit., pág. 249, assevera que o credor pignoratício carece de legitimidade para praticar
quaisquer actos de disposição jurídica, ainda que não excedam o conteúdo do penhor. Nesta
conformidade, é-lhe vedado não só dar em penhor a coisa por ele recebida em garantia (sub-penhor),
como também conceder o respectivo gozo a terceiro (seja através de da constituição de um direito real de
gozo – como o usufruto – seja por via da constituição de um simples direito pessoal de gozo). Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 264, negam mesmo que o credor possa conceder a terceiro
qualquer direito sobre o bem objecto da sua garantia, ainda que seja um simples direito de gozo.
1596
Faggella, ob. cit., págs. 52 e 53, embora refutando, em seguida, tais argumentos, dá conta de outros
dois argumentos utilizados pelos partidários da proibição do sub-penhor: em primeiro lugar, se a lei
admite que a cessão do crédito implica a cessão da garantia, não lhe será legítimo dar esta em penhor para
assegurar o cumprimento de outro crédito; em segundo, pelos inconvenientes que decorrem da criação do
sub-penhor (o devedor não poderia vigiar a conservação do bem, nem tão pouco exercer os seus direitos
de requerer a restituição antecipada do bem e de impedir o abuso do mesmo).
1597
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 107, oferecem duas noções alternativas de sub-penhor, quais sejam a
dação em garantia da coisa objecto do penhor, por parte do credor pignoratício, a favor de um seu credor
ou, em alternativa, a dação em garantia do direito de penhor ou dos poderes que ao credor pignoratício
cabiam sobre a coisa originariamente por ele recebida em penhor. Analogamente, Baudry-Lancantinerie,
ob. cit., pág. 98, distingue entre a dação em garantia, por parte do credor pignoratício, da coisa recebida
em penhor (negando a sua admissibilidade) e a cessão, por parte do credor pignoratício ao seu próprio
credor, da garantia que ele próprio recebera (julgando tal negócio lícito, desde que cumpridos os
requisitos legais de que depende o nascimento do penhor, embora ressalvando que o mesmo será de rara
utilização prática, uma vez que bastaria ao devedor pagar ao primeiro credor pignoratício para poder
reivindicar do segundo o bem de que é proprietário).
1598
Algumas vozes dissonantes se erguem, afirmando a validade e licitude do sub-penhor, como por
exemplo a de Faggella, ob. cit., págs. 53 a 56, aduzindo, em favor da sua tese, uma multiplicidade de
considerandos como a inexistência de qualquer proibição (este argumento carece, actualmente, de sentido,
porquanto o art.º 2792.º do CCI impede expressamente que o credor pignoratício dê o bem onerado em
garantia ou conceda o respectivo gozo a outrem) e, ainda, o facto de a tal negócio não se opor o princípio
da acessoriedade (sobretudo a partir do momento em que a própria lei admite a cessão da garantia
desacompanhada do crédito e a chamada cessão do grau). De acordo com a tese deste Autor, o objecto do
sub-penhor é o direito real do sub-empenhante sobre a coisa empenhada, implicando a constituição de um
novo direito real sobre outro direito real, um penhor sobre outro penhor, criticando, assim, a tese que
entende tratar-se de uma cessão). No entanto, julga ser necessária uma distinção entre a constituição de
um verdadeiro penhor sobre o direito real de penhor (sendo que, nesta hipótese, o sub-penhor se constitua
nos mesmos termos do penhor) e a constituição de um sub-penhor através de cessão, cedendo o credor
pignoratício em garantia o seu direito (bastando, nesse caso, a observância da forma exigida para a
cessão). Noutro contexto, a criação do sub-penhor não pode acarretar modificações da situação jurídica
resultante do penhor e, em particular, nenhum acto dos sujeitos do sub-penhor pode prejudicar os direitos
dos intervenientes no penhor (e, quando prejudique, implicará a responsabilidade do seu autor). Também
Troplong, ob. cit., págs. 115 e 116, distinguindo consoante o credor sub-pignoratício soubesse que o bem
414
Todavia, como a proibição do sub-penhor se retira da inibição do uso da coisa
empenhada pelo credor pignoratício e como esta última é afastada quando mereça o
assentimento do empenhador, também o sub-penhor será válido nas mesmas
circunstâncias.1601
Não falta porém quem, a propósito do sub-penhor, entenda ser necessário
separar as relações entre o credor pignoratício e o originário constituinte do penhor, por
em questão havia sido previamente empenhado (caso em que não terá mais direitos do que o seu credor)
ou ignorasse tal facto (caso em que terá todos os direitos de um credor pignoratício primário) e, mais
recentemente, Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 293 e 294 (admitindo que o empenhante possa
autorizar o credor a dispor dos bens onerados – apontando como exemplo a alienação para posterior
reinvestimento no penhor de valores mobiliários integrados numa carteira – e, por maioria de razão, possa
consentir na constituição de um penhor sobre o seu direito de penhor) e Sílvio de Salvo Venosa, ob. cit.,
pág. 561 (ressalvando apenas que o contrato de penhor o pode interditar e, quando ao regime aplicável,
“Biparte-se a posse mediata e imediata em favor dos credores pignoratícios sucessivos. Aplicam-se os
princípios gerais do subcontrato ou contrato derivado”). Aceitam, sem mais, a validade do sub-penhor -
ou de outros actos de disposição do penhor, nomeadamente através de cessão -, Cordero Lobato,
Comentarios cit., pág. 2148 e García Vicente, La prenda cit., pág. 102 (este último apenas no âmbito do
penhor de créditos e esclarecendo que, relativamente ao devedor do crédito inicialmente empenhado, o
sub-penhor funciona como uma espécie de cessão do crédito pignoratício).
1599
O mesmo sucede no direito espanhol, mas sem que tal omissão impeça a doutrina de sancionar a
invalidade do sub-penhor (cfr. Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 551 e 552, asseverando que “de
transmitir la cosa gravada en garantía de una deuda propia, el acreedor pignoratício no sólo
quebrantaria su obligación de cuidar de la cosa (…), sino que, además, incurriría en abuso”: todavia, o
Autor admite a dação em penhor do direito do credor pignoratício, hipótese na qual o credor sub-
pignoratício poderá exercer os direitos do credor pignoratício face ao constituinte). Finalmente, também
Chironi, ob. cit., págs. 496 a 498, depois de definir o sub-penhor como uma nova alienação do valor ínsito
no bem onerado, acrescenta que a sua constituição se dará através da notificação do empenhante do
primeiro penhor e a todos os eventuais credores sub-pignoratícios intermédios, admitindo, por isso,
implicitamente a figura.
1600
Vide, entre nós, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 691 e Hugo Ramos Alves, ob.
cit., págs. 128 a 130 (refutando o argumento tradicionalmente para admitir o sub-penhor – a possibilidade,
legalmente reconhecida, de cessão da garantia independentemente do crédito que assegura – e concluindo
pela sua incompatibilidade com os negócios de garantia, uma vez que, sendo admitida a cessão da
garantia, “haverá que concluir pela inadmissibilidade de sobreposição de contratos, em virtude de o
credor pignoratício carecer de legitimidade para subempenhar o bem que lhe foi dado em garantia, dado
que não resulta possível retirar qualquer argumento de maioria de razão a partir do regime da cessão de
garantia. Efectivamente, tal mais não seria do que, pura e simplesmente, franquear as portas a uma pura
inversão lógica”). Todavia, Colaço Canário, págs. 61 e 62, admite o sub-penhor de um penhor de
créditos, ou melhor, das prestações que constituam o objecto deste. Também em face do direito francês, a
proibição do sub-penhor é reconhecida (vide, por exemplo, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 98).
1601
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 200 e 201 (“Uma vez que se propôs não seja reconhecido
ao credor, sem autorização do empenhador, o direito de usar da coisa, não pode, sem essa autorização, o
credor dá-la em penhor ou conceder o uso dela a terceiro”) e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit.,
Vol. I, pág. 691. Diversamente, no direito italiano a lei limita-se a impedir a concessão, por parte do
credor pignoratício, do gozo do bem empenhado a terceiro, sem excepcionar o caso em que tais negócios
obtenham o beneplácito do proprietário do objecto do contrato, pelo que a questão se afigura mais
complexa, sustentando Rubino, Il pegno cit., pág. 249, que tais negócios serão nulos (uma vez que o
regime legal se funda no facto de o sub-penhor e a concessão a terceiros do gozo da coisa empenhada
excederem o normal conteúdo da função de garantia do penhor), ao passo que Gorla e Zanelli, ob. cit.,
págs. 108 e 109 admitem a validade de semelhante convenção (produzindo esta, em regra, o efeito de
permitir que o credor sub-pignoratício exerça os poderes autónomos do credor pignoratício, ocorrendo
assim uma dação da coisa em penhor por parte do originário constituinte – e não um penhor do direito de
penhor - em garantia de um débito do credor pignoratício, assim concorrendo dois penhores sobre o
mesmo bem). Para Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 164, a regra da proibição do sub-penhor (cfr.
art.º 2792.º do CCI) é derrogável pela vontade das partes, por entender que, havendo o consentimento do
concedente, se exclui “che in tal caso si realizzi una ipotesi di autonoma circolazione del diritto di pegno,
dato il concedente assume la veste di terzo datore di pegno, sulla stessa cosa, in favore del creditore del
proprio creditore”.
415
um lado, e entre o credor pignoratício e sub-pignoratício, por outro, para sustentar que a
proibição apenas releva no âmbito da primeira destas relações.1602
De acordo com este raciocínio e por força de tal proibição, o credor pignoratício
apenas poderá empenhar o crédito garantido – e não o bem empenhado - e desde que
mantenha o modo de custódia inicialmente estipulado – não lhe sendo, por isso,
legítimo entregar o bem – permanecendo na posse do bem no interesse do seu credor,
mas sendo responsável pela sua custódia relativamente ao constituinte originário.1603
Ao invés, nas relações entre os credores pignoratício e sub-pignoratício, este
último poderá, em relação ao constituinte da garantia e sem prejuízo dos efeitos
resultantes da violação da proibição do sub-penhor, exercer todos os poderes que lhe
cabiam relativamente ao constituinte originário.1604
Outros admitem em termos amplos o sub-penhor, partindo da premissa que o
objecto deste é o direito de penhor (e não a coisa), equiparando-o a uma cessão parcial
condicionada, a qual apenas produzirá efeitos relativamente a terceiros com a entrega da
coisa.1605
1602
Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 107 a 109, retirando do âmbito da proibição a impossibilidade de o
credor pignoratício entregar o bem ao seu credor (pois tal implicaria a violação do modo de
desapossamento estabelecido no contrato de penhor inicialmente acordado) e, por outro lado, que a
violação desta proibição acarreta – para além das sanções previstas para o abuso da coisa empenhada por
parte do credor pignoratício – que o sub-penhor não produza quaisquer efeitos relativamente ao
constituinte do penhor originário, podendo este exigir que o bem empenhado seja colocado na situação
contratualmente estabelecida e também a sua recuperação, mesmo se este se encontre em poder de
terceiro, após o pagamento do débito originariamente garantido.
1603
Concluindo que, desde modo, o constituinte não sofre qualquer prejuízo, uma vez que pagando ao
credor do seu credor pignoratício, recuperará o bem (Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 107).
1604
Assim, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 107 e 108 e Faggella, ob. cit., págs. 54 e 55 (advertindo para o
facto de o credor sub-pignoratício se poder valer da garantia contra o primeiro devedor, exercendo o
direito que cabe ao originário credor pignoratício e impedindo que este exija o pagamento do seu crédito e
que o devedor lho pague. Por outro lado, o credor sub-pignoratício não poderá exigir o crédito
pignoratício do seu devedor – dado que o sub-penhor não importa a cessão do crédito - nem tão pouco o
poderá fazer o pignoratício – porque extinguiria o penhor – tudo isto sem prejuízo do direito do devedor
originário de liberar a coisa, pagando o seu débito e o do seu credor. Porém, se o sub-penhor for
constituído em garantia de um débito maior do que o débito originário, o devedor deste último apenas terá
que liquidar a soma originariamente devida). A existência destes efeitos associados ao sub-penhor conduz
à afirmação, por parte do primeiro dos mencionados Autores, da existência de “um penhor sobre o direito
de penhor”, na medida em que o credor sub-pignoratício poderá, tendo em vista a satisfação do seu
crédito, exercer sobre o bem empenhado os poderes que competiam ao credor pignoratício. O citado
Autor sustenta, por outro lado, que estes efeitos em nada contendem com a incindibilidade do penhor
relativamente ao crédito originariamente garantido, porquanto o sub-penhor não produzirá efeitos
relativamente ao constituinte originário ou àqueles que dele tenham adquirido direitos (ob. cit., pág. 108).
1605
É esta a posição de Francesco Pellegrini, ob. cit., pág. 127 e segs., para quem o sub-penhor produz
dois efeitos em favor do credor sub-pignoratício: “a) la ritenzione di fronte al debitore intermedio; b) il
privilegio di fronti ai creditori dello stesso”, embora o seu direito se encontre “subordinato a questa
condizione: che se il debitore paghi a sua insaputa, la cosa gli deve essere restituita. Ma egli conta
precisamente su di ciò, che colui non pagherà se non colla contemporanea restituzione della cosa e
quindi egli eserciterà indirettamente ma efficacemente la ritenzione, ove il pagamento, in caso di
prevedibile contesa, non venga eseguito in favore del primo creditore, privo della cosa pignorata.
Basterá, al momento giusto un pignoramento del credito con assegnazione giudiziale ed il debitore dovrá
pagare direttamente a lui”. Em face do exposto, a limitação do direito do credor sub-pignoratício prende-
se com a actuação do devedor pignoratício proprietário da coisa, pois este, ao pagar, adquire o direito de
reivindicar o objecto da garantia, assim reduzindo a cinzas o sub-penhor: todavia, até esse pagamento,
não pode opor-se ao sub-penhor, nem mesmo argumentando que a coisa tenha sido entregue a um terceiro
(como não pode o devedor cedido opor-se à entrega do bem pelo cedente ao cessionário), excepto se
existir risco de deterioração ou perecimento do bem (sem prejuízo de, neste caso, o sub-penhor se manter
após a entrega ao eventual depositário judicial). Finalmente, no que respeita ao conflito entre os direitos
dos credores pignoratício e sub-pignoratício, este último encontra-se limitado – quanto ao montante –
416
Pelo contrário, para quem nega pura e simplesmente a validade do sub-penhor,
em caso de celebração de um negócio desta índole, o produto da venda do bem
empenhado reverterá unicamente em proveito do credor pignoratício, restando ao credor
sub-pignoratício lançar mão da figura da sub-rogação do credor ao devedor (em caso de
inacção daquele e quando o recurso a este instituto se mostre indispensável para
assegurar a satisfação ou garantia do seu direito).1606
pelo primeiro (assim, se A deve 100 a B e constitui a favor deste um penhor e B, por seu turno, constitui
um sub-penhor a favor de C no valor de 200, a garantia deste último apenas alcança aqueles 100; mas já
na hipótese inversa - A deve 200 a B e constitui a favor deste um penhor e B, por seu turno, constitui um
sub-penhor a favor de C no valor de 100 – o Autor entende que “Il grado poziore, come è evidente, è
quello di C per la semplice ragione che B è suo debitore e concorre soltanto sul sopravanzo. Il diritto di
vendita e aggiudicazione passa senz’altro a C in forza del contratto di suppegno”.
1606
Assim, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 130.
1607
Em termos semelhantes, o art.º 2790.º, n.º 1, do CCI estabelece que ao credor pignoratício compete
guardar a coisa empenhada, respondendo, de acordo com as regras gerais, pela perda ou deterioração da
mesma, o art.º 2080.º, n.º 1, do CCF (anterior à reforma de 2006, actualmente tal dever encontra
acolhimento no art.º 2344.º), dispõe que o credor responde, nos termos estabelecidos na parte relativa aos
contratos e às obrigações, pela perda ou deterioração do penhor que se tenha produzido por negligência
sua, o §1215 do BGB (ressalvando os eventuais deveres especiais de conservação quando ao penhor
esteja associada uma convenção anticrética - §1214 -) e o art.º 1867.º do CCE (no qual se pode ler que o
credor deve cuidar do bem recebido em penhor com a diligência de um bom pai de família).
1608
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 260 e 261, avalizam as cláusulas contratuais de
alteração do grau de responsabilidade do credor (seja no sentido de reforço, seja na direcção do
aligeiramento) ou do ónus da prova, mas rejeitam as destinadas a excluir totalmente o dever de
conservação do credor (por entenderem que tais acordos conduziriam à eliminação da obrigação de
restituição, a qual é reconhecida como sendo da essência do penhor e dando conta que a jurisprudência
não admite as cláusulas que tenham por objecto desonerar o credor da sua obrigação essencial).
1609
Rubino, Il pegno cit., pág. 243, acrescentando que o proprietário do bem empenhado poderá reclamar
um eventual crédito relativo à indemnização por danos causados nesse bem (ou pela sua destruição), sem
que, para tal, seja necessário liquidar o seu débito, isto por força do carácter não sinalagmático das duas
obrigações. Também Protettí, ob. cit., pág. 219, sustenta a responsabilidade exclusiva do terceiro e, em
consequência, faz respondê-lo, seja perante o proprietário do bem (relativamente à perda da propriedade
do bem empenhado), seja contra o credor pignoratício (sendo a sua responsabilidade resultante da
eventual não recuperação do crédito por força da perda da garantia); no mesmo sentido, vide ainda
Francesco Carnigella, ob. cit., pág. 3557 (invocando a decisão da Corte de Cassação de 27/3/1990, n.º
2472, na qual se decidiu que, nos penhores constituídos mediante depósito do quid onerado em armazéns
gerais, o dever de conservação impende apenas sobre os ombros do depositário), Realmonte, Il pegno cit.,
pág. 658, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 192 e, entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 89 e 90. Por
seu turno Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 202, admite uma responsabilidade, concorrente com
a do terceiro, do credor pignoratício, quando as circunstâncias assim o demonstrem, posição esta rejeitada
por Realmonte, Il pegno cit., pág. 664 e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 101 (advogando a responsabilidade
exclusiva do terceiro, até porque este é designado de comum acordo entre o credor e o devedor). Também
Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 531, admite a responsabilidade do credor, mas apenas quando
este tenha entregue a custódia do bem a um terceiro, sem o consentimento do empenhante, enquanto Paz-
Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1883, entende que, apesar de o art.º 1867.º do CCE mencionar apenas o
417
conduta,1610 muito embora não se exclua liminarmente que o terceiro possa, observadas
certas condições, usar o bem onerado.1611
Mais complexa é a resposta quando o bem, ao invés de ser entregue a terceiro, se
encontre submetido à guarda comum do credor e do empenhante.1612
Por se tratar do cumprimento de um dever, a função de guarda desempenhada
pelo credor pignoratício não lhe confere o direito a uma compensação pela sua
realização - o mesmo podendo não suceder com o terceiro -, mas terá direito a uma
indemnização por eventuais danos sofridos por força do exercício das funções de
conservação.1613
Há mesmo quem entenda que este dever de guarda se funda na posse da coisa –
e num acordo de guarda dela - e não tanto do contrato de penhor, pelo que a nulidade
deste não exime o credor do cumprimento daquele dever.1614
Questão complexa atine ao grau de diligência exigido ao credor pignoratício no
cumprimento desta incumbência legal, sendo certo que a lei apenas dispõe que o deve
fazer “como um proprietário diligente”, ou seja, apontando para um critério
objectivo.1615
credor, a mesma será igualmente aplicável ao terceiro a quem as partes decidam entregar o bem).
Finalmente, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 233, por considerarem o credor como
mandante e, por aplicação das regras do mandato, responsável, perante o devedor, pela perda ou
deterioração do bem empenhado.
1610
Perante o constituinte da garantia pelos danos resultantes da perda ou deterioração da coisa
empenhada resultantes da sua conduta negligente, assim como perante o credor pignoratício pelos danos e
prejuízos que da dita conduta possam advir – neste sentido, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 130.
1611
Admite-o expressamente Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 89, desde que o depositário pague ao
proprietário uma quantia relativa a essa utilização.
1612
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 101, sustentam que apenas será de assacar responsabilidade ao credor
quando não pretenda levar a cabo ou não permita que outrem, nomeadamente a outra parte da relação de
custódia comum, realize as operações necessárias para a conservação do bem. Realmonte, Il pegno cit.,
pág. 664, restringe a responsabilidade do credor a esta segunda hipótese.
1613
Assim, Barbara Cusato, ob. cit., pág. 217, Realmonte, Il pegno cit., pág. 665 e Montel, Pegno cit.,
pág. 785 e, no que respeita do direito de indemnização dos danos causados pela detenção do bem, Planiol,
Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 109, Rubino, Il pegno cit., pág. 247 e Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág.
142, justificando a solução com a analogia face ao depositário (uma vez que, para este, a lei prevê tal
direito) e apontando como exemplo o caso de o bem empenhado se um animal atingido por uma doença
contagiosa transmitida a outros animais do credor. Manifesta dúvidas a este respeito Paz-Ares Rodriguez,
ob. cit., pág. 1885, pois, embora uma resposta afirmativa se possa fundar na norma que atribui tal direito
de indemnização ao depositário (tendo em conta a identidade da situação do credor pignoratício), o
entendimento contrário parece dominante no ordenamento espanhol (com fundamento no “diverso interés
tutelado en el contrato de depósito y en el derecho de prenda pues en esta su constitución se hace en
beneficio del proprio acreedor y por ello debe correr con los riesgos de un posible perjuicio”).
1614
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 202 e, sobretudo, Rubino, Il pegno cit., pág.
243, concluindo que, como nestes casos o dever de guarda resulta apenas da entrega do bem, a restituição
pode, então, ser exigida pelo empenhador (e, se a coisa estiver em poder de um terceiro depositário, a
restituição pode ser exigida sem o consentimento do credor, em virtude da invalidade do contrato de
penhor) ou efectuada voluntariamente pelo credor pignoratício que pretenda exonerar-se da obrigação de
guarda. Por seu lado Montel, Pegno cit., pág. 784, entende também que este dever se baseia, não tanto na
detenção, mas sim na entrega.
1615
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 102 e Realmonte, Il pegno cit., pág. 664, sugerem que o credor deverá
praticar todos os actos e operações de conservação que possam ser efectuados apenas por parte de quem
se encontre na disponibilidade material do bem. Em termos diversos, o art.º 861.º, n.º 1, do Código de
Seabra dispunha que o credor deveria guardar a coisa como se fosse própria, entendimento este sufragado
por Paulo Cunha, ob. cit., pág. 212 e Guilherme Moreira, ob. cit., págs. 335 e 336, muito embora Cunha
Gonçalves, ob. cit., pág. 247, defendesse, mesmo de iure condito, a aplicação do critério da culpa em
abstracto (criticam este preceito Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 203, argumentando que o
dever do credor não é o de guardar a coisa como própria, mas antes “como coisa alheia cuja guarda lhe é
418
Nesta conformidade, sugere-se que a diligência a usar seja a de um bom pai de
família1616 e que, para aferir se o comportamento do credor se coaduna com tal critério,
deverão observar-se as regras gerais sobre a obrigação de guarda – enquanto acessória
de uma outra relação - , tendo em conta as particularidades da relação pignoratícia,1617
descartando-se uma cega e automática a aplicabilidade analógica das regras ditadas para
o contrato de depósito.1618 1619
confiada” e também Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 691, que consideram preferível
o critério objectivo adoptado pelo Código vigente).
1616
Critério este expressamente utilizado pelo art.º 1867.º do CCE e sugerido por Montel, Pegno cit., pág.
785 (recusando o critério da culpa em concreto), por Faggella, ob. cit., pág. 112, Mirabelli, ob. cit., pág.
417, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 108, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 136, sustentando que
tal obrigação deve ser assimilada à prevista, em termos gerais, no art.º 1137.º do CCF - nos termos do
qual o devedor de um bem certo e determinado deverá usar, na sua conservação, dos cuidados de um bom
pai de família -, Guillouard, ob. cit., pág. 204 (concluindo, por isso, que o credor não poderá eximir-se da
sua responsabilidade alegando que prestou ao bem empenhado os mesmos cuidados que dispensa aos seus
próprios bens, afiançando mesmo que se o bem em questão requerer, pela sua natureza, cuidados
especiais, será ao credor que incumbirá prestá-los), Troplong, ob. cit., pág. 116 (concretizando, porém,
que não será exigível a diligência de um “muito bom pai de família”) e Weil, ob. cit., pág. 100. Sustenta,
entre nós, a adopção do critério do bom pai de família Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 125.
1617
Assim, Rubino, Il pegno cit., pág. 243, posição esta subscrita por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º
58, págs. 203 e 204, por Guillouard, ob. cit., pág. 202 (considerando que o próprio art.º 2080.º do CCF
coloca o credor pignoratício no mesmo plano de qualquer detentor de uma coisa alheia, estando, por isso,
obrigado a vigiá-la e respondendo pelos prejuízos que resultem da sua culpa) e por Planiol, Ripert,
Becqué, ob. cit., pág. 108. Montel, Pegno cit., pág. 784, considera mesmo que esta obrigação não é
específica do credor pignoratício, antes incumbindo a qualquer sujeito que haja recebido um bem alheio
com um determinado intuito, posição muito próxima da de Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1882
(entendendo este último que “es una manifestación impuesta con carácter general (…) a todo obligado a
dar una cosa determinada”, cumprindo apenas assinalar que, de acordo com o critério do bom pai de
família, o cumprimento ou não desta obrigação de conservação constitui uma questão de facto, sendo de
considerar que “ha sido diligente cuando acredite el acreedor o el tercero que tomó las medidas
necesarias para evitar el daño en la cosa aunque luego éste se produzca”) e de Guillarte Zapatero,
Comentario cit., pág. 531 (aceitando a aplicação das regras gerais que vigoram para obrigação de
conservação de um bem alheio que se deverá devolver ao seu proprietário).
1618
Emilia Massari, ob. cit., pág. 1091 e segs., fundamenta a sua posição na distinção entre os contratos
de depósito e de penhor (enquanto o penhor é constituído no interesse primordial do credor, no depósito
prevalece o interesse do depositante; no penhor não assume relevo a actividade do credor pignoratício –
até porque o bem pode ser entregue a um terceiro – ao passo que no depósito são decisivas as qualidades
pessoais do depositário; e, em particular, o conteúdo do depósito reside exclusivamente na custódia do
bem, enquanto no penhor a custódia é apenas um meio para alcançar o fim de garantia do credor
pignoratício. Em conclusão, no momento da extinção, no depósito haverá lugar à restituição do bem ao
depositante, mas já no penhor a restituição apenas terá lugar se o devedor pagar a dívida garantida, pois,
no caso de incumprimento, o credor procederá à venda, com preferência, do bem empenhado, entendendo
o Autor que é nesta segunda alternativa que reside a essência do penhor: tendo em conta esta diferença, a
aplicação analógica das normas do depósito ao penhor deve ser encarada com bastante cautela) e,
sobretudo, o diverso título em que a detenção se funda num e noutro caso (o depositário detém em nome e
no interesse alheio, do depositante; o credor pignoratício detém no nome de outrem, mas no próprio
interesse). Nesta conformidade, quando o art.º 2790.º do CCI dispõe que o credor responde pela perda da
coisa de acordo com as regras gerais não remete para o art.º 1780.º (que, em matéria de depósito,
estabelece que quando a perda da posse se produza em resultado do comportamento de um terceiro,
contra a vontade do depositário, a coisa seja retirada a este último) até porque tal significaria que “in caso
di perdita o deterioramento della cosa oppignorata per causa non imputabile al creditore, costui è
liberato dall’obbligo di restituire la cosa”, o que contrasta com a finalidade do penhor – atribuição de um
direito real de garantia até ao momento da realização do crédito – e com a faculdade de exigir ao devedor
uma reintegração da garantia com outros bens sempre que o objecto do penhor se perca ou se deteriore,
mesmo que por caso fortuito (art.º 2743.º do CCI, norma esta que torna a aplicação do art.º 1780.º inútil e
contraditória, porquanto “Per l’art. 2743 il creditore pignoratizio avrà diritto di farsi consegnare un altro
bene mobile, verificandosi cosi una surrogazione reale del pegno. Applicando invece l’art. 1780 si
avrebbe che il creditore, spogliato del possesso senza sua colpa, sarebbe liberato, ma dovrebbe
419
De acordo com este critério geral, parece pacífico que não incumbirá ao credor
efectuar melhoramentos no objecto da sua garantia,1620 nem preservar a coisa dos seus
agentes interiores, nem tão pouco evitar as deteriorações inevitáveis,1621 mas sim
adoptar os comportamentos adequados a defender a coisa de agentes exteriores.1622
Mais discutível é saber se a obrigação abrange também as condutas destinadas a
evitar as depreciações ou deteriorações do bem empenhado relacionadas com a sua
própria natureza (respondendo alguns afirmativamente, sobretudo se estes cuidados
reentrarem nas incumbências de um administrador diligente e sempre que tais cautelas
não possam ser adoptadas pelo empenhador, posição esta contestada por outros),1623
1624
sendo igualmente discutido de ao credor incumbirá custear as despesas inerentes a
tais operações.1625
denunziare il fatto sotto pena di risarcire i danni”). Em face do direito francês, a equiparação legal da
posição do credor pignoratício à do depositário (cfr. art.º 2079.º do CCF), conduzirá a que a eventual
responsabilidade do primeiro deve, à imagem do que sucede com o segundo, ser aferida com base no
critério da culpa em concreto ou seja, aportando ao bem alheio recebido cuidados análogos aos
dispensados aos bens próprios: porém, Baudry-Lancantinerie, ob. cit., pág. 204, recusa esta abordagem,
salientando as diferenças entre os contratos de penhor e de depósito, sobretudo o carácter gratuito do
serviço prestado pelo depositário que justifica uma responsabilidade atenuada (pois o contrato de penhor
é celebrado no interesse de quem presta a garantia e do respectivo beneficiário, pelo que a regra especial
prevista para a responsabilidade do depositário deverá ser descartada e substituída pela regra geral da
culpa em abstracto). Rejeita (ou, quando muito, admite a sua aplicação atenuada) também a aplicação das
regras do contrato de depósito Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 125, alegando que no penhor, ao
contrário do depósito, não estamos em face de uma situação de guarda do bem no exclusivo interesse do
depositante (o empenhante), mas sim no interesse de ambos, uma vez que o depositário (credor
pignoratício) também tem interesse na conservação do valor do bem onerado. Em termos análogos, Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1514,
evidenciando como a posição do credor pignoratício a quem haja sido entregue o bem onerado não é
comparável à do depositário – não apenas porque o credor tem um interesse próprio na guarda do bem,
mas também porque não tem que existir uma relação de confiança entre empenhante e credor pignoratício
-, razão pela qual as regras ditadas para este último contrato não poderão ser integralmente aplicáveis à
guarda do objecto empenhado, sendo disso exemplo paradigmático a responsabilização do credor
pignoratício por qualquer negligência, mesmo leve, no exercício da sua função de guarda.
1619
Acerca da insuficiência das regras do depósito para explicar a posição do credor pignoratício ou do
terceiro a quem seja entregue o bem empenhado, vide supra n.º 5.1.2 e 5.1.4 do Capítulo I.
1620
Negam a existência de um dever de melhorar o bem empenhado Rubino, Il pegno cit., pág. 243 e
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 125. Quando muito, deverá permitir que o devedor leve a cabo os
melhoramentos que entenda pertinentes (Faggella, ob. cit., pág. 115). Por outro lado, também não
incumbe ao credor proceder a quaisquer pagamentos necessários para levar a cabo tais melhorias (cfr.
Montel, Pegno cit., pág. 785).
1621
Salienta este aspecto Barbara Cusato, ob. cit., pág. 217.
1622
Ou, nas palavras de Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 531, “desenvolver la conducta precisa
para impedir cualquier menoscabo o alteración de la cosa, realizando cuantos actos resulten necesarios
para la conservación de la misma, lo que, en ocasiones, le obligará al ejercicio de las acciones que le
corresponden para evitar determinadas perturbaciones juridicas que pudieren originar la imposibilidad
de la posterior devolución de la cosa al constituyente de la prenda”.
1623
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 204 e Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1514 (sustentando estes últimos que ao
credor incumbe enfrentar o risco de deterioração ou diminuição do valor do bem onerado, normalmente
obtendo o consentimento do empenhante, mas, mesmo sem este, cabendo-lhe a missão de adoptar as
condutas que entenda necessárias, exemplificando com a substituição de valores empenhados cuja
cotação diminua ou se preveja que venha a diminuir) e Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2147
(afirmando que “Este deber comprende la realización de todo aquello que sea preciso para evitar
cualquier desvalorización de la cosa o del título dominical el pignorante”).
1624
Designadamente por Rubino, Il pegno cit., pág. 243 (ilustrando a sua posição com o caso de bens que
necessitam de cuidados periódicos – como os produtos agrícolas, nomeadamente vinho e azeite – os quais
deverão ser executados pelo empenhante), Realmonte, Il pegno cit., págs. 664 e 665 (embora este último
reconheça que o credor deverá permitir a intervenção do empenhador, sempre que tal não prejudique a
420
Competirá, ainda, ao credor não impedir que o empenhador leve a cabo, à sua
custa, actos de conservação ou melhoramento que não prejudiquem a garantia (embora
para o efeito seja necessário mitigar o requisito da permanência da posse no credor
como condição de manutenção da garantia pignoratícia, nomeadamente quando o credor
devolva, temporariamente, o bem empenhado ao seu proprietário a fim de este proceder
a reparações para as quais só ele dispõe dos conhecimentos adequados).1626 1627
Sendo certo que por conservação da coisa se deverá entender, não apenas a
conservação material, mas também a conservação jurídica,1628 não se afigura, todavia,
sua garantia) e Montel, Pegno cit., pág. 785. Já Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 138, sugere que, nestes
casos, deverá ser o devedor a vigiar os bens empenhados e a prestar-lhes os cuidados reclamados pela sua
natureza, sem que isso isente totalmente o credor pignoratício do seu dever de conservação (a ele
continuará a caber a conservação material do bem, mas não aqueles cuidados reclamados pelas
particulares características do bem, pelo que não poderá ser responsabilizado pela ausência destes
últimos).
1625
Defende a vigência, em regra, da obrigação do credor custear as despesas conexas com a conservação
do bem onerado Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 125. Pelo contrário, Guillarte Zapatero, Comentario
cit., pág. 532, entende que “como criterio general, sólo procede entender que el acreedor pignoraticio
viene obligado a la antecipación de los gastos necesarios para la conservación de la cosa si razones de
urgencia así lo determinan, es decir, si por el hecho de no facilitar las cantidades necesarias se arriesga
la conservación o el deterioro de la prenda”.
1626
Assim, Montel, Pegno cit., pág. 785, Rubino, Il pegno cit., pág.243 e Gorla e Zanelli, ob. cit., págs.
664 e 665. Já Faggella, ob. cit., pág. 114, escreve que o credor pode permitir que seja o devedor a
satisfazer o ónus de conservação do bem empenhado ou, assegurando ele mesmo o cumprimento daquele
dever, deverá permitir que o proprietário da coisa exerça poderes de vigilância e de visita, sem que tais
actos impliquem o desapossamento do credor. No nosso direito Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 126,
entende que o credor não se pode opor a que o empenhador actue sobre o bem onerado, desde que o faça
a expensas suas e sem prejudicar a garantia do credor.
1627
Acerca da questão de saber se a devolução do bem empenhado ao credor origina inapelavelmente a
extinção do penhor, vide infra n.º 10.2 do Capítulo I.
1628
Rubino, Il pegno cit., pág. 244, aponta como exemplo a celebração de um contrato de seguro para
proteger certas mercadorias que sejam habitualmente, embora não obrigatoriamente, asseguradas
(contudo, o mesmo Autor reconhece que ao credor pignoratício não caberá pagar os prémios de um
seguro já anteriormente contratado, sem prejuízo da faculdade que lhe assiste de antecipar tais prémios
como forma de evitar a rescisão desse contrato). Por seu lado Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 102, concluem
igualmente que no dever de conservação não se inclui a obrigação de assegurar o bem empenhado, salvo
se tal resultar da lei ou da particular natureza do bem (opinião partilhada por Realmonte, Il pegno cit.,
pág. 664), mas entendendo que ao credor pignoratício caberá advertir o proprietário do eventual risco a
que se encontra exposto o objecto da garantia. Já Faggella, ob. cit., págs. 115 e 116, considera que, em
princípio, o credor pignoratício não tem o dever de segurar o bem empenhado (embora o possa fazer,
designadamente para efeitos de transferir a responsabilidade por eventuais perdas ou deteriorações da
coisa por si causados, devendo, neste caso, suportar o pagamento dos prémios), excepto no caso de o
contrário resultar da natureza do bem ou dos costumes gerais ou locais (mas salientando que caberá ao
proprietário liquidar os respectivos prémios), mas já terá a obrigação de proceder à renovação dos títulos
recebidos em penhor (se entender não o fazer, deverá devolvê-los ao proprietário para que este, querendo,
proceda a tal renovação), correndo as despesas inerentes por conta do devedor. Também Jacques Ghestin
e outros, Droit spécial cit., pág. 265, entendem estar o credor obrigado a segurar o bem quando a lei ou
uma estipulação contratual assim o imponha, apontando Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 137, o
exemplo de um penhor sobre um crédito hipotecário, para sugerir que, em tal caso, compete ao credor
proceder à renovação da inscrição da hipoteca dentro do prazo (a propósito deste mesmo exemplo,
Mirabelli, ob. cit., págs. 418 e 419, entende, porém, existir um concurso de culpas entre o devedor e o
credor, pelo que aquele não poderá acusar este de uma omissão da qual também é responsável).
Finalmente Montel, Pegno cit., pág. 785, considera que dentro dos actos de conservação jurídica poderão
caber, dependendo das circunstâncias e da natureza do objecto, a interrupção da prescrição do crédito
recebido em penhor (também cita este exemplo Faggella, ob. cit., pág. 115), a conversão de notas que
cessem o seu curso legal, a renovação a de um título que caduque e até o assegurar do bem empenhado.
421
líquido se incumbirá ao credor exercer as acções de que o constituinte seja titular para
reclamar ou defender o bem de terceiro, o que se nos afigura excessivo.1629
Noutra ordem de considerações, o credor não deverá ser responsabilizado pelos
danos produzidos na coisa empenhada resultantes de casos fortuitos ou de força maior,
ainda que estes produzam a destruição total do bem,1630 aceitando-se que, nesse caso e
no limite, que deva comunicar, em obediência aos ditames da boa fé, tal ocorrência ao
proprietário.1631
1629
Responde negativamente Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2147, entendendo ser esta uma mera
faculdade concedida por lei ao credor pignoratício, esgotando-se o dever do credor na comunicação ao
constituinte da existência de uma ameaça ou de uma lesão efectiva ao bem ou ao direito de propriedade
por parte de um terceiro. Com efeito, não implicando a constituição do penhor a perda da propriedade do
bem onerado, o empenhante conserva os meios legais para defesa do direito de propriedade (que utilizará
de acordo com o seu critério), do mesmo modo que, como vimos, o credor pignoratício dispõe de outros
tantos mecanismos para tutela do seu direito real, sendo que, não raras vezes, o recurso a algum deles
(v.g., acções de restituição da posse) redunda em favor do próprio empenhante.
1630
Assim, Guillouard, ob. cit., págs. 203 a 205, embora seja ao credor que incumba provar que a perda
ou deterioração se deveu a caso de força maior ou, pelo menos, não resultou de culpa sua, não bastando,
para esse efeito, alegar que a coisa se perdeu, sendo antes necessário demonstrar que o acidente que
causou tal perda e que ele nada podia fazer para o evitar (apresentando e contestando a solução,
consagrada noutras legislações, de fazer responder o credor mesmo que a perda ou deterioração se
devesse a caso fortuito – solução essa justificada com a necessidade de forçar o credor a zelar com grande
cuidado do bem empenhado e de, do mesmo modo, auxiliar o devedor que normalmente ignora as
condições em que o penhor se tenha perdido ou deteriorado), Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 137 e
138, sustentando ser essa a consequência da aplicação das regras gerais e adicionando que dessas mesmas
regras decorre a obrigação do credor pignoratício demonstrar a existência de tais factos fortuitos ou de
força maior. Por outro lado, o citado Autor assimila a estes casos, para efeitos de eximir a
responsabilidade do credor, as hipóteses em que o dano resulte de um facto do devedor (podendo, então, o
credor exigir o pagamento do seu crédito e de outras eventuais quantias devidas) ou de um terceiro, desde
que não tivesse o dever de o prevenir (caso em que goza do direito de ser indemnizado pelo terceiro pelos
danos sofridos, obtendo um valor igual ao do objecto empenhado, mas apenas podendo conservar um
montante equivalente ao do seu crédito, devendo restituir o remanescente ao devedor constituinte da
garantia), Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 108 (acrescentando que o credor também não será
responsabilizado pelos danos decorrentes de vícios próprios da coisa, incumbindo-lhe, todavia, tal prova)
e Troplong, ob. cit., pág. 117 (concordando que sobre o credor recai o ónus de provar a ausência de culpa
própria na produção dos danos). No direito interno, podemos citar Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 69 e 70
(acrescentando que em caso de perda ou deterioração não imputáveis ao credor, este poderia exigir outro
penhor ou o cumprimento imediato da prestação, nos termos do art.º 860.º, n.º 4, do Código de Seabra) e
no direito espanhol Puig Brutau, ob. cit., pág. 40 e Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 533 (este
último escrevendo que “el acreedor sólo quedará exonerado de responsabiliad si la perdida o el
deterioro se produce sin su culpa, mediando caso fortuito o fuerza mayor, o por los vícios de la propria
cosa, y de otra, que, presumiéndose su culpabilidad, le corresponde al acreedor probar la concurrencia
del caso fortuito o de las otras causas que le eximen de responsabilidad”). Já Hugo Ramos Alves, ob.
cit., pág. 125, advoga que o credor apenas é responsável pelas perdas e deteriorações do bem empenhado
que lhe sejam imputáveis.
1631
Vide, por todos, Almeida Costa, Penhor cit., pág. 26 (impondo ao credor o dever de avisar o
proprietário do risco de deterioração, fundando tal dever no princípio da boa fé, embora admita excepções
como no caso analisado, em razão do facto de o bem empenhado ter permanecido em poder do
empenhante e ser, por natureza, deteriorável). Contra, citando em conformidade o Acórdão do Tribunal
de Torino de 13/10/1949 (alegando que a norma, relativa ao contrato de depósito, impondo ao depositário
a obrigação de denúncia imediata da perda ao depositante, não é aplicável analogicamente ao contrato de
penhor), Protettí, ob. cit., págs. 223 a 225 (sustentando que o art.º 2790.º do CCI remete para as normas
gerais e estas não impõem qualquer obrigação de comunicar ao proprietário a produção de danos no bem
temporariamente confiado à guarda de outrem) e, especialmente, Emilia Massari, ob. cit., pág. 1096 e
segs. (salientando que o objectivo desta obrigação – que recai sobre o depositário, de modo a tornar
possível ao proprietário o exercício da acção de reivindicação – não é transponível para a situação do
credor pignoratício, porquanto os deveres deste em caso de perda da coisa possuem um fundamento
diverso, qual seja o de poder devolver a coisa aquando do cumprimento da obrigação garantida por parte
do devedor, devendo por isso “esercitare le azione necessarie per perché il debitore non abbia subire
422
No entanto, em virtude da presunção de culpa constante do art.º 799.º, sobre o
credor pignoratício recai o ónus de demonstrar que a perda ou deterioração do objecto
da garantia não se deveu a responsabilidade sua.1632
De acordo com uma outra qualificação, a obrigação de conservação do bem
empenhado, por parte do credor pignoratício, deverá considerar-se como uma obrigação
de meios e não de resultado.1633
Em resumo, do dever de conservação resulta a obrigação de o credor, uma
expirada vez chegado o momento, restituir o bem empenhado em bom estado1634 ou, em
caso de perda ou deterioração, provar que estas não lhe são imputáveis (desonerando-se,
em tal hipótese, da sua obrigação de restituir o bem empenhado, mas conservando o
direito de exigir o pagamento do seu crédito) ou, não conseguindo tal prova,1635 sendo
responsável pelos danos causados por essa perda ou deterioração, mas sem que tal
responsabilidade exonere o devedor do seu dever de liquidar a obrigação garantida.1636
danni, ed anzi il debitore può, anche se il creditore gli abbia effettuato la denuncia, rifiutarsi di
esercitare le azioni ed anche di ricostituire la garanzia al creditore con un altro oggetto”. Nesta
conformidade e dado que o credor tem o poder e o dever de exercer todas as acções respeitantes ao
proprietário, “con l’esercizio di tali azioni si esauriscono gli obblighi del creditore pignoratizio” – ao
contrário do que sucede no depósito, em que o depositário apenas pode exercer as acções possessórias,
daí surgindo o dever de alertar o proprietário. Mais ainda, mesmo que o credor cumpra os seus deveres, o
proprietário devedor pode sofrer danos, mas sem que tal se possa relacionar com a omissão do dever de
comunicação, uma vez que, para isso, era necessário demonstrar que “il proprietario può risentire danni
per l’omissione della denuncia occorrerebbe dimostrare che non tutti i poteri a lui spettanti sono
esercitabili dal creditore pignoratizio; che, cioè, egli avrebbe potuto fare qualcosa che all’altro era
negato. In quanto, invece, tutte le azioni spettanti al proprietario sono dalla legge accordate pure al
creditore, non rimane altro che limitare l’ipotesi al caos che il proprietario fosse in grado, per ragioni a
lui peculiari (…) di esercitare il suo diritto e di condurre le azioni meglio, e con migliore successo, del
creditore pignoratizio. Ma l’ipotesi è manifestamente di limite e, da sola, non può certo legittimare
l’invocata applicazione analogica dall’art. 1780”).
1632
Chama a atenção para este facto Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 204, embora, a propósito de uma
decisão judicial por si contestada, Almeida Costa, Penhor cit., págs. 23 a 25, advoga que “A simples
prova, pois, de que os bens empenhados se deterioraram ou pereceram não basta para preencher o
requisito da ilicitude. O perecimento pode ocorrer pelas mais diversas causas, mesmo quando o credor
pignoratício tenha usado de todos os cuidados de um proprietário diligente” - por ser assim, o ónus da
prova da ilicitude da conduta do credor incumbe ao proprietário do bem empenhado (que deveria ter
provado não ter o credor pignoratício actuado, na conservação do bem empenhado, como o teria feito um
proprietário diligente) e, não logrando tal prova, o perecimento do bem corre por conta do seu
proprietário, originando unicamente a extinção do penhor (cfr. art.º 730.º, alínea c), por remissão do art.º
677.º) e não qualquer obrigação de indemnização do proprietário a cargo do credor. Em termos
concordantes com posição defendida no texto, para o direito espanhol, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág.
1884 (concluindo terem o credor ou o terceiro o ónus de demonstrar terem adoptado todos os
comportamentos exigíveis, na situação concreta, a um bom pai de família, ressalvando não existir
qualquer violação deste dever em caso de perda do bem onerado devida a caso fortuito ou de força maior
ou devida a vícios intrínsecos do próprio bem, salvo se outra coisa houver sido expressamente acordado
entre as partes), López, Montés e Roca, ob. cit., pág. 144 e a Sentença do Tribunal Provincial de Lugo n.º
20/2003, de 14 de Janeiro (citada por Lerena Cuenca e outros, ob. cit., pág. 527).
1633
Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 183 e Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 458. Pelo contrário
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 259 e 260, preferem falar de uma obrigação de meios
reforçada, uma vez que sobre o credor recairá uma presunção de culpa pelo desaparecimento do bem, da
qual apenas se exonera provando a ausência de culpa sua (não bastando demonstrar ter prestado ao bem
recebido em garantia os mesmos cuidados por ele dedicados aos seus próprios bens).
1634
Ou, como prescreve Faggella, ob. cit., pág.112, no estado em que a recebeu e depois de praticados por
si os actos necessários à sua conservação.
1635
Designadamente por não lograr a demonstração que, em face do caso concreto, cumpriu os deveres de
cuidado que se impunham - Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 126.
1636
Guillouard, ob. cit., págs. 203 e 204.
423
Outros aspectos decisivos deverão ainda ser abordados, particularmente quando
estejamos perante um penhor sobre coisas fungíveis e/ou perecíveis.
O primeiro deles concerne à eventual possibilidade de alienação e/ou
substituição, por parte do credor e ao abrigo deste dever de conservação, das coisas
originariamente empenhadas por outras idênticas, sem prejuízo da consistência da
garantia, designadamente quando se trate de bens fungíveis e/ou perecíveis, questão esta
cuja resposta se encontra indissoluvelmente ligada à aceitação ou não da figura da sub-
rogação no âmbito da relação pignoratícia (e até à sua operatividade ope legis ou apenas
quando exista estipulação das partes nesse sentido).1637
A este propósito é detectável uma orientação claramente aberta a essa
possibilidade (sustentando que a extensão do obrigação de conservação depende da
natureza dos bens empenhados),1638 em confronto com outra nitidamente mais
1637
Para mais desenvolvimentos sobre esta matéria, vide infra n.º 3.2.5 do Capítulo II.
1638
Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 250, admite, quando o objecto do penhor consista em bens fungíveis,
a possibilidade de as partes convencionarem, mesmo na ausência de lei expressa nesse sentido, ter o
credor direito de dispor desses bens, restituindo, no final, outras equivalentes (constituindo, deste modo,
um penhor irregular, passando para o credor a propriedade, os ganhos e os riscos inerentes ao dito bem),
sem que tal modificação prejudique a preferência pignoratícia (argumentando que, tendo o devedor o
direito de substituir o penhor, nada obstará a que conceda igual faculdade ao credor), Simler e
Delebecque, Droit civil cit., pág. 459, admitindo que, caso o bem empenhado seja perecível, a obrigação
de conservação se transmuta num dever de disposição, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 68
(aceitando tal substituição quando se trate de bens fungíveis e entendendo tratar-se mesmo de um dever
quando o bem seja perecível), Théry, ob. cit., pág. 300 e Weil, ob. cit., pág. 101, em especial nota 1
(considerando mesmo ter o credor a obrigação de vender os bens perecíveis), Henri Mazeaud, ob. cit.,
pág. 159 (afirmando que “sans doute le principe est-il que le gagiste doit restituer la chose engagée elle-
même; mais ce principe est justement écarté dans l’intérêt du débiteur pour les choses périssables; le
gagiste tenu de vendre ne devrait donc avoir à restituer que le prix de vente”), Hugo Ramos Alves, ob.
cit., pág. 126, nota 403, (afirmando que “ao credor pignoratício é atribuída a faculdade de poder alienar
os bens empenhados e substituí-los por outros equivalentes quando se trate de bens perecíveis, dado que
a constituição de um penhor com estas características confere implicitamente ao credor pignoratício a
condição de gestor de negócios em interesse próprio e no interesse do empenhador”) e Cordero Lobato,
Comentario cit., pág. 2147 (afirmando, precisamente, que “La extensión de la obligación de conservación
de conservación dependerá de la naturaleza de los bienes gravados, pues hay que entender que el
acreedor está facultado y obligado a explotar ordinariamente la cosa sí esta es fructífera. Es más, está
incluso facultado para enajenar los bienes pignorados y sustituirlos por otros cuando éstos sean
perecederos, ya que la constitución de una prenda de estas características confiere implícitamente al
acreedor la condición de gestor en interés propio y del pignorante. Además, si el acreedor ha sido
expresamente autorizado por el pignorante (…) está legitimado para negociar con los bienes gravados,
sustituyéndolos también por otros equivalentes”, sendo que, nestes casos, “la diligencia exigible al
acreedor no está referida a la conservación de los bienes inicialmente pignorados, sino a la conservación
diligente de del valor que represente la universalidad de cosas pignoradas”).
424
restritiva,1639 inclinando-nos nitidamente para a primeira, sobretudo havendo cláusula
contratual autorizando o credor a actuar desse modo.1640
Poder-se-á, ainda, debater se, assim sendo, não deveremos qualificar a garantia
como um penhor irregular, no qual a obrigação de restituição poderá ser cumprida
mediante a restituição de um objecto equivalente – e não necessariamente o que fora
entregue - ao inicialmente onerado.1641
O segundo aspecto discutível diz respeito à obrigatoriedade de o credor
pignoratício manter separado o bem empenhado dos bens que lhe pertencem a título de
propriedade, de modo a permitir a restituição daquele em caso de extinção da
garantia,1642 embora a resposta a esta questão se encontre prejudicada pela anterior (bem
como pela posição adoptada relativamente à identificação destes bens no contrato de
penhor),1643 uma vez que a admissibilidade de substituição dos concretos objectos
fungíveis onerados restringe o alcance desta interrogação.
Em caso de violação da obrigação de guarda, importa distinguir consoante a
perda ou deterioração do bem empenhado ainda não se tenha verificado ou, ao invés,
tais danos já se tenham produzido: na primeira hipótese, caberá ao constituinte da
garantia o recurso ao expediente consagrado no art.º 673.º;1644 na segunda e desde que
haja culpa do credor pignoratício, poderá o proprietário exigir uma indemnização pelos
danos sofridos. 1645
O montante da indemnização corresponde à diferença entre o valor do bem no
momento da constituição da garantia e no momento actual, deduzida a depreciação
inerente ao desgaste normal provocado pelo tempo (e, caso ao credor tenha sido
facultado o uso do bem, a uma utilização corrente) e as eventuais despesas e
1639
Mais restritivos são Guillouard, ob. cit., pág. 161, considerando que a alienação, por parte do credor
pignoratício, de uma parte ou da totalidade dos bens empenhados, mesmo com o consentimento do
proprietário e mesmo que tais bens sejam substituídos por outros de igual género e valor, desvirtua o
contrato de penhor, por força do carácter essencial da manutenção da propriedade do bem no constituinte
da garantia (dando antes origem a um negócio atípico), Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 183 (afirmando
que, pelo facto de o credor pignoratício não ser proprietário dos bens empenhados, a circunstância de se
desapossar de tais bens implicar uma renúncia ao seu direito, solução esta confirmada pela inexistência de
um princípio geral de sub-rogação legal). Posição híbrida é a de Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit.,
pág. 545 (entendo que a entrega da coisa ao credor faz desaparecer a respectiva fungibilidade, excepto
tratando-se de dinheiro, pelo que apenas admitem a substituição neste último caso ou quando as partes
assim o estipularem. Já no que concerne aos bens perecíveis, pensam que o credor não será obrigado a
aliená-los, mas apenas a avisar o credor desse facto, admitindo, todavia, que o credor os venda quando o
interesse comum das partes o justifique).
1640
Confome melhor se verá no Capítulo IV (em especial, no n.º 1.1).
1641
Vide infra n.º 1.1 do Capítulo IV.
1642
Reconhece, em geral, esta obrigação Montel, Pegno cit., pág. 785, citando decisões judiciais nas quais
foi assacada responsabilidade ao credor pignoratício por violação desse dever.
1643
Vide infra n.º 2.2 do Capítulo II, para onde remetemos também a respeito da questão aludida no texto.
1644
Sobre este direito do credor, vide supra n.º 9.1.3.
1645
Em face do direito espanhol, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1884, sintetiza as consequências do
incumprimento do dever de conservação, considerando que sobre o credor impenderá o dever de
indemnizar o constituinte pelos danos por este sofridos, embora quando o comportamento do credor ou do
terceiro sejam meramente negligentes a lei (cfr. art.º 1103.º do CCE) admita a sua atenuação do montante
da indemnização por parte dos tribunais. De acordo com o direito alemão, Harry Westermann, Harm
Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1515 e 1516, consentem que o
empenhante opte entre exigir a devolução do bem (ou a sua entrega a um terceiro depositário) ou
satisfazer antecipadamente o credor pignoratício (os mesmos direitos assistindo ao proprietário do bem
onerado, quando não seja o empenhante): cumulativamente, poderá ainda reclamar uma indemnização
pelos danos causados no bem onerado (excepto quando o empenhante não for o proprietário, caso em que
poderá unicamente reclamar a devolução do bem, uma vez liquidado o crédito garantido).
425
melhoramentos realizados pelo credor1646 (muito embora se admitam ressalvas quanto a
determinado tipo de bens, maxime os perecíveis),1647 sendo discutível o enquadramento
da pretensão no âmbito da responsabilidade contratual ou extra-contratual.1648
Quando, pelo contrário, a perda ou deterioração do bem empenhado se produza
sem que se verifique responsabilidade do credor, restará a este exigir a substituição ou o
reforço do penhor ou, em alternativa, o cumprimento imediato da obrigação (art.º 670.º,
alínea c)), enquanto ao devedor não restará qualquer alternativa senão conformar-se
com tal perda ou deterioração (neste último caso, seria pensável o recurso à venda
antecipada – art.º 674.º -, mas tal preceito apenas pode ser invocado exista fundado
receio de deterioração e não quando este já se tenha efectivamente produzido).
Para além disso, o credor poderá incorrer na prática de um crime se e quando se
aproprie da coisa dada em penhor, pois tal conduta poder-se-á enquadrar na previsão
legal do crime de abuso de confiança (previsto e punido no art.º 205.º do Código
Penal)1649 ou, quando se limite a danificá-la, praticar o crime de dano (previsto e punido
pelo art.º 212.º do mesmo Código).1650
1646
Embora o empenhador possa desconhecer esse dano, pois, em caso de incumprimento da obrigação
garantida, o credor pode executar o bem empenhado e ser pago pelo seu valor (como se este não tivesse
perecido ou deteriorado). Para Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 202, o proprietário poderá exigir
o pagamento da indemnização sem necessidade de proceder ao pagamento do crédito garantido, tendo em
conta o carácter não sinalagmático das duas obrigações (contra, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 137,
afiançando que o crédito pelos danos sofridos pelo proprietário devedor se compensará com o valor da
sua dívida garantida pelo penhor), pelo que se, no momento do vencimento do direito à indemnização, o
crédito garantido ainda não o esteja, ficando, nesse caso, aquela afecta ao penhor (mas não em poder do
credor pignoratício, sendo antes depositada), ou seja, o credor paga uma indemnização e, em caso de
execução da garantia, pode pagar-se por ela (caso contrário, o credor ficaria privado da garantia e o
empenhador liberto da mesma). Além disso, Faggella, ob. cit., pág. 118, entende que o credor deverá
restituir ao proprietário do bem a totalidade dos proveitos obtidos através do uso não autorizado daquele,
proporcionalmente ao valor utilizado.
1647
Almeida Costa, Penhor cit., págs. 27 e 28, alega que, no caso de bens deterioráveis, esta indemnização
nunca poderá ultrapassar o valor que se obteria com a venda dos bens antes de se produzir a deterioração
(e nunca o valor actual dos bens empenhados), pois, mesmo que não houvessem sido empenhadas, ou se
procedia à sua venda antes da deterioração ou, se tal não se verificasse, o seu valor perder-se-ia
integralmente.
1648
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 194 e 195, qualifica esta responsabilidade como
contratual, por resultar da violação do dever que recai sobre o credor pignoratício de guardar o bem e,
além disso, o bem empenhado é-lhe confiado para um fim que não abrange o uso do bem. Por seu turno
Rubino, Il pegno cit., pág. 250, considera existir um concurso de responsabilidade contratual e extra-
contratual, cabendo ao proprietário a opção pela invocação de uma outra, posição sufragada por
Realmonte, Il pegno cit., pág. 666. Este diverso enquadramento produz consequências práticas,
designadamente ao nível do prazo de prescrição do direito (sendo certo que não foi acolhida a proposta de
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 197, no sentido de estabelecer um prazo de prescrição desta
indemnização de 6 meses, contados a partir da restituição - salvo se se provasse que, durante esse período,
não havia tido conhecimento do dano e do seu responsável, caso em que o prazo se contaria desse
conhecimento – pelo que valerão os prazos comuns).
1649
De acordo com este preceito, será punido quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe
tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, havendo, em qualquer caso, lugar à punição
da simples tentativa (n.ºs 1 a 4) e dependendo o procedimento criminal depende de queixa ou até de
acusação particular (art.º 207.º). Acrescente-se ainda que, de acordo com o art.º 206.º, nos casos previstos
no n.º 4 do artigo 205.º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e
do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha
havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos
causados (n.º 1) e, quando a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for restituída, ou tiver lugar a
reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de
julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenua (n.º 2). Todavia, a respeito da interpretação
deste preceito, Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 94 e segs., entende que, embora o mesmo seja
potencialmente aplicável à apropriação por parte do credor pignoratício do bem empenhado (uma vez
426
Finalmente, cumpre destacar que o credor desta obrigação de conservação será
normalmente o empenhante, não podendo os danos resultantes da sua omissão ser
exigidos por outros credores daquele.1651
Este dever de conservação assume contornos específicos no âmbito do penhor de
direitos em geral e do penhor de créditos em especial, conforme se alcança do art.º
683.º,1652 no qual se impõe ao credor a obrigação de cumprir os actos indispensáveis à
conservação do direito empenhado, bem como a cobrar os juros1653 e demais prestações
acessórias compreendidas na garantia:1654 numa palavra, cabe-lhe zelar activamente pela
não extinção, nem modificação do direito de crédito.1655
que, apesar do silêncio da lei, entende que, entre os títulos não translativos da propriedade, deverão
incluir-se todos os que produzam a obrigação de restituir ou apresentar a mesma coisa recebida ou
equivalente), não o será quando o objecto apropriado consista em créditos ou outros direitos (alegando
não serem estas coisas em sentido material, nem em jurídico, afirmação esta que choca com a ampla
noção de coisa dada pelo art.º 202.º) ou em bens fungíveis, como o dinheiro (pois, “Tratando-se aqui de
objectos que se confundem ou podem confundir no património de quem os recebe, e ainda que seja
exacto que o direito de propriedade só pode ter por objecto coisas certas e determinadas, o carácter
alheio da coisa, nem é, por um lado, em princípio afectado pela sua confusão no património do tomador,
nem, por outro lado, tal confusão perfaz sem mais o tipo objectivo do abuso de confiança”). Do mesmo
modo, em face do direito francês, Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 183, Simler e Delebecque, Droit civil
cit., pág. 458, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 261 e Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 60, muito embora
estes Autores entendam que o credor praticará tal crime quando, mesmo não se apropriando do bem, o
dissipe ou destrua (mas, de acordo com a última Autora mencionada, também o devedor que destrua ou
dissipe, ou tente fazê-lo, o bem empenhado, comete um crime, chamado desvio de penhor).
1650
Nos termos deste preceito, será punido quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou
tornar não utilizável coisa alheia, incluindo a tentativa, dependendo o procedimento de queixa (cfr. n.ºs 1
a 3). O possível enquadramento da conduta do credor pignoratício na órbita deste crime resulta claro se
considerarmos, com Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 212, que na noção legal de “coisa alheia” reentra
também aquela que não pertence ao “possuidor que a detém e frui sob qualquer título que não o direito
de propriedade”.
1651
Neste sentido, vide o aresto da Corte de Cassação italiana de 1/3/1986, n.º 1309, no qual se recusou a
pretensão de um credor de uma sociedade, contra o credor pignoratício sobre participações sociais dessa
mesma sociedade, pelos danos decorrentes da omissão, por parte deste último, do dever de conservação,
traduzida na protecção do património social.
1652
Em termos análogos, vide o art.º 2802.º do CCI, o art.º 2081.º do CCF (anterior à reforma de 2006) e
o art.º 1454.º do CCB.
1653
Guillouard, ob. cit., pág. 159, considera a atribuição desta faculdade ao credor pignoratício como um
desvio à proibição que sobre ele impende de usar o objecto da garantia, justificada por ser um
procedimento mais prático e célere. Pace, ob. cit., pág. 126, destaca ser esta uma das diferenças entre o
penhor de coisas e o penhor de créditos, pois neste último – ao invés do primeiro – o credor pode
apropriar-se (parcialmente, no que toca aos juros) do quid empenhado. Daniel Fasquelle, ob. cit., pág. 26,
entende ser este, não apenas um direito, mas igualmente um dever do credor pignoratício, uma vez que
“dans la mesure où il est comptable des fruits, il serait en effet responsable des interêts et dividendes qui
ne seraient pas reçus par sa faute” (vide, a propósito, o art.º 2081.º do CCF).
1654
Considerando que a presunção anticrética vigora também no domínio do penhor de créditos, por força
da remissão geral contida no art.º 679.º, Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 48.
1655
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 135 e segs., coloca em relevo como, na fase que antecede a
execução da garantia, o dever de conservação impõe ao credor obrigações de facere e de non facere.
Relativamente às primeiras, a Autora defende a sua existência, não obstante a ausência de entrega
material do bem, no penhor de bens incorpóreos (uma vez que as “formalités requises pour le gage des
biens incorporels sont l’équivalent de la remise de la chose des biens corporels; elles placent donc le
détenteur du gage de biens incorporels en mesure de conserver l’assiete. En outre, le risque de
disparition ou d’amoindrissement de leur valeur existe même si ces biens ne peuvent faire l’objet d’une
disparition matérielle”), mas com especificidades (nomeadamente no que toca ao penhor de contas
bancárias e de contas de instrumentos financeiros, em que a responsabilidade do detentor da conta se
encontra limitada ao cumprimento das instruções acordadas e transmitidas pelas partes, surgindo uma
violação deste dever de conservação unicamente quanto à realização de operações que extravasem esse
âmbito). No que concerne às obrigações de abstenção, elas traduzem-se, essencialmente, na interdição de
427
Quando o penhor incida sobre um crédito, “le maintien de la valeur d’une
créance, c’est avant tout celle de la solvabilité du débiteur. Or, celle-ci est fonction des
actes….du seul débiteur, non de ceux du constituant ou dui créancier nanti”.1656
Ainda no domínio do penhor de créditos, poderá até reter-se que o dever de
conservação não recai exclusivamente sobre o credor, vinculando igualmente o
empenhante, tendo em conta a especial relação que liga este último ao devedor do
crédito onerado,1657 assumindo especiais contornos quanto à própria notificação ao
terceiro devedor do crédito empenhado da constituição da garantia.1658
A generalidade destes deveres destina-se a assegurar a própria garantia do credor
pignoratício, mas também a manutenção do crédito do empenhante, projectando-se até,
nalguns casos, em favor do terceiro devedor do crédito empenhado.1659
428
Relativamente à titularidade deste dever quando o mesmo crédito haja sido
empenhado em favor de diferentes credores, sustenta-se que esta recai sobre todos eles,
tendo em conta a necessidade de protecção dos interesses do empenhador.1660
De entre estes actos a cargo do credor pignoratício, contam-se a conversão dos
títulos que deixem de ter valor, o protesto das letras (pressupondo, em ambos os casos,
que um penhor com este objecto seja um penhor de créditos, o que, como se viu não é
líquido), a renovação das hipotecas que garantam o crédito dado em penhor e a
interrupção da prescrição do capital e dos juros do crédito dado em penhor.1661
Também neste caso, o incumprimento do dever de conservação pode implicar
responsabilidade para com o devedor, desde que este sofra um dano efectivo1662 e desde
que os actos de conservação omitidos pelo credor não pudessem ter sido levados a cabo
pelo devedor por força da existência da relação pignoratícia1663 (se assim for, o credor
pignoratício terá a faculdade de levar a cabo esses actos, mas não o dever de o fazer).1664
Mais ainda, a própria obrigação de cobrança, por parte do credor pignoratício, do
crédito empenhado logo que este se torne exigível, ainda que o crédito garantido não se
encontre vencido (cfr. art.º 685.º, n.º 1),1665 1666 pode ser reconduzida ao dever de
1660
Assim, Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 51, apontando como exemplo o caso de o credor pignoratício
de segundo grau ter conhecimento e dispor dos meios para interromper a prescrição do crédito
empenhado, destarte protegendo igualmente os diversos credores aos quais é legítimo interpelar o terceiro
devedor para o cumprimento, visando a consolidação da garantia sobre o objecto do crédito (todavia, a
este segundo credor pignoratício não é lícito cobrar o crédito empenhado, pelo que o pagamento
efectuado pelo devedor do crédito empenhado a estes credores pignoratícios não é liberatório). Por seu
turno Pace, ob. cit., pág. 128, entende que, quando o mesmo crédito seja empenhado a favor de dois
credores distintos, surge uma relação adicional entre o segundo credor pignoratício e o empenhante e, por
outro lado, entre os dois credores pignoratícios, das quais resulta que “il secondo creditore pignoratizio
ha la pretesa, allo stesso modo che titolare del credito, nei confronti del primo creditore a che questi si
comporti con normale diligenza per adempiere al dovre di conservazione del credito dato in pegno; e nei
confronti del debitore pignorante ha la pretesa, così come l’ha il primo creditore, a che questi non
compia atti che ledano la garanzia”.
1661
Exemplos avançados por Rubino, Il pegno cit., pág. 244 e citados por Pires de Lima e Antunes
Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 701. Todavia, o Autor italiano não concorda com a inclusão da interrupção da
prescrição no âmbito deste dever do credor pignoratício, porquanto ao credor competirá, neste caso,
cobrar o capital e os juros do crédito empenhado mal estes se tornem exigíveis e mal comece a correr o
prazo de prescrição, por isso, se o credor se limitar a interromper a prescrição em vez de cobrar o capital e
os juros, não cumpre a sua obrigação de conservação do bem empenhado (podendo mesmo ser chamado a
indemnizar o titular do crédito empenhado quando o respectivo capital e juros se tornem incobráveis).
1662
Por exemplo, se o capital ou os juros do crédito dado em penhor prescreverem ou se tornarem
incobráveis por força da posterior insolvência do devedor desse crédito.
1663
Designadamente pelo facto de o documento comprovativo do crédito empenhado se encontrar em
poder do credor pignoratício ou de o devedor não poder, sem o consentimento do credor pignoratício,
cobrar os juros e/ou o crédito principal.
1664
Rubino, Il pegno cit., págs. 244 e 245.
1665
Embora não exista semelhante preceito no direito francês, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 100 e
101, admitia a concessão, por parte do devedor, de um mandato ao credor pignoratício para que este cobre
o crédito empenhado, dele se apropriando por via de compensação, entendimento este partilhado por
Ancel, ob. cit., pág. 114, Simler e Delebecque, Droit civil cit., págs. 472 e 473 (em rigor, estes dois
Autores admitem a concessão de dois tipos de mandatos ao credor pignoratício: um primeiro, destinado a
operar antes do vencimento do crédito garantido, permitindo-lhe receber as quantias resultantes da
liquidação do crédito empenhado; outro, visando o momento posterior ao vencimento do crédito
garantido, permitindo-lhe cobrar e pagar-se do crédito empenhado a partir do momento do seu
vencimento. Contra a validade desta segunda modalidade de cláusulas se manifesta Piedlièvre, Les
sûretés cit., pág. 194 reconhecendo não fazer sentido requerer a venda do crédito empenhado, mas
acrescentando restar ao credor pignoratício a possibilidade de solicitar a respectiva atribuição em
pagamento), Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., págs. 547 e 548 (informando que os pactos
destinados a operar antes do vencimento do crédito garantido são admitidos pela jurispruência, não tanto
por considerar que a proibição do pacto comissório não opera no âmbito do penhor de créditos – posição
429
esta subscrita, por exemplo por Weil, ob. cit., págs. 96 e 98, com fundamento no facto de o crédito ter um
valor nominal e não poder ser subestimado em prejuízo do empenhador -, mas antes por entender que tais
mandatos se aplicam ao dinheiro proveniente da liquidação do crédito dado em garantia e não ao crédito
em si; relativamente aos pactos cujos efeitos se produzem após o vencimento do crédito garantido, os
Autores manifestam grandes reticências em admiti-las, tendo em conta proibição do pacto comissório,
muito embora salientem a orientação favorável da doutrina e a ausência de respostas da jurisprudência),
Théry, ob. cit., págs. 322 e 323 (aceitando a validade dos dois tipos de cláusulas e propendendo, de lege
ferenda, para uma generalização da concessão de tais poderes ao credor pignoratício, informando que a
jurisprudência admite, ao menos em certos casos, a validade de tais cláusulas), Marty, Raynaud e Jestaz,
ob. cit., pág. 69 (assegurando que tais convenções não violam a proibição do pacto comissório) e Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 262 e 263 (indo mais longe e atribuindo ao credor o direito de
receber o objecto do crédito empenhado, com fundamento no instituto da gestão de negócios). Rejeita a
concessão deste tipo de mandato Guillouard, ob. cit., pág. 160, qualificando tal cláusula como nula por se
traduzir num acto de disposição do bem, acto esse cuja prática se encontra vedada ao credor.
1666
Em termos muito aproximados, o direito brasileiro impõe ao credor pignoratício o dever de cobrança
do crédito empenhado, logo que este se torne exigível e, se consistir numa quantia em dinheiro, deverá
depositá-la num local determinado de comum acordo com o seu devedor (quando a prestação tiver por
objecto a entrega de um bem, o penhor sub-rogar-se-á neste): se, porém, o crédito pignoratício se
encontrar vencido, o seu titular pode reter a quantia paga pelo devedor do crédito empenhado
(devolvendo o eventual excedente ao seu devedor) ou, consistindo o crédito empenhado na prestação de
coisa, excutir esse mesmo bem para pagamento (cfr. art.º 1455.º do CCB). Pelo contrário, o direito
espanhol, como se disse, não regula o penhor de créditos, mas, não obstante, Diez-Picazo, ob. cit., pág.
492, admite que, vencendo-se primeiramente o crédito dado em garantia (face ao crédito garantido), o
credor pignoratício possa cobrar tal crédito, sub-rogando-se o valor recebido ao crédito inicialmente
empenhado, enquanto na hipótese inversa (vencimento anterior do crédito garantido) sustenta que o
credor pode executar a garantia nos termos gerais ou aguardar pelo vencimento do crédito dado em
garantia para exigir do devedor o seu cumprimento, imputando o valor cobrado ao montante que lhe era
devido (através da figura do penhor irregular). Por seu turno Cruz Moreno, ob. cit., pág. 1303 e segs.,
esclarece que o direito do credor pignoratício cobrar o crédito empenhado se cinge aos créditos
pecuniários ou fungíveis (não se traduzindo numa verdadeira cessão de créditos, uma vez que “a pesar de
que el acreedor pignoraticio se apropia del obtenido (no con finalidad de cobro, sino de continuación de
su derecho de garantía por medio del mecanismo de subrogación real), la titularidad del crédito nunca le
fue transmitida, puediendo el constituyente hasta ese momento disponer del crédito, transmitiéndolo o
gravándolo nuevamente”), sob pena de a garantia se tornar ilusória quando o crédito empenhado se vença
antes do crédito garantido “pues si es el constituyente el que cobra el crédito no sería posible mantener el
derecho de garantía del acreedor pignoraticio sobre un objeto fungible, que al entrar en el patrimonio
del constituyente se confunde con el suyo propio” (pelo contrário, quando o crédito empenhado tenha
como objecto coisas infungíveis, a Autora advoga que, quando o crédito onerado se vença antes do
garantido, o credor pignoratício poderá reclamar ao empenhante a entrega do referido objecto que passou
a ser o quid sobre o qual recai a garantia). Mais precisamente e de acordo com esta Autora, se o crédito
empenhado se vencer antes do garantido e o objecto da prestação for dinheiro ou outro bem fungível,
assiste ao credor o direito de o cobrar; caso contrário, a cobrança terá que ser efectuada pelo empenhante:
de qualquer modo, em ambos os casos o credor pignoratício passa a gozar de uma garantia sobre o
objecto prestado (no primeiro caso, constituir-se-á um penhor irregular sobre o bem fungível prestado,
perdendo o empenhante a propriedade desses bens, mas ficando os seus direitos assegurados, em caso de
cumprimento da obrigação garantida, pela obrigação do credor pignoratício lhe restituir o equivalente ou,
em caso de incumprimento, pelo dever do credor pignoratício devolver um eventual excesso de valor do
crédito onerado face ao garantido; na hipótese inversa de crédito a uma prestação não fungível, o
empenhante adquire a propriedade do bem prestado, o qual permanece onerado com uma garantia a favor
do credor pignoratício), produzindo-se um fenómeno de sub-rogação real que permite a sobrevivência da
garantia apesar da extinção do crédito onerado (cujos requisitos se encontram preenchidos, ou seja, a
perda ou alienação de um elemento do património, a entrada de um bem no mesmo património pelo
mesmo título do bem que de lá saiu, a existência de um laço entre o bem desaparecido e o substituto e a
transferência para o bem subrogado dos direitos existentes sobre o bem desaparecido) e, assim, “Gracias
a una ficción legal, lo obtenido con el cobro del crédito pignorado se convierte en el nuevo objeto del
derecho real de garantía”, retroagindo a data de constituição da garantia à data do originário nascimento
do penhor de créditos (a mesma faculdade de cobrança assiste ao credor pignoratício quando o seu crédito
se vença antes do crédito empenhado, sendo justificada porque a execução se torna desnecessária - “Pues
en el caso de prenda de crédito dinerario, la propia naturaleza del mimso no sólo hace innecesaria en
430
conservação do objecto da garantia e não ser considerado como um mero poder ou
faculdade atribuído ao credor pignoratício.1667
Com efeito e na medida em que não assiste ao credor pignoratício – como o não
assiste ao próprio credor comum – o direito de exigir o cumprimento da obrigação
garantida antes do seu vencimento, a cobrança do crédito dado em penhor permite-lhe
manter a sua garantia, passando esta a recair sobre o bem prestado em cumprimento do
crédito empenhado (art.º 685.º, n.º 1, parte final).1668
Destarte, o penhor, que inicialmente incidia sobre um crédito transforma-se em
penhor sobre o objecto da prestação creditória, podendo este fenómeno ser explicado
através do recurso à figura da sub-rogação.1669
O mesmo efeito produzir-se-á mesmo que o crédito tenha por objecto dinheiro
ou outra coisa fungível.1670 Simplesmente, neste último caso, o devedor do crédito
empenhado só poderá efectuar a prestação, conjuntamente, ao seu credor e ao credor
pignoratício1671 e, na falta de acordo entre estes, tem a faculdade de recorrer à
consignação em depósito (art.º 685.º, n.º 2).
ciertas ocasiones la ejecución (…) sino que hace necesario conceder al acreedor pignoraticio el derecho
de cobro del crédito si no se quiere que desaparezca su derecho” – podendo o credor pignoratício optar
por, em alternativa, a tal execução, aguardar pelo vencimento do crédito onerado e proceder à respectiva
cobrança, nos mesmos termos em que o pode fazer quando o crédito empenhado se vença antes do
garantido.
1667
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 245 (acrescentando que caso o devedor do crédito dado em
penhor se recuse a pagar, o credor pignoratício poderá lançar mão de uma acção executiva, mas tratar-se-
á de uma execução ordinária e não pignoratícia, uma vez que a posição do credor pignoratício será a que
caberia ao concedente da garantia), Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 49 e 52 (qualificando esta faculdade
atribuída ao credor pignoratício como um poder-dever) e Cruz Moreno, ob. cit., pág. 1306, salientando
como “El poder que otorga el ius exigendi al acreedor garantizado es equivalente al que dispensa el
derecho de posesión cuando se trata de cosas corporales”, pelo que “a la facultad de cobro del crédito
pignorado se liga el deber de cuidado del crédito, lo cual implica la debida exacción de intereses y cobro
del capital al vencimiento y la realización de cuantos actos conservativos sean necesarios”.
1668
Esta cobrança permite ao credor pignoratício conservar a garantia, ao consentir que este adquira o
controlo possessório sobre o objecto resultante daquela cobrança do crédito.
1669
Considerando que, deste modo, o penhor de créditos se transforma em penhor de coisa ou em penhor
irregular (se o crédito dado em penhor tivesse por objecto dinheiro ou outras coisas fungíveis), Rubino, Il
pegno cit., pág. 246 (explicando esta transformação através da sub-rogação), Pires de Lima e Antunes
Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 703, Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 52, Pestana de Vasconcelos, Direito das
garantias cit., pág. 252 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 212 (afirmando este último
inequivocamente que se produz “uma sub-rogação, sucedendo a coisa ao crédito como objecto do
penhor: res succedit in locum nominis”). Defendendo a mesma solução para o direito espanhol na
ausência de norma expressa a este respeito, vide Jordano Fraga, ob. cit., pág. 314 (citando vários Autores
em sentido idêntico). Acerca desta e de outras normas que, ao menos aparentemente, legitimam a
possibilidade de substituição do bem onerado, vide infra n.º 3.5.2 do Capítulo II.
1670
Mais difícil será quando o objecto do crédito empenhado não consista numa coisa, mas antes numa
prestação de facto, parecendo que o credor pignoratício ficará em posição de poder exigir tal prestação,
mas apenas após o vencimento da obrigação garantida (e não antes, pois o objecto da prestação, depois do
seu cumprimento, será insusceptível de conservação, implicando antes uma apropriação definitiva do bem
por parte do credor, em eventual violação da proibição do pacto comissório), devendo, para o efeito,
atribuir-se-lhe um valor pecuniário.
1671
Nos termos do art.º 685.º, n.º 4, o titular do crédito empenhado (devedor do crédito garantido) não
poderá receber, sem o consentimento do credor pignoratício a prestação resultante desse crédito,
independentemente de o crédito garantido se encontrar ou não vencido: caso esse consentimento tenha
lugar, o penhor extingue-se (norma praticamente igual consta do art.º 1457.º do CCB, ressalvando apenas
a necessidade de a anuência do credor pignoratício ter que ser dada por escrito): assim, se o devedor do
crédito dado em penhor pagar, depois de notificado da constituição do penhor, ao seu credor, paga mal e,
por isso, fica sujeito a ter que pagar uma segunda vez ao credor pignoratício.
431
Esta última solução justifica-se com a necessidade de protecção dos interesses
do empenhador, evitando o risco do credor pignoratício dissipar esses bens fungíveis e
muito em particular o dinheiro.1672
É, por isso, discutível se, tendo o penhor por objecto um crédito em dinheiro
cujo vencimento ocorra em momento anterior ao vencimento do crédito garantido1673 –
e, por efeito da cobrança, se tenha transformado num penhor de coisa ou irregular1674 –
1672
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 703. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs.
214 e 215 justifica a diversidade de regimes com o facto de, quando o crédito não tenha por objecto
dinheiro ou outras coisas fungíveis, a posse do bem pelo credor pignoratício não prejudicar o
empenhador, na medida em que aquele teria a coisa em seu poder se o penhor tivesse sido logo
constituído sobre essa mesma coisa. Pelo contrário, quando o crédito tenha por objecto dinheiro ou outro
bem fungível, existe o risco de o credor pignoratício dissipar tais bens ou de estes se confundirem com os
bens próprios desse credor.
1673
Se, ao invés, o crédito garantido se vencer antes do crédito empenhado, o credor pignoratício dispõe
de três alternativas: promover a venda executiva do crédito empenhado, realizar a respectiva venda
extraprocessual ou receber o crédito empenhado pelo valor fixado pelo tribunal (nos dois últimos casos
apenas se tal houver sido convencionado entre as partes) – cfr. Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 55.
Contudo, se o objecto do crédito dado em penhor for dinheiro, questiona-se se o titular da garantia poderá
reter a quantia necessária para o pagamento do seu crédito, devolvendo o eventual remanescente ao seu
devedor, isto é, ao titular do crédito empenhado (esta hipótese levanta dúvidas semelhantes à daquela
outra indicada no texto, tendo em conta a proibição do pacto comissório – aceitando tal possibilidade,
Rubino, Il pegno cit., pág. 246). Para o direito espanhol e pese embora a ausência de regulamentação
específica para o penhor de créditos, García Vicente, La prenda cit., pág. 102 e segs., socorrendo-se do
regime previsto no art.º 507.º do CCE para o usufruto de direitos (do qual extrai a regra da possibilidade
de o titular de um direito real limitado poder imobilizar e controlar o destino do objecto do seu direito),
entende que, nada se dizendo em contrário aquando da notificação ao terceiro devedor do crédito
empenhado comunicando-lhe a constituição da garantia, a legitimidade para a cobrança do crédito
empenhado assiste, como regra, conjuntamente ao credor pignoratício e ao empenhante (pois a ambos
interessa o destino daquilo que for cobrado), sem prejuízo de qualquer deles poder reclamar a cobrança,
mas devendo ambos receber o pagamento (em caso de dúvida, o devedor do crédito empenhado deverá
consignar em depósito o montante em dívida), distinguindo igualmente consoante o crédito empenhado se
vença antes (caso em que se deve recusar, salvo convenção em contrário, a cobrança por parte do
empenhante – uma vez que tal suporia uma inutilização da garantia, por não ser possível imobilizar a
quantia prestada -, consentindo-se a cobrança apenas por parte do credor pignoratício ou, conjuntamente,
por este e pelo empenhante: caso a cobrança seja efectuada apenas pelo credor pignoratício, nasce “un
crédito eventual a la restitución del que él es deudor y el pignorante acreedor. Digo que es eventual
puesto que depende su cumplimiento de si el crédito garantizado se satisface o no voluntariamente
quando llega su vencimiento”, produzindo-se uma sub-rogação real “en el objeto de la prenda si cobra el
acreedor pignoraticio: se subroga en el crédito pignorado la deuda de restitución”) ou depois do crédito
garantido (caso em que a faculdade de cobrança por parte do credor pignoratício se confunde com a
execução da garantia).
1674
A este respeito, Pace, ob. cit., pág. 128 e segs., assume uma posição sui generis, defendendo que o
vencimento do crédito onerado faz com que “il rapporto obbligatorio fra i due creditori si estingua per il
fatto stesso che non esiste più il credito dato in pegno. Al posto del vecchio rapporto così estinto
subentrerà un nuovo rapporto di pegno regolare o irregolare, a seconda che l’oggetto della prestazione
sia un corpus certo e determinato, oppure delle somme di denaro o delle cose fungibili”, excluindo o
enquadramento do fenómeno no âmbito da sub-rogação real (figura de cuja existência dogmática duvida,
concluindo tratar-se de um conceito falso, “perchè pretende far rientrare, in forza di una finzione legale,
nel fenomeno della modifica dei rapporti quelli che sono invece dei casi di estinzione e successione di
rapporti, e che non possono perciò trovare la loro giustificazione in una finzione legale”) ou da
substituição do objecto, explicando-o através da vontade presumida das partes no momento da
constituição do penhor de créditos, nos termos da qual acordam na constituição eventual de um penhor
sobre a prestação do crédito empenhado (embora o penhor de créditos seja de natureza obrigacional e o
outro, sobre o objecto desse mesmo crédito, seja de natureza real), de tal modo que “non si abbia qui un
semplice fenomeno di modificazione nel rapporto per mutamento dell’oggetto di esso, ma una vera e
propria estinzione di un rapporto al cui posto ne subentra un altro in conseguenza della espressa o
presumibile volontà delle parti” (pelo que, no momento do vencimento do crédito garantido, o credor
pignoratício poderá executar o bem objecto da prestação – tendo o penhor de créditos sido convertido
432
o credor pignoratício se possa satisfazer-se directamente sobre essa coisa, sem
necessidade de proceder à respectiva alienação, nomeadamente em função da proibição
do pacto comissório.1675
Refira-se, ainda, que, não obstante o poder atribuído ao credor pignoratício para
proceder à cobrança do crédito empenhado, o terceiro devedor pode opor àquele todos
os meios de defesa de que dispunha contra o empenhador, excepto os que decorram de
factos posteriores ao conhecimento do penhor ou sejam posteriores à notificação da
constituição da garantia ou à sua aceitação pelo devedor (cfr. art.º 585.º, aplicável por
força do art.º 684.º).1676
Comprova-se, assim, que os poderes e deveres do credor titular de um penhor de
créditos variam consoante o seu crédito (crédito garantido) se encontre ou não vencido:
no primeiro caso, importa ainda distinguir consoante o crédito empenhado seja exigível
depois do crédito garantido1677 ou, ao invés, este seja exigível antes daquele;1678 após o
num penhor regular de coisa – ou, tendo-se transformado num penhor irregular e passado a incidir sobre
um bem fungível diverso do dinheiro, deverá o credor pedir a condenação judicial ao pagamento do
equivalente ao montante pecuniário da divida garantida e, com base nessa decisão, o credor pignoratício
desobriga-se do dever de restituição das somas recebidas; tratando-se de dinheiro, poderá simplesmente
imputá-lo ao pagamento do crédito garantido, sem que, neste último caso, se possa falar de apropriação –
porque, tratando-se de um penhor irregular, a propriedade dos bens empenhados já pertence ao credor -
nem de compensação, uma vez que ao crédito em dinheiro do credor pignoratício não corresponde um
crédito certo e exigível do empenhante).
1675
Acerca da aplicação da proibição do pacto comissório ao penhor de créditos, vide infra n.º 4.3.4 do
Capítulo I.
1676
Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 702. No direito espanhol e pese embora a
ausência de regulamentação do penhor de créditos, mas com base no princípio que não pode, por força da
constituição da garantia, ficar numa posição pior do que a que detinha anteriormente, Garcia Vicente, La
prenda cit., págs. 118 a 121, admite que o devedor do crédito empenhado possa opor ao credor
pignoratício as excepções decorrentes da relação jurídica da qual brota o crédito empenhado (como sejam
todas as resultantes da relação obrigacional fonte do crédito empenhado, bem como dos contratos
bilaterais ainda não cumpridos dos quais o crédito empenhado faça parte. Ao invés, não poderá invocar as
excepções relacionadas com o próprio contrato de penhor, por se tratar de um contrato ao qual o devedor
do crédito empenhado é estranho: porém, mesmo neste caso, há quem advogue a possibilidade de
invocação destas excepções de modo a não pagar a quem não deve e sem efeitos liberatórios, posição este
refutada pelo Autor, alegando que a defesa do devedor do crédito empenhado passa por efectuar o
pagamento a quem lhe tenha sido indicado aquando da notificação da constituição do penhor e, tendo
dúvidas, consignar em depósito a sua prestação), bem como as que tenha com o credor pignoratício para
além da relação de garantia (por exemplo, a compensação de créditos, desde que conhecesse o penhor e se
tenha reservado o direito de a invocar ou se tenha oposto à constituição do penhor – em ambos os casos,
apenas a compensação anterior ao conhecimento - ou se este nunca lhe foi notificado, caso em que poderá
opor a compensação de todos os créditos, anteriores ou posteriores à constituição do penhor; não a poderá
invocar, pelo contrário, se o devedor do crédito empenhado tiver consentido na constituição do penhor,
independentemente de os créditos a compensar serem anteriores ou posteriores à constituição do penhor).
Pace, ob. cit., pág. 139 e segs., ao configurar o do poder de cobrança do credor pignoratício como uma
substituição do empenhante, retira consequências quanto à possibilidade de o devedor do crédito
empenhado opor a excepção de compensação, seja com créditos do empenhante, seja com créditos do
credor pignoratício: na primeira hipótese, apenas a poderá invocar se os requisitos da compensação se
verificaram antes da constituição do penhor – caso se tenham verificado depois, não poderá opor, pois “la
prestazione dovuta al sostituto non è più equivalente a quella dovuta al titolare del credito: il che si
traduce nel difetto della reciproca esibilità dei crediti da compensare”; quanto à compensação com
créditos do credor pignoratício, o Autor recusa-a, porquanto este último não actua com base num direito
próprio, mas somente como substituto do empenhante, faltando assim o requisito da reciprocidade dos
créditos a compensar, razão pela qual o devedor do crédito empenhado apenas poderá opor as excepções
de que disponha face ao empenhante.
1677
Caso em que assistirá ao credor pignoratício, além do direito de receber os juros do crédito
empenhado e de os imputar ao pagamento dos juros e do seu próprio crédito, a possibilidade de exigir do
constituinte da garantia um conjunto de informações (nomeadamente em relação ao cumprimento das
eventuais contra-prestações devidas pelo constituinte respeitantes ao crédito empenhado). Inversamente,
433
vencimento do seu crédito, o credor pignoratício poderá não dispor de algumas das
prerrogativas normalmente conferidas ao titular de um penhor de coisas.1679
Finalmente, o poder/dever do credor pignoratício conservar o bem onerado,
quase como se fosse o verdadeiro credor do crédito empenhado, pode ser enquadrado –
principalmente tendo em conta a faculdade de cobrança do crédito empenhado – no
instituto mais lato da legitimação, entendido como o fenómeno através do qual um
sujeito dispõe da faculdade de praticar actos de disposição ou de administração
relativamente a um direito sobre o qual não tem a titularidade.1680
sobre os seus ombros pesarão algumas obrigações particulares, destinadas a zelar para que, no momento
do vencimento do crédito empenhado, este possa ser cobrado, adoptando um conjunto de providências
conservatórias (como a constituição de uma outra garantia em caso de deterioração da situação económica
do terceiro devedor do crédito empenhado), as quais são enquadráveis no dever geral de conservação que
impende sobre os credores pignoratícios (embora tal dever apenas surja apenas se o credor “avait les
éléments et les connaissances suffisantes pour apprécier la situation (…). Ainsi, le débiteur en relations
d’affaires avec une entreprise dispose d’informations que le gagiste ignore le plus souvent. Inversement,
en créancier gagiste engage sa responsabilité envers le constituant s’il est par exemple à la fois banquier
de ce dernier et du débiteur de la créance nanti. Dans ce cas, le créancier ne pourrait sérieusement
soutenir qu’il ne disposait pas d’informations complètes pour prendre des mesures conservatoires”) -
Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 65 a 67.
1678
Nesta hipótese, verifica-se uma substituição do objecto da garantia, a qual deixa de incidir sobre o
crédito - que se extinguiu – para passar a recair sobre a prestação objecto daquele crédito (normalmente
pecuniária), embora Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 67 a 69, recuse a atribuição ao
credor pignoratício do direito de cobrar e receber tal prestação (até porque tal significaria atribuir-lhe o
direito a apropriar-se do objecto da sua garantia, antes ainda do vencimento do crédito garantido, para
além da eventual violação da proibição do pacto comissório), exigindo antes o consentimento do credor
pignoratício e do seu devedor (constituinte da garantia) e rematando que o produto da cobrança deve ser
depositado (tratando-se de dinheiro, numa conta bancária), podendo o credor pignoratício obter a sua
atribuição em pagamento apenas depois do vencimento do crédito garantido. O mesmo Autor esclarece
que o efeito sub-rogatório do objecto da garantia prescinde do consentimento do devedor constituinte da
garantia, tendo em conta que “Il est admis que si la chose engagée est périssable, le créancier doit la
vendre et que la restitution portera alors sur une chose semblable. De même, si le gage porte sur une
chose consomptible, le gagiste n’est pas tenu de la conserver. La créance peut très bien être comparée à
une denrée périssable. A la date d’exigibilité, le fruit est mûr, et le créancier doit agir s’il ne veut pas voir
sa créancer disparaître (...). Il existe, certes, le risque de voir le créancier disposer des sommes ainsi
recouverées (…). Ce danger et, tout d’abord, inhérent au gage. Rien n’interdit à un créancier peu
scrupuleux de vendre le matériel ou la marchandise qui lui a été remis en gage (…). Le danger est
également plus théorique qu’économique. Si, en effet, le créancier dissipe les fonds reçus, son débiteur
n’aura pas à executer sa propre prestation, une compensation s’effectuera entre les sommes perçues et
les sommes dues”.
1679
Embora seja pacífica a atribuição de um direito de preferência e do consequente ius distrahendi para o
seu exercício, é discutível a concessão da faculdade de requerer a atribuição em pagamento do crédito
onerado (ou da sua prestação) e, sobretudo, a outorga de um direito de retenção.
1680
Segundo Pace, ob. cit., pág. 139 e segs., o credor pignoratício, relativamente a terceiros, “ha solo la
facoltà di pretendere l’adempimento nei confronti del terzo debitore e da questa situzione d’ordine
sostanziale gli deriva la legittimazione ad agire nel processo, come sostituto processuale del titolare, nel
caso che il terzo debitore conteste l’obbligazione o rifiuti di adempire”, de modo que, apesar de não ser o
seu titular, é-lhe conferida a legitimidade para dispor de um direito alheio. Na perspectiva do terceiro
devedor do crédito empenhado, este permanece como devedor do empenhante, mas com a constituição do
penhor o pagamento por si realizado apenas será liberatório se efectuado ao credor pignoratício (pois um
eventual pagamento ao empenhante “non ha effetto liberatorio, perchè compiuto nei confronti di chi non
è più legittimo ad esigere”), embora o Autor esclareça que tal não significa uma alteração do credor do
terceiro devedor do crédito empenhado – que continua a ser o empenhante – mas antes que se altera a
pessoa legitimada a receber a prestação, in casu, o credor pignoratício, que apesar de não ter um direito
próprio relativamente ao terceiro devedor do crédito empenhado, dispõe de legitimidade para proceder a
essa cobrança (até porque o pagamento ao empenhante não será liberatório). Com efeito, neste e noutros
casos, a lei – verificados que sejam determinados pressupostos – confere a um sujeito legitimidade para
dispor de bens dos quais não é titular, seja porque esse sujeito aparece, face a terceiros, como sendo o
verdadeiro titular daqueles bens (como sucede, em certa medida, com o possuidor), seja mesmo
434
Do ponto de vista processual (mormente em caso de recurso à via judicial, seja
ou não para efeitos de execução da garantia), nada obriga o credor pignoratício a
chamar o empenhante (embora o possa fazer, do mesmo modo que este aí pode intervir
espontaneamente),1681 assistindo igualmente ao empenhante o direito de iniciar o
processo em caso de inércia por parte do credor pignoratício.1682
Da lei resulta ainda para o credor a necessidade de administrar o bem recebido
em garantia como um proprietário diligente, respondendo pela sua existência e
conservação (art.º 671.º, alínea a)).
O fundamento deste dever bem como a sua titularidade no caso de o bem ser
confiado a terceiro1683 merecem respostas similares às anteriormente explanadas a
propósito do dever de guarda, pelo que remetemos para as considerações acabadas de
tecer a esse respeito.
Todavia, cumpre distinguir consoante o penhor seja com ou sem anticrese, pois,
muito embora a obrigação de administrar o bem empenhado recaia sobre o credor em
ambos os casos e em ambos os casos essa obrigação abranja a necessidade de perceber
os respectivos frutos – num caso para os restituir ao proprietário do bem, no outro para
os compensar com o seu crédito – existem particularidades não despiciendas em cada
uma das hipóteses.
Assim, tratando-se de penhor anticrético, o credor pode fazer seus os frutos,
enquanto na hipótese inversa o credor deverá conservá-los (pois eles encontram-se
abrangidos pelo penhor, tal qual a coisa principal) ou, caso tal conservação não se
afigure possível, proceder à respectiva alienação (nos mesmos termos da coisa principal
insusceptível de conservação).
Independentemente desta distinção, casos há em que o dever de administração e
mais concretamente a percepção dos frutos, constituirá um dever para o credor
pignoratício: tal sucederá quando o empenhador não o possa fazer e houver perigo de
perecimento, deterioração ou prescrição dos frutos, respondendo perante o empenhador
quando o não faça culposamente e os frutos pereçam, diminuam ou prescrevam
(podendo esta dívida ser compensada com o seu crédito).1684
De facto e na medida em que ao credor pignoratício incumbe zelar pela
administração do bem empenhado como um proprietário diligente, terá igualmente, não
apenas o direito, mas também a obrigação de promover a frutificação do bem1685 e de
435
perceber os respectivos frutos, independentemente da questão conexa de saber se ao
penhor em causa está ou não associado um pacto anticrético (ou seja, se o credor
pignoratício deverá ou não restituí-los ao proprietário do bem empenhado).1686
Com efeito, bem se compreende que se o constituinte da garantia não puder
levar a cabo a recolha dos frutos, a sua não percepção pelo credor poderia implicar a
respectiva perda, deterioração ou prescrição, com o consequente prejuízo para o
primeiro.1687
A principal especificidade do penhor sem pacto anticrético (cfr. art.º 672.º, n.º
2), traduz-se, assim, no facto de o credor recolher esses frutos para, em seguida, os
entregar ao proprietário.16881689
Em suma, diremos que o dever de conservação se projecta relativamente aos
frutos do bem empenhado, impondo ao credor a sua percepção ou recolha para, em
seguida, lhe dar o destino mais conveniente: a sua conservação ou, se esta não se
afigurar viável, a respectiva alienação.1690
Na eventualidade de o bem empenhado ter sido confiado a um terceiro
depositário, duas alternativas se afiguram plausíveis: ou estabelecer que o dever de
recolha dos frutos – à imagem do exposto a propósito do dever de guarda e de
conservação – recai sobre o terceiro; ou, pelo contrário, entender que a missão do
1686
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 692, Realmonte, Il pegno cit., pág. 665 e Barbara
Cusato, ob. cit., pág. 219. Em termos idênticos, para o direito brasileiro, Sílvio de Salvo Venosa, ob. cit.,
pág. 563, em aplicação dos art.ºs 1433.º, V e 1435, IV, do CCB (que dispõem, respectivamente, que o
credor tem direito a apropriar-se dos frutos do bem empenhado que se encontrem em seu poder e, por
outro lado, que o mesmo credor é obrigado a imputar o valor dos frutos de que se aproprie,
sucessivamente, nas despesas de conservação, nos juros e no capital da obrigação garantida).
1687
Esta fundamentação do dever de recolha dos frutos consta de Rubino, Il pegno cit., pág. 248,
acrescentando que tal prejuízo seria tanto maior quanto o constituinte da garantia não veria, em caso de
perda dos frutos resultante da sua não recolha, proporcionalmente extintos os juros ou o capital devido.
1688
Assim, Realmonte, Il pegno cit., pág. 666 e Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 105 (mas admitindo que o
credor possa permitir ao devedor a adopção dos comportamentos necessários para a produção e recolha
dos frutos, desde que não ponham em causa a posse do primeiro), Pires de Lima e Antunes Varela, ob.
cit., Vol. I, pág. 692 (assegurando que estes frutos não se encontram, salvo pacto em contrário, abrangidos
pelo penhor) e Faggella, ob. cit., pág. 117 (embora este Autor sustente que o credor terá o dever de
recolher os frutos mas, por força da proibição de uso do bem, a obrigação de os entregar ao proprietário).
Pelo contrário, Rubino, Il pegno cit., pág. 248, assevera que, neste caso, caberá ao proprietário do bem
desenvolver as operações materiais necessárias para a percepção dos frutos, sem que estas prejudiquem a
posse do credor pignoratício. Salvo melhor juízo, esta última posição parece-nos pouco consentânea com
a atribuição da posse o bem empenhado ao credor pignoratício, assim como com a extinção da garantia
em caso de perda (mesmo temporária) dessa mesma posse, razão pela qual aderimos ao entendimento
defendido pelos primeiros autores citados.
1689
Por exemplo, naqueles ordenamentos nos quais não se presume o pacto anticrético, o credor não se
poderá apropriar dos frutos - a não ser que exista uma convenção nesse sentido - pois tal equivaleria a
uma dação em pagamento, que também só existirá quando expressamente acordada (cfr. Planiol, Ripert,
Becqué, ob. cit., pág. 111). Não obstante os frutos não lhe pertencerem, o credor tem o dever de os
recolher por conta do proprietário do bem empenhado (neste sentido, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 261
e Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 543) e sob condição de não os usar (Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., pág. 262). Porém, estas considerações encontram-se desactualizadas, porquanto
o art.º 2345.º, introduzido na reforma de 2006, vem dispor que, salvo convenção em contrário, quando o
bem onerado fique em poder do credor pignoratício, este receberá os respectivos frutos, imputando-os
juros e, em seguida, ao capital em débito.
1690
Nestes termos, Guillouard, ob. cit., pág. 160 e Troplong, ob. cit., pág. 119 (este último esclarecendo
que o credor se encontrar obrigado a dar conta ao proprietário do bem do destino dos frutos, tenham eles
sido consumidos ou preservados, por forma a evitar que o credor possa enriquecer à custa desses frutos) e
Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 245.
436
terceiro será apenas a de permitir que o titular do direito aos frutos proceda à recolha
dos frutos.1691
A nosso ver e tendo em conta que o terceiro assume o dever de custódia e a
inerente obrigação de conservação do bem onerado, parece-nos que sobre ele impenderá
igualmente a incumbência de zelar pela percepção dos frutos do bem empenhado,
entregando-os, em seguida, ao credor ou ao constituinte da garantia, consoante o penhor
seja ou não munido de um pacto anticrético.
Um exemplo acabado deste dever de recolha dos frutos encontra-se consagrado,
a respeito do penhor de créditos, no art.º 683.º, que impõe ao credor pignoratício a
obrigação de cobrar os juros e demais prestações periódicas compreendidas na garantia.
1691
Opta por esta segunda alternativa Rubino, Il pegno cit., pág. 248. Não toma posição, Realmonte, Il
pegno cit., pág. 666.
1692
Particularmente impressivos a este respeito são o art.º 2079.º do CCF, anterior à reforma de 2006 (ao
estabelecer que, até ao início da execução, o devedor permanece proprietário do bem empenhado,
encontrando-se em poder do credor pignoratício a título de depósito e com o intuito de assegurar o seu
direito de preferência) e o art.º 1869.º, n.º 1, do CCE (o qual dispõe que, enquanto não se promover a
execução do bem onerado, o constituinte mantém a propriedade do mesmo, embora Paz-Ares Rodriguez,
ob. cit., pág. 1887, ressalve que algumas das faculdades inerentes ao direito de propriedade ficam
limitadas ou excluídas pela constituição do direito real de garantia, como sejam, por exemplo, a perda da
posse do bem ou de não poder fazer seus os juros eventualmente produzidos por esse mesmo bem – em
razão do pacto anticrético presumido – , mas conservando a possibilidade de o alienar, embora não possa
entregá-lo ao adquirente, uma vez que a coisa se encontrará em poder do credor).
1693
Poderá, ainda, de acordo com Rubino, Il pegno cit., págs. 252 e 253, renunciar ao direito de
propriedade do bem empenhado, daí também não resultando prejuízo algum para o credor pignoratício,
que poderá até adquirir essa propriedade por usucapião, desde que haja a pertinente alteração do animus
da sua posse. Pelo contrário, o mesmo Autor recusa a possibilidade de renúncia ao direito empenhado,
pois tal facto extinguiria o direito e, por consequência, o penhor (afiançando, porém, que tais negócios de
renúncia não serão nulos, mas ineficazes temporariamente até à data em que, por extinção do penhor, a
titularidade do direito volte a ser ilimitada ou, em alternativa, imediatamente eficazes, excepto
relativamente ao credor pignoratício).
1694
A lei, aliás, veda a convenção nos termos da qual se proíba o proprietário do bem empenhado de o
alienar ou onerar, admitindo-se apenas que a dívida garantida se vença em caso de alienação ou oneração
do bem empenhado (art.º 695.º, aplicável por força do art.º 678.º). Por isso, no Acórdão da Relação de
Lisboa de 22/1/1998, in CJ, 1998, I, pág. 89 e segs., se decidiu que o proprietário de umas acções dadas
em penhor mantinha, não obstante a constituição da garantia, legitimidade para as alienar, mesmo sem o
consentimento do titular da garantia (tanto mais que, no caso, tal garantia se encontrava registada).
1695
Realça este último aspecto Manuel Albaladejo, Derecho Civil III cit., Derecho de bienes, Edisofer,
2010 (11.ª Edição), pág. 694, esclarecendo que a constituição de direitos reais de garantia, fora aquela
limitação, deixam intacto o direito de disposição.
437
Excepcionalmente, a constituição de um penhor gera uma intransmissibilidade,
ao menos parcial, do objecto dado em garantia, assim bloqueando os negócios jurídicos
que sobre o mesmo possam recair.1696
Contudo, por força da constituição da garantia possa perder algumas faculdades
relativamente ao bem onerado, como sejam o direito e receber os frutos ou a manter a
posse (ao menos imediata) sobre o mesmo.1697
Simplesmente, a alienação ou oneração em nada afecta os direitos do credor
pignoratício, uma vez que este goza de um direito real oponível a terceiros1698 e,
portanto, também ao adquirente do bem,1699 podendo, em consequência, fazer vender o
bem em caso de incumprimento da obrigação garantida.1700
Todavia, nos ordenamentos em que vigora o princípio da posse vale título, por
vezes impõe-se o consentimento do credor pignoratício para a tradição do bem, deste
modo protegendo este último contra a aquisição do bem empenhado por parte de
terceiros de boa fé.1701
Por outro lado, o adquirente não poderá exigir a entrega senão depois de pagar
integralmente o montante devido ao credor pignoratício, uma vez que o bem, apesar de
ainda ser pertença do devedor, encontra-se em poder do titular da garantia.1702
Na medida em que os vários poderes e deveres resultantes da relação
pignoratícia são atribuídos ao constituinte da garantia na sua qualidade de proprietário
ou titular do bem ou direito dado em penhor, transmitir-se-ão para o novo adquirente do
mesmo.1703
Se ao proprietário do bem empenhado é legítimo aliená-lo, já não será a
constituição de um direito cujo conteúdo essencial pressuponha a utilização da coisa –
como sucede com o usufruto – uma vez que o credor pignoratício se encontra na posse
1696
É o que sucede com o penhor sobre valores mobiliários desmaterializados admitidos a negociação, no
qual, uma inscrita a garantia no competente registo, porquanto “la inmovilización de los valores
empeñados, exclusivamente, dentro de los sistemas de negociación bursátil (…) no impide la
transmissión contable extrabursatil”, transmitindo-se, nesta última hipótese, as acções acompanhadas do
ónus que sobre elas recaía.
1697
Realça este aspecto, Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 542 e 543 (e, em termos aproximados,
em Derecho Civil III cit. cit., pág. 694, ressalvando que a alteração dos poderes do proprietário sobre o
bem onerado depende da garantia em questão, uma vez que o penhor, por pressupor o desapossamento do
devedor, é um dos que mais faculdades limita, nomeadamente as de gozo).
1698
Realça este aspecto Paulo Cunha, ob. cit., pág. 214, até porque a posse do bem – indispensável à
manutenção da garantia - permanece no credor pignoratício.
1699
Todavia, como bem ressalvam Rubino, Il pegno cit., pág. 252 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58.,
pág. 207, esta hipótese será rara “porque não é fácil que alguém adquira uma coisa, que está empenhada
e na posse do credor ou de terceiro” (a não ser que se trate de penhor sem desapossamento). Este último
Autor descarta, tendo em conta o reduzido valor prático da hipótese, a possibilidade – reconhecida por lei
em matéria de hipoteca – de concessão ao terceiro adquirente de um bem onerado com penhor o direito de
expurgar a garantia.
1700
De acordo com outra perspectiva e como salienta Guillouard, ob. cit., pág. 158, o adquirente não terá,
contra o credor pignoratício, mais direitos do que aqueles de que dispunha o devedor.
1701
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 244, enumera os valores mobiliários titulados como um dos casos
a que tal regra se aplica, identificando esta como uma hipótese de transmissão passiva dos bens
empenhados. Porém, mesmo nos ordenamentos em que vigore a regra da posse vale título, que a posição
do credor pignoratício não sairá prejudicada pela alienação do bem empenhado, mesmo que o adquirente
esteja de boa fé, desde que o credor pignoratício mantenha a posse do objecto da sua garantia – neste
sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 252.
1702
Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 101 e Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 108.
1703
Rubino, Il pegno cit., pág. 252, admite, no entanto, que nem todas as obrigações do constituinte se
transfiram para o adquirente do bem.
438
do bem em causa e deve mantê-la, sob pena de perda da garantia, até efectiva extinção
da obrigação assegurada.1704
Outras duas consequências que decorrem da manutenção do bem empenhado na
titularidade do constituinte da garantia dizem respeito aos efeitos das oscilações de valor
de tal bem, por um lado, e ao risco de deterioração ou perda – total ou parcial – do
objecto da garantia.1705
Relativamente ao primeiro aspecto, as eventuais perdas ou aumentos de valor da
coisa verificados durante a vigência da relação pignoratícia, aproveitam, antes de mais,
ao devedor, por ser ele quem se mantém como proprietário.1706
Por outro lado, o risco de perda ou deterioração – total ou parcial - daquele bem
devido a caso fortuito ou de força maior, continua, pela mesma razão, a correr por conta
do proprietário,1707 sem que tal implique qualquer diminuição do montante da sua dívida
para com o credor pignoratício.
Mesmo no caso do penhor de créditos, relativamente ao qual se duvida da respectiva natureza
real, a cessão do direito empenhado em nada afecta a garantia pignoratícia, ou seja, ainda aqui opera o
1708
direito de sequela: todavia, a invocação deste direito pressupõe a publicitação da constituição da
garantia (através da notificação ao terceiro devedor ou da aceitação deste) e até, talvez, da própria cessão
1709
do crédito previamente empenhado.
1704
Rubino, Il pegno cit., pág. 252, sustenta que o negócio de constituição de usufruto não será nulo, mas
sim temporariamente ineficaz (excepto se o adquirente do direito estivesse de boa fé - isto é, ignorasse a
existência do penhor – caso em que o negócio será anulável a seu pedido), podendo tornar-se eficaz se,
entretanto, o penhor se extinguir e o proprietário retomar a plenitude das faculdades inerentes ao direito
de propriedade.
1705
Salienta estes dois aspectos Guillouard, ob. cit., pág. 158.
1706
No mesmo sentido, Troplong, ob. cit., pág. 115 (sem prejuízo do que se disse SUPRA acerca do
direito do credor a ser indemnizado do valor das benfeitorias por ele realizadas.
1707
Também Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 108 e Cunha Gonçalves, ob. cit., págs. 245 e 246,
realçam este aspecto. Se tais factos ocorrerem, assiste ao credor o direito, nos termos já assinalados
SUPRA de obter um reforço ou substituição do objecto da garantia.
1708
Como defende Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 59 a 61, a admissibilidade da transmissão do crédito
empenhado não pode conduzir a que o credor pignoratício seja despojado da garantia do seu crédito, ou
seja, “a cessão do crédito afecto em penhor limita-se a produzir uma modificação subjectiva em relação
a esse crédito não tendo impacto no conteúdo desse direito que se mantém inalterado (…) a prevalência
do direito pignoratício que, como vimos, é oponível a terceiros credores pignoratícios, é, por identidade
de razões, igualmente oponível ao novo titular do crédito (…) o cessionário fica sujeito às limitações do
direito que o anterior titular tenha constituído, nomeadamente o penhor do crédito”. Por isso mesmo, não
pode a cessão originar a extinção do crédito empenhado, pelo que será de excluir que o terceiro a quem o
credor-empenhador haja cedido o crédito afecto em garantia possa opor a compensação com um crédito
que eventualmente possua para com aquele mesmo credor-empenhador (argumentando que o devedor
apenas pode opor ao credor pignoratício os meios de defesa de que dispunha antes da notificação da
constituição do penhor). Em face do direito espanhol e mesmo na ausência de um regime específico para
o penhor de créditos, García Vicente, La prenda cit., pág. 97 e segs., esclarece que os eventuais
cessionários de um crédito previamente empenhado terão que suportar o ónus que sobre aquele impende
(analogamente, serão inoponíveis ao credor pignoratício as eventuais modificações das condições do
crédito onerado – alargamentos do prazo para pagamento ou outras alterações contratuais - a menos que o
devedor do crédito empenhado demonstre o desconhecimento da existência da garantia, por exemplo
porque a constituição desta não lhe foi notificada).
1709
Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 59 e 60, sugere a existência, em caso de cessão de um crédito
empenhado, de um dever de publicitação a cargo do cedente, dando conta da existência de um ónus sobre
o crédito cedido, fundamentando tal dever no princípio da boa fé. Como corolários deste dever de
publicitação, incumbiria ao cedente a obrigação de comunicar a terceiros com quem celebre negócios
relativos ao crédito afecto em garantia a existência desta e, por outro lado, de informar o cessionário
acerca das limitações do crédito cedido. De acordo com García Vicente, La prenda cit., pág. 98 e segs., a
oponibilidade (ou sequela) do penhor de créditos deve ser compaginada com o princípio da prioridade
temporal (como critério de resolução do conflito entre dois ou mais direitos) e com a protecção dos
terceiros de boa fé: ora, é com base nestes diversos critérios que deverão ser dirimidos os conflitos que
439
10 - Extinção do penhor1710
poderão surgir entre o credor pignoratício e cessionários plenos do crédito previamente onerado
(devendo, em regra, dar-se preferência ao direito do credor pignoratício – em homenagem ao princípio da
prioridade temporal -, excepto se “la cesión posterior se notifica antes al deudor del crédito cedido y este
(ignorando excusablemente la cesión anterior, de buena fe por tanto) paga al posterior, su pago será
liberatório. Sin perjuicio, claro es, de las eventuales acciones que puedan ejercer los cesionarios
anteriores frente al cedente”) e, ocorrendo a dação em penhor do mesmo crédito em garantia de mais de
mais de um credor (embora, neste caso, a posição do segundo credor pignoratício seja muito
desfavorável, porquanto não pode prejudicar o direito preferencial do primeiro credor pignoratício – salvo
se notificar a constituição da sua garantia antes deste último -, razão pela qual o Autor entende que só fará
sentido a constituição sucessiva de plúrimos penhores sobre o mesmo crédito na eventualidade de o
primeiro deles não vir a ser executado, por exemplo porque a dívida se extinguiu por cumprimento -
assumindo a configuração de penhor de um crédito futuro – ou, então, quando o montante do crédito
empenhado supere o do crédito garantido, caso em que os penhores sucessivos poderão ter como objecto
o remanescente).
1710
Rubino, Il pegno cit., pág. 273, (em sentido convergente Gabrielli, Il pegno cit., pág. 281) distingue
entre a extinção do direito de penhor propriamente dito – a que se faz alusão no texto – e a extinção da
relação complexa de penhor. Para este Autor, a constituição do penhor é contemporânea do surgimento da
relação complexa, mas já poderá acontecer que o direito se extinga mas a relação subsista (é com base
neste raciocínio que o credor, mesmo depois de perdida a posse do bem empenhado e extinto o direito de
penhor, possa, ao menos em algumas situações, exigir novamente a entrega do bem ou reivindicá-lo –
aceita esta mesma consequência Ciccarello, ob. cit., pág. 696).
1711
No direito italiano, não existe uma norma específica enumerando as causas de extinção do penhor,
pelo que estas são individualizadas através desta distinção entre causas próprias ou directas de cessação
da garantia e as causas indirectas, que resultam do desaparecimento do crédito garantido (assim, Gabrielli,
Il pegno cit., pág. 282, acrescentando que outro meio de identificar tais causas consiste em aplicar
analogicamente as previstas para a extinção da hipoteca).
1712
Por exemplo, no direito brasileiro o art.º 1437.º do CCB a extinção do penhor só produzirá efeitos
depois de averbado o cancelamento do registo (mesmo em face do direito anterior, Afonso Dionysio
Gama, ob. cit., pág. 76 e segs., justificava esta obrigação com a necessidade de tornar livre a coisa
empenhada, podendo o devedor proceder ao cancelamento mediante a apresentação de um documento de
quitação apresentado pelo credor, o mesmo direito cabendo ao adquirente do penhor, mediante a exibição
do respectivo título, por via de adjudicação, compra ou sucessão: enquanto não se produzir o
cancelamento, o penhor continua a valer contra terceiros), embora Sílvio Salvo Venosa, ob. cit., pág. 582,
advirta que tal requisito apenas condiciona a extinção da garantia face a terceiros, porquanto entre as
partes o efeito extintivo se pode ter produzido em momento anterior.
1713
Como se referiu anteriormente (cfr. n.º 6.3 do Capítulo I), as excepções à acessoriedade conduzem
também à extinção do penhor em caso de cessão do crédito pignoratício com exclusão da garantia.
440
extinção da obrigação assegurada,1714 a qual pode não coincidir com o seu
vencimento.1715
Este efeito produzir-se-á independentemente do motivo que esteve na base dessa
extinção, isto é, quer se tenha produzido pelo cumprimento da obrigação garantida,1716
pelo seu incumprimento definitivo ou por qualquer outro modo de extinção das
obrigações para além do cumprimento (cfr. art.º 730.º, alínea a), por remissão do art.º
677.º),1717 em razão da nulidade da obrigação principal ou da renúncia a esta por parte
do credor pignoratício.1718
1714
Constituindo-se o penhor em garantia de um crédito futuro ou condicional, aquele extinguir-se-á
quando não se verifique a condição ou se o crédito não vier a surgir (Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59
cit., pág. 33).
1715
Como bem nota De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 262, muitas vezes o credor opta por
não executar a obrigação garantida, apesar de esta se encontrar vencida, aceitando, por exemplo, uma
renegociação da dívida e/ou dos prazos de pagamento. Inversamente, quando o penhor se encontre sujeito
a registo, a extinção do crédito garantido não produz efeito similar relativamente à garantia enquanto tal
facto não for averbado no registo e cancelada a garantia. Noutro plano e conforme salientam Harry
Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1553, quando
o penhor garanta um crédito futuro, extinguir-se-á quando se frustre a expectativa de surgimento desse
crédito.
1716
Excepto se ocorrer o pagamento através de sub-rogação, caso em que o penhor não se extingue, antes
se transmitindo para o terceiro pagador (art.ºs 592.º, 594.º e 582.º), excepto se o bem empenhado for
devolvido ao empenhante (caso em que o penhor se extingue, por força do art.º 677.º, em razão da
restituição da coisa empenhada). Em termos análogos, o §1225 do BGB, afirma que o constituinte da
garantia que não seja devedor e satisfaça o credor pignoratício, fica sub-rogado no crédito deste. Como
refere Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 280, “le payment avec subrogation, s’il a pour
effet d’éteindre la créance à l’égard du créncier, la laisse subsister au profit du sunrogé (…). Le subrogé
bénéficie donc de la créance; il est, en quelque sorte, au lieu et place du subrogeant; et il dispose de
toutes les sûretés qui garantissaient la créance. Le gage n’est donc pas éteint en dépit du payment
intervenu (…) En principe, le solvens devrait être mis en possession du gage à la suite du payment, car le
accipiens n’est plus, du fait même du payment, créancier. Le débiteur ne peut s’opposer à cette
transmition. L’accipiens pourrait cependant conserver le gage à titre de tier convenu». Por outro lado, se
o pagamento não for integral e por força do já analisado princípio da indivisibilidade, o penhor subsiste,
uma vez que, por mais irrisório que seja o valor em dívida, a garantia não se fracciona, permanecendo
antes com a sua amplitude inicial (cfr., entre outros, Afonso Dionysio da Gama, ob. cit., pág. 74,
concluindo, em conformidade, que em caso de pagamento parcial o devedor não poderá reclamar uma
devolução proporcional dos bens empenhados).
1717
Também de acordo com o §1252 do BGB, o penhor se extingue com a extinção do crédito em
garantia do qual tenha sido constituído. De acordo com Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 29, se o
crédito não estiver extinto, mas for possível opor-lhe uma excepção peremptória, o penhor não se
extingue até ao momento em que tal excepção venha efectivamente a ser oposta: nesse momento, a
operatividade da excepção relativamente ao crédito desencadeia o mesmo efeito com respeito ao penhor.
De acordo com o regime vigente no direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 255, enumera
como causas extintivas decorrentes da obrigação principal o pagamento (excepto quando ocorra com sub-
rogação), a verificação do termo ou da condição resolutiva, a prescrição das acções destinadas a exigir o
cumprimento da obrigação garantida, a compensação e a novação objectiva da obrigação principal
(devendo distinguir-se consoante se trate de prorrogações da obrigação originária e as renovações após o
vencimento: na primeira hipótese, “es recomendable el pacto previo de extensión de la prenda a estos
supuestos”; na segunda e como estamos perante autênticas novações, estas “conllevan la extinción de la
prenda, de forma que habría de formalizarse una nueva prenda surtiendo efectos frente a terceros a
partir de la nueva fecha de formalización”), excepto existindo pacto expresso de conservação da garantia
e a novação subjectiva (neste caso unicamente se a situação de terceiros não for agravada): para além
destas causas, o Autor admite que no próprio título constitutivo da garantia se indiquem como causas
extintivas da obrigação principal (e, por conseguinte, do penhor) a confusão (entre a pessoa do
proprietário dos bens empenhados e do credor, seja porque este se torna proprietário daqueles, seja porque
o terceiro adquirente dos bens empenhados se torna titular do crédito garantido com o penhor) ou a
consolidação (quando o credor pignoratício sucede ao empenhante) da garantia.
1718
Aborda estas duas causas específicas, Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., págs. 358 e 359.
441
Porém, esta regra comporta (ou pode comportar) uma excepção, na medida em
que o n.º 1 do art.º 861.º1719 admite, havendo convenção das partes nesse sentido, que a
novação produza a extinção do crédito originário, mas permita a subsistência das
garantias que asseguravam o seu cumprimento, destarte consentindo que o penhor passe
a assegurar uma obrigação diversa daquela em vista da qual havia sido constituído1720
(exigindo-se, porém, quando a garantia houvesse sido prestada por terceiro, o seu
consentimento – cfr. art.º 861.º, n.º 2), assim se operando mais um desvio ao princípio
da acessoriedade.
Naturalmente que a garantia, mesmo depois de passar a assegurar um crédito
novo, apenas o faz com as mesmas preferência e limites do crédito antigo.1721
Esta excepção poder-se-á justificar com o facto de, apesar de o motivo do
surgimento do crédito novo ser a extinção do antigo, a nova obrigação constituir, na
prática, um prolongamento da antiga, além de, não existindo esta regra, a própria
utilidade da figura da novação ficar seriamente comprometida.17221723
1719
Em termos análogos, vide os art.ºs 1232.º, 1235.º e 1275.º do CCI e 1278.º e 1279.º do CCF (muito
embora os preceitos da lei gaulesa apenas façam referência aos privilégios e às hipotecas, o facto de a
mesma se referir também ao privilégio do credor pignoratício – cfr. art.ºs 2073.º e 2074.º - justificará a
colocação do penhor sob a alçada das normas relativas aos efeitos da novação) e, defendendo a mesma
solução para o direito brasileiro Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 358 (sugerindo a manutenção
do penhor, em caso de novação da obrigação garantida, se as partes expressamente acordem na
transferência da garantia para o novo crédito). Existe, a este respeito, contudo, uma diferença importante
entre o nosso regime, por um lado, e os ordenamentos italiano e francês, por outro: enquanto entre nós a
lei trata do mesmo modo, para efeitos de manutenção das garantias em caso de novação, a novação
objectiva e subjectiva, os outros dois ordenamentos mencionados tratam diferenciadamente a novação
objectiva e subjectiva com alteração do credor (caso em que o penhor que asseguravam o crédito antigo
só passarão a garantir o crédito novo se tal for acordado pelas partes) e a novação subjectiva com
alteração do devedor (caso em que o penhor extinguir-se-á, salvo se os proprietários dos bens sobre os
quais recaía o penhor consintam que estes passem a assegurar o cumprimento da obrigação assumida pelo
novo devedor). A respeito do art.º 1232.º do CCI, Montel, Garanzia cit., pág. 747, sublinha que, em caso
de novação objectiva, tal preceito consente ao credor reservar, em garantia do novo crédito, as garantias
que asseguravam o crédito extinto.
1720
Como já afirmámos no nosso Dos privilégios cit., pág. 42, em especial nota 47, a ressalva das
garantias deve ser expressa, mas não necessariamente escrita (cfr. art.º 217.º), porquanto nem sequer a
própria novação se encontra sujeita a tal formalismo (cfr. art.º 859.º). Todavia, aquela reserva deve ser
formulada no momento da celebração do acordo novatório, sob pena de as garantias se considerarem
extintas em função deste, não podendo depois ser reactivadas. Por outro lado e como também foi por nós
avançado no mesmo local, operando-se a extinção apenas parcial, a indivisibilidade da garantia força a
que esta assegure o cumprimento integral da obrigação originária e, sendo meramente provisória, o
penhor subsistirá para prevenir um eventual ressurgimento da obrigação, por não fazer sentido a
manutenção desta e a extinção da garantia.
1721
Designadamente, o novo crédito apenas será garantido até ao limite do crédito anterior.
1722
Com efeito, a extinção das garantias em caso de novação prejudica o credor, pois o crédito antigo
poderia tornar-se incobrável, ainda que o novo crédito seja também assistido de penhor, uma vez que a
garantia apenas se constituiria na data da novação, cedendo assim face a todas as garantias incidentes
sobre o mesmo bem entre a data da constituição do crédito extinto e a produção de efeitos da novação –
vide, a este respeito, Paulo Cunha, ob. cit., págs. 295 e 296, já por nós citado no nosso Dos privilégios
cit., pág. 43 e nota 49. Justificação idêntica é fornecida por Gabrielli, Il pegno cit., pág. 282, ao afirmar
que “il fenomeno troverebbe spiegazione nella circostanza che al posto del credito estinto ne nasce um
nuovo, che si modela in tutto sul vecchio”.
1723
Maiores dúvidas poderão suscitar as hipóteses de o penhor recair sobre um objecto indivisível
propriedade de vários condevedores ou sobre um bem de um terceiro. De acordo com Faggella, ob. cit.,
pág. 170, no primeiro caso o penhor mantém-se sobre o bem comum, por força do princípio da
indivisibilidade, mas na venda o credor deve receber apenas a parte relativa ao condevedor com o qual
havia contratado a novação; no segundo, o penhor extingue-se em resultado da extinção do crédito
principal, excepto quando o terceiro consinta na manutenção da garantia.
442
De certo modo, também constituem limitações à extinção do penhor por via
acessória a impossibilidade de a confusão1724 (art.º 871.º, n.ºs 1 e 2) e a compensação
(art.º 853.º, n.º 2)1725 prejudicarem terceiros.
1724
Importa, todavia, distinguir a confusão entre as qualidades de credor pignoratício e de devedor, caso
em que o penhor se extingue em consequência da extinção da obrigação assegurada (Harry Westermann,
Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1555 e 1556), embora
havendo penhor constituído a favor de terceiro sobre o crédito, a garantia subsista, se o interesse do
credor pignoratício assim o impuser, nos termos do n.º 2 do art.º 871 (já Vaz Serra, Parecer cit. in BMJ n.º
59, págs. 27 e 28, admitia essa subsistência da garantia quando a manutenção da garantia se
fundamentasse num interesse jurídico do proprietário: o exemplo aventado é o de o devedor dar um bem
em penhor ao seu credor, vindo posteriormente a tornar-se herdeiro dele – assim se reunindo na mesma
pessoa as qualidades de credor pignoratício e de devedor - mas tendo o devedor interesse na manutenção
da garantia porque sobre o mesmo bem recaem direitos posteriores). Todavia, parece que o penhor não se
extingue, tendo sido constituído em garantia de uma obrigação fideiussória e uma vez extinta esta por
confusão entre o devedor principal e o fiador, pois a confusão não opera em prejuízo de terceiros como o
credor pignoratício (assim Rubino, Il pegno cit., pág. 277 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 283,
salvaguardando que a permanência do penhor não pode significar um prejuízo para o empenhante, pelo
que se o fiador se houvesse obrigado em condições menos gravosas para o devedor principal, a obrigação
apenas seria garantida nesses limites). Pelo contrário, na hipótese de, independentemente da extinção do
crédito, se dar a confusão das qualidades de credor pignoratício e de proprietário do bem empenhado Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 27, entendia que o penhor não se extinguiria se o proprietário
tivesse um interesse jurídico atendível na sua manutenção (por exemplo quando o penhor tenha uma
preferência sobre outros direitos posteriores, como um usufruto ou outro penhor), além de a confusão não
poder prejudicar direitos de terceiro (por exemplo, quando, num penhor de créditos, A empenhou a favor
de B o seu crédito contra C para garantir um crédito de B contra D. A herda de B. O crédito contra D
subsiste, mas o penhor, em princípio, extingue-se, salvo se A tem um interesse jurídico, não produzindo a
confusão, porém, efeitos relativamente aos que tenham algum direito sobre o penhor), solução esta que
veio a ser acolhida no n.º 4 do art.º 871.º, de acordo com o qual a reunião na mesma pessoa das
qualidades de credor e proprietário da coisa empenhada não impede a manutenção do penhor, desde que o
credor tenha nisso algum interesse e esse interesse justifique tal manutenção (defendia esta solução ainda
sob o império do Código de 1867, Guilherme Moreira, ob. cit., pág. 339), solução próxima da do direito
alemão (nos termos do §1256. n.º 1, o penhor extingue-se quando o seu titular for o mesmo da
propriedade da coisa empenhada, salvo se o crédito, em garantia do qual o penhor foi constituído, estiver
onerado com direitos de terceiros. Também não se extinguirá o penhor, de acordo com o n.º 2 do mesmo
preceito, quando o proprietário tenha um interesse atendível na manutenção do direito de penhor: de
acordo com Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit.,
pág. 1556, sustentam que tal interesse atendível pode residir no facto de a coisa se encontrar onerada com
outros direitos de penhor de graduação posterior ou quando o proprietário-credor pignoratício tenha
intenção de transmitir o crédito acompanhado da garantia pignoratícia, mas, em qualquer dos casos,
apenas quando subsista o crédito garantido; para além disso, quando o penhor deva subsistir, produzirá
todos os seus efeitos e não apenas relativamente a terceiros), mas diversa da prevista no direito brasileiro
(com efeito, o art.º 1436.º, IV, dispõe, tout court, que o penhor se extingue com a reunião na mesma
pessoa das qualidades de credor pignoratício e proprietário do bem empenhado, ressalvando apenas que
operando-se a confusão unicamente quanto a parte da dívida, o penhor subsistirá por inteiro quanto ao
restante). Rubino, Il pegno cit., pág. 286, ressalva do efeito extintivo a hipótese de um terceiro possuir um
direito sobre o crédito garantido. Acerca da distinção entre estas formas de confusão, vide igualmente
Paulo Cunha, ob. cit., pág. 220.
1725
No entanto, esta protecção conferida ao terceiro limita-se à hipótese de o seu direito ter sido
constituído antes de os créditos sujeitos a compensação se tornarem compensáveis (cfr. art.º 853.º, n.º 1).
Como refere Antunes Varela, Das obrigações cit., Vol. II, págs. 210, se o titular de um dos créditos alvo
de compensação que tivesse anteriormente empenhado tal crédito “pudesse considerar-se desobrigado em
tais circunstâncias por compensação (…) a solução envolveria um injustificado sacrifício” do credor
pignoratício que anteriormente havia adquirido um direito sobre um dos créditos compensáveis. Para
efeitos da preservação dos direitos de terceiros releva, não a declaração de compensação, mas o momento
em que os crédito se tornam objectivamente compensáveis e, caso os direitos de terceiro se tenham
constituído em data anterior a esta, a compensação será, não apenas ineficaz relativamente ao terceiro,
mas pura e simplesmente inadmissível (nestes termos, Antunes Varela, Das obrigações cit., Vol. II, pág.
211). Também por força da necessidade de salvaguarda dos direitos de terceiro, Faggella, ob. cit., págs.
167 e 168, sustenta que o terceiro constituinte do penhor poderá invocar a compensação se o devedor não
443
No entanto, relativamente ao primeiro dos institutos parecem ser de considerar
algumas especificidades quando o penhor recaia sobre um crédito1726 ou subsistam
vários penhores sobre o mesmo bem1727 (em especial, nesta segunda conjectura, quando
o fizer. Naturalmente que se a compensação extinguir apenas uma parte do crédito garantido, a garantia
passa a assegurar a obrigação agora reduzida (Gabrielli, Il pegno cit., pág. 283). Por seu turno, o art.º
1250.º do CCI limita-se a dizer que a compensação não se verifica em prejuízo de terceiros que tenham
adquirido um penhor sobre algum dos créditos compensáveis.
1726
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 154 (seguido por Gabrielli, Il pegno cit., pág. 286), constatam a
existência dessas regras especiais para o penhor de créditos, entendendo que a confusão entre as
qualidades de credor pignoratício e titular do crédito empenhado que não seja o devedor do crédito
garantido – mas sim o terceiro dador da garantia ou o terceiro adquirente – não conduz à extinção do
penhor, desde que haja outros penhores sobre o mesmo bem com grau posterior; todavia, dando-se a
confusão entre o terceiro devedor do crédito empenhado e o credor pignoratício, o penhor sobre o objecto
do crédito permanece nas relações entre credor pignoratício e credor empenhante, não estando o primeiro
obrigado a realizar a prestação ao segundo e tendo os direitos decorrentes do penhor face aos credores
desse mesmo credor empenhante. Também entre nós, Colaço Canário, ob. cit., págs. 67 e 68 (em termos
análogos, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 168 e 169), distingue, a respeito da extinção por confusão do
penhor de créditos, três situações distintas, embora assegure que em todas elas se produz o mesmo efeito
de extinção da garantia: a reunião na mesma pessoa das qualidades de empenhador e credor pignoratício
(em razão da falta de razão de ser da garantia) ou de devedor da obrigação principal e de credor figurativo
(pelo facto de o devedor do crédito empenhado ser a mesma pessoa que irá beneficiar da garantia) ou,
finalmente, das qualidades de devedor da obrigação principal e de empenhador (como consequência da
extinção da obrigação principal). Mais detalhadamente, Pace, ob. cit., págs. 135 a 138 (deixando de lado a
hipótese mais simples, de confusão entre as qualidades de credor pignoratício e de devedor empenhante,
caso em que a garantia se extinguirá em consequência da extinção do crédito principal), distingue
consoante a confusão opere entre os dois devedores, empenhante e devedor do crédito empenhado (caso
em que a extinção da relação de garantia é acompanhada da obrigação do devedor constituir um penhor
de coisa, dado que “se la confusione estingue il credito dato in pegno, essa non tocca però l’obbligazione
del debitore (pignorante) di costituire un pegno di cosa su res debita, obbligo che è insito nella
costituzione stessa del rapporto di pegno di crediti, e che si manifesta tutte le volte che il credito si
estingue”) ou entre o terceiro devedor e o credor pignoratício (nesta hipótese, o credor pignoratício não
pode exercer um direito alheio contra si mesmo – pelo que cai o poder de substituição – mas mantém-se
imutada a relação para com o empenhante, de modo que se a coisa objecto da prestação já existe no
património do terceiro devedor, o empenhante adquire um penhor sobre tal coisa; se, ao invés, a coisa
ainda não existe naquele património, o empenhante “ha il dovere di preparare l’oggetto della prestazione
sul quale, come creditore (o successore nel diritto), avrà il diritto di pegno”).
1727
Francesco Pellegrini, ob. cit., págs. 187 a 193 - distinguindo igualmente entre a confusão das
qualidades de devedor e de credor pignoratício (por exemplo no seguimento de uma sucessão hereditária),
que apelida de confusão pessoal, e a confusão das qualidades de credor pignoratício e de proprietário do
bem empenhado (a que dá o nome de confusão real) – considera que nas hipóteses de confusão pessoal a
questão específica que se coloca é a de saber se, quando o credor - ou o terceiro - encarregue da custódia
do bem empenhado se torne herdeiro do devedor, esse credor terá o dever de restituir o bem empenhado
aos demais credores e, sobretudo, se o direito de preferência destes permanece suspenso até à efectiva
devolução do bem (sendo pacífico que o crédito do credor relativamente ao qual se produziu a confusão
se extingue e, por isso, apenas poderá reaver o objecto do penhor se pagar aos demais credores): ora,
segundo o Autor, aquele dever existe e, face aos credores do de cujus, “il privilegio debba rimanere
fermo fino a quando duri il diritto alla separazione dei patrimoni o quello dell’erede alla rinunzia od
accettazione a beneficio di inventario. La inazione dell’erede o dei creditori pignoratizi oltre tal termine
estinguerebbe senz’altro il privilegio per la identificazione definitiva tra possessore del pegno e debitore”
(enquanto face aos credores do herdeiro “i concreditori pignoratizi, non in tale qualità, ma come semplici
creditori del defunto, sarebbero efficacemente difesi dalla separazione, la quale lascerebbe intatta la
destinazione della cosa in sè stessa, come cosa ereditaria più che come pegno, al soddisfamento dei
debiti creditori”). Já no que à confusão real diz respeito, ou seja, quando um dos credores pignoratícios
adquire a propriedade do bem recebido em garantia, a questão prende-se com a possível subsistência do
penhor face os demais credores em caso de anulação das causas de extinção da garantia (ou da própria
obrigação garantida), propendendo o Autor para uma resposta afirmativa, na medida em que “il diritto
reale di pegno rimanga fermo a favore dell’acquirente ove la ragione fondamentale, esclusiva, della
estinzione venga meno”, sobretudo porque no caso da confusão real, uma vez que esta figura é “nascente
444
estas outras garantias sejam de constituição posterior à daquela relativamente à qual se
verifica a confusão).1728
Noutra ordem de considerações, discute-se igualmente se a prescrição da
dívida1729 garantida pelo penhor poderá ser evitada pelo facto de o bem empenhado se
encontrar em poder do credor.
Não se contando o prazo de não exercício do direito, para efeitos prescricionais,
senão a partir do vencimento do crédito (pois até então não podia o credor exercer o
direito de executar o bem recebido em garantia, conteúdo essencial do direito de
penhor), verificando-se este a dívida prescreverá, nos termos gerais, uma vez decorrido
o prazo legal sem que o credor pignoratício execute a coisa empenhada (extinguindo-se,
acessoriamente, o direito de penhor).1730
dalla coincidenza degli interessi. Ove codesta coincidenza venga meno (…) fermi i dititti del terzo
possessore che abbia pagato o rilasciato”.
1728
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 16, operam, por isso, uma distinção consoante existam sobre o bem
empenhado outros penhores de grau anterior (caso em que o penhor se extinguiria por confusão, uma vez
que o credor adquirente teria direito ao resíduo do produto da venda, mais como proprietário do que como
credor) ou apenas existam penhores de grau posterior (caso em que o penhor não se extinguirá por
confusão, em virtude do interesse do credor adquirente na sua manutenção para o fazer valer contra os
credores posteriores) e acrescentando serem estas soluções transponíveis para a hipótese de o terceiro
adquirente do bem se tornar credor (esta posição é subscrita por Realmonte, Il pegno cit., pág. 672 e
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 286) – em termos similares, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 138, entende
que a extinção do penhor por confusão “não se produzirá nas situações em que incidam sobre a coisa
penhores de diferente grau (posterior), dado que nessa situação permanece o interesse do proprietário
na sua conservação, de molde a poder opor o penhor aos credores pignoratícios posteriores”. Em face
do direito espanhol e para os casos de confusão entre as qualidades de credor pignoratício e proprietário
do bem empenhado (confusão real), Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 369, esclarece que “si
existen sobre la cosa otras prendas de grado anterior, la prenda se extingue sólo en relación a la prenda
en la que se ha producido la confusión. Y no se extingue si existen prendas de grado posterior, porque
prevalece el interés del proprietario en su conservación para poder oponerlo a los acreedores
pignoraticios posteriores”.
1729
Questão diversa é a de saber se a o próprio direito de penhor poderá, ele mesmo, extinguir-se por
prescrição: tendo em conta o disposto no art.º 298.º, a resposta afigura-se afirmativa (no mesmo sentido,
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 273, considerando que a prescrição poderá operar
relativamente a qualquer direito real não compreendido no n.º 3 desse preceito, no qual não se encontra
enumerado o penhor). O prazo de prescrição será o ordinário (20 anos – art.º 309.º), mas apenas começará
a correr a partir da data do vencimento da obrigação garantida (pelas mesmas razões expostas a propósito
da prescrição do crédito garantido). Em face do direito italiano admitem a prescrição autóma do direito de
penhor Faggella, ob. cit., pág. 148, Ciccarello, ob. cit., pág. 698 e Rubino, Il pegno cit., pág. 287, notando
este último, porém, que esta apenas se produzirá quando a garantia (prescritível) assegure um crédito
imprescritível ou quando o prazo de prescrição do crédito seja interrompido ou suspenso (fora estes casos,
a prescrição do penhor coincidirá com a do crédito principal e será até uma consequência desta), enquanto
Mirabelli, ob. cit., págs. 452 a 455, prefere falar da prescrição das diversas acções decorrentes do contrato
de penhor (a saber, a acção de restituição do penhor, no prazo de 30 anos a contar da data da extinção do
crédito garantido, excepto se o devedor proprietário usar da acção de reivindicação, a qual é
imprescritível: porém, se o bem houver passado para o poder de um terceiro, a acção de reivindicação
cede perante a posse de boa fé do terceiro e, em caso de má fé deste, a reivindicação deve ser exercida no
prazo de 30 anos, data a partir da qual o terceiro adquire o bem por usucapião; pelo contrário, a acção do
credor destinada a obter o pagamento do crédito assegurado não prescreverá enquanto o bem empenhado
permanecer em poder do credor). No penhor de créditos, o penhor prescreve se o titular não leva a cabo
quaisquer actos de exercício do direito ou pratique actos que interrompam a prescrição (Protettí, ob. cit.,
pág. 335). Contra, negando que a existência de uma prescrição autónoma do penhor, em razão da
ausência de uma acção pignoratícia específica, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 15 e 16.
1730
Neste sentido, Rubino, Il pegno cit., págs. 286 e 287, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 15, Gabrielli, Il
pegno cit., pág. 287, Faggella, ob. cit., págs. 170 e 171 (aceitando mesmo que o terceiro dador da garantia
se possa valer da prescrição da dívida quando o devedor não o faça), Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit.,
pág. 358 e Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 30 a 32 (concluindo não obstar à extinção do
penhor por prescrição o facto de o devedor deixar o bem em poder do credor, mesmo após o vencimento
445
Por outro lado, importa esclarecer que o simples vencimento da obrigação
garantida não produz necessariamente a sua extinção (e, por consequência, a da garantia
que assegura o seu cumprimento), seja porque o credor não executa imediatamente a
garantia (e não obtém assim pagamento), seja porque concede uma prorrogação do
prazo para o devedor liquidar a dívida.1731
da dívida, por tal não significar reconhecimento desta e, por isso, não provocar a interrupção da
prescrição). Contra, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 113, Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 65, Simler
e Delebecque, Droit civil cit., pág. 465, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 544, Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 279 e Guillouard, ob. cit., págs. 163 e 164 - afirmando este
último que “le débiteur ne peut pas se libérer de la dette par prescrition tant que l’object du gage
demeure aux mains du créancier. En laissant cet objet dans la possession du créancier pour garantir le
paiment de la dette, le débiteur reconnaît, d’une manière permanente, l’existence de la dette”,
concluindo, em conformidade, que a prescrição corre a favor do credor pignoratício a partir do momento
do pagamento da dívida – e Henri Mazeaud, ob. cit., págs. 159 e 160, para quem a prescrição de um
crédito garantido por penhor não corre enquanto o credor mantiver o bem em seu poder, uma vez que tal
manutenção significa o reconhecimento permanente, por parte do devedor, da existência da dívida. Ao
invés, quando o devedor não deduzir a excepção da prescrição do crédito o penhor perdura (excepto se a
garantia houvesse sido prestada por terceiro, caso em que este conserva o direito de invocar a excepção e
assim extinguir o penhor, mas permanecendo o devedor obrigado). Por outro lado, a constituição de um
penhor, por parte do devedor, após a contracção da dívida assegurada, interromperá a prescrição, por
representar um reconhecimento de dívida (semelhante interrupção não se dará, ao invés, pelo facto de o
credor perceber os frutos do bem empenhado). Diversamente, poderá também prescrever o direito do
credor à entrega do bem empenhado no seguimento da constituição da garantia, quando o credor deixar
passar o prazo de prescrição sem requerer tal entrega.
1731
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 370 e 371, salientado, porém, que a concessão dessa
prorrogação é considerada pela generalidade da doutrina como uma novação modificativa da obrigação
inicial, pelo que as garantias não se extinguirão se a novação não agravar a posição de terceiros (nesta
conformidade, o Autor sustenta que o credor só tenderá a aceitar tais prolongamentos quando existam
garantias prestadas pelo próprio devedor, mas não por terceiros - a não ser que, nesta segunda hipótese, se
estipule expressamente no contrato inicial de penhor o alargamento da garantia a eventuais créditos
prorrogados, deste modo assegurando que a garantia mantém a sua data inicial de constituição). Também
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 476, salienta que a renegociação da dívida – e a eventual
concessão de um prazo suplementar para pagamento – apenas implica uma prorrogação idêntica da
garantia se o constituinte for o próprio devedor (já não se for um terceiro, caso em que se exigirá o
consentimento deste ou, se tal não acontecer, dever-se-á constituir uma nova garantia).
1732
O CCF, mesmo após a reforma de 2006, não contem qualquer preceito enumerando as causas de
extinção do penhor, mas Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 125, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés
cit., pág. 544, Simler e Delebecque, Droit civil cit., págs. 465 e 466, Jobard-Bachelier, ob. cit., págs. 65 e
66, Weil, ob. cit., pág. 103, apontam a extinção total do crédito assegurado, a devolução voluntária do
bem ao empenhador, a perda da coisa empenhada (salvaguardada a possibilidade de a garantia sobreviver
e passar a ter como objecto as indemnizações devidas em razão dessa perda) e o abuso do bem
empenhado por parte do credor pignoratício (cfr. art.º 2082.º na versão originária do CCF, actualmente
art.º 2344.º, n.º 1), acrescentando Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 266 e Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit.,
págs. 78 e 79, a renúncia e a substituição ordenada no âmbito de um procedimento de insolvência e
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 282, a destruição do bem empenhado. Também no
direito espanhol não existe qualquer norma identificando os fundamentos da cessação do penhor,
considerando Diez-Picazo, ob. cit., pág. 491, que tal sucederá quando se produzir a extinção da obrigação
principal, quando o bem empenhado seja perdido ou destruído (excepto se este estava segurado, caso em
que o penhor passa a recair sobre a indemnização paga pela seguradora) ou quando, depois de entregue ao
credor, retorne ao poder do empenhador (sem prejuízo de o credor pignoratício poder provar que a
entrega da coisa ao empenhador não ocorreu para remitir o direito de garantia, mas antes por qualquer
outra causa, como seja o uso momentâneo do bem ou a realização de reparações), acrescentando Puig
446
d))1734, acrescentando a restituição da coisa empenhada ou do documento que confira a
exclusiva disponibilidade desta.
Desde logo, o credor pode renunciar1735 à sua garantia, desde que o faça
expressamente1736 e obedecendo à forma prescrita para a constituição do penhor,1737 sem
Brutau, ob. cit., pág. 46, a verificação do termo ou da condição resolutiva apostos à obrigação principal
ou ao direito de penhor, bem como a aquisição por terceiro de boa fé da coisa empenhada como livre de
encargos. Já Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 256, limita-se a fazer referência à possibilidade de
renúncia, inclusivamente tácita, do credor à garantia, implicando a devolução dos bens onerados ao
empenhante. Finalmente, Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 482, alude à extinção do crédito
garantido, à perda da coisa, à renúncia do credor, à perda da posse do bem por parte do credor e a todas as
causas de extinção dos direitos reais que não sejam incompatíveis com a natureza do penhor.
1733
Esta alínea a) do art.º 730.º alude à extinção da obrigação garantida.
1734
Com excepção da prevista na alínea b) do art.º 730.º - extinção por prescrição, a favor do terceiro
adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o
vencimento da obrigação – em razão da sua manifesta inaplicabilidade ao penhor, não apenas por a norma
em questão se referir apenas a bens imóveis, mas também por ser difícil a verificação da prescrição a
favor de terceiro - uma vez que o bem se encontra, normalmente, em poder do credor - e por não haver
registo da aquisição dos bens móveis (neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág.
697).
1735
Normalmente ao falar de renúncia, referimo-nos ao acto unilateral através do qual o credor prescinde
da sua garantia, sem que a obrigação garantida se ache cumprida – é a chamada renúncia abdicativa.
Contudo, ao lado desta existe a convenção entre o credor e um terceiro, nos termos da qual o primeiro
abdica da sua garantia em benefício do segundo, a denominada renúncia translativa (por exemplo, quando
o credor pignoratício acorda com o adquirente de um bem onerado com a garantia a renúncia a exercer os
direitos resultantes desta. Em regra, este acordo apenas extingue o direito de sequela do penhor –
mantendo o credor o direito de preferência sobre o preço – até porque o mesmo será inválido quando
inclua também a transferência da prevalência, pois tal representaria uma sub-rogação do adquirente na
garantia desacompanhada do crédito, ou seja, uma transferência e não uma extinção da garantia – acerca
desta distinção, vide Weil, ob. cit., págs. 502 e 515.
1736
Admitem a renúncia tácita, pelo menos quando existam factos inequívocos nesse sentido, Rubino, Il
pegno cit., pág. 285, Ciccarello, ob. cit., pág. 697, Realmonte, Il pegno cit., pág. 672, Protettí, ob. cit.,
pág. 330, Weil, ob. cit., pág. 516 (embora ressalvando que, como a renúncia não se presume, os factos
que equivalham a renúncia devem apresentar um carácter não equívoco), Guillouard, ob. cit., págs. 11 e
129 e o art.º 1436.º do CCB (nos termos do qual a renúncia se presume quando o credor pignoratício
consentir na venda particular sem reserva do preço, quando restituir o bem ao devedor ou anuir na sua
substituição por outro - Sílvio Salvo Venosa, ob. cit., págs. 580 e 581, alerta para a natureza relativa desta
presunção, podendo ser afastada, por exemplo, demonstrando que a prestação de uma nova garantia visou
apenas reforçar a segurança do credor). Já no Acórdão da Relação do Porto de 13/3/1997, in www.dgsi.pt,
julgou-se não constituir renúncia ao penhor, nem sequer tácita, o facto de o credor fazer valer o seu
crédito, através de uma acção especial de venda do penhor, do desconto bancário das livranças subscritas
pelo devedor e, simultaneamente, exercer o seu direito quanto aos avalistas das livranças em processo de
execução comum. No aresto da Corte de Cassação Comercial de 18 de Fevereiro de 1997, citado por
Stéphane Piedlièvre, Sûretés réeles – publicité foncière cit., pág. 252, foi censurada uma prévia decisão
do Tribunal de Versailles, na qual os juízes haviam deduzido a renúncia do credor, com garantia sobre um
estabelecimento comercial, da circunstância de este ter obtido um pagamento parcial do seu crédito: esta
decisão é fortemente criticada pelo Autor por, no limite, “empêcher le créancier d’accepter un paiment
partiel, car il perdrait toute possibilité de farire ráliser sa sûreté”, considerando inaceitável considerar
que “le créancier acceptant un paiment partiel renonce à se prévaloir d’un droit de suite” (tanto mais
que, no caso concreto, o bem onerado havia entretanto sido alienado a terceiro e o credor pignoratício já
havia intimado este para pagar o montante do crédito ainda não satisfeito), até porque a renúncia a um
direito apenas se pode presumir quando subsistam actos que permitam concluir, sem equívoco, ser essa a
vontade do renunciante.
1737
Na medida em que, como vimos, o negócio de constituição do penhor não se encontra, entre nós,
submetido a qualquer requisito de forma, o mesmo valerá para a renúncia à garantia. Mesmo no direito
italiano, no qual a forma escrita é imposta como condição de atribuição da preferência pignoratícia, Gorla
e Zanelli, ob. cit., pág. 15, aceitam a simples renúncia verbal. Nos termos do n.º 1 do §1255 do BGB, para
a anulação do penhor por negócio jurídico basta a declaração do credor pignoratício, perante o
empenhador ou o proprietário, de que renuncia ao direito de penhor (acrescentando, porém, o n.º 2 que se
447
necessidade de aceitação do devedor ou do prestador da garantia (art.ºs 730.º, alínea d) e
731.º),1738 embora por vezes seja necessário o preenchimento de determinados
requisitos, designadamente para o cancelamento dos penhores sujeitos a registo.1739
No que especificamente respeita ao penhor de créditos, o consentimento dado
pelo pignoratício ao empenhador para que este proceda à cobrança do crédito outorgado
em garantia, pode ser entendido como uma renúncia abdicativa, uma vez que origina a
extinção do penhor (art.º 685.º, n.º 4).1740
Como negócio jurídico unilateral que é, a renúncia não carece da aceitação de
outrem, muito embora deva ser dirigida ao empenhador (por ser este a contraparte no
contrato de penhor).1741
Importa, contudo, sublinhar que a renúncia às garantias não faz presumir a
remissão da dívida (art.º 867.º),1742 produzindo como efeito o principal a degradação do
crédito outrora garantido à condição de comum: todavia, há até quem admita que
simples presença do bem onerado em poder do devedor, após a constituição do penhor,
faz presumir a remissão da obrigação assegurada por aquela garantia.1743
a coisa dada em penhor estiver onerada com um direito de terceiro, será necessário o consentimento desse
terceiro, consentimento este que deve ser notificado àquele em favor do qual ele ocorre e é irrevogável) –
de acordo com este regime Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter
Eickmann, ob. cit., pág. 1553, entendem não ser necessária qualquer alteração da situação possessória do
bem, nem tão pouco o consentimento do proprietário.
1738
O art.º 677.º, ao remeter, em matéria de extinção do penhor, para as normas previstas para a hipoteca,
determina, a nosso ver, a aplicação, não apenas do art.º 730.º (que enumera as causas de extinção), mas
também do art.º 731.º (que alude aos requisitos a que deve obedecer a renúncia à hipoteca) - e mesmo do
art.º 732.º, relativo à possibilidade de renascimento da hipoteca, depois de extinta), uma vez que estes
dois últimos preceitos se encontram directamente relacionados com a extinção da garantia.
1739
Por exemplo, para cancelar a inscrição de um penhor sobre acções escriturais e independentemente da
causa que origina a extinção da garantia, será necessária a comprovação do consentimento do titular dos
valores onerados ou, pelo menos, a acreditação do facto determinante da extinção, só depois se
procedendo à restituição dos respectivos certificados de legitimação (vide infra n.º 1.2.8.3 do Capítulo II)
e, para o direito espanhol, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 475).
1740
Neste sentido, Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 42 (se, pelo contrário, o empenhador receber a
prestação resultante do crédito empenhado sem autorização do credor pignoratício e sem prejuízo da
responsabilidade contratual daquele, opera-se a sub-rogação real nos termos do n.º 1 do art.º 685.º, com a
obrigação do empenhador empossar o credor pignoratício do bem objecto da prestação) e Hugo Ramos
Alves, ob. cit., pág. 167.
1741
Salientam este aspecto Colaço Canário, ob. cit., pág. 67 (embora considerando o penhor extinto a
partir do momento da manifestação de vontade do credor), Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 61
(qualificando o acto de renúncia como uma declaração recipienda), Protettí, ob. cit., pág. 330, Realmonte,
Il pegno cit., pág. 672, enquanto Rubino, Il pegno cit., pág. 285, exceptua o caso de a renúncia estar
inserida num negócio bilateral (por último Ciccarello, ob. cit., pág. 698, dá conta de uma opinião que
aponta no sentido da necessidade de a renúncia ser aceite pelo empenhador, mas essa opinião enquadra a
renúncia ao penhor na categoria da remissão a favor de outrem).
1742
Embora, como é lógico, o credor também possa renunciar ao próprio crédito, através de remissão (cfr.
art.º 863.º e segs.), originando assim a extinção da obrigação principal e da garantia, não se encontrando
sequer esta remissão de qualquer formalidade especial, para além do consentimento das partes (n.º 1 do
art.º 861.º). Resulta do confronto entre a renúncia à garantia e a remissão do crédito, ser a primeira é um
negócio unilateral que não pressupõe o acordo do beneficiário, enquanto a remissão é um contrato, in
casu entre o credor e o devedor. Desvalorizam esta distinção Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit.,
Vol. II, pág. 150 (qualificando a remissão, de um ponto de vista económico, como uma renúncia a um
direito de crédito), o mesmo fazendo, a título individual, o segundo destes Autores, in Direito das
Obrigações, Vol. II, pág. 247 (definindo a remissão como uma renúncia com um nome especial, para os
direitos de crédito, nomeadamente a fim de a distinguir da perda voluntária de um direito, caso em que a
declaração do renunciante não tem como destinatário pessoa determinada).
1743
É a posição de Medina de Lemus, ob. cit., pág. 146, baseando-se no art.º 1181.º do CCE, apesar de
ressalvar a natureza relativa da presunção. Contra, expressamente, Mejias Gomez, La prenda cit. pág. 256
e, no direito brasileiro, Washington Monteiro de Barros, ob. cit., pág. 393 (entendendo que a simples
448
Também neste caso, à semelhança do que sucede quando ocorra a transmissão
da garantia acompanhada do crédito, crédito e garantia dissociam-se. Todavia, ao
contrário do que sucede na transmissão, nesta hipótese a garantia não passar a garantir
nenhum outro crédito.
Apesar de a lei não o dizer expressamente, será de admitir a renúncia parcial à
garantia, ao menos no sentido de o credor abdicar de exercer o direito pignoratício
relativamente a determinados bens abrangidos pelo penhor ou a determinados
devedores.1744
No entanto, nos ordenamentos em que vigore a protecção do terceiro adquirente
de boa fé, parece que a renúncia não poderá ser oposta ao terceiro cessionário do penhor
(garantia), sempre que este tenha recebido de boa fé a posse da coisa.1745
Em segundo lugar, o penhor também se dissolve, por ausência de objecto, em
caso de perecimento da coisa1746 sobre a qual a garantia incidia (art.º 730.º, alínea c),
por remissão do art.º 677.º).1747
Todavia e por força do carácter indivisível do penhor (cfr. art.º 696.º, por
remissão do art.º 678.º), apenas o perecimento total determina a extinção do penhor ou,
dito de outro modo, a subsistência de uma parcela do bem empenhado, por mais ínfima
que seja, implica a manutenção da garantia, com o objecto reduzido à parte
remanescente:1748 quando tal suceda, a protecção do credor pode ser assegurada
exigindo a substituição ou reforço da garantia (cfr. art.º 670.º, alínea c)).
Mais ainda, mesmo o perecimento total do bem empenhado nem sempre
acarretará a extinção da garantia, designadamente quando, após a verificação desse
evento, haja lugar ao pagamento de uma indemnização, caso em que ao credor
pignoratício é permitido exercer o seu direito de preferência sobre esse montante (art.º
692.º, n.º 1, aplicável ao penhor por remissão dos art.º 678.º).1749
entrega do bem onerado ao devedor não pode fazer presumir a renúncia ao próprio crédito garantido) e
Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 75 (sustentando que “a entrega do objecto empenhado prova a
renuncia do credor à garantia real, mas não a extinção da divida”).
1744
Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 2/2/1993, in CJ, 1993, I, pág. 35 e segs.
(embora o aresto seja relativo à hipoteca, as considerações são extensíveis, por identidade de razão, ao
penhor). Já Guillouard, ob. cit., pág. 219, admite a renúncia parcial num outro prisma, como abstenção do
credor exercer o seu direito de garantia relativamente a determinados devedores.
1745
Vide Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 368 e 369, apontando como um exemplo ainda mais
radical da protecção do terceiro adquirente de boa fé o penhor de valores mobiliários escriturais, o qual
não se deverá considerar extinto até ao momento em que se averbe o cancelamento da garantia (para o
que será necessário a acreditação do consentimento do titular do penhor ou do facto determinante da
extinção desse direito, bem como a restituição dos certificados anteriormente expedidos).
1746
Em Itália Montel, Pegno cit., pág. 796, entende que o perecimento do bem empenhado não constitui
uma causa autónoma de extinção do penhor, sendo antes enquadrável na categoria mais ampla da perda
da posse por parte do credor pignoratício. Contra, Realmonte, Il pegno cit., pág. 671, Rubino, Il pegno
cit., pág. 288.
1747
Relativamente ao penhor de créditos, o perecimento do bem empenhado consiste na extinção do
crédito dado em garantia, com as ressalvas acima expostas a respeito da protecção de terceiro em caso de
extinção de créditos por confusão e compensação (neste sentido, Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 153 e 154,
seguido por Realmonte, Il pegno cit., pág. 671 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 284, concluindo que as
mesmas regras valem para o penhor de usufruto).
1748
Neste sentido, Faggella, ob. cit., pág. 146 e Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 392 e 393.
1749
O mesmo regime se aplica às indemnizações devidas por força de expropriação ou requisição do bem
empenhado e aos casos análogos (n.º 3 do art.º 692.º, solução igualmente defendida, quanto à
expropriação e para o direito brasileiro, por Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 393). Tendo
em conta a abrangência deste n.º 3, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 715, entende ser
o efeito sub-rogatório aplicável a qualquer crédito de indemnização decorrente da perda ou deterioração
do bem garantido. Este preceito também se refere à hipótese de, em vez de perecimento, se ter produzido
uma simples deterioração ou perda de valor do bem empenhado: simplesmente, nestes últimos casos, não
449
Este art.º 692.º é apontado, ao menos na opinião de alguns, como um dos
exemplos inequívocos da consagração legal da figura da sub-rogação real,1750 passando
o valor da compensação a ocupar o lugar do bem originariamente dado em penhor, por
isso se admitindo que o credor pignoratício possa agir directamente contra o devedor da
indemnização.1751
Não é, todavia, líquido se o direito anterior subsiste – apesar da transformação
do seu objecto – ou, pelo contrário, se extingue, renascendo posteriormente um direito
novo.
Da aparente limpidez do disposto no art.º 730.º, alínea c) - que salvaguarda do
efeito extintivo a substituição do bem empenhado pela indemnização ou por outra
quantia em caso de perecimento por facto não imputável ao credor – parece dever
concluir-se que aquela ressalva operará mesmo quando medeie algum tempo entre o
desaparecimento do objecto da garantia e o pagamento da indemnização ou a
substituição do seu objecto, não se produzindo, pelo contrário, uma extinção e posterior
renascimento da garantia (cfr. art.º 732.º), podendo até acrescentar-se que a adopção da
posição contrária goraria a protecção do credor pignoratício, em caso de substituição do
objecto da garantia (inspiradora dos art.ºs 692.º e 701.º), pois a sua preferência cederia
perante outros direitos de terceiro porventura constituídos entre o nascimento originário
da garantia e o seu renascimento.
Todavia, inclinamo-nos para o entendimento oposto,1752 em consonância com o
defendido a respeito da aplicação do art.º 701.º (que, aliás, é expressamente ressalvado,
conjuntamente com o art.º 692.º, pela alínea c) do art.º 730.º), sustentando, assim, que a
garantia se extinguirá com o perecimento e renascerá com o eventual surgimento da
pretensão indemnizatória.
ocorrerá a extinção da garantia. Como já sustentámos noutro local (vide o nosso Dos privilégios cit., pág.
50, nota 74), se o montante da indemnização for usado para reparar a perda ou deterioração da coisa o
efeito sub-rogatório não operará, uma vez que o objecto da garantia se mantém intacto daí não resultando
nenhum prejuízo para o credor (a mesma solução consta do art.º 2742.º do CCI e é defendida por Vaz
Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 47 e 48, em especial nota 762 - acrescentando dever ser atribuído
ao juiz o poder de verificar se as quantias foram efectivamente aplicadas na reparação do bem).
1750
Vide, por exemplo, Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 223 (alegando “estar em causa
essencialmente uma ideia de sub-rogação real”), Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág.
204 (“Trata-se aqui de um caso sub-rogação real em que o objecto da hipoteca passar a ser (portanto:
subsequentemente) os créditos indemnizatórios”) e Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., págs.
197 e 198 (“Esta transferência corresponde a uma sui generis sub-rogação real, na medida em que a
preferência que incidia sobre coisa determinada transforma-se numa preferência sobre prestação de
coisa indeterminada (a indemnização) constituída em lugar daquela”). Porém, não deixam de se suscitar
algumas dúvidas, na medida em que não é sem reserva a afirmação que o credor pignoratício adquira um
direito de preferência sobre o crédito de indemnização do empenhador, uma vez que o penhor tinha por
objecto uma dada coisa e não se poder dizer que tenha querido abranger a indemnização - Vaz Serra,
Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 39 (o Autor, apesar destas objecções, concorda com o teor do art.º 692.º).
Tendo em conta estas dúvidas, discute-se qual a natureza do direito do credor de ser pago, com
preferência, pelo valor da indemnização, nomeadamente se será um direito novo ou um penhor sobre o
crédito à indemnização (acerca destas teorias, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 42). Para mais
desenvolvimentos sobre as normas, como este art.º 692.º, que, ao menos aparentemente, reconhecem a
aplicação do instituto sub-rogatório no domínio do penhor, vide infra n.º 3.2.5 do Capítulo II.
1751
Vide, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 715 e os Acórdãos da
Relação do Porto de 31/1/1973 e de 21/12/1973, publicados, respectivamente, no BMJ n.º 224, pág. 229 e
segs. e no BMJ n.º 230, pág. 167 e segs..
1752
Aponta neste segundo sentido Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 250, “o direito que incide sobre a
nova coisa não é o direito antigo, mas um direito novo, pelo que, ainda nesse caso, a perda da coisa
determina a extinção daquele direito (…) ainda que a lei nunca a mencionasse, sempre à perda da coisa
teria de se atribuir o efeito extintivo do direitos, pois por virtude da sua ocorrência é posta em causa a
afectação jurídica de bens própria dos direitos reais”.
450
Um argumento adicional que poderemos invocar em abono da tese por nós
defendida resulta do art.º 732.º, o qual, ao prever o renascimento da garantia em caso de
anulação da causa extintiva da hipoteca ou de renúncia do credor à garantia, ressalva
que tal renascimento apenas se produz, se já tivesse existido cancelamento da inscrição
inicial, a partir da nova inscrição.
Desta norma poderá retirar-se o princípio de acordo com o qual quando a
extinção da garantia tenha sido publicitada nos mesmos termos em que o foi a sua
constituição, um eventual renascimento encontra-se condicionado à repetição daquelas
formalidades, apenas renascendo a garantia desde esta última data: ora, isto significa, no
caso da extinção do penhor por perecimento da garantia, que o efeito extintivo se
produz com o desaparecimento do bem do poder do credor (ou do terceiro designado
para a sua guarda), pelo que a garantia apenas nascerá a partir do momento em que tal
empossamento se verifique ou, tratando-se de um penhor de créditos, sejam cumpridas
as formalidades impostas para o seu surgimento (como sucede com a necessidade de
notificar o terceiro devedor da indemnização).
De facto, este efeito sub-rogatório não se produz de modo automático, antes
pressupondo que o credor pignoratício notifique o devedor da indemnização, dando-lhe
conta da existência da garantia, pois só a partir desse momento o pagamento efectuado
por este último ao seu credor não tem efeito liberatório (art.º 692.º, n.º 2).1753
Uma hipótese em que será, porventura, frequente a invocação deste preceito
acontece quando o bem empenhado esteja segurado.1754
Um efeito análogo ao contemplado no art.º 692.º se produzirá quando, não
obstante o desaparecimento do bem dado em penhor por causa não imputável ao credor,
este exija ao proprietário daquele bem a substituição ou o reforço da garantia (art.º
701.º, n.ºs 1 e 2, aplicáveis ao penhor por força do art.º 670.º, alínea c))1755: caso não o
1753
Ou melhor, se o devedor da indemnização pagar ao seu credor e, ainda assim, o credor pignoratício
obtiver a satisfação do seu crédito, aquele pagamento tem efeito liberatório. Não o terá, pelo contrário,
quando o credor pignoratício não tenha sido satisfeito. Nesta segunda hipótese, o devedor da
indemnização poderá ser chamado a pagar uma segunda vez, podendo ressarcir-se, em seguida, junto do
proprietário do bem empenhado do prejuízo daí resultante – assim, Pires de Lima e Antunes Varela, ob.
cit., Vol. I, pág. 716. Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 42, justifica esta necessidade de
notificação com a circunstância de o direito sobre a indemnização ser um direito de crédito e, por isso, se
dever sujeitar às regras de constituição dos penhores com esse objecto. Diferentemente, no direito italiano
(cfr. art.º 2742.º, n.º 2, do CCI) se o devedor da indemnização pagar ao seu credor no prazo de 30 dias a
contar da data da perda ou deterioração, sem que haja oposição, considera-se liberado, entendimento este
sufragado, embora com alguns desvios por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 45 e 46 (este Autor
distingue consoante o objecto do penhor seja um bem sujeito a registo, caso em que o devedor da
indemnização só pode pagar, após o vencimento do crédito garantido, ao credor pignoratício, excepto se,
depois de notificado este último do perecimento, deixar passar 30 dias sem se pronunciar; se, pelo
contrário, o bem empenhado não estiver sujeito a registo, propõe solução idêntica à do direito italiano,
com a ressalva de, tendo o devedor da indemnização tido conhecimento da garantia, pois, nessa
conjuntura, deverá notificar o credor pignoratício e apenas se este não se pronunciar no prazo de 30 dias
se liberará pagando ao empenhador).
1754
Neste caso são necessárias cautelas adicionais para salvaguardar o direito do credor pignoratício,
designadamente impedindo que o crédito de seguro possa ser suprimido sem consentimento do credor
pignoratício ou permitindo que o credor pignoratício liquide os prémios de seguro em dívida e
responsabilizando o segurador, em caso de negligência ou de conluio com o segurado empenhador, pelo
pagamento do prémio ao credor pignoratício - Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 48 a 50.
1755
Invocando o preceito idêntico no Código de Seabra, o Acórdão do STJ de 12/11/1948, in BMJ n.º 10,
pág. 289 e segs., decidiu que “ainda que o credor se perca, a garantia não desaparece nem se extingue,
visto o credor poder exigir do lesador outro penhor ou o cumprimento da obrigação, desde que não
tenha concorrido para aquele desaparecimento ou diminuição de valor”.
451
façam, poderá exigir o cumprimento imediato da obrigação ou, tratando-se de obrigação
futura, constituir nova garantia sobre outros bens do devedor.1756
Já antes escalpelizámos este preceito, pelo que agora nos resta salientar que ele
também se aplica à hipótese em que, ao invés do perecimento, a garantia simplesmente
se tenha tornado insuficiente para garantia do crédito: porém, neste caso o penhor não se
extingue, pelo que tal eventualidade não releva no presente âmbito.
Enquanto as demais razões justificativas da extinção não são exclusivas desta
particular garantia, a restituição da coisa empenhada ou do documento que confira a sua
exclusiva disponibilidade é privativa do penhor (art.º 677.º).1757
Salta à vista a razão de ser deste preceito: se a constituição e manutenção do
penhor pressupõem o desapossamento do empenhante, a restituição do bem, por parte
do credor pignoratício, ao seu proprietário deverá conduzir ao ocaso da garantia,1758 o
mesmo efeito se produzindo quando, tendo sido o bem entregue a um terceiro para
custódia, este o devolva ao empenhante sem que se encontre extinta a obrigação
garantida (uma vez que, também neste segundo caso, com a devolução do bem
desaparece a situação de indisponibilidade do bem por parte do constituinte da garantia
determinante da entrega do bem ao credor ou a terceiro).
Para além disso, a restituição do bem empenhado faz cessar a já de si rudimentar
função publicitária da entrega desse bem ao credor (ou, pelo menos, o desapossamento
do credor), permitindo que o empenhador dele disponha, sem que os terceiros se possam
aperceber da existência da garantia, razão pela qual esta não lhes deverá ser
oponível.1759
Debate-se, porém, se toda e qualquer restituição produz o fim da garantia
pignoratícia ou, pelo contrário, haverá casos em que, não obstante a devolução do bem,
o penhor poderá subsistir.
Desde logo, há que esclarecer se a restituição acompanhada da reserva expressa
da subsistência do penhor desencadeia o aludido efeito extintivo, propendendo a
doutrina nacional para uma resposta afirmativa.1760
1756
Acerca da questão de saber se a preferência conferida por esta nova garantia retroagirá à data da
constituição da garantia originária ou, pelo contrário, relevará apenas a data em que a nova surgiu, vide
supra n.º 9.1.3 do Capítulo I.
1757
Em termos idênticos, vide o §1253, n.º 1, do BGB, precisando que tal efeito se produzirá, quer a
devolução seja efectuada ao proprietário, quer seja ao empenhador (por outro lado, nos termos do n.º 2 da
mesma disposição legal, encontrando-se a coisa na posse do empenhador ou do proprietário, presume-se
que ela lhe foi entregue pelo credor pignoratício, presunção esta que também se aplica quando o penhor
se encontre na posse de um terceiro, cuja posse lhe tenha sido entregue pelo empenhador ou pelo
proprietário, após a constituição do penhor). Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 14, 15 e 22, entendem que o
penhor se extingue, em geral, pela prática de um acto contrário à sua constituição, isto é, a perda da posse
do bem (tratando-se de penhor de coisas) ou a notificação ao terceiro devedor de um acto de liberação do
vínculo (no caso do penhor de créditos).
1758
Assim, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 62 e 63.
1759
Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 206. Por ser assim, Harry Westermann, Harm Peter
Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., págs. 1553 e 1554, entendem que por
restituição, para este efeito, se deve considerar unicamente a devolução da posse voluntária e consciente,
em resultado da qual o empenhante recupere perante terceiros a aparência de titularidade efectiva sobre o
bem empenhado (negando, em conformidade, a perda da posse em caso de restituição, por equívoco, do
bem empenhado, sem que o credor pignoratício saiba que o receptor é o empenhante ou um seu mediador
possessório),.
1760
Designadamente Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 63 (por entender que, dessa forma,
deixam de se alcançar os objectivos – publicidade face a terceiros e protecção do credor - que a entrega
assegurava) e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 696. No direito alemão, o n.º 1 do
§1253 do BGB declara como nula qualquer cláusula de reserva da continuidade do penhor apesar da
entrega: porém, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob.
cit., págs. 1553 e 1554, admitem que as partes possam acordar na manutenção da garantia mesmo em caso
452
Noutro plano, é igualmente controverso se as restituições temporárias ao
empenhador, nomeadamente as motivadas pela necessidade de efectuar reparações no
bem empenhado para as quais o seu proprietário disponha de especiais qualificações,
farão extinguir o penhor.
Apesar da existência de opiniões em contrário, designadamente na doutrina
estrangeira, os Autores nacionais pronunciam-se maioritariamente no sentido de as
restituições, ainda que temporárias, conduzirem à extinção do penhor,1761 excepto se a
devolução transitória for efectuada a terceiro.1762
de restituição do bem (devendo tal cláusula ser interpretada como impondo uma obrigação de
reconstituição do penhor).
1761
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 65 (afirmando que “De pouco ou nada serviria a
necessidade de entrega ao credor, se este pudesse, embora com carácter passageiro, deixar a coisa em
poder do empenhador”, mas esclarecendo que o ónus da prova do carácter temporário ou definitivo da
devolução impende sobre o credor, presumindo-se que a entrega significa renúncia ao penhor), Oliveira
Ascensão, Direitos reais cit., págs. 549 a 552, salientando ser a privação do empenhante dispor do bem
onerado uma condição, não apenas da constituição, mas também de manutenção da garantia, entendendo,
por isso, que a perda da posse gera inelutavelmente a extinção do penhor, embora acrescente que “logo
que se reconstitua a situação de privação da possibilidade de disposição material da coisa elo autor do
penhor, aquele renasce”, esclarecendo, porém, que tal renascimento, no fundo, consiste no surgimento de
um novo direito, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 696 (afirmando que “não é
necessário que, com a restituição, se tenha em vista a extinção do penhor. Basta o simples facto da
restituição, para que a garantia fique despojada de toda a sua eficácia”, até por confronto com o art.º
871.º do Código de Seabra, que dispunha que a restituição da coisa empenhada significava a remissão do
direito ao penhor, salvo se o credor provasse o contrário, ou seja, a própria lei admitia que, ao menos em
certos casos, a devolução do bem ao constituinte poderia não implicar a perda da garantia. Pelo contrário,
em face do actual art.º 677.º - nos termos do qual o penhor se extingue, sem mais, pela restituição da coisa
empenhada ou do documento que confira a sua exclusiva disponibilidade – impõe-se a conclusão oposta)
e Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 206 (apontando como exemplo de extinção o empréstimo de um
anel empenhado ao empenhador para este ir a uma festa) e, na jurisprudência, o Acórdão da Relação de
Coimbra de 30/1/2001, in CJ 2001, I, pág. 22 e segs. (no caso, a instituição bancária credora havia
simplesmente devolvido a aplicação financeira ao seu proprietário para que este efectuasse uma assinatura
em falta). Contra, Rubino, Il pegno cit., pág. 275 e segs., afirmando que a perda da posse não determinará
a extinção do penhor quando for momentânea (considerando, por isso, que essa extinção ocorrerá em caso
de perda involuntária, pois esta raramente será temporária; pelo contrário, tratando-se de restituição
voluntária ao proprietário, o direito de penhor só não se extinguirá se a restituição for transitória e ficar
estabelecida a obrigação de devolução da coisa ao credor mal se atinja o fim em vista do qual a coisa haja
sido temporariamente restituída ao proprietário; se, por último, o credor entregar o bem a um terceiro,
sem o consentimento do devedor, a extinção apenas não ocorrerá se a devolução a esse terceiro for
momentânea – não se podendo considerar, em caso de devolução duradoura, tratar-se de uma hipótese de
nomeação de terceiro depositário, uma vez que esta exige o consentimento do devedor). Também
Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho civil cit., pág. 309, sustenta que o art.º 1191.º do CCE
(nos termos do qual, quando a coisa empenhada, depois de entregue ao credor, se encontre em poder do
devedor, se presumirá remitida a obrigação principal), constitui uma presunção ilidível que, por isso,
admite prova em contrário, nomeadamente demonstrando que a coisa se encontra em poder do devedor, a
título temporário e com o consentimento do credor, para que aquele o repare (porque, por exemplo, é o
único com conhecimentos para o efeito). Já Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 148, entende que o
desapossamento do credor só não origina a extinção do penhor quando for momentâneo e tiver passado
despercebido a terceiros (uma vez que sustenta que o elemento essencial da exigência de desapossamento
reside na protecção destes últimos), circunstâncias essas que caberá ao juiz avaliar. Finalmente, Gorla e
Zanelli, ob. cit., págs. 69 e 70, consideram o penhor como extinto, apenas admitindo que o credor
pignoratício possa fazer valer o seu direito de garantia relativamente a outro credor que tenha obtido uma
penhora sobre o mesmo bem, sabendo do carácter temporário da restituição.
1762
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 66 a 68, apontando o exemplo da entrega a um terceiro a
fim de este reparar o bem empenhado e indo mais longe ao admitir a não extinção em caso de entrega
estável a terceiro, desde que o credor possa exigir o bem a esse terceiro. O mesmo se aplica se o credor se
limitar a atribuir ao empenhador a composse do bem, de modo a que este não possa dispor materialmente
do bem (caso contrário, haverá restituição e o penhor extingue-se). Sobre estas questões, vide igualmente
n.ºs 9.1 e 10.2 do Capítulo I.
453
Ainda relativamente a esta forma de cessação do penhor, é objecto de disputa a
questão de saber se também a perda involuntária da posse (particularmente quando seja
consequência de furto ou de simples extravio) acarreta a extinção do penhor.1763
Uma resposta comum afirmativa a todas estas hipóteses de desapossamento do
1764
credor, pode radicar na necessidade de protecção dos direitos de terceiros
(particularmente os constituídos após a perda da posse e antes de uma eventual
recuperação da mesma por parte do credor pignoratício), os quais, desaparecido o
mecanismo publicitário decorrente da entrega, se deparam com uma garantia oculta.1765
1763
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 73 e 74, aceita igualmente que, existindo uma excepção
peremptória que possa ser oposta ao direito de penhor, o empenhador tenha o direito de exigir a
restituição do bem empenhado e a consequente extinção do penhor, pois aquela excepção nega a eficácia
deste direito (no mesmo sentido, vide o §1254 do BGB)
1764
Mesmo aquelas em que exista uma reserva expressa de subsistência da garantia não obstante a
restituição, uma vez que tal ressalva não será de molde a tutelar os interesses de terceiros, protegidos pela
exigência de desapossamento.
1765
Aceitam o efeito extintivo mesmo neste caso Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 69 e 70, pelo
menos em relação a terceiros, pois o penhor fica privado de toda a publicidade, podendo aqueles ser
induzidos em erro pela posse do bem pelo seu proprietário, entendendo ser mais merecedor de tutela o
interesse desses terceiros face ao do credor pignoratício, sem prejuízo do direito deste último poder exigir
novamente a entrega ao empenhador, mas cedendo este novo direito perante outros direitos de terceiros
entretanto constituídos, advogando que “em relação a terceiros, o penhor não deve ser eficaz, se a coisa
está em poder do empenhador, mesmo que o credor a não tenha perdido voluntariamente. Voluntária ou
involuntária a perda, o penhor fica sem a publicidade que a posse do credor lhe daria, o empenhador
pode servir-se dela para enganar terceiros e o penhor não deve, portanto, ser eficaz em prejuízo deles.
Merecem mais protecção esses terceiros do que o credor, muitas vezes negligente na guarda da coisa”,
concluindo que “o penhor poderá acaso exigir de novo ao empenhador a entrega; mas, por exemplo, os
direitos constituídos a favor de terceiros medio tempore subsistem, sem a preferência do penhor”
(todavia, parece que o Autor apenas aceita este efeito se a coisa voltar para poder do empenhador, mas já
não se, saindo da posse do credor pignoratício, passar para o poder de terceiro). Menezes Leitão,
Garantias cit., pág. 206, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 245, nota 692 (afirmando
que o efeito extintivo se produzirá tanto se a restituição voluntária, como involuntária), Oliveira
Ascensão, Direitos reais cit. págs. 549 a 552 (em consonância com o seu entendimento que postula o
desapossamento como condição, não apenas de surgimento, como também de manutenção do penhor,
afirma que “a cessação de uma situação de facto qualificativa é causa de extinção de direitos reais”, até
por analogia com o papel desempenhado pelo registo na hipoteca – publicitar da garantia face a terceiros -
e com o efeito extintivo da garantia que o cancelamento do registo implica: em caso de reconstituição da
situação de privação da possibilidade de disposição material da coisa por parte do empenhante, o penhor
renasce, mas sem efeitos retroactivos, pois trata-se de um novo penhor. Apesar disso, o Autor considera
não estar em causa a integração do penhor no seio dos direitos reais, por continuar a gozar da inerência e
da sequela – quanto a este último aspecto, ele não estará presente quando a coisa ficar sujeita ao poder de
disposição do empenhante porque, nesse caso, o penhor se extinguiu, mas “a sequela manifesta-se sempre
que estiverem em causa terceiros, que se colocarem em situação incompatível com aquele direito –
nomeadamente por atingirem de qualquer maneira a posse do credor – sem que a possibilidade de
disposição material por parte do autor do penhor se verifique”) e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 137
(alegando que “caso o empenhador subtraia a coisa ao credor pignoratício poderá dispor dela a favor de
terceiros, sendo inaceitável que o penhor fosse oponível a estes, pois não teriam qualquer publicidade
relativa ao mesmo”). Defendem igualmente o efeito extintivo do penhor nesta caso Weil, ob. cit., pág. 83,
Piedlièvre, Les sûretés cit., pág. 180, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., págs. 86 e 87 (rejeitando quaisquer
condutas através das quais, após o empossamento do credor pignoratício, o bem seja restituído a título
precário ao devedor, tendo em conta a possibilidade de, desse modo, se defraudarem as expectativas de
terceiros) e, sobretudo, Aynès e Crocq, Les sûretés cit., pág. 199,Troplong, ob. cit., pág. 102 (afirmando
que qualquer perda da posse por parte do credor implica a perda da preferência pignoratícia, valendo
como uma renúncia tácita ao seu direito) e Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., págs. 60 e 61
(declarando, sem mais, que a oponibilidade do penhor se encontra subordinada ao perdurar do mecanismo
publicitário – o desapossamento, destinado a tornar cognoscível a terceiros a constituição do penhor -
durante toda a duração da obrigação garantida). Contra, Rubino, Il pegno cit., pág. 275 e segs., conforme
exposto acima, para quem não basta, em ordem a evitar a extinção do penhor, que a restituição seja
involuntária, sendo ainda necessário que não tenha sido temporária (em termos idênticos, Salinas
454
Pelo contrário, um contra-argumento reside no facto de a orientação acabada de
expor conduzir a uma inutilidade prática do recurso aos meios de recuperação da posse,
porquanto mesmo quando o credor logre invocá-los com sucesso, tal não obstará ao
ocaso do direito de garantia, permitindo unicamente a sua ressurreição, mas preterido
por todas as que se constituam medio tempore, isto é, entre o momento da perda e o da
recuperação da posse (ou seja, seria como a garantia houvesse sido constituída apenas
neste último momento).
Mais grave ainda, se o terceiro houver adquirido a propriedade do bem onerado
e uma vez assumido que o penhor se extinguiu com a perda da posse por parte do credor
pignoratício, não lhe será, por isso, lícito invocar o direito de sequela face ao terceiro,
cujo direito prevalecerá.
Tomando posição e assumindo que essencial para o nascimento (e manutenção)
do penhor é a retirada do bem ao empenhante (e a consequente perda indisponibilidade
por parte do constituinte), de modo a que os terceiros sejam advertidos da existência de
um ónus sobre a dita coisa, será de excluir a manutenção do direito real de garantia
quando o bem retornar ao poder do constituinte, em particular quando tal devolução
tenha sido voluntariamente praticada pelo credor pignoratício, uma vez que, desse
modo, se aniquila o efeito publicitário inerente ao surgimento do penhor (excepto,
porventura, caso se encontrem preenchidos os requisitos legais da composse, o que
poderá representar uma alternativa interessante para as restituições temporárias).
Ora, atendendo à finalidade propagandística da entrega do bem ao credor ou a
terceiro, não será descabido admitir que o direito real pode subsistir, apesar da perda
voluntária1766 da posse do bem por parte do credor (ou do sujeito encarregue da sua
custódia), desde que a coisa não retorne ao poder exclusivo do empenhante, como
sucederá quando passar para a posse de um terceiro, uma vez que para os demais
interessados o que releva é o que bem não se encontre em poder do constituinte da
garantia, podendo até imaginar-se que o bem se ache na posse do terceiro por lhe ter
sido entregue para custódia.1767
Adelantado, El régimen cit., pág. 368, considerando existir uma mera presunção relativa no sentido de a
perda da posse do bem por parte do credor implicar renúncia à garantia, presunção essa que será afastada
“si se pruebe que la pérdida era involuntaria o corta duración”) e, para o direito alemão, Harry
Westermann, Harm Peter Westermann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1553
(assegurando que, em caso de perda involuntária da posse o penhor, o §1253 não se aplica e, por isso, o
penhor não se extingue).
1766
Deste modo, a situação de quaisquer sujeitos que venham a adquirir os seus direitos directamente do
terceiro cujo empossamento houvesse ditado a extinção do penhor não é diversa da que enfrentam se o
bem se encontrar na posse do credor pignoratício ou de um terceiro custodiante designado pelas partes,
uma vez que qualquer destes sujeitos não pode, à partida, constituir direitos sobre o bem anteriormente
onerado (e, do ponto de vista publicitário, em qualquer dos casos o bem não se encontra em poder do
empenhante originário). Por outro lado, se o credor pignoratício entregou o bem a terceiro, por exemplo
para efeitos de reparação, e este vier a reclamar direitos conflituantes com o do credor pignoratício sobre
o bem previamente onerado ou dele dispuser, incumpre o negócio com base no qual aquela entrega havia
sido efectuada, representando a eventual extinção do penhor um prémio para essa conduta.
1767
Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 172 e segs., alega que alguns sustentam que “la perdita del possesso
del bene da parte del creditore non produce l’estinzione del diritto di pegno, se il possesso viene
recuperato prima del fallimento (…) il recupero del possesso non comporta il sorgere di un nuovo diritto
di pegno, bensì la permanenza di quello originariamente costituito”. Todavia, na opinião do Autor e na
medida em que a lei faz alusão unicamente ao momento da constituição do penhor, importa distinguir
consoante a posse houvesse sido perdida a favor de um terceiro ou do próprio devedor: no primeiro caso,
aceita a reconstituição do direito originariamente constituído, uma vez que “non fa presumere l’estinzione
della garanzia, potendosi ben giustificare, agli occhi dei creditori, quale consegna della cosa a un
custode. In ogni caso, i creditori che avvertono che il bene non è più nel possesso del titolare del diritto
di pegno per essere passato sotto il potere di fatto di un terzo non sono in alcun modo indotti a credere
che su quel bene potranno in futuro soddisfarsi”; no segundo, entende estarmos perante o surgimento de
455
Porém, quando se trate de um desapossamento forçado do credor pignoratício
(em razão, por exemplo, da sua perda ou furto), a favor do empenhante ou de qualquer
terceiro,1768 a extinção do penhor não deverá verificar-se (podendo, por isso, o credor
pignoratício reclamar a devolução da coisa onerada, ao abrigo do direito de sequela),1769
um novo direito, ainda que de conteúdo idêntico ao inicialmente criado, uma vez que o regresso do bem à
disponibilidade material do devedor faz com que “I creditori sono portati a confidare sul fatto che il bene
sia di nuovo incluso nella garanzia patrimoniale generica del debitore”.
1768
Nesta hipótese pode utilizar-se o argumento de maioria de razão, pois não faria sentido que o penhor
não se extinguisse, como vimos, aquando da entrega voluntária a terceiro e esse mesmo efeito não se
produzisse em caso de desapossamento involuntário por parte do empenhante.
1769
É esta a posição de Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 492 a 495, sintetizando que “la
transmisión posesoria de la cosa gravada es requisito constitutivo del derecho real de prenda. Nacido
éste, la pérdida de la posesión de la cosa sólo implica la extinción del derecho si es voluntaria, mientras
que, si no tiene tal carácter, el acreedor pignoraticio está facultado para perseguir la cosa y recuperarla
de donde se encuentre, precisamente con base nela naturaleza real de la garantía, si bien puede ocurrir
que, en determinados supuestos, la acción real del acreedor no sea suficiente y tenga que ceder ante
situaciones de una mayor protección”. Todavia, o Autor não ignora a existência de um entendimento
contrário, de acordo com o qual a perda da posse do bem empenhado origina, inexoravelmente, idêntico
efeito relativamente ao direito real de penhor, fundamentando-se tal posição na ausência desse direito
(uma vez que a atribuição ao credor das acções para reclamar ou defender o bem contra terceiro – art.º
1869.º, n.º 2, do CCE – apenas são exercitáveis contra o perturbador, mas não contra um terceiro que
tenha adquirido o seu direito do legítimo proprietário, que entretanto houvesse recuperado a posse do bem
previamente empenhado): ora, contrariando esta justificação, o Autor replica que a exigência de
manutenção da posse (que, aliás, constava expressamente do projecto de Código Civil e não foi transposta
para a versão final) exigida noutros ordenamentos (por exemplo, o francês e o espanhol), se destina a
evitar a restituição do bem empenhado, por parte do credor pignoratício, ao devedor empenhante, em
nada afectando o reconhecimento de um direito de sequela ao credor pignoratício (que lhe permite
recuperar o bem em caso de perda involuntária da posse do mesmo), de modo que só o desapossamento
voluntário determina a extinção do penhor. Partilha este entendimento Cordero Lobato, Comentario cit.,
pág. 2144. Defendem também a manutenção do penhor em caso de perda involuntária da posse,
Guillouard, ob. cit., págs. 121 e 122, justificando que a extinção da preferência pignoratícia em caso de
perda da posse por parte do credor reside no facto de ser a posse do credor que publicita relativamente a
terceiros a constituição da garantia e, cessando tal publicidade, os terceiros acreditariam legitimamente
que os direitos do credor sobre o bem empenhado se teriam extinto: assim sendo, quando a perda da posse
por parte do credor não tenha sido voluntária (como sucederá sempre que a coisa empenhada for por ele
perdida ou esta lhe tenha sido roubada) e, ainda, se o credor a tiver entregue a um terceiro
temporariamente, nomeadamente para que este proceda à sua reparação, tal efeito extintivo não se deverá
produzir. Chegam aos mesmos resultados Simler e Delebecque, Droit civil cit., págs. 457 e 458, Baudry-
Lacantinerie, ob. cit., págs. 76 e 77 (acrescentando que também em caso de devolução do bem ao devedor
em resultado de manobras fraudulentas deste, o credor não perderá a sua preferência pignoratícia e poderá
reclamar a restituição do bem), Cabrilllac e Mouly, ob. cit., pág. 534 (pese embora afirmarem que a
norma legal, lida na sua pureza, conduziria a que qualquer restituição, mesmo que momentânea,
implicaria uma causa de extinção do penhor, reconhecem a existência de decisões judiciais considerando
que algumas devoluções temporárias ao devedor – mormente para efeitos do exercício, por parte deste, de
direitos relacionados com o bem empenhado ou para proceder a reparações para cuja prática apenas o
devedor se encontre habilitado – não produzem a perda da posse do credor, desde que justificados pelo
interesse de ambas as partes), Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 240 (concluindo que o
desapossamento involuntário – perda ou furto – não faz cessar a preferência pignoratícia, enquanto que
competirá aos tribunais decidir – em função das circunstâncias do caso concreto – se o desapossamento
temporário originará a perda da posse pignoratícia) e Hardel, ob. cit., págs. 52 e 53 (noticiando que a
jurisprudência tolera um certo contacto do constituinte com o bem onerado, desde que tal não configure
uma recolocação do bem na posse deste sujeito). Vide, ainda, a posição de Protettì, ob. cit., pág. 66 (para
além de sustentar que o credor pignoratício não perderá a posse pelo facto de a entregar o objecto da
garantia à entidade encarregue de proceder à respectiva alienação), para quem não se produzirá o
desapossamento do credor se, entre o momento da entrega e a eventual penhor a deste, o credor ficar
privado da posse material da coisa em razão de situações provisórias que não incidam sobre a relação
pignoratícia e não se possa dizer que a coisa tenha regressado à posse do devedor (socorrendo-se, para
isso, do argumento literal retirado do n.º 2 do art.º 2787.º do CCI, nos termos do qual o momento para
456
não apenas porque, podendo tratar-se de usurpadores, não merecem protecção superior à
do credor pignoratício (como sucederia se o direito deste fosse postergado face do
daqueles ou de outros a quem aquele terceiro posteriormente transmitisse direitos sobre
o bem previamente onerado), como porque tal representaria, na prática, uma inutilidade
efectiva dos meios de recuperação da posse – e do direito de sequela - face a todos os
que houvessem adquirido o seu direito entre a data da perda da posse e a sua
recuperação.1770
Colocando a questão em termos mais amplos, em caso de extinção do direito e
verificando-se a sua recuperação por parte do credor pignoratício desapossado,
nomeadamente em resultado do exercício bem sucedido das acções pertinentes,
questiona-se se o penhor originário sobrevive à perda temporária da posse ou, ao invés,
se extingue e renascerá automaticamente com aquela restituição.1771
A diferença entre ambas as posições reside na solução a dar ao conflito com
terceiros adquirentes de direitos entre a data da perda e da recuperação da posse por
parte do credor pignoratício, favorável a este último no primeiro entendimento e àqueles
457
terceiros de acordo com a primeira posição,1772 não prejudicando, em qualquer caso, a
preferência do credor pignoratício face aos credores cujos direitos se tenham constituído
antes do desapossamento, uma vez que na data em que o direito daqueles surgiu estes
não podiam ignorar, em razão da manutenção do desapossamento na data do respectivo
surgimento, a existência do penhor.
Em nosso entender e tal como referido a propósito da extinção do penhor por
perecimento do bem, este conflito deve ser resolvido em benefício dos terceiros,
excepto na hipótese de extinção por perda involuntária da posse, em especial quando
essa privação da detenção material se traduza na utilização de meios não pacíficos (caso
em que, conforme salientado anteriormente, o penhor tão pouco se deve considerar
extinto).
À imagem do que ocorre com a extinção do penhor por renúncia, a perda, por
parte do credor pignoratício, da posse do objecto do penhor acarreta unicamente a
extinção do seu direito, mas não deve implicar nenhuma presunção de extinção, por
cumprimento, da obrigação garantida..1773
Todavia, quando estejamos perante penhores sem desapossamento - maxime
quando a entrega tenha sido substituída por um mecanismo publicitário e não seja mais
condição de validade da garantia -, esta causa de extinção não operará.1774
Existe, por último, uma causa de extinção do penhor legalmente prevista, mas
restrita aos casos em que a garantia seja prestada por terceiro, qual seja a conduta do
credor que obste à sub-rogação do terceiro nos direitos desse mesmo credor (art.º 717.º,
n.º 1, aplicável por remissão do art.º 667.º, n.º 2).1775
Em circunstâncias normais, o cumprimento da obrigação por parte do terceiro
garante determina a sub-rogação deste nos direitos do credor (cfr. art.º 592.º):1776 ora, se
o credor defraudar esta legítima expectativa do terceiro, os bens deste não devem
1772
Entre nós, Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 206, nota 486, defende que, mesmo quando o credor
possa, no seguimento de acção possessória ou de reivindicação, reconstituir o penhor, tal faculdade não
prejudica os direitos de terceiros de boa fé entretanto adquiridos (no mesmo sentido, Romano Martinez, e
Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 174). Também Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 549 e segs.,
parece inclinar-se no mesmo sentido, ao sustentar que o penhor renasce, mas sem efeitos retroactivos,
pois trata-se de um novo penhor. No direito anterior, Guilherme Moreira, ob. cit., pág. 338 (“se a
restituição da cousa empenhada foi feita voluntariamente pelo credor e o devedor fez qualquer contrato
com terceiros em virtude do qual estes adquiriram um direito sobre a cousa penhorada que seja
incompatível com o direito de penhor, o credor não poderá, embora prove que a restituição da cousa
dada em penhor não significava a remissão do direito ao mesmo penhor, anular esse contrato”).
1773
Como salienta Guillouard, ob. cit., págs. 155 e 156.
1774
Assim para o direito francês pós reforma de 2006, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit.,
págs. 511 e 512.
1775
Defendendo a mesma solução, apesar de ausência de norma expressa nesse sentido no direito italiano
(o art.º 2869.º apenas se aplica, ao menos directamente, às hipotecas), Rubino, Il pegno cit., pág. 285,
Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 16 e Realmonte, Il pegno cit., pág. 672 (por outro lado, nos termos do art.º
1240.º do CCI, o credor que tenha renunciado a uma determinada garantia prestada por um terceiro, em
troca de uma contrapartida, deverá imputar o montante recebido na liquidação da dívida garantida).
Reclamando norma análoga para o direito espanhol, Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 448 e 449.
1776
Como observa Vaz Serra, Direito de satisfação cit., págs. 6 e 7, “o dono de coisas empenhadas para
garantia de dívida alheia não está pessoalmente obrigado a pagar ao credor. Pode, porém, satisfazer o
crédito, competindo-lhe um direito de satisfação ou resgate. (…) O direito de satisfação ou resgate, se
exercido, tem como consequência subrogar-se o proprietário da coisa empenhada nos direitos do
credor”. Todavia, como ensina o mesmo Autor, o crédito e a garantia transferem-se para o proprietário tal
e qual existiam na esfera jurídica do credor, podendo, por isso, o devedor opor ao proprietário as
excepções que detinha contra o credor (apenas com as limitações decorrentes das relações entre
proprietário e devedor).
458
permanecer adstritos ao cumprimento da obrigação, devendo antes extinguir-se o
penhor prestado por terceiro.1777
Caberá investigar se, para além dos motivos de cessação da garantia regulados
na lei, não haverá outras circunstâncias cuja verificação determine o mesmo efeito: em
nossa opinião a resposta será afirmativa.1778
De entre estas, salientamos, antes de mais, a colocação fora do comércio
jurídico1779 do bem sobre o qual recaía a garantia, na medida em que, verificado este
circunstancialismo, o objecto se torna insusceptível de direitos privados.1780
Já suscita mais dúvidas avaliar se a transformação material do bem empenhado
produzirá a extinção da garantia ou, pelo menos, se constituirá uma causa autónoma de
supressão do penhor, tendo em conta que a transformação acarretará, ao menos em
regra, o perecimento da coisa.1781
Por outro lado, a configuração da modificação material do bem como uma causa
de cessação do penhor colocaria nas mãos do devedor uma forma simples de iludir o
efeito de garantia, bastando-lhe para tal proceder à respectiva transformação.1782
Também depõe contra o erigir da transformação da coisa como causa de
extinção da garantia a possibilidade, a que já se fez referência, de sub-rogação real do
objecto da garantia.
Conjugando todas estas considerações concluímos que, das duas uma: ou, por
efeito da sub-rogação real, a garantia se transfere para o novo objecto; ou, não se
produzindo tal resultado, a consequência será a extinção da garantia por perecimento da
coisa, excepto se for possível identificar a coisa actual como a antiga, embora
transformada, ou quando se verifique o circunstancialismo previsto no art.º 692.º.1783
1777
Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 738, apontando como exemplo de
uma conduta do credor enquadrável neste preceito a renúncia, por parte do credor, a outras garantias de
que eventualmente dispusesse para assegurar o mesmo crédito. Em ternos idênticos, em face do direito
italiano, Rubino, Il pegno cit., pág. 274.
1778
No mesmo sentido, vide o nosso Dos privilégios cit., págs. 57 a 61 e, no direito brasileiro, Sílvio
Salvo Venosa, ob. cit., pág. 582 (acrescentando ao elenco legal os casos de decurso do prazo – na
hipótese de penhor a termo – a verificação da condição resolutiva, a reivindicação do bem por parte de
terceiro e a anulação da obrigação garantida). Defendem que constitui também causa de extinção do
penhor o abuso do bem empenhado por parte do credor pignoratício, após constatação judicial desse
abuso – Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 125.
1779
Nos termos do art.º 202.º, n.º 2, consideram-se fora do comércio jurídico as coisas que não podem ser
objecto de direitos privados, como sejam as coisas do domínio público e aquelas que, por natureza, sejam
insusceptíveis de apropriação individual.
1780
Embora a situação seja rara, não é de excluir a hipótese de um bem não passível de direitos privados
reentrar no comércio jurídico e, quando tal suceda, parece-nos ser configurável o ressurgimento da
garantia (no mesmo sentido, relativamente aos privilégios creditórios, o nosso Dos privilégios cit., pág.
57, embora não desconhecendo posições contrárias, nomeadamente no direito italiano, sustentando a
impossibilidade de renascimento da garantia ainda que o objecto readquira a sua natureza primitiva,
salvaguardando apenas a hipótese de a mudança ser meramente transitória, caso em que se produzirá
apenas uma simples suspensão dos direitos sobre a coisa: a nosso ver, esta última posição apresenta o
inconveniente relacionado com a dificuldade em determinar se a passagem do bem para o domínio
público – embora atenuada pelo facto de o Código das Expropriações distinguir as figuras da
expropriação e da requisição - ou qualquer outra colocação fora do comércio jurídico é ou não
transitória).
1781
Por exemplo, quando o penhor incidisse sobre matérias primas destinadas a ser transformadas.
1782
Todavia, no caso do penhor tal risco é menor, face a outras garantias, uma vez que, ao menos em
regra, o bem permanece em poder do credor.
1783
Em sentido semelhante, vide o nosso Dos privilégios cit., pág. 58. Já Faggella, ob. cit., pág. 146,
distingue, na esteira do direito romano, consoante a coisa resultante da transformação continuasse a
pertencer à mesma espécie da coisa transformada ou, pelo contrário, se transmutava numa coisa de
espécie diferente, assegurando que na primeira hipótese a garantia se mantinha, enquanto na segunda se
deveria considerar extinta.
459
Outro potencial fundamento de extinção da garantia reside na imobilização do
objecto do penhor, cabendo dissociar a incorporação do bem móvel num imóvel da
simples afectação ao serviço de um imóvel (a chamada imobilização por destino). Na
primeira hipótese, as coisas móveis apenas perdem a sua qualidade quando forem
consideradas partes integrantes de um imóvel, isto é, se unidas materialmente a um
prédio com carácter de permanência (art.º 210.º, n.º 1, alínea e) e n.º 3)1784 e, em tal
caso, a garantia cessa, mesmo que o imóvel pertença ao mesmo devedor do crédito
outrora garantido.1785 Na imobilização por destino, a coisa móvel afecta, ainda que
duradouramente, ao serviço de outra não perde a sua natureza móvel (art.º 210.º, n.º
1),1786 pelo que tal circunstância em nada afecta a subsistência do penhor.
Pode colocar-se, todavia, nestes casos de imobilização do objecto do penhor, um
entrave adicional decorrente da necessidade de hierarquizar a garantia pignoratícia com
outras que, porventura, subsistam sobre o bem imóvel ao qual o móvel empenhado se
veio a associar.1787
Discute-se também se a extinção do direito do empenhador, com base no qual
foi constituída a garantia, produzirá idêntico efeito relativamente ao direito de penhor,
especialmente quando aquela extinção produza efeitos ex tunc e seja eficaz com respeito
a terceiros adquirentes.1788
Analogamente, o exercício frutífero da reivindicação, por parte do proprietário
não empenhante, do bem onerado origina a cessação do penhor e, inversamente,
1784
Caso contrário, conservam a sua natureza mobiliária, eventualmente qualificadas como coisas
acessórias (art.º 210.º, n.º 1), mas em nada afectando a subsistência da garantia.
1785
No mesmo sentido relativamente aos privilégios creditórios, vide o nosso Dos privilégios cit., págs.
58 e 59, bem como a doutrina aí citada (especialmente na nota 105) e, em especial, Jacques Ghestin e
outros, Droit commun cit., págs. 365 (afirmando que o credor detentor da garantia mobiliária perderá a
sua garantia se a incorporação do móvel no imóvel for de tal modo que não se possa repor a
individualidade daquele sem comprometer este). Também a respeito da imobilização se coloca a questão
da admissibilidade de renascimento da garantia, nomeadamente quando a coisa readquira a sua primitiva
natureza móvel, à qual se deve dar resposta afirmativa, à semelhança e pelos mesmos motivos invocados
a propósito das demais causas de extinção.
1786
Além de o bem imobilizado por destino não ser abrangido, salvo estipulação em contrário, pelos
negócios jurídicos que tenham por objecto a coisa principal (art.º 210.º, n.º 2).
1787
Jacques Ghestin e outros, Droit commun cit., págs. 365 e 366, resolvem este conflito em favor da
hipoteca, por entenderem que a colocação ao serviço do imóvel será a chave para resolver este conflito. É
nosso parecer que, das duas uma, ou o penhor se extingue (em razão do bem sobre que recaía perder a sua
autonomia) ou, ao invés, conservando esta autonomia e uma vez que os negócios – como a hipoteca – que
tenham por objecto a coisa principal não abrangem, salvo estipulação em contrário, as coisas acessórias
(até porque estas não existiam, qua tale, no momento da constituição da garantia hipotecária), sobre elas
não pode incidir a hipoteca, destarte afastando qualquer conflito com a garantia pignoratícia.
1788
Neste sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, págs. 59 e 60, (apontando como exemplos a
anulação do contrato de aquisição do direito do empenhador, com a verificação da condição resolutiva
aposta a esse contrato ou com o exercício do pacto de resgate na venda a retro), defendendo, contudo, não
se dar a extinção do penhor quando o direito do empenhante cesse com efeitos apenas ex nunc (como nos
casos de resolução do contrato por incumprimento ou de rescisão, pois tais actos não podem prejudicar os
direitos adquiridos por terceiros), na esteira de Rubino, Il pegno cit., pág. 286. Já Faggella, ob. cit., págs.
146 e 147, entende que a extinção do direito do empenhador sobre a coisa empenhada origina a extinção
do penhor (acrescentando produzir-se o mesmo efeito quando o bem empenhado for objecto de
reivindicação frutífera por parte de terceiro). Estas mesmas conclusões são defensáveis em face do nosso
direito actual, tendo em conta que, tanto a declaração de nulidade, como a anulação do negócio têm efeito
retroactivo – devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for
possível, o valor correspondente (art.º 289.º) – e, por outro lado, apesar de tal regime ser aplicável, salvo
estipulação em contrário, à resolução do contrato (art.º 433º., n.º 1), nomeadamente quanto aos efeitos
retroactivos (salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução – art.º
434.º, n.º 1) neste último negócio ficam, excepto em casos excepcionais respeitantes a bens imóveis ou
móveis sujeitos a registo, salvaguardados os direitos de terceiros (art.º 435.º, n.ºs 1 e 2).
460
naqueles ordenamentos em que vigore a protecção do terceiro adquirente de boa fé (e
em que, por isso, aquela reivindicação enfrenta maiores obstáculos), a aquisição da
propriedade a non domino livre de encargos acarreta igualmente a extinção do
penhor.1789
Em termos paralelos, também a verificação da condição ou termo resolutivos
apostos ao direito de penhor conduzirá, ao menos na opinião de alguns, à extinção da
garantia.1790
Naturalmente que, ocorrendo a venda executiva do objecto do penhor, o
comprador adquirirá o bem livre de qualquer direito real de garantia, ou seja, o penhor
extingue-se, ou melhor, transferir-se-á para o produto da venda do bem sobre o qual a
garantia incidia (art.º 824.º, n.ºs 1 e 3).17911792
Em termos rigorosos, dando-se a venda executiva haverá que equacionar até que
ponto a garantia se extingue ou, ao invés, estaremos perante (mais) um exemplo de
consagração legal da sub-rogação do objecto do penhor, em que a garantia, inicialmente
incidente sobre um determinado bem, passa a recair sobre uma quantia em dinheiro:
atendendo ao teor literal do art.º 824.º, n.º 3, esta última conclusão tenderá a
prevalecer.1793
Quando a garantia seja concedida por terceiro, a modificação do devedor da
obrigação assegurada sem o consentimento daquele, originará, na opinião de alguns, a
extinção da garantia prestada por terceiro.1794
Importa, por último, salientar que se a causa extintiva da obrigação ou a renúncia
do credor ao penhor for declarada nula ou anulada ou ficar por outro motivo sem efeito,
o penhor renascerá (art.º 732.º).1795
1789
Assim, para o direito alemão, Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky,
Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1552.
1790
Assim, Rubino, Il pegno cit., pág. 286, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 16, Realmonte, Il pegno cit., pág.
672 e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 282.
1791
Defendendo a extinção do penhor em caso de aquisição da coisa livre de encargos, vide, por todos,
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág. 61. Em termos análogos, o §1247, n.º 2, do BGB, dispõe que os
penhores sobre as coisas extinguem-se, mesmo que fossem conhecidas do adquirente e, no direito
brasileiro, Silvio Rodrigues, ob. cit., pág. 356 (declarando que a garantia se extingue em caso de
adjudicação judicial, remissão – entendida como a prerrogativa concedida ao devedor empenhante de
evitar a penhora de um determinado bem, pagando a quantia exequenda, mais os juros e as custas do
processo - ou venda particular – a qual só é admissível havendo estipulação contratual nesse sentido - do
bem onerado). Com esta solução “tem-se em vista salvaguardar os vários interesses de todos os
interessados na execução, desde o comprador – que preferirá adquirir o bem livre de qualquer ónus ou
encargo – ao exequente – que, desta forma, poderá obter uma soma mais avultada que lhe permitirá, com
maior probabilidade, obter a satisfação do seu crédito – e ao próprio executado que, assim, poderá obter
uma maior amortização do montante em dívida” (cfr. o nosso Dos privilégios cit., págs. 167 e 168)..
1792
Nos termos do n.º 1 do art.º 157.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, a execução fiscal
movida contra o devedor pode reverter contra terceiros adquirentes daquele devedor (quando os bens
deste sejam insuficientes e se trate de dívida assegurada por garantia real), a não ser que a transmissão
tenha ocorrido em processo a que Fazenda Pública devesse ser chamada a deduzir os seus direitos, o que
poderia configurar uma excepção à regra da caducidade das garantias no seguimento da venda judicial.
Acontece, porém, que o Fisco será chamado à generalidade dos processos executivos (cfr. art.º 864.º, n.º
3, alínea c), do CPC), pelo tal excepção tem um âmbito de aplicação limitado.
1793
Neste sentido, também, Lebre de Freitas, A acção executiva cit., pág. 338, falando de uma “sub-
rogação objectiva”.
1794
Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 707, alegando que a menor solvabilidade ou seriedade do novo
devedor são motivos mais do que suficientes para que o terceiro garante se possa opor à modificação do
devedor da obrigação principal.
1795
O art.º 677.º, ao remeter, em matéria de extinção do penhor, para as normas previstas para a hipoteca,
determina, a nosso ver, a aplicação, não apenas do preceito relativo às causas de extinção (art.º 730.º),
mas também de outras normas conexas, como as relativas à renúncia à garantia (art.º 731.º) e ao seu
renascimento (art.º 732.º).
461
Porém, e como decorre do já citado art.º 732.º, o renascimento da garantia não
produzirá efeitos automáticos, isto é, não basta a invalidação da causa de extinção do
penhor, sendo ainda imperiosa a reconstituição da garantia, o que implica, caso o penhor
se encontre sujeito a registo, que apenas renascerá após nova inscrição (tal como sucede
com a hipoteca – art.º 732.º) e se, eventualmente, se trate um penhor comum, a garantia
ressurgirá no momento do empossamento do credor ou de terceiro1796 ou, tratando-se de
penhor de créditos, da sua notificação ao devedor do crédito empenhado.1797
E não produz também efeitos retroactivos, apenas operando o renascimento a
partir do momento em que se produza a anulação da causa extintiva da garantia (rectius,
a sua reconstituição, nos termos acabados de expor), destarte salvaguardando os direitos
(nomeadamente de garantia) constituídos por terceiros medio tempore, de modo que o
direito renascido será preterido em face de todos aqueles constituídos entre o momento
da extinção da garantia e o seu posterior renascimento.1798
À primeira vista, da leitura do art.º 732.º parece resultar que a possibilidade de
renascimento apenas actuaria relativamente aos fundamentos de extinção das garantias
previstos nas alíneas a) e d) do art.º 730.º - ou seja, a extinção da obrigação garantida e
renúncia por parte do credor pignoratício.
Todavia e conforme já sustentado a respeito da perda da posse do bem por parte
do credor pignoratício (e, noutro âmbito, a respeito dos privilégios creditórios),1799
advogamos a susceptibilidade de ressurreição de uma garantia, ainda quando a sua
extinção se tenha produzido por qualquer das causas não previstas na lei1800 e mesmo
quando se houvesse dado por perecimento da coisa (art.º 730.º, alínea c)) - admitindo a
hipótese, porventura exotérica, de ressurgimento do bem – ou de novo empossamento
do credor temporariamente desapossado da coisa empenhada (art.º 677.º), nos casos em
que aquele desapossamento tenha originado a extinção da garantia.
Assim e à guisa de conclusão, diremos que em todas as hipóteses de extinção do
penhor em que o bem empenhado venha a readquirir a sua configuração inicial – no
caso de colocação fora do comércio de imobilização, transformação ou, mais raramente,
perecimento do bem - ou venham a cessar as causas de anulação da garantia1801 – nas
hipóteses de extinção da obrigação garantida ou de renúncia do credor - nada se oporá à
ressurreição da garantia, desde que tais condicionalismos ocorram antes da execução do
património do devedor, sem prejuízo da protecção de terceiros resultante da aplicação
do art.º 732.º.
De facto, recaindo o penhor sobre um bem determinado, “o momento
determinante para avaliar se esse bem corresponde ou não à categoria considerada
pelo legislador é o da execução do património do devedor – quando se tornam
1796
Já assim em face dos privilégios creditórios, também eles dispensados de registo, o nosso Dos
privilégios cit., pág. 56.
1797
Para aqueles outros penhores para cuja constituição se efectue de modo diverso, será a partir da
observância desse mecanismo que a garantia se considerará ressuscitada.
1798
Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 753.
1799
Vide o nosso Dos privilégios cit., pág. 61, nota 116).
1800
Nem se diga que o renascimento das garantias apenas opera relativamente às causas de extinção
previstas na lei (cfr. art.º 730.º), porquanto, não tendo o legislador consagrado outras causas, não poderia,
por maioria de razão, ter previsto a possibilidade de renascimento em caso de desaparecimento de
qualquer um desses motivos.
1801
Na eventualidade de o penhor se ter extinto em resultado do bem sucedido exercício da acção de
reivindicação por parte do verdadeiro dominus do bem onerado, a garantia poderá renascer se, porventura,
se vier a verificar que o verdadeiro proprietário era o empenhante e não o autor da acção de reivindicação.
462
operativas as garantias - , sendo irrelevantes as vicissitudes porque esse bem tenha
passado desde o momento da constituição até essa data”.1802
1802
Cfr. o nosso Dos privilégios cit., pág. 61. Em termos semelhantes Gabrielli, Il pegno cit., pág. 290,
considera que o momento relevante para averiguar da existência da preferência “è quello del
pignoramento o della dichiarazione di fallimento, poiché fino a quando queste situazioni, e questi atti,
non si verifichino il creditore, che sia munito di un titolo valido e idoneo (...) può sempre costituire o
ricostituire il pegno, facendosi consegnare o riconsegnare, in caso di perdita del possesso, la cosa
oggetto del diritto reale di garanzia”. A própria posição de Rubino (ob. cit., pág. 273) a que já se fez
referência (distinguindo entre a extinção do direito de penhor propriamente dito e a extinção da relação
complexa de penhor, com a possibilidade de a extinção daquele não obstar à subsistência desta,
admitindo, em conformidade, que o credor, mesmo depois de perdida a posse do bem empenhado e
extinto o direito de penhor, possa, em caso de perda recuperável, exigir novamente a entrega do bem ou
reivindicá-lo) não deixa de comungar deste entendimento, embora restrito a uma das possíveis causas de
extinção do penhor.
463
Adicionalmente e embora esta não seja uma contenda respeitante
exclusivamente ao penhor, nem tão pouco as garantias em geral, importa também
esmiuçar a problemática da determinação do crédito assegurado e do bem empenhado,
atendendo a que, conforme se aludiu anteriormente, tal problemática assume contornos
particulares no que toca ao penhor, em razão da natureza não solene do negócio de
constituição (até porque a mesma entronca numa outra, respeitante à eventual
obrigatoriedade, pretensamente decorrente do princípio da especialidade, de o bem
onerado ser uma coisa certa e determinada, o que colocaria em risco a viabilidade de um
penhor sobre bens fungíveis e sobre universalidades).1803
1 - A necessidade de desapossamento
464
privado dos bens que usa como instrumentos de trabalho impede-o de obter
financiamentos para prosseguir tais actividades.1809
O mesmo se diga das mercadorias ou matérias primas relacionadas com a
actividade produtiva do empenhante, bens estes que não podem ser retirados do controlo
físico do empresário, dada a sua indispensabilidade para o processo produtivo,1810 sob
pena de toda aquela actividade ficar comprometida.
Por outro lado, a imposição do desapossamento coíbe igualmente a
empenhabilidade dos produtos sujeitos a um processo de laboração, impedindo que a
garantia se prolongue para os bens resultantes dessa transformação ou para dos créditos
resultantes da sua alienação,1811 uma vez que qualquer destas duas últimas realidades
oggetto di garanzia mobiliare, a fronte del sempre piú massiccio bisogno di finanziamenti dell’attività
produtiva, si rivela estremamente arcaica e insuficiente”).
1809
Gino Magri, ob. cit., pág. 18, enumera um conjunto vasto de bens que, por serem destinados à
produção e/ou constituírem a principal ou única fonte de rendimento do devedor, dificilmente poderão
sair das suas mãos (focam também este aspecto Gabrielli, Spossessamento e funzione di garanzia nella
teoria delle garanzie reali, in Il Fallimento, 2002, 9, pág. 933 - embora considere que a necessidade de
desapossamento “sia coerente unicamente con le esigenze di un’economia precapitalistica, nella quale il
principale, se non l’unico, indice di sicurezza del credito e di circolazione del diritto di garanzia rea
legato al meccanismo della traditio e del possesso” – e de Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 223,
alertando que a diminuição da capacidade de produção do empenhante se acaba por repercutir
negativamente na própria economia nacional).
1810
Assim, Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 11, concluindo que o penhor, em razão da necessidade de
desapossamento, “appare per sua natura inidoneo alla costituzione di garanzie sulle merci da parte
dell’imprenditore”, circunstância esta “contraditoria con l’esigenza dell’imprenditore medesimo di
mantenere la disponibilità delle merci su cui ha concesso la garanzia”, Paolo Piscitello, Costituzione in
pegno cit., págs. 156 e 157 (atestando que, deste modo, as garantias que exigem o desapossamento do
devedor apenas serão utilizáveis “nelle rare ipotesi in cui le imprese possono rinunciare alla libera
disponibilità di merci, materie prime e prodotti finiti per l’intera durata del prestito”, como sucederá em
caso de stocks excedentários relativamente às necessidades de curto prazo, ou de empresas cujo ciclo
produtivo seja sazonal - nas quais as mercadorias são normalmente armazenadas por um longo período e
a laboração do produto ocorre com uma grande antecipação relativamente à sua entrega aos clientes – ou
de mercadorias importadas, com respeito às quais não parece difícil criar uma situação de composse entre
o credor e o empenhante) e Gabrielli, Sulle garanzie rotative, Napoli, 1998, in Rivista di Diritto Civile,
1999, I, pág. 19 e segs. (realçando que do desapossamento decorre a impossibilidade de utilizar as
mercadorias destinadas a transformação ou os bens de que o constituinte se serve no exercício da sua
actividade). Neste contexto, Henri Alterman, Gage sur marchandises et sur logiciel, in n.º special da Rev.
Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11, pág. 17 e segs., tendo em conta necessidade de desapossamento inicial
e permanente do bem onerado, sublinha que a possibilidade de constituição de penhor sobre mercadorias
(bem como de substituição dos bens originários) encontra-se restrita à criação de um situação em que o
devedor, apesar de não desapossado, não possa dispor isoladamente dos bens onerados (não bastando,
para o efeito, o arrendamento do espaço ao credor por parte do devedor, sendo antes imperiosa a entrega
das chaves ao credor, a vigilância do local e a aposição de cartazes no local dando conta do
arrendamento) e à entrega dos bens a um terceiro (hipótese legalmente prevista e que, para mais, permite
a constituição de plúrimas garantias sobre os mesmos bens), seja um armazém geral, seja um terceiro
detentor profissional: nesta última hipótese, o terceiro deverá receber um mandato do credor com
indicação das operações que poderá executar (v.g., substituição dos bens inicialmente existentes),
consentindo o devedor que o terceiro ocupe as suas instalações onde se encontram armazenadas as
mercadorias até que o credor liberte o terceiro das suas incumbências (para além do mais, o credor
pignoratício poderá enfrentar a concorrência do vendedor das mercadorias com cláusula de reserva de
propriedade, mas o Autor relata que os tribunais tendem a impor ao alienante o ónus de demonstrar a má
fé do credor pignoratício, dispensando o credor pignoratício da demonstração de ter procedido a todas as
démarches destinadas a verificar se as mercadorias obtidas em penhor não se encontravam previamente
abrangidas por uma cláusula de reserva de propriedade).
1811
Assim, Gabrielli, Spossessamento cit., pág. 933, concluindo, a propósito das matérias primas e dos
bens sujeitos a laboração, que o desapossamento é “contraddittorio con l’esigneza dell’imprenditore
medesimo di non sottrarre queli beni al processo produtivo e al ciclo economico-finanziario
dell’impresa”, implicando uma imobilização desses bens e originando “l’improduttività della res
465
não só não existem no momento da constituição da garantia, como a sua dação em
penhor – em razão da necessidade de entrega – se afigura inviável.
De um modo geral, por isso, a exigência de desapossamento compromete,
porventura em termos absolutos, a concessão em garantia dos bens que compõem o
chamado capital circulante das empresas, assim vedando o acesso a financiamentos
necessários para a prossecução do objecto social por parte daqueles que tenham
investido uma grande parcela dos seus proveitos na actividade da empresa.1812
O próprio estabelecimento comercial, ao menos naqueles países cuja legislação
não preveja mecanismos alternativos ao desapossamento para a constituição de um
penhor com semelhante objecto, pois, na pureza dos princípios, a sua oneração
implicaria a concessão da gestão do mesmo ao credor pignoratício ou a terceiro.1813
Por último, a necessidade de entrega do bem a terceiro e a natureza real do
contrato de penhor comprometem, porventura definitivamente, a oneração pignoratícia
de bens futuros, do mesmo modo que a exigência de conhecimento da identidade dos
créditos a onerar e dos seus devedores (de modo a que lhes seja notificada a constituição
da garantia) entravam o nascimento de um penhor sobre créditos ainda não existentes no
momento do surgimento da garantia.
Neste contexto, o desapossamento, ao subtrair grande parte do acervo
empresarial da possibilidade de dação penhor, acaba por excluir do acesso ao crédito
vastos sectores empresariais, os quais, na falta de significativos valores imobiliários, se
vêm impedidos de prestar outro tipo de garantia,1814 tanto mais que o desapossamento se
costituita in garanzia è contraria ad ogni ragione económica, la quale impone, sia nell’interesse del
creditore garantito, sia nell’interesse del costituinte, che il bene non fuoriesca dal circuito economico e
produttivo, e, perfino, che ne sia possibile la sostituzione nel tempo, fino a quando il rapporto di credito
non si sia estinto”). Vide, ainda, as considerações análogas do mesmo Autor in, Sulle garanzie rotative
cit., pág. 19 e segs., de Giovanni Stella, Il pegno a garanzia di crediti futuri, Cedam, 2003, pág. 3
(salientando o interesse do credor em permitir a substituição dos bens vinculados por outros equivalentes
ou a sua transformação, sem prejuízo da manutenção da garantia, sem efeitos novatórios) e de Clementina
Scaroni, Le garanzie rotative, in La nuova giurisprudenza civile comentata, Ano 15, n.º 6 (Nov/Dez
1999), págs. 409 (solicitando, por isso, a criação de “modelli di garanzia che persistano nel tempo a
prescindere del mutare dell’oggetto sul quale insistono, di una garanzia con oggetto variabile che non
comporti, ad ogni sostituzione del bene gravato, la rinnovazione del contratto che la costituisce” que, do
mesmo passo, permitam que o bem onerado continue a ser utilizado pelo devedor na sua actividade
produtiva).
1812
Realçam este aspecto, Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., pág. 155 (reclamando, por isso, a
criação de garantias que “consentono all’impreditore-debitore di conservare il possesso e permettono la
prosecuzione dell’attività di trasformazione e lavorazione, dato che il diritto di garanzia grava su un
complesso di beni unitariamente considerati e continuamente sostituibili rendendo possibile l’alienazione
e la ricostruzione delle scorte, in modo da non interrompere il normale ciclo produttivo”), Melissa
Magnano, ob. cit., pág. 576 (argumentando que a necessidade de desapossamento torna impossível a
colocação em penhor dos bens do estabelecimento de que o devedor normalmente se sirva, das
mercadorias destinadas a transformação e ainda dos produtos e créditos resultantes da respectiva
transformação ou venda, sugerindo, por isso, o recurso às garantias flutuantes, as quais “oltre a consentire
l’ordinaria continuazione dell’attività dell’impresa, esonerano la banca creditirice da onerosi obblighi di
amministrazione e custodia dei beni e comportano, pertanto, la diminuzione dei costi delle operazioni di
finanziamento”).
1813
Relativamente ao estabelecimento comercial, Giovanni Stella, ob. cit., pág. 3, escreve que “ha trovato
raramente applicazione proprio perché la necessità dello spossessamento implicherebbe il cambio di
gestione dell’azienda medesima”.
1814
Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 27, Francesca Fiorentini, Garanzie reali atipiche, in Rivista di Diritto
Civile, n.º 46 (2000), pág. 255, Gabrielli, Autonomia privata e diritto comune europeo delle garanzie
mobiliari, in Rivista Critica del Diritto Privato, Napoli, Ano 13, n.º 4 (Dez. 1995), pág. 647 e segs. e
Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 173 e segs. (este último concluindo que “l’ambito di applicabilità del
pegno si riduce alle merci che si possono facilmente depositare in magazzini senza sottoporle a
particolari di lavorazione. In questi casi è possibile consegnarle al creditore o costituire un compossesso
466
apresenta inapto para a constituição em penhor de bens não susceptíveis de apreensão
material, bens estes cujo número e importância têm vindo a aumentar
exponencialmente.1815
Para cúmulo, o desapossamento nos termos legalmente previstos, além de inibir
o devedor empenhante de usar o objecto onerado de que é proprietário, nem sequer
permite, salvo acordo do empenhante ou quando tal seja indispensável à conservação do
bem (art.º 671.º, alínea b)), o respectivo uso por parte do credor, circunstâncias estas
conducentes à consideração da coisa onerada como “um bem morto”.1816
Diga-se, ainda, que o suposto intuito de pressão ao cumprimento associado ao
desapossamento – induzindo o devedor a pagar depressa para recuperar a posse do bem
- é muitas vezes duvidoso, podendo contrapor-se que deixando a posse do bem ao seu
proprietário e permitindo-lhe prosseguir a sua actividade produtiva se concede o maior
incentivo para extinção do debito contraído.1817
Por último, mesmo quando o devedor cumpra a obrigação garantida e apesar de
a lei impor ao credor a imediata restituição do bem (art.º 671.º), pode ter dificuldades
para recuperar o bem empenhado, uma vez que o credor (ou o terceiro encarregue da
guarda do bem) pode incumprir tal obrigação, obrigando o empenhante a recorrer às
vias judiciais para recuperar o bem que lhe pertence.1818
Paralelamente, esta situação é igualmente perniciosa para o credor, pois este
poderia legitimamente contar com os rendimentos provenientes da actividade
profissional do devedor, rendimentos estes seriamente comprometidos com a dação em
penhor de alguns dos instrumentos que servem de suporte àquela actividade. 1819
O desapossamento do empenhante causa ainda outros prejuízos para o credor,
porquanto este deve arcar com as despesas inerentes à custódia do objecto da garantia
(pese embora o direito de ser indemnizado de algumas benfeitorias, nos termos do art.º
670.º, alínea b)).1820
Para além disso, não raras vezes não dispor das condições físicas necessárias
para o armazenamento dos bens empenhados, nem possui as aptidões indispensáveis
para prover à respectiva conservação, motivos estes o que impelem a recorrer a terceiros
para prover à conservação do bem, repercutindo depois os custos da concessão do
financiamento para o empenhante.
Atendendo à necessidade premente de financiamento à sua actividade por parte
das empresas e dos pequenos empresários, a impossibilidade de a garantia mobiliária
del debitore e del creditore mediante deposito in magazzini generali o in locali dell’imprenditore, purchè
sia rispettato il principio dell’esclusiva disponibilità dei beni da parte del debitore”).
1815
A este respeito, Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 86 e segs., cita como exemplos os
instrumentos financeiros desmaterializados, as informações e os modelos de comunicação ou distribuição
comercial.
1816
A expressão é de Ferrara, ob. cit., pág. 129, utilizada também por Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 99 e
por Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 223 e segs..
1817
Giuseppe Trapani, ob. cit., págs. 120 e 122.
1818
Destaca este aspecto, J. Ph Lévy, Coup d’oeil historique d’ensemble sur les sûretés réelles, in Revue
d’Histoire du Droit, n.º 55 (1987), pág. 247, considerando que, pelo menos nalguns casos, ”le mieux était
de conserver, sans outre formalité, la possession au débiteur”.
1819
Foca os prejuízos que advêm para o credor, Fabrizio Maimeri, Trust e pegno, in www.il-trust-in-
italia.it/Relazioni/Congresso_2002 e este aspecto em particular Paolo Piscitello, Costituzione in pegno
cit., pág. 156 e Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 22, nota 5 (expondo que “la detenzione del pegno delle
merci da parte della banca costituisce (…) un procedimento non sempre conveniente alla pratica
mercantile e in definitiva anche all’interesse bancario, poiché, in tal modo, si sottraggono le merci alla
circolazione e si priva il commerciante, per tutta la durata del pegno, della possibilità di valersi di questi
suoi mezzi di scambio e quindi di poter realizzare le merci e, vendendole, di ritrasformarle in quel denaro
che gli è necessario per la estinzione del suo debito bancario”).
1820
Mencionam este aspecto Gino Magri, ob. cit., pág. 17 e Mirabelli, ob. cit., pág. 417.
467
por excelência, em razão do seu modo de constituição, poder incidir sobre um leque tão
vasto de bens, pode mesmo afirmar-se que o desapossamento constitui um entrave ao
próprio desenvolvimento económico.
Não surpreende, por isso, que as críticas ao regime tradicional do penhor – e ao
sistema de garantias reais em geral1821 - se tenham multiplicado nos diversos
ordenamentos onde o desapossamento do empenhante permanece como formalidade
dominante para a constituição da garantia (como sucede com o português, espanhol,
italiano, alemão e francês, este último antes da reforma de 2006), sendo praticamente
unânime a súplica por intervenções legislativas no sentido da adaptação da rigidez
daquele regime às novas realidades,1822 embora haja sectores onde tal exigência se faz
1821
Vide, entre muitos outros, Annalisa Liuzi, ob. cit., pág. 64, nota 34 (constatando que “i meccanismi
rigidamente formali della garanzia reale rispondono alle esigenze tipiche di un’economia
precapitalistica, ove l’unico índice di circolazione è legato al meccanismo della traditio e del possesso”,
mas nitidamente desadequado “rispetto alla realtà degli scambi e alle sue esigenze económico-
funzionali”, concluindo que a tendência aponta no sentido de “uscire dalle strettoie della necessaria
consegna della res, per intensificare l’ormai continuo e costante affermarsi, sia nelle operazioni
economiche che nelle scelte legislative, di figure di pegno senza spossessamento”), Luca Enriques, Il
pegno di patrimoni oggetto di gestione mobiliare, in Giurisprudenza Commerciale, 1993, pág. 759 e segs.
(falando da “obsolescenza della rigida disciplina delle garanzie reali, ed in particulare del pegno, in
relazione alle esigenze delle imprese, e più in generale dell’economia”, em particular no que respeita à
imposição do desapossamento e de um documento com data certa contendo suficiente indicação do bem
empenhado e do crédito garantido como condição de validade do penhor), Serafino Gatti, Il credito cit.,
pág. 204 (pronunciando-se a favor de “un generale processo di rinnovamento delle tecniche giuridiche in
materia di garanzie”), Mauro Bussani, Il modello cit., pág. 167 e segs. (falando de “una rilevante
domanda di strumenti giuridici caratterizati da maggiore duttilità, rispetto a quanto offerto dalla
disciplina della tradizionale garanzia possessoria”, capazes de “superare la necessità del ricorso al
pegno tradizionale con spossessamento”, notando que as únicas garantias sobre bens móveis que não
pressupõem o desapossamento do constituinte são as hipotecas mobiliárias, cujo âmbito de aplicação,
porém, se encontra limitado aos navios, aviões, automóveis e às rendas do Estado), Giuseppe Trapani, ob.
cit., págs. 1 e 115 (admitindo que “oggi, nella moderna vita degli affari e dei traffici, non si può più
restare ancorati all’insegnamento classico che per la costituzione del pegno su cose mobili esige
necessariamente il materiale trasferimento della cosa al creditore (…) il mondo produttivo non conosce
feticci giuridichi e reclama incessantemente nuove tecniche legislative”, realçando que diversos projectos
de “penhores a domicílio” foram chumbados por força das dificuldades jurídicas da figura, manifestando
o desejo que “si arrivi anche da noi alla creazione di una forma di pegno che non esiga lo
spossessamento del debitore e che tuttavia rafforzi la posizione del creditore, con l’ausilio di adeguate
forme di pubblicità”), Fabrizio Maimieri, ob. cit., pág. 3 e Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 255 e segs.
(afirmando que “il sistema delle garanzie reali tipiche ha pesantemente subito la rigidità che connota la
disciplina codicistica della responsabilità patrimoniale e si è rivalato incapace di seguire il passo del
mutamento dei tempi” - nomeadamente por força da manutenção de determinados dogmas, como o da par
conditio creditorum ou da tipicidade e do numerus clausus dos direitos reais de garantia – “sembrano
aver eliminato a priori, per il principio dell’autonomia privata, qualsiasi possibilità di accesso al settore
del diritto delle garanzie reali, creando cosi i pressuposti per il progressivo divaricarsi di una scollatura,
già esistente e profunda, tra staticità dei modelli giuridici e dinamicità della realtà economica”).
1822
Vide, por todos, Gabrielli, Autonomia cit., pág. 648 e segs.. Depois de dirigir diversas críticas ao
desapossamento, o Autor advoga a criação de garantias sem desapossamento, que simultaneamente
consintam o seu prolongamento para os produtos decorrentes da transformação ou os créditos decorrentes
da venda dos bens inicialmente onerados (propondo, como alternativa, o uso da propriedade fiduciária e
da venda com reserva de propriedade com fins de garantia, à imagem do que sucede no direito alemão,
concluindo que, neste ordenamento, a primeira figura é preferencialmente utilizada para os créditos e a
segunda para as mercadorias) e Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 176 (salientando a incapacidade do
ordenamento italiano para dar resposta às exigências de “finanziamento esterno dell’impresa e nella
scarsa attenzione del legislatore e degli interpreti alle rapide trasformazioni delle strutture sociali ed
economiche”, designadamente no que respeita à “possibilità di una estensione delle garanzie in questione
ai prodotti derivanti dalla trasformazione delle merci operata dall’imprenditore ed ai crediti di cui
diventa titolare dopo la loro vendita”).
468
sentir com especial acuidade, como sejam o crédito agrícola1823, o industrial e
comercial,1824 e o crédito dos vendedores relativamente ao preço de alienação.1825
A razão de ser das críticas assume especial contundência atendendo a que, em
diversas ordens jurídicas, o penhor “costituisce l’unico strumento idoneo a creare
convenzionalmente una garanzia sui beni mobili”.1826
Em face deste panorama, a evolução parece apontar no sentido da procura de
novos instrumentos de garantia mobiliária (designadamente através do alargamento das
garantias mobiliárias a créditos e a bens futuros) em resultado da autonomia privada1827
ou da intervenção do legislador.1828
Não admira, por isso, que na generalidade dos ordenamentos europeus se tenha
assistido ao surgimento de diversas garantias prescindindo da exigência de
desapossamento do empenhante, algumas por iniciativas nacionais, outras decorrentes
de imposições europeias, muito embora essa intervenção assuma diferentes modalidades
em cada um dos países.1829
1823
Dentro do crédito agrícola, Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 295 e segs., distingue entre os credores
pelo fornecimento de bens destinados directamente à produção - sementes, adubos, insecticidas, aluguer
de máquinas e gastos de cultivo – para os quais seria suficiente a instituição de um penhor comum (com
desapossamento do devedor) e sobre os frutos da correspondente colheita. Pelo contrário, os credores
titulares de créditos relativos ao preço de aquisição (ou ao financiamento para essa aquisição) de
máquinas e material agrícola deveriam gozar de uma garantia não possessória sobre tais bens, ao passo
que os créditos destinados a obras de risco (v.g. saneamento) poderão ser assegurados através de uma
hipoteca sobre o próprio imóvel. Não obstante, a lei espanhola de 1917 sobre penhor agrícola não se
“preocupo de limitar los acreedores y los créditos susceptibles de gozar de la garantía de la prenda
agrícola sin desplazamiento”, o que significa que esta garantia pode abranger todos os créditos
anteriormente mencionados, entendendo o Autor que deveria ser igualmente permitida a oneração de
colheitas futuras.
1824
Surgindo como exemplo paradigmático a necessidade, sentida em todos os ordenamentos, mas
consagrada expressamente apenas em alguns, de uma garantia sobre o próprio estabelecimento comercial
ou industrial (sem prejuízo de eventuais garantias específicas sobre alguns dos elementos que o
compõem).
1825
Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 298, defende que, em face do direito espanhol, não existe
necessidade de criar uma garantia não possessória para garantir estes créditos, uma vez que os mesmos
gozam já de um direito de preferência por força do art.º 1922.º do CCE
1826
Assim para o direito italiano, mas com plena aplicação no ordenamento luso, Gaetano Piepoli, ob. cit.,
pág. 10 (vide também, pág. 16 e segs.). O mesmo Autor acrescenta que, por força do princípio da
proibição das garantias ocultas, a lei obriga a que a constituição do penhor obedeça a determinados
requisitos.
1827
No direito italiano, o papel da autonomia privada tem sido restringido em nome da tutela dos demais
credores do empenhante e da par conditio creditorum (contudo, Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 57 e segs.,
sugere que o salvamento da empresa – através do seu financiamento - justifica uma diversa perspectiva,
olhando para as relações entre credores preferentes e quirografários na óptica do aumento da capacidade
produtiva da empresa). Todavia, Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 256 e segs., ressalva que se aos
privados não é permitido criar novas garantias reais, “possono tuttavia adattare la funzione di garanzia
del negozio costitutivo del pegno alle particolarità dell’operazione economica in concreto, possano coiè
produrre gli effetti della garanzia reale tipica attraverso l’impiego di tecniche contrattuali parzialmente
diverse da quelle previste dal formante legale”, como sucede com os penhores omnibus ou rotativos.
1828
Alude a este aspecto Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 10 e pág. 27 e segs.. De acordo com o Autor e
perante o cenário traçado, restariam, em tese, três vias alternativas: ou a exclusão de um número
considerável de empresas dos canais de financiamento; ou o alargamento do crédito pessoal
(eventualmente com intermediação estatal); ou, finalmente, a procura de novas garantias mobiliárias:
excluídas as duas iniciais (a primeira por razões óbvias, a segunda pelo risco de insolvência dos
devedores e pela aversão à intervenção estatal), restava naturalmente esta última.
1829
É sintomático que já em 1904 (!) Gino Magri, ob. cit., págs. 18 e 19, enumerasse um conjunto de
normas (a maioria das quais vigentes em ordenamentos estrangeiros) consagrando penhores sem
desapossamento, sendo este substituído por “altra formalità, diretta allo stesso scopo di produrre la
cononscenza del rapporto nei terzi, del tutto analoga a quella che vale per l’ipoteca; vale a dire la
469
Todavia, a busca de um mecanismo sucedâneo da entrega do bem ao credor, mas
que salvaguarde os interesses de terceiros e do comércio jurídico em geral, não constitui
uma tarefa simples, o que não deixa de contribuir para a permanência, ainda hoje, do
desapossamento do devedor como condição do surgimento do penhor.1830
As possíveis alternativas passam pela ampliação do âmbito de aplicação da
hipoteca mobiliária,1831 - garantia que prescinde do desapossamento do constituinte e
que é tradicionalmente acantonada aos navios, aeronaves e, porventura, automóveis,
opção esta não isenta de limitações1832 - pela criação de penhores sem desapossamento
do constituinte,1833 pelo recurso à figura denominados “dos privilégios creditórios
convencionais”1834 ou ao uso da propriedade com fins de garantia.1835
iscrizione o trascrizione del diritto su di un resgistro apposito tenuto da pubblici ufficiali, del cui
contenuro è lecito ad ognuno prendere notizia”, salientando especialmente o penhor de estabelecimentos
comerciais. Dá conta desta mesma tendência Ismael Acevedo y Criado, ob. cit., pág. 19 e segs., alegando
que o penhor sem desapossamento encontra raízes no direito romano (no qual já se admitia, ao menos
ocasionalmente, que o bem onerado permanecesse em poder do constituinte da garantia), tendo sido
posteriormente alargada no Século XIX aos penhores que incidam sobre produtos agrícolas, pecuários,
manufacturados, minérios e mesmo sobre as actividades industriais em geral.
1830
Destaca este aspecto Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 798 e segs., alertando para que “el Registro
de muebles no puede aspirar en manera alguna a sustituir a la possessión de un modo tan completo y
absoluto como lo ha sustituido el Registro de la Propriedad en materia de inmuebles; en materia de
muebles corporales será siempre el Registro el que ocupe un lugar secundario, en tanto la possessión
representará un papel principal”, entendendo que o registo apenas pode substituir a publicidade
possessória relativamente aos bens imateriais ou não corpóreos (por serem insusceptíveis de posse). A
solução proposta pelo Autor, na sendo do art.º 9.º do UCC norte-americano, é a de utilizar o registo em
complemento à situação possessória, de modo que “la parte que desea tomar o retener un derecho de
prorpiedad sin possessión debería suportar la carga de solucionar el problema de la propriedad
aparente”, assim reduzindo os riscos para terceiros e para a própria segurança do comércio jurídico.
1831
De acordo com Antonio Fontana, Pegno senza spossessamento: ancora qualche riflessione sulla legge
24 Luglio 1985, n.º 401, in Qadrimestre – Rivista di diritto privato, n.º 1 (1991), págs. 61 e segs., a
principal questão que se coloca no domínio das garantias reais é o de “porre a disposizione
dell’autonomia privata strumenti in grado di assicurare la tutela del credito lasciando tuttavia al
debitore il possesso del bene gravato”, augurando, por isso, uma ampliação, na medida do possível, da
hipoteca, uma vez que esta garantia permite conciliar estes dois aspectos.
1832
Antonio Fontana, ob. cit., pág. 62 e segs., depois de criticar a excessiva cautela do CCI de 1942 no
que diz respeito à enumeração dos bens móveis susceptíveis de hipoteca mobiliária, considera que esta
garantia poderá ter um alcance mais vasto, mas, realisticamente, assume que “su questa via non si potrà
spingere molto oltre”, não apenas por causa dos requisitos necessários para a inscrição (“implicando una
descrizione dell’oggetto, è fondata sulla sua identificazione, e non è quindi nemmeno concepibile per tutti
quei beni che siano privi di una qualche caratteristica di forma, peso, volume od altro, la quale consenta
di distinguierli fra loro, come suole accadere per la maggior parte dei prodotti di serie”), como pelos
custos associados a esta forma de publicidade (tornando a garantia demasiado onerosa relativamente a
bens de valor modesto), deste modo se justificando que a maior parte dos bens móveis continuem a ser
não registados, nem registáveis. Por outro lado, para Vallet de Goystisolo, ob. cit., págs. 268 e 269, nota
que o recurso a esta figura requer a identificação objectiva do bem onerado, pois só assim se poderá
garantir o direito de sequela do credor – o que exclui do seu âmbito os bens de “imperfecta identificación
registral (…) que no pueden identificarse en sí mismos, sino únicamente recurriendo al lugar o al
almacén donde se encuentran depositados, ya que no tienen rasgos proprios e individuales dentro de los
comunes de la especie, suficientes para llevar a su pleno cumplimiento el requisito de la especialidad”
(concluindo que atribuir direito de sequela a uma garantia sobre bens desta natureza poderia prejudicar
intoleravelmente terceiros adquirentes de boa fé, “a quines faltaron datos seguros para conocer el
gravamen”).
1833
De acordo com Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 256 e segs., estes penhores sem desapossamento
podem criar-se através do recurso a formas atenuadas de tradição do bem, como sejam a tradição
simbólica (traduzida, por exemplo, na entrega das chaves do local onde os bens se encontram
armazenados) ou à constituição do devedor como depositário do bem onerado (de forma que “el dueño de
la cosa pignorada transmite su possessión a título de prenda y recibe su tenencia, como depositario”, ou
seja, o credor “la deposita en poder del deudor; este, por lo tanto, se encuentra ligado con el acreedor
470
Porém, nenhuma destas opções é isenta de escolhos, conforme se comprovará
mais pormenorizadamente pelo exame da evolução dos vários direitos.
Desde logo, os ordenamentos da Europa continental, no qual se enquadra o
português, tendem a verberar ou, pelo menos, condicionar o uso da propriedade com
fins de garantia.
Por outro lado, a criação de garantias não possessórias enfrenta, ao menos para
determinadas classes de bens, a dificuldade em encontrar alternativas credíveis para o
desapossamento material do constituinte,1836 sobretudo porque a ele são normalmente
associadas diversas funções, as mais importantes das quais são a publicitação da
garantia (a que está inerente a tutela de terceiros) e a protecção do credor.1837
con dos contratos, uno es el de prenda, outro el depósito que de la prenda hace el acreedor”) ou,
finalmente, à figura do constituto possessório (“en el que la tradición se opera por el reconocimiento que
hace el que enajena de tener de allí en adelante la cosa a nombre de otro”). Para além disso, a
publicidade possessória pode substituir-se pela colocação de marcas e sinais distintivos nos bens
empenhados (eventualmente combinada com uma forma de tradição simbólica), pelo recurso à figura do
status loci (isto é, estabelecendo uma conexão material entre um determinado local e o objecto vinculado,
de modo que “La cosa queda en possessión del deudor, pero en un lugar en el que domina el acreedor –
como, por ejemplo, el proprietario en su casa aun estando alquilada – o bien en el lugar donde ha tenido
su origen el crédito privilegiado (crédito refaccionario, créditos por gasto de cultivo con respecto a los
fructos), o donde se han domiciliado los bienes – prenda domiciliada”) ou recorrendo à inscrição no
registo como complemento do status loci ou do depósito dos bens em poder do devedor (de modo que,
enquanto se mantenha aquela situação ou o depósito, o credor dispõe do direito de perseguir tais bens nas
mãos de terceiros, embora esta publicidade “no se proyecta concretamente sobre los bienes,
individualizándolos, sino sobre una determinada situación de los mismos”). Todavia, relativamente à
manutenção do bem em poder do devedor a título de depósito, esta hipótese enfrenta diversos obstáculos:
desde logo, a exigência legal de entrega do bem ao credor ou a terceiro (obstáculo esse insuperável,
excepto quando a própria recorra ao expediente do depósito do bem nas mãos do devedor, como sucede
com a lei espanhola do penhor agrícola de 1917), bem como a ausência de publicidade que uma
semelhante forma de constituição acarreta (a não ser que a lei substitua a publicidade possessória por
outro mecanismo idóneo para o efeito, como a aposição de marcas, o status loci ou um registo).
1834
Previstos, por exemplo, nas legislações francesa e italiana, de acordo com as quais a manutenção da
garantia fica sujeita à manutenção do bem num dado status loci, podendo até conferir ao credor mais do
que uma simples preferência para pagamento. Todavia, como salienta Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág.
270 e segs., estes privilégios são de fonte contratual, embora a lei enumere taxativamente os bens sobre os
quais tal garantia pode ser constituída.
1835
García-Pita y Lastres, ob. cit.,, pág. 174 e segs., depois de destacar os inconvenientes do
desapossamento, nomeadamente no que concerne aos bens utilizados pelo constituinte da garantia para a
sua produção ou transporte, para o constituinte, para o credor e para a própria economia nacional,
assegura que tais inconvenientes poderão ser supridos através do recurso à propriedade com fins de
garantia ou, em alternativa, fazendo apelo às garantias reais tradicionais, mas “recurriendo a un sistema
adecuado de publicidad, que no esté basado en la publicidad real possessoria” (não sem reconhecer que
esta última hipótese suscita questões de compatibilização entre a necessidade de tornar efectiva a garantia
real não possessória – designadamente através de concessão de um direito de sequela – e a exigência de
não entorpecer o tráfego comercial – assegurada, pelo menos nalguns ordenamentos, através da aparência
possessória e da regra da posse vale título, assim dispensando os adquirentes de direitos de consultar os
requisitos a cada aquisição: o Autor, tomando como exemplo o ordenamento espanhol, advoga que a
protecção dada a este segundo aspecto deve sofrer, no caso das garantias mobiliárias não possessórias,
uma limitação, sob pena de “convertir en ilusorias las garantías”).
1836
Chama a atenção para este facto Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 12 e segs., pois, embora reconheça a
necessidade de a colocação em garantia de determinados bens prescindir da alteração da sua situação
possessória, estima que “C’est du choc de ce besoin et de la nécessité contradictoire de la dépossession
du débiteur qu’est né l’un des problèmes les plus graves de notre époque sur le plan de la vie des
affaires, le problème du gage sans dépossession, ou celui de l’ypothèque mobilière”, questionando
mesmo o Autor se não estaremos perante um regresso ao processo evolutivo do direito romano que
culminou na transformação do penhor em hipoteca.
1837
Acerca das funções desempenhadas pelo desapossamento, vide supra n.º 5.1.1 do Capítulo I.
471
Relativamente à primeira, o surgimento da posse como meio publicitário em
sede mobiliária e a ausência de um mecanismo publicitário cabal e universal (análogo
ao registo para os bens imóveis) para grande parte dos bens móveis, pode até conduzir a
que se duvide se encontra acolhimento neste domínio o princípio da publicidade dos
direitos reais, entendido como necessidade de cognoscibilidade por parte de terceiros de
tais situações reais.1838
Tal circunstância deve-se, não apenas à dificuldade de identificação registal da
generalidade dos bens móveis, mas ainda à menor importância historicamente atribuída
a esta categoria de bens, que também contribui para a ausência de um sistema
publicitário completo em matéria mobiliária,1839 facto para o qual concorrem ainda um
conjunto de outras razões, embora se possa legitimamente duvidar da pertinência e
actualidade de quase todas elas.1840
1838
Aludem a este princípio, entre nós, Mota Pinto, ob. cit., pág. 119 e segs. (atribuindo-lhe o significado
de “dever a constituição ou a transferência de qualquer direito real revestir notoriedade, ser acessível ao
conhecimento geral”, na medida em que “Não é conveniente que os actos mediante os quais adquiririam
direitos possam vir a ser destruídos por ilegitimidade de quem lhes fez a alienação – para tal devem
esses actos ser públicos, fornecer a possibilidade de um conhecimento geral, para que seja conhecida a
situação jurídica das coisas”) e Orlando Carvalho, ob. cit., pág. 304 e segs. (alertando para o facto de
“sendo um direito erga omnes, o direito das coisas deve ser conhecido ou cognoscível das pessoas que
virtualmente ele afecta, designadamente de terceiros (…) é óbvio que o aspecto externo do direito real
tem de exigir uma publicidade suficiente para se dar a conhecer a terceiros um fenómeno que lhes diz
respeito”) e, no direito italiano, Ferrara, ob. cit., pág. 52 e segs. (realçando que a publicidade dos direitos
reais satisfaz exigências de certeza e facilidade do comércio jurídico, bem como de protecção de
terceiros). Todavia, o primeiro Autor reconhece que a publicidade dos imóveis (e de alguns móveis, cujo
valor e possibilidade de identificação o permitam) será assegurada através do registo predial, enquanto
relativamente ao móveis a publicidade poderá ser alcançada de diversos modos alternativas, como sejam a
exigência que a transferência da propriedade dos bens acarrete necessariamente a tradição do mesmo, a
regra da posse vale título: todavia, o próprio Autor admite que no nosso ordenamento não se encontra
consagrada nenhuma destas alternativas, embora aceite que existe “apenas um direito real em que a lei
atribui à posse, à transferência da coisa, um papel fundamental, de tal maneira que o direito real não
surge se, a tradição – referimo-nos ao penhor”.
1839
Ferrara, ob. cit., pág. 57 e segs., acrescenta que a não vigência do princípio para a generalidade dos
bens móveis assenta no reconhecimento tardio da necessidade de criação de um sistema publicitário (cuja
consagração remonta apenas ao direito germânico, no qual a publicidade relativamente aos bens móveis
era assegurada pela posse, “Gewere”, cuja perda voluntária não concedia ao proprietário –
independentemente da boa ou má fé do terceiro adquirente – o direito de reivindicação, nem tão pouco a
perda involuntária, a qual motivava apenas a aplicação das penas de furto ao prevaricador), motivado pela
menor importância dos bens móveis (de modo que “il poco valore dei mobili non doveva opporsi alla
loro rapida circulazione, ponendo invece delle norme a garanzia dei loro acquirenti, per non essere
disturbati nel loro pacifico possesso”, como sucede com o princípio da posse vale título). O Autor,
porém, contesta esta ausência de um sistema publicitário para os bens móveis, contrapondo que “per
talune specie di esse è non solo possibile, ma utile e feconda di conseguenza giuridiche (…); la quale
potrà adempiere una funzione corrispondente a quella che ha per il commercio immobiliare, dano
sicurezza ai trapassi e tutela ala buona fede dei terzi”.
1840
Ferrara, ob. cit., pág. 69 e segs., contesta diversos destes argumentos, como sejam a irrelevância
económica dos bens móveis (apontando como exemplos que desmentem esta ideia os navios, aviões,
automóveis e os valores mobiliários, considerando um anacronismo a preponderância da propriedade
imobiliária sobre a mobiliária), a circunstância de serem susceptíveis de produção e reprodução indefinida
(o que não é válido para todos os móveis, como sucede com as máquinas de fabrico complexo), a sua fácil
deterioração e destruição (contrapondo não poder sustentar-se que “le cose mobili abbiano una esistenza
di cosi breve durata, che siano delle meteore che appariscono e spariscono nell’orizzonte del diritto”) e,
finalmente, o não terem um sede fixa, o que tornaria impossível centralizar no mesmo local o registo
contendo os vínculos inerentes a cada um dos bens móveis (reconhecendo tratar-se de uma dificuldade,
mas que poderá ser solucionada, em termos análogos ao que acontece com as pessoas físicas que, apesar
das suas constantes deslocações, possuem um domicílio legal fixo). Em face do exposto, o Autor conclui
que a ausência de um sistema de publicidade mobiliária se justifica por razões de “semplice opportunità e
convenienza, non di rigorosa logica giuridica” e, de iure condito, a instauração de tal sistema deve
472
É neste contexto que o único mecanismo publicitário adoptado pela generalidade
das legislações relativamente aos bens móveis foi o da posse dos mesmos, realizando
aquilo a que se convencionou chamar publicidade de facto, com especial ênfase no
domínio do penhor, na medida em que tal empossamento do titular do direito surge
como condição do nascimento da garantia.1841
Ora, para fazer face aos inconvenientes sublinhados do desapossamento, o
registo surge, teoricamente, como o mais apropriado substitutivo daquele, embora nem
sempre seja possível assegurar a plena oponibilidade da garantia face a terceiros.1842
Não surpreende, por isso, que mesmo quem advogue a imperatividade da
publicitação das garantias, mormente como condição de oponibilidade, e constate ser o
fundar-se numa classificação das diversas coisas móveis, de modo a isentar desse formalismo as coisas de
escasso valor, aquelas que devam estar sujeitas a uma rápida circulação que não se compadeça com este
tipo de formalismo e as de difícil ou impossível identificação (tendo em conta a relação entre a
publicidade e o princípio da especialidade).
1841
Funcionando a posse como garantia de segurança do seu direito por parte do possuidor, de modo que
o titular de um direito que não seja, simultaneamente, possuidor corre o risco de ver, nos países onde se
encontre consagrada a regra da posse vale título, o seu direito limitado ou alienado em favor de um
terceiro de boa fé (todavia, o Autor chama a atenção para a circunstância de este princípio apenas
legitimar a aquisição a non domino por terceiros de boa fé que tenham obtido a posse do bem adquirido,
mas não que o possuidor não proprietário possa alienar validamente um dado bem, uma vez que “Non è il
possessore che è legittimato ad alienare validamente la cosa di cui è in possesso, ma sono i terzi di buona
fede che sono legittimati ad acquistarla validamente, da chi se ne trova in possesso”) – Ferrara, ob. cit.,
pág. 69 e segs., resumindo que este tipo de aquisição ex lege exige a verificação cumulativa de quatro
pressupostos: posse do alienante, transferência da posse do alienante para o adquirente, boa fé do
adquirente (traduzida na ignorância de falta de titularidade do direito por parte do alienante) e não se
tratar de bens furtados ou extraviados.
1842
Com efeito, nalguns casos a oponibilidade plena da garantia não pode ser assegurada, uma vez que a
existência da garantia apenas se torna cognoscível aquando da primeira alienação, como sucede “Cuando
el primer adquirente enajene de nuevo los bienes por él adquiridos, la fungibilidad de frutos, ganados y
aperos que quedarán desarticulados de la finca productora y del proprietario pignorante, motivara que
el registro ya no pueda precisar dato alguno suficiente para adquirir al adquirente” - Vallet de
Goystisolo, ob. cit., pág. 277), pelo que a solução mais comum é admitir que as garantias sem
desapossamento registadas apenas possam ser opostas a terceiros adquirentes de má fé, sem prejuízo de
eventuais sanções penais contra o devedor que tenha alienado como livre o bem onerado (embora Vallet
de Goystisolo, ob. cit., pág. 281, conteste mesmo esta repercussão da garantia, afiançando que, para o
terceiro, é “insoportable tener que enterarse, cada vez que se adquiera una cosa, de su historia, de su
situación legal y de las inscripciones de que había sido objeto en Registros que muchas vezes estarían
situados a grandes distancias del lugar donde se verificaba la nueva adquisición”). Também a
oponibilidade das garantias não possessórias constituídas através da colocação de marcas nos bens
onerados a terceiros de boa fé será de descartar, pois das duas uma: ou as ditas marcas estariam colocadas
no próprio objecto e a sua retirada poderá (além de deteriorar o objecto) ser impossível e, então, “De no
quitarlas resultará que el objeto, al passar de mano a mano, dará lugar a sospechas que lo hagan
desmerecer y colocará al que lo haya adquirido legitimamente en una situación poco agradable, ya que
un anterior proprietário, cuyo nombre conste en el objeto, podrá reivincicar de mala fe”; se, pelo
contrário, as marcas não são colocadas directamente no objecto “será muy fácil hacerlas desaparecer al
transmitir el objeto, con lo que toda la garantía desaparece”. Finalmente, o sistema que combina o
registo com a manutenção dos bens num determinado status loci parece também não consentir um direito
de sequela completo ao credor titular de uma garantia sem desapossamento (por acarretar uma suspeita
generalizada sobre todos os bens cuja transmissão e oneração obedeça a esta formalidade, assim
paralisando o comércio jurídico). Em suma, “por exigencias del comercio jurídico, la llamada prenda sin
desplazamiento no puede oponerse a terceros adquirentes de buena fe. No puede exigirse de modo
general al que pretende adquirir bienes muebles – salvo algunas classes de éstos – la previa obligación
de examinar el registro. Ni la noticia de éste pressupone el conocimiento de la identidad de los bienes
adquiridos y gravados. Es éste un dato muy dificil de constatar; especialmente resulta casi imposible si el
vendedor y el pignorante no coinciden, es decir, en las segundas o ulteriores enajenaciones”.
473
registo o mecanismo mais adequado para o efeito,1843 reconheça a existência de limites à
eficácia erga omnes daquele registo, especialmente quando neste se encontram sujeitos
a inscrição apenas os ónus e não igualmente o direito de propriedade.1844
Com esta limitação, o registo apresenta vantagens para terceiros. sejam
potenciais credores do empenhante, sejam outros potenciais adquirentes de direitos
sobre os bens empenhados, especialmente se for de acesso livre, destarte tornando
cognoscível a garantia a todos os potenciais interessados.
Cumpre, todavia, realçar que nem todos estes registos comungam da mesma
natureza publicitária, porquanto alguns deles não são públicos, no sentido em que a sua
consulta não se encontra facultada a qualquer interessado, como sucede, por exemplo,
com os registos de alguns valores mobiliários.1845
Sendo públicos, naturalmente que a protecção que conferem ao seu titular e,
paralelamente, a informação que propiciam a terceiros, contribuem para reforçar a
segurança do direito registado a protecção de terceiros titulares (presentes, mas
sobretudo futuros, de direitos conflituantes com a garantia registada).
Quando assim não for, diversas reservas se levantam relativamente à publicidade
conferida por tal modo de constituição do penhor, designadamente no que respeita à
menor tutela dos direitos de terceiros que pretendam adquirir direitos sobre os bens
1843
Fernández del Pozo, La solución registral del problema de las garantías reales mobiliarias, in
Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons,
Madrid, 2006, pág. 104, descarta os efeitos publicitários do desapossamento (não apenas porque a posse
de um bem diz pouco acerca da respectiva propriedade – tantas são as vezes em que os bens de alguém
são desfrutados por outrem a título de comodato ou locação -, mas também porque não torna a posição
dos terceiros menos onerosa, uma vez que estes terão que visitar o credor para constatarem os bens que se
encontram em sua posse), da escritura (por serem um documento notarial secreto), da aposição de marcar
ou sinais físicos (por só alertar os que estabelecem contacto visual com o bem e poderem ser facilmente
destruídos pelo devedor) e do status loci (pois o devedor poderá eliminar essa conexão). Por isso, o Autor
defende a criação de um registo de ónus, com uma identificação clara dos bens registáveis (embora não
circunscrita aos bens perfeitamente determináveis, mas abrangendo igualmente universalidades, bens
futuros e créditos, até porque conclui pela necessidade de assegurar a plena utilização de toda a riqueza
patrimonial para a obtenção de crédito, razão pela qual considera anacrónica a enumeração de bens
oneráveis contido na lei espanhola da hipoteca mobiliária e do penhor sem desapossamento) e dos ónus a
inscrever (incluindo as judiciais e legais), funcionando o registo como condição de oponibilidade da
garantia (ou até como condição de validade inter partes) e com um sistema baseado na titularidade dos
direitos inscritos (para além de informatizado e de fácil acesso).
1844
De facto, quando seja adoptado o sistema do registo de ónus, uma vez que, não sendo inscritos os
factos relativos à propriedade, “Los titulares de la carga/gravamen inscrito no adquieren, desde luego,
por la inscripción de aquéllas, una posición inatacable frente al verdadero dueño de la cosa mueble: no
hay adquisición a non domino por la inmatriculación porque no hay posesión tutelable del adquirente”
(Fernández del Pozo, ob. cit., pág. 109) e, face a terceiros adquirentes e porque o bem continua no
comércio, o credor pignoratício poderá não dispor de um direito de sequela contra terceiros de boa fé (é o
que sucede, no direito espanhol, com o penhor sem desapossamento). Este último aspecto, leva o Autor a
considerar que os bens não susceptíveis de perfeita identificação conduzem a que as garantias que sobre
eles incidam se encontram amputadas do direito de perseguição, o que não constitui qualquer contra-
senso (pois “En protección de la seguridad del tráfico puede declararse la absoluta inoponibilidad de la
situación inscrita face al adquirente de buena fe de la cosa gravada; sobre todo quando ésta no es de
perfecta identificabilidad (…) ello no entraña necesariamente la negación de la condición de registrables
de tales bienes porque la oponibilidad residual de tales cargas y gravámenes puede exigir un instrumento
de publicidad”). Tendo em conta estas premissas, o Autor propõe um sistema baseado na perfeita
oponibilidade das garantias registadas sobre bens perfeitamente identificáveis, mas não daquelas que
recaiam sobre bens destinados a revenda, universalidades (sobretudo quando é concedida ao empenhante
a faculdade de alienar os bens que as integram no decurso da sua normal actividade), sendo a protecção
do credor assegurada, nestas hipóteses, através da oponibilidade em caso de aquisição por parte de
terceiro de má fé ou fora do giro comercial normal e, por outro lado, mediante a extensão da garantia a
bens ou créditos que se sub-rogam, enquanto objecto da garantia, aos bens originariamente empenhados.
1845
Acerca destes registos, vide infra n.º 1.2.8.3 do Capítulo II.
474
onerados (duvidando-se de pertinência de uma eventual presunção de má fé dessas
aquisições, quando conflituem com os direitos registados) e, inversamente, à menor
segurança que conferem ao credor pignoratício.
Mas o registo cumpre também a função, ordinariamente atribuída ao
desapossamento, de reforço da tutela do credor, pois aumenta a consistência do seu
direito (especialmente porque, nos ordenamentos em que vigore a regra da posse vale
título, a inscrição registal eliminará a boa fé dos terceiros adquirentes de direitos sobre o
bem empenhado incompatíveis com o do credor pignoratício:1846 aliás, sob este prisma
os interesses do credor são mais bem tutelados no caso do registo do que de
desapossamento, uma vez que no penhor possessório o seu direito é tendencialmente
preterido face aos dos terceiros possuidores de boa fé, assim relativizando a segurança
conferida pelas garantias mobiliárias possessórias (pelo menos quando não exista um
sistema de publicidade que afaste a boa fé daqueles terceiros).1847
Uma outro handicap do registo decorre da circunstância de este apenas poder
funcionar com respeito a bens que consintam a sua individualização, ou seja, o registo
apenas logrará substituir a publicidade possessória relativamente a bens que possuam
uma suficiente identificabilidade1848 ou, noutros termos, quando se trate de bens
perfeitamente identificáveis, não perecíveis, substancialmente estáveis na sua
composição e não facilmente ocultáveis1849 (ou, noutra formulação, aqueles que
possuam um valor económico razoável, tenham uma existência duradoura e apresentem
uma individualidade própria dissociável de outros objectos).1850
1846
Deste modo tornando as aquisições de direitos posteriores ao registo inoponíveis ao credor (ou seja,
caso se trate de um outro credor do empenhante, o seu direito cede perante o do credor pignoratício; caso
se trate da aquisição da propriedade e mesmo que este terceiro tenha sido investido na posse do bem
empenhado, o direito do credor pignoratício prevalecerá, uma vez que o adquirente será considerado de
má fé, pois “non può esistere buona fede nell’acquirente della cosa pignorata, quando la esistenza del
diritto di garanzia è a tutti legalmente nota” – Gino Magri, ob. cit., pág. 21).
1847
Com efeito, uma admissão genérica da prevalência do direito do terceiro adquirente face ao credor
garantido – com a inerente ausência de sequela do direito deste último – poder tornar totalmente ilusória a
garantia do credor.
1848
Vallet de Goystisolo, ob. cit., págs. 214 e 215, destaca que um bem possui a primeira característica
quando se possa individualizar, sem exigência de especiais conhecimentos, “de entre las demás cosas de
su mismo género, preferentemente mediante una matrícula, perfectamente organizada, que recoja el
género completo y numere todos sus ejemplares junto a sus correspondientes caraceterísticas”, enquanto
a importância económica resulta de o comércio jurídico não “quedar perjudicado porque se imponga
como una necessidad el examen del correspondiente registro de cargas”, apontando as aeronaves como o
protótipo do bem que preenche ambos os pressupostos.
1849
Enumera estes requisitos Fernández del Pozo, ob. cit., págs. 100 e 101 (já Carlos de Cores e Enrico
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 83, entendem que a generalidade dos bens móveis, atenta a sua normal
natureza fungível e a sua fácil capacidade de deslocalização “escapan a la posibilidad de una
determinación precisa que permita construir sobre ellos un verdadero Registro de la Propiedad”).
1850
Destaca estas características Ferrara, ob. cit., pág. 139 e segs., sugerindo que o sistema de publicidade
a criar para os bens móveis abranja a situação jurídica integral deste tipo de coisas – ou seja, incluindo as
transferências da propriedade e a constituição de ónus – sendo organizada de acordo com o princípio da
especialidade, de modo a que “La condizione della cosa mobile deve essere esteriormente riconoscibile
da tutti gli interessati, in modo che i terzi in modo rapido e semplice possano conoscere l’appartenenza
di essa e la libertà da pesi e vincoli o il contenuto di questi”. Guillouard, ob. cit., págs. 94 a 96, sugere
que, para contratos de penhor cujo objecto fossem bens de valor reduzido, manter-se-ia a entrega como
mecanismo de constituição da garantia (assim obviando aos custos e deslocações impostos pelo registo);
quando o objecto do penhor atingisse uma determinada quantia (e sempre que se tratasse de empenhar
créditos), a constituição do penhor far-se-ia através da inscrição da garantia num registo público
(acrescentando que esta inscrição poderia ser efectuada nas circunscrições administrativas, assim evitando
deslocações custos às partes). Propõem um critério ligeiramente diferente Aynès e Crocq, Les sûretés cit.,
pág. 200, apenas excluindo da obrigação de registo aqueles penhores que recaiam sobre bens móveis
corpóreos comuns (ou seja, os que não estão sujeitos a matrícula ou sejam de difícil localização)
475
Por último, não se descura a circunstância de os custos acrescidos inerentes à
sujeição a registo da constituição da garantia desincentivarem o recurso a esta
alternativa quando o valor do bem onerado e/ou da obrigação garantida seja
relativamente elevado, razão pela qual tal formalidade apenas se apresente adequada
para a colocação em penhor de bens cujo valor económico seja suficiente para justificar
tal formalidade restritiva da livre circulação dos bens1851
Com base nestas premissas, serão susceptíveis de publicidade, designadamente
de publicidade registal, entre outros, os navios, aeronaves, automóveis e maquinaria
utilizada na actividade comercial1852 ou outros dotados de uma configuração que os
aparte dos seus congéneres como jóias, quadros ou outras obras de arte de valor
assinalável.
Para além disso, importa considerar que a própria organização do registo não se
apresenta pacífica, existindo várias soluções possíveis, contrapondo-se, essencialmente,
os registos de titularidade ou propriedade e os apenas de ónus:1853 a opção por um ou
outro destes sistemas gera efeitos diversos, nomeadamente quanto ao conflito do titular
dos direitos inscritos com direitos de terceiros.1854
Não espanta, neste contexto, que para os bens não sujeitáveis a registo se tenham
buscado alternativas à necessidade de entrega do bem ao credor pignoratício e ao
1851
Como bem notam Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 82 e segs., a generalização
dos bens susceptíveis de penhor sem desapossamento sujeitos a inscrição no registo, ao impor aos
adquirentes desses bens a consulta do registo antes da aquisição de qualquer direito sobre esses bens corre
o sério risco de conduzir a paralisia do mercado.
1852
Ferrara, ob. cit., pág. 375 e segs., depois de constatar que a publicidade já abrange as categorias
enumeradas, com excepção das máquinas, sugere que, quanto a estas, seja criado um registo, do qual
devem constar, não apenas as transferências de propriedade, como também a constituição de ónus sobre
aquele tipo de bens (relativamente, porém, aos bens que integrem um estabelecimento agrícola,
nomeadamente as sementes e as colheitas, o Autor defende não ser possível separá-los, para efeitos de
constituição de uma garantia autónoma, do imóvel ao serviço do qual se encontram e sem os quais a
produção se torna impossível, concluindo no sentido da “inscindibilità degli strumenti di lavoro dal
fondo, del divieto della loro asportazione e vendita forzata, della inutilità di una trascrizione del
privilegio, che non esclude la buona fede dei terzi”, devendo os credores procurar garantir os seus
créditos onerando os lucros da exploração agrícola).
1853
Alude às diversas forma de organização do registo Luis Fernández del Pozo, ob. cit., pág. 97 e segs..
O Autor distingue, dentro dos registos de titularidade, os registos de propriedade simples (normalmente
utilizados para os bens móveis equiparados aos imóveis, como navios e aeronaves) e o de certificado de
título (em que a titularidade de um bem se incorpora num título, normalmente transmissível) e, no âmbito
dos registos de ónus, os sistemas de inscrição do acordo (no qual o que é registado é o negócio de
constituição da garantia) e o modelo de registo das operações garantidas (idealizado pelo art.º 9.º do UCC
norte-americano), para além de destacar a ausência de publicidade registal que caracteriza determinados
ordenamentos (de que o direito alemão constitui o exemplo paradigmático) e de noutros se misturarem
garantias não possessórias sujeitas e não sujeitas a publicidade registal (como é o caso francês). O sistema
americano, visto por alguns como uma panaceia milagrosa, é alvo de críticas no que respeita à pouco
informação que o registo fornece a terceiros (uma vez que o documento destinado à inscrição – financing
statement – contém apenas indicações genérica, obrigando os terceiros a indagar junto do devedor para
obter informações adicionais e que mesmo o security agreement não obedece ao princípio da
especialidade, quer no que respeita às obrigações garantidas – admitido cláusulas similares às omnibus –
quer no que concerne ao objecto da garantia), contrapondo que as novas tecnologias permitem soluções
técnicas mais eficientes e com menores custos para o terceiro, dispensando-o de indagações adicionais.
1854
Com efeito, nos sistemas de registo de titularidade – ao qual o bem acede aquando da primeira
inscrição de propriedade - o titular de um direito inscrito pode opô-lo a terceiros, mesmo de boa fé e
mesmo nos sistemas onde vigore o princípio da posse vale título, uma vez que os efeitos legitimadores do
registo se sobrepõem à boa fé dos terceiros. Pelo contrário, quando estejamos perante um mero registo de
ónus ou encargos, a necessidade de protecção dos terceiros decorrente da não inscrição dos factos
atinentes à propriedade do bem determina, normalmente, a prevalência da regra da posse vale título, até
porque seria porventura desproporcionado exigir-lhes a consulta do registo quando estejam em causa bens
de diminuta importância (sobre este assunto, Fernández del Pozo, ob. cit., pág. 101 e segs.).
476
próprio registo, passando (para além da possibilidade de entrega a terceiro ou da criação
de uma situação de composse) pelo recurso à tradição simbólica (ou seja, de um
documento que represente a coisa dada em garantia e confira ao credor a sua exclusiva
disponibilidade) ou ao constituto possessório (consentindo que o bem permaneça em
poder do empenhante, o qual não raras vezes é equiparado, após o nascimento da
garantia, a um depositário).1855
Porém, qualquer destes caminhos não só não assegura a cognoscibilidade do
penhor face a terceiros (especialmente no caso do constituto possessório, uma vez que o
bem já se encontrava e continua em poder do empenhante), como, pelo mesmo motivo,
coloca em risco a segurança do credor.
Por estes motivos, sobretudo como forma de reforçar a consistência da garantia,
são normalmente impostas restrições à actuação do empenhante relativamente ao bem
dado em garantia, as quais passam pela inibição de disposição do bem, sem o
consentimento do titular do penhor1856 e pela cominação de sanções – nalguns casos
criminais – contra os actos de diminuição ou dissipação do objecto da garantia.
Outra solução aventada passa pela aposição de marcas físicas em tais bens,
dando nota da constituição da garantia, assim publicitando a garantia e constituindo em
má fé os potenciais posteriores adquirentes de direitos sobre os mesmos bens (os quais
não podem, legitimamente, desconhecer a existência do penhor),1857 tendo tal
mecanismo logrado consagração legal nalguns países (pelo menos em complemento
com outros, como acontece com o penhor sobre material e outillage do direito francês).
Com efeito, a legitimidade deste mecanismo para efeitos de constituição do
penhor – pelo menos para determinado tipo de bens - deriva da publicidade inerente ao
mesmo, assim como do reforço da posição do credor dele decorrente, cumprindo os
1855
Sobre estes meios alternativos de constituição do penhor, vide supra n.º 5.1.1 do Capítulo I.
1856
Por vezes, a própria lei assegura essa indisponibilidade, como sucede no caso dos valores mobiliários
escriturais, os quais, uma vez constituída a garantia, ficam bloqueados e não podem ser objecto de
negociação (sobre este assunto, vide infra n.º 1.2.8.3 do Capítulo II).
1857
Sempre de acordo com Ferrara, ob. cit., pág. 97 e segs., tais marcas podem assumir as mais diversas
formas (timbres de fogo nos animais, de carimbos nos livros das bibliotecas ou a colocação de cartazes),
mas apenas serão susceptíveis de excluir a boa fé dos terceiros adquirentes desde que a marca seja idónea
para chamar a atenção dos terceiros (nomeadamente pelo local onde é colocado e pelas suas dimensões) e
apta a significar que o possuidor não é titular do objecto (sendo ainda necessário considerar o local da
aquisição e a pessoa do adquirente), concluindo que “non basta l’esistenza delle marche ad escludere la
buona fede, ma bisogna provare che l’abbiano effettivamente esclusa” até porque a boa fé se presume.
No que especificamente respeita aos direitos reais de garantia, o Autor nega que tais marcas possam servir
para indicar a existência de tais direitos, pois “non potrebbe aversi pegno, perchè ocorre il trasferimento
del possesso della cosa al creditore o a un tezo per lui: non l’ipoteca, perché ocorre l’iscrizione in
pubblici registri” (ora, salvo melhor juízo, o que se pretende demonstrar é precisamente se a aposição de
marcas físicas pode ou não substituir, para efeitos de constituição do penhor, a entrega do bem ao credor
pignoratício). Admitem, ao menos de iure condendo, a legitimidade deste mecanismo, Vaz Serra, Penhor
cit. in BMJ n.º 58, pág. 133, Guillouard, ob. cit., pág. 107, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 61,
Giuseppe Trapani, ob. cit., págs. 121 e 122 (“per ovviare all’inconveniente dell’immobilizzazione degli
oggetti proponeva che si concedesse il prestito su pegno, lasciando questo in potere del pignorante, il
quale però, desse garanzia di provata onestà e si adattasse a lasciare apporre su di esso un marchio
speciale (…) Questo sistema può considerarsi molto símile alla forma di pubblicità materiale prevista da
talune legislazioni e consistente nell’applicazione di una placa sui beni costituiti in pegno”), Hardel, ob.
cit. págs. 117 e 118 (exemplificando com a separação das mercadorias de outras análogas através da
colocação das mesmas em potes diferentes, indicando as que se encontravam oneradas e, por outro lado,
com a colocação de etiquetas rotulando os produtos onerados: todavia, o Autor esclarece que a
jurisprudência assinala que tais mecanismos “doivent être assez nettes pour ne laisser aucun doute à
quiconque sur la réalité du nantissement opéré”) e Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 43. Contra, Cabrillac e
Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 535.
477
desideratos principais normalmente associados ao desapossamento material do
devedor.1858
Por último, um outra via alternativa à entrega do bem ao credor reside no recurso
ao chamado status loci, isto é, estabelecendo que a colocação ou manutenção dos bens
em determinado local implica a sujeição dos mesmos a um direito real de garantia,
normalmente da titularidade do proprietário de tal local (implicando, pelo contrário, a
deslocação do bem para local a respectiva extinção, o que, continuando o bem em poder
do empenhante, não será difícil de concretizar).1859
O leque de instrumentos utilizados (ou utilizáveis) para dar vida a um penhor (ou
melhor, a garantias mobiliárias não possessórias) parecem infindáveis, não faltando
soluções mais ou menos estapafúrdias, praticadas em algumas regiões, como sejam a
permanência dos bens empenhados em poder do devedor, com o compromisso
assumido por um terceiro de vigiar a laboração dos mesmos (a chamada cláusula “tengo
in potere”) ou a colocação em penhor de cabeças de gado mediante a entrega ao credor
de um recibo do registo dessas cabeças,1860 ao ponto de alguns aceitarem que a
verificação de determinadas circunstâncias relativas os objectos a onerar dispensa, para
efeitos de constituição do penhor, mesmo a aposição de sinais distintivos.1861
1858
Nesta conformidade, Maiorca, ob. cit., pág. 62 e segs., realçando que a publicidade será até mais
evidente que a resultante dos próprios registos (apenas consultados por sujeitos diligentes), enquanto que
o reforço da segurança do devedor decorre da criação de má fé para os terceiros adquirentes de direitos
sobre os bens empenhados: daí que o Autor conclua “Il sistema del marchio avrebbe infatti il suo
principale campo di applicazione riguardo a cose pertinenti all’agricoltura e ad altre industrie: cose che
sono per lo più destinate a una certa stabilità e inamovibilità. Nè sarebbe, d’altra parte, da escludersi
che a un contrassegno sulla cosa pignorata presso il debitore, si associ anche una qualsiasi altra forma
di individuazione e relativa registrazione publica”. O Autor, ob. cit., pág. 69, dá mesmo conta da
existência, nos direitos suíço e austríaco, de garantias constituídas através da impressão de marcar de fogo
nos animais empenhados, embora assumindo algumas reservas quanto à impossibilidade de alienar os
bens onerados consagrada em qualquer das duas legislações).
1859
Alude a esta alternativa, Ferrara, ob. cit., pág. 100 e segs., concretizando que, quando assim é, o status
loci funciona como uma forma de publicidade, na falta da qual o direito não surge, operando a
deslocalização do objecto a extinção do direito (em termos análogos ao que sucede com a perda da posse
do bem empenhado por parte do credor, que também determina a extinção da garantia).
1860
Alude a estas duas figuras Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., págs. 74 e 75, concretizando que a
primeira, utilizada na região da Puglia para o penhor de amêndoas descascadas, prevendo-se que o
terceiro recebesse as chaves do local onde os bens se encontravam e assumisse as obrigações de um
depositário (não lhe sendo lícito proceder à sua entrega ao empenhante senão com autorização do credor);
quanto à segunda, praticada na Sicília, socorria-se do ficheiro anagráfico dos animais previsto na
legislação local, no qual deveriam ser inscritos, após a aposição de uma marca de fogo, todos os animais
bovinos e equídeos (embora a Autora questione se esta garantia não constituirá uma hipoteca mobiliária).
Também Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 11 e segs., dá conta de práticas consuetudinárias (que
normalmente consistem na concessão de empréstimos contra a apresentação de determinados
documentos, que não títulos de crédito) que desembocam na concessão de garantias pignoratícias
imperfeitas “in quanto il pegno o non è costituito nel rispetto delle norme di legge o assume aspetti non
condivisi dalla dottrina”: entre estas operações contam-se os empréstimos atribuídos contra a
apresentação do certificado de registo dos animais empenhados ou do citado um documento “tengo in
potere” ou, finalmente, contra a dação em penhor de bens sujeitos a controlo e depósito alfandegário
(através da notificação às entidades aduaneiras do acto de constituição em penhor),
1861
Maiorca, ob. cit., pág. 63 e segs., alude aos bens que se encontrem ao serviço de um imóvel ou de
uma exploração industrial com carácter de estabilidade, uma vez que “si tratta di casi in cui vale lo stesso
pressuposto di fatto della sicurezza di un creditore che abbia iscritto una ipoteca fondiaria. Ancor qui,
per un lato, è attuata la possibilità del controllo sull’oggetto del pegno e, per altro lato, è mantenuto il
possesso nel debitore, salvaguardandosi la fondamentale necessità di conciliare le esigenze del credito
con quelle dell’economia familiare (fondi urbani) o agricola (fondi rustici) o industriale (aree edilizie,
opifici, ecc.)”.
478
Depois de traçado este panorama geral dos inconvenientes do desapossamento
do constituinte do penhor e das principais vias alternativas de constituição de garantias
mobiliárias não possessórias, importa dissecar quais as soluções adoptadas, a este
respeito nos diversos ordenamentos.
1.2.1 - Itália
1862
Essencialmente no que se refere ao penhor de presuntos, cuja dação em penhor se efectua através da
aposição de um sinal e de uma inscrição no registo (Francesco Magni, Il pegno omnibus e il pegno
fluttuante o rotativo, in Le garanzie rafforzate del credito (organização de Vincenzo Cuffaro), UTE,
Torino, 2000, pág. 383, salienta que se trata de compatibilizar a necessidade de obtenção de crédito por
parte do industrial – oferecendo em garantia bens alvo de transformação -, sem o privar da continuação do
processo produtivo sobre esses mesmos bens) e ao penhor sobre instrumentos financeiros
desmaterializados e/ou integrados num sistema de gestão centralizado (acerca desta última categoria de
bens e do modo de constituição de penhor sobre eles, vide infra n.º 1.2.8.5 do Capítulo II).
1863
Ou, como afirma Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., págs. 159 e 160, “Nell’ordinamento
italiano è assente una disciplina organica che (…) consenta la costituzione di garanzie sui beni aziendali.
Gli interventi del legislatore volti a favorire le garanzie sui beni aziendali sono stati per molto tempo
frammentari e settoriali e soprattutto non hanno mirato ad una riorganizzazione complessiva della
disciplina delle garanzie mobiliari”. Neste contexto e no que especificamente respeita às garantias sobre
mercadorias e matérias primas, Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 46 e segs., “A tale ordinamento sono
stranee, sia l’esistenza di un’articolata pluralità di garanzie sulle merci, sia l’estensione di tale garanzie
ai prodotti ottenuti con la trasformazione delle merci operata dall’imprenditore, nonchè, in ultimo, ai
crediti di cui l’imprenditore stesso diviene titolar in seguito alla loro vendita”.
1864
Assim, Annalisa Liuzi, ob. cit., pág. 64, nota 34, dá conta que o ordenamento italiano, ao contrário de
outros (maxime do francês e, principalmente, do germânico) não havia conseguido aligeirar a exigência
de desapossamento do devedor. No mesmo sentido, Luca Enriques, ob. cit., págs. 759 e 760 (salientando
que as intervenções legislativas no sentido da supressão do desapossamento eram apenas sectoriais, ora
respeitando apenas a determinados bens, como os presuntos - vide a Lei n.º 401, de 24/7/1985 – ora
quanto a bens integrados em sistemas de gestão centralizada, como alguns instrumentos financeiros) e
Fabrizio Maimeri, Trust cit., págs. 2 e 3 (reforçando que o ordenamento italiano se mantém fiel à regra da
necessidade de desapossamento do devedor, existindo excepções limitadas – sobretudo relativamente aos
títulos desmaterializados ou alvo de uma gestão centralizada, não nascida “da un’esigenza di modificare il
meccanismo dello spossessamento, bensí della presa d’atto (…) del progressivo venir meno della
materialità dei titoli” – que apenas confirmam a regra, conduzindo esta situação a uma “rarefazione
delll’utilizzo, nell’ambito dei rapporti di impresa, della garanzie pignoratizie e da quella particolare
operazione di credito che su di essa si basea, vale a dire della antecipazione bancaria”).
1865
Qualifica o sistema italiano nestes termos Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 305 e segs.,
destacando, de entre os aspectos formais, os requisitos impostos como condição de validade,
oponibilidade e execução das garantias e, no que concerne às normas proibitivas, os limites à autonomia
privada que das mesmas decorre. Exemplo acabado deste status quo é o regime civilístico do penhor,
“anchilosato dal requisito dello spossessamento, grazie al quale esso viene confinato nella prassi ai beni
cosiddetti di secondo grado e particolarmente alle azioni di società, ai crediti e ad altri strumenti
finanziari, a tutti beni, insomma, che rappresentano la ricchezza goduta ed utilizzata in altre forme, e
rispetto ai quali, per conseguenza, il requisito dello spossessamento rappresenta un impaccio di grado
minore” (apresentando-se, desta forma, em contradição com a cada vez maior abertura à empenhabilidade
de bens não identificáveis individualmente) e sujeito a forma escrita, com data certa, como condição de
atribuição do direito de preferência (e da correspondente identificação do objecto empenhado e do crédito
garantido, limitando a primeira o penhor de coisa futura e o efeito rotativo da garantia e condicionando, a
479
Para além dos valores mobiliários e do penhor financeiro (embora este último
tenha resultado, como se sabe, do imperativo de transposição de directivas
comunitárias),1866 o diploma sectorial mais inovador (no que tange à supressão do
desapossamento) é a Lei 24 de Julho de 1985, n.º 401, relativa à constituição de penhor
sobre presuntos com denominação de origem controlada - posteriormente alargado aos
produtos lácteos de fabricação caseira de origem e de longa cura1867 - no qual se afastam
dois dogmas do regime do penhor, o desapossamento (uma vez que os bens
permanecem poder do empenhante durante todo o processo de fabricação) e a
impossibilidade de prolongamento, sem efeitos novatórios, da garantia para o produto
resultante da metamorfose a que estes se encontram submetidos no âmbito de um
processo de transformação ou laboração.
segunda, a tutela de posteriores créditos do mesmo credor: deste modo, a utilização das extensões
horizontais e verticais da garantia, praticadas no ordenamento alemão, tornam-se inviáveis). Todavia, a
Autora não deixa de enumerar alguns aspectos positivos da evolução recente, como sejam o
reconhecimento legal da securitização (que, embora limitado aos créditos, consagra um reconhecimento
das transferência com fim de garantia e, por outro lado, põe fim a qualquer dúvida relativamente à licitude
da cessão de créditos em garantia) e de algumas modalidades de trusts. Também Rojo Ajuria, La
unificación del derecho de las garantias mobliarias. La experiencia del derecho comparado, in Tratado de
garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996, pág. 63, considera o sistema
italiano, até por comparação com o francês e, sobretudo, o alemão, muito avesso à introdução de novas
figuras não enquadráveis na tradicional dicotomia penhor/hipoteca, nomeadamente a institutos de
natureza fiduciária (com fundamento, essencialmente, na violação da proibição do pacto comissório).
1866
Albina Candian, La directiva num. 2002/47 en materia de garantías financieras: el futuro de las
garantías reales mobiliarias en Europa, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena
Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 236, escreve que o modelo tradicional italiano
– baseado por princípios mais ou menos rígidos, como a proibição do pacto comissório e a invalidade das
garantias fiduciárias – é afastado no domínio financeiro, o que fará perigar os pilares essenciais do
modelo tradicional.
1867
Através da Lei de 27 de Março de 2001, n.º 122, que introduziu modificações na lei que regula os
sectores agrícola e florestal - Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 51 (este Autor auspicia que esta norma,
embora de carácter sectorial, possa representar “l’incipit di un nuovo atteggiamento del legislatore, che,
confermando la possibilità di costituire un pegno prescindendo dallo spossessamento, riconosce una
terndenza tanto diffusa (a livello europeo e statunitense) quanto necessaria”). A mesma esperança era já
evidenciada por Antonio Fontana, ob. cit., pág. 98 e segs., advogando a aplicação de um regime análogo
ao dos presuntos – em particular na parte em que derroga a indispensabilidade do desapossamento do
devedor - para os frutos em processo de maturação, para a secagem das pescas, para o curtimento das
peles e, em geral, para todos os produtos que exijam um período de permanência em locais especialmente
apetrechados para o efeito (vinhos, queijos, etc.), mas não sem que o Autor alertasse para o risco de, desse
modo, favorecesse a criação de “microsistemi, col rischio che solo i produttori riuniti in potenti (…)
corporazioni riescano ad ottenere dalla classe politica, ovviamente in cambio dei loro voti, una legge
fatta su misura per loro” (a alternativa passaria rever o regime do penhor constante do CCI no sentido de
deixar às parte a liberdade de proceder ou não ao desapossamento do devedor e impondo-lhes o recurso a
meios publicitários idóneos, mas sem imposição de nenhum em particular) e por Serafino Gatti, Il credito
cit., pág. 201 e segs. (embora alertando para o risco da multiplicação de fragmentação normativa e
estabelecendo um limite no caso em que exista uma dificuldade de identificação da matéria prima ou do
produto transformado, nomeadamente quando os bens sofram transformações tais que se tornem uma
unidade incindível com outros materiais, como sucede com a fusão de metais, a confecção de vestuário ou
nas linhas de montagem). Também Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 96, nota 147, enumera
outros bens cujo processo de transformação requer a manutenção em locais especialmente equiparados
e/ou preparados, como sejam os queijos, os vinhos, a secagem do pescado ou a curtição de peles
(advogando, em conformidade, o alargamento do regime previsto para os presuntos a estes bens). Por
último, o mesmo Antonio Fontana, ob. cit., págs.99 e 100, conclui que este diploma introduziu uma nova
classificação de bens (mais relevante e actual do que aqueles que apartam os bens móveis dos imóveis e
os sujeitos e não sujeitos a registo), distinguindo entre os bens de cuja disponibilidade o devedor se possa
ou não privar (incluindo nestes últimos os afectos à sua actividade profissional e muito embora
reconhecendo que esta classificação apresenta algum grau de subjectividade).
480
Nos termos deste diploma, a garantia pode surgir através da aposição, por
iniciativa do credor pignoratício e em qualquer fase de laboração,1868 de um especial
sinal na coxa do presunto,1869 juntamente com a inscrição nos registos anualmente
criados1870 - publicidade esta que assume natureza constitutiva1871 - ocorrendo a
extinção em termos semelhantes.1872
1868
Como esclarece Antonio Fontana, ob. cit., págs. 82 e 83, a fase de laboração começa com a aposição,
nos termos da legislação específica, de uma marca inicial na carne suína (embora o Autor admita até o
contrato de penhor seja acordado em momento anterior à entrada da carne no estabelecimento do devedor,
ficando, neste caso, a sua eficácia suspensa até à colocação daquela marca) e termina com a colocação de
uma outra marca que confere a denominação controlada.
1869
Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 158 e Il pegno anomalo cit., pág. 19 e Giorgio Costantino e
Antonio Jannarelli, Commento alla legge 24 Luglio 1985, n.º 401, in Nuove Legge Civile Comentate, n.º
9 (1986), pág. 545. De acordo com estes Autores, a publicidade é assegurada através do sinal a colocar no
objecto dado em garantia e que, nos termos do decreto ministerial que veio desenvolver o regime legal,
deve conter uma tinta indelével e deve permitir a individualização do credor (através de uma sigla de
identificação – e das várias operações a levar a cabo – através da indicação de um número progressivo).
1870
Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 158 e Il pegno anomalo cit., pág. 19 e Giorgio Costantino e
Antonio Jannarelli, ob. cit., pág. 545, asseguram que o credor, no momento da colocação do timbre, deve
proceder à inscrição da garantia no registo conservado pelo devedor, um para cada credor. Para além
disso, o credor deve assegurar-se que se trata de produtos que já apresentem a denominação de origem
exigida por lei, para o que deve verificar, através dos livros obrigatoriamente detidos pelo empenhante, a
consistência das partes objecto de penhor, assegurando a inscrição da garantia nesses mesmos livros (esta
inscrição – que deve fazer alusão à data em que foi efectuada, ao nome do credor pignoratício e ao
número progressivo da operação – assume especial relevância pois, face a terceiros, pode constituir prova
da data do surgimento da garantia - ao contrário do que sucede com a simples aposição do sinal no
presunto e com o registo individual de cada credor – até porque tais livros encontram-se sujeitos a
controlo por parte das organizações de produtores). Em suma, como salientam Giorgio Costantino e
Antonio Jannarelli, ob. cit., págs. 545 e 546, existem dois registos, um, individual, para cada credor (que
constitui um mero documento particular, detido por cada um dos devedores); e outro decorrente das leis
sobre presuntos a denominação controlada, assumindo este último uma relevância especial, pois dele
constam as indicações relativas aos diversos credores com garantias sobre o mesmo bem, assim como à
propriedade do mesmo (até porque, como salienta Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 99, nota
152, este segundo registo, ao contrário do primeiro, não é um mero documento privado e, por isso, pode
servir de prova da certeza da data da constituição da garantia face a terceiros). Porém, estes dois registos
– e em particular este último – não partilham integralmente das características dos registos públicos, uma
vez que não são detidos e geridos por instituições públicas (mas sim pelo devedor e pela sua organização
interna ainda que, no caso do segundo, sob a supervisão das organizações de produtores), nem são de
acesso público (pois nenhuma norma obriga o devedor a facultar a sua consulta a qualquer interessado,
até porque pode ser do interesse do devedor não tornar público o seu grau de endividamento) – destaca
este aspecto Antonio Fontana, ob. cit., págs. 78 e79.
1871
Sobre este assunto, vide Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 23, nota 42. Como afirma Antonio
Fontana, ob. cit., págs. 80 e 81, na ausência do cumprimento de tais formalidades a garantia não surge,
nem sequer entre as partes (contudo e no que se refere ao registo, o mesmo Autor reforça que a natureza
não pública do mesmo – vide nota anterior – faz com que o credor desta garantia, ao invés do que sucede
com as hipotecas, não tenha um direito potestativo à inscrição do seu ónus - uma vez que, apesar de, tanto
a aposição da marca, como a anotação no registo, tenham lugar “a cura del creditore pignoratizio (…)
una certa collaborazione del debitore sarà pur necessaria. Abbiamo visto, infatti, che sia i prosciutti in
corso di stagionatura, sia i registi, si trovano presso il suo stabilimento. Quanto meno, egli dovrà dunque
consentire al creditore l’accesso in loco, ed esibirgli i resgistri stessi” - mas apenas um direito de crédito
que tem por objecto uma prestação de facere por parte do devedor, cujo incumprimento originará a perda
do benefício do prazo por parte deste). Sendo certo que, quanto à sua eficácia inter partes, esta decorrerá
da aposição da marca indelével na coxa do porco e da inscrição no registo, importa determinar se, atenta a
ausência de desapossamento, para a garantia produzir efeitos face a terceiros – nomeadamente a outros
credores do empenhante – será necessária a observância dos requisitos formais, designadamente o
documento escrito com data certa contendo a suficiente indicação do crédito e do objecto empenhado, a
que a lei civil subordina a atribuição do direito de preferência (responde negativamente Serafino Gatti, Il
credito cit., págs. 189 e 190, alegando que este diploma prevê uma especial forma de publicidade para
tornar oponível a terceiros a existência de um ónus sobre um bem em processo de transformação, tanto
481
O surgimento deste regime inovador é explicado pela específica natureza do
quid onerado,1873 merecendo, pelo seu cunho renovador, algumas considerações
adicionais.
Desde logo, o seu âmbito de aplicação é duplamente restringido, quer quanto ao
objecto da garantia,1874 quer relativamente ao devedor da obrigação assegurada (rectius,
mais que inscrição no registo preenche os requisitos exigidos pela lei geral para essa mesma
oponibilidade). Por último, cabe recordar que o cumprimento das formalidades publicitárias não
convalida uma eventual invalidade do título para constituição da garantia (assim, Antonio Fontana, ob.
cit., pág. 83).
1872
Ou seja, através da anulação do registo da garantia (a cargo do credor) e da marca colocada no bem
empenhado (nos 3 dias após o pagamento do débito). Apesar de a lei não o dizer expressamente, parte da
doutrina assegura que, tendo em conta a ratio do preceito (eliminação do ónus e recuperação da livre
disponibilidade do bem por parte do seu proprietário), estas obrigações do credor subsistem em qualquer
caso de extinção da obrigação principal e não apenas do cumprimento desta. Para além desta, duas outras
dúvidas surgem: se o prazo de 3 dias para proceder à anulação da marca será válido também para a
anotação no registo que, em termos lógicos, deverá preceder a anulação daquela marca (parecendo, por
isso, que em tal prazo deverão ser efectuadas as duas operações); e, por outro lado, se ao credor poderão
ser imputadas responsabilidades pela não atempada realização destas formalidades (admitindo-se que sim,
desde que o devedor demonstre que tal omissão lhe provocou danos) - acerca destas questões, vide
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 24, nota 43. Outras causas de extinção, privativas desta garantia, são
a perda das qualidades subjectivas, quer de produtor que o devedor deve possuir, quer do objecto onerado,
uma vez que tais características se deverão manter até ao final do processo de transformação dos
presuntos e da execução de garantia (neste sentido, Giorgio Costantino e Antonio Jannarelli, ob. cit., págs.
546 e 547, sustentando que quando “venga meno il sigillo e le cosce di maiale già individuate non
possono più trasformarsi in prosciutti a denominazione d’origine tutelata, si estingue anche il pegno su
di esse costituito”, sem prejuízo da possibilidade de, encontrando-se o bem onerado coberto por seguro, o
qual não é obrigatório neste caso, as somas devidas pelo segurador deverem ser pagas ao credor
garantido, nos termos do art.º 2742.º do CCI).
1873
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 19, o produto em questão, diferentemente do que sucede com
outros, “richiede la conservazione in appositi locali presso l’impresa sotto la sorveglianza continua di
personale specializzato e preclude in tal modo la consegna al creditore o al terzo que realizzi
quell’impossessamento che è coessenziale alla natura reale del contratto di pegno” (todavia, mesmo para
estas outras mercadorias e matérias primas, o Autor - vide pág. 25, nota 45 - dá conta de cláusulas
contratuais prevendo a extensão do penhor, sem efeitos novatórios, ao produto da transformação daqueles
produtos e, no caso de os bens onerados serem não determinados, o seu depósito juntamente com outras
do mesmo género, incidindo o penhor sobre o direito à restituição de mercadorias do mesmo género e
quantidade das inicialmente empenhadas). Não fora o surgimento deste regime especial e a dação em
penhor deste tipo de bens teria que fundar-se na criação de uma situação de composse (nomeadamente
através da manutenção dos bens nas instalações do devedor, mas com a nomeação, por parte do credor, de
uma pessoa da sua confiança para assegurar a integridade do objecto da garantia) ou do depósito em
armazéns gerais (embora este mecanismo seja especialmente apropriado para mercadorias importadas,
mas não para as sujeitas a transformação, pois estas carecem frequentemente de ser sujeitas a
determinadas operações que apenas poderão ser levadas a cabo nas instalações do empenhante). De
acordo com Giorgio Costantino e Antonio Jannarelli, ob. cit., pág. 543 e segs., as características deste
bem (em especial o longo período de cura em locais climatizados sob vigilância de pessoal
especializado), tornam impossível a entrega a terceiro e, por arrastamento, o desapossamento (em termos
aproximados, Clementina Scaroni, ob. cit., pág. 411, Giuseppe Martino, ob. cit., págs. 46 e 47 e Mario
Vellani, Un caso particolare di costituzione di pegno, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile,
Ano XL (1986), pág. 366 e segs. e Antonio Fontana, ob. cit., pág. 70 e Serafino Gatti, Il credito cit., pág.
184).
1874
Segundo Antonio Fontana, ob. cit., pág. 70, nem todos presuntos se enquadram nesta categoria, mas
somente o de Parma, de S. Daniele del Friuli e o Berico-euganeo. Os diplomas que regulam, entre outros
aspectos, a atribuição desta denominação delimitam a zona de produção, as características do produto, as
várias fases do ciclo produtivo, os elementos que podem ser usados na produção e a duração mínima da
cura (para além de estabelecer que e vigilância do cumprimento destas regras será da competência de um
consórcio de produtores).
482
constituinte da garantia),1875 mas não no que concerne ao credor ou aos fins perseguidos
com o contrato de financiamento.1876
Mas o aspecto que merece um olhar mais detalhado, em razão do seu carácter
inovador, centra-se na ausência de desapossamento do empenhante, sendo este
substituído por um mecanismo que combina uma inscrição no registo com a aposição de
uma marca física no bem onerado: ora, tendo precisamente em conta estas
especificidades, discute-se a natureza jurídica da garantia, oscilando entre quem a
considere como um verdadeiro penhor1877 ou, ao invés, uma nova garantia mobiliária
sobre coisas futuras.1878
1875
Antonio Fontana, ob. cit., pág. 75, apesar de reconhecer que a lei teve em vista a hipótese típica de a
figura do constituinte da garantia coincidir com a do devedor, admite que um sujeito reentrante na
definição legal de empenhante possa constituir uma garantia a favor de outrem, ou seja, para assegurar
financiamentos atribuídos a terceiros, produtores ou não (baseando-se no facto de a lei, apesar de não se
referir a esta possibilidade, não a excluir expressamente, sendo por isso aplicável o regime geral do
penhor, por força da remissão contida no art.º 7.º), posição esta subscrita por Gabrielli, Il pegno anomalo
cit., pág. 18, nota 31). Já Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 47, entende que caso um produtor tenha
entregue o bem a terceiro para que este o conserve e efectue a respectiva transformação não pode
socorrer-se desta garantia específica, uma vez que a constituição do penhor poderá ocorrer através de
entrega a um terceiro, precisamente o sujeito que já detém o bem.
1876
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 17 e segs., assinala que, nos termos do art.º 1.º do diploma, o
devedor terá que um operador qualificado (entendido este como aquele que desenvolva todas as
actividades de laboração do produto, desde a fase da salga até à cura), sendo esta restrição justificada pela
intenção do legislador, expressa na proposta de lei, de “concedere, ad una particolare categoria, la
possibilità di utilizzare strumenti di accesso al credito che altri privati operatori possono da molto tempo
agevolmente praticare, in quanto il prodotto non è in loro possesso ma dei terzi in conto di lavorazione”.
Todavia, como bem nota Antonio Fontana, ob. cit., pág. 75, nenhuma restrição existe quanto à natureza
da empresa (comercial ou agrícola), à sua dimensão (pequenas, médias ou grandes explorações), nem tão
pouco se exige que o débito a garantir tenha relação directa com a actividade empresarial (invocando
mesmo o Autor que pode ser constituído em garantia de obrigações conjugais). Tendo em conta este
quadro, o Autor conclui que a especificidade respeita à garantia, mas não ao crédito em si (no mesmo
sentido, Giorgio Costantino e Antonio Jannarelli, ob. cit., pág. 546). Esta limitação, ao restringir o acesso
a esta garantia aos detentores das qualidades definidas na lei, fazendo apelo a um determinado status,
pode funcionar como “strumento di discriminazione, ponendosi in conflitto, quanto meno potenziale, col
principio d’uguaglianza” (neste sentido, Antonio Fontana, ob. cit., pág. 74). Relativamente ao credor,
poderá ser qualquer um, mesmo outro produtor, não obstante a lei ter pensado essencialmente nos
financiamentos bancários (assim, Antonio Fontana, ob. cit., pág. 76 e Serafino Gatti, Il credito cit., pág.
188).
1877
Esta posição, defendida nomeadamente por Antonio Fontana (ob. cit., pág. 94 e segs.), tem a seu
favor o art.º 7.º da Lei (que manda aplicar, enquanto compatíveis, à garantia por ela criada todas as
normas do Código Civil relativas ao penhor, omitindo qualquer referência à hipoteca), embora o Autor
admita não só que alguns preceitos do regime geral da hipoteca sejam aplicáveis (enquanto este instituto
contém regras gerais aplicáveis às garantias reais em geral), como que algumas normas do penhor
civilístico não encontrem aplicação (designadamente as que pressuponham o desapossamento do
empenhante). No mesmo sentido e socorrendo-se dos mesmos argumentos, Francesco Dell’Anna
Misurale, ob. cit., págs. 102 e 103 e Serafino Gatti, Il credito cit., págs. 186 e 187. Alude a esta
controvérsia, sem tomar posição, Piscitello, Le garanzie bancarie flottanti, Giappichelli Editore, Torino,
1999, pág. 6, nota 11.
1878
De acordo com este entendimento, esta garantia comunga de elementos do penhor e da hipoteca
mobiliária, sendo por isso forçoso recorrer igualmente às normas que regem esta última, notando, ainda,
que a principal diferença face ao regime geral do penhor reside, não tanto na simples ausência de
desapossamento, mas sobretudo na possibilidade de criação de vários ónus sobre o mesmo bem (contra,
Antonio Fontana, ob. cit., pág. 77, constatando que tal possibilidade decorre já do regime geral do penhor,
embora com as limitações decorrentes da obrigatoriedade do desapossamento do empenhante); enquanto
as diferenças relativamente ao regime da hipoteca – no qual a garantia incide sobre bens já identificados
anteriormente à inscrição no registo e ao surgimento do direito de preferência - prendem-se com o facto
de nesta garantia sobre os presuntos se tratar de bens “la cui individuazione e registrazione è soltanto
occasionata dalla crazione della garanzia” e de, por outro lado, a publicidade não se cingir ao registo,
483
A integração desta garantia no âmbito do penhor, não obstante o afastamento de
algumas das regras desse instituto por parte deste diploma específico, coloca em causa a
unidade conceptual do figura, podendo considerar-se que a entrada em vigor daquele
decreto consagrou uma outra figura de penhor, estruturalmente diversa,1879 sem que tais
especificidades sejam de molde, de acordo com a mesma perspectiva, a aproximar a
garantia em exegese de outras que prescindam do desapossamento do devedor,
designadamente da hipoteca.1880
Naturalmente que, mesmo adoptando a qualificação desta particular garantia
como penhor, tal não significa a aplicação integral do regime civilístico deste, sobretudo
porque, em consequência da ausência do desapossamento, alguns dos aspectos dessa
exigindo ainda a aposição de uma marca física no bem onerado. Esta posição é defendida por Giorgio
Costantino e Antonio Jannarelli, ob. cit., pág. 543, afirmando tratar-se de uma garantia “a metà strada tra
il pegno e l’ipoteca mobiliare” ou “una garanzia mobiliare specifica su beni futuri che mutua elementi
del pegno tradizionale e dell’ipoteca mobiliare”, concluindo ser necessário recorrer às disposições de
ambos os institutos (mais exactamente, às regras do penhor relativamente à realização coactiva da
garantia e de distribuição do produto da alienação executiva; e às da hipoteca em matéria de graduação de
créditos, de sequela, de oponibilidade a terceiros e de modificação do objecto da garantia). Acerca deste
corrente, vide também Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 20, especialmente nota 35, dando também
conta que a mesma é alvo de críticas por ir contra as finalidades pretendidas pela lei e contra o próprio
teor literal desta – cfr. o já aludido art.º 7.º.
1879
Dá conta deste dilema Antonio Fontana, ob. cit., pág. 96. De acordo com este Autor, a ausência de
desapossamento exclui qualquer possibilidade de qualificação do contrato constitutivo deste penhor como
contrato real, pelo que duas soluções se vislumbram: ou, mantendo as normas do Código Civil como
regime geral, se considera existirem agora duas figuras de penhor estruturalmente diversas
(nomeadamente quanto ao desapossamento do devedor e aos mecanismos publicitários); ou, pelo
contrário, se pretende salvar a unidade do instituto, para o que será necessário reconhecer, contra o
entendimento dominante, que o contrato de penhor não é um contrato real quanto à constituição,
admitindo que a aquilo que, no regime geral do penhor, surge apenas com a entrega do bem ao credor é o
direito real de penhor, mas que antes dessa entrega existe já um título para constituição desse direito real e
que, no penhor sobre presuntos, o direito real surge com o cumprimento das formalidades legalmente
previstas para essa garantia (o Autor citado inclina-se para esta segunda alternativa, considerando
existirem, pelo menos, 4 traços que caracterizam ambas as figuras: o direito real resulta de uma fattispecie
de formação progressiva, pressupõe um título, normalmente contratual - que se perfecciona uma vez
prestado o consenso das partes – que, no entanto, não é suficiente para o nascimento do direito real de
penhor, pois a ele deverá acrescer, consoante os casos, o desapossamento do devedor ou o cumprimento
de determinadas formalidades publicitárias). Acerca da nossa posição quanto à natureza jurídica desta
garantia, vide infra n.º 1 do Capítulo III.
1880
Particularmente impressiva, a este respeito, é a exposição de Antonio Fontana, ob. cit., pág. 85 e
segs., invocando o facto de a protecção do credor a quem não for entregue o objecto da garantia ser
assegurada, no caso da hipoteca, através da atribuição ao credor, caso o devedor não proceda às
reparações de que tal bem careça, a faculdade de requer judicialmente a adopção das medidas necessárias
para evitar um prejuízo do bem onerado (cfr. art.º 2813.º do CCI). Ora, no caso da garantia sobre os
presuntos, não existe qualquer remissão para aquele preceito, sendo a defesa da posição do credor face a
possíveis abusos do devedor tutelada através da imposição - cfr. art.º 2.º da Lei - a este das obrigações e
responsabilidade próprias do depositário (embora tal equiparação seja passível de críticas, não apenas
porque a referência à figura do depositário é equívoca, como porque o produtor-devedor é, além de
possuidor, também proprietário e um depósito de coisa própria é inconcebível – ao invés do que sucede
com o credor pignoratício comum e do depositário, que são apenas possuidores e não proprietários – e,
finalmente, porque o objectivo principal do depósito é conservar o bem depositado, mantendo-o no estado
em que se encontrava: ora, ao devedor-produtor “si richiede molto di più. Senza dúbio, egli dovrà anche
vigilare sulle carne suine che si trovano nel suo stabilimento, in modo da scongiurare ogni pericolo di
furto o distruzione. Ma, sopratutto, dovrà adoperarsi affinché (…) la trasformazione di una materia
prima in prodotto finito”, actividade esta que comporta um riso bem superior à mera conservação, até
porque a mera conservação das coxas suínas se torna impossível, precisamente em virtude de as mesmas
serem objecto de transformação).
484
regulamentação terão que sofrer alguns desvios,1881 maxime em matéria de execução da
garantia1882 ou de sanções para alguns comportamentos abusivos por parte do devedor-
produtor.1883
Dúvidas colocam-se, igualmente, a respeito do carácter presente ou futuro do
bem sobre o qual a garantia recai (embora sejamos de parecer que, relativamente a esta
segunda interrogação, a primeira alternativa deva prevalecer)1884 e, finalmente, da
natureza alegadamente rotativa desta garantia.1885
1881
Conforme alerta Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 50, a circunstância de o bem permanecer em poder
do devedor comporta, a este nível, duas consequências: em primeiro lugar, que o dever de custódia,
normalmente a cargo do credor (cfr. art.º 2790.º do CCI), impenda sobre o constituinte (cfr. art.º 2.º da
Lei de n.º 401); depois, que a faculdade de requerer a apreensão do bem, habitualmente atribuída ao
empenhante e exercitável em caso de abuso da coisa por parte do credor – cfr. art.º 2793.º do CCI – seja,
nos termos do art.º 5.º da Lei n.º 401, conferida ao credor e possa ser exercida sempre que o devedor não
respeite as regras de transformação do produto ou em quando se verifique qualquer outro motivo grave
(Antonio Fontana, ob. cit., pág. 91, assevera que ao credor basta prova o não cumprimento, por parte do
devedor, das regras de laboração, sem ter de demonstrar que tal comportamento possa vir a prejudicar o
êxito da transformação). Todavia, esta apreensão, para além de não ser exactamente idêntica à prevista no
regime geral do penhor (pois, embora tendo em comum o carácter sancionatório – e a consequente
entrega do bem a terceiro - neste caso o bem pertence ao seu possuidor), levanta a dúvida de saber a quem
entregar o objecto da garantia até à conclusão do processo produtivo (Antonio Fontana, ob. cit., págs. 92 e
93, entende que os bens apenas poderão ser entregue ao credor quando este disponha dos meios
necessários à continuação do processo produtivo; caso contrário, cabe ao próprio credor – e não às partes
em conjunto, como sucede no regime geral do penhor - designar um terceiro da sua confiança e que possa
desempenhar aquela tarefa). Importa, por outro lado, realçar que, mesmo depois de decretado o
“sequestro” o produtor-devedor conserva a propriedade e o poder de dispor dos bens empenhados, sendo-
lhe apenas vedado entregar esse bem ao adquirente sem o consentimento do credor (nesta conformidade,
Antonio Fontana, ob. cit., pág. 93, acrescentando que a entrega sem este consentimento constitui, por si
só, fundamento para que o credor possa requerer o “sequestro” do bem). Acessoriamente, o credor tem
ainda o direito de inspeccionar os presuntos para controlar a respectiva qualidade e o cumprimento das
regras de transformação - art.º 2.º, n.º 2 – norma esta que Antonio Fontana, ob. cit., pág. 90, interpreta em
sentido amplo, como consentindo, além de um controlo puramente técnico, que o credor possa recolher
diversos elementos relativos às condições económicas da empresa, mesmo tendo em vista a concessão de
futuros financiamentos, tanto mais que o preceito em questão não coloca limites quanto ao direito de
acesso do credor ao estabelecimento do devedor. A atribuição destes direitos ao credor é justificada por
Antonio Fontana, ob. cit., pág. 88 e segs., com a circunstância de, na sequência da constituição do penhor,
o interesse na conclusão do ciclo produtivo deixa de ser privativo do produtor, para passar a sê-lo
igualmente do credor, devendo, por isso, este dispor dos meios adequados para reagir em caso de
inobservância das regras relativas ao processo de transformação, antes de concluído tal processo).
1882
Giorgio Costantino e Antonio Jannarelli, ob. cit., pág. 551, depois de assegurarem que a prioridade
entre os diversos titulares desta garantia é definida de acordo com a data do registo de cada uma delas (no
que consideram ser mais um exemplo da aplicação das regras da hipoteca), sustentam ser impossível
recorrer à auto-tutela ex art.º 2797.º do CCI quando exista mais de um credor com garantia sobre o
mesmo bem, avançando com duas alternativas: “o i creditori si accordano per consentire ad uno solo di
essi di esercitare la autotutela e distribuire il ricavato, oppure sarà necessario seguire le forme ordinarie
del processo espropriativo per giungere alla distribuzione giudiziale”. Por outro lado, o art.º 3.º, n.º 2, da
Lei afirma expressamente a possibilidade de o credor solicitar judicialmente a atribuição em pagamento
do objecto da garantia (nos mesmos termos previstos para o penhor comum).
1883
Nos termos do art.º 9.º da Lei, igualmente justificável à luz da ausência de desapossamento do
devedor, são impostas sanções penais ao empenhador que altere, contrafaça, use ou anule ilicitamente a
marca aposta no objecto da garantia (embora Giorgio Costantino e Antonio Jannarelli, ob. cit., pág. 554,
advirtam que, deste modo, não se criminalizam todos os possíveis comportamentos do devedor tendentes
a diminuir o valor do objecto da garantia).
1884
Com efeito e como salienta Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 20 e 21, nota 320 e 21, nota 37, a
coxa suína, a partir do momento em que o produtor lhe coloque o sinal indicando a sua oneração, é uma
coisa presente, uma vez que o bem “si rileva il medesimo, pur subendo nel corso della lavorazione dei
particolari trattamenti, non ne muta le sue intrinseche ed identificanti cratteristiche morfologiche” (o que
é confirmado pela circunstância de a lei se referir à constituição de penhor sobre uma “coxa suína em
qualquer fase de laboração”, o que, associado ao uso frequente da expressão “presunto”, confirma tratar-
485
A opção por uma ou outras destas configurações alternativas da garantia assume
relevância notória no que concerne ao momento a partir do qual o penhor se tem por
constituído,1886 ao momento em que a garantia produz efeitos face a terceiros
credores1887 ou adquirentes1888, aos meios de defesa utilizáveis pelo credor em caso de
se de um bem já existente). Acresce que, se assim não fosse, seria frustrado o intuito do legislador em
facilitar o acesso ao crédito, porquanto “la garanzia reale non potrebbe essere immediatamente operante,
dovendosi attendere, per il prodursi del suo caratteristico effetto, il venire ad esistenza del bene futuro,
con l’ulteriore aggravio per il finanziatore di trovarsi di fronte ad un’operazione di credito allo scoperto,
dato che i tempi previsti per la stagionatura del prodotto sono relativamente lunghi” (vide, ainda, o
mesmo Autor in Sulle garanzie rotative cit., pág. 103 e segs.). Antonio Fontana, ob. cit., págs. 84 e 85,
assegura que “esiste già una parte separata e ben individuata di materia: precisamente la coscia suina,
che è pur stata oggetto del contratto”, residindo a especificidade apenas na circunstância de, entre a coxa
suína e o presunto final, mediar um processo de laboração e a certificação final da denominação do
produto por parte do órgão competente: se assim é e apesar de coxa suína e presunto final serem dois
produtos diversos, apenas se poderá dizer que o surgimento deste último se encontra sujeito à condição
suspensiva da aposição do último sinal atestante da denominação controlada, desde que fique claro “che
la tutela del creditore pignoratizio durante il periodo di pendenza, non si riduce a quella accordata dal
diritto al titolare di un’aspettattiva”. Em ternos concordantes, Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 48,
Francesco Dell’Anna Misurale, ob. cit., págs. 103 a 105 (salientado esta última que invocação da norma –
art.º 2823.º do CCI – que, relativamente à hipoteca, apenas consente a inscrição da garantia quando o bem
exista, não parece colher, porquanto a ratio de tal preceito reside na impossibilidade de descrever um bem
futuro ainda inexistente, do mesmo modo que não colhe a chamada à colação da norma que sujeita a
constituição do penhor comum ao desapossamento do devedor, pois também este não se pode produzir
sem a existência do bem a empenhar: ora, “le formalità richieste per la costituzione del pegno sui
prosciuti (…) prescindono dalla presenza del prodotto finito; di più, sono pensate proprio al fine di
consentire il suo venire ad esistenza”, tal como sucede com o penhor de créditos e outros direitos,
relativamente ao qual, na medida em que o desapossamento se afigura igualmente desnecessário, “il
pegno di beni futuri si può subito validamente costituire e prende data dalla sua costituzione”) e Serafino
Gatti, Il credito cit., págs. 190 e 191 (considerando não ser plausível que o legislador tivesse querido
favorecer o acesso ao crédito criando uma garantia pouco encorajante para os credores, “in quanto
sottoposta alla condizione sospensiva della conclusione positiva del ciclo prodottivo”, contrapondo que
“l’oggetto della garanzia è costituito da un bene giuridicamente esistente, ma materialmente sottoposto
ad una trasformazione che è in grado di mutarne l’utilizzazione economica”). Contra, Giorgio Costantino
e Antonio Jannarelli, ob. cit., pág. 544 e segs., considerando que o objecto da garantia são os presuntos
com denominação de origem controlada, mas vem constituída, antes do surgimento daqueles, sobre um
bem diverso, as coxas suínas.
1885
Clementina Scaroni, ob. cit., pág. 411 e segs., considera este um dos exemplos de consagração legal
das garantias rotativas pois, em seu entender, “Il vincolo segue il bene nel suo processo di trasformazione
fino a trasferirsi automaticamente sul prodotto finale prosciutto a denominazione di origine tutelata. La
garanzia permane indipendentemente dal mutare dell’oggetto materiale sul quale insiste”, posição
subscrita por Melissa Magnano, ob. cit., pág. 579, nota 20.
1886
Como salienta Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 47, os partidários da tese da garantia sobre bens
futuros acabam por admitir a criação de um crédito não garantido até ao momento do final da cura do
produto (invocando, em favor da tese contrária, a circunstância de a lei aludir à aposição da marca no bem
em qualquer fase de produção, não se compreendendo, por isso, a razão da exclusão da fase inicial da
laboração das coxas suínas).
1887
Para quem advogue a natureza futura deste tipo de garantia, a aposição da marca e o registo são
efectuados (em derrogação do regime civilístico, nos termos do qual a inscrição registal apenas pode
ocorre a partir do momento em que a coisa onerada exista – cfr. art.º 2823.º do CCI, a propósito da
hipoteca) sobre um bem diverso, qual seja, a coxa fresca no momento da salga, com a consequência de
enquanto tal bem não se transformar em presuntos com denominação de origem controlada (produto
final) “il bene oggetto della garanzia non viene ad esistenza e quindi lo stesso diritto di pegno non si
sarebbe costituito, così che ocorre stabilire su chi grava il rischio della mancata trasformazione delle
cosce di maiale in prosciuti” – posição esta citada por Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 21, nota 39.
Pelo contrário, para quem, como nós, defenda que a garantia incide sobre um bem já presente no
momento da constituição, embora sujeito a transformação, os seus efeitos produzem-se imediatamente
após o cumprimento das formalidades legalmente exigidas, assim evitando a existência de um hiato -
486
agressão por parte de outros credores1889 e aos efeitos de uma eventual venda antecipada
do objecto empenhado.1890
487
Excluindo estes regimes específicos, a única tentativa de criação de um modelo
geral de garantias mobiliárias sem desapossamento - o art.º 46.º do Texto Único em
matéria bancária e creditícia, aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 385, de
1/9/1993,1891 que estabelece a possibilidade de a concessão de financiamento bancário
de médio e longo prazo às empresas poder ser garantida por privilégio especial sobre os
bens móveis do devedor1892 destinados à actividade empresarial1893 – tem sido alvo de
diversas críticas, seja quanto à sua qualificação jurídica,1894 seja relativamente à sua
chirografario fino a quando non vengano ad esistenza i beni oggetto della garanzia con la conclusione
del ciclo produtivo”); pelo contrário, quem configure a garantia em questão como incidindo sobre um
bem presente, embora sujeito a transformação, a venda antecipada poderá ser solicitada em qualquer
momento posterior à constituição da garantia, mesmo antes de terminado o ciclo produtivo. Os partidários
do primeiro entendimento, como forma de evitar a colocação do credor numa situação de não poder reagir
contra eventuais actos de diminuição da garantia antes de concluído o processo de laboração, admitem
que o mesmo possa lançar mão de providências conservatórias (como por exemplo, o arresto nos termos
do art.º 5.º da Lei, embora salientando que se trata de uma “tutela cautelare di un diritto di garanzia su di
un bene futuro”, uma vez que “il diritto del quale il creditore chiede la tutela è pur sempre quello di
garanzia relativo al bene non ancora venuto ad esistenza”).
1891
Já o chamado privilégio industrial instituído pelo dlg n.º 367, de 1/11/1944 (relativo à concessão de
empréstimos estatais às empresas no pós segunda guerra mundial), consagrava a possibilidade de a
garantia por ele criada incidir sobre bens móveis e imóveis da empresa, presentes e futuros, incluindo
créditos e também ele suscitava dúvidas de qualificação jurídica (sobre este assunto, vide Gian Bruno
Bruni, La garanzia “fluttuante” nell’esperienza giuridica inglese e italiana, in BBTC, n.º 49 (1986), I, pág.
708 e segs., assegurando que a doutrina dominante o qualifica como um privilégio especial – e não geral
porque não recaía sobre todos os bens do devedor, mas apenas sobre aqueles afectos ao funcionamento da
empresa – embora a jurisprudência se mostrasse hostil à extensão automática da garantia aos bens que
entretanto entrem no património do devedor). Para além disso, o art.º 40.º da Lei de 25/7/1954, n.º 949,
criou um privilégio a favor dos concedentes de crédito às empresas artesanais para aquisições de
instalações e modernização ou aquisição de máquinas (menciona esta norma Francesca Dell’Anna
Misurale, ob. cit., pág. 108, nota 172).
1892
Segundo Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 116, nota 189, o concedente da garantia pode
não ser o devedor, mas, uma vez que a garantia não pode constituir-se senão sobre bens destinados à
actividade da empresa, apenas será admissível concessão por terceiro quando o devedor tenha a
disponibilidade material do bem (por exemplo, quando o terceiro o tenha cedido, a título de leasing, ao
devedor).
1893
Mais em pormenor, sobre instalações e obras existentes e futuras, concessões, bens instrumentais,
matérias primas, produtos em fase de transformação, provisões, produtos finais, frutos, gado,
mercadorias, bens adquiridos com o financiamento concedido e créditos – mesmo que futuros – derivados
da venda dos bens até agora indicados, desde que não inscritos nos registos públicos. A garantia, sob pena
de nulidade, deve constar de acto escrito, no qual devem ser identificados os bens e os créditos onerados,
a banca credora, o devedor, o montante e as condições de financiamento, bem como a soma pela qual o
penhor responde. Para além disso, a garantia deve ser inscrita no registo existente no tribunal do local
onde se encontre o bem a onerar e ainda, seguidamente, no registo dos anúncios legais). Quanto à
graduação destes créditos, eles serão colocados no grau indicado no último n.º do art.º 2777.º do CCI
(assegurando Piscitello, Le garanzie cit., pág. 156, que prevalece sobre as garantias convencionais –
maxime penhores - constituídas posteriormente). Sobre este assunto, vide Giuseppe Martino, ob. cit.,
págs. 53 e segs., Clementina Scaroni, ob. e loc. cit. e Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 97 e segs..
1894
O problema reside na qualificação legal como um privilégio – garantia por natureza de origem legal –
enquanto a garantia em questão é atribuída voluntariamente pelo devedor necessitado de financiamento.
Uma possível forma de contornar esta (ao menos aparente) contradição, passa por distinguir a fonte e o
pressuposto desta garantia, considerando que a fonte continua a ser a lei (que concede às partes a
faculdade de atribuição desta garantia), enquanto a convenção das partes é uma simples condição para a
constituição da mesma (até porque o conteúdo do privilégio é sempre predeterminado por lei),
entendimento este corroborado pelo facto de o art.º 2745.º do CCI admitir que a constituição de alguns
privilégios pode estar sujeita a convenção das partes (aceita esta interpretação Giuseppe Martino, ob. cit.,
págs. 52 e 53). Em termos análogos, Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 89 e segs., distinguindo
entre a fonte e o pressuposto dos privilégios creditórios, concluindo que a fonte e o conteúdo e do
privilégio são sempre pré-determinados por lei, pelo que “alla convenzione delle parti (al pari di quello a
determinate forme di pubblicità) rappresenta la condizione per costituire o esercitare i privilegi, ma non
488
falta de aptidão para resolver as necessidades do comércio jurídico,1895 seja no que toca
às suas contradições internas,1896 seja, finalmente, quanto às suas omissões1897 e à
vale assolutamente quale fattispecie creativa della prelazione, che, nel diritto dei privilegi, rimane
sempre e comunque di esclusiva fonte legale” (convergentemente, Gaetano, I privilegi, Unione topograci-
editrice torinense, Torino, 1939, pág. 52, afirmando que, neste caso, o acordo das partes funciona “non
come causa determinante il privilegio, ma come condizione della sua nascita”): se assim é, não serão
considerados válidos os negócios constitutivos de privilégios, modificativos do conteúdo de créditos
privilegiados ou da ordem de graduação dos privilégios entre si, uma vez que “l’autonomia privata non
ha campo di esplicarsi in questa materia: i privilegi sono tipici e non ne sono ammessi altri all’infuori di
quelli esplicitamente considerati dalla legge”. Todavia, ainda que, por força desta interpretação, se
consiga alcançar a unidade conceptual da figura dos privilégios creditórios, esta mesma unidade enfrenta
outro obstáculo quando este tipo de garantia se encontre sujeito a uma convenção das partes e, sobretudo,
a uma medida publicitária: nesta segunda hipótese, a prioridade entre os diversos créditos privilegiados
deixa de ser aferida em função da qualidade dos mesmos para passar a sê-lo em razão do cumprimento do
mecanismo publicitário. Também Piscitello, Le garanzie cit., pág. 69 e segs., nega que a autonomia
privada possa criar outros privilégios além dos consagrados na lei, embora admita que, relativamente à
norma em análise, o credor possa renunciar à garantia (mas não sem recusar que as partes se possam
contender com a estrutura da mesma garantia – maxime prevendo a cessão do vínculo desacompanhado
do crédito assegurado – pois tal afastaria a ligação incindível entre crédito e garantia que é apanágio dos
privilégios creditórios). Não surpreende, por isso, que alguns Autores qualifiquem tal garantia, não como
um privilégio, mas como uma hipoteca mobiliária (cfr., por todos, Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit.,
pág. 111, constatando que “la purezza legale del privilegio appare inquinata dalla commistione di quella
componente pattizia di cui, in un modo o nell’altro, non può negarsi il ruolo decisivo nel momento della
costituzione”, até porque quando “una cosa cosa mobile individualizzata, pur rimanendo in possesso del
debitore, resta vincolata in forma publica con efficacia verso i terzi, contro i quali si può esercitare il ius
distrahendi, è uno scrupolo da puritani, per non dire un pregiudizio, seguitare a parlare di privilegio o di
pegno, invece di usare il nome adatto che a tale figura si conviene, cioè quello di ipoteca”). No caso do
chamado “privilégio convencional”, a pureza do carácter legal instituto parece inquinada pela necessidade
de um pacto ao qual não se pode negar um papel decisivo na constituição da garantia (a este respeito vide,
Gabrielli, ult. ob. e loc. cit., relatando a existência de posições que, nestes casos, duvidam do
enquadramento destas figuras no âmbito dos privilégios creditórios, uma vez que esta garantia tem como
fonte imediata a lei, dispensando qualquer acordo ou formalidade constitutiva).
1895
Para além deste problema estritamente jurídico, Fabrizio Maimieri, ob. cit., pág. 3, assinala que este
preceito também não resolve o problema do anacronismo do sistema italiano de garantias mobiliárias,
uma vez que “è ancora una fattispecie limtata e soggettivamente circoscritta”, crítica esta parcialmente
retomada por Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., págs. 161 e 162 (apesar de reconhecer que este
diploma permite a constituição de garantias sem desapossamento, em virtude da simples destinação do
crédito ao financiamento da empresa, mas apenas para os financiamentos a médio e longo prazo, não
podendo, pelo contrário, “essere impiegata per i finanziamenti a breve termine”, para além de “il grado
attribuito alla stessa non sempre consente un’efficace protezione della banca finanziatrice nell’ipotesi di
crisi dell’impresa” e, finalmente, impede a extensão da garantia a outros créditos do financiador até um
determinado montante – cláusulas omnibus - , porquanto se requer “l’esatta indicazione dell’ammontare e
delle condizioni del finanziamento”).
1896
Uma vez que o requisito da exacta determinação do objecto da garantia se encontra em contradição
com a circunstância de os possíveis objectos da garantia serem enumerados em termos genéricos
(contemplando até bens e créditos futuros), para além de comprometer a oneração de muitos desses bens e
sugerindo, como solução, que a exacta descrição dos bens deve ser entendida em sentido lato, em função
das características de cada objecto – aludem a esta problemática Giuseppe Martino, ob. cit., págs. 55 e 56,
Anna Veneziano, Le garanzie mobiliari non possessorie, Giuffrè, 2000, págs. 94 e 95 (alegando que a
observância do requisito da exacta descrição se afigura extremamente difícil de alcançar relativamente
aos bens futuros e, especialmente, aos bens adquiridos com o financiamento concedido) e, sobretudo,
Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 98 (este último critica a pré-determinação em abstracto de
parâmetros - ainda mais baseados em técnicas diversas - para a exacta descrição dos objectos onerados,
assegurando ter sido preferível regulamentar a exacta descrição dos bens onerados com base nas
características intrínsecas de cada um dos possíveis objectos da garantia).
1897
Segundo Piscitello, Le granzie cit., pág. 8, existe uma incerteza relativamente às formas de realização
da rotatividade da garantia e à possibilidade de a rotatividade abranger o inteiro acervo de bens que
compõem o património da empresa.
489
oponibilidade da garantia a terceiros não credores do constituinte da garantia,1898 ao
ponto de surgirem dúvidas relativamente à constitucionalidade do preceito.1899
Esta norma procura, assim, responder à necessidade de criação de garantias não
possessórias1900 capazes de permitir a sua ampliação e/ou prolongamento, de modo a
abranger os produtos resultantes da transformação dos bens originariamente
empenhados e/ou os créditos decorrentes da respectiva venda.1901
1898
A inscrição no registo constitui condição de oponibilidade da garantia a terceiros, podendo esta ser
exercida, depois de registada, mesmo contra terceiros adquirentes que hajam adquirido os bens onerados
posteriormente ao registo da garantia (pelo contrário, a garantia não registada, como salienta Piscitello, Le
garanzie cit., pág. 151 e segs., nem sequer pode ser oposta aos terceiros de má fé). As dúvidas residem na
resolução do conflito entre o credor preferente, com garantia registada, e terceiros adquirentes de boa fé
(se estes estiverem de má fé, não há dúvidas quanto à prevalência do direito do credor preferente), mais
concretamente na operatividade do princípio da posse vale título. Na opinião de Clementina Scaroni, ob.
cit., pág. 413 (a aplicação desse princípio justifica-se por estarmos perante uma garantia que recai – ou
pode recair – sobre o conjunto de bens que compõem um estabelecimento comercial), de Piscitello, Le
garanzie cit., pág. 158 e segs. (alegando que a dita regra tutela o adquirente sempre que não exista um
adequado sistema de publicidade dos vínculos sobre uma categoria de bens) e de Francesca Dell’Anna
Misurale, ob. cit., pág. 117 e segs. (admitindo esta Autora que, perante tal circunstancialismo, o privilégio
se transfere para o produto da venda, mas contestando esta cedência da garantia perante os direitos de
terceiros, embora coerente com o sistema de oponibilidade dos direitos constituídos sobre bens móveis,
pois “riduce l’ambito di efficacia del privilegio speciale mobiliare non possessorio”), tal princípio deverá
também valer nesta sede (no mesmo sentido, ainda, Anna Veneziano, ob. cit., págs. 95 e 96). Todavia,
resta ainda determinar quando é que o terceiro se deverá considerar de boa ou má fé, respondendo
Piscitello, Le garanzie cit., págs. 161 e 162, que a boa fé pressupõe a ignorância, sem culpa grave, da
existência do vínculo, de modo que “se in una determinata zona o in taluni settori produttivi, sussiste
un’elevata difusione delle garanzie flottanti legali l’indagine sulla malafede dell’acquirente risulta
particolarmente delicada, perché è plausibile ritenere che rientri nella normale prassi degli affari
un’attività volta ad accertare l’esistenza di vincoli sui beni acquistati. Per contro, nel caso in cui non si
riscontrano tali condizioni può agevolmente riconoscersi la buona fede dell’acquirente e l’inopponibilità
del vincolo” (já Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 127, apesar de desvalorizar a questão –
alegando que, como se trata de uma garantia rotativa, o credor não terá interesse em exercer o direito de
sequela sobre aqueles bens que saem do património do devedor - sugere que a inscrição não é suficiente
para vencer a presunção de boa fé do terceiro, ao menos quando ele seja um cliente final, excepto se este
for um operador especializado).
1899
As dúvidas prendem-se com o facto de este privilégio ser concedido, não tanto tomando em
consideração um determinado crédito, mas a qualidade de um dado sujeito, quando a generalidade dos
ordenamentos jurídicos quotidianos negam a validade dos privilégios pessoais (alude a esta controvérsia
Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 114, nota 184, admitindo que tais dúvidas decorrem da
“configurazione in termini cosi ampi del credito tutelato, legittimando il dubio che l’attenzione del
legislatore si sia puntata, piú che sulla qualità del credito, su quella del creditore”).
1900
Fora do âmbito desta norma, torna-se virtualmente impossível a colocação em penhor deste tipo de
bens, uma vez que o desapossamento do constituinte impede a sua transformação (assim sendo, apenas as
mercadorias importadas ou não destinadas a laboração, que podem ser depositadas a favor de terceiro,
nomeadamente em armazéns gerais, podem ser objecto de semelhante garantia) - Gabrielli, Sulle garanzie
rotative cit., págs. 102 e 103.
1901
Neste sentido, Gabrielli, Garanzie rotative garanzie futtuanti e trust: problemi generali, in www.il-
trust-in-italia.it, pág. 4 e Sulle garanzie rotative cit., pág. 102 e segs. (dando conta que, fora do âmbito de
aplicação desta norma, este alargamento pressupõe a designação de um terceiro depositário, uma vez que
a jurisprudência não aceita a manutenção dos bens em poder do constituinte do penhor, nem mesmo com
a designação de um vigilante da confiança do credor que criasse uma situação de composse). Porém,
como adverte Piscitello, Le garanzie cit., pág. 8, nota 13, a norma em exegese, ao exigir a exacta
indicação do montante e das condições do financiamento, veda que a garantia por ela prevista possa servir
de fundamento para a criação de um privilégio omnibus que abrangesse todos os créditos que resultem de
financiamentos a médio e longo prazo por parte da entidade financiadora, mesmo que até um montante
determinado.
490
A natureza genérica desta norma decorre de a mesma ser aplicável a qualquer
tipo de financiamento concedido por uma entidade bancária a qualquer empresa, desde
que a duração do contrato exceda 18 meses.1902
No parecer de alguns, a norma em questão, tendo especialmente em conta o seu
quid, constitui (mais um) reconhecimento legal das garantias rotativas1903 - com
1902
De acordo com Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., págs. 96 e 97, este diploma criou uma garantia
convencional não possessória sobre bens móveis e créditos, que pode ser constituída como contrapartida
de qualquer financiamento (prescindindo da sua forma técnica) concedido por qualquer entidade
financeira a favor de qualquer empresa (comercial, agrícola, pública) e que poderá ser outorgada, não
apenas pelo devedor, mas igualmente por terceiro.
1903
É a posição de Clementina Scaroni, ob. cit., pág. 413 (para quem “le merci potranno essere vendute e
trasformate e la garanzia insisterà sulle nuove merci entrate a far parte del magazzino dell’impresa
finanziata oppure sui prodoti risultanti dalla trasformazione delle stesse. Inolte, il privilegio ex art. 46
potrà gravare anche su beni acquistati con il finanziamento garantito o su crediti, anche futuri, derivanti
della vendita dei beni oggetto del vincolo. Tale privilegio non è dunque ancorato alla materialità del
bene e non necessita di rinnovazione ogniqualvolta passi as insistere su un nuovo oggetto. La garanzia
rimane in vita con le caratteristiche previste al momento della sua costituzione, fino all’estinzione del
credito”), de Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 99 e segs. (considerando que a simples
enumeração de alguns bens como possíveis objectos de garantia – matérias primas, produtos em processo
de laboração e mercadorias – “sembrerebbe far propendere proprio verso una qualificazione del vincolo
in questi termini. Del resto (…) una garanzia non possessoria sui beni dell’attivo circolante, per la sua
stessa natura, non può non essere rotativa, e quindi non estendersi, nei limiti di valore della consistenza
originaria, ai beni che successivamente entrino a far parte del patrimonio del debitore, sia quali nuove
acquisizioni, sia quali risultato della lavorazione di materie prime già sussistenti nelle rimanenze”, do
mesmo modo que a imposição legal de uma exacta descrição dos objectos a onerar parece indiciar a
necessidade de prévia identificação – em relação às modificações posteriores – do objecto da garantia), de
Piscitello, Le garanzie cit., pág. 7 e 62 e segs. (alegando que a norma permite às partes “costituire
garanzie flottanti in virtù della semplice destinazione del credito al finanziamento dell’impresa, senza che
siano necessari ulteriori requisiti delle parti dell’operazione”, realçando, por outro lado, o alargamento
da garantia a todos os bens adquiridos com o financiamento) e de Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit.,
pág. 118 e segs. (destacando que se trata de bens sujeitos a rápidas transformações e a contínuas
transações e que, por isso, não são aptos a ser dados em garantia “salvo che il vincolo non comprenda
anche i beni che, successivamente alla sua costituzione, entreranno nel patrimonio dell’impresa o
risulteranno dalla trasformazione di quelli originariamente ad esso assoggettati”, argumentando com a
possibilidade de a garantia compreender bens futuros e/ou adquiridos com o financiamento concedido e
que a tal conclusão não obsta a necessidade de descrição do objecto onerado, uma vez que esta deve ser
entendida de modo compatível com a substituição e, em especial, “in riferimento alla necessità che sia
posta in evidenza il collegamento funzionale tra i beni e l’attività produtiva” – todavia, não deixa de
chamar a atenção, atenta a ausência de normas específicas em sede de execução, para o facto de o ónus da
prova que os bens a executar são o fruto daqueles sobre os quais a garantia foi inicialmente constituída).
No mesmo sentido, Giuseppe Martino, ob. cit., págs. 57 e segs., para quem esta norma, ao reconhecer a
possibilidade de a garantia recair sobre matérias primas, mercadorias, frutos, animais, produtos semi-
acabados e produtos terminados (o chamado capital circulante), implicitamente reconhece a rotatividade,
uma vez que se afigura “estremamente difficile che, quando il credito diventi esigibile, il creditore possa
esecutare gli stessi beni vincolati inizialmente”, indo até ao ponto de afimar que “Una garanzia non
possessoria sull’attivo circolante di unímpresa non può non essere rotativa, non può, cioè, non estendersi
– nei limiti del valore originario del privilegio – ai beni che successivamente entrino a far parte del
patrimonio del debitore”: porém, o Autor não descura a necessidade de estabelecer critérios de
identificação dos bens abrangidos e a abranger pela rotatividade – fazendo apelo às noções de
determinação e determinabilidade e apontando como exemplo a referência ao tipo de mercadoria e a
indicação da sua quantidade – mas realçando que “Una volta stabiliti i criteri di individuazione dei beni
sottoposti al vincolo, non saranno necessari – nel caso di rotazione – nuovi atti costitutivi o integrativi
della garanzia, quando si verifichi la sostituzione del bene”, considerando como data da constituição da
garantia a originária e recaindo esta sobre os bens, da qualidade e quantidade dos empenhados, existentes
no património do empenhante no momento da execução (o único limite à rotatividade, no parecer do
Autor, resulta dos casos em que seja prevista a extensão da garantia para os créditos decorrentes da venda
dos bens originariamente sujeitos à garantia, pois “In questo caso si otterrebbe, infatti, una duplicazione
dell’oggetto del privilegio perchè, una volta alienati i beni originariamenti vincolati, operando il
491
relevantes consequências práticas ao nível do objecto da garantia1904 e da conformidade
das cláusulas rotativas com a protecção dos credores quirografários do constituinte1905 –
meccanismo rotativo, questo si raddopierebbe estendendosi automaticamente, sia ai nuovi beni, sia ai
crediti derivanti dall’alienazione di quelli vecchi”). Mais cautelosas são Melissa Magano, ob. cit., pág.
578, nota 19 (alegando que do facto de a norma em análise impor, como condição de surgimento da
garantia - e não apenas de oponibilidade da mesma - a exacta descrição dos bens ou créditos objecto da
garantia, requisito este problemático no que respeita aos bens do capital circulante, aos bens futuros e aos
bens adquiridos com o financiamento concedido, concluindo, em conformidade, que “Solo se tale istituto
è configurato come garanzia rotativa il privilegio si estenderà anche a tali beni non indicati
specificamente nel relativo atto costitutivo”) e Anna Veneziano, ob. cit., pág. 95 (embora conclua a favor
da rotatividade – sustentando que “Sembra tuttavia impensabile che il legislatore, nel prevedere
espressamente l’estensione della garanzia a prodotti in lavorazione e merci, non abbia inteso tutelare il
creditore per (…) tutte le modifiche che occorrono al capitale circolante nel normale esercizio
dell’attività dell’impresa” - esclarece que “la questione non è del tutto chiara (…) la risoluzione
dell’apparente antinomia tra esattezza della descrizione e variabilità o genericità del collateralle resta
un problema aperto”).
1904
De acordo com Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 100, se a garantia for qualificada como
rotativa, o direito de preferência do credor recairá sobre os bens (da mesma natureza dos identificados no
momento da constituição ou que resultem da respectiva transformação ou alienação) que, nesse momento,
existam nas instalações da empresa. Pelo contrário, se à garantia não for atribuída natureza rotativa, o
credor apenas ostentará um direito de preferência sobre os concretos bens descritos no título constitutivo
da garantia que, no momento da execução, se encontrem em poder do constituinte.
1905
Piscitello, Le garanzie cit., pág. 62 e segs., considera que a rotatividade, nos termos em que se
encontra regulada neste diploma, não lesa os direitos dos demais credores do empenhante. Com efeito,
aos argumentos segundo os quais a finalização do processo produtivo comporta um aumento do valor dos
bens onerados e, além do mais, implica o uso de recursos da empresa ao nível de mão de obra, despesas
de funcionamento e com instalações (o que parece redundar em prejuízo dos credores quirografários),
replica com base, essencialmente, em três factores: por um lado, “l’incremento di valore realizzato in
seguito alla lavorazione rappresenta la naturale conseguenza dello svolgimento del processo produttivo e
non sottrae beni alla soddisfazione dei creditori chirografari”; depois e no que concerne às despesas, “chi
concede credito ad un impreditore è consapevole del fatto che questi destina una parte delle proprie
liquidità alla retribuzione dei dipendenti ed alle spese per il funzionamento degli impianti. Ne consegue
che l’estensione della garanzia, anche se comporta un aumento di valore dei beni destinati a soddisfare il
credito della banca, non pregiudica gli interessi dei creditori” (para além de algumas dúvidas existirem
ainda que os bens empenhados não fossem introduzidos no processo produtivo); finalmente, a
possibilidade de uso dos bens onerados no processo produtivo “agevola l’attività dell’impresa, evitando
che perda quote di mercato a favore di concorrenti e rafforza, di riflesso, la posizione dei creditori
chirografari. Né si può, inoltre, escludere a priori che, in seguito alla lavorazione, il valore dei beni
vincolati superi quello del credito garantito”, assim determinando um aumento do património afecto à
satisfação dos quirografários. Por outro lado, se os credores quirografários não podem satisfazer-se sobre
o dinheiro utilizado pelo devedor para a aquisição de matérias primas, já podem contar com o produto da
venda dos produtos transformados, cujo valor será normalmente mais elevado do que o do valor utilizado
para adquirir novos produtos para o estabelecimento (no entanto, a consideração dos interesses dos
credores quirografários impõe alguns limites, o mais relevante dos quais reside na exclusão da
rotatividade quando as partes prevejam o alargamento da garantia aos créditos que nasçam da alienação
dos produtos onerados (ou dos produtos finais que resultem da transformação destes), pois tal pacto
conduziria a “una duplicazione dell’oggetto del vincolo, pregiudizievole per i creditori chirografari cui
sarebbero sottratte le risorse impegnate per l’acquisto dei nuovi beni”). Estas conclusões são válidas não
apenas para o caso de passagem da garantia da matérias primas e produtos semi transformados par os
produtos finais, mas igualmente para a transferência do vínculo daqueles produtos para novas matérias
primas adquiridas para a continuação do processo produtivo, pois também aqui a posição dos credores
quirografários não sofre alterações “poiché le somme impiegate per l’acquisto di tali beni sono
compensate dal ricavato della vendita dei prodotti finiti” (embora exista, também aqui, um limite, qual
seja o da inviabilidade da extensão generalizada a todos os bens que venham a entrar no estabelecimento,
sendo apenas lícito o alargamento a uma quantidade correspondente à existente no momento da
constituição da garantia). Por último, saliente-se que estas transferências do objecto da garantia não
carecem, na opinião do Autor, de ser inscritas no registo (pois, para além do inevitável obstáculo ao uso
da garantia que a solução contrária representaria, a inscrição tem a função de dar a conhecer a garantia
492
alegando mesmo que a ausência do efeito rotativo comprometeria a constituição de
qualquer ónus sobre matérias primas e produtos semi transformados.1906
Exceptuando estas intervenções pontuais, constata-se a manutenção em vigor do
regime civilístico do penhor, do qual ressalta a insubstituibilidade do desapossamento,
destarte limitando a empenhabilidade de diversos bens.
Merece especial referência, pela sua relevância, o penhor de estabelecimento
comercial,1907 cuja admissibilidade se retira do facto de o art.º 2784.º, n.º 2, do CCI,
consentir a empenhabilidade de universalidades, mas cuja constituição se afigura
problemática, em razão da sujeição regime geral do penhor e da obrigatoriedade de
desapossamento do devedor e de descrição escrita e suficiente do objecto da garantia
por este imposto, assim contrariando as necessidades do comércio jurídico.1908
Paralelamente à subsistência quase imaculada do regime geral do penhor e com
efeitos não menos perniciosos para a fluidez e segurança das operações comerciais,
assistiu-se à criação de um número infindável de privilégios creditórios concedendo,
tantas vezes arbitrariamente, uma posição de supremacia a determinados credores,
originando diferenças de tratamento injustificadas mesmo entre os diversos sectores
produtivos.1909
Esta posição conservadora do legislador transalpino é justificada pelo papel
primordial concedido à tutela da garantia genérica, bem pelo carácter excepcional e
pretensamente taxativo das garantias específicas, culminando na inadmissibilidade de
intervenção da autonomia privada neste domínio.1910
aos credores e, como da substituição do objecto desta não resulta prejuízo para estes, não fará sentido
proceder à inscrição de tal facto).
1906
Assim, Piscitello, Le garanzie cit., pág. 63, nota 68 (“di fonte al rischio di perdere il diritto di
prelazione nel caso di utilizzazione dei beni vincolati nel processo produtivo i finanziatori impongano la
prestazione di altre garanzie”).
1907
Sobre esta garantia, vide supra n.º 3.5 do Capítulo I.
1908
A ausência de uma norma consagrando e regulando a constituição de penhor sobre estabelecimentos
comerciais, ao invés do que sucede noutros ordenamentos, é verberada por Paolo Piscitello, Costituzione
in pegno cit., págs. 163 e 164, realçando a importância da garantia sobre o estabelecimento comercial, ao
consentir “evitare l’immobilizzazione dei beni dell’impresa e, nel contempo, permette al crediore di
acquistare un droit de suite nell’ipotesi di alienazione dell’intero fondo”. Emanuele Ferrari, ob. cit., pág.
1361 e segs., relativiza o requisito da necessidade de descrição do bem objecto da garantia (não só porque
o mesmo é apenas condição de atribuição do direito de preferência, mas igualmente porque a lei, em
matéria de antecipação bancária, consente a dação em penhor de determinados bens fungíveis mesmo não
concretamente identificados), mas conclui que a exigência de desapossamento do devedor constitui o
motivo do reduzido uso desta figura. Para combater esta fragilidade, o Autor defende a criação de regras
específicas para o penhor de estabelecimento comercial, nomeadamente no que concerne ao objecto
(entendendo, em geral, que a mesma deveria abranger todos os bens que integrassem o património do
estabelecimento devedor após a constituição da garantia e, no que respeita às mercadorias e aos produtos
e tendo em conta a dificuldade de identificação destes bens, a limitação da garantia a 50% deles), à
constituição da garantia (sugerindo a necessidade de inscrição num registo público, que tornaria
dispensável o desapossamento) e à identificação dos bens onerados (indispensável ab initio, no momento
da inscrição no registo, para preencher o conceito de direito real e, desse modo, conceder o direito de
preferência e de sequela): com estas alterações, a garantia, ao consentir a continuação da actividade
produtiva do devedor e dispensando o credor desse encargo, tornar-se-ia mais apetecível.
1909
Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., pág. 160 e Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág.
109 e segs. (esta última sugere mesmo que esses privilégios são “figlie delle contingenze momentanee, dei
rapporti di forza economici, delle varie lobbies, forse anche del caso”, acrescentando que tal fenómeno
conduz ao esvaziamento do princípio da igualdade entre os credores).
1910
Estas justificações são fornecidas por Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 46 e segs., Gabrielli,
Spossessamento cit., págs. 934 e 936 (este último salientando que a relação entre a autonomia privada e a
constituição de garantias reais “deve tener conto della circostanza che i privati – seppure non possono
dar luogo a nuove forme di garanzia reale, né tanto meno creare situazioni di prelazione e di
opponibilità al di fuori di quelle espressamente previste e tipizzate dall’ordinamento – possono tuttavia,
493
Em especial, a observância daqueles postulados implica uma forte restrição à
criação de garantias mobiliárias sem desapossamento, porquanto a sua consagração
significaria a consagração de ónus ocultos num sistema baseado no princípio
consensualístico.1911
A estes óbices genéricos acresce, em particular quanto às mercadorias e às
matérias primas, a própria exigência de identificação - escrita e suficiente - do bem
empenhado (e do crédito garantido), postulada pelo n.º 3 do art.º 2787.º do CCI, a qual
configura um obstáculo adicional à sua sujeição a penhor.1912
Apesar deste panorama adverso, a possibilidade de criação de garantias
convencionais sem desapossamento, fora dos casos previstos na lei, encontra alguns
defensores, fundamentando-se na relativização do princípio da tipicidade dos direitos
reais1913 e na exigência de tutela de terceiros,1914 ainda que mantendo a tutela
possessória dos terceiros adquirentes de boa fé.
mediante opportune tecniche contrattuali, incidere sul profilo funzionale del negozio costitutivo e quindi
operare anche senza lo spossessamento del costituente”), Dario Finardi, Efficacia reale del pegno
rotativo: posizione consolidata dalla giurisprudenza, in Fallimento, 2000, págs. 778 e 779 (criticando o
efeito castrador que, em Itália, o princípio da par conditio creditorum produz sobre a liberdade de
constituição de garantias convencionais, ao contrário do que sucede noutros ordenamentos onde o mesmo
princípio também se encontra consagrado – até porque “la presenza di strumenti giuridici più duttili negli
ordinamenti dei maggiori Stati dell’Unione Europea potrebbe porre gli operatori italiani in una
condizione di svantaggio” - designadamente no que respeita à possibilidade de modificação do objecto da
garantia, aplaudindo, por isso, a maior abertura judicial à figura dos pactos rotativos) e Melissa Magnano,
ob. cit., págs. 579 e 580 (concluindo, por isso, que as garantias de fonte convencional não poderiam
atribuir ao seu beneficiário o direito de preferência, precisamente o principal intuito das garantias, ao que
acresce, no caso do penhor, que a exigência de um documento escrito contendo a suficiente descrição do
crédito garantido e do bem empenhado inibe, por exemplo, a viabilidade das garantias flutuantes: perante
este cenário, as únicas alternativas são a escolha de uma das garantias convencionais – com todos os
inconvenientes que estas comportam – ou, optando por uma garantia atípica, ficar o credor desprovido do
direito de preferência). Constatam igualmente esta restrição à iniciativa privada, Anna Veneziano, ob. cit.,
pág. 21 (salientando os limites impostos pela jurisprudência às adaptações convencionais ao regime do
penhor tradicional) e Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 89.
1911
Abina Candian, Le garanzie cit., pág. 332.
1912
Assim, Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 50 e segs., considerando que este preceito se encontra “in netta
antitesi con l’esigenza di un certo grado di genericità, che si deve necessariamente ammettere nel caso in
cui l’oggetto della garanzia è un complesso di merci”.
1913
Adopta este entendimento Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 189 e segs.. Mais
detalhadamente e depois de desvalorizar o princípio da tipicidade (considerando-o uma reminiscência
histórica e, por outro lado, assegurando que a sua consagração no final do século XVIII serviu de
protecção dos privados face a abusos do Estado, função igualmente atribuída ao princípio da liberdade
contratual: se assim foi, “tra le due regole, almeno alla loro nascita, non sussisteva contraddizione”),
descarta que o mesmo se possa ancorar na produção de efeitos unicamente inter partes dos contratos
(contrapondo que a norma que estabelece tais efeitos “riguarda il valore tra le parti del regolamento
contrattuale e non anche l’efficacia della situazione soggettiva che attraverso il contratto può essere
acquisita: tale situazione soggettiva sarà regolata dai principi suoi propri, e non da quelli disciplinanti
l’atto di acquisto della situazione”), na inexistência de uma norma específica consagrando a autonomia
privada no domínio das garantias (considerando que a norma geral a este respeito “nello stabilire che le
parti possono liberamente determinare il contenuto del contratto, di per sé parrebbe riferibile alla
predeterminazione tanto di effetti obbligatori quanto reali”) ou na preocupação organizativa de
estandardizar a publicidade imobiliária, impondo aos registos um controlo sobre o número e a tipologia
dos direitos oponíveis a terceiros (assegurando que tal preocupação não colhe relativamente aos bens
móveis, cuja circulação não se encontra sujeita a qualquer formalidade publicitária, até porque “nulla
impedisce che all’interno di una situazione reale atipica (rectius conformata nella disciplina dalla fonte
negoziale) siano approntati indici idonei di conoscibilità”). De acordo com Gabrielli, Autonomia cit.,
págs. 644 e segs., “i privati – seppure non possono dar luogo a nuove forme di garanzia reale, nè tanto
meno creare situazioni di prelazione e di oponibilità al di fuori di quelle espressamente previte e tipizzate
dall’ordinamento – possono tuttavia, mediante opportune tecniche contrattuali, incidere sul profilo
funzionale del negozio costitutivo” e, por outro lado, “Il rigoroso rispetto della tipicità delle forme di
494
Paralelamente e não obstante o ostracismo a que legislação e jurisprudência a
pretenderam votar, a capacidade de imaginação das partes veio a delinear diversos
mecanismos para assegurar a manutenção dos bens no poder do empenhante (sobretudo
a respeito das matérias primas e das mercadorias), de entre os quais merecem destaque a
dação em comodato ou em locação ao credor das instalações onde tais bens se
encontrem ou, em alternativa, a criação de uma situação de composse (de modo a que,
para dispor das mercadorias, fosse necessária a intervenção conjunta de ambas as
partes) ou, de forma mais rebuscada, transferindo a detenção dos bens para um terceiro
que se obriga a conservar o objecto da garantia durante a fase de transformação deste
(consentindo ao credor pignoratício ou aos seus representantes controlar o respectivo
estado e quantidade, assim evitando a diminuição do seu valor).1915
Não surpreende, por isso, o recurso a outras figuras que, não sendo propriamente
garantias reais strictu sensu, desempenham afinal o mesmo papel, tais como o leasing
financeiro,1916 as alienações fiduciárias em garantia,1917 o uso da reserva de propriedade
garanzia reale non può (e in ogni caso non deve) indurre a circoscrivere la funzione di garanzia (reale)
ad un singolo e particolare rapporto di credito”.
1914
Particularmente no que concerne à exigência de tutelar terceiros face a garantias ocultas, constatando
Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 196 e segs., que, para eliminar a possibilidade de aquisição
de direitos por parte dos terceiros possuidores de boa fé será necessária a introdução de mecanismos
publicitários que tornem a garantia cognoscível, assim eliminando a boa fé do terceiro adquirente,
mecanismos esses que podem resultar, não apenas da lei, mas igualmente da iniciativa privada (apontando
como exemplos a colocação de marcas físicas nos bens empenhados, embora ressalvando que tal
mecanismo apenas será suficiente para excluir a boa fé dos terceiros se, em concreto – tomando em
consideração a visibilidade da marca e as qualidades pessoais do terceiro - se mostrar possível ilidir a
presunção de boa fé daqueles, cabendo aos juízes determinar o adequado carácter publicitário dos
instrumentos idealizados pelas partes). A mesma Autora refuta que tal posição possa redundar num
sacrifício do interesse geral da rápida circulação dos bens móveis, porquanto não afasta a regra da posse
vale título, representando apenas um reforço do grau de diligência exigido ao terceiro adquirente para
poder considerar-se de boa fé.
1915
Neste sentido, Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., págs. 166 e 167. Segundo este Autor, a
admissibilidade de formas de desapossamento atenuado – a entrega ao credor das chaves do armazém
onde se localizam os bens empenhados ou a criação de uma situação de composse - possibilita “la
costituzione di garanzia dell’insieme delle merci contenute nei magazzioni dell’impresa, pattuendo il
trasferimento del vincolo sui beni acquistati in sostituzione di quelli alienati, oppure la previsione di una
clausula di lavorazione com cui la banca consente l’utilizzazione dei beni nel processo produtivo, in
modo da agevolare la concessione del credito senza interrompere il normale svolgimento dell’attività
dell’impresa”.
1916
Mauro Bussani, Il modello cit., págs. 180 a 184, critica este entendimento restritivo, alegando que o
mesmo parte do pressuposto da função de garantia atribuída ao direito de propriedade do concedente (na
medida em que o concedente conservaria uma propriedade esvaziada de qualquer risco inerente ao gozo
do bem, pois “il concedente CIA privo di ONI interesse alla gesticule delta cosa”). Ora, o Autor critica
este entendimento, contrapondo que “Il trasferimento della proprietà non è l’epilogo necessario del
rapporto di leasing: il lessor potrà pacificamente rimanere proprietario del bene anche dopo l’esatto
adempimento del contratto di leasing (…) l’essenziale, però, è che l’avvenuto pagamento di tutti i canoni
di leasing non produce il trasferimento del diritto, imponendosi un’ulteriore determinazione e una nuova
manifestazione di volontà, da parte dell’utilizzatore, affinché tale effetto si realizzi” e concluindo que, se
“la proprietà (in garanzia) può rimanere al creditore fin dopo il regolare adempimento dell’obbligazione
(garantita)” (…)“la pretesa di ricondure a una finalità di garanzia il diritto del concedente diventa priva
di significado” (ou, quando muito, ainda que se pretenda assegurar uma função de garantia ao direito de
propriedade do concedente, tal resumir-se-ia a “um mero, e generico effetto di pressione
all’adempimento, esercitato sul soggetto utilizzatore”). Em suma, “Il contratto di leasing, in definitiva,
trova la propria ragion d’essere nella soddisfazione di un’esigenza elementare: quella di consentire il
superamento della rigidità di una scelta – fondamentale nell’esercizio di qualsiasi attività economica –
fra titolarità e mero godimento del bene”.
1917
Quer se trate de alienações suspensiva ou resolutivamente condicionadas, com pacto de resgate ou de
retro-venda, de dationes in solutum ou de cessões de crédito. Esta aversão fundamenta-se, no entender do
495
com fins de garantia1918 ou das cessões de créditos em garantia1919: simplesmente, tais
institutos enfrentam uma tradicional aversão legal,1920 doutrinal e jurisprudencial, não
só, mas também, em razão da suposta violação do pacto comissório,1921 factor este que
obsta à sua utilização corrente.1922
Autor (vide Patto comissório cit., pág. 127 e segs.), na suposta violação do pacto comissório (sobre esta
questão, vide infra n.º 4.3.5 do Capítulo II) e na circunstância de este tipo de negócios se prestar à
obtenção de finalidades usurárias (contestando esta posição, alegando existirem já no ordenamento
diversas normas, civis e penais, destinadas ao combate à usura. Nesta conformidade, auspicia um futuro
promissor às garantias fiduciárias, tendo em conta as limitações inerentes às garantias mobiliárias
tradicionais, quase todas elas possessórias (em termos idênticos, Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 259 e
segs.). Já Gabrielli, Autonomia cit., pág. 663, mostra-se menos optimista, tendo em conta escassa abertura
dos tribunais italianos para com os negócios fiduciários em geral e para com a as alienações em garantia
em particular. Finalmente Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 83, nota 131, põe em evidência a
circunstância de a directiva relativa aos contrato de garantia financeira (2002/47/CE) estabelecer o
reconhecimento das transferências fiduciárias de tais bens.
1918
Como bem foca Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 113 e segs., a respeito da reserva de
propriedade, esta “è una clausula di garanzia che conferisce al venditore il potere di reivindicare il bene
in caso di risoluzione del contratto per inadimpimento del compratore, e risponde all’esigenza di una
garanzia pronta e semplice del venditore che non impedisca l’attuale godimento del bene da parte del
compratore”. A particular apetência por esta garantia justifica-se, essencialmente, por dois motivos: antes
de mais por permitir o prolongamento da garantia – para lá dos bens inicialmente transferidos - por forma
abarcar as mercadorias que resultam da transformação daquelas ou ao preço obtido com a sua venda (com
a vantagem ulterior deste prolongamento da garantia poder ser acordado após a celebração do contrato e a
transferência da propriedade) e, por outro lado, de o efeito de garantia se produzir sem necessidade de
desapossamento do devedor (ou seja, a reserva de propriedade funciona, mais do que como uma garantia
não possessória, como uma “garanzia nonostante la consegna”). Porém e apesar de o art.º 1524.º do CCI
determinar a oponibilidade aos credores do comprador da reserva de propriedade (desde que conste de
documento escrito com data certa anterior à penhora do bem em questão), Gaetano Piepoli, ob. cit., pág.
53 e segs., assegura que a doutrina e a jurisprudência italianas reconhecem exclusivamente a reserva de
propriedade simples, negando qualquer poder de disposição do devedor empresário sobre as matérias
primas abrangidas pela reserva, deste modo tornando este instituto inapropriado “ai fini della costituzione
di garanzie sulle merci a tutela del finanziamento concesso dal fornitore”, pelo que o reconhecimento da
reserva de propriedade simples “continua a metere tra parentesi la questione altrettanto importante
dell’estensione di tale garanzia ai prodotti derivanti dalla trasformazione delle merci operata
dall’imprenditore e, infine, ai crediti di cui l’imprenditore stesso diviene titolare in seguito alla loro
vendita” (em termos análogos, Gabrielli, Garanzie rotative cit., pág. 8 e Autonomia cit., pág. 662,
noticiando que, quando muito, é admitida a reserva de propriedade simples, assim impedindo o devedor
de realizar actos de disposição do objecto da garantia – ainda que tal houvesse sido convencionado – e
muito menos a transferência da garantia para os produtos decorrentes da sua transformação ou os créditos
resultantes da respectiva venda). No que especificamente respeita à reserva de propriedade prolongada, o
seu uso enfrenta, no direito italiano, um obstáculo resultante de a interpretação da doutrina dominante
negar ao comprador qualquer poder de transformação ou disposição do bem (neste sentido, Mauro
Bussani, Il modello cit., pág. 169, salientando que, para além disso, a reserva apenas será oponível aos
credores do adquirente se resultar de acto escrito de data certa anterior à penhora e, tratando-se de
máquinas, poderá ser oposta também a terceiros adquirentes se o pacto for inscrito num registo existente
no tribunal do local onde se encontra o bem e desde que, no momento da aquisição por parte do terceiro, a
máquina ainda se encontre no local onde a inscrição foi efectuada).
1919
Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 320 e segs. e 337, pugna pela licitude deste tipo de negócios.
1920
Ainda assim, Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 269 a 217, não deixam de
sublinhar o reconhecimento, desde 2003 (cfr. a nova redacção do art.º 2447-bis do CCI), da criação de
patrimónios de afectação com finalidade de garantia e da consagração, desde 2006 (cfr. nova redacção do
art.º 2645.º do CCI), da criação de vínculos de destinação dos bens, com uma duração máxima de 90 anos
e para a realização de interesses susceptíveis de tutela, podendo constituir objecto de execução apenas por
dívidas contraídas para esse efeito.
1921
Vide n.º 4.3.5 do Capítulo II.
1922
Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 47, conclui que, em face deste panorama, são inaplicáveis um conjunto
de formas de garantia que, hipoteticamente, se moldariam às mercadorias e às matérias primas,
nomeadamente a transferência em garantia dos bens empenhados, com passagem da posse através de
496
O recurso a estas figuras, previstas e reguladas na lei a outros propósitos e não
propriamente como instrumentos de garantia, com fins de garantísticos é elucidativo
acerca das limitações do penhor, ilustrando bem os empecilhos criados pela necessidade
de desapossamento do empenhante que este último impõe.
Neste contexto, não causam estranheza as propostas de reconstrução funcional
do próprio conceito de garantia real – à imagem do que sucede no ordenamento
germânico e, especialmente, no norte-americano – qualificando como tal todas aquelas
fattispecie cujo intuito primordial seja o de criar uma reserva de utilidade a favor do
credor, deste modo valorizando o resultado económico perseguido pelas partes em
detrimento do concreto esquema negocial utilizado.1923
Todavia, mesmo aqueles que ousam afrontar a inevitabilidade do
desapossamento do constituinte das garantias mobiliárias não advogam a generalização
dos institutos não possessórios, parecendo antes que estes devem ser acantonados dentro
de certos limites, que se prendem com natureza do quid a onerar e da sua relevância da
sua detenção para o onerante.1924
1.2.2 - França
constituto possessório e com possibilidade de gozo dos ditos bens por parte do empenhante; ou através da
transferência em garantia dos bens empenhados associada a um pacto obrigacional que consentisse ao
devedor-alienante dispor dos bens, substituindo os bens vendidos por outros do mesmo género e da
mesma quantidade, passando estes imediatamente para a propriedade do credor; ou reconhecendo ao
devedor o poder de transformar as matérias primas em produtos finais, aos quais se estenderia a garantia,
cobrindo esta também os créditos que o empenhante adquirisse através da venda daqueles produtos - o
único aspecto do regime legal do penhor que se molda à colocação em garantia deste categoria de bens é a
possibilidade de a garantia se constituir através de custódia comum ou de terceiro, mas o Autor alega que
qualquer destas duas hipóteses possui um campo de aplicação limitado a “merci importate o che
comunque si possono facilmente depositare in apositi locali senza sottoporle a processi di lavorazione”.
1923
Nesta conformidade, Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 16 e segs.. Para uma análise mais
detalhadas destas teorias, vide infra n.º 1.2 do Capítulo IV.
1924
Nomeadamente ao domínio comercial (e, mesmo aí, com limitações quanto ao objecto da garantia),
agrícola e aos penhores concedidos por prestamistas especializados na actividade de concessão de crédito
pignoratício – é esta a proposta de Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 117 e segs.. De acordo com uma outra
perspectiva, importa alertar que os inconvenientes do desapossamento não se fazem sentir com particular
acuidade no penhor civil – no qual a privação, por exemplo, de uma jóia de família, pode causar,
eventualmente, algum desconforto, mas funcionando como um eficaz meio de coação psicológica sobre o
empenhante, estimulando a cumprir a obrigação garantida para poder recuperar o objecto de estimação - ,
mas assumem importância decisiva no penhor comercial, no qual o empresário, para obter os
financiamentos indispensáveis para a prossecução da sua actividade, muitas vezes não tem senão os bens
da empresa para dar em garantia, bens esses dos quais não pode prescindir (Antonio Fontana, ob. cit., pág.
63 e segs.).
1925
Concomitantemente, assistiu-se à emergência das chamadas garantias negativas, que configuram uma
espécie de tutela indirecta sobre a actividade do devedor e que podem assumir duas modalidades, as
preventivas (que impõem ao devedor a quem é concedido o crédito um conjunto de proibições de adopção
de determinadas condutas – como a necessidade de autorização do credor para a venda de certos bens ou
a proibição de contrair novas dívidas sem o acordo do credor - a fim de assegurar a integridade do seu
património) e as inspectivas (que obrigam o devedor a responder aos pedidos de informação do credor
relativamente ao estado do seu património e, no limite, consentem ao credor inspeccionar os registos
contabilísticos do devedor), ambas com a mesma “funzione esclusivamente preventiva dell’eventuale
inadempimento del debitore o del pericolo che il medesimo venga sottoposto alla falcidia concorsuale” –
Gabrielli, Autonomia cit., pág. 668 e segs..
497
a manter o papel primordial, associado ao florescimento de diversos privilégios
creditórios e de uma ou outra garantia mobiliária não possessória.1926
Neste ordenamento, a intervenção legislativa assentou, essencial, mas não
exclusivamente,1927 na criação de algumas garantias mobiliárias sem desapossamento
(pese embora as dificuldades que a ausência de desapossamento coloca),1928 embora
recorrendo a dois mecanismos diversos e com consequências práticas, nomeadamente
ao nível das prerrogativas concedidas ao seu beneficiário, igualmente distintas.1929
Um primeiro, assenta na sujeição a registo (assim se assegurando a
cognoscibilidade das mesmas e, por consequência, a oponibilidade aos eventuais
sucessivos credores do empenhante ou terceiros que deste adquiram direitos)1930; ao
invés, noutros casos o expediente utilizado foi o recurso à figura dos warrants,
progressivamente alargados a um conjunto cada vez mais vasto de bens,1931 não
1926
Traça este panorama Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 210 e segs., chamando a atenção para o
contra-senso que representa impor o desapossamento e, em contrapartida, admitir garantias ocultas como
os privilégios: em face deste cenário, remata não ser de atribuir ao desapossamento qualquer função
publicitária. Em termos aproximados, Rojo Ajuria, La unificación cit., pág. 62 (dando conta da aprovação
de leis avulsas introduzindo penhores sem desapossamento - embora limitados a determinados objecto) -
e consentindo a utilização da propriedade com fins de garantia, como sejam as leis sobre o leasing –
crédit-bail – e a reserva de propriedade) e Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 143 (relatando que, embora com
os inconvenientes do desapossamento, o penhor continuava a representar praticamente a única garantia a
prestar por todos os que não disponham de riqueza imobiliária). Já Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 97
e segs., classifica de nebuloso o panorama dos privilégios creditórios em França, pois apesar da tentativa
de redução dos privilégios gerais sobre todo o património mobiliário e imobiliário (reduzidos a alguns
créditos salariais, aos créditos da massa falida e às despesas de justiça), têm florescido os privilégios
mobiliários gerais e, principalmente, os mobiliários especiais.
1927
Em rigor, as derrogações ao regime civilístico do penhor começaram logo com a aprovação, em 1863,
do Code de Commerce, que instituiu o penhor comercial que se afasta do civil – que permanecia
subsidiariamente aplicável – sobretudo pela desnecessidade de redução a escrito (o que, segundo Jean-
François Riffard, ob. cit., pág. 34 e segs., equivale a afastar o princípio da especialidade, permitindo que a
garantia abranja todos os bens do devedor e possa garantir todos os créditos, presentes e futuros, para com
o mesmo devedor).
1928
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 243 e segs., salientam como as principais se prendem com a
individualização e identificação de muitos dos bens móveis, de organização de um sistema de publicidade
adequado (e, por consequência, de concessão ao beneficiário da garantia um verdadeiro direito de
sequela, podendo tornar tais garantias meramente ilusórias, porque privadas de efeitos face a terceiros) e,
por outro lado, com a fragilidade e fácil dissipação do quid onerado (atenta a facilidade de alienação e a
protecção conferida aos terceiros possuidores de boa fé, especialmente quando se trata de bens
incorpóreos ou de coisas fungíveis). Não obstante tais dificuldades, o Autor atesta que o direito francês
foi, paulatinamente, reconhecendo diversas garantias mobiliárias não possessórias (respondendo à
necessidade de tornar os bens móveis – cuja importância e valor se têm constantemente incrementado –
como potencias garantias da concessão de crédito), quer através das tradicionais hipotecas mobiliárias,
quer dos penhores sem desapossamento, quer dos warrants.
1929
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 245, destacam como, nalguns casos, a protecção do credor é
obtida através da criação de um verdadeiro mecanismo publicitário, permitindo assim a concessão de um
verdadeiro direito de sequela; noutros, pelo contrário, tal protecção assenta na imposição de sanções
penais ao devedor e/ou na legitimidade para o credor cobrar directamente a prestação de terceiros (e, dada
a ausência de um sistema de publicidade, normalmente estas garantias encontram-se amputadas do direito
de sequela).
1930
Vide Gaetano Piepoli, ob. cit., págs. 28 e 29 e Stefano de Paola, Le garanzie atipiche e il pegno
rotativo, 2001, in http://www.tesionline.it/default/tesi.asp?idt=8108, pág. 7 e segs.. Relativamente a estas
garantias ou, pelo menos a algumas delas, coloca-se a questão de saber se ainda estamos perante um
penhor (eventualmente sem desapossamento) ou se, ao invés, estaremos perante uma hipoteca mobiliária
(especialmente tendo em conta a necessidade de registo) ou se, por fim, não estaremos perante um tertium
genus, uma garantia mobiliária sem desapossamento não enquadrável nem no penhor nem na hipoteca – a
este respeito, vide Giuseppe Trapani, ob. cit., págs. 40 e 41.
1931
Ismael Acevedo y Criado, ob. cit., pág. 21 e segs., aponta o caso francês como um exemplo típico de
alargamento do leque de bens objecto de garantias não possessórias através do recurso aos warrants,
498
esquecendo o caso específico do regime previsto para o penhor de créditos
profissionais, constante da apelidada Loi Dailly.1932
Na primeira categoria inserem-se as garantias sobre películas
cinematográficas1933 e sobre o “logiciel” (ou software informático)1934 e, especialmente,
inicialmente restritos ao domínio agrícola, mas paulatinamente estendidos “los enseres y utilería de
estabelecimientos de comercio, el menaje de los hoteles, las existencias de petróleo bruto y derivados y,
por último las materias primas, los productos en curso de fabricación y los productos fabricados:
warrant industrial”. Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 301, notam que a figura dos warrant se
mostra particularmente adequada quando se pretendam onerar bens que, para além da necessidade da sua
manutenção em poder do devedor, não sejam facilmente armazenáveis.
1932
Segundo Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 39, esta lei permitia a dação em penhor destes créditos, a
favor de um estabelecimento bancário, através da simples remessa de um documento datado e assinado
(embora Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 196, admita que, na prática, fosse usual a notificação aos
devedores do crédito cedido, de modo a evitar que estes entreguem a prestação ao constituinte da
garantia), no qual o constituinte indicasse quais os bens a onerar, sendo esta formalidade a única
necessária, mesmo para opor a garantia a terceiros (simplesmente e segundo relata o Autor, o mesmo
diploma consagrava igualmente a figura da cessão dos mesmos créditos, a qual, pela sua maior segurança
e por excluir o concurso de outros credores, viria a merecer a preferência dos credores e, por isso e
socorrendo-nos das sintomáticas palavras de Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 373, o
penhor criado por esta lei tornou-se num “mort-né”). Para além disso, este penhor apresentava um
inconveniente adicional, uma vez que não consentia que o credor cedesse o crédito recebido em garantia,
uma vez que ao credor pignoratício não assistia o direito de dispor do bem recebido em garantia (Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 374). Uma última limitação deste regime diz respeito ao seu
âmbito de aplicação objectivo, porquanto apenas abrange os créditos sobre pessoas colectivas e, no caso
das pessoas singulares, unicamente se contraídas no exercício da respectiva actividade profissional
(Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 195 e Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 227 e 228:
este último, constata que a exclusão alcança essencialmente os créditos sobre particulares, o que penaliza
as empresas que se encontrem na recta final dos canais de distribuição, cujos créditos são para com
particulares), embora, dentro destes, permita a oneração de todos eles (independentemente da sua
natureza contratual, delitual ou legal), desde que determináveis (embora a lei reconheça expressamente a
empenhabilidade de créditos futuros, Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 225, entende que os
mesmos apenas poderão ser onerados nos mesmos termos do direito comum, ou seja, “une chose future
ne peut être donnée en gage que si elle est suffisamment identifiable. Será ainsi considérée comme
déterminable une créance dont il sera possible de preciser quel est le débiteur, le montant aproximatif, la
date prévisible de naissance. Ce qui interdisent les dispositions de la loi Dailly c’est la mobilisation d’un
chiffre d’affaires prévisible. Ainsi un emprunteur ne saurait (…) transmettre à son banquier toutes les
créances dont il pourrait être titulaire envers des clients ayant des noms dont les initials commencent par
lettres A à H”). Já quanto aos créditos concedidos em contrapartida da outorga da garantia, a lei mostra-se
bem mais permissiva, desde logo não impondo qualquer condição quanto à natureza do crédito (o qual
pode ser a curto, médio ou longo prazo), impondo unicamente que o concedente seja uma instituição de
crédito profissional e o beneficiário seja uma qualquer pessoa colectiva (pública ou privada) ou uma
pessoa física no exercício da sua actividade profissional (neste sentido, Legeais, Les garanties
conventionelles cit., págs. 229 e 230).
1933
Esta garantia (criada por uma lei de 22/2/1944, posteriormente inserida no Código da Cinematografia)
tem uma natureza complexa, decompondo-se num penhor propriamente dito que pode ter como objecto
um bem corpóreo (o filme, relativamente ao qual a lei, apesar de esta garantia prescindir do
desapossamento do constituinte, atribui ao credor um direito de retenção) e/ou um bem incorpóreo (os
direitos de exploração daquele) - sendo que, em ambos os casos, a garantia terá que ser inscrita num
registo gerido pelo Centro Nacional da Cinematografia (art.º 33.º da lei, com base no qual todas as
convenções relativas à produção, distribuição e exploração dos filmes terão que ser registadas) – e uma
“delegation de revenues”, espécie de consignação de rendimentos, também ela sujeita a registo, que
consente ao credor receber directamente as receitas de exibição do filme (embora sem prejuízo dos
direitos de outros credores preferentes com garantias inscritas sobre o mesmo bem), sem necessidade de
notificação dos devedores cedidos (acerca da qualificação jurídica da figura, Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 452, rejeitam a tese da delegação de receitas – uma vez que não se trata de uma
operação tripartida, em razão da desnecessidade do consentimento do devedor das receitas - , assim como
a da acção directa, aceite por Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 219 – uma vez que esta figura exclui o
concurso de credores, o que não sucede no presente caso -, concluindo tratar-se de uma simples cessão de
499
o “nantissement de l’outillage et du matériel d’équipement professionel” e o
“nantissement des fond de commerce”,1935 ambos regulados actualmente no Code de
Commerce.
créditos do produtor sobre a publicidade e as salas nas quais o filme é projectado). Para mais
desenvolvimentos, Legeais, Sûretés 2009 cit., págs. 395 e 396, Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit.,
págs. 631 e 632. Discute-se, ainda, a existência de um direito de sequela, pronunciando-se em sentido
negativo Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 550 (em razão da inexistência de uma posse
real ou ficta) e favoravelmente Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 73 (alegando que tal direito, apesar de
não consagrado expressamente na lei, decorre da inscrição da garantia no registo, a qual é suficiente para
eliminar a boa fé dos terceiros, considerando que o filme, por não ser um bem corpóreo – englobando,
além dos negativos e das cópias, os direitos de autor - não se encontra submetido à regra da posse vale
título, facto este reconhecido pelo legislador ao organizar um procedimento de expurgação da garantia),
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 296. Por último, importa destacar que esta garantia não possessória
apresenta a vantagem de poder recair sobre um filme ainda não realizado, desde que o seu título já tenha
sido registado, o que configura a admissibilidade de penhor sobre um bem futuro, embora determinável
(cfr. Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 72 e 73).
1934
De acordo com Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 73, o logiciel consiste em programas informáticos,
definindo-o Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 449, como “un programme d’ordinateur
comprenant des instructions génerales ou particulières originales, quelles que soient leurs formes
d’expression, en vue du traitement d’une information donnée, quel que soit son caractère. Sont
assimilables aux logiciels, les travaux préparatoires à condition de permettre la réalisation ultérieur
d’une programme d’ordinateur”. Esta garantia foi criada por uma lei de 10/5/1994, encontrando-se
actualmente integrada no art.º L132-34 do Código da Propriedade Intelectual e cujo objecto consiste no
direito de exploração do “logiciel”. De acordo com o regime legal, o contrato de constituição da garantia
terá, sob pena de nulidade, de ser reduzido a escrito e, para se tornar oponível a terceiros, inscrito num
registo especial do Instituto da Propriedade Industrial (contendo uma designação precisa dos bens
onerados, especialmente os códigos e os documentos de funcionamento) - Legeais, Sûretés 2009 cit., pág.
397 e Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., págs. 632 e 633 (estes últimos identificam como objecto
da garantia o direito – incorpóreo de natureza patrimonial - de exploração de um logiciel, não
materializado sobre qualquer suporte, mas susceptível de operações de crédito e de garantia). Procurando
sintetizar o regime legal, Henri Alterman, ob. cit., págs. 21 a 25, salienta como a garantia pode ser
constituída pelo titular do direito de exploração do logiciel (que pode não ser o seu autor), incidindo sobre
o direito de exploração (que, nos termos legais, abrange a reprodução, tradução, adaptação arranjo ou
transformação) ainda que parcial, devendo a inscrição identificar os códigos e documentos de
funcionamento do bem onerado, sendo o registo efectuado no INPI (com base num documento escrito,
não estendo previsto nenhum prazo para o efeito, sendo conveniente o credor informar-se se o logiciel
não se encontra previamente abrangido por um nantissement de fond de commerce), cumprindo ainda
mencionar a possibilidade de a garantia recair sobre um bem futuro, o logiciel em fase de estudo,
concepção ou desenvolvimento (no mesmo sentido, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 449,
esclarecendo que, deste modo, a garantia se perfeccionará antes da concepção definitiva do logiciel, mas
ressalvando que a mesma não poderá incidir sobre meros projectos de logiciel, os quais, enquanto simples
ideias, não são susceptíveis de apropriação particular). Quanto aos efeitos e tratando-se de uma garantia
sem desapossamento, incumbe ao devedor conservar o bem, o que significa evitar que o logiciel se torne
obsoleto (mantendo-o e evitando que fosse furtado), proteger contra a contrafacção (sob pena de perda do
benefício do prazo e da aplicação de sanções penais): em suma, sobre o constituinte impende um dever de
conservação jurídica (reprimindo os eventuais ataques de terceiros) e técnica (actualizando regularmente
o programa) - Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 450. Relativamente aos poderes do credor
e para além do direito de preferência (cuja hierarquia depende da data do registo), importa realçar o
direito de sequela (sem que o credor lhe possa ver oposta a regra da posse vale título, por força da
natureza incorpórea do quid onerado), bem como a ausência de retenção - Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 451. Uma interrogação prende-se, no silêncio da lei, com a possibilidade de o penhor
abranger as receitas de exploração do logiciel – respondem negativamente, Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 450, considerando que estas receitas terão que ser objecto de uma garantia
separada (que poderá ser um penhor de créditos ou uma consignação de rendimentos), embora reconheça
que esta solução pode conduzir a um impasse (na medida em que, se o constituinte não explorar por si o
logiciel, será difícil onerar os proveitos futuros, por se tratar de rendimentos incertos).
1935
Acerca desta garantia, vide supra n.º 3.5 do Capítulo I.
500
Por outro lado, a transmissão de documentos representativos dos bens onerados
também logrou consagração legal, nomeadamente quanto às mercadorias em trânsito1936
e aos automóveis,1937 embora alguns Autores contestem estarmos perante um caso de
desapossamento simbólico ou ficcionado.1938
1936
Conforme se fez alusão no n.º 5.1 do Capítulo I. De acordo com Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 80 e
segs., este mecanismo consente a dação em penhor, a favor de qualquer sujeito, de bens em curso de
transporte, nascendo a garantia pela entrega de um conhecimento ou de uma guia de transporte (mais
precisamente, trata-se de um documento constante de uma “lettre missive ouverte adressé par
l’expéditeur au destinataire et ayant pour but de constanter les conditions du transport (…).
L’expéditeur, qui restait propriétaire des marchandises, puvait en cours de transport, aliéner les
marchandises ou les mettre en gage, en transférant la lettre de voiture à l’acquérent ou au gagiste. En ce
qui concerne celui-ci le transfert régulier à son profit de la lettre de voiture équivalait à la mise en
possession des marchandises. D’ailleurs la présentation de cette lettre étatit nécessaire pour obtenir du
voiturier la déliverance des marchandises transportées”) por via terrestre, mas sobretudo marítima,
configurando aquilo a que se convencionou chamar crédito documentário (importando distinguir
consoante o documento seja sacado pelo exportador vendedor sobre o importador – caso em que aquele o
apresentará ao seu financiador, que o descontará e adquirirá um penhor sobre as mercadorias nele
representadas – ou, pelo contrário, seja sacado sobre uma entidade financiadora, hipótese na qual esta
pagará ou avançará os fundos ao importador, sendo o reembolso garantido pelo penhor sobre as
mercadorias). As principais dúvidas prendem-se com a solução a dar ao conflito em caso de pluralidade
de conhecimentos de carga, após a entrega desta última (antes da entrega, é pacífico que o portador do
documento mais antigo, prevalecerá) e quando os bens sejam entregues ao portador de um título mais
recente: o Autor, seguindo o entendimento judicial dominante, aceita a prevalência do portador do
endosso mais antigo, sustentando que “tant que le connaissement subsiste entre les mains du premier
porteur, celui (…) est le seul a avoir une possession reconnue légalement”.
1937
A lei de 19 de Dezembro de 1934 veio permitir que os vendedores de veículos a crédito pudessem
beneficiar de um penhor sobre as viaturas alienadas, mantendo o adquirente a posse desses mesmos bens
e importando a constituição da garantia a entrega de um recibo ao credor por parte da entidade registadora
do penhor (ou seja e como bem nota Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 75, “il est un gage avec
dépossession fictive. Si matériellement le véhicle reste entre les mains de l’acheteur (débiteur),
juridiquement la possession est réputée avoir été conservée par le vendeur (créancier)”, o que lhe
permite beneficiar de um direito de retenção fictício (embora possa ser preterido face a um outro sujeito
munido de um direito de retenção efectivo sobre o mesmo bem - é esta a posição dos tribunais, segundo
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 320), mas não sem que o constituinte perca o direito de
disposição do bem (apesar de, como realçam Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 319 e 320,
por um lado, não o poder entregar ao terceiro adquirente - uma vez que o constituinte é um mero detentor
por conta do credor pignoratício -, e, por outro, de a venda sem o consentimento do credor determinar a
transferência da garantia para o preço obtido). A garantia constituía-se através de um documento escrito
particular (que deveria mencionar a soma em dívida e identificar o veículo dado em garantia) que deveria
ser inscrito no registo gerido pelo município da matrícula da viatura e da emissão dos documentos de
propriedade (“carte grise”), no prazo de 3 meses a contar da entrega destes, sendo o mesmo condição de
eficácia da garantia (Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 76, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit.,
pág. 315 – evidenciando como este penhor prescinde da entrega efectiva do bem ao credor - e, embora
com dúvidas resultantes da ausência de cominação legal expressa para esta omissão, Yves Gérard, La
pratique commerciale du gage sans dépossession, in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11,
pág. 58), tendo a inscrição uma validade de 5 anos, passível de renovação. Uma vez que a lei nada dizia,
colocava-se a questão da natureza pública deste registo, opinando Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 217 e
218, que a resposta deve ser afirmativa (obrigando a uma menção da existência do ónus em caso de
futuras transmissões), embora ressalve que nenhuma menção da garantia constará dos títulos de
propriedade do veículo (embora Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 318, saliente qualquer
interessado possa solicitar à entidade registadora uma declaração, positiva ou negativa, de penhor). Mas
os principais problemas que este regime suscitava prendiam-se com a execução da garantia em caso de
incumprimento por parte do devedor (atenta a proibição do pacto comissório, o credor terá que vender o
bem, mas, para tal e uma vez que este se encontra em poder do devedor, terá que o apreender: ora, para
que esta apreensão possa ter lugar, será normalmente necessário um título executivo prévio) e com a
existência ou não de um direito de sequela (indiscutivelmente tal direito existirá se, no momento da
execução, o novo adquirente ainda não estiver na posse do veículo), especialmente quando um terceiro
tenha obtido a posse da viatura onerada. Neste último caso, discute-se se o terceiro poderia invocar em
501
seu favor o princípio da posse vale título ou, noutros termos, se a inscrição no registo será suficiente para
criar uma situação de má fé por parte nos terceiros adquirentes de direitos conflituantes com os registados
(coloca a questão, embora não lhe dê resposta Théry, ob. cit., pág. 309). A este respeito, Simon
Quincarlet, ob. cit., págs 224 a 226, noticia duas posições diversas: uma, entendendo que o registo não é
de molde a, por si só, criar essa má fé nos terceiros, o que apenas sucederia se o legislador tivesse previsto
a menção do penhor nos títulos de propriedade do veículo que com este têm que circular, pelo que o
direito de sequela do credor pignoratício é limitado aos casos em que logre demonstrar que o terceiro
conhecia efectivamente a garantia no momento da constituição do seu direito (parece ser a posição
sustentada por Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., págs. 298 e 299, realçando que a publicação da garantia,
por si só, não faz presumir a má fé do terceiro possuidor – podendo este demonstrar o desconhecimento
da garantia – e, por outro lado, evidenciando que a jurisprudência tende a resolver o conflito entre um
direito de um detentor efectivo e um detentor fictício em favor do primeiro); outra, pelo contrário,
reconhecendo o direito de sequela ao credor pignoratício, alegando que a posse do título entregue
aquando da constituição da garantia equivale à posse do próprio bem onerado e, por isso mesmo, “tant
qu’il conserve le dit titre qui représente le véhicle, ne peut être privé de cette possession: les tiers qui
auront la détention matérielle du véhicle ne pourront jamais être considérés comme en ayant la
possession complete; le débiteur détenant le gage pour le compte du créancier, les tiers auxquels il
transmettra (…) se trouveront à cet égard dana la même situation” (neste sentido, Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., pág. 321 - reconhecendo este direito de sequela, mas com um fundamento
diverso, ancorando-o na natureza fictícia da retenção e, por isso, na insusceptibilidade de perda da posse
por parte do credor pignoratício, o que lhe permite reclamar o bem independentemente das mãos em que
ele se encontre – Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 311 - alegando que, em razão da publicidade legal, o
terceiro adquirente não poderá deixar de se considerar de má fé – e Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 165,
alegando que “la publicité serait lettre morte si les tiers acquéreurs pouvaient prétendre l’ignorer et
étaient admis a arguer leur bonne foi (…) le créancier qui bénéficie du gage sur automobiles ne peut
perdre son droit de gage, puisque, fictivement, il reste saisi pendant tous le temps que la mention ou son
renouvelement conserve son droit. Le droit de suite ne cedera que devant un droit de suite véritable, la
réalité triomphant sur la fiction”). Por outro lado, importa salientar que a garantia possuía um campo de
aplicação limitado, pois apenas podia garantir o crédito do preço de venda do veículo ou o empréstimo
obtido para essa aquisição (e, por isso e como nota Yves Gérard, ob. cit., pág. 56, o financiamento da
aquisição de um stock de automóveis por parte de um concessionário não poderia ser assegurado por esta
garantia) e, paralelamente, apenas poderia incidir sobre bens sujeitos a matrícula – automóveis, tractores
agrícolas, velocípedes com motor -, novos ou usados (Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág.
314), não se permitindo, ainda, a constituição de mais do que um penhor sobre o mesmo bem (assim,
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 317, fundamentando-se na outorga de uma posse – ainda
que fictícia – ao credor pignoratício e na proibição do sub-penhor). Cumpre, ainda, notar a consagração
legal expressa de uma sub-rogação real dos direitos do credor relativamente às eventuais indemnizações
pagas pelas seguradoras em caso de sinistro que afecte o veículo onerado (arty, Raynaud e Jestaz, ob. cit.,
pág. 300). Finalmente, discutia-se a natureza jurídica da figura, defendendo uns que, na medida em que se
aplicava a qualquer venda a crédito, se tratava de uma garantia legal (contra, Jean-François Riffard, ob.
cit., pág. 76 - contrapondo que “la loi n’a pas pour effet d’instituer une sûreté. Elle se borne à rendre sa
constitution obligatoire”, preferindo falar do penhor automóvel como contrato imposto por lei – e Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 312 e 313, alegando que “le gage doit faire l’object d’un acte
écrit, ce qui implique un échange de consentement préalable. Il s’agit donc bien d’une sûreté
conventionnelle”), sustentando outros estarmos perante um penhor - neste sentido, Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., pág. 213 (baseando a sua posição na denominação legal, na concessão ao credor
de um direito de retenção – embora fictício – e na retirada ao constituinte de algumas prerrogativas
relativas ao bem onerado). Particularmente enfático na defesa da natureza pignoratícia desta garantia se
mostra Haritini Matsopoulou, Les aspects actuels du gage automobile, in Revue Trimestrielle de Droit
Commerciale et de Droit Economique, Vol. 51, n.º 4 (1999), págs. 796 e segs., criticando a sua natureza
legal (contra-argumentando que a garantia se constitui por vontade das partes - o contrato de venda a
crédito ou de empréstimo destinado à aquisição de um automóvel “qui\ déclenchera la prétendue sûreté
légale et conférera au créancier, s’il procède aux formalités prévues, une position de force à l’égard des
tiers”, - e que a lei não produz outro efeito que não seja o de validar esse modo de constituição, apesar da
ausência de desapossamento do empenhante, ou seja, a lei não cria um penhor a favor dos vendedores de
automóveis, mas permite às partes que o façam – analogamente, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 222) e
negando trata-se de uma hipoteca mobiliária (uma vez que o direito do credor pignoratício não decorre da
inscrição, conclusão esta alicerçada no facto de a lei dispor que aquele direito é conservado pela inscrição
no registo, “ce qui implique que le droit preexiste à l’accomplissement de ladite formalité”), concluindo
502
Já quanto aos warrants, estes caracterizam-se, em traços gerais, pela manutenção
dos bens em poder do empenhante, sendo emitido um título à ordem representativo
desses bens – o warrant – que pode circular por via de endosso, tendo o portador deste
o direito de ser pago pelo produto da alienação dos bens onerados, embora também esta
garantia, em regra, careça de ser registada (pelo menos no que toca ao primeiro endosso
separado do título representativo do penhor – warrant – face ao seu congénere indicador
da propriedade – récépissé).
Outros aspectos sui generis desta garantia passam pela outorga ao credor
portador do warrant de um direito de retenção fictício, embora seja debatido se tal
prerrogativa lhe permite exercer um direito de sequela face a terceiros que obtenham a
tradição material do bem (apesar de lei, normalmente, consentir que o empenhante
disponha do seu bem, não permite a sua entrega sem prévia liquidação do crédito
pignoratício), porquanto alguns fazem prevalecer a posição deste último, com base na
regra da posse vale título: ou seja, discute-se a atribuição ou não de um direito de
sequela ao credor.1939
pela inclusão na órbita do penhor, atribuindo ao registo mera condição de oponibilidade a terceiros da
garantia (isto é, como simples mecanismo publicitário e não constitutivo, de modo que “dans les rapports
des parties, le gage est valable par le seul effet du contrat prévoyant cette garantie pour le prêteur ou le
financier. L’inscription n’a d’utilité que pour opposer le droit du gagiste à tout acquéreur ou tiers. Il est
donc permis de dire que le contrat suffit pour la constitution du gage-automobile. Ce dernier, à la
différence du contrat de gage classique, n’est pas un contrat réel: c’es un contrat consensuel”), até
porque a solução contrária – atribuição de carácter constitutivo ao registo – significaria a inutilidade
daqueles contratos para efeitos de surgimento da garantia.
1938
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 91 e segs., descarta esta qualificação alegando que os preceitos da lei
“n’ont créé aucune fiction en identifiant la possession du connaissement à celle des marchandises (…)
ont simplement précisé les conditions de fait que la loi prend en considération pour déterminer la
possession des marchandises en cours de route” e, por outro lado, constatando que a posse é, não apenas
um facto material, mas igualmente um facto jurídico, ou seja, um facto a que a lei atribui determinados
efeitos jurídicos em certas condições: “or, la loi peut imposer les caractères auxqueles elle reconnaîtra
l’existence de l’élément de fait (…) elle peut notamment faire figurer parmi ces éléments, la détention
d’un titre représentatif de la chose” (considerando como meros detentores aqueles que estejam em
contacto directo com os bens onerados). Todavia, o Autor não deixa de citar posições que atribuem uma
diversa natureza jurídica ao crédito documentário, seja qualificando-o como uma hipótese de entrega do
bem a terceiro (o comandante do navio), seja como um penhor de créditos (tendo por objecto o crédito à
entrega da coisa ao portador do título). Pelo contrário, Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 48 a 50, indica
o penhor de mercadorias em curso de transporte como um exemplo de desapossamento simbólico,
noticiando o sucesso que estas operações de crédito documentário tiveram (nomeadamente através de
operações em que um banco concede crédito a um importador no valor equivalente ao preço das
mercadorias importadas, sendo o mútuo garantido pela posse do título que confere ao banco a posse das
mercadorias), uma vez que apresentam diversas vantagens (permitem ao importador obter crédito dando
em garantia um crédito futuro, relativo ao preço das mercadorias, e elimina o risco de não pagamento para
o vendedor), embora possuam igualmente alguns escolhos (o principal dos quais reside no facto de,
devendo o importador pagar ao banco com o produto da venda das mercadorias: ora, se não pagar, o
banco pode apoderar-se das mercadorias e aliená-las, ficando o importador impossibilitado de as receber).
1939
Alguns Autores concluem pela outorga deste direitos de sequela com base na má fé do terceiro
decorrente do registo da constituição do warrant ou no facto de este ser um penhor sujeito a regras
especiais (cfr. Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 348, noticiando mesmo que, no confronto
com terceiros adquirentes em momento posterior ao da constituição do warrant, alguns tribunais fazem
prevalecer este último direito, mesmo que o adquirente tenha obtido a posse do bem, alegando que este
não pode invocar a regra da posse vele título, uma vez que, legalmente, o possuidor do bem é o portador
do warrant). Outros, ao invés, consideram que o direito de reivindicar os bens apenas existirá se o
terceiro adquirente se encontrar de má fé, traduzida esta no conhecimento da existência do warrant no
momento da venda ou da entrega dos bens – neste último sentido, Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 198 e
199 e Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 381 (salientando este último ser esta uma das fraquezas desta
garantia, por força da operatividade da regra da posse vale título), Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág.
304 (acrescentando a condição de os bens em questão serem identificáveis e que, em razão de todas estas
503
O leque de bens potencialmente alvo desta garantia foi sendo progressivamente
alargado, podendo abranger coisas tão diversas como as depositadas em armazéns
gerais,1940 produtos agrícolas,1941 mobiliário dos hoteleiros,1942 stocks de petróleo,1943
industrial1944 ou material de guerra.1945
nuances, o próprio legislador sentiu necessidade de proteger o credor de outras formas, por exemplo
impedindo a tradição dos bens a terceiros sem o seu prévio consentimento), Stéphane Piedelièvre, ob. cit.,
pág. 204 e Théry, ob. cit., pág. 304 (destacando este último a sujeição do constituinte às sanções penais
previstas para o efeito). Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 606, destacam o facto de o credor
portador do warrant se poder opor à venda dos bens onerados, por ser considerado por lei como
encontrando-se na posse efectiva dos bens recebidos em garantia.
1940
Segundo Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 73 a 79, a legislação sobre os armazéns gerais remonta já a
1848 (completada em 1858 e hoje constante da Ordonnance n.º 45-1744, de 6/8/1945, modificada pela
Decreto de 30 de Setembro de 1953). Cumpre destacar, para além dos aspectos comuns aos demais
warrants (como sejam a existência de dois títulos autónomos – o warrant e o récépissé – transmissíveis
por endosso; a necessidade de o primeiro endosso – mas não dos seguintes - separado do warrant ter de
ser registado no armazém geral, sob pena de inoponibilidade a terceiros; o facto de o portador do recibo
não poder retirar as mercadorias sem pagar a dívida do credor portador do warrant; e a circunstância
deste último ter acção pessoal contra os vários endossantes, incluindo o depositante), que se opera uma
transmissão de um título representativo da posse dos bens depositados (de modo que “la possession du
titre (…) entraîne la possession des marchandises (…) la chose représentée par un titre adéquat est
considerée, comme étant matériellement en puissance du possesseur du tire”), ficando estes em poder
efectivo de um terceiro acordado pelas partes. Mas o aspecto porventura mais relevante deste regime
assenta na possibilidade de o objecto da garantia – as mercadorias depositadas – serem coisas fungíveis,
passíveis de ser vendidas e/ou transformadas, passando a garantia, neste caso, a incidir sobre as
adquiridas em substituição da originárias (o art.º 20.º, n.ºs 2 e 3, nos termos do qual as mercadorias
oneradas “peuvent être remplacées par des marchandises de même nature, de même espèce et de même
qualité. La possibilité de cette substitution doit être mentionné à la fois sur le warrant. Les droits et
privilèges du porteur du récépissé et du porteur du warrant sont reportés sur les marchandises
substitués”), fenómeno este qualificado pela jurisprudência domiantes com base no instituto da sub-
rogação real (no mesmo sentido, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 338). De acordo com
Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 46 e segs., esta garantia consente compatibilizar os interesses do
devedor (permitindo-lhe continuar a dispor dos bens onerados), com os do credor (que poderá, depois da
inscrição no registo, opor o seu direito a todos os demais credores do devedor) e os de terceiros
(porquanto, não só a constituição da garantia se encontra sujeita a registo, como dessa inscrição se fará
menção no próprio warrant), funcionando como um importante instrumento de crédito. Relativamente à
constituição da garantia, o primeiro endosso deste separado do “récépissé” deve ser datado (além de
conter a indicação do crédito garantido, da data de vencimento e do nome e domicílio do credor), devendo
o primeiro cessionário inscrever o endosso nos registos do armazém (sob pena de inoponibilidade da
garantia), processando-se a posterior circulação do warrants de acordo com as regras vigentes para os
títulos à ordem (embora com uma nuance, na medida em que os cessionários sucessivos do warrant
podem requerer a transcrição no registo da sua identificação e domicílio, o que facilitará o pagamento,
uma vez que o titular do recibo conhecerá logo a identidade do portador do warrant) - Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs. 339 a 341. Finalmente e no que toca à extinção da garantia, caberá ao
portador do recibo pagar ao portador do warrant e, caso o não faça, este disporá dos meios de defesa
cambiários, para além da possibilidade de requerer a venda ou a atribuição judicial dos bens onerados -
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 341 a 343.
1941
Permitindo, assim, aos agricultores obter financiamentos sem transferir a posse dos bens que
constituem o seu objecto de trabalho. No direito francês, esta garantia foi criada por Leis de 18/7/1898 e
de 30/4/1906 (posteriormente alteradas pela Lei de 28/9/1935), ressalvando Hardel, ob. cit., pág. 131 e
segs., que esta modalidade é diversa da que resulta do depósito das mercadorias em armazéns gerais, por
consentir ao empenhador o uso dos bens onerados (ou seja, constitui “l’adaptation à l’agriculture du
warrant de Magasin Général, mais sans entrepôt ni dessaisissement des produits”), razão pela qual
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 343, o integram na categoria dos warrants sem
desapossamento. De acordo com este regime gaulês, o constituinte da garantia deveria ser, sob pena de
nulidade (embora atípica, uma vez que os tribunais, para protecção do credor, recusam conferir
legitimidade ao devedor para a invocar - Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 347, nota 215),
o proprietário do terreno ou quem o cultivasse (mas reservados aos que exercessem uma actividade
agrícola a título profissional, abrangendo agricultores e cooperativas - Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 187
504
-, embora se não fosse o proprietário do imóvel tivesse o ónus de notificar o dominus, sob pena de
inoponibilidade da garantia, podendo este opor-se à constituição da garantia em caso de existência de
rendas em atraso e, se o fizesse, originaria a nulidade do negócio de garantia – cfr. Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs. 351 e 352), desde que proprietário dos bens a onerar (na falta deste
pressuposto, o portador do warrant pode opor o seu direito ao verdadeiro dominus ou a terceiro, por força
da regra da posse vale título e do desapossamento – embora fictício – que caracteriza esta garantia, desde
que se encontre de boa fé – traduzida na ignorância da falta de propriedade do constituinte - e o
proprietário ou o terceiro não tenham sido investidos na posse do bem). Quanto ao objecto, poderia
incidir sobre produtos ao serviço da exploração agrícola, mesmo que não estritamente ligados ao cultivo
da terra (como os produtos e os animais – quanto a estes, as partes podiam convencionar que a garantia se
estenderá aos animais que venham substituir os originariamente empenhados, ou seja, serão considerados
enquanto bens fungíveis -, o material de armazenagem e todo o demais material afecto à exploração
agrícola, assim como as colheitas pendentes e os frutos não recolhidos, mas com excepção dos imóveis
por destinação). Relativamente à publicidade, a garantia deveria ser inscrita num registo especial
(mediante declaração do financiador, contendo a identificação dos bens onerados e dos montantes
mutuados, com a eventual menção da existência de outras garantias similares prévias sobre os mesmos
bens), inscrição essa que é condição de oponibilidade da garantia a terceiros (juntamente com a entrega
do warrant ao credor, do qual deve constar o volume e o número da transcrição no registo, bem como os
eventuais warrants existentes sobre os mesmos bens - Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 191), podendo
qualquer interessado requerer um certificado atestando a existência ou não de warrants constituídos por
parte de um determinado sujeito (Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 354): para além disso,
far-se-á menção do registo no próprio warrant (caso os bens sejam confiados a terceiros, existirá ainda
um récépissé, documento através do qual o terceiro aceita o encargo de guarda dos bens empenhados).
Dos dados normativos decorre que o empenhante conserva o direito de dispor dos bens onerados (embora
a transferência só seja oponível ao portador do warrant após o pagamento do seu crédito), mas não
proceder à respectiva entrega (sancionando-se criminalmente os actos de destruição ou deterioração do
objecto empenhado), sendo o portador do warrant considerado como possuidor dos produtos empenhados
(ou seja, estamos perante um desapossamento fictício, ou seja, a posse do warrant “lui confére tous les
droits d’un créancier gagiste, bien que l’object du gage ne se trouve pas matériellement entre ses mains”
– Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 186), tendo o direito de os fazer vender e de, após intimação para
pagamento (e em caso de persistência do incumprimento, de comunicar tal facto ao registo, a fim de este
notificar os endossantes), se satisfazer com preferência sobre o produto dessa alienação, normalmente
através da sua venda, para a qual dispõe de um procedimento simplificado, (sendo discutível se o portador
do warrant pode requerer a atribuição judicial dos bens onerados – alude a esta controvérsia Simon
Quincarlet, ob. cit., págs. 196 e 197, respondendo em sentido afirmativo, alegando ser esta uma
prerrogativa prevista, em termos gerais, para todos os penhores e não excepcionada por esta legislação
específica, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 359 e 360), bem como de exercer um direito
de retenção sobre os ditos bens (embora Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 381, ressalve que tal direito não
pode ser oposto ao detentor ou possuidor efectivo do bem), assim como o direito de endossar o título (e,
ainda, o recurso contra os endossantes sucessivos do título quando este seja descontado antes do seu
vencimento). Por seu turno, o devedor tem o ónus de reembolsar o crédito garantido – ao último portador
do warrant - a fim de libertar os produtos onerados, mantendo o direito de warranter novamente os
mesmos bens – desde que previna o segundo credor da existência de uma garantia anterior - e mesmo de
os alienar (mas sem que possa entregar os bens ao adquirente sem prévio pagamento do credor garantido,
o que equivale a conceder a este um direito de retenção), incumbindo-lhe velar pela conservação das
mercadorias empenhadas (evitando a sua deterioração ou depreciação), sendo sancionado penalmente se o
não fizer. Cumpre ainda destacar, na senda de Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 188, que no caso de os
produtos onerados se misturarem com outros, o direito do credor portador do warrant “s’exercera sur une
quantité de produits mélangés de valeur égale” e, sempre que se trate de bens fungíveis, ainda que não
misturados com outros, bastará que o devedor conserve a mesma quantidade de bens onerados, assim se
consentindo um mecanismo de sub-rogação real (quanto a este último aspecto vide Marty, Raynaud e
Jestaz, ob. cit., pág. 303 e Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 203). Quanto à circulação do warrant,
aplicam-se as disposições vigentes para os títulos à ordem, ou seja, pode circular através de endosso,
respondendo perante o portador todos os que subscreveram ou endossarem o título (cfr. Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs. 355 e 356, embora o facto de o mutuário ter a possibilidade de
cumprimento antecipado obrigue o portador do warrant que o pretenda descontar a, previamente, avisar a
entidade registadora da garantia, a fim de esta alertar o mutuário acerca da identidade do sujeito a quem
deverá efectuar o pagamento).
505
1942
Criado pela Lei de 8/8/1913 (alterada pela Lei de 17/3/1915). Relativamente a esta figura, Hardel, ob.
cit., pág. 148 e segs., destaca o seu âmbito de aplicação subjectivo (a garantia podia ser constituída a
favor de qualquer sujeito que explorasse um estabelecimento hoteleiro, mesmo que não o seu proprietário,
mas desde que fosse o dominus dos bens a onerar - Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 362)
e objectivo (podendo incidir unicamente sobre os bens móveis corpóreos do empenhante – nos termos
enumerados pela lei -, com exclusão dos incorpóreos e das mercadorias), bem como o facto de os bens
objecto da garantia permanecerem em poder do empenhante que, porém, não os pode empenhar uma
segunda vez (circunstância esta criticada pelo Autor por comprometer o futuro recurso ao crédito por
parte do constituinte, mesmo que o valor do bem o consentisse). No que concerne à forma de
constituição, aos direitos que assistiam ao portador do warrant e às modalidades de execução da garantia,
valem, com ligeiras diferenças, as regras expostas para o warrant agrícola (de entre essas divergências,
destaca-se o direito preferência, em caso de venda, por parte do arrendatário do imóvel onde funciona o
estabelecimento hoteleiro - para pagamento de um montante que não excederá um ano e meio de rendas –
e, por outro lado, a impossibilidade e o bem onerado ser confiado a um terceiro – Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., pág. 361), sendo de salientar a ausência de cominação legal para o não
cumprimento das formalidades prescritas para o primeiro endosso (entende tratar-se de uma simples
inoponibilidade face a terceiros Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 364). Já Simon
Quincarlet, ob. cit., págs. 207 a 210, salienta que os bens objecto desta garantia não podem estar
previamente onerados por qualquer penhor comum ou de estabelecimento comercial (não podendo,
ademais, haver mais de um warrant para os mesmos objectos) e, por outro lado, a lei incrimina a conduta
do devedor que constitua um warrant sobre bens de que não é proprietário (ou previamente onerados) ou
que destrua ou desencaminhe os bens objecto do warrant. Por sua vez Jean-François Riffard, ob. cit.,
págs. 68 e 69, apesar de reconhecer algumas vantagens da figura em sede de execução (bastando ao
credor obter uma decisão do juiz do tribunal de comércio competente para proceder à venda), relata a sua
escassa aplicação, sobretudo devido à concorrência de outras garantias sobre os mesmos bens (como o
nantissement de material – mais vantajoso - e do estabelecimento comercial, que abarca o leque maior de
bens). À semelhança do previsto para o penhor agrícola, também neste caso existe um dever de aviso do
proprietário do imóvel, quando não seja o empenhante, sendo o procedimento e os efeitos análogos
(Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 363 e 364).
1943
Esta garantia, consagrada na Lei de 21/4/1932, aparece decalcada do warrant hoteleiro, embora com
dois aspectos distintos: em primeiro lugar, em caso de desconformidade entre as quantidades ou
qualidades dos produtos existentes num dado momento e as acordadas no momento da constituição da
garantia, o portador do warrant poderá exigir, no prazo de 48 horas, o restabelecimento da garantia nos
termos convencionados ou, em alternativa, o pagamento da dívida (de referir que a garantia recai sobre
uma quantidade não concretamente identificada de produtos petrolíferos, não exigindo sequer a lei uma
separação destes e dos que não são abarcados pelo warrant); finalmente, o vencimento antecipado da
obrigação garantida em caso de diminuição dos stocks de, pelo menos, 10% (nesta hipótese, o
empenhante deverá aumentar o valor ou as quantidades oneradas ou, em alternativa, reembolsar uma
parte proporcional da quantia mutuada: se não o fizer, vencer-se-á a totalidade da dívida), embora não se
preveja qualquer consequência para o aumento de valor do stock dos bens empenhados (não podendo, por
isso, o devedor requerer uma diminuição proporcional dos bens onerados) - Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 367. Finalmente, os Autores alertam para o facto de as entidades públicas terem
preferência na satisfação sobre os stocks o que, nomeadamente em situações de crise, poderá fazer esgotar
os stocks e comprometer a segurança dos credores particulares portadores dos warrants. Mas, o aspecto
mais original desta garantia reside no carácter fungível do seu objecto, evidenciado pelo facto de a lei
nem sequer impor que o devedor separe materialmente os bens onerados de outros do mesmo género por
ele detidos (realçam este aspecto Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 211 e segs. e, sobretudo, Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 367, explicando este último como o devedor goza da faculdade
de substituição dos bens dados em garantia, embora tal faculdade pareça em contradição com a
impossibilidade de entrega dos bens onerados a terceiros antes de pago o credor pignoratício, resolvendo
o Autor tal dilema sugerindo que “ce que le débiteur ne peut délivrer c’est le stock warranté, ce qui ne lui
interdit pas de remplacer son contenu et donc de le livrer a altrui”). Segundo Marty, Raynaud e Jestaz,
ob. cit., pág. 306, é esta natureza fungível que, ao impedir a consagração de um direito de sequela, obriga
ao estabelecimento da proibição de diminuição das quantidades oneradas por parte do devedor. Existem
ainda outras três particularidades deste warrant, quais sejam a limitação a 3 anos da validade da inscrição
no registo, a necessidade de o título ser redigido pela entidade registadora – e não pelas partes – e, por
último, a possibilidade de as partes convencionarem uma venda particular (neste sentido, Jacques Ghestin
e outros, Droit spécial cit., págs. 367 e 368).
506
Estas três últimas garantias apresentam como traço comum a natureza fungível
dos bens sobre os quais recaem (sem necessidade de uma operação material de
identificação das coisas oneradas), deixando, por outro lado, ao devedor uma liberdade
de renovação dos stocks empenhados, destarte tornando-se menos intrusivas
relativamente à actividade profissional do empenhante, embora tal fungibilidade possa
comprometer o direito de sequela do credor pignoratício.1946
A generalidade destas figuras encontra hoje acolhimento no Code de Commerce,
que dedica capítulos autónomos aos warrants constituídos pelos armazéns gerais,1947 ao
1944
Criado por uma lei de 2/9/1940, inicialmente por um período temporário, mas posteriormente
prorrogado por tempo indeterminado, aproximando-se o seu regime do consagrado para o warrant
petrolífero, variando somente o objecto da garantia (apenas produtos fabricados de acordo com as
prescrições constantes de uma “lettre d’agreement” emitida pelo Governo) e, apesar de assistir ao credor
o direito de exigir imediatamente o cumprimento da obrigação garantida em caso de diminuição da
garantia, a lei não fixar uma percentagem a partir da qual o poderá fazer (neste sentido Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs, 369 e 370 e Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 205). De acordo com o
regime legal, o Governo poderá convidar alguns industriais a fabricar determinados produtos de uso
corrente, recebendo uma carta de recomendação que lhes permite onerar tais bens e mantê-los em seu
poder, obrigando-se a manter uma quantidade deles que for acordada no momento da constituição da
garantia (sendo, por isso, esta uma garantia que incide sobre coisas fungíveis - Marty, Raynaud e Jestaz,
ob. cit., págs. 306 e 307 – ou sobre um stock - Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 205).
1945
A regulamentação desta garantia foi aprovada pela Lei de 24/6/1939, incidindo sobre mercadorias
destinadas aos interesses da defesa nacional de guerra, warrant este surgido no contexto de segunda
guerra mundial, permitindo aos industriais deste ramo obter empréstimos onerando os respectivos stocks
– sobre esta garantia, vide Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés cit., pág. 577, relatando que, actualmente,
não assume relevância uma vez ultrapassado o contexto especial em vista do qual foi criada.
1946
Acerca do direito de sequela nas garantias que incidam sobre bens fungíveis, vide infra n.º 1.1 do
Capítulo IV.
1947
Nos termos dos art.ºs L521-1 e segs., os armazéns gerais estão habilitados a negociar warrants que
representem as mercadorias nele depositadas (ou concederem empréstimos contra a constituição de
penhores sobre as mesmas mercadorias). De acordo com este regime, a cada depositante é entregue um ou
mais recibos (contendo o nome, profissão, e domicílio do depositante, bem como a identificação da
natureza e valor dos bens entregues) e a cada recibo é anexado, sob a denominação de warrant, um
“bulletin de gage” contendo as mesmas indicações do recibo (art.ºs L522-24 e L522-25): quer os recibos,
quer os warrants, podem ser transmitidos através de endosso (art.º L522-26) e são inscritos num registo,
no qual devem ser averbados, a pedido do cessionário do recibo ou do warrant, os endossos efectuados a
seu favor (art.º L522-27). Importa, todavia, distinguir o caso do endosso apenas do warrant (que vale
como penhor da mercadoria a favor do cessionário do warrant – art.º L522-28, n.º 1) ou unicamente do
recibo (caso em que o direito de disposição sobre as mercadorias se transfere para o cessionário, mas com
a obrigação de pagar o crédito garantido pelo warrant – art.º L522-28, n.º 2): no primeiro caso, o primeiro
cessionário deve inscrever o primeiro endosso nos registos do armazém geral e fazer menção dessa
inscrição no próprio warrant (art.º L522-29, n.º 3) e o portador deste pode, oito dias após o protesto,
encarregar oficiais públicos da venda a granel das mercadorias empenhadas (art.º L522-31), sendo pago
imediatamente depois dos créditos por impostos devidos pela mercadoria em questão e dos custos da
venda e da conservação das mercadorias (art.º L522-32); na hipótese de cessão apenas do recibo, o
portador deste pode pagar o crédito garantido pelo warrant, mesmo antes do seu vencimento e, se o
portador do warrant for desconhecido, o pagamento é consignado à administração do armazém geral que
se torna responsável por ele, do mesmo passo libertando a mercadoria (art.º L522-30). Apenas se o
produto da venda das mercadorias for insuficiente é que o portador do warrant pode reagir contra o
empenhante e os endossantes, neste último caso apenas se tiver procedido à venda no mês seguinte à data
do protesto (art.º L522-33). Finalmente, na eventualidade de perda de qualquer dos documentos, a lei não
deixa desprotegidos os seus portadores, permitindo-lhes, desde que demonstrem a sua propriedade e
prestem caução (a qual será liberada num prazo de 5 anos, para o recibo, ou de 3 anos, para o warrant),
solicitar uma ordem judicial que implique a emissão de um duplicado (no caso do recibo) ou o pagamento
do crédito garantido (para o warrant) – cfr. art.ºs L522-36 e L522-37. Outro aspecto particularmente
relevante deste regime sublinhado por Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 557, é a
possibilidade de as mercadorias empenhadas poderem ser renovadas e substituídas por outras, sem
prejuízo para a garantia (cfr. art.º L522-24, segundo os quais as mercadorias fungíveis depositadas num
armazém geral, relativamente às quais tenha sido emitido um “récépissé” e um warrant podem ser
507
warrant hoteleiro1948 e ao warrant petrolífero1949 - enquanto o warrant agrícola encontra
guarida nos art.ºs L. 342-1 a L342-17 do Código Rural19501951 - embora se continuem a
suscitar dúvidas acerca da natureza jurídica destas garantias.1952
substituídas por outras da mesma natureza, da mesma espécie e qualidade, desde que a possibilidade de
tal substituição seja mencionada no “récépissé” e no warrant – n.º 2 – passando o direito dos credores e
do portador do warrant a recair, sem necessidade de qualquer formalidade adicional, sobre as
mercadorias substituídas (n.º 3), podendo mesmo ser emitidos “récépissés” e warrants sobre uma
quantidade de mercadorias fungíveis integradas num lote maior.
1948
Cfr. art.ºs L523-1 a L523-15. Mantendo embora o âmbito de aplicação do diploma de 1913 a que se
fez menção, precisando que a garantia pode abarcar também bens imóveis por destinação), estes preceitos
determinam, quando o empresário não seja o proprietário ou usufrutuário do imóvel, a necessidade de
notificação do proprietário ou usufrutuário do pedido de empréstimo, informando-os do montante do
empréstimo e dos bens a onerar (cfr. art.º L523-2, acrescentando que o proprietário e/ou usufrutuário pode
opor-se ao empréstimo quando existam mais de 6 meses de rendas em atraso). Quanto ao funcionamento
da garantia, existe um registo em todos os tribunais do comércio, cabendo àquele onde se situa o hotel
entregar o warrant ao hoteleiro (não podendo ser entregue mais do que um warrant para os mesmos
objectos) que o transferirá ao financiador através de endosso (devendo este, no prazo de 5 dias, inscrever
no registo este endosso, do qual se fará também menção no próprio título), sendo o título posteriormente
transmissível através de outros endossos (art.ºs L523-4 e L523-5, nos termos dos quais todos os que
assinem ou endossem um warrant respondem solidariamente para com o seu portador). A inscrição no
registo será eliminada, nos termos do art.º L523-7, a pedido do hoteleiro, mediante prova do pagamento
do crédito garantido (havendo lugar à emissão de um certificado de abolição da inscrição) ou
oficiosamente (ao fim de 5 anos, se não for pedida a sua renovação). Não obstante a constituição da
garantia, o hoteleiro conserva a propriedade e o poder de disposição sobre os bens onerados, mas apenas
poderá entregá-los ao adquirente depois de satisfeito o credor (art.º L523-8): todavia, segundo Simler e
Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 610, caso o devedor não o faça, o portador do warrant não dispõe
de nenhum direito de sequela contra o adquirente de algum bem móvel que se encontra na sua posse de
boa fé. Aquando do vencimento da obrigação garantida e em caso de não pagamento, o portador do
warrant deverá intimar o devedor através de carta registada com aviso de recepção e, em caso de
manutenção do incumprimento, requerer a venda, nos mesmos termos da venda do estabelecimento
comercial, (sendo que, se o fizer, apenas pode reagir contra os endossantes e o hoteleiro em caso de
insuficiência dos bens empenhados para cobrir a dívida e deve fazê-lo no prazo de 3 meses a contar da
data da venda): relativamente ao produto da venda, o crédito do portador do warrant apenas cede perante
o de impostos directos e custos da venda dos bens (art.ºs L523-11 e L523-12). Por último, prevê-se a
aplicação das sanções penais para a constituição de warrants sobre bens de que o hoteleiro não seja
proprietário ou já onerados com outro penhor, bem como para o desaparecimento ou deterioração
voluntária dos bens onerados em prejuízo do credor (art.º L523-13).
1949
Este warrant encontra-se regulado (cfr. art.ºs L524-1 a L524-21) de modo em tudo semelhante ao do
warrant hoteleiro, excepto no que se refere ao objecto que, conforme decorria da legislação anterior, não
é um bem certo e determinado, mas um stock de bens que nem sequer necessita de ser materialmente
separado de outros produtos similares detidos pelo financiado (art.º L524-1). Ainda assim, alguns
aspectos divergentes merecem ser destacados: o warrant só é válido por 3 anos, sem prejuízo de
renovação (art.º L524-2); deve indicar se os bens onerados estão ou não segurados (art.º L524-3), após o
vencimento do crédito garantido e a intimação infrutífera, o portador do warrant deverá, sob pena de
perda dos seus direitos relativamente aos endossantes, denunciar o incumprimento a todos eles (art.º
L524-9); em caso de venda dos bens empenhados, esta será ordenada pelo tribunal do comércio do local
onde se encontrem as mercadorias e será efectuada por oficial público, salvo menção inscrita no warrant
que admita a venda particular (art.ºs L524-10 e L524-11); em caso de desconformidade da qualidade ou
quantidade dos bens empenhados, os financiadores podem intimar o proprietário a restabelecer a garantia
no prazo de 48 horas ou de reembolsar, total ou parcialmente, as quantias mutuadas e, se não o fizer,
produz-se o vencimento automático da obrigação garantida (art.ºs L524-15); finalmente, em caso de baixa
em 10% ou mais do valor dos stocks, os financiadores podem intimar o proprietário a aumentar a garantia
ou a um reembolso proporcional das somas mutuadas e, se não o fizer, produz-se o vencimento
automático da obrigação garantida (art.º L524-16).
1950
Apesar de retomar, em grande medida, as soluções constantes da anterior legislação (a que se fez
referência anteriormente), designadamente ao nível dos bens a onerar, dos sujeitos onerantes e das
formalidades de constituição, a oponibilidade do warrant apenas após a inscrição no registo (a qual
possui uma validade de 5 anos, renovável), o facto de, apesar de o devedor conservar a livre
administração dos bens onerados, se estes perderem a sua individualidade, os direitos do portador do
508
warrant exercer-se-ão sobre uma quantidade equivalente de produtos de igual valor e, em caso de
renovação dos produtos empenhados, a garantia abarcar, de modo automático, os bens substitutos, no que
constitui uma manifestação do princípio da sub-rogação real (reconhece igualmente neste regime a
consagração desta figura, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 64, embora distinga dois planos: em
primeiro lugar, as partes podem estipular que os animais substitutos dos inicialmente empenhados
ocupem o lugar destes como objecto da garantia; por outro lado, o depósito de bens origina a perda da
individualidade dos bens onerados, razão pela qual a garantia passará a recair sobre uma quantidade de
produtos misturados de igual valor, considerando a jurisprudência que, neste segundo caso, “dans le cas
où le warrant porte sur des choses fongibles, la faculté de subrogation devait être considérée comme
ayant été tacitement convenue par les parties. Ansi, le renouvellement des produits est possible et la
sûreté est maintenue de plein droit sur les biens ainsi substitués” – em termos análogos, Jacques Ghestin
e outros, Droit spécial cit., pág. 349, acrescentando ser vislumbrável uma tendência jurisprudencial no
sentido de admitir a sub-rogação real mesmo para além destes casos expressamente previstos na lei, por
exemplo no que concerne aos stocks de mercadorias, mas sempre na condição de existir estipulação das
partes nesse sentido). Para evitar que esta garantia possa lesar o senhorio do terreno agrícola, a lei impõe
ao constituinte do warrant o dever de o alertar do valor dos bens onerados e do crédito garantido (caso o
não faça a preferência do senhorio para pagamento das rendas prevalecerá sobre a do credor pignoratício)
e das duas uma: ou não existem rendas em atraso e o senhorio não se poderá opor à constituição da
garantia ou, caso existam essas dívidas, o senhorio pode opor-se à constituição da garantia. Cabrillac e
Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 55 e segs., criticam o regime legal por tratar uniformemente uma
garantia que pode abarcar, simultaneamente, bens determinados (os materiais e os instrumentos de
trabalho integrados na exploração agrícola) e coisas fungíveis (as colheitas e os animais) e realçam as
fragilidades desta garantia, seja no que concerne ao direito de retenção (que, embora impeça a entrega a
um terceiro adquirente, não é oponível a qualquer terceiro titular de um direito de retenção efectivo –
destacam esta fragilidade, Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 607 e segs., considerando que,
deste modo, o credor não pode opor-se à alienação dos bens onerados, o que constitui o calcanhar de
Aquiles desta garantia), seja no que respeita ao direito de sequela (por força da regra da posse vale título,
a qual não pode ser afastada pois a garantia incide sobre bens de difícil identificação e objecto de
transacções frequentes, pelo que a publicidade não é suficiente para criar uma situação de má fé nos
terceiros), seja nas limitações ao funcionamento da sub-rogação real (apenas possível quando exista
estipulação contratual nesse sentido, permitindo ao constituinte a substituição dos bens originariamente
empenhados), excepto, quanto a este último aspecto, quando recaia sobre bens fungíveis (caso em que
deverá manter uma quantidade de bens da quantidade e qualidade acordadas, beneficiando, mesmo no
silêncio do legislador, de uma faculdade de substituição, avançando mesmo que “La rotation du stock
peut, d’ailleurs, être une obligation pour le constituant dans la mesure où il est composé de marchandises
sujettes à dépérissement”: contudo, o credor não disporá de um direito de sequela que lhe permita
reivindicar os bens integrantes do stock onerado, nem mesmo em caso de má fé do terceiro). Também
Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 64, destaca como a circunstância de o devedor permanecer em poder
do bem onerado e o poder alienar e entregar a terceiro fragiliza a garantia do credor, porquanto o direito
daquele terceiro possuidor de boa fé prevalecerá sobre o do credor pignoratício, por força do princípio da
posse vale título (só assim não será se os bens tiverem sido vendidos, mas não entregues ao terceiro,
podendo o credor opor ao terceiro uma espécie de direito de retenção, decorrente da posse fictícia que a
lei lhe confere).
1951
Existe ainda o chamado warrant agrícola especial – constante do art.º 56.º do Código do Vinho – que
recai sobre stocks de vinho (mas apenas sobre o produto final e não sobre colheitas ainda pendentes), na
qual também se consagra a sub-rogação real (na medida em que a lei determina que o direito do credor
garantido incide, não apenas sobre uma quantidade de vinho determinada, mas igualmente sobre a
quantidade de álcool proveniente da destilação eventual desse vinho: Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit.,
pág. 304 - os quais salientam ainda a natureza fungível do quid onerado – e Stéphane Piedelièvre, ob. cit.,
pág. 204). Esta garantia, prestada pelos produtores de vinho, constitui-se através da assinatura, por parte
do constituinte, de um título à ordem (contendo a indicação da quantidade de vinho onerada) que, em
seguida, será inscrito num registo especial existente junto da administração fiscal, sem que a lei imponha
qualquer outra medida publicitária (como salientam Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 609,
tal ausência não se afigura muito perniciosa, dado que “les créanciers qui interviennent dans ce secteur
spécialisé et relativement fermé, prennent le soin, avant de contracter, de s’informer auprès de
l’administration fiscale sur l’existence de warrants”). Por outro lado, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés
2010 cit., pág. 558, realçam que, a partir dessa inscrição, a entidade administrativa não procederá à
entrega do documento necessário à circulação do produto onerado, pelo este ficará retido nas instalações
do viticultor, de modo que o credor gozará de um verdadeiro direito de retenção. Já Jean-François Riffard,
509
Merece especial atenção o regime do nantissement de l’outillage et du matériel
d’équipement professionel, particularmente pelo facto de, para protecção do credor, ter
afastado a regra da “posse vale título”,1953 actualmente incorporado no Código
ob. cit., págs. 64 e 65, destaca a segurança desta garantia para o credor, não apenas por poder solicitar à
administração fiscal o não envio ao devedor da documentação necessária ao levantamento ou à
deslocação dos bens onerados sem o seu consentimento (permitindo-lhe, desse modo, exercer um controlo
de facto sobre o objecto da garantia), mas ainda por poder opor o seu direito aos terceiros a quem o
devedor tenha alienado ou cedido o bem onerado, em razão da presumida má fé destes.
1952
A contestação à natureza pignoratícia desta garantia prende-se com a ausência de desapossamento do
constituinte que caracteriza os warrants, embora Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 200 e segs., ateste que a
posição dominante – e com apoio nos trabalhos preparatórios das primeiras leis que criaram este tipo de
garantia – aponta no sentido da sua qualificação como penhor, uma vez que “Les produits engagés ont
leur représentation légale dans le warrant; la remise aux créanciers de ce titre représentatif peut
constituer la tradition qu’exigent les príncipes en matière de constitution de gage (…) une sorte de
tradition brevi manu ou quasi tradition des produits engagés, de manière que le propriétaire de ces
produits se trouve détenir sa propre chose pour le compte du créancier gagiste et a titre de dépositaire”,
admitindo assim que a posse jurídica não tenha necessariamente que se identificar com a detenção física,
através de um fenómeno a que se poderá chamar a espiritualização da posse (esta posição goza do
beneplácito da jurisprudência maioritária, a qual considera que o warrant agrícola “rendu public par la
transcription est la représentation légale de la chose warrantée et confère au porteur une possession
équivalante à la possession réelle; qu’en conséquence le porteur de bonne foi est (…) fondé a oposer son
titre à l’acquéreur qui ne peut exciper d’une mise en possession antérieure”). Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 343, salientam, a propósito do warrant agrícola, que a manutenção do bem em
poder do devedor gera dúvidas acerca da natureza pignoratícia desta garantia, a qual, não obstante,
continua a ser defendida pela jurisprudência e é aplaudida pelo Autor, não apenas porque a lei consagra
uma tradição ficta dos bens onerados para o credor, mas também porque limita o direito do credor dispor
dos mesmos bens (apelidando de penhor sem desapossamento). Noticiam a recusa da jurisprudência
dominante em qualificar como hipotecas mobiliárias os warrants, Simler e Delebecque, Droit civil 2009
cit., pág. 606. Acerca da natureza jurídica das garantias mobiliárias não possessórias, designadamente
quanto à sua integração no âmbito do penhor, vide n.º 1.2 do Capítulo III.
1953
Esta garantia, instituída pela Lei de 18/1/1951 (alterada pelos decretos de 30/9/1953 e de 20/5/1955) e
pese embora o seu âmbito de aplicação limitado (apenas pode ser constituída para a aquisição de
máquinas e equipamentos profissionais – e, por isso, a favor do vendedor de tais bens, daquele que tenha
adiantado fundos para o efeito ou daqueles que tenham dado garantias pessoais para alguma dessas
operações, e apenas para garantia do preço de aquisição de tais bens - incidindo unicamente sobre esses
mesmos bens, excluindo assim as matérias primas, as mercadorias, os bens destinados a uso pessoal ou
familiar e os bens consumíveis – acerca do leque dos bens que podem ser onerados, vide Jacques Ghestin
e outros, Droit spécial cit., pág. 327), exige, sob pena de nulidade (e não apenas de ineficácia face a
terceiros – cfr., por todos, Yves Gérard, ob. cit., pág. 57) a redacção de um documento escrito (contendo a
identificação dos bens onerados de modo preciso, inclusivamente com indicação da sua localização -
segundo Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 328 e 329, esta designação deverá permitir a
distinção dos bens empenhados de outros do mesmo género pertencentes ao devedor -, bem como a
menção que a garantia constituída sobre os mesmos se destina a assegurar a aquisição desses bens)
munido de data certa (visando assegurar que a garantia se constitui no momento da celebração do contrato
de venda ou de mútuo, assim se comprovando que o penhor se destina efectivamente à aquisição de
material de uso profissional, embora a lei tenha sido posteriormente alterada no sentido de admitir que a
garantia possa ser constituída até um mês após a entrega do bem). Para além disso, este acto escrito deve,
para atribuição do direito de preferência (para Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 67, o registo é mesmo
condição de validade da garantia), ser inscrito num registo apropriado existente no tribunal do comércio
do local da situação dos bens, no prazo de 15 dias a contar da data da constituição da garantia (para além
desta publicidade obrigatória, o credor pode exigir, a todo o momento e sem que o devedor se possa opor,
a colocação de um placa nos bens onerados, indicando o local, a data e o número da inscrição registal da
garantia, sendo esta publicidade condição sine qua non para a outorga de um direito de sequela - Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 330) e com uma validade de 5 anos. Os direitos do credores são
assegurados através da proibição de venda dos bens (bem como de deslocalização do estabelecimento),
por parte do devedor e antes do vencimento e liquidação da dívida, sem a sua autorização do credor (o
que, como salientam Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 295, se traduz na imposição de uma obrigação
de carácter pessoal ao devedor), salvo autorização judicial (entendendo Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 331, que tal autorização não se traduz num poder discricionário por parte do juiz,
510
Comercial (cfr. art.ºs L525-1 a L525-20),1954 mas sem que se encontrem solucionadas as
dúvidas relativamente à sua natureza jurídica.1955
devendo este deferir tal pretensão do devedor apenas quando constate que a oposição do credor à venda
tem como intuito exclusivo causar prejuízo ao devedor), comportamentos estes que, apesar de não
gerarem a nulidade do acto de disposição (uma vez que a lei não prevê tal sanção, até porque, na ausência
da colocação da placa, o terceiro adquirente possuidor pode valer-se da regra da posse vale título), são
penalmente sancionados, para além de implicarem o vencimento automático da obrigação garantida
(Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 67). O credor goza de um verdadeiro direito de sequela,
condicionado, porém, à inscrição no registo e à aposição da aludida placa nos bens onerados, pois
entende-se que esta última forma de publicidade material cria uma presunção de má fé nos terceiros
adquirentes (todavia, sempre se poderá objectar que, por um lado, o devedor se oporá à colocação de tal
placa – pois tal consubstancia um sinal, visível para terceiros, que os equipamentos não estão pagos – e,
uma vez colocada, poderá retirá-la, sendo, nestes casos, bem mais difícil ao credor demonstrar a má fé
dos terceiros adquirente: ora, estas circunstâncias tornam o direito de sequela ilusório – assim, Cabrillac e
Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 554. Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 333,
admitem, embora com reservas, que a omissão desta formalidade pode ser suprida pelo conhecimento
pessoal do possuidor dos bens, atribuindo à publicidade um desiderato meramente informativo, de modo
que, mesmo sem a aposição da placa, “le tiers qui connaît l’existence du gage et accepte néanmoins de
rentrer en possession aide nécessairement le débiteur à méconnaître son oblgation de conservation. Il
serait ainsi constitué de mauvaise foi”. Théry, ob. cit., pág. 307, sugere que a colocação da placa tem
como única consequência a impossibilidade de os terceiros adquirentes se poderem socorrer da regra da
posse vale título). Bem mais discutível é a outorga de um direito de retenção (Legeais, Sûretés 2009 cit.,
pág. 383 e Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 248, noticiam que a jurisprudência dominante
recusa tal direito, fundando-se na ausência de desapossamento do devedor). Finalmente, quanto à
execução da garantia e em razão da sua natureza não possessória, será necessária a sua prévia apreensão
por parte do credor e, em caso de recusa de entrega por parte do constituinte, o credor deverá agir
judicialmente para apreender materialmente o bem para depois o alienar (no que toca à graduação no
confronto com outros créditos preferentes, o detentor desta garantia apenas cederá perante os créditos por
despesas de justiça ou de conservação da coisa onerada e perante os créditos salariais, prevalecendo sobre
os créditos fiscais e da previdência), podendo o credor, apesar da duvidosa existência de um direito de
retenção, requerer a atribuição judicial do bem em pagamento (neste sentido, Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 334). Adicionalmente e no que tange à extinção da garantia, a eliminação da
inscrição no registo poderá ser solicitada por qualquer das partes, desde que possuam um documento
assinado pelo credor autorizando tal acto, encontrando-se ainda previsto um procedimento específico de
expurgação do ónus (Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 335 e 336).
1954
Estes preceitos reproduzem, no essencial, as soluções da Lei de 1951, sendo de salientar, além dos já
referidos a propósito deste diploma, os seguintes aspectos: se o adquirente dos bens for um comerciante,
este penhor encontra-se sujeito às regras do penhor de estabelecimento comercial (art.º L525-1, n.º 2); a
necessidade de os bens serem identificados de modo a permitir distingui-los dos outros bens do mesmo
género pertencentes à empresa (art.º L525-2, n.º 5); o contrato de penhor deve ser celebrado no prazo de 2
meses contar da data da entrega dos bens no local combinado (art.º L525-3, n.º 1); o registo do penhor
obedece às mesmas regras do penhor de estabelecimento comercial e deve ter lugar no prazo de 15 dias a
contar da data da constituição da garantia (art.º L525-3, n.º 2); sempre que a entrega do material ocorra
fora do prazo previsto (ou fora do local acordado), os créditos garantidos tornam-se imediatamente
exigíveis se o devedor não der a conhecer ao credor, no prazo de 15 dias a contar da entrega (e o penhor
não pode ser oposto a terceiros se, no prazo de 15 dias a contar daquela notificação, o credor pignoratício
não requeira a menção à margem da inscrição do novo local ou data da entrega) – cfr. art.º L525-3, n.ºs 3
e 4; são impostas sanções penais para quem se oponha à colocação de marcas físicas nos bens
empenhados, para quem as destrua, retire ou cubra antes da extinção da garantia, bem como para os
adquirentes ou detentores dos bens empenhados que os destruam (ou tentem destruir), os façam
desaparecer ou os alterem de modo a comprometer os direitos do credor (art.ºs L525-4 e L525-19); a
necessidade de as sub-rogações convencionais da garantia serem averbadas à margem da inscrição, no
prazo de 15 dias a contar da data do negócio (art.º L525-5); a subsistência do privilégio em caso de
transformação do bem onerado em imóvel por destino (art.ºL525-8); em sede de graduação de créditos e
embora se mantenha a hierarquia anteriormente idealizada, ressalva-se que, para a preferência
pignoratícia poder ser oposta ao credor hipotecário, ao vendedor do estabelecimento comercial e ao
credor com garantia registada sobre este mesmo estabelecimento, o credor pignoratício deverá notificar
estes outros sujeitos da constituição da sua garantia, no prazo de 2 meses após esta (art.º L525-9, n.º 3);
aplicação supletiva das regras do penhor de estabelecimento comercial relativamente às formalidades de
511
Para além disso, a utilização da venda com reserva de propriedade,1956 da cessão
de créditos global ou com pacto de resgate,1957 depois de inicialmente sustentada por
inscrição da garantia, dos direitos do credor em caso de deslocalização do estabelecimento, dos direitos
do senhorio do imóvel e da expurgação da garantia (art.º L525-10); o registo da garantia é válido por um
período de 5 anos a contar da inscrição, podendo ser renovada duas vezes e garantindo, além do capital,
dois anos de juros (art.º L525-11); qualquer interessado pode requerer um atestado comprovando que
sobre determinados bens existe ou não um penhor (art.º L525-12); a notificação de venda separada de
determinados elementos do estabelecimento comercial ao qual pertençam bens objecto deste penhor,
torna imediatamente exigíveis estes últimos créditos (art.º L525-13); a venda de alguns dos bens
empenhados juntamente com outros integrados num estabelecimento comercial, é objecto de uma
avaliação separada e de um preço distinto, sendo o produto da venda dos ditos bens atribuído, em
primeiro lugar, aos beneficiários das inscrições (art.º L525-15). É, porém, discutível se o credor disporá
do direito de requerer a atribuição judicial dos bens onerados, relatando Simler e Delebecque, Droit civil
2009 cit., pág. 615, que, não obstante a recusa em outorgar-lhe um direito de retenção (e da remissão legal
para as disposições que regem o penhor de estabelecimento comercial), alguma jurisprudência o admite
(com o argumento que tal faculdade apenas deve ser negada em presença de uma disposição legal que
expressamente o determine). Para além disso, o constituinte assume um dever de conservação do bem,
abstendo-se de o alienar ou de conferir a respectiva posse a outrem sem o consentimento do credor (neste
sentido, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 553, reforçando que a violação de tais
deveres gera o vencimento imediato da obrigação garantida e, no caso da alienação ou empossamento, a
aplicação de sanções penais).
1955
Mencionam esta controvérsia Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 617, opondo os
partidários da natureza hipotecária (com base na ausência de posse, mesmo fictícia, por parte do credor,
do direito de retenção e de o direito de sequela se encontrar ligado e dependente de uma formalidade
publicitária) aos adeptos do carácter pignoratício (notando que o devedor não é livre de alienar os bens
onerados e que, noutro plano, goza do direito de atribuição judicial dos mesmos), aderindo a esta última
posição, recorrendo ainda ao argumento da designação legal e da consagração, com carácter geral na
reforma de 2006, da categoria dos penhores sem desapossamento (em termos análogos, Aynès e Crocq,
Les sûretés 2009 cit., pág. 248, questionando a opção de manter este como um penhor especial, porquanto
esta garantia se molda ao regime do penhor sem desapossamento, sendo inclusivamente inscrito no
mesmo registo que este). Aceita igualmente a natureza pignoratícia desta garantia Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs. 325 e 326, argumentando que a característica distintiva desta garantia é a
amputação ao constituinte de alguns direitos sobre o bem empenhado e, neste caso, o empenhante não
poderá vender os bens onerados sem o consentimento do credor pignoratício, ficando privado do direito
de livre disposição da coisa e, do mesmo modo, não podendo os seus outros credores apreendê-lo, uma
vez que, tal como o devedor, não o poderão vender sem o consentimento do credor pignoratício
(criticando os partidários da natureza hipotecária, reforçando que a perda do direito de disposição do bem
não se verifica nesta garantia e, por outro lado, que o direito de sequela por ela conferido se encontra
dependente a aposição, a requerimento do credor, de uma placa nos bens onerados, atitude esta que o
devedor se pode recusar a tomar). Também Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 551, se
pronunciam acerca desta questão, considerando que, de acordo com as noções introduzidas pela reforma
de 2006, a garantia devia ser qualificada como gage (por incidir sobre bens corpóreos) e não como
nantissement (garantia que recai sobre bens incorpóreos). Acerca da natureza jurídica das garantias
mobiliárias não possessórias, designadamente quanto à sua integração no âmbito do penhor, vide infra n.º
1.2 do Capítulo III.
1956
De acordo com Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 80 e 81, a reserva de propriedade enfrentou, até
1980, a limitação decorrente de a jurisprudência considerar essa garantia como ineficaz em caso de
falência do devedor, mas depois dessa data passou a ser praticamente ideal para os credores, ao bastar a
redução a escrito para a sua constituição (sem necessidade de registo) e ao consentir-se a reivindicação do
bem e mesmo do preço de revenda ou de outros bens da mesma espécie e qualidade. Todavia, com a
reforma de 2006, este instituto passou a beneficiar de consagração legal inequívoca, conforme se verá
adiante no texto.
1957
Alude a esta última figura Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 212 e segs., com sendo um dos
exemplos (juntamente com as hipotecas mobiliárias ou os penhores sem desapossamento) de figuras
criadas pela prática para contornar a excessiva rigidez das garantias legalmente previstas. Através desta
cessão de crédito com pacto de resgate pretende-se obter o mesmo efeito de garantia que se obteria
através da constituição de um penhor de créditos, mas com a notável vantagem de, em sede falimentar, o
cessionário não ter de participar na repartição da massa falida.
512
parte da doutrina e jurisprudência, lograram consagração legislativa,1958 do mesmo
modo que o uso do direito de propriedade com finalidade de garantia se foi
generalizando,1959 nas várias modalidades que esta pode assumir.1960
Claro está que o advento desta panóplia de “novas” garantias veio aumentar
inexoravelmente os conflitos entre credores preferentes (e mesmo face a terceiros
adquirentes), para os quais nem sempre se afigura fácil uma solução,1961 destarte
diminuindo a consistência das garantias mobiliárias convencionais.1962
1958
Noticiam esta evolução Gabrielli, Garanzie rotative cit., pág. 8 (para além das normas citadas sobre a
reserva de propriedade, alude à chamada Loi Dailly, para a cessão de créditos) e Albina Candian, Le
garanzie cit., pág. 244 e segs..
1959
Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 234 e segs., salienta que o recurso a este tipo de negócios tem,
relativamente às garantias reais tradicionais, vantagens a nível falimentar, na medida em que o titular de
um direito de propriedade (ainda que fiduciário) poderá opor o seu direito aos demais credores do falido
(para fazer face a este status quo, a Autora sustenta que o legislador deveria reconsiderar a distinção entre
propriedade e créditos – e a indubitável posição de supremacia da primeira –, sujeitando a oponibilidade
do direito de propriedade fiduciária do credor a determinadas condições). Todavia, não deixa de
reconhecer a tradicional aversão a este tipo de negócios, seja por violarem o princípio da tipicidade dos
direitos reais de garantia, seja pela inadmissibilidade de um direito de propriedade reduzido a uma função
meramente garantística (e espoliada do gozo do bem): à primeira objecção, a doutrina francesa mais
recente responde que “il vincolo del numero chiuso attine ai tipi, mentre la figura della propriété sûreté
attiene alla funzione della proprietà senza incidire sull’assetto tipologico delle garanzie reali”; no que
concerne à segunda, a mesma doutrina replica com o reconhecimento normativo da venda com reserva de
propriedade.
1960
Segundo Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 82 e segs., este mecanismo pode revestir diversas
modalidades, seja enquanto atribuição directa ao credor de um bem pertencente ao devedor, seja como
consequência indirecta da operação: na primeira categoria insere-se a figura do leasing, dentro da segunda
cabem as vendas comuns e as transferências de propriedade unicamente com fins de garantia (estas
últimas também chamadas alienações fiduciárias). Dentro das vendas comuns, podemos distinguir a
venda com pacto de resgate (uma autêntica venda sob condição do pagamento do preço por parte do
devedor vendedor, ou seja, em caso de não pagamento o credor torna-se proprietário irrevogavelmente), o
sale and lease back (acerca desta figura, vide infra n.º 4.3.5 do Capítulo II) e a dupla venda associada a
uma cláusula de reserva de propriedade (operação na qual o devedor vende um bem ao credor, enquanto
este lhe mutua imediatamente a quantia solicitada e correspondente ao respectivo preço e revende o bem
pelo mesmo preço, mas a crédito e com uma cláusula de reserva de propriedade). Todavia, o Autor não
deixa de alertar para a hostilidade generalizada que estas figuras enfrentam por parte da jurisprudência
francesa, nomeadamente atendendo à alegada violação da proibição do pacto comissório (vide n.º 4.3.5 do
Capítulo II), salvo quando se tratasse de um cessão de créditos em garantia que gozava de
reconhecimento legal desde a aprovação da Loi Dailly (apenas aplicável à cessão, a favor de instituições
financeiras, de créditos profissionais do devedor) e que era invocada mesmo noutras hipóteses,
justificando-se o seu sucesso pela simplicidade da eventual retransferência do crédito cedido (com efeito,
quando este se vencesse antes do crédito garantido, o credor pignoratício podia cobrá-lo directamente ao
devedor cedido, extinguindo-se o crédito cedido e tornando inútil a sua devolução ao devedor cedente).
1961
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 308 e segs., sustentam que o conflito entre dois ou mais
penhores sem desapossamento diferentes é raro (em razão da diversidade de objecto de cada um deles) e,
quando se verifiquem, normalmente são solucionados por lei (por exemplo, ao mandar prevalecer o
penhor sobre o material e equipamento sobre o incidente sobre o estabelecimento comercial, desde que
aquele tenha notificado este da existência da sua garantia, solução esta que os Autores entendem ser
tributária da prevalência dos privilégios especiais sobre os gerais): se assim não for, vigorará a regra da
prioridade temporal - no mesmo sentido, Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 244 - (no caso das garantias
possessórias, traduzida na data da entrega do bem ao credor ou a terceiro), temperado pelas regras do
registo (no caso das garantias sujeitas a tal formalidade), pela prioridade das garantias especiais sobre as
gerais, pela prevalência do direito de retenção efectivo sobre o fictício e, finalmente, pela diversidade dos
poderes atribuídos ao credor pignoratício, normalmente encimados pelo direito de sequela (segundo os
Autores, apenas as hipotecas mobiliárias e os penhores que incidem sobre bens incorpóreos – como o
estabelecimento comercial – conferem um direito de sequela pleno, contra o qual não pode ser invocada a
regra da posse vale título; para as demais garantias mobiliárias não possessórias sobre bens corpóreos,
ainda que sujeitas a registo, a sequela está condicionada à possível invocação da regra da posse vale
título; e no caso das garantias sobre bens fungíveis, nem sequer existe direito de seguimento, sendo a
513
Decorre do exposto que, à entrada para o Século XXI, o quadro legislativo
francês em matéria de garantias mobiliárias pouco se havia alterado face ao vertido na
codificação oitocentista, surgindo as poucas inovações neste domínio como parcelares e
destituídas de qualquer fio condutor,1963 para além de consagrarem soluções díspares
quanto às condições para a sua constituição e para a sua oponibilidade, de serem pouco
protectoras dos credores beneficiários,1964 de desconhecerem uma garantia mobiliária
não possessória de âmbito genérico1965 e de gerarem discussões acerca da natureza
jurídica de muitas delas.1966
protecção do credor alcançada através da obrigação de manutenção de uma quantidade suficiente de bens
da mesma espécie dos onerados), mas coadjuvados por outros (como o direito de retenção, material ou
ficcionado; a impossibilidade de o devedor dispor dos bens onerados, ao menos sem o consentimento do
credor; no caso dos bens fungíveis, pela obrigação de conservação permanente de uma quantidade e
espécie de bens da mesma índole dos previamente empenhados; e pelas sanções para o incumprimento
dessa obrigação de conservação, que vão desde o vencimento imediato da obrigação garantida até à
imposição de sanções penais). Em caso de conflito entre uma garantia com desapossamento e outra sem
desapossamento (só possível se esta for constituída em primeiro lugar), prevalecerá o credor de boa fé
titular de uma garantia com desapossamento (por aplicação da regra da posse vale título), mas, se estiver
de má fé, levará a melhor o titular da garantia sem desapossamento (neste sentido, Stéphane Piedelièvre,
ob. cit., pág. 243). Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 118, começa por relatar que o legislador estabelece
graduações contraditórias (como por exemplo quando manda antepor o credor titular de um penhor sobre
o material e equipamento ao beneficiário de idêntica garantia sobre o estabelecimento comercial,
mandando a lei prevalecer este último sobre os créditos salariais: ora, sucede que estes últimos deverão,
por força de outra disposição legal, ser pagos com preferência sobre os garantidos por penhor sobre o
material e o equipamento), para aludir que o panorama se agrava por força da multiplicação de privilégios
(que, para além de serem ocultos e atribuídos a credores cujos créditos ascendem a montantes
elevadíssimos - como o fisco, a segurança social e os trabalhadores -, não gozam de regras claras para o
concurso com outros credores preferentes: na ausência destas disposições, o Autor entende que o penhor
deve gozar de primazia sobre os privilégios mobiliários gerais – excepto no caso dos salários, fisco e
despesas de justiça - devendo ceder perante os privilégios especiais destinados a garantir os créditos para
conservação do bem, mas não sobre os que garantam os créditos pela valorização dos ditos bens), não
sendo igualmente cristalina a solução a dar ao conflito de duas ou mais garantias convencionais entre si
(excluindo o conflito entre duas garantias da mesma natureza – dirimido com base na regra prior in
tempore potior in jure -, as dúvidas colocam-se sobretudo a respeito do conflito entre um penhor sem
desapossamento e uma garantia mobiliária não possessória de constituição anterior, uma vez que, se por
um lado a preferência do credor pignoratício pode fundar-se na sua posse de boa fé – art.º 2279.º do CCF
– a solução inversa parece impor-se quando a outra garantia seja publicitada de tal forma que permita
estabelecer uma presunção de má fé para os terceiros adquirentes).
1962
Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 117 e segs., constata que este status quo contribuiu decisivamente
para um crescente recurso à utilização da propriedade com fins de garantia (assim permitindo ao credor
escapar ao concurso, porquanto o bem onerado não faz, pelo menos formalmente, parte do património do
devedor).
1963
Vide, por todos, Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 201, escrevendo que do panorama legislativo
francês transparece que “Le législateur n’a aucune vue d’ensemble et il crée des sûretés sans se soucier
des catégories juridiques déjà existantes, faisant qu’un même biens sera parfois plusiers fois grevé”.
1964
Esse facto deriva, desde logo, da inexistência de regra claras quanto à graduação dos créditos
preferentes e às limitações quanto ao direito de sequela de algumas delas, conforme melhor se verá
adiante no texto.
1965
Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 120 e 121, opinando que, ademais, as garantias mobiliárias
existentes não conferem uma informação suficiente a terceiros, seja porque são publicitadas em registos
diversos, seja porque o acesso a muitos deles é difícil, seja porque algumas delas são totalmente ocultas
(como a reserva de propriedade, os privilégios ou o próprio penhor com desapossamento).
1966
A este propósito, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 108 e segs., relata as dúvidas acerca da natureza
pignoratícia ou hipotecária, atendendo a que a distinção clássica entre penhor e hipoteca, baseada na
natureza mobiliária ou imobiliária dos bens onerados não consente uma resposta adequada, qualificando
alguns as garantias mobiliárias não possessórias como hipotecas mobiliárias, outros como penhores sem
desapossamento e outros ainda como garantias híbridas – para mais desenvolvimentos sobre esta questão,
vide infra n.º 1.2 do Capítulo III.
514
Não surpreende, assim, que já desde meados do Século passado tenham surgido
propostas destinadas a melhorar o sistema de garantias mobiliárias, seja através da
transferência do direito de preferência do credor pignoratício para o produto da venda
dos bens onerados, seja generalizando a atribuição de um verdadeiro direito de sequela
(ao menos quando o penhor incidisse sobre coisas certas e determinadas), seja, por fim,
suplicando a criação de um sistema unitário de publicidade aplicável a todas as
garantias mobiliárias constituídas pelo devedor.1967
Algumas dessas propostas, mais recentes, eram mais profundas e mexiam
mesmo com o próprio conceito de garantia real (apontando para a sua funcionalização e
preconizando uma uniformização das garantias mobiliárias), buscando inspiração no
regime norte-americano.1968
Tomando como paradigma ou modelo o UCC, esta perspectiva aponta para uma
significativa facilitação das condições de forma1969 e de fundo1970 para a constituição,
1967
Dá conta destas sugestões doutrinais Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 103 e segs.. Relativamente à
primeira proposta, ela cingia o seu âmbito de aplicação aos warrants (e, por outro lado, advertia que estes
deveriam ser obrigatoriamente domiciliados num banco, não tendo carácter liberatório os pagamentos
efectuados a outras entidades). Quanto ao direito de sequela, a sua atribuição pressupunha uma limitação
ao princípio da posse vale título (e, além disso, o mesmo não poderia ser concedido quando o penhor
recaísse sobre coisas genéricas, como sobre um stock renovável de matérias primas ou mercadorias,
constantemente renováveis).
1968
Através da consagração de um regime uniforme de garantia mobiliária, ao qual todas as figuras
criadas com esse intuito se teriam que sujeitar, permitindo assim alcançar uma maior racionalização (com
a redução dos formalismos de constituição das garantias, o que permitirá, a longo prazo, uma
uniformização transnacional), economia (inerente a uma redução dos custos das garantias e à facilidade
de execução, que se repercutirá numa maior facilidade de concessão de crédito) e equilíbrio entre os
diversos interesses em presença (que ficarão a conhecer com precisão o âmbito dos seus direitos). Esse
desiderato poderá ser alcançado através uma garantia única - seja utilizando um conceito novo, seja
recorrendo a uma das garantias previamente existentes num dado ordenamento -, seja submetendo a
generalidade das garantias existentes a um conjunto de regras comuns (sem que as partes as possam
afastar), sempre baseado numa noção funcional de garantias reais, capaz de abranger todas as figuras
utilizadas com o intuito de assegurar o cumprimento de um determinada obrigação (esse intuito deverá ser
averiguado com base na finalidade ínsita na vontade das partes ou nos efeitos da convenção): em face do
exposto, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 224, o conceito de garantia real abrange “toute technique ou
convention qui a pour finalité principale de garantir l’exécution d’une ou plusiers obligation par le biais
de l’affectation à la satisfation d’un créancier d’un bien ou d’un ensemble de biens meubles appartenant
au débiteur, laquelle affectation va conférer au créancier un droit préférentiel au paiment”. Também
identifica o sistema americano como o modelo inspirador de uma reforma do direito francês, Legeais, Les
garanties conventionelles cit., pág. 341 e segs., embora saliente que aquele sistema não consagra uma,
mas sim duas garantias mobiliárias (uma hipoteca, sujeita a inscrição no registo; outra, o penhor, que se
constitui através do empossamento do credor) e não deixe de propor algumas adaptações do regime
delineado para a hipoteca mobiliária, desde logo limitando o seu âmbito subjectivo à constituição por
parte de profissionais (excluindo da sua órbita os particulares, não só pelo risco que uma garantia com um
âmbito tão amplo representaria, mas também pelas dificuldades técnicas que o registo enfrentaria),
mantendo embora a abrangência quanto ao leque de bens oneráveis (de modo que, através de um único
negócio e com recurso a uma única garantia, possam ser onerados quaisquer bens móveis do devedor,
incluindo os futuros, exceptuando apenas aqueles bens para cuja oneração seja necessária a tradição do
bem, como sucede com alguns títulos de créditos); quanto ao regime da garantia, o registo seria condição
de oponibilidade da garantia a terceiros e, enquanto o devedor não se encontrar em situação de
insolvência, este continuará como proprietário dos bens onerados, podendo deles dispor (e, no caso de a
garantia incidir sobre créditos, cobrá-los directamente), sendo reforçados os poderes dos credores em caso
de insolvência do devedor (permitindo-se, no caso de garantias sobre créditos, notificar os devedores
destes para que não paguem aos seus devedores).
1969
Pese embora o desejo de simplificação, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 261 e segs., sustenta
(salvo para as garantias com desapossamento, nas quais a simples perda da posse do bem será bastante
para o devedor se aperceber das possíveis consequências da oneração do bem, do mesmo passo que fixa
os exactos termos em que o credor pode exercer os seus direitos sobre o bem empenhado) a necessidade
de redução a escrito do contrato constitutivo das garantias mobiliárias (não apenas para fixar com rigor os
515
bem como para o erigir do registo como mecanismo preferencial de oponibilidade das
garantias mobiliárias1971 - atribuindo um papel residual ao desapossamento1972 e
direitos e deveres das partes, mas também para evitar ou diminuir o risco de fraudes ou erros e,
especialmente, como forma de protecção do devedor contra a sua própria prodigalidade), sendo mesmo
condição de validade destas (rejeitando que a exigência de documento escrito possa comprometer a
fluência do tráfego, uma vez que bastará um documento particular para satisfazer as exigências legais).
Quanto ao conteúdo do documento, os elementos indispensáveis serão a descrição do crédito garantido e,
especialmente, do bem onerado.
1970
Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 233 e segs., (depois de esclarecer que a resposta a dar a algumas
questões - como a capacidade das partes - cabe ao direito civil comum), entende que qualquer crédito
pode ser garantido (excepto as obrigações naturais) e qualquer bem móvel pode ser objecto de garantia,
sejam eles corpóreos ou incorpóreos, certos ou fungíveis (estes últimos sobretudo quando se adira à tese
de acordo com a qual o verdadeiro objecto da garantia é, não tanto o bem em si – que constitui o suporte -
, como o seu valor económico: ora, no caso dos bens fungíveis, o interesse do credor reside no valor venal
de tais bens), determinados ou universalidades (alargando-se a garantia, nesta segunda hipótese, a outros
bens que se venham a juntar àquela por via de acessão, excepto se o bem acessório se encontrava
previamente onerado), embora com excepções (taxativamente indicadas na lei e respeitantes a bens
impenhoráveis e/ou fora do comércio), sem prejuízo da necessidade de agrupamento de todos em diversas
categorias mais ou menos abrangentes e da existência de regras específicas para alguns deles (por
exemplo para os stocks de bens – em razão da sua natureza fungível - e para os bens de consumo – para
os quais se afigura, normalmente, despropositada a inscrição de uma garantia sobre os mesmos no
registo). O Autor mostra-se particularmente enfático na demonstração da viabilidade de constituição de
garantias sobre bens imóveis por destino (ou seja, sobre bens de natureza mobiliária que se tenham, antes
da constituição da garantia, transformado em imóveis por força da sua afectação exclusiva ao serviço de
um imóvel ou da sua união a este com carácter perpétuo: a solução afirmativa assenta na constatação que
a negação da possibilidade de constituição de garantias mobiliárias sobre estes bens – os quais apenas
poderiam ser onerados enquanto acessórios do imóvel com o qual mantêm ligação – restringiria a
capacidade de financiamento do seu proprietário, para além de o eventual conflito entre credores poder
ser resolvido de acordo com o critério da prioridade temporal de constituição de cada uma das garantias,
especialmente se a que recaia sobre bens móveis também se encontrar sujeita a registo, de modo que
normalmente a hipoteca sobre o imóvel prevalecerá, por ser de constituição anterior ao penhor sobre os
bens imóveis por destinação, excepto se o credor hipotecário – depois de notificado da constituição do
penhor – tenha consentido na constituição desta segunda garantia), sobre bens futuros (o que não
levantará problemas a partir do momento em que se considere o desapossamento como apenas um de
entre os possíveis modos de publicitação da garantia, sobretudo quando se erija o registo como condição
normal de oponibilidade da garantia e se atribua ao desapossamento um papel residual: contudo, as
garantias sobre bens futuros apenas se tornarão oponíveis a partir da data do seu registo e desde que,
nessa data, os bens onerados sejam determinados ou determináveis) e de garantias flutuantes (à imagem
da floating charge inglesa ou da hipoteca aberta do Quebec) capazes de abarcar todo o património
mobiliário de um determinado sujeito (embora com os riscos inerentes para o devedor – podendo
comprometer as hipóteses futuras de financiamento, para além de ficar refém do credor a quem prestou
tão ampla garantia – e para o credor, especialmente quando o devedor mantenha intactos os seus poderes
da alienação dos bens onerados: como forma de compatibilizar os interesses de ambos, o Autor sugere
que a garantia abranja também os bens integrados no património do devedor após a sua constituição, mas
admitindo que o devedor mantenha a capacidade de disposição do seu património, com a protecção do
credor a ser assegurada através da sub-rogação no preço de alienação, sem prejuízo de a protecção de
terceiros adquirentes reclamar, sempre que a aquisição tenha sido efectuada no âmbito da normal
actividade comercial do devedor, a sua prevalência sobre os interesses do credor garantido).
Paralelamente, do ponto de vista do crédito garantido, o Autor advoga uma relativização do princípio da
especialidade, de modo a permitir que a mesma garantia possa assegurar o cumprimento de todos os
créditos que possam advir das relações comerciais entre um devedor e um dos seus credores (aliás, o
Autor relata que a própria jurisprudência francesa, em alguns arestos, se mostra aberta a este
entendimento, recusando a necessidade de indicação do montante do crédito garantido, para além do facto
de, no domínio comercial, o princípio da especialidade ser descartado em razão da desnecessidade de
redução a escrito do contrato de penhor).
1971
Apesar de reconhecer, em razão da diversidade dos bens móveis, a utopia que seria pretender
estabelecer um único modo de tornar as garantias mobiliárias oponíveis a terceiros, Jean-François Riffard,
ob. cit., pág. 268 e segs., salienta a necessidade de criação de um mecanismo publicitário suficientemente
credível para afastar a presunção de boa fé dos terceiros adquirentes (art.º 2279.º do CCF) e conceder ao
516
credor pignoratício um verdadeiro direito de sequela: ora, será o registo aquele que melhor se coaduna
com esses requisitos, por ser aquele que assegura uma mais completa e perfeita publicidade. Todavia,
esse registo, para cumprir a sua função de tornar cognoscível a terceiros a existência de uma garantia
sobre um determinado bem do devedor, deve obedecer a certas regras quanto à sua organização, no que
toca à sua dimensão (defendendo a existência de um único registo nacional centralizado ou, quando
muito, de uma base de dados centralizada reunindo os dados recolhidos pelos vários registos
descentralizados: deste modo, proteger-se-ia o credor – que não tem de preocupar-se com o local onde
deverá efectuar o registo da sua garantia - e os terceiros que pretendam obter informações sobre os dados
inscritos), à sua base (em nome do devedor, consentindo que o terceiro descubra todas as garantias
inscritas em nome deste, bem como a lista dos bens onerados), à sua gestão (entregue a um organismo
público – por exemplo, conservatórias ou tribunais – devendo a inscrição realizar-se directamente nesses
locais, excepto para os estabelecimentos de crédito ou mutuantes especializados, para os quais se poderia
admitir o registo on-line, desde que o devedor confirmasse esse registo, por exemplo através de um
código que receberia para o efeito) e à possibilidade e consulta (acessível on-line a qualquer interessado).
Mas os aspectos mais importantes do registo atinem ao seu funcionamento, não apenas no que respeita à
informação a ser publicada (opondo-se o modelo do UCC - em que a inscrição se destina apenas a dar
conhecimento a terceiros da existência de uma garantia sobre um determinado bem, devendo as
informações mais completas, nomeadamente quanto ao montante do crédito onerado, ser procuradas junto
do credor garantido – e os sistemas de registo continentais, nos quais se tende a dar uma informação mais
completa acerca de toda a operação: apesar de reconhecer que o modelo americano é mais protector dos
credores – pois, não obrigando a descrever a operação e o montante do crédito assegurado, permite-lhe
obter uma garantia que cubra financiamentos posteriores -, o Autor entende ser necessária a indicação, no
formulário de registo da garantia, não apenas de uma cópia do contrato e da identificação das partes e do
bem onerado – devendo conter menção precisa do tipo e da natureza do bem a onerar -, como também do
montante do crédito garantido, assim acautelando os interesses dos terceiros), aos prazos que medeiam
entre a constituição da garantia e o seu registo (permitindo, com o acordo do devedor, um registo
provisório anterior ao contrato constitutivo da garantia – condicionado à criação efectiva desta – e
concedendo ao credor pignoratício um período, após a constituição da garantia, para o seu registo, sem
prejuízo da imediata oponibilidade da garantia, pelo menos em determinados casos: segundo o Autor,
esses casos seriam o da garantia do vendedor ou do financiador de um bem sobre o respectivo preço –
hipótese na qual o credor disporia de um prazo de 10 dias, a contar do momento em que o devedor tenha
obtido a posse do bem, para proceder ao registo – o dos produtos resultantes da transformação ou da
alienação dos bens onerados – caso em que o prazo se destinaria a permitir ao credor apossar-se destes
novos bens ou modificar o registo da garantia, com o intuito de, segundo Jean-François Riffard, ob. cit.,
pág. 288, “permettre au créancier d’être averti de la disposition du bien par le débiteur, de s’informer
sur la nature des dits produits et de prendre ainsi toures les mesures qui s’imposent. Il n’est pas exagéré
de dire qu’elle lui donne un véritable droit de suite sur les produits issus de la disposition du bien grevé”
– e dos títulos representativos de mercadorias ou de créditos, permitindo que o credor possa adiantar os
fundos ao credor sem ter na sua posse tais títulos, dispondo o credor de um prazo para registar a garantia
ou apoderar-se dos títulos) e à própria gestão do registo, seja no que respeita à alteração de devedor (no
caso de um credor registar uma garantia sobre um bem de uma dada sociedade e, depois de esta ter
mudado de nome, um segundo credor registar uma garantia sobre o mesmo bem, o Autor dá prioridade ao
primeiro – uma vez que as condições de validade de uma garantia devem ser aferidas no momento da
respectiva constituição e, por outro lado, porque o credor muitas vezes ignorará as alterações de
denominação social do seu devedor -, excepto se tiver conhecimento dessa alteração, hipótese na qual
sobre ele impende o ónus de actualizar o registo da sua garantia) e de credor (sendo a inscrição no registo
efectuada com base na identificação do devedor, a mudança de nome do credor será irrelevante, pelo que
não será necessária uma alteração na inscrição efectuada), seja no que concerne à duração e ao
cancelamento da inscrição (a duração deverá, sem prejuízo do que as partes acordem, ser de cinco anos a
contar da inscrição, com possibilidade de renovação, podendo ser cancelada antes do final do seu prazo
de duração, bastando para tal a entrega de um documento assinado pelo credor autorizando tal
cancelamento), seja, sobretudo, quanto ao acesso à informação dele constante (de modo a assegurar a
fiabilidade desta informação e procurando compatibilizar a segurança e a rapidez, o Autor propõe que
todo o credor conhecedor dos vícios do registo os deva corrigir, impondo ao organismo gestor do registo
o dever de enviar ao credor, após cada inscrição, um extracto de modo a que este possa comprovar a
exactidão dos dados inscritos), a qual pode não ser cabal (para tal, o Autor sustenta a existência de um
dever do credor prestar a terceiros informações adicionais sobre os bens onerados e/ou o montante do
crédito assegurado).
517
admitindo até casos de constituição automática de garantias -,1973 destarte reforçando as
prerrogativas do credor,1974 não apenas em caso de modificação do objecto da
garantia,1975 como também no que toca à respectiva execução.1976
1972
Sempre de acordo com Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 300 e segs., este modo de publicitação da
garantia, pese embora o seu carácter rudimentar, surge como recomendável quando o devedor não sinta a
necessidade de conservar o bem em seu poder (como sucede com os stocks de produtos recolhidos em
armazéns gerais), para além da vantagem decorrente da ausência de custos e demoras relacionados com a
inscrição, até porque num sistema que admita em termos gerais garantias não possessórias, as
possessórias ficarão acantonadas ao uso por parte dos particulares (daí que a não imposição, quanto a
estas últimas, de inscrição no registo não cause um especial perigo para o comércio jurídico). Todavia, o
facto de o credor se tornar possuidor do bem onerado acarreta, para ele, um conjunto de deveres, como o
de conservação (do qual decorre mesmo a obrigação de vender o bem em caso de ameaça de depreciação
ou perecimento daquele, sem que, para o efeito, seja imperioso avisar o devedor), a proibição de uso ou
disposição do bem (para evitar que esta redunde numa morte económica da coisa empenhada, o Autor
sustenta que ao credor deverá ser permitido usar o bem com o intuito de preservar o respectivo valor e,
tratando-se de bens fungíveis, admite mesmo a possibilidade de alienação e de miscelânea com outros
bens, desde que mantenha a disponibilidade para devolver ao devedor uma quantidade idêntica de bens da
mesma qualidade) e a obrigação de restituição (em caso de substituição do objecto originariamente
empenhado – por sub-rogação ou por alienação de bens fungíveis – a restituição incidirá sobre os bens
detidos pelo credor no momento em que se dê a restituição), cujo incumprimento origina a aplicação de
sanções (que, para além da responsabilidade contratual – traduzida na devolução imediata do bem, sem
prejuízo da manutenção do benefício do prazo a favor do devedor -, fará incorrer o credor no crime de
abuso de confiança em caso de desaparecimento do bem ou de disposição sem autorização do devedor).
1973
Ciente que esta constitui uma excepção notória ao princípio de informação dos terceiros, Jean-
François Riffard, ob. cit., pág. 308 e segs., reduz o seu campo de aplicação aos casos em que aquele
princípio importa custos importantes sem benefícios significativos para aqueles terceiros ou para o credor,
não só em caso de garantia do preço de aquisição de bens de consumo de baixo valor (tendo em conta a
sua rápida depreciação – que conduz à sua rara utilização como garantia de outros créditos - e à
enormidade de inscrições que a sujeição a registos das garantias deste tipo de operações representaria) e,
mais genericamente, de operações garantidas por bens de baixo valor (colocando-se a questão prévia de
determinar qual esse limite abaixo do qual o registo será desnecessário).
1974
Esta protecção assenta no princípio da prioridade temporal da constituição ou do registo das garantias
(protecção esta que cessa se um segundo credor pretender inscrever a sua garantia não tendo
conhecimento da existência de uma garantia anterior, não registada, caso em que “le créancier subséquent
qui n’a pas connaissance de la sûreté au moment òu il se fait consentir la sienne, va l’emporter sur le
premier créancier à la condition toutefois d’être le premier à enregistrer ou prendre possession du bien
grevé” - cfr. Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 316), embora temperado (por exemplo, em caso de
conflito com o vendedor titular de uma garantia que assegure o pagamento do preço da aquisição – bem
como daquele que tenha financiado tal aquisição – constituída e registada no momento da entrega dos
bens ao adquirente, esta prevalecerá sobre qualquer outra sobre os mesmos bens. O Autor justifica tal
preferência com a circunstância de, sendo consentidas garantias que abarquem a totalidade do património
do devedor, este poder ficar à mercê de um único credor: ora, esta preferência criada a favor do vendedor
consente ao devedor encontrar novos financiadores, até porque o titular de uma garantia global não será
grandemente prejudicado, porquanto o bem adquirido pelo devedor – após a satisfação do vendedor –
passará a integrar a garantia global. Todavia, no caso de a garantia do vendedor ser relativa à venda de
mercadorias em stock, esta preferência do vendedor encontra-se condicionada à notificação a qualquer
titular de uma garantia global anterior sobre o património do devedor, o que implica uma consulta prévia
do registo por parte do vendedor). Por outro lado, a protecção do credor deverá manifestar-se igualmente
no que respeita a eventuais terceiros adquirentes do bem onerado, traduzindo-se na outorga de um
verdadeiro direito de sequela, do qual não resulta prejuízo assinalável para terceiros adquirentes, em razão
da publicidade assegurada pelo registo da garantia (esse direito abrangerá mesmo, ipso jure, o produto da
venda do bem onerado – excepto se o credor houver consentido na venda - ou outro bem que venha a
substituir aquele – nomeadamente por força do princípio da sub-rogação real), sem prejuízo do direito de
expurgação que deve ser reconhecido ao terceiro adquirente do bem onerado (pagando ao credor
preferente e eliminando o ónus): contudo, este poder de sequela deverá ser limitado quanto às garantias
não publicitadas através do registo (ou daquelas, embora publicadas, cujo carácter erróneo ou defeituoso
não consinta a terceiros detectar a sua existência), quanto aos bens em stock e/ou destinados a revenda no
âmbito da normal actividade comercial do devedor - pois, se assim não fosse, obrigar-se-iam todos os
potenciais adquirentes a, previamente, consultar o registo, assim originando uma quase imobilização do
518
bem (segundo o Autor, esta protecção dos terceiros adquirentes subsistirá ainda que estes, no momento da
compra, conhecessem a prévia oneração do bem, porquanto aos olhos dos terceiros a venda não foi
realizada em violação dos direitos do credor) - e quanto aos bens de valor exíguo (não só porque este tipo
de garantias – ao menos quando incidam sobre bens de consumo – devem ser consideradas como
constituídas automaticamente, sem necessidade de qualquer formalidade – tendo, por isso, uma natureza
secreta -, mas porque, ainda que as mesmas fossem registadas, seria desproporcionado impor a consulta
desses registos a terceiros – “plus un bien a une faible valeur, plus il doit pouvoir circuler librement”).
Uma outra limitação ao direito de sequela do credor resulta de, em princípio, poder ser invocado apenas
contra os adquirentes do bem onerado, mas não contra os sub-adquirentes, uma vez que a organização dos
registos com base na identificação do devedor torna impossível aos sub-adquirentes descobrir a existência
da garantia (pois aqueles desconhecerão o nome do devedor originário): de acordo com o Autor, a melhor
forma de o credor garantido se proteger será seguir de perto a actividade do seu devedor e, quando tome
conhecimento de um acto de disposição do bem onerado, agir imediatamente contra o terceiro adquirente,
antes que este revenda o bem.
1975
Sobretudo através do reconhecimento genérico da figura da sub-rogação real (e não, como sucede no
direito francês, meramente sectorial – confinando-se ao domínio das indemnizações e das mercadorias
oneradas -, apesar de uma proposta nesse sentido ter sido apresentada já em 1939 – propondo a inclusão
de um n.º 2 no art.º 2076.º do CCF, de acordo com o qual “Si, pendant la durée du gage, le bien remis en
gage est vendu par le débiteur en accord avec le créancier gagiste, les droits de ce dernier sont
transportes d’abord sur le prix (…) et ensuite sur l’objet mobilier acquis en remplacement”), de modo a
permitir a transposição da garantia para o preço de venda dos bens onerados (especialmente importante
nas hipóteses em que o credor não disponha de um direito de sequela completo), as indemnizações ou os
bens substitutos dos inicialmente onerados (pois, de outro modo, não será possível empenhar bens em
stock sem paralisar a actividade comercial do devedor). Embora reconhecendo que o fenómeno pode ser
enquadrado juridicamente na fungibilidade (quando o bem for substituído por outro da mesma natureza e
qualidade) ou na sub-rogação (no caso contrário), o Autor inclina-se para esta última, sugerindo uma
noção ampla (escrevendo até que “la fongibilité ne serait plus allors qu’une subrogabilité, en ce sens
qu’elle désignerait uniquement l’aptitude d’un bien à la subrogation”) inspirada pela ideia que o objecto
da garantia reside no valor do bem onerado, na qual se funda uma sub-rogação real de pleno direito e a
transposição da garantia independentemente do bem que venha a ocupar o lugar do inicialmente
empenhado (havendo até autores que, indo mais longe, entendem que a noção de valor – ao sugerir que o
esse valor permanece no património do devedor, saltando de um bem para outro – torna até inútil o
recurso à figura da sub-rogação real). Porém, as condições em que tal fenómeno se produz –
designadamente no que concerne à identificação do novo bem e às condições de oponibilidade – variam
em função da natureza do bem substituto, podendo este ser uma quantia em dinheiro (atenta a dificuldade
de identificação destas somas – especialmente quando o preço de aquisição do bem onerado já tenha sido
pago ao devedor e depositada numa conta corrente – o Autor propõe o recurso a mecanismos bancários
destinados a identificar o saldo do crédito do preço, como a obrigação da instituição bancária, a
solicitação do devedor, isolar essas quantias), mercadorias (tratando-se de bens fungíveis, basta o registo
inicial para assegurar a oponibilidade da garantia; caso contrário, o credor terá o ónus de demonstrar a
existência de uma ligação directa entre a disposição do bem originário a aquisição do bem substituto e,
quando se trate de uma garantia sem desapossamento, a protecção de terceiros impõe um novo registo
sobre o novo bem – a efectuar num prazo breve, não superior a 10 dias – mas cuja eficácia retroagirá à
data do registo inicial sobre o bem substituído), produtos transformados (o principal problema será o de,
na hipótese de concurso de vários credores com garantia sobre todo ou parte do produto final, determinar
qual a parte que cabe a cada um deles, sendo duas as soluções propostas: ou a aplicação de um critério
aritmético, atribuir a cada credor uma parte correspondente à relação entre o custo dos produtos onerados
utilizados e o preço de custo do produto final; ou atribuir a cada credor uma parte equivalente à relação
entre o montante do seu crédito e a soma de todos os demais - Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 338,
opta por esta segunda alternativa, alegando que a primeira pode conduzir a consequências injustas,
nomeadamente quando o bem seja vendido a um preço inferior ao preço de custo, uma vez que deixará
uma parte do preço livre de qualquer garantia e à disposição dos credores quirografários) ou sobre bens
posteriormente incorporados noutros (neste caso, põe-se a questão do conflito com titulares de direitos
sobre o bem a que serão incorporados e, sendo este um bem móvel, tal conflito deverá ser resolvido a
favor do credor com garantia sobre o bem acessório, desde que constituída antes da incorporação,
podendo mesmo retirar o bem acessório para executar a sua garantia, desde que tal retirada não cause
danos irreversíveis no bem incorporado; quanto à incorporação nos bens imóveis, o princípio é o mesmo,
admitindo-se até a prioridade sobre garantias sobre o imóvel anteriormente constituídas, com o argumento
que tal preferência em nada afecta o valor da garantia imobiliária).
519
Outras sugestões, pelo contrário, são de índole mais sectorial, seja no que
respeita ao objecto da garantia (nomeadamente no que respeita ao penhor de
créditos),1977 seja no que concerne à publicidade1978 (apelando alguns às enormes
1976
Ciente dos efeitos nefastos produzidos pela proibição do pacto comissório e pelas cláusulas de voie
parée, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 343 e segs., aponta no sentido de uma liberalização das formas
de execução da garantias, sendo a protecção do devedor assegurada através de um controlo judicial a
posteriori (no que concerne às garantias sem desapossamento, será necessária a prévia apreensão do bem
por parte do credor, a qual poderá ser obtida com o consentimento do devedor ou, quando tal não suceda,
mediante um procedimento de apreensão – que, inclusive, no direito norte-americano nem sequer tem que
ser judicial, assistindo ao credor o direito de se apossar do bem onerado, excepto quando actue contra a
ordem pública, o que sucederá, por exemplo, se invadir o domicílio ou a sede do devedor – ou pelo menos
destinado a obter a imobilização jurídica do bem – por exemplo, no caso de bens incorpóreos, o principal
objectivo será o de impedir que o devedor possa dispor do bem onerado). Naturalmente que a forma mais
comum de execução tenderá a ser a alienação do bem empenhado, a qual poderá ser pública e seguindo os
trâmites legalmente fixados para as vendas executivas (especialmente idóneas quando estejamos perante
um bem específico cuja aquisição interesse unicamente a um grupo restrito de sujeitos) ou particular, seja
efectuada pelo devedor (nomeadamente através da concessão de um prazo ao devedor para o efeito), pelo
credor (o que importaria, no direito francês, a revogação da norma que proíbe as chamadas cláusulas de
voie parée, com fundamento em que o risco de desproporção entre o objecto da garantia e o crédito
assegurado é muito menor nos móveis do que nos imóveis – tendo em conta a rápida depreciação da
maior parte daqueles – e na circunstância de nem sempre a venda judicial em hasta pública permitir o
alcançar o melhor preço possível, preço este que apenas se atingirá quando existam vários interessados na
aquisição do bem – e, mesmo nesse caso, há sempre que ponderar os maiores custos que esta modalidade
de venda importa) ou por um terceiro designado por acordo – em qualquer caso, especialmente no da
venda por parte do credor, importa limitar, em nome da protecção do devedor, os poderes de que
disponha o alienante, de modo a que a sua conduta se norteie exclusivamente pelo desígnio de obter o
melhor preço possível (neste contexto, impõe-se ao credor uma obrigação de meios, devendo proceder à
venda de acordo o método habitualmente praticado para aquele tipo de bens ou com as práticas
comerciais adoptadas pelos comerciantes que alienam bens da mesma espécie). A outra alternativa é a
atribuição do bem em pagamento ao credor, a qual terá que ser judicial (ao contrário do que sucede, por
exemplo, nos Estados Unidos, país no qual a atribuição extra-judicial apenas exige o consentimento do
devedor - o qual terá que ser posterior ao seu incumprimento - e a prévia notificação da intenção de
proceder à adjudicação ao credor aos terceiros titulares de direitos sobre o bem - em caso de oposição, o
credor terá que requerer a atribuição judicialmente), atenta a proibição do pacto comissório (proibição que
o Autor considera incongruente com a admissibilidade, postulada pela jurisprudência francesa, dos pactos
ex intervallo, pois esta última premissa não confere ao devedor uma protecção absoluta, como não facilita
os modos de o credor executar a sua garantia). Finalmente, importa assegurar que o devedor e os terceiros
titulares de direitos sobre os bens executados serão informados (impondo-se, por exemplo, ao credor o
dever de notificar o devedor e, em seguida, de pré-registar um aviso de execução da garantia, o qual
deveria ser levado ao conhecimento dos outros terceiros titulares de direitos concorrentes através da
entidade encarregue do registo) dessa execução (com uma antecedência razoável), com indicação, se for
caso disso, do local e data de realização da venda, podendo admitir-se excepções em casos bens
perecíveis, com alto risco de rápida desvalorização ou cotados num mercado reconhecido e idóneo.
Reclama igualmente uma reforma, no sentido da sua agilização, dos procedimentos de execução do
penhor Yves Gérard, ob. cit., pág. 63, destacando como esta agilização, além dos interesses do credor,
será benéfica para o próprio devedor, pois a morosidade destes processos apenas aumentam a sua divida e
o risco de perecimento ou deterioração do bem empenhado.
1977
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 347 e segs., depois de propor a consagração da
hipoteca mobiliária como garantia típica dos profissionais, sustenta que o penhor (de créditos) deve ser
reservado para os particulares e, por isso, limitado a créditos presentes, de modo a evitar que o credor
possa onerar todos os seus bens em garantia de um mesmo crédito ou obtenha créditos desproporcionados
relativamente aos seus rendimentos. Quanto à constituição, o Autor sustenta a notificação ao devedor do
crédito cedido, associada à entrega ao credor pignoratício do documento comprovativo da existência de
tal crédito, concedendo-se ao credor, antes do vencimento do seu crédito, o poder de se informar do
cumprimento do contrato que liga o seu devedor ao devedor do crédito empenhado e, se este se vencer
antes do crédito garantido, cobrá-lo e depositar os montantes respectivos numa conta especial até ao
vencimento do seu crédito (quando este se vencer, poderá cobrar o crédito empenhado – excepto se este
ainda não estiver vencido – ou dele dispor sem necessidade de observância das formalidades legalmente
impostas para a execução do penhor, nomeadamente sem recurso à via judicial ou notarial).
520
vantagens associadas ao recurso às potencialidades disponibilizadas pela
informática),1979 seja no que atine à eliminação de algumas causas de preferência.1980
1978
Para M. A. Morgan de Rivery, La publicité du gage, in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994),
n.º 11, pág. 85 e segs., o sistema de publicidade existente consiste no desapossamento, para os penhores
tradicionais, e na inscrição no registo, para os penhores sem desapossamento (este último decalcado do
regime da hipoteca imobiliária, unicamente para bens de valor suficiente e passíveis de identificação).
Sucede, porém, que o sistema de publicidade do penhor, não só não abarca todos os bens empenháveis,
como se prevêem registos diversos para as várias modalidades de penhor (havendo, não uma publicidade
do penhor, mas diversas publicidades para cada tipo de penhor) e, mais do que isso, muitas das garantias
sujeitas a inscrição nesses registos são expressa (hipotecas navais o aéreas) ou doutrinal e
jurisprudencialmente (v.g. o estabelecimento comercial) consideradas hipotecas mobiliárias. Em face
deste contexto, o Autor preconiza uma transferência do teor das inscrições em caso de transferência da
sede do constituinte para a área de competência de outro registo, um alargamento do campo de
informação fornecida directamente (nomeadamente através da consulta on line do registo) e uma
simplificação das formalidades necessárias para o registo (seja diminuindo, à imagem do modelo
americano, a documentação exigida para o efeito – resumindo-se à indicação do crédito garantido, dos
bens onerados e das partes na relação de garantia -, seja, mais ambiciosamente, permitindo o registo
directo on line por parte do credor: esta última hipótese implica que a fiabilidade do sistema seja
assegurada através da atribuição ao credor registante de um código de acesso ao registo, sendo o
consentimento do devedor assegurado, para além da necessidade de aposição da assinatura electrónica do
credor, mediante o envio àquele por parte da entidade registadora de um documento destinado a
confirmar a identidade do credor e a veracidade das demais menções inscritas). Paralelamente, alerta para
a premência de uma renovação do quadro legal vigente neste domínio, eliminando os prazos para efectuar
o registo e uniformizando a sua duração (deixando às partes a liberdade de convencionarem uma duração
coincidente com o prazo de vencimento da obrigação assegurada e, supletivamente, fixando um prazo de
5 anos, renovável) e, sobretudo, definindo com rigor quais as garantias mobiliárias sujeitas a publicidade
(da qual deveriam escapar apenas alguns privilégios creditórios). Estas alterações permitirão, segundo o
Autor, erigir uma publicidade cabal, a qual se justifica porquanto embora “la publicité augmente un petit
peu les coûts mais fournit une information qu’il n’est pas besoin de rechercher par des moyens plus
coûteaux au cas ponctuel: quand ont réduit les coûts de transaction, on facilite la libre circulation des
biens et on facilite ainsi l’enrichissement général”.
1979
M. A. Morgan de Rivery, ob. cit., pág. 86 e segs., embora reconhecendo que o sistema francês já se
socorria, antes da reforma, desta ferramenta (na medida em que a maior parte dos registos eram já
informatizados), retirando daí diversos benefícios para o comércio jurídico (permitindo a sua consulta
pelos interessados – directamente no telemóvel para os assinantes do serviço, mediante pedido para os
não assinantes – a um preço razoável e com um conteúdo fiável, uma vez que a integração da informação
no sistema informático se dá no próprio dia da inscrição e os erros são limitados através da possibilidade
de efectuar buscas por siglas e nome ou denominação comercial do constituinte da garantia), alerta para
as insuficiências do sistema publicitário (não apenas porque alguns registos permanecem não
informatizados, mas também pela necessidade de instruir o pedido de registo com um conjunto extenso de
documentos – v.g, para o penhor de estabelecimento comercial, cumpre apresentar o original do contrato,
juntamente com dois exemplares de um modelo tipo aprovado por portaria ministerial -, bem como pela
ausência de um mecanismo de transferência das inscrições em caso de transferência da sede do
constituinte para outro local abrangido por um registo diverso, de modo que “La société qui transfère son
siège n’a pas a fournir un état des inscriptions figurant sous son nom, et aucun texte ne requiert au
greffier de l’ancien siège social qu’il transfère l’état d’inscription au greffier du nouveau siège. La
visualisation des sûretés (…) se faisant greffe par greffe, il suffit qu’une société transfère son siège dans
le ressort d’un autre greffe pour que son état des inscriptions apparaisse vierge (…). Même si mention du
transfert du siège social est faite, il faut que le consultant ait le réflex de visualiser ou de commander
l’état d’endettement au greffe d’origine du constituant, ce qu’il ne pensera pas nécessairement a faire”).
Mas o principal problema, na óptica do Autor, reside na existência de um quadro legal disperso e
desarticulado, caracterizado pela pluralidade de locais para efectuar o registo em função do tipo de bem a
onerar (desde o tribunal do comércio, ao instituto nacional da propriedade intelectual, passando pela
esquadras de polícia e até pela sociedade de autores), pela diversidade de prazos para efectuar esse
mesmo registo (havendo até algumas garantias para as quais não se fixa prazo algum) e pela diferente
validade da inscrição (entre 5 e 10 anos, normalmente renováveis) e, mais grave de tudo, pela ausência de
publicidade para determinadas garantias, como o penhor de valores mobiliários, a reserva de propriedade
ou os privilégios creditórios: em suma, “Le systême de publicité actuel n’est pas satisfaisant pour le
créancier garanti ou pour les tiers. Par son caractère disparate, il ne facilite pas l’inscription des
521
Todavia, recentemente1981 verificou-se um volte face neste cenário, com uma
reforma profunda das garantias mobiliárias, a qual se traduziu numa alteração
significativa do Código de Napoleão, com a introdução do Livro IV (art.ºs 2284.º a
2488.º), integralmente dedicados às garantias (pessoais e reais).
A necessidade de reunião, num único diploma com a relevância do Code
Civil,1982 da miríade de garantias disseminadas por inúmeras leis avulsas, com vista a
sûretés. Par son domaine d’application restreint, il ne peut prétendre donner une image fidèle du crédit
d’une enterprise”.
1980
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 349 e segs., reclama a eliminação dos mecanismos a
que chama perturbadores do jogo normal das garantias (direito de retenção, reserva de propriedade e
direito ao pagamento directo) e dos privilégios creditórios (não apenas porque os motivos de equidade e
interesse comum que presidiram à sua criação são hoje menos evidentes e, sobretudo, atendendo à sua
banalização), embora esta última deva ser progressiva (propondo antes uma redução significativa dos
mesmos). Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 190 e segs., apesar de reconhecer a sedução da ideia de
abolição dos privilégios creditórios (em razão da sua natureza oculta, da dificuldade em determinar a
respectiva graduação recíproca e no confronto com as demais garantias, o prejuízo que a sua passividade
face à posição do devedor pode representar para os outros credores – podendo, inclusivamente, concorrer
para a falência do devedor, por saberem ser os primeiros a ser pagos – e a difícil justificação da concessão
a determinados credores), entende que a mesma é utópica (não apenas pela oposição a que estaria votada,
mas também pela necessidade de assegurar o pagamento de determinados créditos que representam um
interesse colectivo – como os fiscais e previdenciais – que, não fora a existência de privilégios, seriam
suportados por todos os cidadãos) e até indesejável (uma vez que uma total liberalização do direito das
garantias implicaria uma benefício para os credores dotados de maior poder económico, visando a
concessão de privilégios corrigir esses abusos, outorgando uma preferência aos credores cujo menor
poder económico não consentiria a obtenção de uma garantia convencional do devedor), sugerindo apenas
a redução do número de credores deles beneficiários (apenas àqueles que mereçam uma protecção
especial, que não disponham da capacidade de obter uma garantia convencional e que não estejam
sujeitos à pressão de outros credores para a renunciarem à sua garantia: com base nestes critérios, advoga
a manutenção dos privilégios do fisco, da segurança social e dos trabalhadores) e a aproximação do seu
regime ao das garantias convencionais (desde logo limitando a sua duração a um determinado período de
tempo, sujeitando-os a publicidade, na ausência da qual o privilégio seria inoponível a terceiros – embora
admita excepções nos casos em que ao credor não possa ser exigido o registo e os créditos abaixo de um
determinado valor -, e, finalmente, estabelecendo que a prioridade entre garantias contratuais e legais se
aferiria pela prioridade do registo e, quanto aos privilégios ocultos, este seriam prioritários).
1981
Estes novos preceitos foram introduzidos pela Ordonnance n.º 2006-346, de 23 de Março de 2006,
publicada no Jornal Office de 24 de Março de 2006, tendo entrado em vigor no dia seguinte ao da
publicação (na falta de disposição específica quanto à entrada em vigor deste diploma, cumpre aplicar o
disposto no art.º 1.º do CCF, de acordo com o qual as leis entram em vigor na data por elas fixada ou, se
estas nada disserem, no dia seguinte ao da publicação), salvo quanto a alguns aspectos merecedores de
regulamentação posterior (cfr. art.ºs 58.º e 59.º da citada Ordonnance n.º 2006-346).
1982
Esta reforma, como quase todas, não se encontra imune a críticas, designadamente no que toca à não
erradicação de regimes especiais espalhados por outros diplomas - inclusive, algumas das inovações da
reforma incidirem sobre alguns desses diplomas - assim comprometendo a preocupação de sistematização
e de, por outro lado, o penhor sem desapossamento ser impraticável enquanto não for publicado o
diploma complementar relativo ao funcionamento do registo em que tal garantia terá que ser inscrita
(acerca destas críticas, vide Taj Société d’Avocats – L’adaption du droit des surêtes à la vie de
économique, in La lettre de la Société d’Avocats, Julho de 2006, n.º 22, pág. 1). Também Legeais,
Sûretés 2009 cit., pág. 369 e segs., enumerando a subsistência de penhores com (o penhor comercial –
entendido, segundo Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 225, como o constituído em garantia de
uma dívida comercial, pelo menos do lado do devedor, independentemente da natureza dos bem
empenhado e da qualidade de comerciante ou não de qualquer das partes - e o penhor constituído em
garantia de entidades autorizadas a exercer a actividade comercial de empréstimos garantidos por
penhores) e sem desapossamento (penhor de stocks, warrants e penhor de material e equipamento) que
usufruem de regimes especiais, que se afastam em alguma medida do regime civilístico (por exemplo, o
penhor comercial dispõe de formas de execução mais céleres, bastando uma intimação ao devedor e, oito
dias após, o credor poderá vender os bens por um corrector) e que originam por vezes dúvidas de
compatibilização com este regime (por exemplo, não é pacífico se, após a reforma, o penhor comercial
terá que ser reduzido a escrito, uma vez que até então não tinha de o ser – respondem afirmativamente
522
assegurar a clareza e coerência do sistema jurídico francês1983 – e, por inerência, a
fiabilidade do comércio jurídico e a concessão de crédito – terá sido o mote para esta
reforma: a ocasião, essa, surgiu com o duocentésimo aniversário da lei civil francesa.1984
O objectivo genérico da reforma foi o de modernizar o direito das garantias,
tornando-o atraente para os actores económicos e os cidadãos em geral, simplificando
os mecanismos de constituição, ampliando o âmbito dos bens susceptíveis de ser dados
em garantia e flexibilizando os modos de execução, sempre com a preocupação de
equilibrar os interesses do credor e do devedor.1985
Importava, por outro lado, aligeirar a demasiada rigidez – baseada nos princípios
da especialidade e da tipicidade – do direito anterior, com base na qual o mínimo desvio
aos tipos legais deixava o credor privado da sua garantia, ao que se associava uma
tradicional renitência em aceitar a transferência da propriedade com fins de garantia. 1986
Todavia e ao invés da tendência dominante no contexto internacional,1987 não se
optou pela criação de uma única garantia mobiliária, de natureza não possessória e
sujeita a publicidade – à imagem do art.º 9.º do UCC americano – por se ter considerado
inoportuno integrar todas as garantia existentes numa só figura jurídica,1988 refutando
algumas propostas formuladas nesse sentido.1989
Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 555, alegando que a solenidade do contrato constitutivo
do penhor tem um alcance geral; em sentido contrário, Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 225 e
Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., págs. 504 e 505, esclarecendo estes últimos que esta
ausência de formalismo constitui uma relativização do princípio da especialidade, quando reportado ao
crédito garantido (para mais desenvolvimentos sobre este aspecto, vide infra n.º 2.1 do Capítulo II).
1983
Michel Grimaldi, La prenda en derecho francés: derecho positivo y proyecto de reforma, in Garantías
reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006,
pág. 17 e segs., reconhece, porém, que esse esforço de codificação não foi totalmente alcançado,
persistindo diversas garantias em diplomas avulsos, que não só não foram absorvidas pelo Code, como
tão pouco foram por ele revogadas.
1984
Michel Grimaldi, ob. cit., pág. 18 e segs., evidencia como, nestes duzentos anos, o Code Civil foi
satisfatoriamente adaptado nos domínios dos direitos de personalidade, da família, mas não no âmbito do
direito patrimonial. Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 280 e segs., salientam como,
antes da reforma de 2006, o Código de Napoleão, no que toca às garantias reais, tinha sido apenas objecto
de retoques pontuais. Tendo em vista a reforma de 2006, foi constituída uma comissão de revisão desta
área, composta por 11 membros (6 docentes universitários, 2 banqueiros, 1 magistrado, um notário e um
advogado), cuja missão se prolongou por um período de 18 meses, tendo o seu trabalho culminado na
apresentação ao Governo de um ante-projecto e de uma exposição de motivos.
1985
Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 281.
1986
Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 285 e 286.
1987
Realça este aspecto Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 174 a 179, apontando como exemplos o
projecto de lei uniforme elaborado pela CNUDCI e a o projecto de garantia uniforme de garantias
internacionais sobre material de equipamento mobiliário (sobre estes projectos, vide infra n.º 1.2.10 do
Capítulo II).
1988
Na elucidativa imagem de Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 286, nota 235, “El
arco de La Défense podrá ser muy moderno, pero fue construido en línea con el Arco de Triunfo y con el
Louvre”. Segundo Michel Grimaldi, ob. cit., pág. 21 e segs., o não seguimento desse caminho justifica-se
pelas diferenças – nomeadamente ao nível do risco de destruição e ao procedimento de execução – entre
as garantias mobiliárias que incidem sobre bens corpóreos e incorpóreos e, por outro, porque
relativamente aos primeiros, “algunos credores y algunos deudores pueden legítimamente preferir una
garantía con desplazamiento posesorio: los primeros, porque les confiere un derecho de retención de
reconocida eficacia; los segundos, porque la ausencia de publicidad les permite mantener una mayor
reserva de su endeudamiento”. Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 153 e segs., distingue entre os
obstáculos jurídicos (desde a qualificação do UCC como uma mera recolha de leis e não como um
código, sem regras e princípios claros e com uma complexidade que apenas um jurista especializado o
poderá compreender, passando pelo próprio conceito de security interest – insusceptível de tradução
gramatical e jurídica - e terminando com a impossibilidade de recepção num sistema civilista de uma
instituição marcadamente inspirada por princípios de common law, nomeadamente porque “il est difficile
de voir un droit réel dans toutes les espèces de biens qui sont susceptibles d’être grevés par une sûreté
523
No que especificamente respeita ao penhor, o progressivo surgimento de
penhores sem desapossamento (com a inerente confusão quanto à sua inclusão na órbita
do hipoteca ou do penhor) e, por outro lado, a multiplicação de garantias desta índole
sobre bens incorpóreos – cuja regulação codicística era manifestamente insuficiente –
ditaram esta revisão.1990
A reforma, quanto à garantia pignoratícia, opera uma divisão entre os casos os
penhores incidam bens corpóreos (denominado “gage”) daqueles que recaiam sobre
bens incorpóreos (apelidado “nantissement”),1991 ao qual é dedicado um capítulo
autónomo dedicado um capítulo autónomo (cfr. art.ºs 2355.º a 2366.º), nele se
inspirée du security interest” e, noutra ordem de considerações, porque aquela importação poria em causa
o carácter acessório da garantia) e os políticos (consubstanciada no desejo de preservar e valorizar as
instituições nacionais, sem adulteração das tradições jurídico-culturais).
1989
Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 156 e segs., conforme se fez alusão anteriormente, propôs uma
reforma de âmbito mais geral, apontando o modelo norte-americano como fonte de inspiração - até
porque algumas propostas de reforma pontuais enfrentam obstáculos, nomeadamente no que se refere à
reserva de propriedade (por ser uma garantia oculta, por que a sua extensão causa problemas de difícil
resolução – especialmente quando o seu beneficiário pretenda exercer o seu direito de sequela sobre um
bem transformado, o que implicará um cálculo do valor acrescentado ao bem originário - e por ser
particularmente pensada para os fornecedores de bens) e, em geral, ao uso da propriedade com função de
garantia (com a invocação do princípio do numerus clausus dos direitos reais, do carácter absoluto do
direito de propriedade – insusceptível de dissociação entre uma propriedade valor atribuída ao credor e
outra propriedade utilidade conferida ao devedor – e pela prioridade absoluta que conferem ao seu titular
que eclipsaria as garantias tradicionais) – não só porque o mesmo trilho foi perseguido com sucesso
noutros países, como o Canadá, incluindo o Quebéc, estado no qual a herança jurídico-cultural francesa
não entravou a adequação ao regime do UCC, com a entrada em vigor do novo Código Civil em 1994 (a
nova garantia modelo foi apelidada de hipoteca, podendo ser com ou sem desapossamento e rege-se por
muitos princípios comuns à security interest, como sejam a ausência de formalidade específica para a sua
constituição – excepto tratando-se de garantias sem desapossamento, caso em que será necessário, para
protecção de terceiros, a redacção de um documento escrito -, a sujeição a registo, a possibilidade de
incidir sobre qualquer tipo de bem móvel e mesmo sobre a globalidade do património de um devedor, o
prolongamento da garantia para o produto da venda do bem onerado – caso esta ocorra no decurso da
actividade normal do devedor – e, em caso de transformação do bem, automaticamente para o produto
final), mas sobretudo porque essa perspectiva liberal (abandonando a atitude dirigista do legislador
francês e consentindo às partes a criação de qualquer tipo de garantia sobre qualquer categoria de bens
móveis: todavia, o Autor reconhece a necessidade de temperar este liberalismo, invalidando as garantias
obtidas com o único intuito de prejudicar o devedor e os seus demais credores – bem como nos casos de
sobre garantia - e, por outro lado, atribuído garantias legais a credores com menor poder económico) e
uniforme (sujeitando todas as garantias às mesmas regras) é a mais idónea para o desenvolvimento
económico (porquanto os financiadores tenderão a concedera mais crédito à medida que as garantias que
exija em troca sejam simples e eficazes).
1990
Neste sentido, Michel Grimaldi, ob. cit., pág. 19 e segs..
1991
Legeais, Sûretés 2009 cit., págs. 371 e 372, critica que se continue a utilizar o mesmo termo - gage -
para apelidar o penhor com e sem desapossamento, considerando que este último “se rapproche plus de
l’hypoyhèque que du gage avec dépossession. Il repose sur une publicité par inscription sur un registre.
Seuls les autres effets de la garantie justifie véritablement un rapprochement entre gages avec et sans
dépossession”. Apesar disso, o Autor aplaude inquestionavelmente a consagração do penhor sem
desapossamento - porquanto o mesmo satisfaz as necessidades do comércio jurídico – qualificando-o
mesmo como “la sûreté de l’avenir”, não fora a consagração legal da propriedade fiduciária. Para uma
crítica da terminologia utilizada na versão originária do Code Civil, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 13 e
segs., advertindo para a circunstância de as garantias sobre bens incorpóreos serem designadas ora como
“gage” (vide, por todos, o penhor de créditos), ora como “nantissement” (como sucede com o penhor de
participações sociais) e, por outro lado, de o termo “gage” ser, na sistematização do Code, uma garantia
com desapossamento que, com a evolução posterior, serviu igualmente para designar garantias não
possessórias (vide o penhor sobre veículos automóveis, no que constitui, à face dos princípios do Code,
uma verdadeira heresia), garantias estas que, não raras vezes, eram também apelidadas de “nantissement”
(vide o caso do penhor do material e utensílios).
524
regulamentando o penhor de créditos1992 e de conta bancária1993 (sem prejuízo, porém,
do disposto em legislação específica, nomeadamente no Código Monetário e
1992
Embora, na prática, os preceitos de tal capítulo apenas sejam aplicáveis ao penhor de créditos (art.º
2355.º, n.º 3), porquanto o n.º 4 do art.º 2355.º afirma que o penhor sobre outros bens incorpóreos esteja
sujeito, na falta de disposição em contrário, às regras sobre o penhor de bens corpóreos.
1993
Nos termos do art.º 2360.º, este penhor tem como objecto o saldo (provisório ou definitivo) do credor
no momento da realização da garantia (salvo a regularização das operações em curso) – vide o n.º 1. Sob
a mesma reserva, em caso de falência do constituinte, os direitos do credor incidem sobre o saldo da conta
na data de abertura do procedimento (n.º 2). De acordo com Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 392, este
preceito constitui o reconhecimento legislativo do entendimento, já dominante na doutrina, segundo o
qual as garantias que incidam sobre moeda escritural têm como objecto o saldo da conta bancária (e,
portanto, não constituem uma garantia sobre um bem corpóreo), o qual constitui a expressão do crédito do
detentor da conta sobre o depositário (em termos análogos, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit.,
pág. 526). Contudo e como salienta o mesmo Autor, o preceito em questão não esgota o leque das
garantias que podem incidir sobre a moeda, uma vez que o art.º 2360.º aborda apenas a hipótese de
abertura de uma conta não bloqueada numa instituição de crédito em nome do constituinte da garantia,
podendo a garantia recair sobre uma conta bloqueada (para a qual não existe regime legal específico) ou
ainda o dinheiro ser objecto de uma garantia fiduciária, implicando a transferência da respectiva
propriedade para o credor. Em termos paralelos, Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 565 e
segs., realçam existir um conjunto vasto de garantias tendo por objecto a afectação de uma quantia em
dinheiro a um credor, visando o seu pagamento preferencial, apontando como exemplos a caução (a que
chamam depósitos de garantia, e que constitui um verdadeiro penhor, uma vez que “malgré le transfert de
la propriété dont bénéficie le céancier, car ce transfert n’est pas de l’essence de la convention – il ne
s’agir pas d’un transfert fiduciaire -, mais résulte simplement de la nature des choses et plus précisément
de la nature de l’object de la convention”) e o penhor de conta bancária (consagrado agora na lei civil,
embora os Autores chamem a atenção para a necessidade de distinguir consoante o credor seja o próprio
banco – permitindo, em razão da reciprocidade e da identidade dos sujeitos, que seja convencionada a
compensação entre os créditos das partes - ou, ao invés, seja um terceiro, caso em que a instituição
bancária assumirá o papel de terceiro depositário, produzindo-se o desapossamento do devedor através da
notificação da operação ao banco por parte do credor pignoratício, mas sem que seja possível a
operatividade da compensação, mas tão somente a concessão de um mandato para que o credor possa, em
caso de incumprimento do devedor, movimentar a conta onerada): em qualquer dos casos, os Autores
relatam que alguma jurisprudência tende a qualificar algumas das garantias sobre dinheiro como
pagamento antecipado – e não propriamente como garantias – porquanto a sua função é antes de mais de
extinguir uma dívida e não tanto de garantir o seu cumprimento, posição esta por eles contestadas, uma
vez que “Le gage espèces est en effett un gage avec dépossession ayant pour objet des choses fongibles
(art. 2341)” (embora reconheçam algumas especificidades face ao regime geral do penhor, como sejam a
impossibilidade de a execução assumir as modalidades tradicionais de venda ou atribuição judicial),
mesmo que as partes dispensem o credor da obrigação de manter separados os bens recebidos em garantia
dos seus próprios bens (hipótese na qual este adquirirá a propriedade dos bens onerados, mas com o dever
de restituir outros equivalentes – art.º 2341.º, n.º 2, do CCF). Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010
cit., pág. 532 e segs., adoptam uma classificação diversa, distinguindo entre as garantias concedidas a
favor de qualquer credor - dentro das quais incluem aquelas em que o bem onerado é entregue
directamente ao credor (hipótese esta enquadrável no art.º 2341.º e, havendo convenção nesse sentido,
implica uma transferência da propriedade para o credor, sem que tal obste à qualificação da garantia como
penhor, até porque a reforma de 2006 oficializou esta última designação: porém, como salientam os
Autores, “Le créancier étant propriétaire des fonds reçus, il a un droit exclusif sur ces derniers. La dette
de restitution qu’il a contractée est appelée à se compenser avec la créance garantie (…). La sûreté est
ainsi réalisée par un moyen qui assure à son titulaire la priorité absolue, ce qui trahit l’existence d’une
sûreté-propriété et non d’un gage puisque ce dernier ne ménage pas une telle priorité à son titulaire”) ou
a um terceiro, normalmente uma instituição de crédito (pugnando alguns pela qualificação do negócio
como penhor de um bem incorpóreo diverso de um crédito, enquadrável no regime geral do penhor –
sendo o desapossamento efectuado através da remessa do dinheiro para uma conta especial, normalmente
bloqueada, da qual o constituinte não poderá fazer levantamentos sem autorização do credor, não
podendo o saldo da conta ser objecto de compensação com qualquer outro existente em outras contas do
constituinte ou outro crédito que o banqueiro possua para com o constituinte - enquanto outros
consideram estarmos perante um penhor de créditos, posição esta que parece ter merecido acolhimento
legal com a reforma de 2006: de qualquer modo, parece pacífico que o credor não dispõe de um direito
exclusivo sobre os objectos onerados, mas apenas a preferência pignoratícia, embora possa evitar o
525
Financeiro, no qual se prevê o penhor de contas de instrumentos financeiros,1994 regime
em que se destaca a consagração legal da figura da sub-rogação real),1995 não
concurso de credores recorrendo à atribuição judicial ou acordando uma convenção comissória com o
devedor) - e, pelo contrário, as conferidas ao banqueiro depositário (distinguindo consoante o constituinte
transfere para uma conta especial os fundos dados em garantia – caso em que estaremos, à imagem do
analisado anteriormente, perante um penhor de bem incorpóreo ou um penhor de créditos, em que a
extinção do crédito garantido se opera, normalmente, através da compensação com a dívida de restituição
do banqueiro, assegurando a este uma prioridade absoluta – ou tais fundos sejam levantados (prélevés),
hipótese esta em que estaremos perante um penhor em que se verifica uma transferência da propriedade
dos bens onerados).
1994
Nos termos do art.º L211-20 deste Código (na redacção introduzida pela Ordonnance n.º 2009-107, de
30 de Janeiro e regulamentado pelos art.ºs D211-10 a D211-14, aprovados pelo Decreto n.º 2009-297, de
16 de Março), o penhor sobre contas de títulos deve fundar-se num documento escrito contendo os
elementos essenciais do acordo (especialmente os títulos financeiros onerados), constituindo-se a garantia
- tanto entre as partes como relativamente à entidade emitente dos mesmos e a terceiros – através de uma
declaração assinada pelo constituinte titular da conta contendo diversas indicações legalmente tipificadas
(como o montante do crédito garantido – ou, pelo menos, dos elementos que permitam assegurar
identificar tal crédito -, a natureza e número dos títulos financeiros inscritos inicialmente na conta
empenhada, bem como os dados que consintam a identificação desta) e dirigida ao gestor da conta
(conforme salienta Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 402, é o momento da recepção que marca a
constituição da garantia, a partir do qual o constituinte perde a livre disposição dos bens onerados).
Todavia, como indicam Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., págs. 579 e 580, é difícil conceber que
o penhor possa resultar da declaração unilateral do devedor, sendo antes mais curial presumir que esta
declaração foi precedida de um acordo de vontades entre as partes, esclarecendo os elementos essenciais
do pacto e as condições de funcionamento da conta, nomeadamente consentindo ou não ao constituinte
manter o poder de disposição dos valores constantes da conta onerada). O credor pode obter, mediante
simples pedido ao detentor da conta, um certificado atestando a existência do penhor, com um inventário
dos títulos e quantias financeiras inscritos na conta à data do pedido (art.º L211-20, n.º 1). A conta dada
em penhor deverá revestir a forma de uma conta especial, aberta em nome do titular e detida por um
intermediário financeiro, um depositário central ou pelo próprio emitente (na ausência desta conta
especial, consideram-se como integrantes da conta empenhada todos os instrumentos financeiros
mencionados, bem como as quantias em dinheiro objecto de um procedimento informático de
identificação – cfr. art.º L211-20, n.º 2). Cabe às partes no contrato de garantia definir as condições de
disposição dos bens integrantes da conta empenhada por parte do empenhante (e se o detentor da conta
não for o credor pignoratício e este tiver autorizado o constituinte da garantia a dispor dos bens integrados
na conta, tal facto deverá ser comunicado por escrito ao detentor da conta, não podendo este contrariar as
instruções recebidas sem o consentimento do credor – art.º D211-13), sem prejuízo da outorga ao credor
de um direito de retenção sobre os instrumentos financeiros e montantes pecuniários existentes na conta
dada em garantia (art.º L211-20, n.º 4, norma esta que Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 263,
interpretam como um exemplo de consagração legal de um direito de retenção sem detenção, mas à qual
atribuem o mérito de, conjugada com a intervenção do terceiro detentor da conta, consentir a dação em
penhor do mesmo bem a favor de diversos credores, contornando assim o obstáculo que poderia resultar
da indivisibilidade do direito de retenção, que permitiria ao primeiro credor opor-se à posterior afectação
dos bens e à sua execução enquanto não fosse integralmente satisfeito, até porque a indivisibilidade do
direito de retenção se encontra associada com a posse material do bem empenhado por parte do credor, o
que não sucede neste caso, uma vez que a posse é exercida por intermédio do gestor da conta; contra,
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 389, alegando que o direito de retenção do credor obsta,
salvo acordo do credor, à constituição de penhores ulteriores sobre a mesma conta, mesmo que o valor
desta exceda significativamente o valor do crédito garantido, defendendo, por isso, a consagração legal
explícita da possibilidade de pluralidade de penhores sobre a mesma conta, mesmo sem o consentimento
do primeiro credor pignoratício: mais, estes últimos Autores, ob. cit., págs. 391 e 392, mostram reservas
quanto à consagração de um direito de retenção sobre uma conta que permanece em nome do devedor e
consideram-no mesmo inútil para protecção do credor, uma vez que o devedor não pode dispor dos bens
integrantes da conta, bastando, para tal, a impossibilidade de o devedor transferir os bens para outra
conta). Quanto è execução da garantia (cfr. art.ºs L211-20, n.º 4 e D211-12), as regras variam consoante a
conta empenhada abarque títulos financeiros negociados num mercado regulamentado e quantias
monetárias (caso em que o credor, oito dias após uma intimação dirigida ao devedor - e ao constituinte da
garantia, se este não for o devedor, e ao detentor da conta, se este não for o credor pignoratício. Após o
não cumprimento da intimação, o credor adquire a propriedade das somas pecuniárias e, relativamente
526
resolvendo, contudo, a questão relativa à natureza jurídica dos títulos desmaterializados
integrantes das contas1996 parecendo configurar como objecto do penhor as próprias
contas de instrumentos financeiros.1997
Para além de outros aspectos que já foram (com especial ênfase no alargamento
do leque de bens empenháveis - ao consentir-se expressamente a oneração de bens
527
futuros, universalidades, stocks de bens e bens fungíveis, mesmo em garantia de
créditos futuros -, na inadmissibilidade de penhores constituídos a non domino, a
consagração de um direito de retenção mesmo a favor do credor titular de um penhor
sem desapossamento)1998 ou serão (a reformulação da proibição do pacto comissório)1999
analisados noutra sede e outras menos relevantes (como a consagração legal supletiva
do pacto anticrético quanto aos frutos - cfr. art.º 2345.º- e a renovação das regras
relativas ao penhor que incida sobre um veículo automóvel, nos termos dos art.ºs 2351.º
a 2353.º),2000 merece especial referência o facto de o contrato de penhor deixar de ser
um contrato consensual, para passar a ser um contrato solene, sujeito a forma escrita
(contendo a indicação do crédito garantido, assim como a espécie, natureza e quantidade
dos bens empenhados – cfr. art.º 2336.º), surgindo esta como condição de validade do
contrato, mesmo entre as partes.2001
1998
Vide supra n.ºs 2.4.2.1 e 9.2.1 do Capítulo I.
1999
Vide infra n.º 4.1 do Capítulo II.
2000
Acerca destas inovações, vide Ministére de la Justice cit., pág. 7. Relativamente a esta última garantia,
importa salientar que se passa a aplicar a todos os créditos e/ou credores (e não apenas, como sucedia até
então, a favor de credores vendedores ou mutuantes de somas para a aquisição destes veículos), podendo
incidir sobre qualquer veículo automóvel sujeito a matrícula e à emissão da declaração que permita a sua
circulação); exige-se, para a sua constituição e sob pena de nulidade, um documento escrito, tornando-se
a garantia oponível a terceiros através de declaração efectuada junto da entidade administrativa
responsável pela emissão da declaração de circulação (art.º 2351.º), devendo esta inscrição ser efectuada
no prazo de 3 meses a contar da entrega do documento de circulação, mas sem efeitos retroactivos (e
Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 547). Uma vez efectuado o registo, será entregue ao credor recibo
dessa declaração, através do qual o credor será considerado como possuidor do bem empenhado (art.º
2352.º). No que concerne aos poderes do credor pignoratício, este disporá de um direito de retenção
(defendem a atribuição deste direito, apesar do carácter ficto da posse do credor, Simler e Delebecque,
Droit civil 2009 cit., págs. 619 e 620, referindo ser essa a posição da jurisprudência dominante, mas
ressalvam que a circunstância de a posse não ser efectiva ceder perante um eventual direito de retenção
material por parte de outro credor sobre os mesmos bens), das faculdades de realização da garantia nos
termos do Code Civil (incluindo a possibilidade de requerer a atribuição judicial do bem), sendo mais
discutível a outorga de um direito de sequela (de acordo com Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit.,
pág. 622, duas teses se contrapõem: para alguns, o terceiro adquirente, se ignorar a garantia no momento
da sua aquisição, pode valer-se de regra da posse vale título e afastar as pretensões do credor pignoratício;
pelo contrário, para outros este último poderá repelir os acções do adquirente em virtude da sua posse
ficta atribuída por lei: os Autores propendem para esta segunda alternativa, por ser a que melhor se
coaduna com o valor da publicidade e merecer o beneplácito da jurisprudência que, em face da legislação
anterior, apenas fazia prevalecer o direito do terceiro quando o direito do credor pignoratício não
houvesse sido publicitado nos termos legais; já Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 549,
defendem, apesar do silêncio da lei, a existência de um direito de sequela completo, decorrente do direito
de retenção fictício que afasta a regra da posse vale título potencialmente invocável por um terceiro, na
medida em que este último não se poderá considerar possuidor, que será o credor: só não será assim se o
credor não tiver inscrito a sua garantia no registo, mesmo que o terceiro adquirente se encontre de má fé –
traduzida no conhecimento da existência do penhor – uma vez que é a publicidade que torna a garantia
oponível a terceiros e outorga ao credor pignoratício o direito de retenção fictício). Porém, as dúvidas
acerca da configuração jurídica desta garantia (já existentes na regulamentação anterior, conforme já se
aludiu) subsistem, nomeadamente quanto ao seu carácter hipotecário (por comportar um verdadeiro
direito de sequela) ou pignoratício (por conferir ao credor direitos de retenção e de atribuição judicial),
aceitando Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 623, tratar-se de uma garantia híbrida, mas
optando, afinal, por incluí-la no âmbito do penhor (também por força da expressão empregue pelo
legislador) – acerca, em geral, da natureza pignoratícia ou hipotecária das garantias não possessórias, vide
infra n.º 1.2 do Capítulo III.
2001
Sendo esta uma regra comum ao penhor com e sem desapossamento (todavia, como salienta Legeais,
Sûretés 2009 cit., pág. 360, no penhor com desapossamento este contrato escrito não terá que ser
registado, uma vez que a oponibilidade da garantia é assegurada através do desapossamento). Em caso de
inobservância deste requisito, o contrato não produzirá qualquer efeito, pelo que será nulo ou até mesmo
inexistente (neste último sentido, vide Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 231.
528
O facto de a validade inter partes do contrato prescindir da entrega do bem,
mesmo no penhor com desapossamento, faz com que este deixe de ser considerado um
contrato real quanto à sua constituição e, por outro lado, consente que o mesmo bem
possa ser dado em garantia de mais de um crédito, ainda que pertencente a diversos
credores.2002
Se para a validade do contrato a lei exige a sua redução a escrito, a sua
oponibilidade a terceiros será assegurada através da entrega do bem ao credor ou a
terceiro (no penhor com desapossamento) ou mediante a inscrição num registo2003 (no
penhor sem desapossamento)2004 – cfr. art.ºs 2337.º, n.º 1 e 2338.º.
2002
Neste sentido, Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., págs. 537 e 538. Afirmam igualmente que o
contrato de penhor deixou de ser um contrato real quanto à constituição, Cabrillac e Mouly, Droit des
sûretés 2010 cit., pág. 504, Michel Grimaldi, ob. cit., pág. 22 (salientando este último que tal qualificação
não pode subsistir a partir do momento em que o desapossamento do devedor deixa de ser condição de
validade do contrato: todavia, o mesmo Autor não deixa de salientar que o contrato não se transforma em
contrato consensual – no sentido em que não se tornar perfeito pelo mútuo acordo das partes – porquanto
a lei exige agora a sua redução a escrito) e Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 288 a
290 (destacando como a entrega da coisa deixa de ser requisito de perfeição do contrato e do direito real
de penhor, para passar a ser mera condição de oponibilidade da garantia, nos mesmos termos da
publicidade registal). Aliás, já antes da reforma Aynès, Rapport introductif, in n.º special da Rev. Jur.
Comm, ano 38 (1994), n.º 11, págs. 11 e 12, dava conta da existência de duas posições contraditórias a
respeito do papel desempenhado pela entrega do bem, a clássica de acordo com a qual o desapossamento
seria, não apenas um instrumento publicitário, mas mesmo uma condição de surgimento do penhor (ou,
noutros termos, uma formalidade constitutiva do direito, recondutível à expressão “En l’absence de
dépossession, quelle que soit la volonté des parties, il n’ya pas de gage”) e que, por isso, qualifica o
penhor como um contrato real e outra, mais recente, segundo a qual a entrega do bem assumiria um
intuito meramente publicitário, podendo, por isso, ser substituída por outro mecanismo alternativo
susceptível de levar ao conhecimento de terceiros a constituição do penhor (permitindo, igualmente,
descartar a boa fé dos eventuais terceiros adquirentes): apesar disso, o Autor reconhecia a predominância
da primeira orientação (argumentando-se ainda que o desapossamento, tendo em conta o carácter não
solene do contrato de penhor, surge como um alerta para a gravidade do acto praticado pelo constituinte),
designadamente ao nível da jurisprudência dos tribunais superiores (precisando que o essencial nem é o
empossamento do credor como medida de publicidade, mas sim o desapossamento do constituinte, o que
consente a entrega do bem a um terceiro, facto que evita que o credor tenha que receber e conservar bens
para os quais não possui condições), retirando desta concepção uma conclusão fundamental, qual seja a
que os penhores sem desapossamento serão sempre especiais e apenas existirão nos casos expressamente
previstos na lei, sem que a autonomia privada tenha legitimidade para inovar neste domínio).
2003
Segundo o Decreto n.º 2006-1804, de 23/12/2006, este registo situa-se no tribunal do comércio do
local de registo do constituinte (ou, se este não se encontrar sujeito a tal obrigação, do local da sua sede
ou do seu domicílio), cabendo ao credor pignoratício remeter ao tribunal um original e duas cópias do
contrato de penhor (sendo uma delas devolvida ao requerente), contendo uma série de indicações
enumeradas na lei (onde se incluem o nome ou denominação do constituinte, a data da constituição da
garantia, o montante do crédito garantido – ou, no caso de créditos futuros, os elementos que permitam a
sua determinação - , assim como a data da sua exigibilidade e dos juros -, a eventual existência de um
pacto comissório, a descrição do bem onerado – quanto à sua natureza, localização ou, quando se trate de
um conjunto de bens presentes ou futuros, a sua natureza, quantidade e qualidade – e eventual faculdade
concedida ao constituinte de alienar as coisas fungíveis oneradas, nos termos do art.º 2242.º do CCF). Por
outro lado, o registo deve indicar a categoria de bens a que os bens onerados pertencem (que, de acordo
com a Circular do Ministério da Justiça de 1 de Fevereiro de 2007, publicada a 10 de Fevereiro e entrada
em vigor a 1 de Março, são as seguintes: 1. animais; 2. relojoaria e jóias; 3. instrumentos musicais; 4.
material, mobiliário e produtos de uso profissional não compreendidos noutras categorias; 5. materiais de
uso não profissional não informático; 6. material desportivo; 7. material informático e acessório; 8.
mobiliário; 9. móveis incorpóreos, excepto participações sociais; 10. moedas; 11. obras de arte, de
colecção ou antiguidades; 12. participações sociais; 13. produtos de edição, de imprensa ou de outras
indústrias gráficas; 14. produtos líquidos não comestíveis; 15. produtos têxteis; 16. produtos alimentares;
17. outros), devendo estes registos locais comunicar o nome das partes e a categoria dos bens
empenhados a um registo nacional, efectuando-se a consulta, gratuita, através de do nome do constituinte
e da categoria dos bens (sendo que a informação fornecida por este registo central se limita a informar a
529
Resulta, assim, que o novo quadro legislativo elimina a imprescindibilidade do
desapossamento do empenhante,2005 ou seja, admite de modo inequívoco a existência de
penhores sem desapossamento do empenhante (art.ºs 2336.º a 2338.º),2006 sujeitos a
existência do penhor, devendo os interessados recorrer ao registo local para obter mais informações).
Todavia, estes diversos registos são completados por um registo central nacional (ao qual todos os
registos nacionais devem comunicar, por via electrónica, a constituição e modificação das diversas
garantias), acessível, de forma gratuita (porém, a emissão de uma certidão contendo a indicação das
várias inscrições compete a cada tribunal do comércio e deverá ser paga pelo requerente), através de um
site na internet, que permite a identificação do constituinte e da categoria a que pertence o bem
empenhado (porém, a informação prestada pelo registo nacional limita-se a dar a conhecer a existência de
uma garantia, devendo os interessados recorrer aos registos locais para obter uma informação mais
completa acerca da mesma). Uma vez efectuado o registo, este tem uma validade de 5 anos, podendo ser
renovado antes de expirado este prazo; ao invés, a eliminação da inscrição pode ser requerida pelo credor
ou pelo constituinte (mas, neste último caso, deverá demonstrar o acordo do credor ou uma decisão
judicial nesse sentido). Sobre esta matéria, vide Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., págs. 512 e
513.
2004
Este aspecto é particularmente importante, porquanto a partir do momento em que o penhor é
regularmente publicado, os “ayant cause” a título particular do constituinte da garantia não poderão
invocar a sua eventual posse de boa fé para impor o seu direito ao do credor pignoratício (art.º 2337.º, n.º
3, do CCF), de modo que a publicidade da inscrição destrói a boa fé daqueles terceiros (apesar de a lei
não o dizer expressamente, este preceito apenas deverá ser aplicável aos penhores sem desapossamento,
pois só estes se encontram sujeitos a uma publicidade fidedigna capaz de afastar a boa fé de terceiros –
neste sentido, Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 540). Assim sendo e como realça Legeais,
Sûretés 2009 cit., págs. 374 e 375, este preceito consagra um verdadeiro direito de sequela a favor do
credor pignoratício, que lhe consente reivindicar o bem do terceiro adquirente a quem o constituinte da
garantia tenha alienado o bem (muito embora o Autor advirta que o alcance desta norma é discutível,
sustentando alguns – cfr. Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 514 - que a protecção do
credor pignoratício não actua quando o conflito seja, não com o adquirente, mas sim com o sub-
adquirente, uma vez que este não poderá ser considerado “ayant cause” do constituinte da garantia e, por
isso, não beneficiar da protecção conferida pela regra da posse vale título) ou, como salientam Aynès e
Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 233, “Les ayant cause à titre particulier du constituant reste par
hypothèse en possession (…) ne pourront pas invoquer la possession du constituant avec lequel ils auront
traité même de bonne foi, et devront s’incliner devant les droits du gagiste par inscription” (apesar disso,
estes Autores alertam para a incompletude do direito de sequela do credor titular de um penhor sem
desapossamento, resultante da dificuldade de identificação e do risco de desaparecimento do bem, para
além do facto de as mutações não serem publicadas no dito registo). Outra questão relaciona-se, no
silêncio do legislador, com a circunstância de o constituinte poder ou não alienar o bem empenhado:
respondem negativamente Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 514 (com base no facto de
o direito de sequela do credor pressupor a correcta publicitação da garantia e, sobretudo, não o proteger
contra os sub-adquirentes, concluindo “L’aliénation créant un risque anormal pour le gagiste, on peut
diffcilement admettre que le constituant, tenu de mantenir le gage en l’état, ait le droit d’y proceder”) e
Aynès e Crocq, ult. ob. e loc. cit. (tendo em conta as debilidades do direito de sequela anteriormente
expostas): porém, qualquer dos Autores citados admite excepções se a garantia recair sobre bens
fungíveis (e existir uma convenção nesse sentido – cfr. art.º 2342.º) ou sobre universalidades (que, por
definição, recai sobre um conjunto de bens – fungíveis ou não – que podem ser livremente alienados e
renovados pelo constituinte).
2005
Todavia, como salienta Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 371, esta inovação pode ser considerada como
aparente, na medida em que o ordenamento jurídico francês consagrava já, em diplomas avulsos, diversos
penhores sem desapossamento, normalmente apelidados de “nantissement”.
2006
Com efeito, apesar de ter mantido o tradicional penhor com desapossamento (com a justificação, dada
pelo Groupe de travail relatif a la reforme du droit des sûretés cit., pág. 10, que a ele poderão continuar a
recorrer aqueles que pretendam guardar sigilo acerca do seu endividamento, uma vez que o penhor sem
desapossamento se encontra sujeito a registo), consagra, ao lado dele, um penhor sem desapossamento (de
acordo com o Groupe de travail relatif a la reforme du droit des sûretés cit., pág. 10, esta figura foi
inspirada na noção de security interest criada pelo art.º 9.º do UCC norte-americano), deste modo fazendo
sucumbir a qualificação de contrato real do negócio de constituição do penhor. O penhor com e sem
desapossamento divergem, ainda, quanto aos efeitos do pagamento do crédito garantido (nos termos do
art.º 2339.º, no penhor com desapossamento, o constituinte pode exigir a restituição bem; no penhor sem
desapossamento, pode requerer a eliminação da inscrição registal) e das consequências do incumprimento
530
inscrição no registo2007 - prevendo mesmo a hipótese de conflito entre penhores com e
sem desapossamento (art.º 2340.º, n.º 2)2008 -, no que constitui, porventura, a alteração
mais significativa no âmbito da reformulação do regime do penhor.
Esta solução legal parece aderir à constatação que as formalidades perseguidas
pelo desapossamento – proteger o credor contra a dissipação do bem onerado, advertir
os terceiros da constituição da garantia e dar cumprimento ao princípio da
especialidade, assim evitando os penhores genéricos - podem igualmente ser
asseguradas através de um mecanismo publicitário.2009
O próprio Ministério da Justiça Francês justifica a alteração legislativa com a
constatação que “l’exigence systémathique de dépossession du débiteur peut nuire à ses
propres intérêts lorsque la chose est utile à son activité économique. Elle peut donc
constituer un frein à sa demande de crédit et le priver d’une source de financement
nécessaire à un investissement“.2010
Por último, mas não menos importante, o novo regime das garantias reais
reconhece e regula expressamente as chamadas “proprieté-sûrétes” - ou seja, quer a
reserva de propriedade (cfr. art.ºs 2367.º a 2372.º),2011 quer a alienação fiduciária com
da obrigação de conservação do objecto empenhado (de acordo com o art.º 2344.º, no penhor com
desapossamento o constituinte pode exigir a restituição do bem empenhado e uma indemnização pelos
danos sofridos; no penhor sem desapossamento, o credor pode invocar o vencimento imediato da
obrigação garantida ou solicitar um reforço da garantia).
2007
A instituição de um registo contribui, num outro plano, para uma relativização da protecção conferia
ao terceiro de boa fé (decorrente da regra posse vale título), porquanto, uma vez inscrita a garantia, todos
os titulares de direitos adquiridos posteriormente não se poderão considerar de boa fé (neste sentido,
Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 294 e 295, ressalvando unicamente a hipótese de o
credor ter autorizado o devedor a alienar os bens empenhados).
2008
Depois de o n.º 1 do art.º 2340.º estabelecer que para dirimir o conflito entre dois ou mais penhores
sem desapossamento se atenderá à ordem de inscrição no registo, o n.º 2 dispõe que, quando sobre um
bem alvo de um penhor sem desapossamento, for constituído um penhor com desapossamento, o direito
de preferência do primeiro credor é oponível (desde que regularmente publicado) ao segundo, sem
prejuízo do reconhecimento do direito de retenção a este último. Esta norma não regula o conflito entre
mais de um penhor com desapossamento sobre o mesmo bem, parecendo, porém, que, nos termos
restritos em que tal conflito se possa dar, o mesmo será dirimido através do recurso à regra da prioridade
temporal de constituição de cada um deles. Por outro lado e como salientam Aynès e Crocq, Les sûretés
2009 cit., pág. 234, o credor hierarquicamente inferior poderá mesmo obter a atribuição judicial do bem
onerado, mas sujeitar-se-á ao exercício do direito de sequela por parte do credor com uma preferência
superior.
2009
Neste sentido, Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., págs. 231 e 232, ressalvando apenas o caso de
determinados bens corpóreos de difícil identificação e localização, para os quais se afigura inviável a
organização de uma verdadeira publicidade (a única função de desapossamento que os Autores entendem
poder justificar a manutenção do desapossamento é a protecção do constituinte, alertando-o para a
potencial gravidade do acto – em termos análogos à solenidade da hipoteca - , mas tal fito é igualmente
assegurado, depois da reforma, através da obrigatoriedade de redução a escrito do contrato).
2010
Ministère de la Justice, Dossier de presse de 22 de Março de 2006, L’ordonnance sûreté, in
http://www.presse.justice.gouv.fr/art_pix/conf220306.pdf, pág. 4.
2011
Sucintamente, este regime consagra dispensa a sujeição a registo, considerando que a reserva de
propriedade em garantia é acessória do crédito cujo pagamento assegura (art.º 2367.º, n.º 2), deve constar
de documento escrito (art.º 2368.º), pode incidir sobre bens fungíveis (art.º 2369.º, nos termos do qual a
reserva de propriedade sobre este tipo de bens pode exercer-se sobre outros da mesma natureza e
quantidade de que o devedor seja proprietário), não é prejudicada pela incorporação do bem em questão
com outro (excepto se os dois não puderem ser separados sem prejuízo – art.º 2370.º), permitindo ao
credor, em caso de incumprimento da obrigação assegurada por parte do devedor, exigir a restituição do
bem em questão (imputando o valor desse bem, a título de pagamento, sobre o valor do crédito garantido,
devolvendo ao devedor o eventual excedente – art.º 2371.º) e, finalmente, transferindo-se para um
eventual crédito do devedor sobre um sub-adquirente ou sobre a indemnização da seguradora do bem
onerado (art.º 2372.º). Houve, pelo menos, duas propostas apresentadas pelo Groupe de Travail relatif a la
reforme du droit des sûretés cit., pág. 15, que não encontraram acolhimento legal: a possibilidade de a
531
fins de garantia (cfr. art.ºs 2372-1 a 2372-5)2012 – bem como a figura do
fideicomisso,2013 apesar de algumas destas figuras apenas tenham sido introduzidas ou
tenham visto a sua regulamentação alterada em momento posterior.2014
Este reconhecimento, embora mereça o aplauso de alguns2015 - designadamente
por responder aos anseios dos concedentes de crédito, para os quais as estas figuras
constituem uma importante garantia -, poderá vir a originar no futuro um progressivo
ocaso das garantias tradicionais.2016
Aliás, a modernização do direito das garantias mobiliárias foi muitas vezes
encarada como um dilema entre a reforma do regime legal do penhor ou o incentivo à
utilização da propriedade com fins de garantia, ou seja e utilizando as palavras de um
Autor francês, “Faut-il favoriser le mouvement de promotion de la propriété-sûreté, ou
sauver le gage?”2017: ora, a reforma encetada em 2006 acaba por resolver o dilema, não
optando por alguma das alternativas, mas recorrendo a ambas.
532
1.2.3 - Espanha: referência ao direito catalão
533
Do regime delineado pela LHMPSD merece especial referência a diferença entre
as duas garantias em função do respectivo objecto,2021 porquanto as hipotecas recaem
sobre bens susceptíveis de identificação individual em termos análogos aos imóveis,2022
ao passo que os penhores incidem sobre bens de menos fácil identificação
(nomeadamente coisa genéricas ou futuras),2023 de modo que a mesma coisa não pode
ser onerada, simultânea ou posteriormente, com as duas garantias.2024
2021
García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 183, afirma mesmo que esta lei procedeu a uma revisão da
classificação dos bens entre móveis e imóveis, substituindo-a por outra “que adopta, como criterio
ordenador, el de la identificabilidad de los bienes”.
2022
Mais precisamente, a hipoteca poderá incidir sobre estabelecimentos comerciais, automóveis, veículos
ferroviários, aeronaves (mesmo que em construção – desde que se encontre investido um terço da
quantidade total necessária para a construção - e, dada a qualidade de coisa composta deste tipo de bens,
tem que incidir pelo menos sobre as partes constitutivas da aeronave, entendendo-se como tal as que
permitem enquadrar o dito bem no conceito legal - García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 294), máquinas
industriais e propriedade industrial e intelectual (cfr. art.º 12.º da Lei). Relativamente a estes últimos,
vigoram algumas regras particulares, como sejam a inadmissibilidade, salvo casos excepcionais, de o
onerante renunciar ou ceder o seu uso ou exploração sem o consentimento do credor (art.º 48.º), a
possibilidade de as partes autorizarem o credor a cobrar os proveitos resultantes da exploração do direito
hipotecado (desde que tal pacto seja comunicado à Sociedade de Autores – art.º 49.º) e o vencimento
imediato da obrigação garantida em caso de não pagamento, por parte do constituinte da garantia, das
taxas inerentes ao direito hipotecado ou de não exploração da patente por um período superior a 6 meses
ou não utilização das marcas durante mais de 4 anos (art.º 51.º). Posteriormente à entrada em vigor da
LHMPSD foi aprovada legislação específica para a constituição de hipoteca sobre películas
cinematográficas (Decreto n.º 3837/70, de 31/12), do qual ressaltam a delimitação do objecto onerado ao
direito de exploração do filme (no entanto, o art.º 2.º, n.º 1, acrescenta que, como base para o seu
exercício, implica igualmente a disponibilidade sobre os negativos e as cópias, as quais poderão também
vir a ser executadas em caso de incumprimento – art.º 11.º), a possibilidade de a garantia abranger bens
futuros (isto é, poder incidir sobre um filme ainda não concluído, desde que se trate de um filme espanhol
e que já tenha obtido a autorização de realização: nesta hipótese, o registo será preventivo, caducando no
prazo de 2 anos, excepto se entretanto for convertida em definitiva, retroagindo os seus efeitos à data da
inscrição originária – art.ºs 4.º e 9.º) e a admissibilidade de o credor se apropriar directamente das receitas
provenientes da exploração do filme, desde que tal seja acordado com o onerante (art.º 13.º e segs.).
2023
Merece especial referência a viabilidade de o penhor incidir sobre bens que permanecem em poder do
proprietário (nos termos do qual será possível, segundo Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., págs.
165 e 166, “ammettere la permanenza dell’originario rapporto di garanzia nel caso di sostituzione
dell’oggetto del pegno”, consentindo “un pegno ad oggetto variabile (prenda flotante) in cui il rispetto
delle regole sulla costituzione del vincolo (…) sarebbe assicurato per un verso, dalla previsione nel titolo
costitutivo di un limte minimo e massimo tra i quali può oscillare il valore della garanzia e per altro
verso, dall’indicazione delle caratteristiche dei beni che possono sostituire quelli inizialmente vincolati”).
Nesta conformidade e conforme destaca García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 309, este penhor distingue-se
do penhor comum em razão da ausência de desapossamento do constituinte e, por outro lado, afasta-se da
hipoteca mobiliária por força da impossibilidade de perfeita identificação registal dos bens, facto este que
“determina que se hayan de adoptar ciertas medidas adicionales, tendentes a asegurar la identificación
perfecta del objeto pignorado”.
2024
Conforme se alcança do disposto nos art.ºs 12.º e 55.º. Por outro lado, do art.º 2.º, n.º 2, decorre que
qualquer das garantias não pode constituir-se sobre bens previamente empenhados, hipotecados ou
penhorados (ou cujo preço de aquisição não se encontre totalmente pago, excepto se a garantia houver
sido constituída para assegurar o pagamento desse preço: em caso de violação desta proibição, estaremos
perante uma anulabilidade, que poderá ser unicamente invocada pelo credor do preço, podendo o credor
pignoratício ou hipotecário evitar tal desfecho pagando tal preço antes da anulação do registo da
garantia), decorrendo desta norma impossibilidade tendencial de concurso entre uma hipoteca mobiliária
ou um penhor sem desapossamento com uma hipoteca comum ou com um penhor tradicional (neste
sentido, Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 729 e 730), a não ser quando a hipoteca comum ou o
penhor ordinário forem de constituição posterior a qualquer das duas anteriores. Para além disso, o art.º
55.º vem limitar ainda mais os conflitos, ao dispor que, sobre os bens potencialmente objecto de penhor
sem desapossamento não se poderá constituir, nem sequer posteriormente, um penhor ordinário: assim e
em suma, os conflitos apenas se poderão dar entre uma hipoteca mobiliária ou um penhor sem
desapossamento e uma hipoteca comum posteriormente constituída ou, por outro lado, entre uma hipoteca
534
No âmbito específico da hipoteca mobiliária, cumpre salientar a possibilidade a
mesma recair sobre o estabelecimento comercial,2025 incluindo as mercadorias2026
535
(embora sendo controvertido qual o exacto quid onerado),2027 a circunstância de as
máquinas poderem ser objecto de garantias distintas,2028 bem como enumeração dos
mercancías las disponibilidades del deudor amenazado de insolvencia, de modo que el precio de aquéllas
solamente beneficie al acreedor garantizado con hipoteca sobre la universitas, en perjudicio de la massa
general de acreedores”), por desincentivar a alienação de mercadorias por parte dos seus fornecedores
(passando estes a exigir uma garantia específica sobre o crédito ao preço dessas mercadorias: assim sendo
e no limite, este panorama poderia conduzir ao desaparecimento do crédito pessoal) e por limitar
fortemente a possibilidade de financiamento posterior da empresa (na medida em que o devedor não
disporia de bens para assegurar tais créditos, pelo que dificilmente obteria fundos, pelo menos junto de
outros prestamistas que não o garantido com hipoteca sobre o estabelecimento). Nesta conformidade,
conclui que qualquer solução que se oponha à alienação das mercadorias imune face à hipoteca de
estabelecimento destruirá o comércio jurídico (para além de significar “la mezcolanza en una misma
hipoteca de cosas registrales, y no fungibles, con otras fungibles y no registrales, formando un conjunto
al que no es possible dar tratamiento jurídico uniforme”), pelo que verbera a opção tomada pelo
legislador espanhol, mesmo que esta limite a extensão às mercadorias cujo preço se encontre
integralmente pago (aparentemente, deste modo salvaguardam-se os direitos dos fornecedores das
mercadorias e, por outro lado, não impedindo o recurso ao crédito por parte do comerciante: contudo, “La
fungibilidad de las mercancías y, especialmente, la possibilidad de comprar al contado nuevas
mercancías – para ingressarlas en la universalidad a la que se refiere la hipoteca – pagándolas con el
precio obtenido con la venta de otras que hubieran sido suministradas al deudor pignoraticio y no
satisfechas por éste, nos demuestra la total ineficacia de esta solución” e, por outro lado, como salienta
García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 274, porque “la fungibilidad de las mercancias hace impossible
determinar cuáles están integralmente pagadas, y cuáles no”) e se imponha ao constituinte o dever de
repor continuamente, segundo os usos do comércio, as mercadorias e matérias primas consumidas,
substituindo-as por outras de da mesma qualidade e em quantidade igual ou superior (a respeito desta
exigência García-Pita y Lastres, ob. cit., págs. 274 e 275, estranha que, sendo o objecto da garantia o
estabelecimento comercial, o dever de conservação se traduza na obrigação de reposição das mercadorias
e matérias primas). Ainda assim, a solução legal de incluir estes bens no âmbito de uma hipoteca de
estabelecimento talvez encontre explicação na circunstância de eles, isoladamente, não se prestarem à
sujeição a nenhuma das garantias previstas na lei (García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 275).
2027
Segundo Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 492, a garantia não incide sobre o estabelecimento
comercial como universalidade, mas antes “en torno a su base físico-jurídica, el local del negocio con su
afección negocial, con el que se integran para constituir esa garantía unificada determinados elementos
del activo susceptibles de oferecer garantía real”. Este entendimento seria corroborado pelo facto de a lei
tomar o local como base da hipoteca sobre o estabelecimento, embora cumpra distinguir entre o caso em
que o proprietário do estabelecimento também o é do imóvel onde o mesmo funciona (no qual o
adjudicatário se tornará arrendatário de pleno direito do imóvel, solução esta que o Autor entende não
consistir num direito sobre outro direito, uma vez que “la hipoteca no recae sobre la propriedad ni sobre
el usufructo o el arrendamiento, sino que sujeta la cosa en garantía”: se, porventura, o proprietário
arrendar o imóvel a um terceiro, este “debería soportar la prioridad de la vinculación previamente
inscrita y no podría desconocer la limitación de facultades en orden a arrendar que sufre el proprietario
hipotecante”) da hipótese em que é apenas arrendatário desse espaço (hipótese na qual a execução da
garantia redundará na transferência do bem para o adjudicatário, com o proprietário a receber a parte
proporcional à transferência do imóvel (art.º 89.º), razão pela qual o art.º 19.º da lei exige, como condição
para poder hipotecar o estabelecimento, que o arrendatário do imóvel disponha de legitimidade para
trespassar o local. Porém, a transferência deste direito para terceiros depende da prévia notificação, por
parte do credor ou do devedor, ao proprietário do imóvel (embora García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 284,
saliente que o consentimento do proprietário não é necessário para a constituição da garantia): em caso de
acordo deste, produzir-se-á a transferência, havendo direito a um aumento de renda (art.º 31.º); caso
contrário, o proprietário poderá rescindir o contrato de arrendamento, subsistindo a hipoteca sobre os
demais bens que integrem o estabelecimento (art.º 32.º). Para além disso, na hipótese de o imóvel onde
funciona o estabelecimento ser arrendado pelo constituinte da garantia, ao credor assiste o direito de
exercitar alguns direitos que cabem ao arrendatário (como sejam o de exigir reparações do senhorio) ou
cumprir alguns deveres que impendem sobre o arrendatário (com o pagamento da renda). García-Pita y
Lastres, ob. cit., pág. 242 e segs., defende que a perspectiva da empresa que se deve acolher para efeitos
de oneração é a objectiva (abarcando as coisas e direitos afectos à sua actividade), embora reconhecendo
subsistir sempre a dúvida acerca do carácter unitário do bem resultante dessa união (e, mesmo para os que
aceitem este carácter unitário, acerca do tipo de coisa – imaterial ou património autónomo – que o
estabelecimento representa): apesar disso, entende que a lei “no llegó a configurar una Hipoteca
536
direitos de propriedade intelectual como possível objecto de hipoteca mobiliária2029 e,
finalmente, a abertura de uma brecha no princípio da indivisibilidade da garantia.2030
Por seu turno o penhor sem desapossamento tem como possíveis objectos os
frutos agrícolas (não apenas os separados, mas igualmente os pendentes ou previstos
para o ano agrícola em que for celebrado o contrato) os animais (assim como as suas
crias e produtos), os utensílios agrícolas, a maquinaria e demais equipamento
identificável através de marca, modelo ou número de fabrico (desde que não afecto, de
modo estável, a uma exploração industrial ou comercial), as mercadorias e matérias
primas armazenadas, objectos de arte ou com valor histórico e/ou cultural - como
quadros, esculturas, porcelanas ou livros – isoladamente ou enquanto colecção em que
mobiliaria sobre la totalidad del “Negocio”, sino que limitó a el objeto del contrato (y del derecho real)
a establecimientos mercantiles, singularmente considerados, de modo que, una quando un “Negocio”
pudiera estar compuesto por varios establecimientos, lo cierto es que no seria possible constituir una
Hipoteca mobiliaria única, sobre la totalidad de los mismos: bien por el contrario, habría que constituir
tantas como establecimientos” (nesta conformidade, o Autor conclui que o conceito legal de
estabelecimento comercial tende a equivaler ao de “local de negocio”). Por último, diga-se que a lei
tipifica (art.º 29.º) as causas de extinção desta garantia, algumas relacionadas com a diminuição do acervo
patrimonial e outras com a relação arrendatária.
2028
Como salienta Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 510 e segs., podem ser objecto de um penhor sem
desapossamento (quando não se encontrem instaladas ou não se destinem a uma exploração industrial –
art.º 53.º, n.º 1), de uma hipoteca mobiliária (quando se encontrem instaladas e sejam destinadas pelo seu
proprietário à exploração de uma indústria e concorram directamente para tal exploração – art.º 42.º) ou
ainda como elemento da hipoteca sobre o estabelecimento comercial em que se integrem (art.º 21.º, alínea
a)).
2029
Dispõe o n.º 1 do art.º 46.º desta lei que esta garantia compreende, no caso da propriedade intelectual,
além do direito principal (não fazendo a lei, quanto a este, qualquer distinção entre o direito pessoal que
se traduz na liberdade de autodeterminação relativamente à publicação da obra e, por outro lado, à
exploração económica do mesmo, formulação esta contestada por García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 300
e segs., por entender que apenas a vertente patrimonial é susceptível de exploração económica e permite a
sua comercialidade) e, salvo convenção em contrário, a adaptação, reprodução, tradução, reimpressão,
nova edição ou audição da obra hipotecada. Relativamente aos direitos de propriedade industrial, a
hipoteca abrangerá, além do direito principal (que poderá consistir em películas cinematográficas), a
adição, modificação, ou aperfeiçoamento de uma patente, marca ou modelo (art.º 46.º, n.º 2). Como
salienta Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 593 e segs., o facto de estes bens imateriais terem uma duração
limitada e de o seu valor muitas vezes se diluir com extrema rapidez, impõe a protecção especial do
credor com garantia sobre os ditos bens, alcançada através da interdição de renúncia e de cessão da
exploração, por parte do constituinte, sem o consentimento do credor (art.º 48.º, n.º 1, o qual, segundo
García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 306, deve ser interpretado restritivamente, no sentido de não impedir a
exploração pessoal do bem onerado, através da celebração de contratos de edição ou de obtenção de
capital para a colocação em prática das invenções patenteadas), bem como da autorização dada ao credor
para, em caso de inércia do constituinte, proceder à renovação, reabilitação ou prorrogação dos direitos
hipotecados ou financiando o constituinte para o efeito (art.º 50.º) e, finalmente, do vencimento
antecipado da obrigação garantida em caso de não pagamento das quantias relativas aos direitos
hipotecados (nomeadamente rendas ou renovação de inscrições) ou de falta de exploração da patente por
um período superior a 6 meses ou de falta de uso das marcas durante mais de 4 anos consecutivos (art.º
51.º): mais ainda, as partes podem pactar a cessão ao credor hipotecário dos créditos que o hipotecante
possua directamente relacionados com o bem onerado, devendo este pacto ser notificado à sociedade de
autores (art.º 49.º que, de acordo com García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 307, consagra um verdadeiro
pacto anticrético, “ya que prevé a la possibilidad de que, a virtud de pacto, el Acreedor adquiera la
facultad de cobrar los derechos del titular, ya sea en su totalidad, o en una determinada proporción”).
Em suma e segundo García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 302 e segs., a lei considera como hipotecáveis
“los derechos de exclusiva; razón por la cual exige que la invención, el signo distintivo, o la obra se
encuentren debidamente registradas”.
2030
Com efeito, decorre do art.º 14.º que, quando sejam onerados conjuntamente e em garantia de um
mesmo crédito vários estabelecimentos comerciais, automóveis, aeronaves, veículos ferroviários,
aeronaves ou direitos de propriedade industrial ou intelectual, deverá distribuir-se entre eles a
responsabilidade pelo cumprimento da obrigação principal.
537
estejam integrados e, finalmente, a generalidade dos créditos, mesmo que futuros (art.ºs
52.º a 54.º).2031
Para além disso, a especial capacidade de deslocalização e dissipação dos bens
objecto do penhor impõe a tomada de diversas cautelas em ordem a solidificar a
garantia do credor, de entre as quais se contam a qualificação do empenhante como
depositário (sujeito às sanções civis e penais, embora sem prejuízo da faculdade de uso,
sem comprometer o respectivo valor – art.º 59.º),2032 a inadmissibilidade de, sem
consentimento do credor, se proceder à deslocação do bem onerado para local diverso
daquele que ficou consignado no acto de constituição do penhor (art.º 60.º), o direito do
credor pignoratício inspeccionar o objecto da sua garantia (art.º 63.º).
Outros aspectos que distinguem estas duas modalidades residem, por um lado,
no direito de sequela de que se encontra munida a hipoteca2033 e que, embora com
dúvidas, está ausente no penhor (sobretudo porque esta legislação não afasta a regra da
posse vale título)2034 e, noutro plano, na amplitude do direito de preferência que cada
2031
Quanto a estes últimos, a lei depois de mencionar expressamente os créditos e demais direitos dos
titulares de contratos, licenças, concessões ou subvenções administrativas (sempre que a lei ou o título de
constituição autorizem a sua alienação a terceiro) alude, em geral, à empenhabilidade de créditos futuros,
sempre que não estejam representados por valores e não sejam qualificados como instrumentos
financeiros. Pelo contrário, não pode o penhor (nem tão pouco a hipoteca mobiliária) incidir sobre bens
previamente hipotecados ou empenhados, sobre quotas indivisas ou sobre bens cujo preço de aquisição
não tenha sido integralmente pago (salvo, neste último caso, se a garantia se constituir para assegurar o
pagamento do preço), não podendo igualmente constituir-se sub-hipoteca ou penhor sem desapossamento
sobre bens susceptíveis de hipoteca mobiliária. De acordo com Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 463, a
enumeração legal é taxativa (pelo que não será possível constituir um penhor sem desapossamento sobre
mercadorias não armazenadas, nem tão pouco sobre um conjunto variável e mutável de mercadorias e
matérias primas, mas tão somente a manipulação e transformação destes bens dentro do local onde se
encontrem depositadas, de modo que “Si en la elaboración se incorporassen a la materia pignorada otra
u otras sustancias, creemos que debe reputarse pignorado el producto resultante, cualquiera que sea el
valor o importancia de los elementos incorporados. Sí mas de una de las materias primas fusionadas
estuvieran pignoradas y la fusión se hubiese realizado sin previo acuerdo de los acreedores, cabe
entender que es preferente la prenda primeramente constituida o bien, a semejanza de las reglas de la
accessión, considerarlas de igual rango y regular la preferencia entre ambas en proporción al valor que
cada materia represente respecto al todo”).
2032
Em caso de uso indevido ou de violação do dever de não movimentação do bem onerado e de acordo
com o art.º 61.º, assiste ao credor o direito de exigir o imediato cumprimento da obrigação garantida ou a
imediata venda do bem empenhado (sem prejuízo da responsabilidade do empenhante pelos danos
causados, especialmente em caso de perda ou deterioração dos bens onerados).
2033
Quanto à hipoteca, não restam dúvidas em face do art.º 16.º da lei, ao dispor que esta garantia sujeita,
directa e imediatamente, os bens sobre que recai, qualquer que seja o seu possuidor, ao cumprimento da
obrigação para cuja segurança foi constituída (embora, como salienta Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág.
516 e segs., esta regra sofra excepções relativamente às matérias primas e mercadorias integradas na
hipoteca de estabelecimento e às partes integrantes e pertenças, não especificamente indicadas no acto de
constituição da garantia, separadas da coisa hipotecada: neste último caso, considera o Autor que “El
adquirente de una pertenencia no puede ser considerado de mala fe por el hecho de haber conocido el
vinculo pertenencial y la exitencia de la hipoteca, puesto que la sujección se extingue por la separación
con respecto a aquélla”: todavia, tal não significa que o devedor seja livre de proceder à separação deste
tipo de bens de modo a diminuir a garantia do credor, porquanto poderá o credor exigir o depósito judicial
do bem ou o reforço da garantia e sem prejuízo de eventuais sanções penais). Também García-Pita y
Lastres, ob. cit., pág. 221 e segs., considera a hipoteca mobiliária como um direito real – com as mesmas
excepções referidas – na medida em que conferem ao seu titular a sequela (oponível a qualquer
adquirente e implicando o afastamento da regra, vigente em sede mobiliária, posse vale título) e inerência
próprios dos direitos reais.
2034
No que concerne ao penhor, a ausência de uma norma equivalente ao art.º 16.º possibilita a aceitação
ou a negação do direito de sequela desta garantia: a primeira posição baseia-se no art.º 4.º da lei – nos
termos do qual o devedor não poderá alienar os bens empenhados sem o consentimento do credor – para
daí retirar a conclusão que, sendo nula a alienação, esta não poderia prejudicar o credor pignoratício; a
538
uma confere ao seu titular2035: partindo destas diferenças, poderá mesmo questionar-se a
natureza jurídica do penhor sem desapossamento, designadamente no que concerne à
sua inclusão na categoria dos direitos reais.2036
tese contrária (defendida por Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 516 e segs), assenta na intenção da lei
distinguir claramente a hipoteca do penhor e, sobretudo, na anteposição do interesse geral do comércio
jurídico face ao interesse particular do credor pignoratício (considerando uma exigência desproporcionada
exigir-se aos terceiros a comprovação da não oneração prévia de bens que, por natureza, se destinam à
circulação e, mais ainda, opor a terceiros de boa fé semelhante garantia), à imagem do que sucede com o
penhor tradicional (por força da regra posse vale título e sempre que o credor perca a posse do bem): por
ser assim, o Autor conclui que o penhor sem desapossamento apenas será oponível a terceiros adquirentes
de má fé (e mesmo de boa fé, desde que o objecto se mantenha no local onde foi inscrita no registo, pois,
deste modo, se mantém uma situação correspondente à posse no penhor tradicional e, nos termos do art.º
60.º, o credor pode evitar que os bens sejam transferidos para outro local sem o seu consentimento) e
ainda em caso de sub-rogação real (uma vez que, sustenta o Autor, existe um princípio geral nesta matéria
que impõe que o direito de preferência conferido pelo penhor se alargue ao preço que o adquirente de boa
fé tenha pendente, devendo, para o efeito, o credor notificar este último para não entregar esse montante
ao devedor). Para além disso, a constituição de um penhor sem desapossamento não pode prejudicar os
direitos anteriormente constituídos sobre os mesmos bens (art.º 56.º), mas, ainda assim, esta garantia
produz vários efeitos inter partes (o Autor enumera, para além da proibição de o constituinte dispor dos
bens sem o consentimento do credor, o direito de este último impedir que o bem seja transportado para
local diverso daquele onde foi registada a garantia, o direito de inspecção, a faculdade do credor exigir
que os bens sejam entregues a outrem em caso de morte do constituinte, o vencimento antecipado da
dívida havendo mau uso do bem ou incumprimento das obrigações assumidas pelo constituinte
depositário ou de abandono dos bens onerados e a responsabilidade civil e criminal do depositário em
caso de perda ou deterioração desses mesmos bens – cfr. art.ºs 59.º a 64.º). Nega igualmente o direito de
sequela ao penhor sem desapossamento Cordero Lobato, ob. cit., pág. 86 e segs., afirmando que, apesar
do silêncio da lei, “al menos frente a adquirentes de buena fe la prenda sin desplazamiento no tiene
eficacia real, y el bien pignorado quedará excluido de la responsabilidad por el incumplimiento del
deudor, sin importar si ha mediado o no el consentimiento del acreedor”.
2035
Segundo Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 539 e segs., a hipoteca mobiliária apenas cederá perante a
alguns créditos garantidos por hipoteca naval (art.º 41.º), ao passo que o penhor sem desapossamento será
preterido em face dos créditos por sementes, gastos de cultivo e recolha de colheitas e frutos, assim como
pelo crédito de rendas dos últimos 12 meses relativo ao arrendamento do imóvel no qual foram
produzidos, armazenados ou depositados os bens empenhados (art.º 66.º).
2036
Apesar de a lei não se pronunciar directamente sobre este aspecto, a resposta à questão encontra-se
indissoluvelmente ligada à existência ou não de um verdadeiro direito de sequela e, por outro lado, à
identificabilidade dos bens onerados (condição sine qua non para poderem ser objecto de direitos reais).
Partindo da ausência de um verdadeiro direito de sequela, Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 260 e segs.,
nega a natureza real deste penhor (assegurando que a publicidade da garantia, que a torna oponível a
terceiros, depende da manutenção dos bens no status loci, não operando o direito de sequela senão
verificando-se esse condicionalismo); pelo contrário, García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 310 e segs.,
partindo da qualificação legal do constituinte como depositário do bem onerado, não apenas como dono e
no próprio interesse, mas igualmente por conta do credor pignoratício (que, por esta via, se torna
igualmente possuidor, ao ponto de o Autor considerar mais correcto apelidar esta garantia de “prenda sin
desplazamiento del possesión imediata”), sustenta que se diluem as diferenças face ao penhor tradicional
(isto é, o depositário “ejercerá una forma de possesión que sirve de base a otra forma (mediata) de
poseer los bienes pignorados. Y si el acreedor posee mediatamente, habrá tenido lugar una especie de
constitutum possessorium, de forma que el Acreedor adquirirá una dominación real directa (aunque
mediata) sobre la res aliena”), sendo por isso legítimo qualificar esta garantia como um verdadeiro
direito real, até porque dotada de inerência e sequela (esta última é inequívoca frente a terceiros de má fé
e será exercitável mesmo contra os de boa fé sempre que se mantenha o status loci, podendo o credor usar
dos meios de defesa possessória para impedir a deslocação do bem, pelo que a sequela “no es mayor, ni
menor, que en el caso de la Prenda ordinaria”). Em termos concordantes, Albaladejo, Derecho Civil III
cit., págs. 735 e 736, porquanto “su eficacia erga omnes no es inferior a la de la prenda normal, pues su
ineficacia frente a terceros adquirentes de la cosa pignorada, si el pignorante (indebidamente) la
enajena, se daría igualmente se hubiese sido prenda con desplazamiento”, desde logo porque, salvo o
princípio da posse vale título, o penhor sem desapossamento é oponível a terceiros, podendo, fora desse
condicionalismo, o titular de um penhor sem desapossamento exercer o direito de sequela para o
recuperar das mãos de terceiro (naturalmente que tal direito de sequela não tem a amplitude do que é
539
Para além destas diferenças, existem inúmeros aspectos comuns a ambas as
garantias,2037 nomeadamente no que concerne ao modo de constituição de cada uma
delas, (porquanto as hipotecas estão sujeitas escritura pública e inscrição num registo
especial criado para o efeito,2038 exigindo-se a verificação dos mesmos requisitos para o
penhor – cfr. art.º 3.º),2039 embora subsistam requisitos específicos para esta última
garantia.2040
conferido ao titular de uma hipoteca mobiliária, uma vez que esta garantia é oponível a qualquer terceiro,
mesmo que este obtenha, de boa fé, a posse do bem hipotecado, em termos muito similares aos vigentes
para a hipoteca imobiliária). Acerca da natureza jurídica das garantias mobiliárias não possessórias, vide
infra n.º 1.2 do Capítulo III e sobre a natureza jurídica do penhor, em especial quanto à sua eventual
integração no seio dos direitos reais, vide infra Capítulo IV.
2037
Com efeito, os art.ºs 1.º a 11.º da lei são de aplicação a qualquer das duas garantias, de entre as quais
merecem destaque o já citado art.º 2.º, ao consagrar a proibição de constituição da qualquer delas sobre
bens previamente onerados (ou seja, como afirma García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 194, exige-se que a
garantia a constituir seja a primeira sobre aquele bem), a proibição de alienação dos bens onerados sem o
consentimento do credor, com a consequente responsabilidade civil e penal do devedor, assim como o
vencimento imediato da obrigação garantida (art.ºs 4.º, 29.º, 44.º e 59.º), o alargamento da preferência,
salvo pacto em contrário, aos juros dos últimos dois anos, bem como a parte vencida no ano corrente (art.º
10.º), e a prescrição da acção hipotecária e pignoratícia no prazo de 3 anos a contar da data em que
possam ser exercitadas (art.º 11.º). Para além disso, também em sede de execução as regras são similares,
prevendo a lei um procedimento judicial (entretanto revogado, encontrando-se a execução destas
garantias submetidas ao regime das execuções) e outro extra-judicial para o efeito (sem que o recurso a
este pressuponha qualquer acordo prévio das partes nesse sentido, muito embora, para a hipoteca, a lei
imponha que na escritura de constituição da garantia o devedor ou o terceiro empenhante designem um
mandatário que os represente na venda, podendo este ser o próprio credor – art.º 86.º), decorrendo este
último perante um notário (cfr. art.ºs 86.º a 91.º e 94.º a 95.º da lei), embora no penhor sem
desapossamento o credor disponha de um direito de preferência para adquirir, por via de dação em
pagamento, sempre que o preço da venda projectada seja inferior ao valor da dívida (art.º 65.º).
Finalmente, merece realce a circunstância de qualquer das duas garantias poder ser constituída para
assegurar contas correntes de créditos ou de letras de câmbio (art.º 10.º), o que, segundo García-Pita y
Lastres, ob. cit., pág. 189, se traduz numa “garantia de máximo”, isto é, deverá ser definido um tecto
máximo até ao qual a garantia responde.
2038
Este registo é condição de concessão dos direitos de preferência e de sequela e dele devem constar
também as penhoras anteriores sobre os mesmos bens, na medida em que a lei proíbe a constituição de
penhor ou hipoteca sobre bens previamente empenhados (se a penhora não constar do registo no momento
da inscrição do registo da hipoteca ou do penhor, estes direitos prevalecerão sobre aquele). Contudo,
Piscitello, Le garanzie cit., pág. 30, nota 65, alude a uma controvérsia acerca da natureza do registo: para
uns seria condição de surgimento da própria garantia; para outros, seria mera condição de oponibilidade
da garantia - e, na sua falta, esta seria válida inter partes – parecem propender para a primeira alternativa,
Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 554 e segs. e 609 (com base no art.º 3.º, §3, da lei, destacando ainda
como os efeitos deste registo não são similares para a hipoteca e para o penhor: relativamente à primeira,
a inscrição produzirá efeitos contra terceiros adquirentes dos bens hipotecados, embora não sane uma
eventual falta de titularidade por parte do constituinte da garantia - porquanto o registo é unicamente de
ónus e não de titularidade; quanto ao penhor, nem sequer garante a eficácia da garantia face a terceiros,
não assegurando assim o direito de sequela contra terceiros adquirentes de boa fé, funcionando
unicamente como alerta para os demais credores do constituinte da garantia) e Albaladejo, Derecho Civil
III cit., pág. 728, enquanto a posição de García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 199 aponta no sentido
contrário (uma vez que, depois de afirmar que “la inscripción registral es igualmente constitutiva e
imprescindible ad substantiam frente a terceros”, aceitando que o contrato constitutivo da garantia, ainda
que nem sequer formalizado em escritura pública, “será válido y comenzará a produzir efectos jurídicos,
por el solo consentimiento”). Relativamente ao registo propriamente dito (posteriormente integrado no
registo de bens móveis, aprovado pelo Real Decreto n.º 1828/99, de 3 de Dezembro, no qual se enumeram
os bens sujeitos a tal formalismo), o respectivo regulamento (aprovado pelo Decreto de 17/6/1955,
publicado no BOE n.º 198, de 17 de Julho de 1955), determina que este funcione sob a alçada da
Direcção-Geral dos Registos e Notariados (art.º 1.º).
2039
No entanto, a escritura pública poderá ser substituída, no caso de determinadas operações bancárias,
por um documento particular redigido com a intervenção de um agente de câmbio ou de um mediador de
comércio (art.º 3.º, §2.º). Em qualquer caso e para além das menções gerais impostas pela necessidade de
540
Outro aspecto que merece ser salientado é o reconhecimento nesta legislação,
embora de forma indirecta, da figura da sub-rogação real, ao determinar-se o
prolongamento da garantia a extensão da garantia às indemnizações devidas em caso de
sinistro posterior à constituição das mesmas, a cargo do segurador ou de quem tenha
praticado esses actos, bem como na eventualidade de expropriação (art.º 5.º).2041
Na medida em que qualquer das garantias prescinde do desapossamento do
devedor, o dever de conservação do bem onerado impende, em ambas, sobre o
constituinte,2042 o qual, no caso do penhor, se considera como depositário desse mesmo
bem.2043
determinação dos negócios jurídicos, do documento escrito devem constar a exacta descrição dos bens
(com indicação da sua natureza, qualidade, quantidade, estado e demais circunstâncias que concorram
para a sua individualização – cfr. art.ºs 13.º e 57.º), embora as demais indicações que devam constar do
acto constitutivo da garantia variem consoante se trate de uma hipoteca (identificação do credor, do
devedor e do empenhante que não seja o devedor, bem como menção dos respectivos domicílios; título de
aquisição do bem e declaração do hipotecante atestando que os bens a onerar não se encontram
hipotecados, empenhados ou penhorados; e indicação valor do crédito garantido, prazo de pagamento e
juros) ou de um penhor (indicação do imóvel em que se encontram os bens a empenhar ou no qual
venham a ser depositados; menção da obrigação de conservação dos bens onerados a cargo do
empenhante; a indicação da existência de seguros sobre os ditos bens). Porém, para efeitos de registo, o
regulamento da LHMPSD é mais exigente, impondo requisitos adicionais para as hipotecas mobiliárias
em geral (cfr. art.º 15.º, do qual avulta a necessidade de demonstração do título do hipotecante), bem
como para algumas delas em função do respectivo objecto (art.ºs 19.º a 22.º) e, sobretudo, obrigando a
uma mais pormenorizada descrição de cada um dos bens onerados (art.º 16.º); analogamente, para o
penhor tais exigências adicionais constam, em geral, do art.º 29.º (praticamente igual ao art.º 15.º) e,
especificamente para os frutos, dos art.ºs 31.º (para os ainda não separados) e 32.º (para os já recolhidos).
2040
Como salienta Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 483 e segs., para além do registo, no penhor será
ainda necessária a determinação do local de situação dos bens (podendo o credor impedir que os bens
sejam retirados desse local e mesmo, em certos casos, fazê-las regressar coactivamente como meio de
conservação da garantia) e a constituição do devedor como depositário do bem (ultrapassada a
incompatibilidade tradicional entre as qualidades de proprietário e depositário). Por outro lado e como
evidencia García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 321 e segs., a escritura funciona como instrumento de
identificação e determinação dos bens onerados (pois, se assim não fosse e atendendo à natureza dos
bens, o contrato correr-se-ia o risco de o contrato ser indeterminado quanto ao objecto).
2041
Rojo Ajuria, Las garantías cit., pág. 783, destaca com alguns Autores reconhecem nesta norma a
manifestação de um princípio geral de sub-rogação real, enquanto García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 232,
salienta como a essa qualificação não obsta o facto de as indemnizações constituírem um direito de
crédito, uma vez que o princípio geral de troca de coisa por coisa “incluye también créditos por
indemnizaciones debidas en razón de los bienes”.
2042
Para a hipoteca mobiliária a lei (cfr. art.ºs 17.º e 18.º) estabelece que o constituinte da garantia deverá
conservar os bens onerados com a diligência de um bom pai de família (de acordo com García-Pita y
Lastres, ob. cit., pág. 237 e segs., este critério é insuficiente, tendo em conta que os objectos onerados são
instrumentos de uma actividade profissional levada a cabo pelo próprio constituinte: porém, quando se
constitua uma hipoteca sobre o estabelecimento comercial este dever assume contornos especiais,
obrigando o hipotecante a continuar a actividade comercial ou industrial – de acordo com os usos do
comércio – e a participar ao credor, no prazo de oito dias, qualquer acto danoso, ou seja e de acordo com
García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 275 e segs., este dever assume uma perspectiva dinâmica, cujo
cumprimento se alcança através da exploração do negócio, sendo vedado ao devedor alienar ou sequer
alterar a actividade desenvolvida pelo estabelecimento, para além de ser associado a um dever de não
concorrência – cfr. art.º 27.º da lei), efectuando as reparações que se justificarem, gozando igualmente o
credor do direito de ser indemnizado da diminuição de valor dos bens hipotecados que não seja
consequência de casos fortuitos (podendo, ainda, pedir judicialmente a administração dos ditos bens),
acrescentando o art.º 22.º que ao credor assiste o direito de inspeccionar o desenvolvimento do negócio,
mas sem afectar a actividade deste – sobre o dever de conservação, vide Albaladejo, Derecho Civil III
cit., págs. 732 e 733
2043
Esta qualificação legal é, contudo, fonte de discórdia, porquanto há quem conteste tratar-se de um
verdadeiro depósito (pois o constituinte da garantia pode usar o bem, pode transformá-lo e nem sequer
existe o dever de restituição ao depositante-credor), embora García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 323 e
541
Finalmente, importa ressalvar que o registo destas garantias não é um registo
completo, porquanto não se trata de um registo de titularidade, mas somente de ónus,
pelo que a garantia pode ser inscrita ainda que o bem não se encontre em nome do
constituinte.2044
Uma outra garantia exclusivamente mobiliária de criação relativamente recente é
a reserva de propriedade sobre bens móveis,2045 que pode assegurar qualquer contrato de
compra e venda, a prazo,2046 de bens móveis corpóreos não consumíveis e
identificáveis,2047 bem como os empréstimos destinados a permitir a aquisição de tais
bens (cfr. art.º 1.º, n.º 1, da Lei n.º 28/1998, de 13 de Julho),2048 embora a oponibilidade
a terceiros se encontre dependente do seu registo.2049
segs., aceite tal qualificação, contrapondo que a possibilidade de uso pode traduzir-se numa forma de
conservação, sendo tal dever reforçado pela proibição de transladar o bem onerado para local diverso e
que a suposta ausência de restituição é falsa (pois em caso de venda o empenhante deverá entregar o bem
ao adquirente), aceitando que os deveres próprios da relação de depósito possam nascer de outro contrato
que não um contrato de depósito, admitindo, por isso, que o depósito recaia sobre um bem próprio do
depositário (considerando que, atentos os deveres de conservação que recaem sobre o depositário, “la
propriedad es un derecho real, que no afecta a la relación de custodia; que no es incompatible con ella,
porque si el derecho real es un derecho de exclusión, en cambio del derecho de credito, la obligación
patrimonial ex contractu, representa una relación de colaboración, compatible, por tanto, con la
relación jurídico-real”).
2044
Salienta este aspecto, Cordero Lobato, Prenda sin desplazamiento e hipoteca mobiliaria, in Garantías
reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006,
págs. 78 e 79, concluindo que a falta de titularidade não fica convalidada pela inscrição, de modo que não
se produz o efeito de inoponibilidade que opera em sede imobiliária. Por outro lado, a publicidade
assegurada por este sistema face a terceiros é muito débil, não só porque não se impõe aos terceiros a
consulta do registo de bens móveis, como sobretudo porque o registo é mais um registo de contratos do
que de bens, ou seja, cada contrato de garantia é inscrito separadamente, sem consideração dos bens que
se oneram (pelo que qualquer terceiro, para avaliar os ónus sobre os bens empenhados, teria que consultar
todos os registos isolados para verificar quantos contratos de garantia o devedor havia celebrado), o que
conduz a uma “debilidad del sistema registral y de la publicidad que pdoduce, con el agravante de que
no existe mecanismo alguno que impida la doble pignoración de los mismos bienes”. Apesar de tudo, o
Autor aplaude o facto de o registo ser unicamente de ónus, asseverando ser uma restrição desmesurada ao
comércio jurídico de bens móveis a inscrição de todas as mudanças de titularidade e rematando que a
protecção desse mesmo comércio é assegurada através da regra da posse vale título e os direitos dos
credores com garantia inscrita são respeitados na medida em que os futuros adquirentes dos bens terão
que suportar esses ónus.
2045
Para assegurar o cumprimento destes contratos, a lei permite que o credor se muna, em alternativa às
garantias tradicionais, de uma cláusula de reserva de propriedade ou imponha ao devedor a proibição de
alienar ou praticar qualquer acto de disposição sobre os bens, sem o consentimento do credor: porém, a
eficácia de tais garantias encontra-se dependente da sua indicação no contrato de compra e venda (art.º
7.º, n.ºs 10 e 11) e o posterior registo.
2046
Definido como aquele através do qual uma das partes entrega à outra uma coisa móvel corpórea,
comprometendo-se esta última a pagar um preço num prazo superior a três meses, contados da data da
celebração do contrato (art.º 3.º). Este contrato deve ser reduzido a escrito, sob pena de invalidade (art.º
6.º), contendo diversas menções enumeradas na lei (art.º 7.º)
2047
Considerando-se como tal todos aqueles de que conste a marca e número de série de fabrico, ou que
possuam uma característica distintiva que exclua a confusão com outros bens (art.º 1.º, n.º 2).
2048
Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho civil cit., págs. 303 e 304, completando que esta
garantia deve, sob pena de inoponibilidade a terceiros, ser inscrita no registo (e, em caso de
incumprimento da obrigação de pagamento do preço por parte do adquirente, o credor apenas poderá
excutir os bens objecto da reserva de propriedade, de acordo com um procedimento de execução
especial). Mais discutida é a natureza jurídica da figura, entendendo a jurisprudência estarmos perante
uma compra e venda sujeita à condição suspensiva de integral pagamento do preço (assim consentindo ao
credor vendedor opor-se a quaisquer actos de apreensão – penhoras, embargos - levados a cabo por outros
credores do devedor comprador, invocando a excepção que tais bens não são propriedade do devedor),
embora o Autor considere preferível conceber esta como um direito real sobre um bem alheio, de modo
que “La propiedad del bien vendido a plazos se habría transmitido al comprador desde la entrega de su
542
Mas, no seio do ordenamento espanhol, deparamo-nos com uma compilação
legislativa repleta de soluções inovadoras no âmbito das garantias mobiliárias, qual seja
o Código Civil Catalão, apesar de não afastar a necessidade de desapossamento do
empenhante (cfr. art.º 569-12).
Assim, este diploma prevê e regula expressamente garantias rotativas2050 ou de
objecto variável,2051 consentindo a substituição dos bens inicialmente onerados2052 de
posesión (teoría del título y el modo), si bien quedaría gravada con un derecho de realización de valor a
favor del vendedor o prestamista” (pelo que o titular da reserva de propriedade não poderia opor-se a
eventuais a actos de apreensão requeridos por outros credores do devedor, limitando-se a, em sede de
concurso, fazer valer o seu direito de preferência).
2049
Nos termos do art.º 15.º da Lei. Através da Orden de 19/7/1999, foi aprovado o registo da venda de
bens móveis a prazo, do qual deverão necessariamente constar as garantias inerentes a tais contratos (art.º
2.º, n.º 2).
2050
Cfr. art.º 569-16, n.ºs 2 e 3, anteriormente citados a propósito das universalidades.
2051
Vide Piscitello, Le garanzie cit., pág. 29 e, sobretudo, Barrada Orellana, ob. cit., pág. 277 e segs.. De
acordo com este último Autor, o disposto no art.º 15.º, n.º 2, da anterior lei catalã de garantias reais
(correspondente ao actual art.º 569-16, n.º e, do Código, nos termos do qual “Se considere como un único
objeto de prenda el conjunto de cosas cuyo valor en el tráfico se determina en consideración al número,
al peso o al tamaño”), consente a consideração do quid onerado como um único objecto, atendendo as
partes na relação de garantia unicamente ao valor do conjunto (“todos los objetos se consideran como un
único objeto, de forma que todos responden conjuntamente del cumplimiento de la obligación”). Para
além desta hipótese, em que a configuração unitária do objecto da garantia decorre da lei (embora as
partes possam especificar o objecto genérico inicialmente empenhado, criando uma pluralidade de
objectos e até distribuir a responsabilidade entre esses diversos objectos), o art.º 569-16, n.º 3
(correspondente ao art.º 15.º, n.º 3, da anterior lei), concede às partes a faculdade de considerar como
objectos unitários do penhor “los conjuntos o paquetes de valores, como acciones, obligaciones, bonos,
créditos o efectos en general, de acuerdo con la legislación aplicable en esta matéria”, com duas
consequências importantes, decorrentes do princípio da indivisibilidade: o proprietário não poderá
requerer a devolução de parte dos bens onerados em caso de pagamento parcial do crédito e, por outro
lado, a eventual alienação executiva deve abranger o objecto empenhado no seu conjunto, que deve ser
vendido unitariamente. Aponta igualmente esta norma como um exemplo de consagração legal de
garantias rotativas Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 256, colocando especial enfoque na
influência que a variação do valor económico do conjunto dos valores empenhados produz na quantidade
de bens concretamente onerados, isto é, “sí el valor de los valores concretos pignorados aumenta, el
número exacto de los que se consideran incluidos en la lista disminuirá. Por si se reduce el valor
económico, el número de elementos concretos que lo componen aumentará. Y si la disminución supera
ese margen de cobertura de garantía dispuesto por el acreedor, hace que o bien se pida un suplemento de
garantía o adición de objetos a esa garantía, o bien provoca la ejecución antecipada de la prenda”
(todavia, o Autor faz dois reparos ao regime legal, um que se prende com a ausência de limites para o
estabelecimento da margem de cobertura da garantia de que goza o credor, o outro relativo à não
discriminação dos bens potencialmente objecto deste tipo de garantia).
2052
Nos termos do art.º 569-17, n.º 1 (anterior art.º 16.º, n.º 1, da lei catalã de garantias reais), é concedida
às partes a faculdade de, se assim o desejarem, estipularem que o devedor (ou, em caso de penhor
prestado por terceiro, o empenhante) possa substituir, total ou parcialmente, os bens fungíveis
empenhados (entendendo-se como tal os que podem substituir-se por outras da mesma espécie e da
mesma qualidade), sendo que tal substituição implica a manutenção da garantia inicial (uma vez que o n.º
4 do mesmo art.º 569-17 determina que “Se entiende a todos los efectos, en los casos de sustitución del
bien empeñado, que la fecha de la pignoración se mantiene, como si se hubiese constituido inicialmente
sobre los bienes que sustituyen a los inicialmente gravados”), esclarecendo ainda o n.º 2, quando a
garantia incida sobre valores mobiliários, o modo de avaliação dos bens substituídos (dispondo que “La
sustitución de unos valores por otros, en caso de valores cotizables, se hace de acuerdo con el precio de
las cotizaciones respectivas en el mercado oficial el día de la sustitución. En caso de valores no
cotizables, para acreditar la sustitución es suficiente que los tengan en su poder los acreedores
pignoraticios o las terceras personas designadas y que conste inscrita en el mismo efecto o documento
que acredita el derecho”). Para Barrada Orellana, ob. cit., pág. 339 e segs., este preceito constitui o
reconhecimento da admissibilidade da sub-rogação (significando “El mantenimiento de la eficacia de la
garantia, a pesar del cambio del elemento objetivo del negocio”) e um passo mais no sentido do
reconhecimento do conceito de “prenda de valor”. De acordo com Daniel Ripley, ob. cit., pág. 10, esta
543
acordo com a vontade das partes:2053 todavia, mesmo antes da aprovação deste regime e
em face das normas da lei civil, era defensável a licitude do penhor rotativo, colmatando
o silêncio do Código Civil Espanhol sobre esta matéria através da constatação que este
tipo de garantia não contraria normas legais imperativas, nem princípios de ordem
pública.2054
Ao nível das obrigações garantidas pelo penhor, determina-se que aquelas
possam ser futuras ou presentes mas relativamente às quais o respectivo montante se
desconhece no momento da constituição da garantia – o que já resultava do CCE –, mas
sujeita a respectiva validade à indicação do montante máximo pelo qual a garantia
responde (art.º 569-14, n.º 2), legitimando assim as chamadas garantias de máximo.
Para além disso, quando a garantia incida sobre mais de um objecto, as partes
podem estabelecer uma repartição da responsabilidade entre cada um deles (art.º 569-
faculdade só existe quando o penhor incida sobre coisas fungíveis e que a outra hipótese de sub-rogação
se encontra consagrada a propósito do penhor de créditos (porquanto o art.º 569-18 do Código determina
que, se o crédito empenhado se vencer – e for cobrado – antes do vencimento do crédito garantido, a
garantia passará a incidir sobre a prestação recebida em consequência daquele pagamento).
2053
Segundo Barrada Orellana, ob. cit., pág. 340 e segs., o acordo das partes terá que ser expresso
(embora possa ser anterior, contemporâneo ou posterior à constituição da garantia – desde que, neste
último caso, seja anterior à respectiva execução), celebrado entre o credor e o empenhante, mesmo que
este não seja o devedor principal (podendo, porém, o bem substituto ser propriedade do empenhante, do
devedor ou até de um terceiro, sendo que nestes dois últimos casos o sujeito ocupará a posição do
empenhante), mas sem que o credor possa exigir da contraparte o recurso a esta faculdade acordada (nem
proceder ele mesmo à substituição). A lei, todavia, ocupa-se especialmente da substituição no penhor de
valores mobiliários, determinando que a mesma é possível se não contrariar a legislação específica para
esse tipo de bens, se a diferença de preço entre os bens substitutos e substituídos não ultrapassar 5 por
1000 e se essa diferença for compensada em dinheiro no momento da substituição, desta forma se
impedindo uma modificação substancial do valor dos bens empenhados (sem prejuízo, porém, de as
partes poderem acordar na substituição sem verificação destes requisitos). Todavia e segundo a Autora, é
discutível se a norma em questão consente a configuração como objecto unitário do penhor, não apenas a
carteira de valores, como também o dinheiro do cliente que o gestor daquela carteira tenha em seu poder
(de modo a abranger as situações em que os valores alienados não sejam imediatamente reinvestido na
aquisição de outros e impedindo que, nesta hipótese, a posterior aquisição possa ainda qualificar-se como
substituição dos valores inicialmente empenhados) e, por outro lado, se a substituição terá que ser
efectuada no próprio dia (o Autor tende a responder negativamente a ambas as questões, alegando que a
lei “al referirse al día de la substitución, indica la necessidad de ingresso inmediato de los valores
sustitutos en la cartera donde hasta entonces se integraban los sostituidos”). Outras questões dizem
respeito à fixação do valor a atender no momento da substituição (no caso dos valores cotados, será o
preço estabelecido no mercado oficial na data da substituição e, tratando-se de valores não cotados, será
aquele que for fixado por um auditor na mesma data), ao modo de efectuar a substituição (através da
entrega do título ao credor ou, no caso de valores escriturais, através da anotação no respectivo registo –
tratando-se de participações sociais, será ainda necessário comunicar a substituição à sociedade emitente
de tais valores) e à possibilidade de do credor se opor à substituição (que o Autor nega, embora admita
que, em caso de substituição de valores por outros voláteis ou menos seguros, o credor possa recorrer aos
mecanismos legalmente previstos para reagir contra a diminuição da consistência da sua garantia).
2054
Dá conta desta interpretação Piscitello, Le garanzie cit., pág. 28, sugerindo que o respeito pelas
normas do Código Civil seria assegurado através da indicação, no momento da constituição do penhor, de
um limite mínimo e máximo entre o qual o valor da garantia poderia oscilar e, por outro lado,
identificando as características dos bens que poderiam substituir os originariamente empenhados
(acrescentando que não constitui obstáculo a este entendimento um eventual desfasamento temporal entre
a percepção do produto da alienação dos bens originariamente empenhados e o reinvestimento desse valor
na aquisição de outros bens – como acontecerá no caso de gestão de carteiras de títulos – pois “tra la
vendita dei titoli costituiti in pegno ed il successivo investimento del ricavo sussiste un iato temporale in
ciu l’oggetto della garanzia è costituito da una somma di danaro e, pertanto, non permangono beni della
medesima espcie y calidad per tutta la durata della garanzia”).
544
16, n.º 1),2055 o que, na opinião de alguns, redunda num afastamento dos princípios da
especialidade e indivisibilidade do penhor.2056
Para além do que ficou dito a respeito da rotatividade, no que respeita ao penhor
de créditos o Código (cfr. art.º 569-18) consagra mesmo um princípio genérico de sub-
rogação, dispondo que se o crédito onerado se vencer antes do garantido, o penhor passa
a recair, ope legis, sobre a prestação efectuada em consequência do pagamento do
crédito empenhado.
Um outro aspecto inovador desta lei catalã foi a consagração da possibilidade de
o credor pignoratício, quando a sua garantia incida sobre dinheiro ou um título
representativo de dinheiro (desde que a quantia seja líquida e exigível), se apropriar do
objecto da garantia em caso de incumprimento do devedor, mas apenas até ao montante
do crédito garantido, devendo notificar tal procedimento aos demais devedores do
empenhante (cfr. art.º 569-20, n.º 5),2057 sem que a tal obste a proibição das convenções
comissórias.2058
2055
Como salienta Barrada Orellana, ob. cit., pág. 262 e segs., esta norma consente às partes, quando em
garantia da mesma obrigação seja afecta uma diversidade de objectos, fixar a parte da dívida pela qual
cada um responde, ou seja, “en este caso, se entienden constituidos tantos derechos de prenda como
objetos haya” (em caso de silêncio das partes, valerá o princípio geral da responsabilidade solidária de
todos os bens onerados pelo cumprimento da obrigação assegurada). Quando exista acordo, este poderá
abranger todos os bens (cabendo a cada um a responsabilidade pelo cumprimento da dívida) ou apenas
alguns deles (de modo que algum ou alguns responderão por uma determinada parcela em débito e todos
os demais assegurarão o cumprimento pelo restante da dívida), não tendo a divisão que ser proporcional
ao valor de cada objecto e podendo o acordo ser firmado em momento prévio, simultâneo ou posterior à
constituição da garantia, embora deva constar do registo para produzir efeitos face a terceiros. Por outro
lado, convencionando-se esta divisão da responsabilidade, qualquer dos proprietários poderá requer a sua
devolução em caso de cumprimento da obrigação pela qual tal objecto respondia, bem como proceder à
substituição do mesmo por outro (nos limites em que a lei o consente) e o credor, em caso de
incumprimento, poderá alienar qualquer dos bens que responda pelo pagamento da quantia exequenda (e,
em caso de insuficiência daqueles, sobre os demais bens do devedor empenhados, mas como credor
comum). Em termos concordantes, Daniel Ripley, ob. cit., pág. 10.
2056
Ao consentir que as partes procedam a uma repartição da responsabilidade entre os diversos objectos
que compõem a garantia, de modo a que cada um responda apenas pela parte do crédito que lhe
corresponda, salvo melhor juízo, o que está aqui em causa não é o afastamento do princípio da
especialidade (entendido como necessidade de os direitos reais incidirem sobre coisas certas e
determinadas), mas sim a indivisibilidade da garantia, porquanto deixa de existir uma responsabilidade
solidária de todos os objectos que a compõem, para passar a haver uma responsabilidade distribuída entre
cada um deles (contra, Barrada Orellana, ob. cit.., pág. 270 e segs., alegando não haver violação da dita
indivisibilidade, desde logo porque a mesma não é inerente à noção de garantia – podendo, por isso
mesmo, ser afastada por vontade das partes; depois porque, ab initio, a própria garantia nasce já dividida;
e, finalmente, porque a lei, ao permitir que se constituam tantos penhores quantos os objectos onerados,
dispõe que “se entienden constituídos” não que se constituam efectivamente, pelo que “existe una sola
obligación cuyo cumplimiento se garantiza con un sólo derecho real que recae sobre varios objetos,
respecto de los cuales unicamente la responsabilidade s la que se fracciona e individualiza, de forma que
han de entenderse constituídas, no que se constuyan, tantas garantias como objetos existan. A este
argumento podría añadirse que sólo existe una prenda porque, de querer varias, las partes hubieran
podido constituir tantas como objetos a afectar”; entende, ao invés, estarmos perante uma excepção à
indivisibilidade da garantia Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 255 e 256, a menos que se faça
dela uma leitura mais flexível e se considere “que en este tipo de prendas rotativas o sustitutivas no
prima tanto la cosa concreta objeto de la garantía, sino el valor económico y global que el deudor
pignoraticio se compromete a mantener constante y (…) debería admitirse la reducción de la garantía.
Incluso beneficiaría al tráfico en el sentido de poder darse en garantía esos remanentes de otro crédito y
frente a otros terceros”).
2057
Em face do anterior art.º 19.º, n.º 5, da Lei catalã de garantias reais (cujo conteúdo em nada difere da
disposição mencionada no texto), Aranda Rodréguez e Mondéjar Peña, La compensación por el acreedor
pignoraticio como forma de ejecución de la garantía de dinero o título representado por dinero en la ley
catalana 19/2002, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal),
545
À guisa de conclusão, o juízo sobre a completude do sistema espanhol é
negativo, não apenas relativamente à desadequação do regime do penhor às exigências
da económicas, mas atendendo também ao âmbito limitado de bens que podem ser
objecto de garantias mobiliárias não possessórias2059 e, noutra ordem de considerações,
aos entraves à utilização da propriedade com fins de garantia2060, à existência de
Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 563 e segs., distinguem consoante estejamos perante uma garantia
sobre dinheiro (caso em que consideram estarmos perante um penhor irregular, garantia este que
raramente se utilizará para garantir um crédito pecuniário – pois, quando assim for, o devedor preferirá
usar o dinheiro para pagamento e não como garantia -, mas sim obrigações de facere, de non facere ou de
dare) ou sobre títulos representativos deste (fattispecie qualificada como penhor de créditos) e elencam os
requisitos para que tal apropriação possa produzir-se, quais sejam que a dívida garantida seja líquida e
exigível e que o devedor seja notificado da decisão de compensação.
2058
Sobre este assunto, vide infra n.º 4.3.4 do Capítulo II.
2059
Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 725 e segs., considerando-o defeituoso por não consagrar
nenhuma garantia mobiliária não possessória que, à imagem do penhor tradicional, possa recair sobre
qualquer bem móvel e para assegurar qualquer tipo de obrigação (o Autor socorre-se do próprio
preâmbulo da lei que aprovou a hipoteca mobiliária e o penhor sem desapossamento, no qual se
demonstra uma preferência pelo modelo da hipoteca imobiliária: simplesmente, tal implicaria a criação de
um registo de propriedade – à semelhança do que sucede com os bens imóveis - para todos os bens
móveis, ideia esta que não logrou efeito, uma vez que “exigiria un cambio total y absoluto en el sistema
de transmissión y contractación de esta classe de bienes”. Todavia, ao não ser assim, o sistema sujeita-se
à crítica que “no parece possible una publicidad necessaria para la constitución de la garantía real sin
que esté prevista de hecho una registración originaria del bien (…) porque sólo tal registración puede
dar, de los singulare, concretos bienes muebles, la más rigurosa determinación indispensable para la
hipoteca, dada su especialidad respecto al objeto, y también para toda otra publicidad mobiliaria, que de
hecho se realiza siempre con us sistema no personal, sino real”) e por se manter arreigado a dogmas
como o princípio da especialidade, do qual decorre a exigência de perfeita identificação dos bens
onerados. Também García-Pita y Lastres, ob. cit., pág. 184 e segs., alude a alguns reparos dirigidos à lei
sobre hipoteca mobiliária e penhor sem desapossamento, como sejam o não ter incorporado hipoteca
naval (ao contrário do que fez com a hipoteca de aeronaves) e por se ter limitado a criar um registo de
ónus (não ousando criar um registo de propriedade mobiliária).
2060
De acordo com Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 762 e segs., o ordenamento espanhol não é tão
radical como o italiano na proclamação da invalidade, por simulação, das alienações com função de
garantia. Com efeito, a jurisprudência dominante admite a validade de tais negócios, com base na
autonomia contratual, embora neguem a possibilidade de registo de tal direito. A solução passa, na óptica
do Autor, por considerar que “la causa (garantía) determina el tipo de derecho constituído (…). Si
aceptamos la tipicidad de los derechos reales de garantía, y el principio causalista del nuestro
ordenamiento, un contrato de (venta en) garantía es causa de la constitución de un derecho de hipoteca”,
encontrando-se, por isso, a eficácia das alienações em garantia face a terceiros dependente da observância
dos requisitos legais da garantia a constituir, que no caso dos imóveis será a hipoteca, mas nos móveis
poderá não ser necessariamente o penhor (pois, “Si en la simulación relativa se trata de sacar a la luz el
contrato disimulado para que éste produzca efectos jurídicos, los problemas surjen cuando no tenemos la
certeza de cuál es tal contrato y que efectos puede producir”). Já Salinas Adelantado, El régimen cit.,
pág. 145 e segs., relata que a proibição do pacto comissório constitui o principal entrave à admissibilidade
deste negócio, pois parece que a mesma alcança não apenas as garantias típicas, mas igualmente os pactos
autónomos (considerando-a a manifestação de um princípio geral de acordo com o qual “no se permita al
acreedor pignoraticio apropriarse del objeto de la garantía sin valorar si corresponde con la cantidad
del crédito garantizado”). Aranda Rodríguez, ob. cit., pág. 138 e segs., entende que os negócios
fiduciários não se encontram interditos no ordenamento espanhol, tendo em conta a ausência de proibição
expressa e a consagração do princípio geral da autonomia negocial, surgindo dúvidas quanto à sua
configuração jurídica, porquanto o Autor entende ser de rejeitar a teoria germânica do duplo efeito, que
configura o negócio fiduciário com uma operação complexa, divisível num negócio positivo através do
qual se transmite o direito e por um direito obrigacional negativo através do qual o cessionário fiduciário
se obriga a retransmitir o direito ao cedente em caso de cumprimento da obrigação por parte deste,
contendo uma causa atípica (esta rejeição assente no facto de o sistema espanhol, ao contrário do alemão,
ser um sistema causal, não consentindo negócios abstractos) e optando pela chamada teoria da
propriedade aparente (de acordo com a qual “el negocio fiduciario es un negocio único con una causa
propia y peculiar que consiste en el afianzamiento del débito, es decir, la causa del negocio fiduciario no
546
inúmeros privilégios creditórios2061 e a uma interpretação castradora do princípio da
tipicidade limitadora da liberdade contratual:2062 em face deste panorama, não
surpreende o recurso a outras formas de financiamento da actividade económica, de que
é exemplo o leasing.2063
es la enajenación sino la garantía”, sem que exista transmissão da titularidade do bem ou direito, uma
vez que “El fiduciante, en estos casos, sigue siendo el titular real o material del derecho, porque la causa
de garantía no justifica la transmisión plena e irrevocable. El fiduciario, por su parte, sólo recibe una
propiedad formal o aparente, titularidad fiduciaria, que se apoya en el pacto fiduciario subyacente
(mandato o garantía de préstamo, disimulado o no), pero no en el negocio transmisor de la titularidad”).
2061
Deste modo colocando em risco a consistência das garantias reais - Rojo Ajuria, Las garantias cit.,
pág. 765 e segs..
2062
Faz referência a este aspecto Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 48 a 50. O Autor, embora
defenda uma interpretação flexível do princípio (adaptada às necessidades de evolução do comércio e das
próprias garantias), considera que a posição dominante passa por qualificar o princípio como sendo de
ordem pública e preclusivo e, em consequência, conduz à interdição da criação de novos direitos reais não
previstos pelo legislador, uma vez que estas novas figuras ao serem munidas de sequela e preferência
implicam “una derogación del de titularidad aparente basada en la posesión y del de par conditio
creditorum, derogaciones difícilmente concebibles fuera de los supuestos tipificados por el legislador”.
Em termos análogos, Finez Ratón, ob. cit., págs. 37 e 38 (declarando que “Nadie pone en duda el
carácter de numerus clausus de los derechos reales de garantía. La autonomia de la voluntad no puede
jugar a tal efecto; al menos, no en un ordenamento como el nuestro, donde el legislador parte del
principio básico de la par conditio creditorum. Los contratos con función de garantia tendrán validez y
surtirán plenos efectos en la medida en que se ajusten a los presupuestos constitutivos de los negocios de
garantia detallados legalmente. Las fuentes de privilegio y preferencia del crédito están tasadas
legalmente. La voluntad de las partes es inhábil para crear otros privilegios distintos de los legales”).
Bastante menos rígido se mostra Manuel Albaladejo, Derecho Civil III cit., pág. 327, não sem reconhecer
ser minoritáiro o seu entendimento, escrevendo que “Los señalados d.r. no son los únicos posibles. Puede
llamárseles típicos, en cuanto regulados específicamente cada uno de ellos en la ley (lo mismo que se
llaman típicos los negocios jurídicos que ésta regula en particular). Pero, junto a ellos (y, se
sobreentiende, siempre que se cumplan los requisitos legales adecuados al d.r. en general y se trate
verdaderamente de que se establezca un poder directo e inmediato sobre una cosa, y no solo de que las
partes así lo digan o califiquen de d.r. a la figura que creen), caben, en principio, cualesquiera otros d.r.
concretos que los particulares quieran establecer, creando otras variedades (bien originales, si es
prácticamente posible, bien mezclando elementos de los ya existentes o modificando en éstos los
normales) de poderes directos sobre cosas. Estos d. se llamarían atípicos, porque la ley no los regula
específicamente” (argumentando, por um lado, que o princípio da liberdade contratual tem um âmbito
geral – não vislumbrando razão para excluir a sua aplicação no domínio dos direitos reais – e, por outro,
que, sendo estes direitos criados por via contratual, é possível a modelação do respectivo conteúdo face
ao regime consagrado na lei), duvidando apenas da viabilidade de criação de novas figuras (uma vez que
as existentes abarcam os poderes normalmente inerentes às coisas, admitindo cada uma das figuras típicas
várias modelações do seu conteúdo) e, noutro plano, questionando se qualquer relação denominada pelas
partes como real o possa efectivamente ser (o que dependerá, na óptica do Autor, de o conteúdo definido
pelas partes “tenga objetivamente naturaleza de poder directo sobre una cosa”). Em termos
concordantes, Serrano Alonso, ob. cit., págs. 32 e 33, aceitando que no ordenamento espanhol vigora o
princípio do numerus apertus dos direitos reais – assim consentindo a criação de outros para além
daqueles previstos na lei – argumentando que nenhuma norma específica afasta, para os direitos reais, o
princípio da autonomia negocial e, por outro lado, que algumas leis registais, depois de enumerarem os
títulos para tal registo, acrescentam a expressão “y otros cuasquiera reales” (ademais, o Autor conclui
que esta posição “supone reconocer la vitalidad de la realidad social al establecer instrumentos que
puedan adecuar las normas jurídicas a las exigências sociales de cada momento”).
2063
Bercovitz Rodríguez-Cano, El pacto de reserva de dominio y la función de garantia del leasing
financeiro, in Tratado de garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I., Civitas, 1996, págs. 410
e segs., relata que a jurisprudência dominante distingue este contrato da compra e venda a prazo e do
financiamento da mesma (cujas garantias se encontram reguladas autonomamente na lei), tomando como
elemento decisivo a existência de um direito de opção no final do contrato: todavia, o Autor tal concepção
deverá ser refutada porque em todos estes contratos o que se pretende é “obtener una financiación esterna
a la empresa para la adquisición de bienes destinados a la actividad propria de la misma. En ambos
casos la financiación se busca en un tercero distinto del proveedor o vendedor del bien. En ambos casos
547
1.2.4 - Alemanha
se trata de que ese financiador se haga cargo inmediatamente del pago total del precio del bien. En
ambos casos se trata de que la empresa que desea adquirir el bien pueda utilizarlo inmediatamente y
pagar su precio a plazos” (por outro lado, o Autor considera artificial a distinção em que assenta a
posição da jurisprudência, porquanto o direito de opção “en la mayoría de los casos su valor equivale a
uno de los prazos o renta mensual estabelecida. Frecuentemente se estabelece mediante algún sistema
(garantía del pago de la renta o de la debida conservación del bien) el pago adelantado (en el momento
de perfeccionarse el contrato de leasing) de ese precio correspondiente a la opción de compra”).
2064
Rolf Serick, Le garanzie mobiliari nel diritto tedesco, Giuffrè, 1990, págs. 10 e 11, coloca em
destaque os inconvenientes do desapossamento (que conduzem ao acantonamento do penhor “solo là
dove colui che riceve il credito può rinunciare al possesso immediato delle cose, e questo non onera chi
dà il credito: cio accade ad esempio nel caso di preziosi, che la banca finanziante può prendere in
deposito, ed inoltre nell’ipotesi di merci affidate in deposito”) e o facto de não ser admitido o acordo
através do qual o constituinte da garantia mantenha a posse imediata da coisa onerada (nomeadamente a
título de comodato), enquanto o credor pignoratício obtivesse unicamente a posse mediata. Por ser assim,
o Autor esclarece que é a necessidade de assegurar a continuação do uso do bem empenhado por parte do
devedor na sua actividade profissional que justifica a decadência da figura do penhor. Já para O. Kloop,
Le gage commercial en droit allemande, in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11, pág. 106
e segs., o facto de, no ordenamento alemão, a transferência da propriedade ter substituído o penhor
regulado no BGB e, paralelamente, de terem sido criados penhores sujeitos a registo (por exemplo, o
Pachtkreditgesetz – penhor legal, a favor dos fornecedores de adubos, sobre os frutos da colheita seguinte
-, o Kabelpfandgesetz – penhor sobre cabos de alto mar, sujeito a autorização ministerial, a inscrever num
registo especial -, e o Schiffregistergesetz, verdadeiras hipotecas sobre navios sujeitas a inscrição num
registo especial), permitem constatar que o penhor com desapossamento não constitui um princípio de
ordem pública no direito alemão. Um caso, porventura residual, do reconhecimento de um penhor sem
desapossamento apontado por Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter
Eickmann, ob. cit., págs. 1562 a 1564, é o penhor constituído em garantia dos bens pertencentes ao
agricultor que exerça a sua actividade num imóvel/terreno arrendado (por serem estes os únicos bens de
que, não raras vezes, o empenhante dispõe para garantir os financiamentos de que carece para a sua
actividade, bens dos quais não pode prescindir para esse mesmo efeito), embora o credor pignoratício
tenha que ser obrigatoriamente uma instituição de crédito autorizada para esse tipo de operações, surgindo
a garantia (para além do acordo das partes) através do depósito do contrato numa repartição
administrativa (podendo os terceiros consultar e aceder a estes registos), sem necessidade de entrega do
bem onerado, incidindo sobre todos os bens inventariados pertencentes ao empenhante (incluindo as
expectativas e os bens adquiridos com reserva de propriedade, mesmo em momento posterior ao da
constituição da garantia) e até de terceiro (nos termos da aquisição a non domino, desde que se
encontrassem no terreno no momento da constituição da garantia).
2065
Refere Giuseppe Trapani, ob. cit., págs. 35 e 36, que estas garantias têm como objecto matérias-
primas (mesmo que o devedor ainda não tenha adquirido definitivamente a sua propriedade), complexos
de bens de consistência variável (sendo, inclusivamente, permitido ao devedor, no exercício da sua
actividade profissional, vender certas quantidades desses bens, desde que as substitua por outras ou
reembolse proporcionalmente o credor), veículos automóveis e mercadorias em viagem ou armazenadas.
Procurando resumir as características de uma garantia idónea para as necessidades do comércio jurídico,
Rolf Serick, ob. cit., pág. 78, menciona a não exigência de uma posse imediata por parte do credor, a
possibilidade de o devedor utilizar o bem onerado, a ausência de qualquer requisito formal de publicidade
para a constituição da garantia sobre bens móveis, a legitimação do empenhante para praticar actos de
disposição do bem no âmbito da sua actividade profissional ou para a transformação desse bem (e, no
548
Com efeito, apesar de o penhor ser a única garantia mobiliária que encontra
guarida no BGB, o facto de do seu regime decorrer a imperatividade do desapossamento
como pressuposto da constituição do penhor de coisas2066 (vide art.º 1205.º do BGB) –
deste modo tornando inviável a criação de um penhor através do recurso ao instituto do
constituto possessório2067 – e a notificação ao devedor do crédito cedido (cfr. art.º
1280.º do mesmo Código), como requisito para o advento do penhor de créditos2068 –
549
torna inviável a manutenção do carácter sigiloso das operações asseguradas com a
garantia pignoratícia, factor este que desincentiva o recurso à mesma.2069
Perante este cenário, a liberdade contratual foi desenhando figuras alternativas
que permitem ao credor munir-se de uma garantia sobre bens móveis, sem que o
devedor deles fique privado, designadamente recorrendo às alienações com função de
garantia2070 ou à venda com reserva de propriedade, contando com o beneplácito da
jurisprudência,2071 suportada juridicamente no recurso ao costume como fonte de
direito.2072
costituzione di un pegno di questo credito futuro, però, non potrebbe essere efficace prima della nascita
del diritto gravato”, permanecendo ineficaz até à notificação do devedor, ao contrário do regime do
penhor de créditos presentes, o qual “può divenire immediatamente efficace, dato che si sa chi è il
debitore del credito gravato e pertanto si può dar subito luogo alla notificazione della costituzione”. Já
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1571,
revelam que esta garantia foi suplantada pela cessão em garantia (em termos análogos ao que sucedeu
com a utilização marginal do penhor de coisas face à alienação em garantia), em razão não apenas do
carácter sigiloso da cessão (por contraponto à publicitação do penhor), mas igualmente das dificuldades
decorrentes do regime legal para a execução do penhor de direitos (embora este inconveniente possa ser
convencionalmente atenuado).
2069
De acordo com Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 277 e 278, é este desejo de preservar
o segredo das relações jurídico-comerciais – e não tanto a (eventual) exiguidade de poderes conferidos ao
credor – que justifica a pouca utilização do penhor no ordenamento alemão, uma vez que este “pourrait
donc compromettre la ráputation commerciale de l’emprunteur”. Contra, Rolf Serick, ob. cit., págs. 78 e
79, contestando que seja a necessidade de manter em segredo o recurso ao crédito e a correspondente
obrigação de fornecer garantias a justificar a decadência do penhor, pois actualmente é do conhecimento
de todos a inevitabilidade do recurso ao crédito – e a inerente obrigação de conceder garantias –
concluindo, por isso, que “L’interesse del debitore e datore della garanzia a mantenere nascoste queste
operazioni pertanto non è più idoneo ad offrire una spiegazione dell’inutilizzabilità pratica del tipo
legale del pegno su cose mobili”.
2070
Conforma salienta Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 155 a 157, as principais vantagens da
venda em garantia são a ausência de desapossamento do devedor, a execução mais célere (se não operar
relativamente a ela a proibição do pacto comissório) e a manutenção da aparência de solvabilidade do
devedor. Pelo contrário, os inconvenientes prendem-se com a ausência de publicidade, com os riscos
acrescidos para o devedor (pois, uma vez que o credor se tornou proprietário do bem, pode transmiti-lo a
terceiros, cabendo ao devedor unicamente uma acção pessoal de restituição, na qual agirá como mero
credor comum) e com o perigo para o credor da manutenção do bem em poder do devedor (na medida em
que, por força do princípio da posse vale título, este pode transmitir direitos sobre o bem a terceiros, os
quais, desde que se encontrem de boa fé, os adquirirão validamente). Já Carlos de Cores e Enrico
Gabrielli, Il pegno cit., págs. 128 e 129, preferem salientar o equilíbrio de interesses que com a alienação
em garantia se logra, protegendo o credor (que vê ser-lhe atribuído um direito de propriedade sobre um
bem, podendo até excluir, em caso de concurso, os demais credores do constituinte), o devedor (que pode
continuar a usufruir do bem onerado), os sub-adquirentes de boa fé (prevalecendo os direitos destes sobre
os do credor pignoratício, desde que tenham adquirido os bens no âmbito do decurso ordinário dos
negócios do devedor, uma vez que o credor – expressa ou tacitamente - concedeu autorização ao devedor
para proceder a tais alienações) e os demais credores do constituinte (por força do princípio da conversão,
o direito do credor é transformado num mero direito de preferência, similar ao do penhor) – para além do
mais e permitindo o direito alemão as transferências abstractas de direitos, esta figura consente que ao
contrato de mútuo seja associado um acordo de garantia, que mantém a posse imediata do bem no
devedor, cabendo ao credor a posse mediata (sendo que, por força de tal princípio da abstracção, a
garantia do credor é independente, não apenas da validade deste acordo de garantia, como também da
existência do crédito a garantir).
2071
Anna Veneziano, ob. cit., pág. 25, destaca a ausência, no ordenamento alemão, dos limites à
autonomia privada vigentes em Itália e, por outro lado, a criação por via jurisprudencial de algumas
figuras (de acordo com esta Autora, o sistema alemão caracteriza-se, no essencial, pela não imposição de
qualquer formalidade para constituição ou oponibilidade das garantias - o que redunda no carácter secreto
das mesmas - , assim como pelo recurso aos negócios translativos da propriedade, fazendo com que o
credor seja formalmente investido de um poder maior relativamente à função de garantia). Já Albina
Candian, Le garanzie cit., pág. 256 e segs., assegura que o ordenamento alemão baseia-se, no que às
garantias mobiliárias diz respeito, em duas fontes diversas, uma codificada (que prevê como figura basilar
550
Contudo, vozes se erguem assegurando que a reserva de propriedade
(legislativamente reconhecida) e as alienações em garantia (embora contra ou praeter
legem) mais não são que duas modalidades de penhor sem desapossamento, nas quais a
publicidade teria sido eliminada, ao menos no primeiro caso, por expressa previsão
normativa nesse sentido.2073
Já quando o penhor recaia sobre créditos, especialmente futuros,2074 a sua
colocação em garantia obedece normalmente ao esquema da cessão de créditos em
551
garantia (Sicherungsabtretung),2075 a qual pode assumir diversas modalidades, como
sejam a cessão global,2076 a cessão antecipada,2077 a cessão preliminar2078 ou a
non è necessaria, in modo che il traferimento è efficace solo in base alla convenzione”, embora “l’atto di
disposizione può esplicare i propri effetti soltanto nel momento in cui il credito viene ad esistenza: in
ogni caso, comunque, il trasferimento di questo diritto è sempre un effetto esclusivamente del contratto di
cessione” – cfr. Rolf Serick, ob. cit., págs. 85 e 86 (acrescentando que, à imagem do que sucede com a
transferência da propriedade em garantia, o cessionário recebe, face a terceiros, um direito pleno, embora
a intenção das partes seja a de constituir uma garantia de tipo pignoratício, o que não é viável em face do
regime vigente). Desta forma, superam-se os problemas do penhor de créditos, resultantes do facto de, no
momento da celebração do negócio de garantia, ser incerto se o crédito cedido chegará a existir e qual o
título do qual derivará, bastando para a determinação suficiente desse crédito seja suficiente a prestação
concreta de que o cessionário se tornou credor, identificação essa que deve possibilitar a determinação do
credor, do devedor, do título e do montante do crédito (embora ressalvando que “Se quindi il
trasferimento del cedito rappresenta un effetto della cessione anticipata solo nel momento in cui il
credito ceduto come futuro viene ad esistenza, di conseguenza non è necessario che l’oggetto dell’atto di
disposizione sia già da prima determinato”). Também Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág.
282 e segs., destaca que esta garantia pode incidir sobre créditos futuros, desde que definidos de forma
aproximada no momento da celebração do negócio (bastando, para este efeito, que “au moment de
l’accord relatif à la cession, l’origine (Entstehungsgrnd) de la créance et l’etendue de la cessioen soient
précisées de telle manière que, lorsque la créance naîtra, la personne du débiteur et la nature de la
créance puissent être déterminées avec certitude”, exemplifiando que tal requisito se tem por verificado
na cedência de todos os créditos provenientes da venda das mercadorias indicadas no negócio).
2075
Como salienta Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 282 e segs., trata-se, antes de mais, de
uma cessão de créditos. Todavia, este negócio produz efeitos distintos de uma comum cessão de créditos,
não apenas entre as partes (originando uma relação fiduciária, de acordo com a qual se o cedente cumpre
a sua obrigação adquire um direito à retransmissão do seu crédito, podendo as partes convencionar que a
transferência do crédito é efectuada sob condição resolutiva do cumprimento por parte do devedor, caso
em que este, em caso de pagamento, se recupera imediatamente a propriedade do crédito cedido em
garantia: todavia, é discutido se este negócio tem uma componente predominantemente fiduciária –
hipótese na qual será de reconhecer ao credor o direito de dispor do crédito cedido - ou, pelo contrário, de
garantia, caso em que será de recusar tal possibilidade), mas sobretudo relativamente ao devedor do
crédito empenhado (o qual, normalmente, não é sequer notificado do negócio de cessão, não chegando a
tomar conhecimento do mesmo nem sequer no momento do cumprimento da sua obrigação, porquanto
será normalmente o cedente a efectuar a cobrança do crédito cedido em garantia, prevendo-se, em regra, o
dever de depositar o resultado da cobrança numa conta bancária do credor cessionário em garantia: deste
modo, compaginam-se os interesses das duas partes no negócio de cessão em garantia, “Le nouveau
créancier se trouve libéré de l’obligation de recouvrement. Le créancier initial a, lui, intérêt à ce que la
convention intervenue reste ignorée de ses créanciers”, embora a validade de tal convenção esteja
dependente da possibilidade de o credor tornar público o negócio), especialmente porque este último não
poderá opor quaisquer excepções relativas à relação entre o cedente e o cessionário em garantia.
2076
Rolf Serick, ob. cit., pág. 92 e segs., define-a como aquela através da qual “il cliente garantisce la
banca mutuante attraverso la cessione globale di un complesso di un complesso di crediti, cioè
trasferisce alla banca tutti i propri crediti, presenti e futuri, derivanti dalla vendita di mercê o da
prestazioni effettuate a favore di terzi, che per questo motivo sono obbligati nei suoi confronti ad un
corrispettivo (…): questa cessione globale può essere limitata solo ad un gruppo di debitori”. Particular
atenção merece o chamado factoring impróprio (no qual o factor se faz ceder os créditos com base numa
cessão global, entrando o empresário numa relação de crédito com o factor, ou seja, “i crediti ceduti
vengono quindi a rappresentare una forma di garanzia per la restituzione del finanziamento ed insieme
lo strumento per consentire al factor la soddisfazione diretta del proprio creditore”: ao invés, no
factoring próprio, ocorre uma verdadeira venda do crédito, funcionando a cessão global de créditos como
preço acordado para a transferência de tais créditos), embora o Autor recuse o seu enquadramento na
cessão em garantia, preferindo a qualificação como mútuo atípico. Já Legeais, Les garanties
conventionelles cit., págs. 285 e 286, ressalva, porém, a necessidade de determinação dos créditos dados
em garantia (admitindo, porém, a jurisprudência a oneração de todos os créditos relativamente a sujeitos
cujo nome comece por determinadas letras ou de todos os créditos, presentes ou futuros, provenientes da
entrega de mercadorias ou de prestações de serviços), salientando igualmente os riscos que envolve para o
devedor (podendo esgotar todas as possibilidades de crédito, ao dar em garantia a generalidade dos seus
bens) e para os seus demais credores (que, deste modo, constatam que um outro credor do seu devedor
adquire uma garantia sobre uma grande parte do seu activo mobiliário).
552
Mantelzession,2079 cada uma delas mais adaptada aos condicionalismos da operação
negocial em causa,2080 surgindo, porém, conflitos entre os credores titulares destas
diversas modalidades de cessão.2081
Este fenómeno é particularmente notório no âmbito das garantias financeiras, em
especial bancárias, oscilando a opção das partes entre a cessão de créditos em garantia
(Sicherungsabtretung)2082 - a qual pode abranger apenas, como acabámos de ver, um
crédito determinado ou a globalidade dos detidos pelo onerante – e a alienação
fiduciária com o mesmo fim (Sicherungsübereignung).
2077
Rolf Serick, ob. cit., págs. 92 e 93, descreve-a como que tem por objecto unicamente créditos futuros,
mais concretamente “viene ad integrarei l trasferimento in garanzia di un magazzino di merci di
consistenza variabile, alienato dal debitore alla banca come garanzia del credito. La banca consente in
questo caso al cliente di vender ela merce presente nel magazzino nell’ambito della normale gestione
dell’impresa, e comunque toglierla dal magazzino, ma in sostituzione della garanzia reale (…) si fa
cedere già al momento della conclusione del contratto i vari crediti derivanti di volta in volta dalla
vendita di questa merce”.
2078
Que incidirá sempre sobre créditos presentes, obrigando-se o devedor “a trasferire al creditore dei
diritti di credito futuri nel momento in cui verrano ad esistenza, quindi non già al momento della
conclusione del contratto, come si ha invece nella cessione antecipata (...): dato che la cessione diviene
efficace solo con il compimento dell’attività prevista dalle parti, essa avrà per oggetto sempre e solo
crediti esistenti” – Rolf Serick, ob. cit., pág. 93).
2079
Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 35, define a Mantelzession como aquela garantia em que a
determinação dos créditos cedidos é efectuada através do reenvio para posteriores actos de identificação.
Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 284 e 285, esclarece que esta figura é utilizada,
sobretudo, quando a data de vencimento dos créditos garantidos é posterior à dos créditos cedidos: ora,
como os devedores destes últimos se liberam pagando ao seu credor, existe o risco de diminuição da
garantia, razão pela qual, no contrato de cessão, as partes podem impor ao cedente o dever de manter um
determinado volume de créditos cujo montante total ascenda a um determinado valor, de modo que os
créditos cobrados devem ser substituídos por outros (obrigando-se o cedente a, periodicamente, enviar ao
cessionário uma lista dos créditos, com indicação dos devedores e dos respectivos montantes).
2080
Sempre segundo Rolf Serick, ob. cit., pág. 93 e segs., a figura da cessão antecipada é mais comum no
âmbito das operações sobre mercadorias, enquanto no domínio dos financiamentos bancários predomina a
cessão global (a principal diferença entre elas é que na cessão global o critério para identificar o crédito
futuro refere-se à pessoa do devedor – na medida em que são cedidos os créditos de que o cedente é ou
será titular – enquanto na cessão antecipada é relativa à coisa, uma vez que tem por objecto os créditos
que o cedente adquirirá no futuro para com o comprador do bem onerado).
2081
De acordo com Rolf Serick, ob. cit., pág. 94 e segs, em caso de cessões sucessivas do mesmo crédito
futuro, prevalecerá o princípio da prioridade temporal (até porque “in modo che la perdita da parte del
cedente del proprio potere di disposizione comporta che egli non possa più compiere, anche prima che il
diritto sorga, validi atti di disposizione su di esso a favore di un secondo cessionario”), salvo em caso de
conflito entre uma cessão global e a cessão de um crédito futuro estipulada para ampliar a garantia
conferida por uma reserva de propriedade, caso em que esta segunda garantia prevalecerá, mesmo que de
constituição posterior (com base no argumento que “una cessione globale di crediti futuri ad una banca è
contraria a buona fede, in quanto venga a ricomprendere anche crediti che il cedente dovrà trasferire e
trasferirà in base ad una riserva di proprietà ampliata”, uma vez que através da cessão global o devedor
ficará compelido “a continui inadempimento contrattuali, dato che se gli è impossibile stipulare delle
cessioni di credito futuro nell’ambito dell’ampliamento della riserva di proprietà, il che equivale a dire
che egli è impossibile ricorrere alla stessa riserva di proprietà, egli non potrà più ottenere dai propri
fornitori le merci necessarie alla continuazione della sua impresa”).
2082
Segundo António Pedro A. Ferreira, ob. cit., pág. 688 e segs., a cessão de créditos em garantia é
igualmente uma figura atípica, moldada sobre o regime da transmissão de créditos (Abtretung – cfr. §398
e segs. do BGB), de modo que o devedor, em garantia da sua obrigação, cede ao seu credor um direito por
si titulado contra terceiros: mais concretamente, “a cessão é concebida como devendo ser temporária, o
que permite a reaquisição dos créditos se o crédito garantido for reembolsado antes do vencimento
daqueles; o banco cessionário fica investido na generalidade dos poderes do proprietário, podendo
cobrar os créditos cedidos ou acordar prorrogações do seu prazo de vencimento. No entanto, os juros
produzidos pelos créditos cedidos, não podem ser adquiridos pelo banco cessionário, mas devem ser
creditados a favor do cedente”.
553
Retornando às duas principais alternativas ao penhor, as alienações em garantia
caracterizam-se por um acordo de natureza obrigacional, nos termos do qual a
propriedade é transferida para o credor através de um negócio dispositivo,
permanecendo o devedor na posse do bem alienado através de um constituto
possessório: todavia, a natureza fiduciária da operação impõe ao credor o dever de
retransmitir o bem quando o financiamento seja liquidado:2083 em termos jurídicos,
surge um acordo de garantia que define os moldes em que o credor pode, em termos
2083
Como esclarece Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 33 e segs., a ausência de desapossamento do devedor
é obtida através do recurso à figura do constituto possessório. Com efeito, o vendedor/dador da garantia
(devedor) pode, apesar da alienação, conservar a posse e o gozo do bem onerado, desde que convencione
com o credor (adquirente do bem) que este permita a conservação do bem em poder do alienante a outro
título (locação, comodato ou depósito): em face do exposto, o credor adquire a propriedade do bem, mas
não a respectiva posse, que permanece no alienante, embora a outro título que não de propriedade (pelo
que este se torna possuidor imediato, também por conta do adquirente credor, enquanto este será apenas
possuidor mediato, através do devedor). Em caso de cumprimento das obrigações assumidas, o devedor
readquire o direito de propriedade sobre os bens alienados; caso contrário, perde a posse dos bens
alienados e o credor pode exercer todos os direitos inerentes à propriedade previamente adquirida.
Confirmando o uso sistemático das alienações em garantia - Sicherungsübereignung – não expressamente
vedadas pelo BGB e amplamente difundidas na prática, vide Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 30 e segs. e 65
e segs. e Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 102, nota 135 (este último define este instituto como “un
contratto con il quale l’imprenditore – dopo aver ottenuto il finanziamento – trasferisce alla banca la
proprietà delle merci che, dalla stessa banca, però, gli vengono attibuite, al medesimo tempo, a titolo di
possesso mediato ex §930, con la possibilita di utilizzarle nel processo produttivo”, acrescentando ainda
que, por vezes, vem associada a uma cessão dos créditos decorrentes da venda dos bens dados em
garantia). António Pedro A. Ferreira, ob. cit., págs. 686 e 687, destaca como esta alienação em garantia
(entendida como contrato através do qual a propriedade de um bem – normalmente móvel – é transmitida
fiduciariamente para o credor, como garantia da pretensão deste contra o devedor, podendo essa garantia
ser prestada pelo próprio devedor ou por terceiro) é uma figura negocial atípica, que origina a
transferência da posse do bem onerado para o credor-proprietário, permanecendo o devedor garante como
mero detentor (através do recurso à figura do constituto possessório – cfr. §930 do BGB): todavia, a
finalidade de garantia da transferência de propriedade implica que ao credor esteja vedada a utilização da
propriedade do bem para fins diversos (e, em caso de concurso de credores, o direito do proprietário em
garantia é convertido num crédito pignoratício munido do direito de satisfação preferencial sobre o
objecto da garantia, integrando-se tal objecto no património do devedor) e, inversamente, o devedor
dispõe, em caso de cumprimento da obrigação garantida, de uma pretensão obrigacional à restituição do
direito de propriedade do direito ou bem onerado (portanto, salvo disposição em contrário, o devedor não
é titular de um direito automático de reaquisição do quid onerado). De acordo com Anna Veneziano, ob.
cit., pág. 23, esta figura é particularmente apreciada pelos bancos (juntamente com a Sicherungszession,
isto é, a cessão de créditos, presentes ou futuros, com a contextual autorização dada ao cedente para
cobrar as respectivas prestações). Segundo Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 281 e 282, a
principal vantagem desta garantia reside na circunstância de o acordo fiduciário apenas produzir efeitos
inter partes, não sendo assim do conhecimento de terceiros (aos olhos dos quais o empenhante permanece
proprietário da coisa onerada), o que permite assegurar a reserva sobre a operação negocial (para além
disso, em caso de incumprimento da obrigação garantida, o credor pode dispor imediatamente do bem
objecto da alienação em garantia, sem ter que observar as formalidades previstas para a execução dos
bens empenhados, destarte se legitimando uma cláusula comissória). Na opinião de Rolf Serick, ob. cit.,
pág. 12, este acordo consiste num negócio que à transferência real em garantia, associado a um constituto
possessório (em termos mais concretos, “la proprietà sulla cosa viene trasferita fiduciariamente
attraverso il contratto reale ed a questo trasferimento si affianca la convenzione di un rapporto
possessorio (si hanno cioè l’atto di trasferimento ed un costituto possessorio). Il costituente ed il
creditore devono allora dar luogo ad un rapporto convenzionale, in base al quale l’acquirente acquista il
possesso mediato (§930 BGB): un rapporto di questo tipo si ha (…) quando il costituente possieda la
cosa come depositario od in base ad un rapporto simile in forza del quale egli è legittimato od obbligato
nei confronti del creditore garantito a possedere la cosa: in questa maniera anche il creditore diviene
possessore, e precisamente possessore mediato (…). È però, necessario che il costituto possessorio si
realizzi attraverso un vero e proprio rapporto obbligatorio, e questo si ha nel caso di un rapporto
regolato dalla legge, il quale legittima od obbliga il possessore per un certo periodo di tempo oppure di
un contratto attipico, che ponga in essere questi stessi effetti”).
554
temporários e até extinção da obrigação garantida, legitimamente considerar-se titular
do objecto da garantia.
No que toca à reserva de propriedade,2084 a transferência da titularidade do bem
alienado é subordinada ao integral pagamento do respectivo preço,2085 sendo a
fattispecie integrada por um negócio causal de compra e venda e outro de disposição ou
transferência,2086 embora subsista uma particular dependência do segundo relativamente
ao primeiro,2087 assumindo esta garantia relevância mesmo a nível falimentar.2088
2084
De acordo com Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 278 e 279, alguns princípios do
direito alemão dos contratos quase que impelem os vendedores a optar por esta garantia, designadamente
porque o §454 do BGB prescreve que o vendedor que tenha cumprido as suas obrigações contratuais –
v.g., tenha transferido a propriedade e entregue o bem ao comprador – não dispõe do direito de rescisão
do contrato (e, ainda que tal direito lhe seja contratualmente reconhecido, resumir-se-á a uma mera
pretensão a obter do adquirente uma nova transferência da propriedade em seu benefício), concluindo o
Autor ser esta uma das consequências do princípio da abstracção vigente no ordenamento germânico: ora,
não fora a reserva de propriedade e o alienante ficaria desprotegido (para além disso, o Autor destaca
como a reserva de propriedade é a única garantia capaz de assegurar o crédito do vendedor quando este
concorra com o crédito de um terceiro que tenha financiado a aquisição e seja beneficiário de uma
alienação fiduciária).
2085
Esta figura, designada por Eigentumsvorbehalt, encontra-se disciplinada no §455.º do BGB – acerca
deste assunto, vide Gaetano Piepoli, ult. ob. e loc. cit., Anna Veneziano, ob. cit., pág. 38 e segs. e
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 101 e 102, nota 134. De acordo com este último Autor, esta
garantia é utilizada para assegurar o crédito do fornecedor de mercadorias ou produtos transformados,
constituindo-se através da simples notificação oral do fornecedor à empresa adquirente (dando conta da
criação de uma reserva de propriedade), assim prescindindo do acordo e da produção do efeito translativo
do direito de propriedade, embora se permita que o adquirente-empresário se torne possuidor do bem e o
possa usar no processo produtivo (além de, por vezes, as partes acordarem que, quando o título de
vendedor venha a cessar por força da transformação dos bens por parte do devedor, o vendedor conserve
o seu direito sobre os bens transformados ou sobre o preço decorrente da respectiva alienação). Na
prática, o vendedor transfere a propriedade do bem para o comprador, com a condição suspensiva do
pagamento integral do preço (assim, igualmente, Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 279),
continuando assim proprietário pleno até à verificação da condição, determinando a existência da
condição apenas uma alteração da eficácia do negócio, mas não produzindo, até à sua verificação,
qualquer limitação ao direito de propriedade (assim, Gabrielli, Garanzie rotative cit., pág. 6 e segs.).
2086
Como salienta Rolf Serick, ob. cit., pág. 23 e segs., a causa do negócio reside na compra e venda (por
ser este o fundamento que, de facto, autoriza o comprador a reter definitivamente o bem vendido), mas
importa distinguir a venda enquanto negócio causal (regulado, essencialmente, pelo direito das
obrigações) e o negócio de disposição levado a cabo para a cumprir (pertencente ao campo dos direitos
reais), embora seja possível “che il contratto causale, nel nostro caso la compravendita, sia invalido,
mentre è valido il negozio traslativo di adempimento con cui si realizza l’attribuzione patrimoniale. Ciò
deriva dal così detto Abstraktionsprinzip”, ou seja, “Il negozio di esecuzione di una qualunque
compravendita è il successivo atto di trasferimento della cosa, che in genere non è sottoposto a
condizione: il negozio di trasferimento di cose mobili (…) è un negozio astratto, che si perfeziona
indipendentemente dal negozio obbligatorio che ne costituisce la causa, soltanto con l’accordo e la
consegna o l’equivalente di quest’ultima” (o Autor justifica este regime com a necessidade de protecção,
não apenas do adquirente, mas sobretudo de terceiros, dado que estes “devono essere messi in grado di
non doversi preocupare dei rapporti che sono intercorsi tra l’alienante ed il suo dante causa: anche e
sopratutto nei loro riguardi il compratore è proprietario della cosa solo sulla base dell’atto di
trasferimento”: todavia, para evitar um enriquecimento ilícito da parte do comprador que adquire a
propriedade de um bem apesar da invalidade do contrato de compra e venda, ou seja, “Se una prestazione
validamente effettuata (nel nostro caso il trasferimento della proprietà della cosa venduta) non è
accompagnata da un valido accordo sul fondamento (causa) che nel nostro esempio deve essere
ravvisato nel contratto di compra e vendita, allora colui che ha ricevuto la prestazione (il compratore)
non può mantenerla. Il venditore, che ha subito una diminuzione del proprio patrimonio ha quindi nel
confronto del compratore, che si è ingiustificatamente arrichito alle sue spese, il diritto di riavere
l’oggetto dell’arricchimento, che ha la natura di un semplice diritto di credito alla restituzione”). Em
termos mais simples, Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 279, evidencia como esta garantia
se projecta sobre a relação obrigacional (adquirindo o vendedor um direito - Rücktristtsrecht - à retoma
do bem em caso de não pagamento do preço na data de vencimento da obrigação garantida, podendo o
555
Qualquer destas figuras, porém, não está isenta de dúvidas e incertezas, seja no
que respeita à configuração da alienação fiduciária,2089 seja, no que concerne à reserva
de propriedade, às condições de oponibilidade a terceiros2090 e à qualificação da
expectativa decorrente deste negócio para o comprador.2091
devedor exigir a devolução de eventuais somas parciais já pagas, excepto de estas constituírem uma
contrapartida pela utilização do bem) e sobre a situação real do bem (mantendo o vendedor a propriedade
do bem até integral pagamento, embora o devedor beneficie da posse directa da coisa, enquanto o
vendedor é um mero possuidor mediato ou fictício; por outro lado, o adquirente, antes do pagamento
integral do preço de aquisição, tem um direito de aquisição – Anwartschaftsrecht – dotado de autonomia e
valor próprio, pelo que poderá ser cedido ou empenhado).
2087
Rolf Serick, ob. cit., pág. 28, coloca em evidência esta dependência (e o seu carácter excepcional face
ao Abstraktionsprinzip), escrevendo que “Il punto di contatto, che unisce i due negozi, si ritrova nella
condizione sospensiva, che fa dipendere l’efficacia del negozio di disposizione dal titolo obbligatorio, in
modo che esso si trasforma in un trasferimento causale. Con il verificarsi della condizione la proprietà si
trasferisce immediatamente al compratore” (cfr. igualmente Gabrielli, Autonomia cit., pág. 650 e segs. e
Sulle garanzie rotative cit., pág. 30 e segs., destacando que, por ser assim, “il venditore, proprietario con
riserva, non può revocare il negozio di disposizione ed impedire in questo modo l’acquisto del
compratore che abbia adempiuto le obbligazioni derivanti dal contratto di vendita”).
2088
Rolf Serick, ob. cit., pág. 29, destaca ser esta uma vantagem da reserva de propriedade face à
alienação em garantia, porquanto o beneficiário da primeira dispõe da faculdade de excluir da massa
falida a coisa vendida, como corolário da posição de pleno proprietário do vendedor reservatário até
integral pagamento do preço.
2089
Mais concretamente com a estrutura complexa do mesmo, composta de um negócio causal
(constituído pela relação de segurança do crédito e que compreende a obrigação do constituinte transferir
um dado bem em garantia) e de outro real de cumprimento, dando origem a uma ligação umbilical entre a
relação de crédito (financiamento) e a de garantia, da qual resulta uma única operação negocial com
efeitos obrigatórios para ambas as partes, de contornos nem sempre claros (acerca deste assunto, vide
Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 33 e segs.) e, sobretudo, com as consequências em caso de
falência do devedor (de acordo com Anna Veneziano, ob. cit., pág. 39 e segs., a jurisprudência alemã
tende a atribuir ao credor um mero direito de preferência como se houvesse sido estipulado um penhor e,
por outro lado, a apenas reconhecer a validade das alienações em garantia quando sejam respeitados os
requisitos de publicidade do penhor, isto é, a entrega ao credor ou – para os bens que não consintam tal
entrega – a aposição de sinais alternativos que consintam a potenciais interessados um fácil
reconhecimento da garantia, sob pena de, não o fazendo, esta garantia constituiria uma forma de
contornar as regras imperativas do penhor) ou do próprio credor (segundo Anna Veneziano, ob. cit., págs.
39 e 40, a natureza fiduciária do vínculo permite ao devedor separar os bens da massa falida, como se
fosse o seu proprietário). Em termos particularmente explícitos, para Rolf Serick, ob. cit., pág. 14 e segs.,
esta propriedade fiduciária não é ilimitada, assegurando unicamente um poder de liquidação do bem em
caso de incumprimento da obrigação assegurada, sendo esta limitação especialmente notória em sede de
falência do devedor dador da garantia, caso em que o mutuante disporá, à imagem do que sucede com o
credor pignoratício e por força de um princípio de conversão ou Umwandlungsprinzip (nos termos do
qual “un diritto trasferito illimitato al creditore a scopo di garanzia deve essere imputato al patrimonio
del datore della garanzia e perciò conferisce al primo solo una legittimazione di natura simile a quella
derivante del pegno”), de um mero direito de prelação (em termos gerais, o fiduciário encontra-se ligado
ao fiduciante por um vínculo de natureza obrigacional, pelo que esta propriedade “conferisce al fiduciario
non la titolarità definitiva del bene, ma solo una proprietà limitata nel tempo (…). Il fidcuiario, però, in
base agli accordi obbligatori intervenuti fra le parti, può fruire del suo diritto solo in modo limitato, in
quanto è obbligato ad usare la sua posizione di titolare solo per il conseguimento delle finalità di
garanzia, ma non per utillizare la proprietà ad altri scopi: per esempio, nella sua posizione di
proprietario vincolato da patto fiduciário, egli non può donare il bene”. Em caso de insolvência do
credor pignoratício, “il fiduciante vene considerato alla stregua di un proprietario che abbia diritto alla
separazione del proprio bene dellla massa (…) la sua posizione può in casi eccezionali perdere il
carattere di un diritto meramente obbligatorio alla restituzione della cosa dopo la realizzazione dello
scopo di garanzia, per acquistare quello di una titolarità piena e illimitata del diritto”.
2090
Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 28 e segs., depois de salientar a limitação do risco de
incumprimento e de insolvência do devedor que este negócio representa, alude ao debate quanto aos
efeitos de garantia do pacto (ou seja, se a cláusula serviria apenas para garantir apenas a restituição do
bem em caso de rescisão do contrato – desse modo tornando oponíveis erga omnes os efeitos da rescisão -
556
Todavia, o recurso a institutos cujo intuito primacial não é do operarem como
garantias reais gera, por vezes, uma incapacidade das mesmas para satisfazer as
necessidades dos credores, especialmente quando se recorra à reserva de propriedade e
os bens onerados sejam de natureza dinâmica.2092
ou, pelo contrário, representaria uma garantia que cobriria um eventual não pagamento do preço
acordado), conclui pela função de garantia da convenção, traduzida na criação de uma garantia real não
possessória, com força análoga ao penhor, ou até mais forte, porquanto o credor munido de uma reserva
de propriedade não tem de submeter-se ao concurso de credores (embora o Autor atenue esta diferença,
salientando que, naquele concurso, o credor pignoratício será o primeiro a ser pago). Por seu turno Anna
Veneziano, ob. cit., pág. 43 e segs., nota que no direito germânico não é exigida qualquer formalidade
para a validade ou oponibilidade a terceiros do direito do vendedor (ao contrário do que sucede noutros
ordenamentos, alguns impondo a redacção de um documento escrito, outros requerendo ainda a inscrição
da reserva num registo, o qual pode funcionar como condição de oponibilidade da garantia a todos os
terceiros ou, como sucede no direito italiano, apenas aos terceiros adquirentes), nem tão pouco se impõe a
contextualidade entre o pacto de reserva de propriedade e o acordo de garantia (admitindo-se antes que tal
pacto pode ser estipulado até à entrega do bem).
2091
Gabrielli, Garanzie rotative cit., pág. 6 e segs., assegura que o comprador é titular de um direito
subjectivo actual – e não meramente futuro, cujo conteúdo consiste na expectativa de aquisição desse bem
– sobre a coisa, passível de actos de disposição, mas um direito sui generis, não enquadrável, nem na
categoria dos direitos reais, nem dos direitos de crédito. Rolf Serick, ob. cit., pág. 30 e segs., por seu
turno, considera que a posição do comprador não é regulada pela lei como um direito subjectivo, mas
antes como uma expectativa legítima (Anwartschaftsrecht) peculiar que “si collochi in una posizione
tutt’affatto peculiare, a cavallo fra le posizioni reali e qulle obbligatorie (…). È un diritto soggettivo sui
generis, una posizione soggettiva insieme assoluta e relativa: è un diritto reale che ha ancora la
dipendenza causale propria dei diritti di credito od anche un diritto di credito che presenta già dei tratti
di realità”, posição esta que deverá ser protegida contra comportamentos unilaterais e arbitrários do
alienante (também a respeito da tutela falimentar desta expectativa o Autor destaca a diferença face à
alienação em garantia que, quando sujeita à condição resolutiva de cumprimento da obrigação assegurada,
isto é, quando o dador da garantia se torne imediatamente proprietário da coisa transferida em garantia
assim que liquide a soma em dívida: nesta última, a expectativa sobrevive à insolvência, dado que a sua
causa “non è un contratto a prestazioni corrispettive, e pertanto il curatore del fallimento non ha nessun
diritto di rifiutare l’adempimento della prestazione”, ao contrário da expectativa do comprador na reserva
de propriedade, cuja causa – o contrato de compra e venda – “attribuisce al curatore (…) il diritto di
scelta (…) se dare o meno esecuzione al contratto di vendita”).
2092
Com efeito, a figura da reserva de propriedade encontra-se consagrada – e assume particular
relevância - a respeito de bens estáticos (destinados a permanecer no património do comprador), mas a lei
não regula a eventualidade de o bem a adquirir pelo comprador seja destinado à introdução no seu giro
comercial (maxime, quando destinados à revenda ou a transformação). Daqui decorre, de acordo com Rolf
Serick, ob. cit., pág. 117 e segs., a premência de permitir ao credor revender os bens adquiridos com
reserva de propriedade para, com o produto dessa venda, cumprir a primeira obrigação (considerando
mesmo contrária à boa fé uma cláusula em sentido contrário, em razão dos danos que adviriam para a
actividade económica do comprador com reserva de propriedade). Nesta conformidade, “il venditore è
obbligato a far acquistare al compratore la proprietà della merce oppure autorizzarlo ad alienarla. Se la
vendita è con riserva di proprietà, allora il venditore sarà considerato adempiente già nel momento in
cui il compratore rivende la merce, in forza di questa autorizzazione, ancora prima dia ver corrisposto
l’intero prezzo” (o mesmo se aplicando à eventualidade de os bens em questão se destinarem a
transformação, caso em que se considera que o vendedor cumpriu a sua obrigação de transferir o seu
direito sobre o bem, uma vez que “attraverso la lavorazione effettuata dal compratore la merce è stata
trasformata in una nuova cosa. Tutto ció vuol dire che il venditore in questa ipotesi di vendita con riserva
di proprietà è obbligato a permettere al compratore di lavorare la cosa già prima che questi abbia
terminato di pagare il prezzo”). O mesmo sucederá, mutatis mutandis, com a transferência da propriedade
em garantia, na qual, quando verse sobre bens de carácter dinâmico, “il creditore garantito deve
acconsentire a che il datore della garanzia già prima della estinzione del debito sottoponga i beni a
lavorazione o li rivenda, concedendogli anche qui un’apposita autorizzazione, od inserindo nel contratto
una clausula di lavorazione”. Todavia e em qualquer das garantias, o credor vem a perder os direitos que
detinha sobre objecto onerado, pelo que carece de encontrar um sucedâneo: daí a necessidade de “trovare
un sorrogato, che prenda il posto della garanzia originaria (…) attraverso un intervento sul diritto al
557
Perante estas dificuldades, a adequação das garantias às exigência do comércio
jurídico é mais cabalmente alcançada através da criação de uma figura que siga as várias
transformações económicas do respectivo objecto, através da substituição dos bens
empenhados pelos créditos resultantes da respectiva venda2093 (normalmente
acompanhada da autorização ao devedor para alienar os bens onerados e encaixar o
produto dessa venda, o qual permanecerá onerado)2094 ou pelos resultantes da respectiva
prezzo che il loro debitore acquista attraverso la vendita della cosa”: daí o surgimento de formas
ampliadas de garantia.
2093
Mais detalhadamente, a generalidade das garantias ligam “la concessione di un potere di disposizione
sui beni al debitore – comprendente la trasformazione e la vendita sucessiva degli stessi – alla cessione
dei crediti futuri di cui diverrà titolare il debitore medesimo in seguito alla sudetta vendita” (em algumas
hipóteses chegam mesmo a exigir-se outras garantias para assegurar os créditos cedidos, designadamente
através da reserva de propriedade; ou prevendo a explícita manutenção da reserva de propriedade criada a
favor do primeiro fornecedor, mesmo após a venda desses bens a terceiros; ou convencionando a cessão,
a favor do fornecedor, da reserva de propriedade que o primeiro devedor constitui em nome próprio sobre
os bens no momento da venda a terceiros) - Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 67 e segs.. Anna Veneziano,
ob. cit., pág. 24, alude em especial à Vorausabretungsklausel (nos termos da qual a garantia do vendedor
- ou do financiador - se estende ao produto da (re)venda dos bens por parte do devedor), cláusula esta,
segundo Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 280, muito utilizada nas reservas de propriedade
(cedendo o adquirente todos os eventuais créditos futuros decorrentes da revenda dos bens adquiridos,
assim configurando uma cessão de créditos em garantia, de modo que uma garantia que, inicialmente,
recaía sobre um bem corpóreo pode, em seguida, passar a onerar um crédito).
2094
Gabrielli, Garanzie rotative cit., pág. 10 e segs., Autonomia cit., pág. 656 e segs. e Sulle garanzie
rotative cit., pág. 34, realça o facto de ao constituinte ser legítimo, no decurso da normal actividade da
empresa, vender as mercadorias a terceiros (devendo, contudo, o acto de disposição subordinar-se ao
acordo das partes que fixe os limites e modos de exercício do poder de disposição e, quando o credor seja
titular de uma reserva de propriedade sobre os mesmos bens, o mutuante deva dar o seu consentimento à
alienação). Já Rolf Serick, ob. cit., pág. 47 e segs., destaca que o credor autoriza o devedor a vender, em
nome próprio e no decurso da normal actividade empresarial, os bens onerados a um novo comprador,
sendo o meio técnico que sustenta esta operação a autorização para actos de disposição (cfr. §185 do
BGB), embora advirta que “L’atto di disposizione compiuto dal soggetto autorizzato è però valido solo
quando è conforme all’accordo obbigatorio che determina i limiti e l’attegiamento del potere di
disposizione derivante dell’autorizzazione” (como exemplo de actos que extravasam este âmbito, o Autor
aponta, por um lado, os casos em que não se permita ao credor adquirir o direito ao preço resultante da
alienação, como sucederá quando o terceiro adquirente tenha consentido na estipulação de uma proibição
de cessão, uma vez que “in questo caso il mutuante od il proprietario riservato verrebbero a perdere la
propria garanzia senza acquistare alcun surrogato di essa, in modo che questo negozio oltrepassa i limiti
stabiliti dal negozio autorizzativo” e, noutra ordem de considerações, a obtenção de crédito por parte do
cedente dos meios para cumprir a obrigação e, em seguida, a transferência em garantia a um novo credor
o direito perante o terceiro devedor, uma vez que “l’atto di disposizione eccede sicuramente i limiti del
potere conferito al cedente, dato che una nuova cessione in garanzia non è più ricompresa nello scopo di
garanzia”). Relativamente à autorização dada ao devedor para cobrar e receber os créditos cedidos em
garantia (Einziehungsermächtigung) justifica-se pelo facto de o comprador do bem outorgado em garantia
desconhecer a cessão (pois esta não tem que lhe ser notificada) e, por isso, supor ter de pagar a quem lhe
vendeu o bem e não ao credor garantido (todavia, este mandato é revogável em caso de prejuízo para a
garantia – nomeadamente quando a cobrança não se integre na actividade comercial corrente - e, quando
assim seja, o pagamento é ineficaz e não extingue o crédito), podendo até admitir-se uma autorização
tácita para o devedor dispor dos bens (uma vez que “il fatto che l’oggetto della garanzia viene ampliato
attraverso la cessione anticipata dei crediti consente di ritenerla concessa in maniera tacita: il creditore
garantito sa che le merce (…) è destinata ad essere immessa nel commercio, ed attraverso le cessione
anticipata del diritto al prezzo si cautela proprio per il caso in cui essa venga rivenduta. Dal suo canto la
cessione anticipata, che si realizza senza che il futuro deitore ne venga mai a conoscenza, si ricollega
istituzionalmente ad un’autorizzazione all’incasso, in modo che essa può essere dedota, anche in
mancanza di una pattuizione espressa, da un’autorizzazione agli atti di disposizione che comprenda
anche la vendita a credito della merce sottoposta alla garanzia”): porém, a autorização só pode ser
revogada, salvo convenção em contrário, em caso de perigo de frustração do fim de garantia, para além de
alguns casos de extinção automática da autorização (apesar da ausência de regulamentação legal a este
558
transformação2095 ou, ainda, da contínua substituição dos bens empenhados por outros
do mesmo tipo2096 - assim consagrando um prolongamento vertical da garantia2097 - ou,
respeito, o Autor aceita que, por exemplo, tal desfecho se produza em caso de insolvência do devedor) - a
este propósito, vide Rolf Serick, ob. cit., pág. 108 e segs..
2095
Após a conclusão do processo produtivo, os bens são retirados das instalações do devedor e retidos
pelo financiador com base na cláusula de laboração (Verarbeitungsklausel), que consente a transferência
da garantia do bem que resulta do culminar do processo de laboração. Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 69 e
segs. e Stefano de Paola, ob. cit., pág. 6 e segs., acrescentam que, caso esses processos impliquem outros
bens sobre os quais existam garantias específicas a favor de outros credores, o credor adquirirá a
compropriedade desses bens. Por seu turno Piscitello, Le garanzie cit., pág. 24, nota 50, alude à chamada
Herstellerklausel (a qual, com o fito de impedir que o devedor venha a adquirir a propriedade do novo
bem resultante da transformação, se prevê que esta decorra a cargo do credor garantido), mas ressalva ser
controvertida a sua admissibilidade. Alude igualmente a esta controvérsia Rolf Serick, ob. cit., pág. 55 e
segs., relatando que a mesma se prende com a interpretação do §950 do BGB (nos termos do qual aquele
que tenha trabalhado ou transformado uma ou mais matérias primas numa coisa móvel adquire a
propriedade da coisa nova, excepto se o valor do trabalho ou da transformação não for notoriamente
inferior ao valor da matéria), considerando uns que tal norma é inderrogável (e, em consequência,
produtor deverá ser sempre quem suporta o risco da laboração, pelo que “il debitore, che ha trasformato
la cosa originaria in una nuova ne acquisti la proprietà a titolo originario”, podendo eventualmente
concedê-la em garantia, como bem futuro, ou seja, “Attraverso il trasferimento anticipato egli aliena la
proprietà della nuova cosa al creditore, il quale quindi acquista il diritto a titolo derivato”), outros que a
mesma é meramente dispositiva (admitindo a sua exclusão por simples convenção das partes) e outros
ainda que, embora inderrogável, a cláusula de laboração seria legítima enquanto identificadora do sujeito
que deve ser qualificado como produtor do novo bem (posição subscrita pela jurisprudência dominante e
pelo Autor e que se pode resumir deste modo: “nel caso in cui il debitore-imprenditore proceda alla
lavorazione in maniera conforme alla clausula, infatti, in base al tenore di questa sarà il creditore
garantito che di regola deve essere considerato come il soggetto al quale si deve imputare il processo di
lavorazione, in modo che egli acquisterà a titolo originario la proprietà sulla nuova cosa”): precisamente
tendo em conta estas divergências, as cláusulas inseridas prevêem a aquisição da propriedade por parte
desses credores e, simultaneamente, para precaver a ineficácia deste efeito (nomeadamente pelo carácter
inderrogável do §950 do BGB), consagrando uma transferência antecipada para o credor do produto
futuro resultante da laboração (opção esta denominada de duplo binário e considerada como aconselhável
pelo Autor). Outras questões prendem-se com o funcionamento da cláusula quando a garantia seja a
reserva de propriedade (sendo discutível se o direito do vendedor com reserva é ainda a propriedade
reservada ou a coisa lhe é transferida em garantia: Rolf Serick, ob. cit., pág. 59, opta por esta segunda
alternativa, considerando que o vendedor “perde il suo diritto di proprietà riservata sulla materia prima
nel momento in cui essa viene trasformata nel prodotto finale, ed acquista quale surrogato la proprietà in
garanzia su di esso”) e com a chamada cláusula de laboração ilimitada, nos termos da qual o credor
adquire a plena propriedade sobre o produto resultante da laboração (Rolf Serick, ob. cit., pág. 61, admite
a sua licitude, embora alertando que “il creditore garantito deve però approntare dei meccanismi, come
ad esempio una clausula per la restituzione della cosa, affinché non si abbia un eccesso di garanzia
contrario a buona fede”) e mesmo das cláusulas de laboração limitadas, de acordo com as quais o credor
adquire apenas a propriedade de uma quota do produto final proporcional à quantidade de matérias primas
fornecidas (exigindo-se, por um lado, “che la clausula permetta di determinare la quota di comproprietà
che il creditore garantito acquisterá sul prodotto finale” e, ainda que tal suceda, “La presenza di più
clausule di lavorazione a favore di più venditori, dei quali ciascuno ha fornito una parte della materia
prima necessaria per ottenere il prodotto finale, può creare parecchi problemi nel caso in cui esse
determinino con una percentuale diversa la quota di comproprietà spettante rispettivamente ai diversi
fornitori”).
2096
Constituindo o chamado Raumsicherungsvertrag. Neste caso o efeito pretendido é que “la garanzia
assorba in continuazione sempre nuovi beni, che vengono sistematicamente a sostituire quelli dello stesso
tipo, in precedenza coperti della garanzia stessa”, sendo este tipo de garantias normalmente utilizado
quando o objecto a onerar consiste em mercadorias depositadas num lugar definido e que vão sendo
continuamente levantadas e substituídas, assim permitindo que a garantia abranja “tutte le merci che di
volta in volta vengono a trovarsi in un magazzino”, ao mesmo tempo que se consente ao empenhante
levantar a quantidade de mercadorias necessárias para a actividade da empresa, substituindo as retiradas
com outras do mesmo tipo e valor (Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 69, assegura que a jurisprudência alemã
admite mesmo “la costituzione della garanzia anche sulle merci future che sostituiranno quelle di volta
in volta prelevate ed utilizzate nell’attività di impresa”). Também Stefano de Paola, ob. cit., pág. 6, alude
559
inclusive, utilizando conjuntamente mais de um destes mecanismos,2098 no que se
poderá considerar como o reconhecimento do efeito de sub-rogação.2099
Paralelamente e do ponto de vista do crédito garantido, assistiu-se a uma
extensão horizontal das garantias, fazendo com que esta passe a assegurar o
cumprimento, não apenas do financiamento em vista do qual foi concedido, mas
também de outros créditos – presentes ou futuros – relativamente ao mesmo
devedor,2100 muito embora este tipo de alargamento suscite algumas dúvidas,2101 em
especial quando associado a uma reserva de propriedade.2102
560
Contudo, este duplo prolongamento da garantia origina diversas
interrogações,2103 nomeadamente no que concerne à relação com os credores
quirografários e à protecção que a regra da par conditio creditorum postula, motivando
intervenções jurisprudenciais no sentido de resolver alguns dos conflitos entre os
diversos credores preferentes.2104
fiduciário retransmitir o bem para o devedor (ou até, nalguns casos, funcionando o pagamento como
condição resolutiva da propriedade fiduciária do credor, readquirindo o devedor automaticamente a
propriedade). Por seu turno, Anna Veneziano, ob. cit., pág. 84 e segs., entende que tais cláusulas colocam
problemas semelhantes aos das cláusulas omnibus, admitindo a praxis germânica, dentro de determinados
limites, que o mesmo bem ou crédito posa garantir um conjunto de créditos, mesmo que futuros
(Erweiterungsklauseln), designadamente e quando exista uma venda com reserva de propriedade,
acordando que a propriedade dos bens vendidos apenas se transfira o adquirente quando todas as dívidas,
presentes ou futuras, deste para com o adquirente (Kontokorrentvorbehalt, cuja validade é reconhecida
pela jurisprudência, mas contestada por alguma doutrina), sendo que a Konzernklausel é objecto de um
juízo desfavorável. Para mais desenvolvimentos acerca das cláusulas omnibus e da extensão da garantia a
outros créditos, vide infra n.º 2.1 do Capítulo II.
2101
Pois tal alargamento consubstancia “la sottoposizione del patrimonio del debitore ad un vincolo
illimitato e non circoscritto nel tempo”, com nítidos riscos, não só para o devedor, como também “a
causa della sua strutturale indeterminatezza, costituisce un pregiudizio per i terzi creditori, in particulare
quelli chirografari, il cui affidamento sulla estensione della garanzia generica viene ad essere cosi
seriamente leso” – Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 83 e segs., muito embora assegure que a jurisprudência
dominante considera válidas tais cláusulas.
2102
De acordo com Rolf Serick, ob. cit., pág. 66 e segs., quando a reserva de propriedade passa a garantir
outro crédito que não o originário, “viene a svolgere il ruolo che normalmente compete alla proprietà in
garanzia, dato che serve alla garanzia reali di crediti, che non si riferiscono immediatamente alla cosa
sottoposta alla garanzia”, de modo que o credor disporá de uma legitimação de tipo pignoratício: em
suma, “la riserva di proprietà presenta un’elasticità del tutto estranea alla normale proprietà piena, che
consente in via eccezionale di riportarsi ad una legittimazione di tipo pignoratizio (…) la riserva di
proprietà ha fin dall’origine la funzione di garantire il diritto al prezzo (…) ma non quella di rafforzare
la situazione proprietaria del venditore: diviene allora evidente come questa funzione renda la riserva di
proprietà una forma di titolarità temporanea del bene, a fine di garanzia, anche se manca il carattere
fiduciario. Dopo l’estinzione del diritto al prezzo e lo spostamento della garanzia su di un altro credito la
funzione di garanzia del diritto rimane: ma dato che il diritto di garanzia ha perso il suo riferimento
originario – il credito al corrispettivo per la merce – esso assume la forma generale di una normale
garanzia del credito”.
2103
Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 286 e 287, alude, sobretudo a respeito da reserva de
propriedade, aos problemas decorrentes do uso de prolongamentos verticais (traduzidos, no essencial, no
conflito entre o beneficiário de uma reserva de propriedade prolongada sobre os créditos decorrentes da
venda dos bens em questão e daquele que tenha financiado o adquirente, que tenha garantido o seu crédito
por uma Globalzession; ou entre dois credores, cada um com uma reserva de propriedade prolongada
sobre os bens resultantes da transformação dos bens vendidos, a Verarbeitungsklauseln), bem como aos
respeitantes aos prolongamentos horizontais (especialmente quando uma garantia seja concedida para
garantir todas as dívidas futuras do devedor - Konzernklauseln - ou do grupo de empresas que ele
controla: em ambos os casos, verificam-se riscos para o devedor – uma vez que a garantia se arrisca a
nunca se extinguir, em razão do número de créditos que, potencialmente, pode assegurar - e para os seus
demais credores, para os quais se torna difícil encontrar créditos do devedor não onerados e até, ademais,
determinar quais os créditos não onerados).
2104
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 288, esclarece que a jurisprudência adopta, como
regra para dirimir os concursos entre credores preferentes sobre os mesmos bens, o princípio da
prioridade (Prioritätsprinzip, consagrado, para o penhor no §1209.º do BGB), embora da sua utilização
possam resultar consequências iníquas, sobretudo quando o credor mais antigo disponha de uma garantia
com uma grande abrangência, por força de um prolongamento vertical: por isso, a jurisprudência tem
sentido necessidade de temperar tal princípio (por exemplo, em caso de concurso entre dois credores
titulares de duas Verarbeitungsklauseln sobre os mesmos bens, tende a considerar a que o bem
transformado será compropriedade de ambos os credores, questionando que “Porquoi en effet favoriser
un créancier, alors que, par l’effet du hasard, la matière qu’il a fourni est celle qui la première est
nécessaire à la fabrication du bien”, não sem alertar para a dificuldade em determinar a percentagem em
que cada um dos credores contribuiu para o produto final e, logo, a quota de cada um na compropriedade
561
Não espanta, por isso, que o sistema alemão de garantias mobiliárias seja alvo de
diversos reparos, mormente no que concerne à sua influência negativa nos
procedimentos de insolvência2105, à ausência de publicidade2106, à dificuldade em
do bem transformado). Relativamente ao conflito entre um credor garantido por uma Globalzession e
outro por uma Vorarbeitungsklausel, abrangendo os mesmos créditos, o Autor (cfr. ob. cit., pág. 290 e
segs.) noticia que o princípio geral da prioridade temporal favorece os bancos, que normalmente
concedem créditos a longo termo e, por isso, a jurisprudência, tem temperado essa prevalência através do
recurso à cláusula geral dos bons costumes (Sittenwidrig) do §138 do BGBG, uma vez que “Une cession
globale de créances qui ne tendrait pas compte des intérêts des fournisseurs serait contraire aux usages
commerciaux. Si le débiteur respectait la cession globale consentie, il ne pourraît plus obtenir la
livrasion de marchandises à crédit”, para além de prejudicar os demais credores do devedor “puisqu’ils
n’ont pas connaissance de la cession globale antérieure intervenue“ e de qualificar a conduta dos
credores que obtêm uma cessão global “commes contraire aux usages commerciaux. En effet, la cession
globale entrave totalement la liberté commerciale du débiteur qui n’a plus la possibilité d’obternir du
crédit. La cession globale est en effet souvent une sûreté dont l’importance est desproportionné par
rapport à celle des créances qui sont garanties“ (por força desta jurisprudência, para que uma cessão
global possa produzir todos os seus efeitos, deverá ser obtido o acordo do fornecedor de bens, facto este
que motivou a alteração das condições gerais predispostas por alguns bancos, de modo a salvaguardar os
eventuais direitos de fornecedores titulares de reservas de propriedade prolongadas sobre créditos também
abarcados pela cessão global de créditos). Por seu turno Anna Veneziano, ob. cit., pág. 101 e segs., aponta
como um dos conflitos mais frequentes aquele que respeita à coexistência de diversos direitos sobre os
mesmos créditos, designadamente o que opõe um credor-vendedor com reserva de propriedade sobre o
bem vendido cuja garantia se estende aos créditos decorrentes da venda desse mesmo bem e, por outro
lado, um financiador titular de uma cessão global de créditos: ora, prescindindo do critério cronológico
(considerando que a sua aplicação redundaria num benefício injustificado do mutuante, uma vez que a
cessão global de créditos tende a ser concedida com contrapartida de financiamentos outorgados para
consentir o início da actividade económica), a jurisprudência alemã concede preferência ao direito do
vendedor, assegurando que a cessão global é contrária à boa fé sempre que “i contraenti no si sono
preocupati di escludere dall’oggetto dell’accordo i crediti che verrano ceduti in futuro ad un venditore
nell’ambito di una riserva della proprietà, quando la loro inclusione costringerebbe il debitore a
commettere un inadempimento contrattuale nei confronti del primo creditore (Vertragsbruchstheorie)”,
facto este que motivou a alteração, em conformidade, das cessões globais de créditos praticadas pelos
bancos germânicos (a Autora considera que esta solução, embora justificada teoricamente com os limites
à autonomia privada, acaba por, na prática, representar o reconhecimento de um credor sobre outro num
ordenamento onde as garantias não são publicitadas, embora reconheça que a idêntica conclusão chega a
jurisprudência francesa, mas com fundamento no instituto da sub-rogação – a qual, privando o cedente,
com efeito retroactivo, da titularidade dos créditos cedidos antecipadamente, pelo que a cessão prévia será
nula).
2105
A este propósito, Gaetano Piepoli, ob. cit., págs. 93 e segs., salienta como o prolongamento
desmesurado das garantias específicas, associada ao uso da reserva de propriedade, conduziu a um
esvaziamento da massa falida disponível para os demais credores, assim subtraindo aos procedimentos
concursais “la parte più importante e significativa del capitale aziendale”. Em face deste fenómeno, o
legislador sentiu necessidade de reforçar determinadas categorias de créditos – em especial a dos
trabalhadores subordinados – contribuindo ainda mais para o depauperamento da massa disponível para
os credores quirografários.
2106
Para os que se procuram realçar as vantagens inerentes a esta publicidade, como sejam a circunstância
de os terceiros poderem aquilatar da amplitude da garantia geral do devedor, a eliminação dos conflitos
entre os titulares de diversas garantias sobre os mesmos bens, uma salvaguarda contra endividamentos
excessivos – com as correspondentes concessões de garantias - por parte dos devedores e de protecção de
todos os seus actuais e potenciais credores (que poderiam, antes da concessão de crédito, averiguar a
situação dos bens a onerar) - salientam estes aspectos, Gaetano Piepoli, ult. ob. e loc. cit., Gabrielli, Pegno
rotativo cit., pág. 12 e Anna Veneziano, ob. cit., pág. 28 (embora reconhecendo que a introdução de um
sistema com estas características comportaria uma redução da extensão das garantias mobiliárias). Já O.
Klopp, ob. cit., pág. 108, destaca como a única protecção de que gozam os credores no direito alemão é o
conhecimento geral da ausência de publicidade das garantias (pois o bem onerado figurará no património
do cedente ou comprador com reserva de propriedade, até ao momento em que o credor decida executar a
garantia), sendo o principal freio a esta natureza secreta a invocação, por parte da jurisprudência, do
abuso ou excesso de garantia (designadamente quando o valor do bem onerado seja significativamente
superior ao do crédito garantido, nalguns casos obrigando mesmo o credor a retransmitir ao seu devedor a
562
resolver os inúmeros conflitos entre credores com garantia sobre os mesmos bens2107 e
aos poderes desmesurados que atribui aos credores titulares de garantias,2108 não
faltando propostas no sentido de um controlo da extensão deste tipo de garantias, seja
através de uma disciplina legislativa própria,2109 seja através de uma revisão da
oponibilidade das garantias em caso de insolvência do devedor.2110
No entanto ou por isso mesmo, não surpreende que os tribunais germânicos, em
especial o tribunal federal alemão (BGH), tenham criado uma profusa jurisprudência no
propriedade do bem onerado quando o montante do crédito supere em mais de 25% o do bem onerado).
Por seu turno Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 282, destaca os riscos para o devedor (de
ver o credor dispor do bem antes do incumprimento da obrigação garantida, sendo esse negócio
perfeitamente válido, assistindo-lhe apenas o direito a uma indemnização) e para os seus credores (os
quais podem continuar a financiar o devedor na crença, errónea, que o devedor continua a ser o
proprietário do bem alienado fiduciariamente, até porque este permanece na sua posse) inerentes à
ausência de publicidade.
2107
Destaca este aspecto Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 40, dando como exemplo o caso de o
mesmo crédito ser objecto de uma garantia bancária constituída directamente sobre esse crédito, outra
inicialmente incidente sobre mercadorias mas prolongada para os créditos decorrentes da respectiva
venda. De acordo com Anna Veneziano, ob. cit., págs. 28 e 101 a 103, a ocorrência destes conflitos é
potenciada, não só pela extensão das garantias a bens e a créditos futuros, mas também pela ausência de
publicidade das mesmas.
2108
Todavia, Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 266 e segs., noticia a preocupação da jurisprudência
em limitar tais poderes, seja protegendo o constituinte da garantia, seja tutelando terceiros. No que à
protecção do devedor diz respeito e não obstante a tendencial impossibilidade de invocação da proibição
dos pactos comissórios (porque, no caso de transferência de propriedade a título de garantia, o credor se
apropria daquilo que já é seu e, na reserva de propriedade, não deixa sequer de ser proprietário), admite-
se que o devedor possa recusar a entrega do bem quando o valor deste supere de forma inequívoca o
montante do crédito não pago, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa ou na noção de
excesso de garantia (deste modo, quando o este excesso de garantia seja programado já no momento da
constituição da garantia, através do recurso ao critério geral da boa fé, a consequência será a invalidade da
parte da transferência em excesso; se, pelo contrário, tal excesso for superveniente, estabelece-se a
obrigação do credor proceder à restituição do bem imediatamente após o termo do fim em vista do qual a
transferência houvesse sido actuada), para além de se impedir o imiscuir do credor na gestão dos bens
objecto da garantia. Relativamente aos terceiros, mormente aos demais credores do empenhante, a sua
protecção deixa bem mais a desejar, uma vez que, por força da abrangência das garantias existentes (e dos
prolongamentos horizontais e verticais que comportam) poucos serão os bens libertos para a satisfação
daqueles, para além do facto de os bens objecto de alienações fiduciárias em garantia ou venda com de
reserva de propriedade nem sequer se encontram juridicamente na esfera jurídica do constituinte da
garantia (e de, em termos fácticos, a sua posse por parte do onerante poder induzir em erro terceiros
acerca da sua titularidade). Também Anna Veneziano, ob. cit., pág. 101 e segs., realça a necessidade,
sentida pela jurisprudência alemão, de impedir um monopólio sobre o património do devedor por parte de
um único financiador conduz a jurisprudência a aplicar neste âmbito princípios gerais como o da boa fé
ou os bons costumes quando considere existir um excesso de garantia ou Übersicherung).
2109
No que respeita ao prolongamento vertical, sugere-se que a extensão da garantia aos produtos finais
ou aos créditos decorrentes da venda desses produtos seja limitada ao valor do bem originário sobre o
qual havia sido constituída a garantia ou até, mais radicalmente, a exclusão deste tipo de prolongamento
(quanto à admissibilidade das cessões globais de créditos, vide Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág.
41, nota 51, relatando mesmo algumas decisões judiciais contraditórias a este respeito). Já no que atine
aos alargamentos horizontais, reclama-se a sua radical abolição (vide Gaetano Piepoli, ob. cit., págs. 102
a 104).
2110
Neste contexto, sugerem-se, entre outras, o reservar de uma quota do património do devedor para a
satisfação dos credores quirografários, considerar radicalmente inválidas todas as garantias constituídas
no período suspeito, o alterar da escala de prioridades entre os diversos credores, de modo a não satisfazer
sistematicamente os titulares de uma garantia prolongada (Gaetano Piepoli, ob. cit., págs. 104 e 105).
Contudo, a alteração da lei falimentar ocorrida em 1994 (entrada em vigor apenas em 1999 devido a
intensos debates que conduziram à apresentação de diversos projectos) não alterou significativamente os
direitos dos credores garantidos (à excepção da proibição da Konzernklausel), sublinhando Anna
Veneziano, ob. cit., pág. 110, que tal circunstância se deveu à forte oposição do sector bancário e de
alguma doutrina às propostas que visavam uma atenuação dos direitos dos credores garantidos).
563
sentido de acautelar os diversos interesses envolvidos, nomeadamente do garantido, do
garante e dos demais credores deste, designadamente restringindo o alcance das
cláusulas de prolongamento vertical e horizontal da garantia.2111
Neste âmbito, assistiu-se à prolação de diversas decisões considerando nulos
(por violação dos bons costumes – cfr. § 138 do BGB) os acordos de garantia em que o
valor económico da garantia exceda apreciavelmente o montante do crédito
garantido,2112 bem como impondo a inserção no contrato de uma cláusula atribuindo ao
2111
O intuito destas decisões é o de “impedire il rafforzamento illimitato del finanziatore e la conseguente
subordinazione a quest’ultimo degli interessi dei creditori più deboli”, procurando estabelecer os “limiti
entro cui riconoscere l’estensione delle garanzie specifiche e la tendenza, ad esse sottostante, alla
Globalisierung”. Com base nestas intenções, tem sido declarada a nulidade, por contrariedade ao §138 do
BGB (que proíbe os negócios contrários à ordem pública em geral e, em particular, aqueles em que
alguém se aproveite da especial vulnerabilidade de outrém), das cláusulas criadoras de garantias que
comprometam imediatamente a situação e os interesses do devedor que as tenha subscrito e, por outro
lado, daquelas que lesem os direitos dos terceiros credores do devedor, criando uma situação de
Kredittäuschung (isto é, uma ilusão fraudulenta de terceiros acerca da solvência do devedor). Gaetano
Piepoli, ob. cit., pág. 88 e segs., dá como exemplo das primeiras aquelas (chamadas “Aussagung”) em que
se restringe “con l’estensione delle garanzie convenzionale in tal modo l’autonomia economico-
patrimoniale e la Bewegunsgsfreiheit [liberdade de acção] del debitore, che l’impresa esercitata da
quest’ultimo (…) inevitabilmente viene spinta all’insolvenza e al fallimento, con danno agli altri
creditori”, assim como aquelas (apelidadas de “stille Geschäftsinhaberschaft”), as quais originam, em
razão da amplitude das garantias, que o empresário devedor continue a aparentar ser o proprietário da
empresa, mas “l’intero profitto dell’impresa va a finire nel patrimonio del finanziatore: questi invece non
ne subisce le perdite, né viene in alcun modo coinvolto nella responsabilità per i debiti dell’impresa
insolvente; ao invés, enquadrar-se-ão na segunda categoria mencionada a Konkursverschleppung
(segundo a qual “per potersi soddisfare indisturbato sulla base delle garanzie ottenute o sul restante
patrimonio, il finanziatore differisce, a svantaggio degli altri creditori, la proposizione di una domanda
di fallimento del debitore, richiesta della situazione: e questo, ad esempio, mediante la contemporanea
concessione di un finanziamento chiaramente insufficiente per il risanamento dell’impresa”), a
Kreditbetrug (com a qual o financiador – isoladamente ou juntamente com o devedor – incita “i terzi alla
concessione di crediti al debitore stesso, cosicché essi vengono fraudolentemente ingannati in merito alla
circostanza che il debitore è divenuto Kreditunwürdig [indigno de crédito] a causa dell’estensione delle
garanzie già concesse”, pois, deste modo, “il finanziatore che a concesso un credito insufficiente per le
esigenze presenti o future dell’impresa, e che ha ottenuto – a fronte di tal credito – delle garanzie
sproporzionate all’ammontare di quest’ultimo (…) mentre i terzi, nello stesso tempo, vengono indotti a
conservargli le linee di credito già concesse o a concederli nuovi finanziamenti”) e a
Gläubigergefährdung (isto é, quando “le garanzie pattuite, in ragione della loro estensione e della loro
non trasparenza – circonstanze con cui deve fare necessariamente i conti il finanziatore – determinano la
nicht fernliegende Gefahr [não transparência dos riscos] che i sucessivi ed ignari creditori subiscano un
pregiudizio, anche nei casi in cui non si dà luogo ad una frode messa in atto nei loro confronti del
finanziatore stesso”), muito embora tal nulidade esteja dependente da prova do dolo eventual do
financiador. Finalmente, Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 288 e segs., alude ao recurso às
normas de defesa do consumidor, mais concretamente a que sanciona a invalidade das cláusulas
contratuais gerais contrárias à boa fé (com base na qual foram anuladas as cláusulas de prolongamento
horizontal de uma garantia – normalmente uma reserva de propriedade - a todo um conjunto de créditos
por um grupo de empresas, porquanto “l’acheteur confère un avantage déraisonnable au créancier, car le
transfert de propriété est para la même subordonné à des conditions le plus souvent difficilement
réalisables”), bem como à invocação do princípio dos bons costumes, consagrado no §138 do BGB, quer
nas relações entre o credor e o devedor (anulando contratos em que se demonstre que uma das partes não
se encontrava verdadeiramente livre de contratar, como sucede quando o devedor onera a quase totalidade
do seu património a favor de um único credor, de modo que, no futuro, possa vir a estar comprometido a
sua própria actividade comercial ou industrial, por falta de financiamento), quer nas relações para com os
demais credores deste último (permitindo-se, com este fundamento, a anulação de garantias de tal forma
prolongadas, em termos verticais, que criem nos terceiros a ilusão de existência de bens no património do
devedor, bens esse que, afinal, se encontravam previamente onerados).
2112
Pois, deste modo, se reduz a capacidade futura de obtenção de crédito por parte do devedor. António
Pedro A. Ferreira, ob. cit., pág. 690, relata mesmo que a orientação jurisprudencial vai ainda mais longe,
considerando que “uma situação de sobregarantia se poderá verificar ab initio numa dada relação
564
devedor o direito de requerer a devolução das garantias consideradas excessivas
(Freigabeklausel),2113 declarando a invalidade das cláusulas que não contenham a
indicação do montante máximo garantido (Deckungsgrenze)2114 e, finalmente,
estabelecendo critérios de proporcionalidade entre o valor dos bens onerados e dos
créditos garantidos.2115
O progressivo declínio do reinado do penhor como única garantia mobiliária e
do desapossamento como condição do seu surgimento é igualmente visível noutras
legislações europeias, como a holandesa (cujo Código Civil de 1992 passou a prever
expressamente um penhor sem desapossamento, para além de vedar as transferências
fiduciárias em garantia - seja relativos a bens ou a créditos) - até então utilizadas na
prática e não proibidas pelo anterior Código)2116 e norueguesa (que inseriu a reserva de
propriedade na disciplina geral de um novo penhor sem desapossamento entretanto
criado).2117
contratual quando, da conclusão do contrato, seja possível concluir com segurança que, mesmo em face
de uma valorização incerta, se verificará uma apreciável desproporção entre o valor realizável da
garantia e o valor efectivamente garantido”).
2113
António Pedro A. Ferreira, ob. cit., págs. 690 e 691, dando mesmo conta de uma decisão do Pleno do
BGH, de 27 de Novembro de 1997, na qual se admite o direito de liberação do devedor, em caso de
garantias excessivas, mesmo na ausência de cláusula nesse sentido ou ainda que esta seja desadequada.
2114
Surgindo esta exigência como destinada a concretizar os termos em que o devedor se poderá liberar
das garantias eventualmente excessivas e, de acordo com a jurisprudência, tal montante deverá ser
expresso numa quantia específica, calculada em função das necessidades de garantia do credor e tendo
como parâmetros essenciais o valor do crédito concedido e uma pequena margem para cobertura de juros
e despesas - António Pedro A. Ferreira, ob. cit., pág. 691.
2115
António Pedro A. Ferreira, ob. cit., pág. 691, relata que o BGH chega mesmo a quantificar essa
relação, estabelecendo que, para a cessão de créditos, o valor do bem onerado poderá ultrapassar em até
50% o montante da obrigação assegurada e, no caso da alienação em garantia, aquele limite é reduzido
para 20%.
2116
Anna Veneziano, ob. cit., pág. 30 e segs., qualifica este penhor sem desapossamento como uma
garantia original, dando conta que para a constituição da mesma é forçosa a redacção de um documento
notarial e a inscrição num registo existente na administração tributária (todavia, a Autora tece duas
críticas a este sistema: por um lado, a garantia criada “rende difficile consentire la mobilizzazione in
garanzia del patrimonio circolante dell’impresa, dato che le formalità da espletare per la costituzione del
pegno richiedono indicazioni precise sul collaterale e sul credito garantito”; por outro, não é claro se a
proibição das transferências em garantia abrange apenas as alienações ou também a leasing ou o sale and
lease back, sendo certo que à interdição escapa a reserva de propriedade). Por outro lado e tendo por base
a interdição das alienações em garantia, a mesma Autora noticia a interdição da reserva de propriedade
poder garantir outros bens créditos para além do preço de aquisição do bem alvo da reserva (pois se a
verdadeira função da reserva de propriedade é a de garantir uma obrigação, deverão as partes recorrer ao
penhor não possessório registado).
2117
Anna Veneziano, ob. cit., págs. 48 e 49, destaca como, deste modo e nesse caso, adoptando uma
perspectiva funcional “Il patto di riservato dominio è ormai del tutto assimilato ad una garanzia ed è
tramutato in un pegno non possessorio in favore del venditore o di altro finanziatore dell’acquisto”.
Outros aspectos do regime desta figura prendem-se com o facto de, para a validade da mesma, ser
suficiente (excepto quando se trate de bens de consumo) uma confirmação unilateral imediatamente após
a entrega e, por outro lado, a circunstância de o acordo dever especificar os bens e o respectivo preço (por
último, esta garantia torna-se ineficaz se, após a entrega, os bens forem transformados de modo a causar
uma modificação não irrelevante da sua natureza; para além disso, não é admitida a revenda dos bens sem
a autorização do vendedor).
565
todos aqueles institutos, ainda que não criados para fins garantísticos, desempenhem
efectivamente esse papel.
Paradigmático, a este propósito, se mostra o ordenamento norte-americano2118
(cfr. art.º 9.º2119 do Uniform Commercial Code)2120 adoptando uma perspectiva
2118
Este modelo foi fonte de inspiração para outros ordenamentos, nomeadamente o do Canadá e do
Québec, não sem que qualquer um destes apresente especificidades face ao plasmado no art.º 9.º do UCC
norte-americano. No que ao regime canadiano diz respeito, as principais originalidades residem no
recurso mais acentuado às novas tecnologias (com a criação de um registo em cada província, aos quais é
possível aceder de qualquer computador, o que faz deste uma referência nas tentativas de unificação
internacional), na facilidade de consulta dos registos (pois, apesar de se admitir a descrição genérica dos
bens onerados no acordo de garantia, exige-se a indicação do número de série para a inscrição no registo
de alguns bens, sob pena de inoponibilidade da garantia a alguns terceiros) e na qualificação como
garantia de todos os leasings de duração superior a um ano. Já quanto à legislação do Québec, esta
apresenta maiores divergências face ao normativo americano (deste modo preservando a identidade
cultural e jurídica desta província), sendo de realçar a criação de uma hipoteca que pode abranger bens
móveis ou imóveis e compreender todos os bens que fazem parte do património do devedor (para a
validade desta garantia, mesmo inter partes, impõe-se a redacção de um documento escrito contendo a
suficiente indicação do bem onerado – no caso das universalidades, deve ser mencionada a natureza das
mesmas - e, como condição de oponibilidade a terceiros, a inscrição num registo). Contudo, Yannick
Pavec, Le gage au Québec, in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11, pág. 112 e segs.,
sublinha que esta legislação distingue entre a hipoteca mobiliária com (para a constituição da qual não se
exige qualquer documento escrito ou qualquer publicidade, bastando o desapossamento do devedor) e
sem desapossamento (sujeito a forma escrita e a registo, podendo afectar unicamente bens de uma
empresa ou de uma pessoa singular que exerça uma actividade comercial), embora contenha aspectos que
são de aplicação a ambas as modalidades (como sejam as medidas a adoptar pelo credor em caso de
incumprimento por parte do devedor – como a assumpção da administração dos bens onerados por parte
do credor, a atribuição em pagamento ou a venda, particular ou judicial - e a possibilidade de constituição
de uma hipoteca aberta, à imagem do floating charge inglês). Todavia, outros países anglo-saxónicos não
aderiram a este modelo, como sucede com a Austrália e a Nova Zelândia - acerca deste assunto, vide
Anna Veneziano, ob. cit., págs. 178 a 196 e 306 a 309.
2119
O primeiro texto oficial, inspirado nas ideias dos seus dois redactores principais (Karl N. Llewellyn e
Soia Mentschikoff, o primeiro dos quais um jurista formado de acordo com os quadros do direito europeu
continental), do UCC foi redigido entre 1945 e 1952 - embora alvo de diversas alterações - e
progressivamente adoptado por todos os Estados norte-americanos, a começar pela Pensilvânia, (Jean-
François Riffard, ob. cit., págs. 127 e 128, acrescentando que os principais desígnios deste diploma foram
a modernizar, uniformizar e tornar coerente o sistema norte-americano, negando ter existido uma
verdadeira ruptura com o direito anterior). Relativamente à versão originária, a reforma deste preceito
operada em 1998 (e entrada em vigor em 2001) trouxe quatro inovações relevantes: a ampliação do
âmbito de aplicação (tendo crescido o número de bens que podem servir de garantia e passando a noção
desta a abranger mais negócios não considerados de garantia em sentido estrito), um alargamento dos
poderes atribuídos ao titular de um floating lien (sobretudo no que respeita ao direito sobre o produto da
venda do bem originariamente onerado) e adaptação às novas tecnologias (considerando, em
conformidade, que uma inscrição não foi correctamente efectuada quando não for detectável de acordo
com os critérios de busca definidos pela própria entidade registadora): em suma, narra Anna Veneziano,
ob. cit., pág. 174 e segs., “molte delle nuove disposizioni hanno lo scopo di aumentare ulteriormente le
già ampie prerogative dei creditori garantiti”, assegurando que a tutela dos credores quirografários –
reclamada por muitos - é obtida através de outras normas, designadamente de natureza falimentar.
2120
Antes da entrada em vigor do Uniform Commercial Code, Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 695,
assegura que o sistema americano impunha o desapossamento e negava a admissibilidade de garantias
flutuantes, enquanto para Anna Veneziano, ob. cit., pág. 129, a disciplina das garantias mobiliárias era
“complessa e piuttosto caotica”, existindo múltiplas divergências entre as legislações dos diversos
Estados. Já Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 296, assegura que o direito americano pré-
UCC se caracterizava por uma grande complexidade, uma vez que “Chaque Etat avait un système
différent et chaque système comprenait plusieurs ordres de sûretés. On pouvait créer des sûretés
mobilières au moyen de plusieurs contrats, quelques uns issus directement du Common Law et d’autres
crées par la loi. Il y avait le gage (pledge), l’hypotèque mobilière (chattel mortgage), l’acte de fiducie
(trust deed), l’emprunt fiduciaire sur outillage (equipment trust), la vente conditionnel (conditional sale),
566
funcional, privilegiando mais o fito almejado pelas partes do que a estrutura ou
designação dos institutos utilizados com fins de garantia, conforme se alcança da noção
de “security interest”,2121 que compreende todos os acordos através dos quais as partes
pretendam criar um direito sobre um bem pessoal em garantia do pagamento de uma
soma de dinheiro ou do cumprimento de outra obrigação (embora com algumas
excepções).2122
Mas mesmo antes da vigência do art.º 9.º do UCC, a figura do “trust receipt” já
tornava possível a constituição, a favor do financiador do importador, de uma garantia
sobre as mercadorias importadas, mas permitindo que elas permanecessem em poder do
importador - por ser este a pessoa mais apta para a sua venda – até ao completo
reembolso das somas mutuadas,2123 embora até ao final do século XIX o penhor fosse
ainda considerada a garantia mobiliária por excelência.2124
l’emprunt sur dépôt fiduciaire (trust receipt), le factoring. L’usage d’une telle multiplicité de formes pour
atteindre un même but provoquait des incohérences et des difficultés administratives”.
2121
Neste sentido, Anna Veneziano, ob. cit., págs. 133 e 169, acrescentando que o art.º 9.º do UCC
enumera, como exemplos de acordos disciplinados por tal norma os tradicionais instrumentos de garantia.
Por seu turno Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 729 e segs., em termos particularmente elucidativos,
afirma que esta noção “abarca todo, devora todo, cubre todo”, destacando as duas premissas essenciais
de que parte esta norma: antes de mais, a eliminação das diferenças formais e a sua substituição por “el
simple concepto de un derecho de garantía sobre bienes muebles, ya sea para uso o ya sea para venta,
debían ser reconocidos como disponibles para una garantía” (relevando as diferenças funcionais apenas
para questões de detalhe) e, por outro lado, uma superação do formalismo (uma vez que “prescinde de las
distinciones formales, y se aplica a todas las transacciones cuya finalidad sea crear un derecho de
garantía sobre bienes muebles y pertenencias”) – vide, ainda, deste último Autor in La unificación cit.,
págs. 78 e 79, concluindo que o sistema americano demonstra “que se puede construir un sistema de
garantías mobiliarias sobre la base de una estructura simple y unitaria, pero para ello no es necessario
tanto prescindir de viejas polémicas como llegar a un consenso sobre cuáles son los criterios relevantes
fundamentales para estabelecer una determinada regulación (…) para ello no es necessaria la abolición
de los mecanismos de garantía existentes (…) pero aunque se usen, se aplicarán las normas de este
artículo”. Já Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 131 e segs., destaca como a noção de security interest
permite integrar num único sistema todas as convenções através das quais as partes garantem com um
bem móvel um determinado crédito, consentindo ainda alcançar um justo equilíbrio entre os interesses do
credor garantido, do devedor, do demais credores deste e dos terceiros adquirentes de boa fé do bem
onerado.
2122
Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 729 e segs., aponta como excepções as garantias legais, sendo os
principais beneficiários a generalidade dos credores beneficiários de análoga garantia nos direitos
europeus continentais, com especial saliência para o fisco - pois a definição do UCC faz referência a
garantia de fonte contratual – as sujeitas a legislação federal, as que incidam sobre material ferroviário, as
transmissões de direitos resultantes de uma apólice de seguro ou de uma sentença ou o direito de
compensação e as garantias constituídas nos termos da equidade (em termos análogos, Jean-François
Riffard, ob. cit., págs. 133 e 134, acrescentando as operações sobre contas de depósito). Já Anna
Veneziano, ob. cit., págs. 133 e 169, exclui do respectivo âmbito de aplicação alguns tipos de bens e
determinadas categorias de garantias, como, por exemplo, as que recaiam sobre bens imóveis ou sobre
navios e aviões.
2123
Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 19 e segs., define o trust receipt como “il documento col quale il
cliente importatore dichiara di recivere dalla banca i documenti che gli attribuiscono il diritto di
disposizione delle merci, riconosce esplicitamente che la proprietà della merce è dalla banca, e precisa
che la consegna viene fatta allo scopo di poter trattare la vendita della merce per conto della banca alla
quale si obbliga di versarei l netto ricavato a copertura totale o parziale del debito assunto”. Em termos
práticos, o importador deverá entregar ao financiador uma “letter of trust” para que, em contrapartida,
este último lhe entregue os documentos que conferem o direito de disposição das mercadorias (seja para a
sua alienação, seja para a sua transformação). O mesmo Autor informa que, na Europa, efeitos análogos
aos do trust receipt eram alcançados através de figuras como o “reçu en comission” (utilizado, sobretudo,
pelos comerciantes de diamantes de Antuérpia, com base no qual o banco, em favor do qual foi
constituído um penhor sobre um conjunto de diamantes em bruto – adquiridos precisamente com
financiamento dessa mesma instituição - entregava estes últimos ao devedor para que este efectuasse a
selecção e os trabalhasse, sendo que a sanção prevista para o comerciante que violasse a confiança nele
567
Os principais efeitos jurídicos decorrentes do trust receipt são o direito do credor
exigir do devedor a devolução dos documentos representativos ou das próprias
mercadorias (caso estas ainda não tenham sido vendidas) e, no caso de estas terem
entretanto sido vendidas, o direito de as reivindicar dos terceiros que tivessem
conhecimento do trust (bem como de exigir o pagamento das mercadorias, mesmo que
o terceiro já tivesse pago ao devedor).2125
Retornando ao regime ditado pelo art.º 9.º do UCC, deste ressalta a ausência de
uma definição legal de garantias mobiliárias, nem tão pouco de contrato de garantia, a
chave para o enquadramento de uma determinada fattispecie no seu âmbito de aplicação
decorre de uma resposta afirmativa à seguinte questão: “A finalidade desse contrato é
de garantia?”2126
Todavia, este critério elástico origina dúvidas relativamente a institutos que
podem perseguir uma finalidade de garantia, mas nem sempre assumem tal função,2127
depositada pela banca seria a expulsão da associação respectiva e a proibição de exercer a actividade de
comércio de diamantes) e, principalmente, do “field warehouse” ou “magasin de campagne”, figura
através da qual se alcança a custódia por conta de terceiros no domicílio do devedor (com efeito,
“Imprese spcializzate impiantano il field warehouse negli stessi locali o magazzini dell’impresa alla
quale è concesso il finanziamento, prendendo in consegna e assicurando le merci oggetto della garanzia.
Il titolare del field warehouse (…) è autorizzato a emettere warrants che consentono di rendere bancabile
e di mobilizzare lo stock di materie prime, prodotti semi-finiti o finiti di un’impresa, senza togliere a
quest’ultima la disponibilità dello stock medesimo”. Nesta conformidade, os bancos poderiam conceder
créditos garantidos por estes warrants - por confiar na idoneidade e solidez financeiras das sociedades
que exercem a actividade de field warehouse – os quais lhe permitem exigir, em caso de incumprimento
do devedor, a entrega dos bens onerados. Por outro lado, a publicidade da garantia assegurava-se através
da colocação de painéis nos locais onde as mercadorias se encontravam).
2124
Quanto a este último aspecto vide Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 108 e 109, nota 144, assinala
mesmo que, até essa data, o penhor era mesmo o único tipo de garantia mobiliária (em obediência ao
princípio segundo o qual as garantias sem desapossamento do devedor devam considerar-se fraudulentas
para com os outros credores e, por isso, ineficazes face a eles). Porém, o desenvolvimento económico do
início do século XX tornou necessário o recurso ao crédito, fazendo emergir “l’esigenza di nuove forme di
garanzia mobiliare che, non prevedendo lo spossessamento del debitore, risultassero idonee alla natura
dei beni utilizzati dall’imprenditore” e o consequente nascimento de garantias mobiliárias cujo objecto
permanecia na disponibilidade do devedor e de outras recaindo sobre créditos decorrentes da venda dos
objectos produzidos e alienados pelo devedor.
2125
Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 23 e segs., acrescentando que, em caso de boa fé do terceiro
adquirente das mercadorias (traduzida na aquisição na convicção da propriedade do devedor e com
desconhecimento da “letter of trust”), contra ele nenhum direito poderá exercer o credor. Posteriormente,
o legislador americano sentiu necessidade de intervir, subordinando a eficácia erga omnes do trust receipt
à transcrição (filing) do contrato (ou melhor, o direito de preferência do credor existe, independentemente
de qualquer registo, nos 30 dias posteriores à celebração do contrato, mas decorrido esse prazo, só através
do registo – contendo a identificação e residência das partes, a descrição dos documentos ou coisas
objecto da garantia, sendo o registo válido por um ano, renovável - se garantiria a oponibilidade do direito
do credor).
2126
Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 745 e segs., evidencia como, desta forma, o elemento causal
assume papel fulcral e, por outro lado, esclarece que a enumeração legal dos negócios com fins de
garantia é meramente exemplificativa (para além disso, o Autor destaca como esta noção permite mesmo
abarcar no seu âmago futuras figuras que venham a resultar da autonomia privada no futuro).
2127
Anna Veneziano, ob. cit., pág. 133, aponta como exemplo o lease (em razão da dificuldade em definir
critérios de distinção entre o lease com funções de garantia e outras formas de lease), o consignement
(acordo através do qual uma parte transfere um bem à outra, a fim de esta o vender por conta do primeiro
e lhe restitua o produto da venda ou o bem não vendido: também neste caso, nem sempre este acordo é
celebrado tendo em vista garantir o pagamento do preço de determinado bem) e o assignment of accounts
(ou cessão de créditos não documentados relativos ao pagamento de bens alienados, embora a
generalidade dos Autores propenda a incluir esta figura na noção de “security interest”). Relativamente ao
lease, Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 125 e segs., conclui que quando for usado para fins de
garantia – ou constituir uma forma de retenção da propriedade para tutelar o crédito do concedente sobre
as rendas devidas – deve estar sujeito ao regime do art.º 9.º do UCC.
568
sendo certo embora que a garantia apenas produzirá efeitos se o credor houvesse
fornecido uma qualquer prestação (value) – através de um empréstimo, mediante a
venda a crédito de um bem - e caso o devedor (rectius, o concedente da garantia)
disponha de direitos sobre o bem onerado que consentissem tal oneração.2128
Este sistema assenta, assim, numa concepção de política legislativa2129 e de
técnica jurídica2130 radicalmente diversa da que vigora no espectro europeu, com a
eventual excepção do modelo alemão.
Igualmente lato é o critério utilizado quanto ao leque de bens a onerar, podendo
abarcar bens corpóreos ou incorpóreos, destarte permitindo a oneração de quaisquer
móveis,2131 mostrando-se, assim, apetrechado para permitir a dação em penhor de bens
produtivos,2132 mesmo ainda não existentes no património do empenhante, consentindo
ainda a extensão do vínculo aos proveitos (proceeds) resultantes da alienação dos bens
onerados (collateral).2133
2128
Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 297 e 298, salientando, embora, a possibilidade de
atenuação destas regras por vontade das partes, ora prevendo que a garantia terá como objecto bens
futuros que venham a ser adquiridos pelo constituinte (v.g., créditos futuros), ora estipulando que a
garantia é constituída para assegurar o reembolso de uma quantia que o credor aceita conceder ao devedor
no futuro (créditos futuros).
2129
Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 731 e segs., salienta como o sistema americano “implica una
política jurídica que reconoce en el libre juego de las leyes de mercado la razón de ser de la ruptura de
la par condicio creditorum, en aras de una mayor eficiencia economica. Dentro de esta política juridica
es evidente que el ordenamiento ha de possibilitar la constitución de garantías sobre todo tipo de activos
del deudor, en cualquier fase del processo de producción y circulación de bienes”, por contraponto com o
modelo europeu, no qual as brechas na igualdade entre os credores decorrem, ou da criação de privilégios
creditórios, ou da consagração de garantias mobiliárias limitadas a certos bens e a determinados contratos
(facto este que leva o Autor a qualificar este modelo como “claro expoente de una economia dirigida y de
intervención estatal en el mercado crediticio”).
2130
Quanto a este aspecto, Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 735 e segs., destaca como o art.º 9.ºdo
UCC, ao criar uma figura totalmente nova e não recondutível a nenhuma anterior, procedeu a uma
“destipificación de los derechos de garantía mobiliaria, absorbiendo todos los tipos existentes en la
creación de un único y omnicomprensivo contrato y derecho de garantía sobre bienes muebles” (por
outro lado e em razão da natureza dinâmica do tráfico mobiliário, o conteúdo desta garantia não obedece
a alguns princípios consagrados nos ordenamentos europeus, conforme de alcança das limitações ao
direito de sequela e à possibilidade legal de sub-rogação real do objecto onerado, nomeadamente no que
concerne aos produtos que passem por um processo de fabricação – em que a garantia se projecta para o
objecto resultante dessa transformação - ou que sejam vendidos, caso em que a garantia pode incidir sobre
o produto dessa alienação ou sobre o crédito resultante de uma eventual venda futura).
2131
Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 298 e 299, destaca, entre os bens corpóreos, os bens
de consumo, as colheitas, os stocks e os equipamentos industriais ou comerciais e, entre os incorpóreos,
os semi-incorpóreos, representados por um título que os torna cedíveis (warrants, cheques, títulos à
ordem ou ao portador, certificados de depósito, acções ou outras participações sociais e obrigações) e os
puramente incorpóreos, não incorporados em qualquer título (tais como créditos, direitos de propriedade
intelectual ou industrial e direitos de clientela). Mais ainda, de acordo com o regime legal, bastará um
único acto de constituição para onerar, simultaneamente e em garantia de um mesmo crédito, diversos
bens (corpóreos e/ou incorpóreos, presentes e/ou futuros), sem que seja necessário qualquer acto de
renovação garantia, tendo em conta o efeito sub-rogatório que opera ope legis.
2132
Todavia, de acordo com Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 126 e 127, a maior parte das disposições
do UCC podem ser aplicadas a não comerciantes, nomeadamente no que concerne aos casos em que um
particular preste uma garantia a outro.
2133
Assim, Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., págs. 157 a 159, acrescentando que tal solução
nem sequer põe em causa os interesses de terceiros, uma vez que o sistema assegura a publicidade do
vínculo - notice filing – permitindo ao empenhante continuar a utilizar os bens onerados na sua
actividade. Também Rojo Ajuria, La unificación cit., pág. 80, destaca como este prolongamento se
verificará, salvo pacto em contrário, relativamente aos proceeds, entendidos estes como “lo que se recibe
por venta, permuta, cobro u otra disposición del objeto de la garantía o los proceeds”, acrescentado
ainda que, em regra, a inscrição inicial da garantia cobre automaticamente os proceeds, sem necessidade
de qualquer formalidade adicional para que este prolongamento se verifique.
569
Quanto à sua constituição, exige-se a redacção de um documento escrito que
constitui o acordo de garantia (security agreement, cujo conteúdo não terá que ser
exaustivo)2134 e um outro destinado à posterior inscrição no registo (financing
statement,2135 o qual, uma vez inscrito,2136 produz o chamado notice filing2137).
2134
Segundo Anna Veneziano, ob. cit., pág. 146 e segs., para a validade da garantia entre as partes bastará
um documento escrito contendo uma suficiente descrição do objecto da garantia, mesmo que apenas
assinado pelo devedor (em termos coincidentes, Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 775 e segs.,
afirmando que “La firma no precisa de ninguna formalidad. La descripción no necessita ser especifica o
detallada (por tipos, modelos, números de serie, etc.), sino que usualmente sólo son necessarias
descripciones amplias, con tal que identifiquem razonablemente lo que desrciben (todas las mercancías,
todos los bienes de equipo…)”). Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 153 e 154,
definem este documento como aquele do qual se depreende a intenção de criar uma garantia sobre bens
móveis, mas ressalvando que a criação desta remonta ao momento em que as partes acordam nessa
constituição (“attachment”, momento a partir do qual a garantia produz efeitos inter partes), enquanto
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 297, esclarece que o grau de determinação do objecto da
garantia não é absoluto, porquanto se admite que “le security agreement peut décrire le bien par une
expression aussi générale que “tout le stock” (all my inventory) ou toutes les créances et le matérial”.
2135
Segundo Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 155, consiste num “documento
esquelético”, contendo informação sumária atestando ter sido constituída uma garantia sobre
determinados bens, indicando aos consultantes do registo onde procurar informação adicional. Segundo
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 300, este documento deverá ser assinado pelas partes e
conter a morada na qual o titular do security interest poderá ser contactado por terceiros interessados em
obter informações adicionais acerca do objecto da garantia, a morada do devedor, uma identificação geral
dos bens onerados (sem que este requisito seja entendido em termos demasiado restritivos, bastando, para
a sua observância, uma descrição genérica do bem e, no caso de financiamentos de empresas, sendo
apenas necessária a referência a bens ou créditos presentes e/ou futuros, apontando o Autor como critério
seguido aquele que considera como suficiente “toute description permettant à l’homme raisonnable de
déterminer l’étendue de la sûreté. Une description comme “tout ce que contient le magasin à une certaine
adresse spécifiée” suffit”.
2136
Refira-se que o registo apenas não produzirá efeitos em caso de ser “seriously misleading”, ou seja,
em casos limitados, porquanto sempre que o credor registe mal o seu nome ou o interessado tenha
efectuado uma procura por um nome errado, a maior parte desses pequenos erros pode ser solucionada
pelos mecanismos informáticos, não comprometendo a validade da inscrição (Carlos de Cores e Enrico
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 172; em termos semelhantes, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 139,
embora sublinhando que a jurisprudência inclui na categoria dos erros passíveis de defraudar terceiros os
de ortografia na redacção do nome do devedor, uma vez que este é o elemento chave para as buscas a
efectuar por terceiros. O depósito do financig statement pode ser efectuado, à escolha das partes, no local
onde se encontram os bens onerados ou num registo central, apresentando aquele a vantagem de ser a
nível local que são dirigidos os pedidos acerca da solvabilidade das empresas, enquanto o registo central
parece preferível para as grandes empresas, que possuem diversos estabelecimentos e/ou sucursais -
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 301).
2137
De acordo com Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 792 e segs., esta expressão pode ser traduzida
para “inscrição concisa”, uma vez que do registo apenas constam a assinatura do devedor, o nome e o
domicílio das partes no contrato e uma descrição sumária dos objectos onerados (desde que torne possível
a identificação das coisas descritas, mesmo que contendo erros menores), não sendo necessária a
indicação do montante da dívida, dos juros e do vencimento da obrigação: para obter estas e outras
informações adicionais, o credor deverá proceder a uma indagação suplementar de acordo com um
procedimento legalmente regulado. Esta forma de registo apresenta a vantagem de consentir a dação em
garantia de bens futuros ou de bens presentes em garantia de obrigações futuras (para além dos casos de
alteração contínua do objecto empenhado, em que se dispensam constantes alterações do registo), embora
tenha o inconveniente de não fornecer informação acerca do estado real do negócio, isto é, se no
momento da consulta do registo a dívida se encontra ou não, total ou parcialmente, liquidada (ou seja, “la
inscripción concisa requerida por la ley nunca puede ser más que un punto de partida para
investigaciones ulteriores”). Segundo Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 137, assume especial relevância
a indicação do domicílio do credor, pois será esta informação que permitirá aos terceiros obter
informações adicionais acerca, por exemplo, do montante exacto do crédito assegurado, embora a lei não
imponha ao credor qualquer dever de resposta a tal solicitação.
570
O registo, de acesso público2138 e organizado pelo nome do devedor,2139 funciona
como condição de oponibilidade da garantia, quer face a terceiros adquirentes,2140 quer
relativamente aos demais credores do empenhante2141 (concedendo prioridade face aos
direitos posteriormente inscritos sobre o mesmo bem, excepto no que respeita às
garantias em contrapartida do financiamento para aquisição de um determinado bem2142
e a alguns privilégios creditórios).2143
2138
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 301, destaca que, dessa abertura, decorre a
consequência de “Tout créancier peut les consulter, pour déterminer si un état de financement a été
déposé au nom du débiteur”, pelo que o conservador deverá, a pedido dos interessados (o qual pode ser
formulado por telefone), emitir certidões informando se, na data do pedido, existem ou não garantias
inscritas (para além de se permitir a consulta directa dos registos por parte dos interessados).
2139
Assim permitindo o registo mesmo de bens não identificáveis em concreto, de uma massa de bens em
constante mutação que permanecem em poder do devedor ou de que este continue a fazer uso do seu
valor económico. Deste modo, dispensa-se a necessidade de indicar as condições de financiamento e a
descrição analítica do quid onerado (factos estes que as partes poderão não pretender tornar públicos),
pelo que o registo não se destina a fornecer a terceiros um quadro preciso do conteúdo de garantia,
limitando-se antes alertá-los para a existência de um vínculo prévio sobre os bens onerados, isto é, a
finalidade do registo é “non tanto quella di dare pubblicità alla garanzia in favore dei terzi, quanto
piuttosto quella di stabilire con certezza l’ordine di preferenza dei titolari di diritti sui beni del debitore”
(Anna Veneziano, ob. cit., págs. 149 e 150), podendo os terceiros, caso pretendam informações
adicionais, dirigir-se ao titular do security interest, cujo domicilio terá que constar obrigatoriamente da
inscrição da garantia no registo. Por outro lado, a inscrição pode ocorrer antes mesmo da conclusão do
acordo de constituição da garantia, caso em que o direito de preferência do credor retroage à data do
averbamento no registo (Anna Veneziano, ob. cit., págs. 160 e 161, Rojo Ajuria, Las garantias cit., págs.
796 a 798 e Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 301), do mesmo modo que a obrigação
assegurada pode já ter sido cumprida sem que o financing statement tenha sido anulado (por isso,
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 300, conclui que “Le fait qu’un état de financement a été
déposé ne signifie pas nécessairement qu’il existe une sûreté en faveur du créancier qui est désigné”).
2140
No que concerne aos terceiros adquirentes, a garantia registada (e, mesmo que não registada, só não
prevalecerá se o adquirente obtiver a posse do bem a título oneroso e desconhecendo a existência da
garantia) é-lhes plenamente oponível, excepto se existia uma autorização para a venda do bem (caso em
que o terceiro adquire o bem livre do ónus) ou se o comprador adquirir determinados bens no curso
ordinário da actividade - é o que sucede, segundo Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 780 e segs., com os
produtos agrícolas – (sendo que, segundo Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 303, para
beneficiar desta regra o terceiro adquirente terá que estar de boa fé, deverá adquirir os bens a um
comerciante que venda esse tipo de bens habitualmente, nas condições normais do comércio – isto é, não
judicialmente ou a grosso – e sem conhecimento da existência de uma eventual cláusula de
inalienabilidade acordada entre as partes no momento da constituição da garantia), ou se trate de bens de
consumo (surgindo como contrapartida da circunstância das garantias sobre estes bens serem
automaticamente perfeccionadas e, por isso, o comprador de tais bens não ter como descobrir a sua
existência – cfr. Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 145 - permitindo-se, deste modo, que o adquirente
deste tipo de bens possa revendê-los a outro consumidor livre de qualquer ónus, na condição de este novo
adquirente fazer do bem um uso estritamente pessoal e desde que desconhecesse a existência do security
interest – Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 303). De qualquer modo e quanto ao prazo de
duração da inscrição, este é de 5 anos a contar do depósito do financing statement, podendo ser renovado
(Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 301).
2141
A regra é a da preferência do credor com garantia registada sobre todas as registadas sucessivamente
(first to file rule, nos termos da qual o credor que primeiro inscreva a sua garantia prevalecerá mesmo em
relação a uma garantia anteriormente constituída mas não registada, mesmo que aquele tivesse
conhecimento desta), embora com algumas excepções, a que se fará alusão no texto.
2142
Nos termos da purchase money security interest rule, a garantia concedida em contrapartida de um
financiamento para a aquisição de bens –– desde que o credor desta a registe nos 10 dias a contar da data
em que entra em poder dos ditos bens e, ainda, que se demonstre a existência de uma conexão entre o
financiamento e a aquisição do bem – prevalece mesmo sobre outras garantias anteriormente registadas,
sendo esta prevalência justificada por Anna Veneziano, ob. cit., pág. 160, com “la necessità di limitare
l’eccessivo potere del titolare di un floating lien” , por Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 142 e segs.,
pois “migliora la posizione del debitore mentre non incide sfavorevolmente su quella dei creditori
precedenti. Infatti il patrimonio netto del debitore rimane invariato se ad esso si aggiunge il valore del
571
Apesar de, conforme ficou dito anteriormente, a lei não ser particularmente
exigente nas menções que devem constar do financing statement e do security
agreement, mostra-se mais exigente relativamente a este último, precisamente porque
ele não será alvo de inscrição no registo, assim compatibilizando o eventual interesse
das partes em preservar o sigilo relativamente a alguns aspectos da relação negocial e os
interesses de terceiros que impõem a publicitação da garantia.2144
Este sistema de perfeição, através do registo, é potencialmente aplicável à
generalidade dos bens,2145 embora não constitua o único mecanismo consagrado para o
bene acquistato e vi si sottrae l’ammontare del prezzo” ou seja, “gli altri creditori in tanto trovano tale
bene nel patrimonio del loro debitore in quanto qualcuno lo ha finanziato, e perciò è corretto che il
finanziatore possa soddisfarsi per primo” e por Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 304
(salientando a prevalência automática, quando se trate de um bem de consumo, justificando a preferência
do vendedor ou financiador da aquisição de bens pelo facto do “lien qui unit le prix à l’objet: el est
équitable d’accorder à celui qui fournit un bienle droit de s’assurer que ce dernier ne va pas
incessamment devenir l’appât des autres créanciers”). Todavia, este tratamento de favor é reservado ao
vendedor directo do bem objecto da garantia – pela parte do preço não paga – e a quem tenha financiado a
aquisição – desde que o financiamento tenha sido efectivamente usado para a compra -, com exclusão das
garantias concedidas para a cobertura de débitos pré-existentes (Albina Candian, Le garanzie cit., págs.
140 e 141, acrescentando que, nesta segunda hipótese, se levantam dúvidas quando o financiamento do
terceiro exceda o preço de aquisição do bem e, ainda, sempre que a garantia seja destinada a cobrir um
valor superior ao crédito). Esta regra consagra, não apenas uma excepção ao critério temporal da
prioridade das diversas garantias (embora, quando se trate de bens instrumentais, essa prioridade esteja
condicionada ao registo e à notificação dos demais credores com garantias registadas), mas também à
própria necessidade de registo das mesmas (mas apenas quando se trate da venda de bens de consumo) –
no mesmo sentido, quanto a este último aspecto, Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs.
172 e 173. Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 142 e 143, destaca como o surgimento desta regra surge
como contraponto necessário da admissão das after-adquired property clauses e como forma de evitar
que o devedor perca toda a capacidade de financiamento. Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág.
302, realça como justifica esta desnecessidade de registo da garantia alegando que “le volume du type de
créance est si grand, qu’une exigence d’enregistrement imposerait une charge extrêmement lourde aux
créanciers”, assegurando, por outro lado, que o risco de prejuízo para terceiros, em razão do carácter
oculto da garantia, é diminuto, uma vez que “ceux qui ont pour métier d’accorder des crédits savent que
les biens de consommation sont souvent l’objet d’un security interest”.
2143
Da norma que dispõe a prioridade dos privilégios sobre as garantias imperfeitas no momento da
constituição daqueles, Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 143 e 144, retira o princípio inverso para o
caso de as garantias concorrentes com os privilégios se encontrarem perfeccionadas. Com efeito, este
Autor (in La unificación cit., pág. 68 e segs.), entende que a regra deverá ser a anteposição das garantias
mobiliárias (como fruto da vontade das partes e com origem num contrato de garantia) sobre os
privilégios, de origem puramente legal (é esta a solução consagrada no Federal Tax Lien, a respeito do
concurso entre as garantias reais e os privilégios fiscais), embora reconheça, tendo em conta a natureza
ordinária da lei que regula as garantias reais, a possibilidade de legislação posterior vir a alargar
desmesuradamente os privilégios e mesmo a fazê-los prevalecer sistematicamente sobre aquelas
garantias, facto este que, nalguns países, terá conduzido ao uso da propriedade com fins de garantia (neste
contexto, o Autor conclui que “el desarrollo y la generalización de la garantía mobiliaria sólo puede
darse en un marco legal en que ésta no se vea asfixiada por el sistema de privilegios legales (…). En
caso contrario, la racionalización del desarrollo de las garantías mobiliarias parece abocada al fracaso,
y es previsible la búsqueda por los asesores jurídicos de “nuevas figuras” de garantía que traten de
eludir la voracidad de los privilegios legales”). Analogamente, Legeais, Les garanties conventionelles
cit., págs. 305 e 306, informa que os titulares de um security interest perfeito prevalece sobre os
privilégios cuja fonte tenha surgido posteriormente àquela perfeição.
2144
Aludem a este aspecto Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 162 e segs., dando que,
para o financing statement, admite-se mesmo “an indication that the financing statement covers all assets
or all personal property”, uma vez que não se pretende uma descrição exacta do quid onerado, mas antes
a demonstração da provável existência do direito real de garantia, criando nos terceiros uma dúvida
razoável a esse respeito.
2145
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 300, excepciona apenas os títulos de crédito e outros
documentos cuja entrega seja indispensável à constituição da garantia.
572
surgimento da garantia, prevendo-se igualmente o desapossamento do bem2146 e até
casos de perfeição automática.2147
2146
Como bem nota Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 777 e segs., o art.º 9.º do UCC prevê diversas
alternativas, além do registo, para tornar a garantia oponível a terceiros, sendo uma delas a posse (embora
esta seja inidónea para os créditos e bens imateriais - excepto, nestes último caso, quando existe um
registo específico, como sucede com os bens de propriedade intelectual -, bem como para os títulos
materiais e o dinheiro (em termos concordantes, Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág.
170 e segs., depois de reforçarem que o desapossamento se afigura inadequado para bens insusceptíveis
de tacto, vista e movimento - bem como para os créditos, excepto se incorporados em títulos -, realçando,
ainda, como tal desapossamento terá que ser efectivo e não meramente ficto ou através da nomeação de
um representante). Segundo Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 27, 28 e 51 e segs., a necessidade de
desapossamento do devedor empenhante encontrava-se enraizada no direito americano desde os célebres
arestos “Pierce vs Twyne” e “Clow vs Woods”, ambos do início do Século XVII e só a partir de 1824
surgiram as primeiras formas tímidas de garantias mobiliárias sem desapossamento, mais concretamente
em razão da criação da figura do “chattel mortgage” (que o Autor equipara a uma hipoteca mobiliária,
embora reconheça que, nalguns Estados, esta figura comportava a transferência da propriedade dos bens
onerados e, assim, aproximar-se-ia mais de uma alienação em garantia), garantia esta sujeita a inscrição
num registo organizado com o intuito principal de proteger os terceiros e, posteriormente e em razão de
algumas debilidades dessa garantia (nomeadamente quando recaía sobre stocks de mercadorias, caso em
que enfrentava a oposição da jurisprudência dominante, em razão dos problemas que suscitava, uma vez
que as partes geralmente convencionavam que a garantia poderia incidir também sobre mercadorias
futuras, bem como a possibilidade de o devedor poder continuar a dispor dos bens onerados), de institutos
como o “factor’s lien” (garantia inicialmente acantonada ao sector têxtil, mas posteriormente alargada a
outros domínios, cujo funcionamento assentava no hábito dos industriais atribuírem aos “factors” –
agentes – uma comissão pela venda dos bens, equivalente a uma percentagem do preço destes e, quando
tais agentes não estivessem na posse dos bens, esta figura permitia-lhes continuarem a ser titulares de uma
garantia sobre os stocks de bens do produtor, pelo que “la garantie devient une sorte d’hypothèque
mobilière”: posteriormente, esta garantia passou a recair também sobre os créditos de que fosse titular o
produtor, nomeadamente através do recurso à figura da cessão de créditos) ou outras garantias específicas
para determinados bens (como as vendas sobre consignação para o sector agrícola, o “trust receipt” para
os bens importados ou a venda com reserva de propriedade: todas estas figuras possuem um traço comum,
a utilização do direito de propriedade com fins de garantia, seja através da sua retenção, seja mediante a
sua transferência em garantia): com o advento do UCC, o desapossamento assume um papel secundário
enquanto mecanismo de oponibilidade da garantia, estando particularmente indicado para situações em
que se afigura como a única alternativa viável em razão da impossibilidade de publicidade escrita, como
sucede com a moeda fiduciária e os títulos negociáveis, como as acções e as obrigações (segundo
Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 299 e 300, esta modalidade de perfeição da garantia é
restrita, em função do objecto, às hipóteses em que o objecto seja constituído por bens corpóreos ou
títulos de crédito, sendo inaplicável quando a garantia incida sobre bens incorpóreos, tais como créditos
não incorporados em nenhum título).
2147
De acordo com Jean-François Riffard, ob. cit., págs. 140 e 141, o principal exemplo é a purchase
money security interest in consumer goods (a que se fará referência mais detalhada no texto), mas existem
ainda casos em que ao credor é concedido um prazo para perfeccionar a sua garantia, sendo que, durante
esse período, a garantia se considera já oponível (é o que sucede com as garantias que incidam sobre
títulos negociáveis ou documentos comerciais ou sobre produtos resultantes dos bens onerados: neste
último caso, sempre que o devedor disponha destes bens sem o consentimento do credor, a lei considera
que a garantia se transfere para o produto da venda, sendo oponível aos terceiros durante um período de
10 dias durante o qual o credor pode perfeccionar a sua garantia sobre aquele produto). Para além dos
casos de perfeição automática da garantia, há ainda mecanismos específicos de constituição de garantias
sobre depósitos em contas bancárias (caso em que o simples depósito do dinheiro confere à instituição
depositária uma garantia sobre as quantias depositadas – o que se assemelha à perfeição automática -,
excepto se o beneficiário da garantia for um terceiro, pois nessa eventualidade terá que haver um acordo
trilateral, nos termos do qual o depositário cumprirá as ordens emanadas do terceiro beneficiário da
garantia, sem ter em conta a vontade do cliente depositante) e sobre valores mobiliários geridos por
outrem (considerando-se constituída a garantia se, em alternativa: o credor se tornar titular da conta; o
intermediário aceitar cumprir as instruções do terceiro sem o acordo do titular da conta; ou o
intermediário alienar participações) – cfr. Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 173 a
176, que evidenciam como esta forma de perfeição, aplicável aos saldos de contas bancárias e aos valores
mobiliários alvo de gestão, se designa “control”e prevalece mesmo sobre garantias anteriormente
573
Relativamente à respectiva execução, nota-se uma preocupação em equiparar as
diversas figuras que integram a noção legal de security interest (independentemente de
implicarem ou não uma transferência da propriedade do bem onerado para o credor),2148
admitindo-se que o credor se possa satisfazer directamente sobre o bem onerado, sem
necessidade de um procedimento judicial, em particular quando se trate de garantias de
natureza possessória.2149
Por outro lado, encontra acolhimento a figura do “floating lien”, que consente
igualmente tutelar o financiador sem privar o constituinte do uso dos bens onerados na
sua actividade profissional, podendo incidir sobre o capital fixo e/ou o capital
circulante, podendo abarcar todas ou apenas alguns dessas categorias de bens e mesmo
bens futuros (e sem necessidade de uma descrição exaustiva dos mesmos),2150 deste
modo permitindo que um único credor possa receber em garantia praticamente a
totalidade do património do devedor.2151
registadas sobre os mesmos bens, assim dispensando tais credores da verificação da existência de ónus
sobre os bens em questão.
2148
Coloca em evidência este aspecto Anna Veneziano, ob. cit., pág. 133 e segs., constatando que, em
sede de execução, todos os credores dispõem apenas de um direito de preferência – ainda que se trate de
um vendedor com reserva de propriedade – encontrando-se todas elas sujeitas a idêntico tratamento em
sede falimentar.
2149
Não obstante, segundo Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 151 e segs., na prática generalizou-se o
recurso à venda (seja por ser mais fácil determinar um preço de mercado, seja porque um eventual
excesso será devolvido ao devedor), a qual pode ser levada a cabo pelo credor, impondo a lei a
obrigatoriedade de a mesma ser efectuada a um preço comercialmente sensato (isto é, o UCC “proceda
nel modo più rapido e meno formale possibile, ma, poi, la sua azione venga assoggettata, a richiesta del
debitore, ad uno scrutinio di legittimità da parte delle corti (…) la filosofia del codice può riassumersi
nel lasciare che il creditore agisca, ma agisca a proprio rischio”), alargando-se esta imposição a outras
condições da venda (como o método seguido, a lugar o tempo e demais condições e a congruência entre o
valor obtido e o valor real do bem), para além de a lei determinar que o credor deverá informar o devedor
acerca do desenrolar da alienação e de não poder adquirir o bem onerado, salvo se a venda for pública ou
se trate de um bem com um preço de mercado fixado (cfr. Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 149). No
caso das garantias não possessórias, a detenção do devedor não é considerada como uma situação
merecedora de tutela jurídica, sendo desconsiderada a vontade deste em manter a posse do bem, não
constituindo, desse modo, um obstáculo à execução (enquanto para as garantias que incidam sobre
créditos, bastará ao credor notificar o devedor cedido para que este pague directamente ao credor
pignoratício, devendo este restituir ao seu devedor um eventual excesso – cfr. Jean-François Riffard, ob.
cit., pág. 149). Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 179 e segs., notam que, perante o
incumprimento do devedor, ao credor assiste o direito de reaver o bem (caso este tenha permanecido em
poder do devedor) de dele dispor (nomeadamente através da sua venda) e de aceitar do bem onerado em
pagamento (devendo, para o efeito, intimar previamente o devedor e, em caso de silêncio deste,
considera-se consumada a aquisição da propriedade por parte do credor). No que tange ao penhor de
créditos, Legeais, Les garanties conventionelles cit., págs. 306 e 307, reconhece que ao credor
pignoratício assiste o direito de cobrar directamente do devedor do crédito empenhado a prestação devida
(com o dever de devolver ao seu devedor a parcela eventualmente excedente).
2150
Segundo Anna Veneziano, ob. cit., págs. 159 e 160, a jurisprudência prevalecente considera como
suficiente uma simples menção de uma concreta categoria geral (v.g., todo o equipamento, todos os
créditos).
2151
Sobre esta figura, vide Piscitello, Le garanzie cit., pág. 21 e segs.. Segundo Rojo Ajuria, Las garantias
cit., pág. 787 e segs., este tipo de garantia consente a oneração de bens futuros (através da after-acquired
property clause mencionada no texto). Todavia, este último Autor coloca em evidência uma limitação
importante desta garantia flutuante, decorrente da prioridade absoluta conferida ao “purchase money
security interest”, ou seja, a garantia atribuída ao crédito de aquisição de bens, prioridade esta que surge
como o contraponto da possibilidade de a garantia flutuante abranger a totalidade do património do
devedor, destinando-se a consentir que este possa, apesar disso, adquirir novos bens para a continuação da
sua actividade produtiva (ou seja, “Frente al efecto monopolio que puede conllevar la garantía flotante se
coloca el principio general de dar prioridad a las inyecciones de nuevo dinero”, deste modo se dando
“prioridad al dinero nuevo sobre el viejo”).
574
Mais concretamente, é consentido às partes estipular uma “after-acquired
property clause”, através da qual se estende a garantia a bens futuros incluídos na
descrição inicial, sem necessidade de redacção de um novo contrato.2152
Merece igualmente referência os termos amplos em que a legislação americana
admite a sub-rogação real, ao determinar que, salvo cláusula em contrário, a garantia se
estende aos proceeds2153 - entendidos estes como o produto da venda ou disposição do
objecto onerado ou o produto das indemnizações causadas a esse mesmo objecto (ou
até, mais latamente, como “subrogaciones en general”)2154 – ou até aos bens resultado
da laboração ou transformação dos originariamente onerados.2155
Paralelamente, do ponto de vista do crédito assegurado, são admitidas cláusulas
em tudo semelhantes às cláusulas omnibus – future advance clause - de modo a alargar
a garantia a outros créditos futuros do mesmo financiador e não apenas quando este já
se tivesse obrigado a concedê-los.2156
2152
De acordo com Anna Veneziano, ob. cit., pág. 158, tal possibilidade é válida para qualquer tipo de
bem e também para os créditos, relativamente aos quais não é exigida a remessa periódica de listas
contendo a indicação dos surgidos após a constituição da garantia (em termos idênticos, vide Jean-
François Riffard, ob. cit., pág. 135). A tudo isto acresce que o devedor é normalmente autorizado a usar e
a dispor livremente dos bens e do produto da respectiva alienação, assim como a cobrar em nome próprio
os créditos por si onerados.
2153
Relativamente aos proceeds ou proveitos da venda do bem onerado, a garantia estende-se
automaticamente, sempre que estes sejam identificáveis, sendo oponível a terceiros desde a data de
inscrição da garantia sobre o bem principal, desde que se trate de dinheiro ou outro tipo de bens descritos
no momento da constituição da garantia originária: nos restantes casos, deve ser inscrita nos 10 dias do
recebimento dos proceeds pelo devedor, mas igualmente com efeito retroactivo.
2154
A expressão é de Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 785, considerando a sub-rogação como uma
compensação pela ausência de direito de sequela com que o security interest se debate, nomeadamente ao
ceder perante direitos de terceiros adquirentes, de boa fé, dos bens onerados. Para além disso, a lei
estabelece o prolongamento da garantia, que recaia sobre determinados bens, mesmo quando estes forem
instalados ou fixados noutros, por via de acessão e, noutra ordem de considerações, determina o
alargamento da garantia, em caso de transformação ou mistura dos bens, para os bens que resultem dessa
transformação ou dessa mistura quando perderem a sua identidade ou se assim for determinado pelas
partes no momento da inscrição da garantia originária (caso os produtos transformados ou a mescla
resultante da mistura se encontrem sujeitos a mais de uma garantia, “tienen igual prioridad de acuerdo
con el porcentaje que el coste de los bienes originales suponga respecto del coste del producto total o la
masa”). Considera, igualmente, ser este um dos aspectos mais positivos do regime americano, Legeais,
Les garanties conventionelles cit., pág. 299, especialmente no que toca à extensão da garantia, ope legis,
aos proceeds – isto é, aos produtos da venda do bem, da sua troca ou transformação – porquanto consente
que “La garantie constitué sur une marchandise porte donc de plein droit sur les créances nées de leur
vente, puis sur les sommes figurant sur les comptes du débiteur”.
2155
Neste caso, a garantia apenas se estende ao produto final quando o bem originário não seja
identificável ou, em caso contrário, quando as partes expressamente o tenham convencionado no acordo
originário de garantia - Anna Veneziano, ob. cit., pág. 158.
2156
Anna Veneziano, ob. cit., pág. 159 e segs., relata que nem sequer é imperiosa a menção do montante
do financiamento, nem tão pouco de um tecto máximo ou um período de tempo dentro do qual o
financiamento deverá ser concedido (tal cláusula deverá constar do acordo de constituição da garantia,
mas não necessita de ser inscrita no registo, uma vez que “la trascrizione di una garanzia a tutela di un
credito copre anche eventuali futuri finanziamenti da parte dello stesso creditore, senza necessità di
un’esplicita clausula in tal senso nel financing statement”): ora, conjugando esta cláusula com a after-
acquired property clause, chega-se a uma “cross-security clause, secondo cui beni presenti o che verrano
acquistati in futuro dal debitore sono oggetto di garanzia per l’adempimento di obbligazioni presenti o
che sorgeranno in futuro tra le stesse parti” (ou, de acordo com Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 135,
obtém-se um resultado análogo a uma floating charge). Segundo Albina Candian, Le garanzie cit., pág.
135 e segs., uma vez registada a garantia, basta inserir no primeiro financing statement uma cláusula
relativa aos créditos futuros, de modo que “la registrazione assume una rilevanza costitutiva della
preferenza e ne determina una volta per sempre il rango, indipendentemente dalle vicende del rapporto
obbligatorio sottostante”. Finalmente Rojo Ajuria, Las garantias cit., pág. 787 e segs., constata a
possibilidade de a garantia ser prestada para assegurar obrigações futuras (o que, conjugado com a
575
Todavia, este sistema também não é imune a críticas.2157
licitude da oneração de bens futuros, origina as “cross-security clauses”, nos termos da qual ficam
asseguradas obrigações em qualquer momento em que venham a nascer com bens que podem ser
adquiridos também a qualquer momento).
2157
Para algumas delas, vide Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 169 e segs., manifestando a Autora
alguma perplexidade pelo facto de o modelo americano ser olhado, principalmente na Europa, como um
modelo exemplar e, na sua pátria de origem, se encontrar exposto a tantas críticas, para além de entender
que “non è vero che il sistema migliore e più promettente coincida con un modello in cui la costituzione
di garanzie reali sia la più agevole e ed ampia possibile, poichè simile modo di pensare trascura la
ricerca di un qualche equiilibrio tra gli interessi dei creditori garantiti e non garantiti”. Também Rojo
Ajuria, Las garantias cit., pág. 790, alude à crítica relativa ao facto de o sistema permitir um fenómeno de
sobregarantia, nomeadamente por a garantia flutuante poder absorver todos os bens do devedor.
Relativamente ao registo, Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 122 e segs., enumera dois pontos fracos:
antes de mais, o seu carácter subjectivo (e, ao basear-se no nome do devedor, faz com que as pesquisas
sejam feitas de acordo com este critério, o que é pernicioso tendo em conta que a troca de apelidos é
frequente nos Estados Unidos - e, além do mais, o uso social de um nome diverso é comum – e, por outro
lado, a mobilidade das pessoas torna difícil a identificação do registo competente) e, sobretudo, a
circunstância de o sistema de publicidade das garantias se encontrar previsto para bens para cuja
transmissão da propriedade não se encontra sujeita a idêntico formalismo (o que pode originar a
existência de direitos ocultos potencialmente conflituantes com uma garantia perfeccionada através de
registo: apesar de o UCC ser omisso quanto à resolução deste conflito, a Autora sustenta que “il criterio
implicito nel sistema è la prevalenza dei property interests sui security interest”, pelo que “i titoli di
proprietà anteriori alla costituzione della garanzia, ancorché non apparenti, prevalgano sulla garanzia
medesima”, embora reconheça que essa prevalência não pode ser absoluta – sob pena de comprometer o
direito de sequela do credor preferente e a própria noção de direito real de garantia – antes impondo que
uma garantia constituída e registada é oponível ao adquirente sucessivo do bem onerado, excepto em caso
de aquisição a título oneroso por parte de um comerciante no decurso da sua actividade normal, uma vez
que “se l’acquirente finale non fosse protetto nel modo più rigido si desincentiverebbero le vendite il cui
ricavato serve esattamente per pagare il credito garantito (…) È questa la ragione per cui l’UCC ha
eliminato nel modo più radicale il requisito della buona fede dell’acquirente (…) destinato a generari
risultati del tutto contraddittori”). Também Rojo Ajuria, Las garantías cit., pág. 802 e segs., alude a
críticas relativas ao sistema de registo, mais concretamente relacionadas com a escassez de informação
prestada, podendo até prestar-se a condutas fraudulentas por parte de devedores menos escrupulosos
(facto este que levou até alguns Estados a criminalizar a prestação de falsas declarações por parte dos
devedores com o propósito de obter crédito), o mesmo acontecendo com Jean-François Riffard, ob. cit.,
págs. 138 e 139 (alegando que o UCC permite que cada Estado adopte regras diferentes quanto à
determinação do local onde efectuar o registo da garantia, o que origina diversos conflitos quando se
estejamos perante negócios inter-estaduais).
2158
Gabrielli, Autonomia cit., pág. 671 e segs., dá conta do uso, muitas vezes em conjunto com a floating
charge, do negative pledge, cláusula através da qual o devedor se compromete a não conceder a terceiros
outras garantias para além das já prestadas.
2159
Mesmo antes do reconhecimento da floating charge, o Bill of Sale Act (de 1854, posteriormente
substituído) criou um sistema de transcrição que tornava possível a constituição de garantias mobiliárias
não possessórias, possibilidade essa facilitada pela criação do registo das empresas no início do Século
XX. Todavia, o actual sistema inglês de garantias mobiliárias é objecto de reparos por parte da Autora
(qualificando de “oscuro e imprevidibile”), por serem diversos os registos onde devem ser inscritas as
diversas garantias sobre os bens empresariais, ao que acresce que a própria organização dos mesmos
obsta à eficácia plena das garantias, para além do problemático diálogo entre a lei e os tribunais) - sobre
esta matéria, vide Anna Veneziano, ob. cit., págs. 34 e 87 a 88 (dando ainda conta da possibilidade de
alargamento da reserva de propriedade para garantir créditos diversos do preço de aquisição do bem
objecto da reserva, ou seja, algo semelhante às cláusulas omnibus), Albina Candian, Le garanzie cit., pág.
274 e segs. (aludindo à circunstância deste sistema permitir já a oneração de bens futuros, ainda não
adquiridos pelo devedor, assim como a bens que viessem substituir os inicialmente empenhados – como
576
complexo de bens unitariamente considerado e cujos efeitos se protelam no tempo,2160 a
qual, porém, apenas pode ser concedida por sociedades.2161
Com efeito, o devedor concede em garantia ao seu credor o próprio
estabelecimento comercial ou o conjunto dos activos que o compõem,2162 mantendo no
entanto a posse dos bens empenhados e a possibilidade de deles dispor no decurso da
sua actividade2163 (neste último caso apenas até ao momento em que se verifique a
se de uma garantia rotativa se tratasse – embora fosse duvidoso se o devedor podia utilizar livremente o
produto da venda dos bens onerados: foi para dar resposta a esta dúvida que terá surgido a floating
charge) e Ferrara, ob. cit., pág. 343 e segs. (qualificando-o, originariamente, como uma alienação
fiduciária sob condição resolutiva com a posse a permanecer no devedor, mas admitindo que a evolução o
aproximou da hipoteca, nomeadamente por se admitir a constituição de diversas garantias desta índole
sobre os mesmos bens).
2160
De acordo com Melissa Magnano, ob. cit., pág. 577 e Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 695 e segs, três
são os traços definidores da floating charge: uma garantia sobre um conjunto de bens, presentes e futuros,
de uma sociedade (uma vez que o empenhante não pode ser uma pessoa singular); esse conjunto de bens
pode sofrer modificações no decurso da normal actividade da empresa; e a sociedade empenhante pode
prosseguir a sua actividade utilizando os bens dados em garantia. O segundo dos Autores citados declara
que o primeiro passo para o reconhecimento deste tipo de garantia remonta ao caso Holroyd vs. Marshall
(no qual foi considerada válida e eficaz uma hipoteca constituída sobre as máquinas de um moinho, as
quais continuaram em poder do devedor e havendo uma autorização para a sua substituição no futuro,
com a consequente transferência da garantias para as novas aquisições: em suma, aceitando a
transferência automática da garantias para os novos bens entretanto adquiridos), embora Andrea Danese e
Enrico Gabrielli, Le garanzie sui beni dell’impresa: profili della floating charge nel diritto inglese, in
BBTC n.º 58 (1995), I, págs. 634 e segs., advirtam que este foi apenas o primeiro passo num longo
caminho até ao reconhecimento pleno da floating charge, para o qual contribuíram outras decisões
judiciais (culminando no reconhecimento pleno no caso Re Yorkshire Woolcombers Association, de
1913, no qual se descreveram detalhadamente os contornos da garantia flutuante) e algumas intervenções
legislativas (designadamente o Companies Clauses Consolidation Act de 1845 e o Joint Stock Companies
Act de 1844). Em termos análogos, Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 62 e segs., aponta como traços
característicos da figura o seu carácter não possessório (sendo a publicidade assegurada através do
registo, consentindo assim a utilização dos bens por parte do devedor, evitando a paralisação da sua
actividade comercial: do mesmo passo, permite ao credor “agredir eventualmente, en caso de
cristalización, también los otros ulteriores bienes que, sucessivamente al momento de la constitución,
hubiesen entrado a formar a parte en un momento dado en el undertaking del deudor”), de natureza
presente (surgindo no momento da sua constituição e não apenas na data da cristalização) e dotada de
grande flexibilidade (não é, todavia, necessária qualquer forma sacramental, não sendo sequer vinculante
a definição utilizada pelas partes - assim, Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 59, precisando ser
indispensável o reconhecimento da liberdade de disposição, no exercício da sua actividade, dos bens
onerados por parte do constituinte, com a correspondente abstenção do credor, até à verificação de
determinados acontecimentos).
2161
Realça este último aspecto Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 698.
2162
Embora a floating charge possa abarcar bens móveis e imóveis, na prática abrangem apenas bens
móveis e, mesmo quanto a estes, não é forçoso que integrem todos os que compõem o estabelecimento,
podendo existir garantias apenas sobre determinadas categorias de bens (neste sentido, Gian Bruno Bruni,
ob. cit., págs. 698 e 699).
2163
Como esclarecem Danese e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 644 e segs., a este poder de disposição do
devedor contrapõe-se o dever de abstenção da parte do credor, pelo menos até à verificação de
determinadas condições indiciadoras da diminuição da consistência da garantia. Todavia, mesmo antes
disso, o poder de disposição do devedor não é ilimitado, circunscrevendo-se ao âmbito do “ordinary
course of business” (não encaixam neste critério os actos de disposição praticados após a cessação da
actividade da empresa ou, mesmo antes disso, a alienação de todos os bens integrados no
estabelecimento). A consequência da prática de um acto que extravase o poder de disposição do credor,
traduzida num incumprimento contratual, depende da existência ou não de direitos de terceiro adquiridos
sobre o bem em causa: neste segundo caso, o credor pode fazer uso do seu poder de interdição; na
primeira hipótese, o credor poderá nomear um receiver (nomeação essa que não afecta o acto de
disposição entretanto efectuado, surgindo como um acto de natureza preventiva, destinado a evitar futuras
alienações), podendo opor o seu direito ao terceiro adquirente apenas se entretanto se houver verificado a
cristalização e o terceiro esteja de má fé, traduzida no desconhecimento da cristalização (embora esta
577
cristalização,2164 a qual não será automática,2165 excepto se tal houver sido
convencionado pelas partes aquando da constituição da garantia).
Em termos mais precisos, a garantia não agride imediatamente um determinado
bem, antes flutuando como uma nuvem sobre uma categoria de bens pré-deteminada
presente ou que venha a ingressar no património do devedor, até ao momento em que a
garantia se torne fixa, cristalizando-se2166 sobre os bens que, nesse momento, existam no
património do devedor, na medida correspondente à quantia mutuada.2167
solução coloque dúvidas a propósito da cristalização automática, da qual os terceiros muito raramente
conseguem tomar conhecimento) – para mais desenvolvimentos, vide Danese e Gabrielli, Il pegno cit.,
pág. 646 e segs. e Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 60 e segs..
2164
Em termos semelhantes, Gabrielli, Garanzie rotative cit., pág. 6 e também in Autonomia cit., pág. 664
e segs.. A cristalização produz, ainda, o efeito de tornar ineficazes os actos de disposição dos bens objecto
da garantia praticados posteriormente (com duas excepções: a garantia não é oponível ao adquirente de
mercadorias compreendidas na floating charge após a cristalização desta, desde que as partes no negócio
de alienação desconhecessem a existência da garantia flutuante; e também ao proprietário do imóvel na
qual se situa a empresa devedora que tenha obtido um sequestro cautelar das mercadorias do devedor para
garantir o pagamento de rendas em atraso), implicando igualmente a inibição de o devedor continuar a
dirigir o seu estabelecimento. Uma vez retirados os poderes de gestão ao devedor, será designado um
receiver (liquidatário) por parte do credor - ou, mais raramente, pelo tribunal – ao qual compete (agindo
em nome do devedor, mas no interesse do credor) tomar posse do estabelecimento a fim de proceder à
respectiva liquidação (embora goze de vastos poderes, como não renovar ou rescindir contratos ou alienar
bens do devedor), cessando as suas funções com a declaração de insolvência (cfr. Gian Bruno Bruni, ob.
cit., pág.701 e segs., para quem a cristalização pode definir-se como um acto de auto-tutela convencional
- pressupondo o prévio consenso do devedor - com função predominantemente executiva). Gabrielli,
Sulle garanzie rotative cit., pág. 70 e segs., realça as dúvidas acerca dos efeitos da nomeação do
“receiver”, contrapondo-se duas teses: uma que entende ser ainda necessário, para se produzir a
cristalização, a entrada deste na posse dos bens; outra, ao invés, admitindo que a cristalização se dê
mesmo que a nomeação do administrador não tenha sequer sido notificada à outra parte. Já Justin
Westhead, Le gage en Angleterre, in n.º special da Rev. Jur. Comm, ano 38 (1994), n.º 11, págs. 110 e
111, ressalva que o tribunal pode controlar estas actividades do receiver e, em caso de infracção,
condená-lo no pagamento de uma indemnização pelos danos causados ao devedor.
2165
Para provocar os efeitos decorrentes da cristalização - nomeadamente a destituição do devedor da
posição de gestor - não basta a verificação de nenhum destes factos, é necessário “il positivo esercizio da
parte del creditore del potere di determinare tal cristallizzazione, a meno che le parti abbiano
diversamente pattuito”, designadamente através das chamadas cláusulas de acelaração que consagram,
aquando da verificação de certos indícios de debilidade financeira do devedor, a cristalização automática
(cfr. Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 701 e segs.). A possibilidade de cristalização automática, desde que
expressamente consagrada no acordo de garantia, é reconhecida também por Veiga Copo, Prenda
omnibus cit., pág. 65 (embora ressalvando o prejuízo que ditas cláusulas contratuais podem implicar para
os demais credores, que delas não terão conhecimento). Todavia, a cristalização não comporta a
necessidade de um novo registo, “poiché non si tratta della creazione di una nuova garanzia. In sostanza
la floating charge cessa di flutuare e si consolida su una serie di beni specifici” (cfr. Danese e Gabrielli,
Il pegno cit., pág. 648). Como exemplos de cristalização convencionalmente previstas, Danese e
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 647 e segs. (embora ressalvem a compatibilização das cláusulas de
cristalização automática com os direitos de terceiros que, legitimamente, possam ignorar tal efeito no
momento da aquisição dos respectivos direitos) e Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 65, enumeram a
cristalização “by notice” – nos termos da qual compete ao credor comunicar ao devedor tal efeito, no
seguimento da verificação de determinados acontecimentos contratualmente previstos ou até com total
discricionariedade - e a cristalização automática, que se produz sem necessidade de qualquer
comportamento do credor, verificados que sejam algumas condições constantes do contrato, como por
exemplo a concessão de garantias a outro credor, a pendência de uma execução contra o devedor, o
incumprimento de um contrato celebrado pelo devedor com um terceiro ou a existência de irregularidades
no balanço social do devedor). Finalmente, admite-se o fenómeno da “descristalização”, com a
consequência de a garantia voltar a flutuar sobre o património do constituinte, excepto quando já tenha
ocorrido a nomeação de um receiver ou se tenha aberto um procedimento de liquidação – assim,
Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 72 e segs..
2166
A cristalização consente, após a sua invocação pelo credor (nos termos indicados nas notas
anteriores), a possibilidade de este retirar, com preferência sobre os credores sucessivos e sem
578
Apesar de não haver qualquer relação de inerência relativamente aos bens
abarcados pela garantia, uma vez que a especificação do seu objecto apenas ocorre no
momento da cristalização, esta garantia produz outros efeitos imediatos após a sua
constituição,2168 muito embora alguns reconheçam neste estado de pendência da
garantia um dos seus calcanhares de Aquiles, porquanto os actos de disposição
praticados pelo constituinte no decurso do normal exercício da sua actividade
profissional – entre os quais se pode contar a concessão de fixed charges sobre bens
presentes ou futuros – podem ser opostos ao credor da floating charge, desde que
praticados antes da cristalização.2169
necessidade de intervenção judicial, os bens sobre os quais a garantia se consolidou (para mais
desenvolvimentos, Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 702 e segs.). Existem, em tese, três motivos de
cristalização da garantia: a cessação da actividade comercial (onde se incluem a liquidação, voluntária ou
judicial, da empresa e cessação da actividade propriamente dita), a intervenção do credor que prive o
devedor do controlo do estabelecimento onerado (intervenção essa que deve ser autorizada pelo contrato e
destinada a alcançar a transformação de uma floating numa fixed charge, privando o devedor do controlo
sobre os bens onerados. Este efeito pode ser atingido através da aquisição, por parte do credor, da posse
de um dos bens que compõem a floating charge, ou através de uma ordem judicial forçando o devedor a
entregar o bem ao credor ou, finalmente, através da nomeação de um receiver nos termos anteriormente
expostos) e outras situações previstas no acordo de garantia (normalmente casos de cristalização
automática).
2167
Em termos aproximados, Melissa Magnano, ob. cit., pág. 578, Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 692 e
segs. e Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 62 (distinguindo entre uma primeira fase em que a garantia
se encontra adormecida – consentindo, por parte do devedor, a alienação e a oneração dos bens que
integram o património social, permanecendo a garantia “durmiente hasta que la empresa gravada deja de
ser un negocio en marcha, o bien si es intervenida por el acreedor en caso de falta de pago de los
intereses, falta de reembolso en el plazo convenido o por pérdidas en el capital de la sociedad deudora” -
e uma segunda em que a garantia se cristaliza, funcionando de modo análogo às garantias reais
tradicionais). Como refere Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 106 a 108, notas 141 a 143, o efeito da
garantia apenas se produz no momento em que, por força do disposto na lei ou no contrato, a garantia se
cristaliza sobre os bens existentes, nesse momento, no património do devedor. Embora a garantia não
produza, no momento em que se constitui, um efeito imediato, a circunstância de tal efeito apenas se
verificar no momento da cristalização não prejudicará de modo significativo os interesses do credor, uma
vez que o direito real de garantia possui eficácia retroactiva, desde a data da constituição (daí que se possa
afirmar que esta “è una garantia efficace dal suo sorgere (“present security”) che immediatamente grava
su tutti i beni della società indicati nell’atto costitutivo”, embora com um carácter flutuante uma vez que
“incide su ogni bene compresso nella garanzia, senza cadere su un bene particolare fino a quando certi
eventi o atti del debitore non ne provochino la critallizzazione”). O mesmo Autor, in Sulle garanzie
rotative cit., pág. 50 e segs., conclui, não obstante, tratar-se de uma garantia presente e não futura (embora
advirta que pode incluir, no seu objecto, também bens futuros).
2168
Que assim é comprova-se pelo facto de o credor não necessitar de qualquer posterior acto para que a
garantia produza efeitos; pela atribuição do direito de sequela contra os adquirentes de bens da sociedade
devedora alienados fora da normal actividade desta; pela possibilidade de, em caso de execução movida
por outro credor, o titular da floating charge poder opor a sua causa de preferência se a cristalização da
floating charge se produzir antes da execução; e pela possibilidade de, mesmo antes da cristalização,
dirigir-se aos tribunais requerendo a nomeação de um receiver, sempre que haja fundado receio de
deterioração do objecto da garantia, assim como pela faculdade de impor limites à disposição dos bens
abrangidos pela floating charge (sobre este assunto, vide Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 697). Em
termos idênticos, Danese e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 656 e segs., salientam que a floating charge, antes
da cristalização, não pode ser oposta a um terceiro adquirente de um bem nela integrado, desde que a
alienação tenha tido lugar no decurso da normal actividade do devedor, podendo fazê-lo quando a venda
não tenha ocorrido nestes termos e quando o devedor estivesse contratualmente impedido de dispor do
bem alienado - desde que, neste último caso, o terceiro conhecesse essa proibição (em caso de execução
promovida por outro credor, o direito deste prevalecerá sobre o do detentor da floating charge apenas se o
processo executivo se completar ou o pagamento voluntário ocorrer antes da cristalização).
2169
Chama a atenção para esta restrição Anna Veneziano, ob. cit., págs. 98 e 99, avançando que, por isso,
os credores normalmente se procuram precaver obtendo fixed charges sobre a generalidade dos bens da
empresa devedora e uma floating charge sobre os restantes.
579
Por outro lado, este tipo de garantia consente a oneração de bens futuros, assim
como o prolongamento da garantia, nomeadamente de modo a abranger os créditos
decorrentes da venda dos bens integrados no património social onerado.2170
Embora a constituição da garantia não se encontre sujeita a forma escrita, para
efeitos de registo – o qual é condição de oponibilidade2171 - é imperiosa a apresentação
de um documento escrito relativo à constituição da mesma,2172 podendo a mesma ser
ineficaz caso a concedente venha a ser declarada falida no prazo de 1 ano a contar da
data da outorga da garantia.2173
Relativamente à graduação no concurso de credores, esta garantia cede perante
as fixed charges, independentemente de ter sido constituída antes ou depois destas,
excepto se do acto constitutivo da garantia flutuante decorrer a proibição de concessão
posterior de novas garantias2174 ou se o direito de terceiro tiver sido constituído em
2170
Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 68, embora alertando para o inconveniente de, deste modo, se
preterirem os direitos de outros credores sem os quais a aquisição dos bens futuros não teria sido possível.
2171
Segundo Gian Bruno Bruni, ob. cit., págs. 699 e 700, a ordem de preferência entre as várias floating
charges é determinada pela data do título e não do registo, o qual tem que ser efectuado no prazo de 21
dias a contar da data da estipulação (no mesmo sentido, Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 280). Na
falta de registo, a garantia é eficaz inter partes (embora alguma doutrina sugira que, ainda não registada,
não será oponível aos demais credores preferentes, mas sê-lo-á aos credores quirografários), o que
significa que uma vez decorrido aquele prazo de 21 dias a soma mutuada torna-se imediatamente
exigível.
2172
De acordo com Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 699, esse documento escrito deve demonstrar a
vontade de criar uma garantia sobre bens presentes e futuros, bem como de autorizar o devedor a
continuar a dispor do objecto da garantia no decurso da sua actividade comercial (embora não seja
obrigatória, é comum serem estabelecidas um conjunto de obrigações acessórias a cargo do devedor,
como manter um stock de valor equivalente a 125% da quantia mutuada, guardar os bens em locais
conhecidos do credor, permitir a inspecção por parte deste, fornecer informações – designadamente
contabilísticas - ao credor ou segurar o objecto da garantia), assegurando Andrea Danese e Enrico
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 644, ser ainda necessária a declaração de abstenção do credor do exercício
dos seus direitos contratuais até à verificação da cristalização.
2173
Contudo, Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 706, adverte que, apesar de tal ineficácia, o pagamento
efectuado pela sociedade devedora antes da declaração de falência não pode ser anulado pelo curador
falimentar.
2174
Neste sentido, Emanuele Ferrari, ob. cit., pág. 1358, acrescentando ser frequente a cláusula de
negative pledge, através da qual se pretende, precisamente, evitar a concessão futura de novas garantias,
cláusula esta que deve ser obrigatoriamente inscrita no registo (concluindo, assim, que a floating charge é
tratada, em sede de concurso de credores, como uma garantia real). Já para Gian Bruno Bruni, ob. cit.,
pág. 704 e segs., a prevalência das garantias fixas sobre as flutuantes – justificada pela circunstância de a
constituição da floating charge consentir a manutenção da actividade da empresa devedora e,
consequentemente, a possibilidade de alienação e oneração dos bens que a integram - encontra uma
excepção quando na constituição das primeiras se mencione expressamente que os bens em questão já se
encontram incluídas numa floating charge. O conflito entre duas (ou mais) floating charges é muito raro,
pois a regra é que o devedor não poderá constituir uma posterior garantia flutuante sobre bens que já
integrem outra garantia semelhante (assim, Danese e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 657 e Gian Bruno Brini,
ob. cit., pág. 697 - rematando este último que, em regra, o devedor pode constituir outras garantias fixas
sobre os bens integrados na floating charge, mas não de outras floating charges). Quanto aos direitos de
terceiro adquiridos em momento anterior à cristalização (por exemplo, a propriedade de alguns bens
onerados), prevalecerão (uma vez que a garantia ainda não se fixou em determinados bens), excepto se a
alienação tiver ocorrido fora do “odinary course of business”, no qual se incluem a disposição dos bens
por parte do devedor em compensação de outro crédito existente para com um terceiro (neste sentido,
Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., págs. 77 e 78). Em termos aproximados Veiga Copo, Prenda
omnibus cit., págs. 66 e 67, destaca como, antes da cristalização, o concurso entre o credor da floating
charge e terceiros titulares de direitos reais sobre bens que integram o estabelecimento onerado com a
garantia flutuante, deve ser resolvido em favor daqueles terceiros, excepto se, existindo cláusulas
restritivas à liberdade de disposição por parte do devedor, o acto dispositivo ou de oneração em questão
violasse tais cláusulas (o mesmo sucederá se, ainda que não existam tais pactos, o acto de disposição
580
momento posterior à cristalização, pese embora a admissibilidade de acordos de
alteração da graduação.2175
Pelo contrário, a floating charge prevalecerá, em regra, sobre as garantias
constituídas em momento posterior ao da cristalização.2176
Pese embora algumas dúvidas relativamente à sua distinção face às fixed
charges2177, à configuração da figura,2178 e de algumas vulnerabilidades,2179 as floating
exceder o “ordinary course of business”), bem como quando o direito do terceiro seja uma nova floating
charge.
2175
Embora estes acordos possam originar problemas de difícil resolução. Partindo da normal hierarquia
(primeiro as fixed charges, depois os créditos privilegiados e depois as floating charges), um acordo que
determine a prevalência de uma floating sobre uma fixed charge parece implicar que os créditos
privilegiados prevaleçam sobre a floating charge e sobre as fixed charge: todavia, a solução avançada
pela doutrina e jurisprudência dominantes aponta para que “il creditore garantito dalla garanzia
fluttuante si surrogherà al creditore con fixed charge, in ordine ai suoi diritti rispetto ai creditori
privilegiati, e sarà soddisfatto per il suo credito solo dopo questi ultimi. In tal modo l’ordine delle
garanzie non verrà intaccato dall’accordo di subordinazione”, ou seja, “la subordinación de una
garantía real sobre un bien concreto – fixed charge -, que prevalece sobre los privilegios, a una garantía
universal postergada legalmente a los privilégios”, passando a solução da jurisprudência dominante por
“haver efectiva la prioridad de la floating charge sobre los créditos privilegiados sólo por la cantidad
correspondiente a la fixed charge” – cfr. Danese e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 659.
2176
De acordo com Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 79, Danese e Gabrielli, Il pegno cit., pág.
658 e segs. e Emanuele Ferrari, ob. cit., pág. 1359, as principais excepções a esta regra dizem respeito,
por um lado, à graduação de créditos propriamente dita (mais concretamente à prevalência dos créditos
privilegiados, como os fiscais, previdenciais, pensões e outros) e, por outro, à prevalência dos terceiros
cujos direitos surjam sem que o seu titular tivesse conhecimento da cristalização (uma vez que, como
salienta o primeiro Autor citado, “non essendo venuto a conoscenza della cristallizzazione il terzo fa
affidamento sulla apparenza che il debitore possa liberamente disporre dei beni”, embora acrescente que
esta regra não se aplica aos credores quirografários). Segundo Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 68,
esta prevalência do titular da floating charge manifesta-se mesmo quando o devedor tivesse disposto dos
seus bens em compensação de outro crédito que detinha para com um terceiro, mas cederia perante um
terceiro de boa fé (traduzida na crença fundamentada da liberdade de disposição dos seus bens por parte
do devedor) e desconhecedor da cristalização, excepto se o terceiro for um mero credor quirografário.
2177
No que a esta questão diz respeito, a diferença reside no grau de liberdade concedido ao devedor,
considerando Andrea Danese e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 641 e segs., que “La fixed charge
perde le sue caratteristiche peculiari nel momento in cui il debitore dispone dei beni, assecondato da un
comportamento acquiescente del creditore” (em termos latos, a garantia flutuante pressupõe sempre um
determinado poder de disposição do objecto da garantia por parte do devedor), embora realçando que a
definição fornecida pelas partes não é vinculante, pois “se il debitore è stato lasciato libero di disporre
dei beni dati in garanzia, l’istituto utilizzato sarà quello della floating charge, indipendentemente dalla
definizione dalle parti” (em termos análogos, Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 54 e segs.,
acrescentando que esse controlo pode variar consoante se trate de bens materiais – traduzindo-se no
depósito num armazém do credor ou de terceiro ou, em alternativa, deixando-os nas mãos do devedor mas
separados do resto das mercadorias a ele pertencentes - ou representados por um documento – caso em
que bastará a entrega deste - , rematando que, para se poder continuar a qualificar a garantia como
floating, é forçoso que, quando o constituinte seja livre de dispor dos bens onerados, a soma pecuniária
obtida como uma eventual venda deverá ser separada do restante dinheiro do constituinte).
2178
Segundo Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., págs. 56 e 57, à configuração largamente dominante
(de acordo com a qual a floating charge não onera, de modo específico, nenhum bem do devedor até à
verificação da cristalização), contrapõe-se outra que considera estarmos perante uma combinação entre
uma hipoteca e a concessão de uma licença implícita para o constituinte dispor dos bens onerados, isto é,
interpretando o direito de disposição dos bens onerados como uma licença tácita concedida pelo credor
(contudo, o Autor, na senda da jurisprudência prevalecente, descarta este segunda alternativa, tendo em
conta as dificuldades que a mesma gera, ao definir a garantia em termos demasiadamente ligados ao
direito do constituinte relativamente aos bens onerados, introduzindo uma complexidade desnecessária
para explicar um instituto cujo funcionamento se afigura bastante escorreito). Analogamente, Veiga
Copo, Prenda omnibus cit., pág. 63, relata serem duas as teorias que procuram explicar a natureza jurídica
desta garantia e o poder de disposição e oneração que a mesma confere ao devedor: uma primeira,
apelidada de “licence theory”, explica aquele poder “sobre la base que el acreedor le ha autorizado a
581
charges conheceram um desenvolvimento assinalável, sendo os seus méritos
inquestionáveis.2180
1.2.7 - direitos
hacerlo, un acreedor que tiene una suerte de proprietary interest antes de la cristalización, aunque no un
specific interest en el patrimonio”; uma outra, a “mortgage of future assets theory”, justifica a faculdade
de disposição que o devedor conserva alegando que “la garantía no grava en modo específico unos
bienes determinados de la sociedad, sino que, hasta el momento de la cristalización, el acreedor
simplemente tiene un derecho personal o quizás una mera equity a tener una fixed charge sobre el
patrimonio cuando el gravamen se cristalice”.
2179
A principal das quais reside na menor protecção conferida ao credor, em razão da possibilidade de o
devedor poder dispor (ou onerar, com preferência sobre o credor da floating charge) dos bens integrados
no património da sociedade até ao momento da cristalização, sendo os direitos adquiridos por estes
terceiros oponíveis ao credor munido da floating charge (para além de os terceiros credores do devedor o
poderem igualmente executar tais bens) – cfr. Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 64 (o Autor sustenta
que, para obstar a estes inconvenientes, o credor por vezes impõe a inclusão no contrato de garantia de
cláusulas restritivas ao poder de disposição – ou de oneração, pelo menos as com grau preferente - do
devedor ou de cláusulas de negative pledge). A principal desvantagem para o devedor decorre do
monopólio de crédito a que esta figura pode conduzir, uma vez que a partir do momento em que o credor
obtém uma garantia desta índole, o devedor tem, por força das condições impostas, escassas hipóteses de
se dirigir a outro financiador (destaca este aspecto Gian Bruno Bruni, ob. cit., pág. 708).
2180
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 106 a 108, notas 141 a 143. No que especificamente respeita à
ausência de desapossamento, esta garantia “non essendo possessoria, consente al debitore di continuare
ad utilizzare liberamente le merci – o in ogni caso l’oggetto della garanzia – evitando in tal modo di
paralizzare l’attività dell’imprenditore e al creditore di poter eventualmente aggredire, in caso di
crystallisation, anche gli altri ed ulteriori beni che, successivamente al momento di costituzione della
garanzia, fossero eventualmente entrati a far parte dell’undertaking” (vide considerações análogas do
mesmo Autor in Garanzie rotative cit., págs. 5 e 6 e in Autonomia cit., pág. 664 e segs.: neste último
trabalho, destaca que o regime do floating charge se distingue do penhor por força da ausência de
desapossamento do constituinte e de concreta identificação do objecto onerado). Gian Bruno Bruni, ob.
cit., pág. 708, realça o dispensar do desapossamento, assim permitindo ao devedor potenciar o valor do
seu estabelecimento comercial, muitas vezes a única garantia do credor (aliás, o Autor advoga mesmo a
sua transposição para o ordenamento italiano, não sem antever a possível confrontação da mesma com a
proibição do pacto comissório e de auto-tutela do credor).
2181
É o que sucedia, por exemplo, com o Código Civil Soviético, em cujo art.º 92.º se permitia que, por
acordo das partes, a coisa empenhada pudesse ser deixada nas mãos do empenhante, embora sob a alçada
do credor (a quem seria atribuída a chave do local onde os bens se achassem, bem como a possibilidade
de selar o esse mesmo local). Por outro lado, o mesmo diploma permitia, quando estivesse em causa uma
coisa determinada, que esta fosse deixada em poder do seu proprietário, desde que fossem apostos sinais
materiais indicando a existência do penhor (e, nesse caso, a garantia ter-se-ia por constituída no momento
da celebração do contrato, ao contrário do que sucederia quando o direito incidisse sobre coisas genéricas,
caso em que apenas seria constituída no momento da tradição ou da aposição dos sinais materiais). Outro
aspecto relevante desta legislação era a limitação do exercício do direito de sequela às situações em que o
terceiro adquirente se encontrasse de má fé (considerando-se como tal aquele que compre um bem no
qual houvessem sido colocados sinais materiais alusivos à constituição da garantia). Finalmente, a mesma
compilação permitia que as mercadorias em circulação pudessem ficar em poder do empenhante (embora
separadas do seu restante património e desde que depositadas num local identificado no contrato) e até
que, havendo acordo das partes, este as pudesse substituir por outras da mesma espécie e qualidade
(sendo que as entretanto alienadas deixariam de estar oneradas), desde que fosse conservada uma
determinada consistência, fixada como objecto da garantia. Em termos análogos, o mesmo diploma
admitia que, aquando da dação em penhor de mercadorias sujeitas a processo de laboração, este processo
582
(particularmente nos países da outrora chamada Europa de Leste, sob a influência do
modelo norte-americano),2182 seja instituindo algumas hipotecas mobiliárias.2183
No que, em particular, respeita à América Latina, raros eram os países que,
sensivelmente na mesma data, não dispunham de legislação consentindo, em maior ou
menor medida, a constituição de garantias mobiliárias não possessórias,2184 sendo já no
fosse levado a cabo pelo empenhante ou por terceiro e, uma vez terminada a laboração, os produtos finais
fossem ser entregues ao credor (a principal diferença relativamente ao penhor sobre mercadorias em
circulação reside no facto de, nesta última hipótese, o penhor nascer no momento da celebração do
contrato, ao passo que no penhor de mercadorias a transformar, a garantia apenas surgir no momento da
entrega do bem ao devedor ou a terceiro para iniciar o processo de transformação). Também o direito
grego (vide o art.º 1214.º do Código helénico de 1940, que veio estabelecer uma solução já vertida em
inúmeros diplomas avulsos, nomeadamente através do recurso à figura do warrant) consagra a
legitimidade do penhor sem tradição do bem empenhado, na condição de a garantia ser inscrita num
registo público. Já o ordenamento libanês, embora exija o desapossamento do devedor, precisa que tal
efeito se produzirá com a entrega ao credor das chaves do local onde se encontram as mercadorias
empenhadas. Finalmente, a lei turca, não obstante erigir o desapossamento do devedor como condição do
surgimento da garantia pignoratícia, consagra, em inúmeros diplomas avulsos, garantias sem
desapossamento sobre gado (constituído mediante inscrição no registo), sobre tabaco (admitindo, nas
diversas etapas de cultivo, a dação em garantia sobre o tabaco – que até ao momento da recolha está
sujeito ao regime imobiliário, enquanto parte integrante da propriedade onde se insere – após a separação
da planta, também ela sujeita a inscrição no registo, mas sem que a lei preveja expressamente a
possibilidade de sub-rogação do objecto da garantia) e sobre produtos e instrumentos agrícolas (sendo,
neste caso, a publicidade assegurada através da colocação de uma placa nos bens empenhados). Acerca do
panorama do direito comparado, vide Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 71 e segs..
2182
Segundo Anna Veneziano, ob. cit., pág.197 e segs., o facto de estes países apresentarem um sistema
de garantias mais consentâneo com as exigências das empresas e dos financiadores justifica-se com a
necessidade de acesso ao crédito por parte de empresas privatizadas que operam num mercado livre
(principalmente quando a privatização ocorra sem uma injecção de capital estrangeiro) e com o forte
desejo de atrair investimento estrangeiro. De entre estas legislações contam-se a russa (na qual merecem
saliência a possibilidade de, nos termos do Código Civil entrado em vigor em 1995, constituição de um
penhor sobre bens e créditos futuros; sobre bens que devam ser alienados ou dos quais o devedor pode
dispor; sobre um conjunto de bens destinados a transformação; sobre todo o património da empresa; a
constituição de penhor em garantia de créditos surgidos após a concessão da garantia, desde que
estipulado um tecto máximo; a sujeição do penhor a forma escrita e, caso não haja desapossamento, a
inscrição na contabilidade do devedor; a obrigação do devedor informar os sucessivos credores das
garantias anteriormente concedidas; e a admissibilidade da execução sobre os bens empenhados sem
necessidade de intervenção judicial), a húngara (com a alteração do Código Civil introduzida em 1996, as
soluções são muito semelhantes às da lei russa, divergindo, porém, na imposição do registo da garantia
como condição de validade da mesma e, ainda, na previsão de uma garantia flutuante sobre o património
da empresa que consente o prosseguimento da actividade desta), a polaca (merecendo especial referência
a legitimação das chamadas garantias negativas), com a excepção da legislação checa (na qual se veda a
constituição de penhores não possessórios, embora se admitam as alienações e cessões fiduciárias em
garantia).
2183
Por exemplo, no direito finlandês, uma lei de 1923 previa já a possibilidade de constituição de uma
garantia desta espécie sobre os bens móveis integrados no inventário da empresa (embora o vínculo se
extinguisse sempre e quando os objectos deixassem de pertencer a essa empresa, passando a recair sobre
aqueles que nela reentrem), enquanto na vizinha Noruega desde 1842 que a lei consagrava a viabilidade
da constituição de uma hipoteca tendo como objecto os produtos extraídos das minas (mas apenas para
garantir os empréstimos efectuados às entidades exploradoras dessas minas e destinados à produção de
minério) e, finalmente, o direito suíço consagrou uma hipoteca sobre os animais que compõem um
rebanho, mas não sobre o próprio rebanho (em caso de transporte dos animais para outro local, a lei exige
uma transferência do registo) – menciona esta legislação Ferrara, ob. cit., pág. 354 e segs..
2184
Para um panorama geral acerca desta matéria, vide Ismael Acevedo y Criado, ob. cit., pág. 25 e segs.,
abordando a legislação colombiana (que consagrava um penhor agrário, desde 1921, e um penhor
industrial, desde 1932, permitindo “otorgarse prendas globales o abiertas para garantizar todas las
obligaciones que se contraigan dentro de determinadas cuantías y durante el tiempo que convenga”),
chilena (que desde 1926 admitia um penhor agrícola e desde 1935 um penhor industrial, com a novidade
de, neste último caso, “La prenda constituída sobre la materia prima queda ipso jure constituida sobre el
583
decurso do Século XXI que se encetaram reformas mais ou menos profundas no
domínio dos sistemas de garantias mobiliárias em países como o México,2185 o Peru,2186
a Argentina,2187 o Chile2188 ou o Uruguai.2189
producto elaborado”, destarte se consagrando um caso de sub-rogação real por determinação da lei),
mexicana (que previa um penhor agrícola desde 1934), uruguaia (na qual encontrava assento um penhor
agrícola desde 1928 e um penhor industrial desde 1928), peruana (primeiramente com a Lei n.º 2402, de
13 de Dezembro de 1916 sobre o penhor agrícola – na qual merece especial realce a conjugação entre esta
garantia e a hipoteca sobre o bem imóvel, estabelecendo-se que esta última não abrange os bens
empenhados em data anterior à constituição da hipoteca e, paralelamente, que o surgimento desta última
garantia impede a constituição de penhores sobre bens que integrem o acervo da garantia hipotecária que,
no caso de explorações agrícolas, serão unicamente o do solo do imóvel, as indemnizações devidas pelos
seguros e o eventual valor da expropriação – posteriormente com a Lei n.º 9157, de 24 de Julho de 1940,
depois substituída pela Lei n.º 11357, de 12 de Maio de 1950, sobre o penhor mineiro e, finalmente, com
o penhor industrial, instituído pela Lei n.º 7695, de 30 de Janeiro de 1933) e argentina (consentindo a
constituição de um penhor agrícola sem desapossamento desde a Lei n.º 9644, de 19 de Outubro de 1914
– na qual merecia especial destaque a possibilidade de o devedor alienar os bens empenhados a terceiros,
embora sem poder efectuar a tradição dos mesmos sem antes liquidar a sua dívida para com o credor
pignoratício – posteriormente alargada aos bens industriais pela Lei n.º 15438, de 28 de Maio de 1946).
Merece especial referência este último diploma argentino (Decreto-Lei de 28/5/1946) pois, para além de
admitir que a posse dos bens empenhados permanecesse em poder do devedor empenhante - embora
sujeitasse o contrato a inscrição registal (funcionando o registo como condição de oponibilidade do
direito a terceiros) no local da situação dos bens (do qual só poderiam ser retirados depois de informados
o credor e a entidade registante) e a notificação ao credor, permitia que o proprietário alienasse os bens,
desde que o novo adquirente assumisse a dívida garantida (mas proibia o sub-penhor sem autorização do
primeiro credor pignoratício). Quanto aos poderes das partes, ao devedor seria lícito usar os bens (sem
prejuízo da obrigação de custódia e conservação, o qual, aliás, impunha mesmo o dever de alienar alguns
bens, nomeadamente os perecíveis ou consumíveis pertencentes a um estabelecimento comercial),
cabendo ao credor o direito de inspeccionar os bens e de requerer o respectivo arresto caso o devedor se
oponha a tal inspecção ou faça um uso indevido dos mesmos. Mas a lei argentina consente igualmente a
criação de um penhor flutuante, tendo por objecto mercadorias ou matérias primas pertencentes a um
estabelecimento comercial ou industrial (as quais poderiam ser dadas em garantia de obrigações com um
prazo de vencimento não superior a 180 dias), transferindo-se a garantia, sem efeitos novatórios, para os
produtos resultantes da transformação ou substituição das coisas originariamente empenhadas (porém,
esta transferência do objecto da garantia deverá ser inscrita no registo, nos 3 dia seguintes à conclusão do
processo de transformação, detalhando os novos bens sobre os quais passa a incidir a garantia, devendo o
encarregado do registo comunicar tal facto ao credor): eis a consagração da sub-rogação real que, como
refere o Autor “permite al constituyente de la prenda sobre materias primas para poder industrializarlas
o transformarlas sin intervención del acreedor, pero por disposición de la ley, la prenda se extiende a los
nuevos productos; salvo que el acreedor haya prohibido en el contrato” (já Carlos de Cores e Enrico
Gabrielli, Il pegno cit., págs. 222 a 224, destaca, pela negativa, a existência de vários registos separados e
não relacionados entre si e a impossibilidade de acesso público aos mesmos, bem como o facto de a
Direcção-Geral dos Registos só admitir a inscrição do penhor flutuante sobre bens homogéneos de um
estabelecimento comercial). Em conclusão, decorre desta análise de direito comparado que todas as
legislações mencionadas prevêem, com maior ou menor amplitude, figuras de penhor sem
desapossamento, sendo a entrega substituída pela inscrição da garantia em registos já existentes ou
criados de novo.
2185
Neste País, uma reforma datada de 2006 concentrou num único diploma a disciplina das garantias
sobre bens móveis, incluindo as de natureza fiduciária, merecendo especial destaque a possibilidade de o
penhor sem desapossamento, sujeito a registo, poder abranger todos os bens e direitos móveis (salvo os
estritamente pessoais), a menor rigidez no que concerne à descrição dos bens onerados, quando estes
integrem a actividade profissional do devedor (admitindo-se uma identificação genérica e ditando-se
mesmo a impossibilidade de os registadores negarem a inscrição de garantias sobre estes bens com a
alegação de a descrição dos mesmos ser demasiado genérica), a empenhabilidade de bens que ingressem
a posteriori no património do devedor, o reconhecimento de admissibilidade de alargamento da garantia a
bens derivados, como sejam frutos – pendentes ou já obtidos -, produtos futuros, produtos resultantes de
processos de transformação, bens ou direitos que o devedor receba ou tenha direito a receber como
pagamento pela alienação a terceiros do bem empenhado ou como indemnização por danos ou destruição
dos mesmos bens. Cumpre, ainda, destacar a circunstância de a oneração do bem não tolher ao devedor o
uso do bem empenhado - por exemplo, para a fabricação de outros bens -, podendo até misturá-lo com
584
1.2.8 - O direito português
outros, desde que o seu valor não diminua e os bens produzidos passem a estar abrangidos pela garantia
originária – ou a capacidade para os alienar (se essa alienação se produzir no curso da actividade
profissional do devedor, a garantia não poderá ser oposta a terceiros adquirentes de boa fé), bem como, à
imagem do direito norte-americano, a criação de uma garantia prioritária para a aquisição de bens (nos
termos da qual, mesmo que o devedor tenha onerado a um credor todos os seus bens móveis, poderá
sempre onerar os bens que adquira com o crédito que lhe seja fornecido por novos credores). Sobre este
assunto, vide Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 217 a 221.
2186
A lei n.º 28677, de Março de 2006, reuniu num único diploma a regulamentação das garantias
mobiliárias, da qual se destaca a instituição de um registo central nacional (organizado através de um
sistema de índices de busca que permite ao público em geral consultar todos os actos inscritos por uma
mesma pessoa) e a admissibilidade de a execução da garantia ocorrer por via extra-judicial - Carlos de
Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 221 e 222.
2187
A lei n.º 24441, de Dezembro de 1994, consagrou a figura do fideicomisso (embora não
expressamente o fideicomisso em garantia, relativamente ao qual se continuam a colocar dúvidas,
mormente pela necessidade de compaginar a figura com a proibição do pacto comissório) e regulou o
leasing e a cessão de créditos - Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 224 e 225
2188
A lei n.º 20190, de 5 de Junho de 2007, regulou alguns aspectos das garantias mobiliárias,
nomeadamente a validade do penhor sobre bens ou direitos futuros (nascendo o direito real apenas se o
bem ou direito vierem a surgir e, se tal suceder, o direito retroage à data da inscrição) e do penhor rotativo
(consentindo a extensão do penhor aos bens transformados e ao produto elaborado com esses
componentes – que ficarão, ipso iure, abarcados pela garantia -, assim como os componentes que
posteriormente o integrem) e a criação de um registo (organizado sobre uma base subjectiva, de
identificação do devedor) - Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 229.
2189
A lei n.º 17228, de 21 de Dezembro de 1999, sobre penhores sem desapossamento (que veio revogar
toda a legislação anterior sobre a matéria) contém quatro linhas de força: a possibilidade de incidir sobre
bens incorpóreos, a admissibilidade de descrições genéricas dos bens a onerar por tipo ou por classe, o
prolongamento da garantia sobre o produto da transformação dos bens onerados (ou sobre qualquer
propriedade recebida em troca daqueles) e a veleidade para assegurar, com a mesma garantia, linhas de
crédito. Inspirada por estas ideias, a lei consagrou um sistema de registo baseada no notice filing do UCC
- contendo apenas uma informação resumida sobre o contrato de penhor, devendo os terceiros
interessados buscar mais informação directamente ao devedor – funcionando a identificação do devedor
como critério de inscrição e busca (Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 237, destaca
como este sistema “no oferece protección para los terceros que no están en condiciones de obtener una
búsqueda del registro en base al nombre del deudor, porque su existencia o identidad le es
desconocida”). Apesar de a generalidade dos bens a onerar se encontrarem sujeitos a registo, importa
distinguir consoante os mesmos sejam susceptíveis de perfeita identificação registal (bens que serão
objecto de hipoteca mobiliária, garantia que outorga ao seu titular um direito de sequela perfeito, impondo
aos terceiros adquirentes o ónus de consultar o registo antes de efectuar a aquisição), daqueles que não
gozam de tal característica, passíveis de penhor sem desapossamento e relativamente aos quais os
terceiros adquirirão os bens onerados livres de quaisquer ónus ou encargos, por força do princípio da
posse vale título (embora o Autor proponha que, no momento da venda, o adquirente deveria ser alertado
da existência de uma garantia anterior), encontrando-se a tutela do credor assegurada através do direito de
preferência e da indisponibilidade relativa (e não absoluta, pois esta teria o grave inconveniente de
sacrificar, em nome da protecção do credor, a circulação dos bens) do mesmo (de modo que o devedor,
apesar de manter a posse do bem – uma vez que este continua em seu poder – e, por isso, poder efectuar a
entrega do bem terceiro, não prejudica o credor, na medida em que tal acto lhe é inoponível). Para além
disso, há ainda que mencionar a existência, desde 2003, de uma lei consagrando a figura do fideicomisso
e, noutro âmbito, de uma lei sobre valores mobiliários que estabelece um paralelismo entre os títulos
materializados em papel e os escriturais, regime do qual avulta a distinção entre titularidade e
legitimidade (circulando a primeira através das formas de direito comum e decorrendo a segunda da
inscrição no registo e decorrendo a segunda da inscrição no registo, conferindo ao seu beneficiário a
faculdade de reclamar o pagamento ao emissor do valor em questão: ademais, a inscrição no registo
constitui uma presunção de titularidade a favor do beneficiário da inscrição), constituindo-se o penhor
sobre os valores escriturais através de inscrição na conta correspondente.
585
Ora, todos os mencionados inconvenientes do desapossamento imposto pelo
regime tradicional do penhor se fizeram sentir, inexoravelmente, em Portugal, não
surpreendendo, por isso, ainda no Século XIX, a consagração os primeiros penhores
sem desapossamento.2190
Todavia, ainda hoje o regime geral do penhor, vertido no Código Civil e
aplicável a todas as garantias desta índole que não gozem de um regime especial,
permanece refém da necessidade de desapossamento do empenhante e da entrega do
bem onerado ao credor, a terceiro ou da criação de uma situação de composse (art.º
669.º, n.º 1, o qual prevê, como única alternativa, a entrega de documento que confira a
exclusiva disponibilidade do bem empenhado).
Os apelos à criação de uma garantia mobiliária não possessória de âmbito geral
(ou, na senda da recente reforma do direito francês, da natureza não essencial do
desapossamento para o surgimento do penhor), recorrentes em termos de direito
comparado (e que impelem à criação de mecanismos alternativos à entrega do bem ao
credor ou a terceiro como requisito para a constituição da garantia, aparecendo o registo
como a alternativa mais credível) não podiam deixar de ecoar intramuros.
Topamos, aliás, com uma circunstância peculiar do nosso direito – o não
acolhimento do princípio da posse vale título – que reforça a consistência (e apetência)
de uma garantia não possessória, porquanto não existe o risco de preterição dos direitos
do credor por parte de um terceiro possuidor de boa fé, ao menos desde que sejam
encontrados mecanismos que tornem cognoscível a garantia.2191
Com efeito, se uma das funções atribuídas e justificativas da necessidade do
desapossamento do constituinte reside na protecção do credor contra actos de
disposição, material e jurídica, do bem por parte do empenhante que continuasse em
poder da coisa onerada, tal argumento vê diminuída a sua importância.
Porém, não nos parece que o advento de garantias mobiliárias de cariz não
possessório possa (ou deva) seguir o trilho da utilização da propriedade com fins de
garantia, atendendo à natural aversão a este tipo de negócios (mais especificamente, ao
alargamento da proibição do pacto comissório aos negócios fiduciários),2192
designadamente à alienação em garantia à cessão de créditos em garantia e ao sale and
lease back, à dificuldade de identificação do título a que o devedor conservará a posse
2190
Menciona este facto Luís Pinto Coelho, Direitos reais, Súmula das lições proferidas no 3.º ano da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no ano lectivo 1939-1940, coligidas por Pedro da
Câmara Rodrigues de Freitas e Carmindo Rodrigues Ferreira, pág. 74, afirmando que “a nossa legislação
está hoje cheia de exemplos em que se constitui o penhor sobre determinados bens sem que seja feita a
entrega deles”, sendo o exemplo mais flagrante o dos empréstimos agrícolas garantidos com penhor
(corrobora esta informação Ismael Acevedo y Criado, ob. cit., pág. 21, mencionando uma lei de 1867 que,
ao criar os Bancos de Crédito Agrícola e Industrial, lhes consentia a concessão de empréstimos garantidos
por penhores sem desapossamento dos devedores). Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 65, nota 3, faz alusão
à lei de 16 de Maio de 1939, nos termos da qual o Instituto do Vinho do Porto emitiria certificados de
origem atestando a qualidade e autenticidade dos vinhos em questão, certificados estes que poderiam ser
descontados – a pedido dos próprios agricultores - junto da Caixa Geral de Depósitos e de outros bancos,
sendo o valor nominal dos certificados quase sempre inferior ao real valor do bem dado em garantia. O
Autor justifica o surgimento desta garantia com o facto de o vinho do Porto ser um bem que “per le sue
caratteristiche tecnologiche, non si può esattamente individuare ai fini della costituzione in pegno,
perchè deve essere continuamente travassato e richiede cure speciali che ne aumentano il valore con il
trascorrere del tempo”.
2191
Realça este aspecto Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 116, considerando que o art.º 1268.º, n.º 1
(de acordo com o qual o possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor
de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse) consagra uma presunção contrária à
regra de posse vale título, admitindo, porém, prova em contrário.
2192
Sobre este assunto, vide infra n.º 4.3.5 do Capítulo II.
586
ou detenção do bem2193 e aos escolhos relacionados com os princípios da tipicidade dos
direitos reais2194 e da par conditio creditorum.
Por outro lado, a criação, por via legislativa, de figuras desta índole significaria
uma alteração profunda no nosso ordenamento (desde logo quanto à própria noção de
garantia, obrigando a uma funcionalização e extensão do seu alcance), conduzindo,
provavelmente, ao ocaso definitivo do penhor (ao menos se o respectivo regime não for
reformulado) e das demais garantias tradicionais (como sucedeu no direito alemão).
Por último, cabe rematar que a ausência de publicidade associada aos institutos
que utilizam a propriedade com finalidades garantística, bem como a menor protecção
que confere ao garante, coloca em risco a segurança do comércio jurídico, deste modo
constituindo mais um óbice à sua utilização.
Aliá, a este último propósito, cumpre realçar que, historicamente, o penhor terá
surgido no direito romano precisamente para combater os inconvenientes da apelidada
fiducia cum creditore.2195
Finalmente, somos de parecer que, com as alterações propostas ao regime do
penhor, esta garantia (compaginada com as demais vigentes) se passará a coadunar com
as exigências do comércio jurídico, tornando desnecessário o recurso à transferência
propriedade de bens e/ou de créditos com fins de garantia.
De entre essas alterações e conforme decorre das considerações expandidas (e a
expandir) ao longo do presente estudo, apresentam-se como mais prementes a expressa
previsão e regulamentação de penhores sobre universalidades (e, em particular, sobre o
estabelecimento comercial), a declarada flexibilização da interdição do pacto comissório
(em especial relativamente a bens com valor objectivo e irrefutável) e, sobretudo, o
afastamento da necessidade de entrega do bem ao credor ou a terceiro como condição
para o nascimento do penhor (destarte eliminando a sua natureza real quanto à
constituição, o que poderia passar, na esteira da recente reforma do direito francês, pela
imposição da forma escrita como única condição de validade do contrato constitutivo do
penhor, surgindo o desapossamento como uma entre outras – entre as quais o registo -
formas de assegurar a oponibilidade da garantia).
Todavia, enquanto tal remodelação global do regime do penhor não for levada a
cabo e como já se percebeu da leitura do n.º 5 do Capítulo I, o panorama luso não
diverge significativamente do italiano (ou do francês anterior à reforma de 2006), com a
manutenção da exigência do desapossamento do constituinte como regra, temperada
unicamente pela criação de penhores cuja constituição prescinde da entrega material do
bem onerado, seja em razão da especificidade do respectivo objecto ou da necessidade
de manutenção do bem em poder do empenhante, seja atendendo à identidade do credor
2193
Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 116 e segs., tendo em conta o conceito objectivo de posse
adoptado pela nossa lei (cfr. art.º 1251.º) e atendendo ao disposto no art.º 1253.º, entende que o prestador
da garantia goza de uma posse especial, uma vez que na maioria dos casos o permanecerá em contacto
direito com o bem. Já Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 532, defende que a posse se
transmite para o devedor através de constituto possessório, tornando-se este possuidor em nome alheio,
mas sem nunca perder o poder de facto sobre o bem.
2194
Esta objecção é desvalorizada por Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 531,
porquanto neste tipo de negócios não se procede à criação de um direito real – sendo o direito de
propriedade transmitido intocado no seu conteúdo – ao qual se estabelecem limitações de ordem
meramente obrigacional (admissíveis no âmbito do princípio da liberdade contratual) e, por outro lado,
porque o princípio da tipicidade abrange a criação de direitos reais, mas não os factos que produzem a
transmissão dos mesmos.
2195
Santos Justo, ob. cit., pág. 468, relatando que nesta última figura o garante apenas dispunha de uma
acção pessoal para recuperar o bem onerado, pelo que apenas readquiria a propriedade do mesmo se o
credor assim o entendesse.
587
pignoratício (como sucede com o já mencionado regime do penhor constituído em
garantia de instituições bancárias).
Iremos, em seguida, analisar aqueles regimes avulsos que, pela sua relevância
prática e em função dos objectos sobre os quais versam, justificam uma análise mais
pormenorizada.
Por ser assim, tais diplomas afastam a aplicação do Código Civil2196 quanto aos
aspectos da garantia pignoratícia neles expressamente regulados, pelo que,
relativamente ao mais, cumprirá recorrer àquela compilação, em tudo quanto não
contenda inapelavelmente com a diposto nos regimes especiais).
No entanto, estas normas extravagantes não vêm, na esmagadora maioria das
vezes, alargar o leque de objectos empenháveis, concretizando unicamente alguns bens
já integrados no leque definido na lei civil, designadamente adaptando a rigidez das
modalidades de constituição do penhor às especificidades de alguns dos bens
empenháveis.
De entre essas normas, passaremos a enumerar as mais relevantes.2197
2196
Ou, eventualmente, do Código Comercial, nos termos supra expostos.
2197
Para além dos indicados no texto, podemos mencionar ainda o Decreto-Lei n.º 42825, de 29 de
Janeiro de 1960, que vem admitir o penhor sem desapossamento dos bens móveis e utensílios dos
estabelecimentos hoteleiros prestados em garantia de empréstimos concedidos pelo Fundo de Turismo ou
por este caucionados. Nos termos deste diploma, o Fundo de Turismo pode dispensar a entrega dos
objectos dados em penhor pelas empresas privadas como garantia dos empréstimos a conceder
directamente pelo Fundo, desde que os referidos bens sejam necessários à continuação da actividade dos
respectivos estabelecimentos hoteleiros (art.º 1.º), continuando os bens empenhados em poder do seu
proprietário, que se transformará em depositário deles ou, tratando-se de pessoa colectiva, essa
incumbência caberá aos respectivos administradores ou representantes legais (n.º 2), exposto à aplicação
das penas previstas para o crime de furto se alienarem, modificarem, destruírem ou descaminharem os
objectos dados em penhor, sem autorização escrita da comissão administrativa do Fundo de Turismo, ou
se os empenharem novamente sem que no novo contrato se declare expressamente a existência do penhor
ou dos penhores anteriores (art.º 3.º). Relativamente à forma, o contrato de penhor constará de documento
autêntico ou de documento autenticado e os seus efeitos contar-se-ão da data do documento, no primeiro
caso, e da data do reconhecimento autêntico, no segundo (art.º 2.º §2).
2198
Oliveira Ascensão, A tipicidade dos direitos reais, Livraria Petrony, 1968, pág. 282, alerta para o
facto de “o ramo da ordem jurídica que regula os direitos sobre obras literárias tem a designação de
Direito de Autor: Direitos de autor – à semelhança de direitos aduaneiros e outros – são as quantias que
o titular do direito pode cobrar em contrapartida da utilização da obra por outrem”. Como nota
Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 218, a oneração da totalidade do direito de autor é inviável, porquanto
o direito moral de autor é inalienável e insusceptível de cessão.
2199
Apesar de o art.º 40.º, alínea b), se referir à possibilidade de oneração total ou parcial, a lei (cfr. art.º
42.º), apenas regula esta última (determinando a obrigação de indicação, no negócio de constituição da
garantia, dos modos de utilização dados em garantia; a menção do tempo, lugar e preço do exercício do
direito, presumindo-se que, se a oneração for transitória, o respectivo prazo é de 25 anos, caducando,
porém, se decorrido o prazo de 7 anos, a obra não tiver sido utilizada – art.º 42.º, n.ºs 1, 3, 4 e 5).
2200
Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, alterado pela Lei n.º 45/85, de 17 de Setembro
e alterado pelo Decreto-Lei n.º 114/91, de 3 de Setembro e pela Lei n.º 16/08, de 1 de Abril (esta última
procedeu à republicação do Código).
588
dispunham no mesmo sentido os art.ºs 105.º e 106.º do Decreto n.º 13725, de 3 de Junho
de 1927),2201 junto da Inspecção-Geral das Actividades Culturais.2202
De acordo com os preceitos legais acabados de citar, o objecto destes penhores é
o conteúdo patrimonial do direito, traduzido no monopólio de exploração decorrente da
propriedade intelectual, com exclusão do direito moral2203 e dos suportes materiais da
obra (art.º 46.º, n.º 32204 – todavia, estes últimos também poderão ser dados em garantia,
a qual se regerá pelas normas relativas ao penhor sobre bens corpóreos),2205 podendo,
eventualmente, admitir-se que a garantia abarque, ainda, as receitas originadas pela
propriedade intelectual.2206
Como consequência desta delimitação do quid onerado, em caso de execução,
esta recairá específica e exclusivamente sobre o direito ou direitos que o devedor tiver
oferecido em garantia relativamente à obra ou obras indicadas (art.º 46.º, n.º 2).
Acresce que esta susceptibilidade de oneração foi sendo sucessivamente
alargada a outros bens, por remissão para o regime do direito de autor, como programas
2201
A falta de redução a escrito ou de reconhecimento notarial de assinaturas gera a nulidade do negócio
(art.º 43.º, n.º 2), enquanto a ausência de registo não prejudica a aquisição do direito por parte do credor
pignoratício (art.º 213.º), muito embora condicione a sua oponibilidade a terceiros.
2202
O registo da propriedade intelectual, criado pela Decreto n.º 4114, de 17 de Abril de 1918 (ainda
vigente), é respeitante às criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, quaisquer que
sejam o género, a forma de expressão, o mérito, o modo de comunicação e o objectivo, determinando
aquele diploma, no art.º 20.º, alínea c), a sujeição a registo do penhor, o qual poderá ser requerido por
qualquer interessado (art.º 18.º) e poderá mesmo ser provisório (art.º 31.º, n.º 2), devendo dele constar,
além das indicações gerais relativas à identificação do quid onerado (art.º 49.º), a quantia garantida – ao
menos em termos aproximados – e a taxa de juro (art.º 50.º, n.º 3). Posteriormente, foi criado um outro
(igualmente junto da Inspecção-Geral das Actividades Culturais), destinado às obras cinematográficas e
audiovisuais, que sejam consideradas obras nacionais, produzidas por produtores independentes, qualquer
que seja o seu género, formato e duração, distribuídas ou exibidas em território nacional (este último
registo foi criado Lei n.º 42/2004, de 18 de Agosto – art.ºs 19.º e 20.º - e regulamentado pelo Decreto-Lei
n.º 227/2006, de 15 de Novembro (art.º 31.º e segs.).
2203
Como decorre do art.º 42.º, que reza não poderem tão pouco ser objecto de transmissão e/ou oneração,
voluntárias ou forçosas, os poderes conferidos para tutela dos direitos morais (ou outros excluídos por
lei).
2204
Tal conclusão decorre igualmente do art.º 10.º, n.º 1, nos termos do qual o direito de autor sobre a
obra como coisa incorpórea é independente do direito de propriedade sobre as coisas materiais que sirvam
de suporte à sua fixação ou comunicação.
2205
Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 285 e segs., vislumbra no direito patrimonial de exploração
da obra, e não na obra em si, o objecto do direito (“a reprodução da obra, no sentido em que esta palavra
é normalmente utilizada nas leis sobre direito de autor – ou seja, no de multiplicação dos exemplares
materiais da obra – deixa esta tal qual era: a obra é um a propósito da protecção legal, mas não o seu
objecto. Isto está aliás plenamente de acordo com a caracterização das faculdades patrimoniais como
um exclusivo de exploração económica da obra; este exclusivo refere-se, como qualquer outro, a uma
actividade que a todos se proíbe, a um campo reservado de actuação”), posição esta que encontra apoio
legal nas disposições mencionadas no texto (em termos análogos, para o direito francês, Lisanti–
Kalczynsky, ob. cit., pág. 269, realçando que este direito compreende uma dimensão moral e uma outra
patrimonial, incluindo-se nesta última as faculdades de representação, reprodução e exploração,
perdurando esta última após a morte do autor.). Já Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 149 e segs., identifica
como objecto do penhor, não o direito de exploração, “mais son object, c’est-à-dire l’idée à exploiter
envisagée non point en elle-même dans son individualité mais au point de vue de sa valeur pécuniaire”.
2206
Neste sentido, Lisanti–Kalczynsky, ob. cit., pág. 278, sublinhando que as partes podem prever o
alargamento da garantia de modo a englobar estas receitas, embora o objecto desta garantia autónoma seja
um crédito (a única excepção à exclusão das receitas do âmbito das garantias sobre direitos de
propriedade intelectual reside no penhor de filmes, surgindo dúvidas acerca da natureza jurídica da
garantia do credor sobre essas receitas: alguns, crêem estarmos perante um mecanismo análogo ao da
anticrese; outros falam de uma acção directa; a Autora prefere falar de uma figura análoga a uma cessão
de créditos fiduciária, uma vez que se o devedor pagar ao credor pignoratício, os direitos sobre as receitas
regressam à esfera do constituinte).
589
de computador (Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de Outubro)2207 e bases de dados
(Decreto-Lei n.º 122/00, de 4 de Julho),2208 existido ainda regulamentação autónoma
para o penhor de obras cinematográficas e audiovisuais2209 (cfr. art.ºs 32.º, n.º 1, alínea
d) e 39.º do Decreto-Lei n.º 227/06, de 15 de Novembro, sendo de notar a necessidade
de registo a que o mesmo se encontra submetido).2210
A existência de regras específicas para a empenhabilidade destes objectos é
comum noutros direitos, como o italiano2211 e o francês,2212 porquanto se atribui ao
autor de um direito de propriedade incorpóreo exclusivo, imediato (sem necessidade de
depósito - cfr. art.º L. 111-1 do Code de la Propriété Intelectuelle) e oponível erga
omnes, permitindo-lhe gozar da sua obra (apesar, porém, de a lei francesa apenas
regulamentar especificamente constituição de penhores sobre obras audiovisuais2213 e
sobre o logiciel,2214 o que permite duvidar da empenhabilidade dos demais direitos de
autor).2215
2207
Cfr. a remissão genérica contida nos art.ºs 1.º, n.º 2 e 3.º, n.º 1 e, no que especificamente respeita à
possibilidade de oneração pignoratícia, o art.º 11.º.
2208
A aplicação genérica do Código do Direito de Autor decorre dos art.ºs 4.º, n.º 1 e 5.º, n.º 1, enquanto a
admissibilidade de penhor e a sujeição ao regime daquele Código resulta do art.º 18.º, n.º 2.
2209
Acerca destas noções, vide o art.º 2.º do diploma mencionado no texto.
2210
Este registo é da competência da Inspecção-Geral das Actividades Culturais (art.º 31.º, n.º 1), a ele se
encontrando sujeitas as obras cinematográficas e audiovisuais produzidas por produtores independentes,
qualquer que seja o seu género, formato, suporte e duração e que sejam consideradas obras nacionais
(art.º 31.º, n.º 2) e, em especial, o penhor sobre elas constituído (art.º 32.º, n.º 1, alínea a)), cujo registo
pode ser requerido por qualquer das partes no contrato de penhor (art.º 37.º, n.º 1). Importa ainda realçar a
mera eficácia face a terceiros do registo, sendo a garantia válida inter partes mesmo na sua ausência (art.º
33.º, n.º 1), a presunção de direito atribuída ao titular do registo (art.º 33.º, n.º 3), a prioridade, em caso de
conflito, do direito primeiramente registado (art.º 34.º, n.º 1) e a admissibilidade de registo provisório do
penhor (art.º 39.º, n.º 2, alínea b)),
2211
No direito italiano, o art.º 111.º da Lei 22.4.1991, n. 633 é inequívoco ao admitir que possam ser
dados em penhor os proventos da utilização e os exemplares da obra, qualificados, respectivamente, como
penhor de créditos ou de coisas. Para além disso, o direito de publicar e utilizar a obra (o chamado direito
patrimonial de autor) só pode ser dado em penhor se, previamente, tiver sido transferido para terceiro.
2212
No direito francês, admite-se o penhor dos direitos de propriedade literária e artística enquanto
incorporados numa coisa corporal, bem como, se a obra for explorada, a dação em penhor do contrato de
edição como penhor de um crédito contra o editor (neste sentido, Jacques Ghestin e outros, pág. 221),
possibilidade esta admitida desde há já longos anos por destes bens, Hardel, ob. cit., págs. 96 e 97
(distinguindo a empenhabilidade do bem, normalmente corpóreo, objecto de reprodução e, por outro lado
e mais importante, do direito de autor propriamente dito, entendido como direito de reprodução, para a
empenhabilidade do qual o Autor sugere o desapossamento material do quid que permita a reprodução ou,
em alternativa, preconiza a notificação, por parte do titular dos direitos autorais, da constituição do
penhor às entidades encarregues de gerir tais direitos de – v. g. sociedade de direitos de Autor) e Simon
Quincarlet, ob. cit., págs. 152 a 154 (dando conta da constituição de penhores com este objecto (isto é, “le
droit exclusif mais temporaire, d’exploiter les produits que une conception artistique ou litéraire peut
procurer”, desde que esta se concretize num suporte exterior – livros, quadros, esculturas – traduzindo-se
“dans un droit de publication et de reproduction exclusive de l’oeuvre originale qui extériorise la
conception intellectuele de l’auteur et la manifeste aux yeux du public”, mesmo na ausência de lei
especial sobre a matéria, embora a necessidade de desapossamento do constituinte da garantia implicasse
a entrega ao credor dos objectos – livros, quadros esculturas – manifestação do direito empenhado, o que
tornaria difícil distinguir esta hipótese de outras em que a garantia incida directamente sobre tais objectos:
por outro lado e enquanto possuidor de tais objectos, o credor pignoratício não poderá utilizá-los, nem
alterar o seu conteúdo).
2213
Compreendendo os filmes, os programas de televisão, cd’s, dvd’s, e outros conteúdos multimédia:
essas regras (cfr. a Lei de 22/2/1944, posteriormente integrada no Código da indústria cinematográfica),
inicialmente consagradas apenas para os filmes, foram alargadas pela Lei de 3/7/1985 às obras
audiovisuais.
2214
Mais concretamente e de acordo com a lei francesa actual, art.º L132-34, do Code de la proprieté
intellectuelle, o direito de exploração de um “logiciel” pode ser objecto de penhor, desde que o contrato
de constituição da garantia seja celebrado por escrito (sob pena de nulidade) e seja inscrito (sob pena de
590
1.2.8.2 - Propriedade industrial
inoponibilidade) no registo especial existente no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (do qual
devem constar, em termos precisos, o objecto da garantia, nomeadamente os códigos fonte – “source” - e
os documentos de funcionamento), sendo a hierarquia entre os diversos credores pignoratícios
determinada pela data de inscrição. Em desenvolvimento deste regime, os art.ºs R132-8 a R-132-17,
estabelecem as menções que devem constar do registo, que o pedido de inscrição da garantia se efectua
através do depósito no INPI de uma nota contendo diversas indicações (designadamente o original ou
cópia do acto constitutivo da garantia), a obrigatoriedade de inscrição no registo de actos que produzam
uma modificação ou extinção dos direitos do devedor (como a cessão ou a concessão de um direito de
exploração do logiciel) ou do credor (como a cessão ou renúncia ao penhor), a caducidade da garantia no
prazo de 5 anos após a inscrição (salvo renovação), a eliminação da inscrição – a requerimento do
devedor, do credor ou de decisão judicial – na sequência da extinção da dívida assegurada e, por último, a
possibilidade de qualquer pessoa poder solicitar ao INPI uma certidão das garantias inscritas ou da
inexistência de qualquer garantia.
2215
Atendendo ao facto de o Code de la Propriété Industrielle não consagrar, em geral, um sistema de
publicidade sobre os direitos de propriedade literária e artística, prevendo normas específicas apenas para
o penhor sobre o logiciel, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 290 e 291, depois de verberar tal solução,
constata que para os demais direitos de propriedade literária e artística não será possível a constituição de
uma garantia - pois “il n’ya aucun moyen de rendre opposable aux tiers une affectation sans
dépossession” – a não ser segundo o modelo tradicional do penhor com desapossamento, o que “Parce
qu’elles constituent des biens d’exploitation (…) est économiquement inconcevable”).
2216
Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36/03, de 5 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 318/07, de 26 de
Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 360/07, de 2 de Novembro, pela Lei n.º 16/08, de 1 de Abril e pelo
Decreto-Lei n.º 143/08, de 25 de Julho.
2217
No direito brasileiro, Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 389, sustenta a impossibilidade de
penhor sobre marcas de fábrica, invocando a natureza impenhorável de tais bens.
2218
Como sejam o nome e insígnia do estabelecimento (art.ºs 282.º a 300.º), logótipos (art.º 301.º a 304-S)
e denominações de origem e indicações geográficas (art.ºs 305.º a 315.º).
2219
Além disso, o n.º 6 do mesmo artigo acrescenta que os factos averbados são também inscritos no
título, quando exista, ou em documento anexo ao mesmo.
2220
Noticiam a empenhabilidade destes direitos, maxime dos brevets e das marcas, já no início do Século
XX, Hardel, ob. cit., págs. 95 e 96 (admitindo que a mesma se processasse através da entrega material do
título de propriedade industrial ou, em alternativa, por meio de uma inscrição no “Office Nacional de la
Propriété Industrielle”) e Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 149 a 154 (constituindo-se a garantia através da
redacção de um documento escrito, sendo a sua oponibilidade condicionada à inscrição num registo
especial criado por uma lei de 1920 – sendo consentida a dação em penhor do mesmo bem a favor de
diversos credores, sendo a respectiva prioridade aferida em função da data do respectivo registo – e não
dispensando, no caso dos brevets, a entrega dos mesmos ao credor). Este último Autor, salienta que um
penhor com este objecto não confere ao seu titular o direito de exploração do quid onerado, mas tão
somente “de veiller à ce que la valeur de l’invention ne soit pas diminué et de réaliser cette valeur à
l’échéance en faisant vendre le brevet (…) d’intenter l’action en contrefaçon contre ceux qui se seraient
fati délivrer postérieurment des brevets ayant pour object la même invention” (cabendo-lhe ainda, na
medida em que esteja na posse do brevet, um direito de retenção, o qual pode estar comprometido em
caso de constituição posterior de outros penhores com entregados brevets a outros credores).
591
brevets,2222 marcas,2223 desenhos e modelos2224 e outros bens semelhantes, recaindo
sobre o monopólio de exploração conferido ao titular de tais direitos por um
determinado período de tempo, após o prévio depósito no INPI.
A circunstância deste monopólio de exploração – ou seja, o objecto do penhor –
ter uma duração temporalmente limitada2225 pode condicionar o interesse de uma
garantia sobre direitos de propriedade industrial, em especial quando se pretenda
assegurar uma obrigação duradoura e/ou futura ou condicional.
Outro risco associado a esta garantia prende-se com a circunstância de a
consistência do objecto destes direitos se encontrar dependente da sua exploração, pelo
que não se poderá indagar até que ponto o dever de conservação não impenda sobre o
próprio constituinte (traduzido na obrigação de exploração dos mesmos),2226 sob pena
de, a não ser assim, o credor se expor a uma perda de valor do bem onerado,2227 muito
embora seja discutível se, por via convencional, se poderá pactuar o aumento do âmbito
da garantia como resultado de elementos adicionados após a respectiva constituição.2228
2221
Como salienta Lisanti–Kalczynsky, ob. cit., págs. 269 e 270, o Code de la Propriété Industrielle não
contém um reconhecimento expresso – e muito menos uma regulamentação própria - das garantias sobre
os direitos de propriedade industrial (excepto no que toca à marca – cfr. art.º L. 714-1), limitando-se a
aludir à possível existência dessas garantias (cfr. art.º R. 613-55, R. 512-15 e 513-2, R. 623-36 e R. 622-
7). Apesar deste silêncio, a Autora admite mesmo a constituição de uma garantia parcial, isto é, que
incida apenas sobre uma parte do direito de propriedade intelectual (rectius, do monopólio de
exploração).
2222
Definidos no art.º L 611-1 do Code de la propriété industrielle como um título emitido pelo Estado e
que confere o direito exclusivo de exploração de uma invenção (para além dos brevets, a lei consagra
ainda a figura do certificado de utilidade – títulos secundários de protecção de uma invenção, com uma
duração de 6 anos - e do certificado complementar, reportado a um brevet pré-existente). Jacques Ghestin
e outros, Droit spécial cit., págs. 454 e 455, destacam a possibilidade de oneração de um simples pedido
de brevet, desde que este tenha sido publicado (caso contrário, tal não sucederá, porquanto a lei impede o
registo de qualquer garantia sem a prévia publicação do pedido), encontrando-se o direito do credor
subordinado à não rejeição do pedido de registo, mas, em caso de aceitação, retroagindo a sua garantia à
data do depósito do pedido de brevet, configurando assim uma garantia sobre um bem futuro (para além
disso, os Autores realçam que, em sede de constituição da garantia, será desnecessária a entrega do título
ao credor pignoratício, sendo a protecção do credor assegurada pela sujeição ao seu consentimento de
qualquer acto de renúncia ao direito por parte do constituinte e realizando-se a execução da garantia
através dos mecanismos comuns, venda ou atribuição judicial).
2223
Signos, com carácter distintivo, susceptíveis de representação gráfica destinados a distinguir os
produtos ou serviços de uma pessoa física ou colectiva (art.º L. 711-1 do Code de la propriété
industrielle).
2224
Respectivamente uma combinação de linhas ou de cores sobre uma superfície plana, que apresentem
uma configuração distinta e reconhecível e, por outro lado, uma combinação de formas que atribuam um
determinado relevo a um objecto (art.º L. 511-1 do Code de la propriété industrielle).
2225
Nos termos do art.º 37.º, n.º 1, alínea a), os direitos de propriedade industrial caducam uma vez
expirado o respectivo prazo de duração, o qual é fixado em 20 anos para as patentes (art.º 99.º), 6 anos,
renovável por duas vezes, até um máximo de 10 anos, para os modelos de utilidades (art.º 142.º, n.ºs 1 a
4), 10 anos para as topografia de produtos semi-condutores (art.º 162.º), 5 anos, renováveis até um
máximo de 25 anos, para os desenhos e modelos (art.º 201.º, n.º 1), 10 anos, infinitamente renováveis,
para as marcas e os logótipos (art.ºs 255.º e 304.º-L). Analogamente, no direito francês, os art.ºs L. 411-2,
712-1, 623-13 e 622-5 do Code de la propriété industrielle, estabelecem igualmente uma duração
temporária do exclusivo de exploração dos direitos de propriedade industrial.
2226
Sobre a especial configuração do dever de conservação quando sejam onerados bens desta índole,
vide supra n.º 9.2.3 do Capítulo I.
2227
Destacam este aspecto Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 249.
2228
Lisanti–Kalczynsky, ob. cit., págs. 281 e 282, exclui esta possibilidade quanto a bens que já
existissem no momento da constituição da garantia (e nela não tenham sido incluídos), mas admite-a
quanto a bens surgidos apenas após essa data (desde que as partes, no momento da constituição da
garantia, contemplem expressamente essa possibilidade).
592
1.2.8.3 - Valores mobiliários
593
No primeiro caso, bastará o registo na conta do respectivo titular2235 (com
indicação da quantidade empenhada, da obrigação garantida e do beneficiário do
penhor), tendo em conta que estes valores mobiliários escriturais se constituem através
respectivamente, o emitente tenha ou não a faculdade de conhecer, a todo o tempo, a identidade do seu
titular (conforme realça Soveral Martins, ob. cit., pág. 216 e segs., o cerne da distinção radica não no
conhecimento efectivo, mas antes na possibilidade ou não de identificação dos titulares dos valores
mobiliários: quanto aos valores titulados nominativos, a sociedade emitente alcança a identidade dos
titulares mediante consulta dos próprios registos ou dos do intermediário financeiro que o representa –
cfr. art.º 102.º do CVM; quanto aos valores mobiliários nominativos escriturais, tal informação terá que
ser solicitada à entidade registadora – art.º 85.º, n.º 1, alínea c), do CVM. Pelo contrário, nos valores
mobiliários titulados ao portador, a transmissão faz-se pela simples entrega do título, sem intervenção do
emitente – art.º 101.º do CVM; no caso de valores escriturais ao portador, a entidade registadora não tem
o dever de prestar informações à sociedade emitente). Em face do direito espanhol, Veiga Copo, La
prenda de acciones cit., págs. 111 e 112, esclarece que a distinção entre as acções tituladas nominativas e
ao portador reside no facto de, nestas últimas, a legitimidade para o exercício dos direitos sociais derivar
unicamente da posse do título, ao passo que as acções nominativas, apesar de estes indicarem o nome da
pessoa a quem corresponde o direito de participação, o exercício dos direitos correspondentes encontra-se
sujeita à posterior inscrição no livro registo de acções, “un libro registro que es llevado por la sociedad y
en el que se dejará constancia de las sucesivas transmissiones de las acciones así como la posible
constitución de derechos reales limitados”
2234
Soveral Martins, ob. cit., págs. 217 e 218, depois de esclarecer que, em regra, os estatutos das
sociedades são livres de alterar a forma inicialmente escolhida, adverte para a existência de casos em que
a lei obriga à adopção da forma nominativa para as acções (quando não estejam integralmente liberadas
ou estejam sujeitas a limitações quando à sua transmissão – cfr. art.º 299.º do CSC), mas que a regra é a
da liberdade de escolha por parte da sociedade emitente (embora tal escolha deva constar
obrigatoriamente do contrato de sociedade – cfr. art.º 272.º, alínea d), do CSC – podendo tal cláusula ser
posteriormente alterada - excepto se o próprio contrato expressamente excluir tal possibilidade – até
porque a regra é a da livre convertibilidade – art.º 53.º do CVM, de acordo com o qual, salvo disposição
legal, estatutária ou de condições especificadas em cada emissão, os valores mobiliários ao portador
podem, por iniciativa e a expensas do seu titular, convertidos em nominativos e vice-versa). Se, em regra,
a opção pertence à sociedade emitente, este deve ponderar as vantagens de cada uma dessas modalidades,
a saber, quanto às acções ao portador o maior anonimato decorrente do seu regime de transmissão, a
maior simplicidade deste último (o que permitirá, tendencialmente, aumentar a negociabilidade dos títulos
e a capacidade de financiamento da sociedade, facilitando o controlo de quem se apresente para exercer
os direitos sociais, sem ter que consultar qualquer registo), embora apresentem alguns inconvenientes (o
anonimato pode não interessar à sociedade - que pode pretender saber, em cada momento, quem são os
seus sócios -, o risco de depreciação inerente à maior negociabilidade e os entraves decorrentes da
necessidade de exibição do título para o exercício dos direitos sociais); já no que concerne às acções
nominativas, as suas virtudes assentam na possibilidade de a sociedade conhecer, a todo o tempo, o titular
da participação (para, desse modo, poder controlar quem é responsável pelas acção não liberadas, quem
pode exercer os direitos sociais, para informar os accionistas dos factos relativos à actividade social,
especialmente atendendo à evolução da informática), bem como o aumento da possibilidade de
financiamento (uma vez que muitas das bolsas de valores mundiais impõem, como requisito de admissão
à negociação das acções, a sua natureza nominativa), apesar de também não estarem isentas de
desvantagens (maiores custos no momento da emissão e, em razão da necessária intervenção da
sociedade, no momento da transmissão – sendo certo que tais custos poderão ser sensivelmente reduzidos
através do recurso às novas tecnologias da informação e da comunicação -, bem como a impossibilidade
de a sociedade conhecer a identidade dos seus associados) – sobre este assunto, vide Soveral Martins, ob.
cit., págs. 218 a 225. concluindo que, normalmente, a preferência vai para os títulos ao portador,
reservando-se as acções nominativas para os casos em que a sociedade se mostre interessada em conhecer
a identidade dos seus sócios: todavia, a sociedade não tem obrigação de emitir os títulos, excepto se for
intimada para o efeito pelos sócios.
2235
Ou seja, a constituição de penhor é uma menção que fica a constar da conta de registo individualizada
(art.º 68.º, n.º 1, alínea g)), devendo, além disso e caso se trate de valores mobiliários negociados sistema
centralizado, ser abertas junto da entidade gestora desse sistema sub-contas específicas relativas a valores
mobiliários empenhados (art.º 91.º, n.º 7).
594
de registos em contas individualizadas abertas junto das entidades registadoras (art.ºs
73.º). 22362237
2236
Em termos semelhantes, no direito espanhol e segundo Pries Picardo, Prenda sobre valores privados
representados mediante anotaciones en cuenta. Especial consideración sobre los valores cotizados em
Bolsa, in Tratado de garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I., Civitas, 1996, pág. 701 e
segs., no penhor sobre este tipo de valores mobiliários o desapossamento do devedor é assegurado através
da inscrição da garantia na conta correspondente, a qual tem carácter constitutivo (assim, Fernando
Bautista Pérez, Prenda de acciones y prenda de cartera de valores, in Garantías reales mobiliarias en
Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 50 e De la Santa
Garcia, Prenda de valores cit., págs. 172 e 193, esclarecendo este último que tal não impede a
formalização anterior do contrato de penhor, mas sem que o mesmo possa produzir efeitos, mesmo entre
as partes, antes de inscrito no registo). De acordo com o mesmo Autor, a inscrição deverá ser efectuada
(muito embora a lei não indique quem deva requerer a inscrição da garantia no registo, Veiga Copo, La
prenda de acciones cit., pág. 218, admite que a legitimidade para o efeito caiba ao empenhante e ao credor
pignoratício), quando exista consentimento do credor e do devedor e desde que a entidade encarregue do
registo constate a existência de um título verdadeiro, válido e bastante para a constituição da garantia
(como salienta Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 218, são necessárias duas premissas para
proceder à inscrição – “que el deudor ha de tener previamente inscritos a su favor los valores objeto del
gravamen” e “que quede suficientemente acreditada la celebración del contrato de garantía ante la
entidad encargada del registro”, através da demonstração do consentimento de ambas as partes no
contrato de garantia, não bastando a mera declaração verbal de ambas - e esta processa-se em duas fases
distintas: “una de acreditación del título constitutivo frente a la entidad encargada del registro y otra de
efectiva inscripción por la entidad”), devendo a inscrição ser negada em caso de inexistência ou
insuficiência do título do adquirente (como sucederá quando as acções a empenhar se encontrem sujeitas
a limitações quanto à sua empenhabilidade – caso em que a entidade registadora deve diligenciar, antes de
efectuar o registo, junto da entidade emissora para que esta se pronuncie acerca da validade do negócio - e
quando exista anterior inscrição incompatível com a que se pretende efectuar – Veiga Copo, ult. ob. e loc.
cit.). Porém, se os valores mobiliários empenhados houverem sido admitidos a negociação, será ainda
necessária a sua separação dos demais de que eventualmente o empenhante seja titular – de modo a
permitir a sua individualização, assim perdendo a sua fungibilidade – com o efeito de “Los valores
afectados por estos desgloses no podrén ser objeto de tráfico bursátil. Ello non implica su impossibilidad
de transmissión, que, naturalmente, puede producirse siempre con la carga hasta que ésta sea levantada”
– cfr. Pries Picardo, ult. ob. e loc. cit.). Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 191 e segs., distingue
consoante as acções não se encontrem submetidas a negociação (hipótese na qual bastará o registo nas
sociedades ou agências de valores do qual conste a propriedade do empenhante, ou seja, o processo
compõe-se, como sintetiza Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 182, de apenas duas fases: a
acreditação do título constitutivo perante a entidade aderente e a inscrição no registo, a partir da qual os
valores não poderão ser transmitidos desacompanhados do ónus que sobre eles passa a impender) ou, pelo
contrário, tal suceda (caso em que a complexidade aumenta, porque ao lado do registo central – no qual se
deverão inscrever todos os ónus relativos às acções admitidas à negociação, existindo uma conta para
cada uma das entidades aderentes ao sistema – existe o registo das próprias entidades aderentes, que
reflecte, separadamente para cada cliente, o saldo das acções dos clientes depositantes e do qual deverá
constar a titularidade do empenhante). Finalmente, depois da inscrição produzir-se-á o “desglose” que
permite identificar os bens empenhados e eliminar a sua fungibilidade e, se estiverem sujeitas a
negociação, não poderão ser transmitidas em bolsa, cabendo ao credor - nomeadamente para efeitos de
exercício dos direitos sociais inerentes às participações empenhadas - o direito de requerer à entidade
registadora da garantia um certificado de legitimação que ateste o registo da garantia (que não se
confunde com o outro certificado que pode ser requerido pelo titular dos valores e que atesta o seu direito
de propriedade, o qual deverá ser devolvido à entidade registadora para a inscrição do penhor, sendo que
“Expedido el certificado a favor del disponente, las entidades adheridas o encargadas de los registro
contables no podrán dar curso a transmissiones o grávamenes, ni praticar las correspondientes
inscripciones, en tanto los certificados no hayan sido restituidos” – Mejias Gomez, ult. ob. e loc. cit.: ou
seja, enquanto o certificado que pode ser requerido pelo credor pignoratício produz efeitos quanto à sua
legitimação para o exercício de direitos sociais inerentes à acção, o certificado que seja referente à
propriedade, esse sim, com a sua devolução, produz a imobilização dos valores a que se refere – Veiga
Copo, La prenda de acciones cit., pág. 231), do qual devem constar diversas menções (a identificação do
titular dos valores, a existência de ónus sobre os mesmos, a identificação do emissor, a emissão a que
pertencem, a classe e o valor nominal) e, em caso de oneração de apenas parte dos valores integrados
numa mesma conta, dever-se-ão separar estes dos não empenhados (cfr. De la Santa Garcia, Prenda de
595
valores cit., pág. 167). Em suma e como salienta Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 182 o penhor
de valores sujeitos a negociação subdivide-se em três fases “1. La acreditación del título constitutivo ante
la Entidad adherida. 2. La inscripción de la prenda. 3. El desglose de los valores afectados” (em termos
mais precisos e de acordo com De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 187 e segs., antes de
formalizar o contrato de penhor, o credor deve comprovar a legitimidade do constituinte para onerar os
valores mobiliários, o que fará normalmente através do requerimento de um certificado de legitimação à
entidade registadora de acordo com os dados constantes do registo e dos quais conste o direito de
propriedade deste sobre aqueles valores – excepto se o credor for uma destas entidades, caso em que será
desnecessária a expedição daquele certificado – e, posto isto, apresentará à entidade registadora o contrato
de penhor, devendo esta atestar a existência do consentimento de ambas as partes para a constituição da
garantia e comprovar a titularidade do constituinte em face dos dados constantes do registo e, se for caso
disso, procederá à inscrição da garantia: uma vez inscrita, a garantia torna-se imediatamente oponível a
terceiros, devendo ser emitido um certificado a favor do credor pignoratício atestando a constituição da
garantia, ficando os valores onerados imobilizados registalmente).
2237
A lei francesa de 1983, posteriormente alterada em 1996, dispunha que a garantia se constituía através
de uma simples declaração data e assinada pelo titular da conta à qual pertenciam os valores a onerar,
ficando o organismo detentor da conta obrigado a transferir os valores empenhados para uma outra conta
específica e a entregar ao empenhante um documento comprovativo da operação (mais precisamente e
como esclarece Daniel Fasquelle, ob. cit., pág. 1, o art.º 29.º da Lei n.º 83-1, de 3 de Janeiro de 1983,
permitia “la constitution en gage des valeurs mobilières est réalisée tant à l’égard de la personne morale
émittrice que des tiers par une déclaration datée et signée par le titulaire”, devendo os títulos ser
remetidos para uma conta especial aberta em nome da sociedade emitente dos valores onerados ou de um
intermediário financeiro, sendo entregue ao credor pignoratício um documento comprovativo da
constituição do penhor), muito embora tal declaração pressuponha um prévio acordo das partes (e, por
isso, tal declaração “ne peut que matérialiser ce que le créancier gagiste et et le débiteur ont
preálablement convenue” - Daniel Fasquelle, ob. cit., pág. 7), consagrando, desse modo, uma hipótese de
sub-rogação do objecto da garantia, ao dispor que todos os títulos que viessem substituir ou
complementar os inicialmente empenhados, por via de troca, reagrupamentos, divisões, atribuições
gratuitas, subscrições em numerário ou outras, se encontravam, salvo estipulação em contrário, integrados
na garantia pignoratícia (porém, o último Autor citado alerta para duas interpretações diversas desta
norma, uma mais restritiva, admitindo apenas o funcionamento do instituto nos casos expressamente
previstos no preceito citado e outra, mais lata, consentindo a operatividade da sub-rogação real de modo
geral, com fundamento na parte final do preceito que fala, genericamente, de outras operações - de acordo
com esta segunda interpretação, seria possível empenhar um portefólio de valores mobiliários e
encarregar o credor pignoratício de o gerir do modo que entendesse mais conveniente, assim fazendo
frutificar o bem onerado) -: o Autor, admite mesmo que, sem autorização expressa das partes, a entidade
gestora da conta onde esses valores se acham registados possa socorrer-se da figura da sub-rogação
quando os valores onerados se vençam antes do crédito garantido - a menos que o credor disponha de um
mandato do devedor para proceder, ele próprio à cobrança - ou quando pretenda evitar uma depreciação
dos mesmos, reutilizando as quantias obtidas na aquisição de novos valores mobiliários). Para além disso
e segundo Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 40 e segs., decorria do regime legal a possibilidade de o
credor pignoratício cobrar os dividendos e compensá-los com o seu crédito (por aplicação do regime
civilístico dos frutos), a consagração expressa da sub-rogação real (em caso de novos títulos virem ou
complementar os originariamente onerados, em resultado de operações de troca, reagrupamento ou
atribuição gratuita), a configuração do penhor da conta de valores mobiliários como tendo por objecto
uma universalidade de facto (de tal forma que “plus que les biens eux-mêmes, c’est le réceptacle qui sert
de support au gage”) e a celeridade de execução da garantia, especialmente quando incidisse sobre
valores mobiliários cotados em mercado oficial (caso em que se procederá à alienação de acordo com a
cotação em vigor nessa data). Importa referir que tal regime foi, posteriormente, incorporado nos art.ºs
L431-4 e L431-5 do Code Monétaire et Financier, dele constando igualmente o reconhecimento
normativo do penhor sobre um portefólio de valores mobiliários – ou, mais genericamente, sobre uma
universalidade de bens – assim como da rotatividade sem efeitos novatórios – ao prever-se, em termos
gerais, que o objecto do penhor se espraia de modo a abranger também os instrumentos financeiros que,
por qualquer meio, venham substituir ou complementar os inicialmente constantes da conta onerada, bem
como aos dividendos por estes produzidos - e a atribuição ao credor de um direito de retenção fictício
sobre o quid onerado (posteriormente, através da Ordonance n.º 2009-15 de 8 de Janeiro de 2009, esta
norma foi inserida no art.º L211-20 do mesmo Código, sendo agora as referidas soluções aplicáveis, já
não aos valores mobiliários, mas a uma nova categoria apelidada pelo legislador como instrumentos
financeiros – que, de acordo com o art.º L211-1, integra os títulos de capital emitidos pelas sociedades
596
anónimas, os títulos de créditos, com excepção das letras de câmbio, e as quotas ou acções dos fundos de
investimento). Em termos análogos, vide Stéphane Piedelièvre, ob. cit., págs. 198 e 199 (realçando, ainda,
que o desrespeito das formalidades legais gerava unicamente a inoponibilidade da garantia a terceiros e,
por outro lado, o reconhecimento expresso de um direito de retenção ao credor pignoratício, o qual
parecia excluir a possibilidade de posterior oneração dos mesmos valores mobiliários a favor de outros
credores). Segundo Daniel Fasquelle, ob. cit., págs. 2 e 3, o penhor de valores mobiliários é utilizado com
frequência como garantia da concessão de crédito bancário (normalmente acompanhado de um contrato
de gestão dos valores empenhados, com base no qual o banco credor procede à respectiva conservação) e
também como penhor judicial (que, nos termos da lei geral, é publicitado de através de notificação da
sociedade emitente dos valores – tornando, assim, a garantia oponível a terceiros – constituindo-se a
garantia sem necessidade de entrega do bem ao credor ou a terceiro, razão pela qual o Autor entende
“qu’il s’agisse plus d’une nouvelle hypothèque mobilière que d’un véritable gage”). Ainda segundo este
último Autor (ob. cit., pág. 8 e segs.), a dação em penhor de valores mobiliários, especialmente de
participações sociais, pode estar sujeita a diversos constrangimentos, sejam eles relativos às partes no
contrato de garantia (nomeadamente quando seja necessário o acordo prévio da sociedade emitente, a
manifestar através de notificação ao credor pignoratício – e, mesmo quando tal consentimento seja
prestado, a posição do credor não é absolutamente segura, uma vez que a sociedade poderá, mesmo tendo
prestado o seu consentimento, adquirir as participações e reduzir o capital social, desta forma evitando a
entrada de sujeitos indesejáveis na sociedade - ou esta sociedade disponha de um direito de preempção
relativamente às participações oneradas; outro tipo de limitações decorre da própria lei, uma vez que esta
interdita a aceitação em penhor, por parte de uma sociedade, das próprias acções, evitando que, em caso
de execução da garantia, se apodere das suas próprias participações, assim criando um capital social ao
qual não corresponda um activo real) ou ao próprio objecto, seja em razão do seu carácter futuro (que
torna inviável a constituição de penhor sobre bens corpóreos – em razão da exigência de desapossamento
– mas não sobre bens incorpóreos, para os quais o desapossamento se poderá efectuar através de outros
mecanismos – registo, notificação ou outros –, pelo que “Rien ne s’oppose par conséquent à la validité
dela mise en gage de biens incorporels futurs si certaines conditions sont remplies. Il este nécessaire
notamment que la somme due, l’espèce et la nature du bien donné en gage soient précisées. Il faut
également que les formalités de la mise en gage qui remplacent la dépossession soient effectuées”,
condições essas preenchidas a respeito do penhor de valores mobiliários desmaterializados, assim
consentindo, por exemplo, o penhor de participações sociais em caso de aumento de capital – entre o
momento em que este é deliberado e a data da concretização efectiva da operação - e de sociedades em
processo de formação: é certo que, em todas estas hipóteses, o bem futuro poderá nunca chegar a surgir,
mas esse é um risco que corre o credor pignoratício), seja por força da respectiva inalienabilidade. No que
especificamente respeita ao cumprimento do requisito do desapossamento – imposto como condição,
salvo disposição especial em contrário, para a constituição do penhor – e depois de considerar este, na
ausência de tal norma em contrário, como um penhor com desapossamento (pois, por um lado, a citada
Lei de 1983 manda aplicar o regime legal comum da cessão à cessão de valores mobiliários – não sendo
de crer que pretenda uma solução diversa para o penhor – para além de, neste caso, não se verificarem os
inconvenientes da entrega do bem ao credor que motivam a criação de penhores sem desapossamento e,
finalmente, pelo facto de a lei não ter organizado nenhum modo de protecção do credor substitutivo do
desapossamento), considerando que este se produz, não pela inscrição no registo (como se poderia
entender antes da desmaterialização, uma vez que, então o desapossamento resultava da inscrição no
registo da sociedade), mas sim pela simples declaração, não sujeita a qualquer formalismo específico, do
titular dos valores mobiliários dirigida à entidade gestora da conta (declaração esta a que se seguirá o
registo e, posteriormente, a emissão de um documento comprovativo do registo ao credor pignoratício, até
porque a lei fala da transferência dos valores empenhados para uma conta especial, o que significa “que la
mise en gage a déjà eu lieu quand le teneur de compte procède à l’inscription au compte spécial et a
fortiori quand il délivre l’attestation”), não bastando a simples declaração, sendo ainda indispensável que
a mesma chegue ao seu destinatário (funcionando, assim, a declaração como um acto unilateral receptício,
que apenas produz efeitos se e quando seja recebida pelo respectivo destinatário), produzindo como efeito
principal a indisponibilidade dos valores empenhados, traduzida na impossibilidade de transferir aqueles
valores para outra conta (embora o titular dos valores os possa ceder, se bem que essa cessão será
inoponível ao credor pignoratício), muito embora tal indisponibilidade não seja efectuada, de modo
imediato, a favor do credor pignoratício, uma vez que os bens empenhados não são inscritos na conta
deste, nem tão pouco a declaração de constituição do penhor lhe é dirigida: assim sendo, se só a entidade
gestora da conta pode bloquear e evitar a transferência dos valores empenhados, esta transforma-se num
terceiro detentor. Esta declaração permite individualizar os valores mobiliários onerados e assegurar uma
publicidade da garantia através do gestor da conta (encontrando-se este numa situação análoga à do
597
Porém, se as partes acordarem na atribuição do direito de voto ao credor
pignoratício (cfr. art.º 23.º do CSC), o penhor poderá constituir-se por registo em conta
do credor pignoratício (art.º 81.º, n.º 2, do CVM).2238
Todavia, a entidade encarregue do registo variará consoante os valores se
encontrem admitidos à negociação em mercado regulamentado2239 (caso em que serão
obrigatoriamente integrados em sistema centralizado – art.ºs 61.º, alínea a) e 62.º), ou
não, sendo que, nesta segunda hipótese, poderá existir um único intermediário
financeiro indicado pelo emitente (art.ºs 61.º, alínea b) e 63.º, n.º 1, enumerando este
último preceito os casos em que o registo nesse único intermediário é obrigatório,
excepto se houver integração em sistema centralizado) ou o registo poderá ser efectuado
directamente junto do emitente (porém, este regime apenas vale para os valores
mobiliários nominativos não integrados em sistema centralizado, nem registados num
único intermediário financeiro e pode ser substituído por registo com igual valor por
parte de intermediário financeiro que actue como representante do emitente - art.ºs 61.º,
alínea c) e 64.º, n.ºs 1 e 2).2240
terceiro devedor do crédito onerado, no penhor de créditos, competindo-lhe advertir os terceiros que se
lhe dirijam da existência do penhor). Quanto ao papel do registo da garantia numa conta especial, o Autor
sustenta que o mesmo assume uma função probatória, “L’inscription au compte spécial présumirait alors
la dépossession et donc la constitution du gage, jusqu’à preuve en contraire (…) s’agissant d’uen bien
meuble corporel dont la gestion est organisée par un tiers, le créancier n’a pas d’autres moyens de
démontrer que la dépossession a eu lieu et par la même que le gage est formé”: em suma, aquela
declaração é condição de atribuição de efeitos do penhor face às partes (pois se dependesse do registo “la
constitution même du nantissement seriat laissé au bom vouloir du teneur du compte et dépendrait du
moment à partir duquele celui-ci serait disposé à procéder à ces différentes formalités (…) la protection
du créancier dépend du moment à partir duquel la dépossession est réalisée. Il est donc dans son intérêt
qu’elle ait lieu dês le moment où le teneur de compte a connaissance de l’accord”) e face a terceiros (pois
o registo não comporta uma função rigorosamente publicitária, porquanto, quer a conta do devedor
empenhante, quer a conta especial para a qual são transferidos os valores onerados, não são de acesso
livre a terceiros), cabendo ao registo uma função meramente probatória.
2238
Para Sofia Maltez, ob. cit., pág. 18 e Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 64, o registo na conta do
credor pignoratício é uma faculdade e não um dever (alertando este último para o facto de, sendo o
penhor registado na conta do titular das acções, o credor poder exercer o direito de voto através da
apresentação de um certificado emitido pela entidade registadora. Durante o prazo de vigência deste
certificado, a acção é alvo de um bloqueio – cfr. art.º 72.º, n.º 1, alínea a) - , tornando-se inviáveis todos
os actos de disposição voluntária por parte do seu titular).
2239
De acordo com o art.º 199.º do CVM, consideram-se mercados regulamentados aqueles sistemas
multilaterais, autorizados por qualquer Estado membro da União Europeia, que funcionem regularmente
com a finalidade de possibilitar o encontro de interesses relativos a instrumentos financeiros com vista à
celebração de contratos sobre tais instrumentos, encontrando-se sujeitos a registo na CMVM (art.º 202.º,
n.º 1) e dependendo a sua criação de autorização do Ministro das Finanças (art.º 217.º, n.º 1), exigindo-se
ainda o cumprimento de um conjunto de requisitos respeitantes aos valores mobiliários em geral e ao
respectivo emitente (art.º 227.º), requisitos mais exigentes quando seja requerida a admissão num
mercado com cotações oficiais (art.ºs 228.º a 230.º). Príes Picardo, ob. cit., págs. 679 a 681, distingue os
mercados primários (destinados exclusivamente à emissão de valores mobiliários) dos mercados
secundários, nos quais os mesmos valores são objecto de negociação e que se subdividem em oficiais
(cujos exemplos paradigmático são as bolsas de valores e os mercados de dívida pública) e não oficiais:
em face do regime espanhol, são empenháveis os valores mobiliários cotados em mercados secundários,
mesmo que não oficiais, embora exista um sistema de execução mais expedito reservado para aqueles
cotados em mercados oficiais.
2240
Como salienta Sofia Maltez, ob. cit., pág. 12, notas 17 e 18, o registo da titularidade dos valores
mobiliários nestas contas individualizadas varia consoante aqueles estejam ou não integrados em sistema
centralizado (o qual Soveral Martins, ob. cit., pág. 284, se caracteriza por ser formado por um conjunto de
contas, em que se integram as contas de registo individualizado). Na primeira hipótese, os registos podem
ser efectuados em contas abertas em diversos intermediários financeiros autorizados, cabendo ao
investidor escolher qual (o que poderá originar a dispersão desses registos por diversos intermediários);
na segunda, a entidade emitente indica um único intermediário financeiro para efectuar o registo. Importa,
598
Seja como for, quando a sociedade emitente não seja a encarregue do registo, é
discutível se será imperiosa a notificação a esta constituição da garantia,2241 parecendo
que uma resposta afirmativa mais defensável quando se trate de valores nominativos2242
(pese embora o facto de, mesmo quando tal comunicação não seja efectuada, o credor
pignoratício não ficar inibido de exercer os direitos sociais que lhe compitam, uma vez
que poderá requerer um certificado de legitimação que lhe consentirá aquele exercício –
art.ºs 78.º, n.º 2 e 83.º), parecendo mais curial considerar esta comunicação como um
contudo, não confundir estas contas de registo individualizadas com as contas de emissão (que são abertas
na entidade emitente das acções e representam a quantidade de acções emitidas, sendo da competência
desta os respectivos registos, dos quais devem constar as menções previstas no art.º 44.º) e com as contas
de controlo (que são abertas na entidade gestora do sistema pelos emitentes – contas de controlo da
emissão – e pelos intermediários financeiros – contas de controlo das contas de registo individualizados),
cujo objectivo é o de verificar que a soma dos saldos das contas de emissão corresponde à soma dos
saldos das contas individualizadas de titularidade. No direito espanhol, Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 224 e segs., destaca como a constituição de penhor sobre acções cotadas em bolsa
obedece a uma dupla inscrição (no registo central, que se decompõe em tantas contas quantas forem as
entidades aderentes ao sistema, distinguindo, para cada uma destas, uma conta própria – da qual consta o
número de acções de que seja titular tal entidade – e uma conta de terceiros, na qual figura a conta global
de valores dessa emissão que a entidade aderente administra em nome dos seus clientes; e também no
registo detalhado detido por cada uma das entidades aderentes. Na prática, o Autor anuncia que a
inscrição se faz neste último registo quando se trate de valores propriedade de clientes particulares – sem
prejuízo da posterior comunicação e inscrição no registo central - e exclusivamente no registo central
quando os valores a onerar pertençam às próprias entidades aderentes), ao passo que se tal não suceder
bastará uma única inscrição (junta de entidade escolhida pela entidade emissora dos valores): de qualquer
modo, qualquer destas inscrições deverá conter o número da operação, a data da operação, a data do
registo, o número de valores abrangidos, o código de valor (que permite identificar o nome e a descrição
da emissão, o tipo de juros, a amortização e data de pagamento do cupão, a moeda em que está
denominado o título), as referências do registo afectado com a operação e o número de valores por
referência de registo (para além disso, a inscrição será identificada através de uma série de códigos
informáticos que permitem seguir as vicissitudes de cada direito e ainda, no caso específico do penhor,
um número específico de operação que permita conhecer a mesma). Em termos aproximados, Bautista
Pérez, ob. cit., pág. 55, distinguindo o registo central (do qual consta uma conta contendo o saldo global
de todos os valores que cada entidade aderente tenha registados nas suas contas a favor de terceiros e,
ainda, uma outra que reflecte os valores propriedade da própria entidade aderente), dos registos das
diversas entidades aderentes (dos quais constam, por referência a cada valor, as contas correspondentes a
cada titular, espelhando em cada momento o saldo que lhe pertença).
2241
Apesar de a lei apenas estabelecer, de modo indirecto (ao prever, no art.º 93.º, alínea b), o dever da
entidade gestora daquele sistema fornecer à sociedade emitente os elementos necessários para o
exercícios dos direitos patrimoniais inerentes aos valores mobiliários registados e para o controlo do
exercício de tais direitos: ora, na medida em que tais direitos podem ser atribuídos ao credor pignoratício,
a constituição da garantia deverá ser comunicada ao emitente), tal comunicação quando os valores
onerados se encontrem integrados num sistema centralizado, a mesma solução poderá ser equacionada
quando a entidade incumbida do registo de valores mobiliários seja um intermediário financeiro, tendo
em conta a influência que a constituição de um penhor (nomeadamente ao nível do exercício dos direitos
sociais por parte do credor pignoratício) pode assumir na realidade societária. Porém, a solução contrária
– ausência deste dever de notificação à sociedade emitente - pode fundar-se na circunstância de, por um
lado, tal exigência apenas vigora para o penhor de créditos (art.º 681.º, n.º 2) e o penhor de valores
mobiliários não ser um penhor de créditos e, por outro, uma vez que a função publicitária da notificação
será cumprida pelo registo (isto sem prejuízo da possibilidade de esta solicitar às entidades registadoras os
elementos constantes das contas de registo das acções nominativas e, assim, conhecer a existência do
penhor) – adopta este segundo entendimento, Sofia Maltez, ob. cit., pág. 20 e segs, no qual nos revemos,
mas não sem salvaguardar que o intuito publicitário do registo não será cabal, na medida em que, como se
verá adiante, esse registo não é de consulta pública.
2242
Com efeito, apenas quanto aos valores nominativos a sociedade emitente tem a faculdade de conhecer
a identidade dos respectivos titulares, daí não surpreender que apenas relativamente a estes a lei
estabeleça expressamente um dever das entidades registadoras prestarem as informações que lhe sejam
solicitadas pela sociedade emitente – cfr. art.º 85.º, n.º 1, alínea c), do CVM.
599
ónus a cargo da entidade registadora,2243 mas nunca uma condição de eficácia da
garantia.2244
Independentemente da existência de um regime legal específico ditado para os
valores mobiliários, há quem admita que este tipo de bens possa continuar a ser
empenhado através do recurso às regras gerais do penhor, maxime do penhor de
créditos.2245
Ainda de acordo como o regime ditado pelo Código dos Valores Mobiliários,
para proceder à constituição da garantia, deverá ser solicitada a inscrição do ónus à
entidade registadora, bem como devolvido o certificado porventura anteriormente
expedido por aquela mesma entidade atestando a ausência de ónus ou encargos (nos
termos do art.º 78.º, n.º 1), à qual caberá ainda comprovar que os valores a empenhar se
encontram inscritos em nome do constituinte (art.º 70.º) e que o pedido é instruído com
documentos bastantes para prova do facto a registar (art.º 67.º, n.º 1).2246
2243
Ou, no mínimo, incumbindo a esta um dever de resposta aos pedidos de informação que lhe sejam
dirigidos pelas sociedades emitentes, dever esse inequivocamente consagrado, no que respeita aos valores
mobiliários nominativos, no já citado art.º 85.º, n.º 1, alínea c), do CVM.
2244
Neste sentido para o direito espanhol Diaz Moreno, ob. cit., págs. 394 e 395, assegurando ser o registo
a única condição para a produção de efeitos da garantia, sobretudo porque “La equiparación entre la
inscripción de la garantía y el desplazamiento posesorio del título permite deducir que la entidad
emisora no puede desonocer la prenda constituida argumentando que no le ha sido notificada. Y en
ningún caso es necesaria la notificación o comunicación alguna para el nacimiento del derecho” e, em
termos aproximados, Salinas Adelentado, El régimen cit., pág. 182 (esclarecendo que a comunicação da
inscrição, por parte da entidade encarregue do registo, à sociedade emissora para efeitos de inscrição no
livro de sócios, não é essencial para o nascimento da garantia). Todavia, Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., págs. 131 e 215, (apesar de reconhecer que a regra aponta no sentido de a inscrição – que
comporta a atribuição de uma referência numérica de registo - não tornar necessária a comunicação da
constituição da garantia à entidade emissora dos valores empenhados, até porque não existe um livro de
registo de acções, com acontece para as acções tituladas nominativas: por ser assim, a inscrição no registo
tabular é a única condição de exercício dos direitos sociais inerentes às acções representadas por
anotações em conta) esclarece que, quando se trate de valores obrigatoriamente nominativos, a entidade
encarregue do registo deve comunicar oficiosamente a constituição da garantia à sociedade emitente
(quanto às demais acções, a comunicação só se produzirá a pedido desta última).
2245
Neste sentido, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 204 a 207, defendendo a possibilidade
de uma cessão limitada deste tipo de valores mobiliários e alegando que a constituição do penhor se
verifica em razão do cumprimento das regras da cessão de créditos e independentemente da inscrição
tabular (a qual poderá ser solicitada pelo credor para, desse modo, desfrutar da protecção conferida por
esse registo), dispensando até a necessidade de notificação do devedor, in casu a sociedade, uma vez não
existirem normas de protecção da confiança de terceiros em matéria de circulação de direitos incorpóreos
e, por isso, a notificação não poder ser equiparada ao desapossamento do devedor (embora o credor possa
ter interesse em efectuar tal notificação, designadamente para obter uma legitimação para o exercício dos
direitos sociais).
2246
De acordo com Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 63, o requerimento de registo, que deverá ser
acompanhado da documentação comprovativa da celebração do contrato de penhor, pode ser apresentado
pelo titular das acções ou pelo credor pignoratício (cfr. art.ºs 66.º, n.º 2 e 67.º do CVM). Por outro lado, a
não realização atempada do registo pela entidade competente, após a recepção do pedido, pode originar a
sua responsabilidade civil (cfr. art.ºs 87.º e 94), designadamente pelos prejuízos resultantes de entretanto
ter ocorrido uma transmissão das acções em questão e, por força da ausência do registo, o penhor não ser
oponível ao adquirente. Assim, para o direito espanhol, Diaz Moreno, ob. cit., págs. 395 e 396,
salientando que, na comprovação da legitimidade do empenhante, a entidade encarregue do registo deverá
verificar apenas a sua titularidade formal (se figura inscrito no registo como titular) e a devolução dos
certificados, não incorrendo em responsabilidade (por exemplo, reclamada, em caso de aquisição de
penhor a non domino, pelo verdadeiro proprietário) sempre que actue dessa forma (para além disso, o
Autor entende que deverá ser investigada, com um mínimo de diligência, a autenticidade das ordens de
inscrição das garantias – designadamente confrontando a assinatura do empenhante no momento da
transferência com a constante do acto de aquisição dos mesmos valores): em suma, não parece que estas
entidades possuam “una función calificadora y de control de legalidad semejante a la que corresponde a
los registradores de la propriedad y mercantiles”.
600
Uma vez que a inscrição no registo pressupõe um contrato de garantia anterior, a
legitimidade para requerer o registo assiste ao constituinte da garantia e ao credor
pignoratício (art.º 66.º, n.º 2), sendo para o efeito necessária uma ordem escrita do
primeiro ou um documento bastante para a prova do facto que se pretende inscrever – e
que, no caso do penhor, pode ser o próprio contrato de constituição da garantia - (art.º
67.º, n.º 1),2247 dele devendo constar a indicação da quantidade de acções dadas em
penhor, da obrigação garantida e a identificação do credor pignoratício.2248
Por outro lado, a lei consagra o princípio do trato sucessivo (art.º 70.º), nos
termos do qual a transmissão ou a oneração de quaisquer valores mobiliários escriturais
exige a prévia inscrição a favor do disponente.
Nesta conformidade e apesar da ausência de desapossamento possessório do
título, a garantia continua a ser qualificada como penhor, assumindo a inscrição no
registo um papel equivalente ao da entrega física do bem ao credor:2249 todavia, tal não
conduzirá imperativamente à aplicação de todas as normas do regime geral consagrado
para a garantia pignoratícia.2250
No direito francês, a tendência aponta no sentido de qualificar esta garantia
como um penhor sobre bens incorpóreos, sem desapossamento, dotado de um regime
específico que se afasta ligeiramente do vigente para a generalidade daqueles bens,
nomeadamente para o penhor de créditos.2251
2247
Já é discutível saber se o requerimento de registo deverá ser acompanhado de documento
comprovativo do contrato de penhor, tendo em conta que não parece ser necessário que tal contrato seja
reduzido a escrito. Sofia Maltez, ob. cit., pág. 17, nota 35, entende que tal ónus apenas existe quando o
registo seja solicitado pelo credor pignoratício, sendo necessário um documento escrito assinado pelo
devedor através do qual se comprove a dação em penhor dos valores (pois só na posse desse documento a
entidade registadora pode verificar o facto que se pretende registar), mas já não quando o registo seja
requerido pelo titular das acções (bastando, nesta hipótese, que este ordene, por escrito, à entidade
registadora que proceda ao registo)
2248
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 282.
2249
No direito espanhol esta equiparação consta do texto legal, porquanto o art.º 10.º da LVM afirma
expressamente que “la inscripción de la prenda equivale al desplazamiento posesorio del título”.
2250
É a posição de Diaz Moreno, ob. cit., págs. 387 a 389, para quem “las normas sobre la prenda
posesoria que partan del supuesto de que el acreedor tiene en su poder una cosa mueble no serán
aplicables a la prenda de valores representados por medio de anotaciones en cuenta”, apontando como
exemplo o preceito que impõe ao credor o dever de conservação dos bens onerados que tenha em seu
poder (nestes casos, caberá recorrer às normas ditadas para o penhor sem desapossamento e para a
hipoteca mobiliária). Em termos análogos, para De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 160 e
segs., deverá ser aplicado supletivamente o regime civilístico do penhor, uma vez que “El legislador
podía haber diseñado un nuevo sistema para la constitución de la prenda de valores en anotaciones en
cuenta, por ejemplo, que se entendiera transmitida su posesión por la mera voluntad de las partes; sin
embargo, decide utilizar el mismo sistema general establecido en el Código Civil, adaptándolo, en lo
necesario, a las anotaciones en cuenta”, de modo que “buena parte de la disciplina aplicable a la prenda
de valores representados en anotaciones en cuenta se encuentra contenida en el Código Civil” (todavia, o
Autor reconhece que a ausência de desapossamento do constituinte implica a não aplicação da alguns
aspectos daquele regime, nomeadamente da norma que impõe ao credor o dever de conservação do bem
onerado – excepto, eventualmente, se o credor pignoratício for, simultaneamente, a entidade encarregue
do registo, caso em que aquela obrigação subsistirá -, pelo que também não será de descurar a aplicação
de algumas normas respeitantes ao penhor sem desapossamento e à hipoteca mobiliária, designadamente
no que respeita aos efeitos do registo: em suma, conclui pela qualificação desta figura como “una
institución de naturaleza híbrida o mixta”).
2251
Neste sentido, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., págs. 529 e 538, Legeais, Sûretés 2009
cit., págs. 393 e 400 e Aynès et Crocq, Les sûretés 2009 cit., págs. 249 e 260 (estes últimos destacando a
natureza imperfeita da publicidade desta garantia). Esta tendência é mais acentuada após a reforma do
direito das garantias francês de 2006, da qual resulta uma distinção muito nítida entre o penhor de bens
corpóreos (“gage”) e incorpóreos (“nantissment”). Todavia, o novo regime apenas dita regras para uma
espécie de bens incorpóreos (os créditos pecuniários), limitando-se o art.º 2355.º, n.º 5, do novo CCF a
601
Apesar de este registo comungar de diversas características do registo predial,
designadamente a presunção da titularidade e da existência do direito,2252 existe um
aspecto extremamente relevante em que se afasta daquele e que se prende com a
circunstância de o registo dos valores mobiliários não ser público, de acesso livre, mas
ter carácter reservado ou até sigiloso (cfr. art.ºs 85.º e 86.º, a contrario), pelo que será
de duvidar do seu carácter publicitário.2253
Deste modo, o credor que receba em penhor determinados valores mobiliários
não terá legitimidade para, antes de celebrar o negócio, aceder ao registo e confirmar se
tais valores estão previamente onerados ou até se efectivamente pertencem ao
empenhante.2254
mandar aplicar a todos os demais bens incorpóreos o regime ditado para os bens corpóreos: todavia e
como salientam Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 529, essa remissão apenas é válida na
falta de um regime especial, o que sucede, precisamente, com o penhor de instrumentos financeiros.
2252
Também no direito espanhol se presumirá como titular legítimo dos valores mobiliários representados
através de anotações em conta aquele a favor de quem tais anotações se encontrem efectuadas, tendo por
isso direito a exigir da entidade emissora as prestações relativas aos valores mobiliários registados
(liberando-se a entidade emissora efectuando essas prestações a favor do legitimado, ainda que este não
seja o titular do valor mobiliário em questão, sempre que actue de boa fé e sem culpa grave, facto este que
“dará lugar a una adquisición de propriedad o de derecho real limitado a non domino”), e dispondo da
faculdade de exercer, transmitir e onerar os referidos valores. Para além disso, ao titular dos direitos
inscritos no registo será entregue, pela entidade encarregue de efectuar este, um certificado simples (com
efeitos nas relações entre a entidade registradora e os titulares de direitos sobre os valores inscritos,
devendo o certificado ser codificado – de modo a garantir a correspondência entre o registo e a
informação transmitida ao sistema central de gestão – embora não sejam representativos do valor, nem
transmissíveis ou negociáveis, demonstrando apenas a formalização da anotação a favor do portador do
certificado, isto é, “Serán justificativos de la titularidad de la Deuda anotada en el registro con el que
corresponden en el momento de la exepedición del resguardo, pero no en ningún momento posterior”,
não sendo, por isso, a sua apresentação condição para a realização de operações sobre os valores a que o
certificado se refere: neste contexto “antes de proceder a transmissiones o constitución de derechos
reales sobre valores anotados (…) deberá comprovarse en el registro contable que efectivamente son de
propriedad de quien aparece legitimado por ellos, y no se encuentran desglosados como consecuencia de
cargas, derechos reales constituidos sobre los mismos o por la expedición de certificados de
legitimación”), bem como um certificado de legitimação (o qual, como o próprio nome indica, “produce
la plena legitimación del titular del mismo sobre los valores a que refiere, ya que provoca con su
expedición la inmovilización de los valores de manera que las entidades encargadas de los registros no
podrán dar curso a transmissiones o gravámenes o praticar las correspondientes inscripciones en los
registros en tanto se hayan restituido”, isto é, “Legitiman para la transmissión y el ejercicio de los
derechos derivados de los valores anotados”, pelo que os membros das bolsas não poderão executar
ordens de venda sobre valores relativamente aos quais tenham sido expedidos este tipo de certificados)
para os mesmos valores (não podendo existir mais de um certificado para o exercício ou transmissão dos
mesmos valores), cuja expedição não é obrigatória (apenas ocorrerá a pedido do titular dos valores, por
exemplo, para constituir um penhor sobre os mesmos). Deste certificado de legitimação deverão constar
dados relativos ao emissor e ao titular dos valores (e, eventualmente, dos titulares de ónus sobre os
mesmos), aos próprios valores (identificação da emissão, do número de valores que integram e as
referências de registo correspondentes), à finalidade com que foram expedidos (e o respectivo prazo de
vigência) e à data de emissão. (vide Pries Picardo, ob. cit., pág. 695 e segs.),
2253
Como salienta Sofia Maltez, ob. cit., pág. 13, em especial nota 24, o carácter sigiloso do registo
manifesta-se mesmo relativamente à própria sociedade emitente dos valores mobiliários – acerca da
existência de um dever de comunicação, por parte da entidade registadora, à sociedade emitente, vide o
que se dirá adiante no texto.
2254
Por isso, Sofia Maltez, ob. cit., pág. 14, notas 25 e 26, afirma que a segurança do comércio jurídico
dos valores mobiliários não resulta do registo, mas antes do conjunto de obrigações a que se encontram
sujeitos os intermediários financeiros, entres os quais o dever de bloqueio (cfr. art.º 72.º), uma vez que
aquele registo se encontra organizado no interesse primordial do titular dos valores e não de terceiros
(sendo, por isso, este bloqueio e não aquele registo que assegura a segurança do comércio jurídico de
valores mobiliários). Por outro lado e como salienta Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 131 e
602
Todavia, a posição do credor pignoratício não é tão nefasta como se poderia
supor, na medida em que pode solicitar ao titular das acções um certificado de registo
que ateste o seu direito, o qual será emitido pela entidade registadora (art.º 78.º, n.ºs 1, 2
e 3)2255 e, para além de servir para o exercício dos direitos sociais (art.º 83.º),2256
provoca, enquanto não for substituído por outro, a indisponibilidade dos valores
onerados, por força do bloqueio a que passam a estar sujeitos (art.º 72.º, n.º 1, alínea a)).
Contudo, a protecção mais intensa do credor pignoratício advém da
circunstância de a falta de legitimidade do empenhante lhe ser oponível, se de boa fé,
desde que a constituição do penhor se ache registada (art.º 58.º, n.ºs 1 e 2).2257
Mas a protecção do credor pignoratício prolonga-se inclusive para o período
sucessivo ao do surgimento da garantia, porquanto os valores empenhados não podem,
salvo casos excepcionais, ser transaccionados nos mercados regulamentados (art.º 204.º,
n.º 1, alínea a))2258, sendo esse efeito decorrente da ausência de um sistema de
publicidade que advirta os terceiros da existência de ónus sobre os valores
mobiliários.2259
132, o titular das acções não tem direito a saber quem são os seus consócios – pois terão apenas acesso às
informações da conta aberta em seu nome e dos valores aí inscritos.
2255
Segundo reza o n.º 2 do dito art.º 78.º, tal certificado atesta a existência do usufruto, penhor ou
quaisquer outras situações jurídicas que especifique, acrescentando o n.º 3 que o mesmo podendo ser
requerido por quem tenha legitimidade para requerer o registo (legitimidade essa que, conforme exposto
no texto, assiste ao empenhante e ao credor pignoratício). Para além disso e em termos mais gerais, o art.º
85.º, n.º 1s, alínea b) e n.º 2, impõe às entidades registadoras o dever de prestar as informações que lhe
sejam solicitadas por parte do credor pignoratício, incluindo os elementos constantes dos documentos que
serviram de base aos registos. De acordo com o direito espanhol, Veiga Copo, La prenda de acciones cit.,
pág. 233, salienta como não pode ser expedido para os mesmos valores e para o exercício dos mesmos
direitos, mais do que um certificado de legitimação, sendo que cada um desses certificados contém
informações relativas ao titular dos valores e titulares de eventuais ónus sobre os mesmos, aos dados
desses valores, à finalidade com que foram expedidos, à data de expedição e à data de vigência, a qual
nunca pode ser superior a 6 meses).
2256
Cabendo ao intermediário confirmar a regularidade do pedido (ou seja, verificar se o requerente é
titular de um direito de penhor e se o direito em vista do qual o certificado é pedido é um daqueles para os
quais, nos termos da lei, é necessária a apresentação de tal certificado), embora seja discutível se lhe
incumbe averiguar a efectiva legitimidade do requerente para o exercício do direito social em questão
(parecendo que, em regra, se imponha uma resposta negativa – cabendo à sociedade emitente efectuar
esse controlo – com uma eventual excepção quando existam convenções entre credor e devedor
relativamente ao exercício dos direitos sociais, uma vez que estas devem ser inscritas no mesmo registo
dos ónus e, por isso, são do conhecimento do intermediário): em caso de recusa ou de atrasos por parte do
intermediário, poderá o credor obter uma ordem judicial impondo-lhe tal emissão – neste sentido, em face
do direito italiano, Mia Callegari, ob. cit., pág. 201 e segs..
2257
Ou seja, desde que a constituição da garantia tenha sido efectuada de acordo com as regras de
transmissão do direito e tenha sido registada. De acordo com Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 31 e
32, a protecção do credor pignoratício encontra-se subordinada à verificação cumulativa de quatro
pressupostos: a titularidade de um direito real de garantia (o que implica, pelo menos, a celebração do
contrato de penhor), a boa fé do credor pignoratício (traduzida no desconhecimento da ilegitimidade do
empenhador), a falta de legitimidade do prestador da garantia e, finalmente, que a aquisição do direito se
tenha produzido de acordo com as regras aplicáveis aos valores em questão. No direito espanhol a lei fala,
a este propósito, da irreivindicabilidade “para los valores anotados cuya prenda se haya constituido de
quien aparece formalmente legitimado por los assientos de los registros”, de forma que o verdadeiro
proprietário não os poderá reivindicar junto do credor pignoratício a partir do momento em que este
registe a sua garantia.
2258
Para Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 64, a insusceptibilidade de transacção destes valores
resulta da perda do seu carácter fungível e, por isso, fundamenta-se no n.º 2, alínea a) do CVM.
2259
Diaz Moreno, ob. cit., pág. 407 e segs., salienta como este bloqueio dos valores mobiliários
empenhados (ou, noutros termos, a “inmovilización de los saldos de valores afectos al cumplimiento de la
obligación asegurada”) se justifica porque “En el caso de la prenda de valores anotados la inscripción
tampoco supone ninguna publicidad; la mera inscripción del gravamen en la cuenta de valores no lo
603
A falta de registo do penhor implicará, aquando de uma eventual futura
transmissão dos valores onerados, que esta não seja acompanhada da garantia, isto é, o
penhor será inoponível ao adquirente daqueles valores, sem prejuízo da eventual
responsabilidade civil da entidade registadora à qual tendo sido requerido o registo da
garantia e não o tenha efectuado (art.ºs 87.º ou 94.º, consoante as acções se encontrem
ou não inseridas num sistema centralizado).2260
Para além disso, a entidade registadora onde se encontra aberta a conta dos
valores mobiliários empenhados não poderá efectuar a transferência desses valores para
hace publico, visible, ya que la ley no ha llegado a prever la organización de un sistema de publicidad
formal” e, por isso, por não ter a inscrição efeitos publicitários “si crearia una situación de
indisponibilidad impediendo al pignorante de transmitir los valores en perjuicio del acreedor”
(sobretudo se vigorar o princípio da posse vale título) e, por outro lado, assim se asseguraria aos terceiros
que os valores por si adquiridos se encontram livres de ónus. Porém, de lege ferenda, o Autor defende a
transmissibilidade dos valores empenhados, por ser menos restritiva das faculdades do empenhante (e
também por analogia com o regime geral do penhor, no qual o constituinte da garantia não perde o direito
de dispor dos bens onerados, resultando os limites a esse poder de disposição do facto de o bem se
encontrar no poder material do credor), embora reconheça que tal só será possível quando seja criado um
sistema “que permita a los interessados cerciorarse de que los valores que éstan en trance de adquirir se
encuentran librés de cargas o, en su caso, conocer los gravámenes que pesen sobre ellos”, pois só assim
“el tercer adquirente estaría seguro de que la prenda no inscrita no le será oponible (…) y el acreedor
pignoraticio, por su parte, podría confiar en que, una vez inscrito su derecho, éste podrá ser hecho valer
frente a caulquier adquirente”. Para Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 229, a imobilização dos
valores mobiliários decorrentes da constituição de penhor sobre os mesmos é parcial (pois, apesar de não
poderem ser negociados em bolsa, “Ello no quiere decir que su transmisión se encuentre vedada. Nada
impide al titular de un bien gravada con prenda, poder transmitir la nuda propiedad a un tercero (…). Ni
siquiera el deudor requerirá el consentimiento concurrente del titular del derecho real de prenda
constituido sorbe el mismo. Sólo la transmisión del derecho gravado como libre exigiría el
consentimiento del acreedor pignoraticio”, admitindo mesmo o Autor a transmissão apenas do direito
real limitado, sem afectar a titularidade dos valores anotados). Com efeito, o Autor defende, de lege data,
a inexistência de uma indisponibilidade dos bens empenhados, por analogia com o regime geral do
penhor (nos termos do qual o empenhante não perde o direito de disposição do bem onerado), rebatendo
as críticas relacionadas com a falta de publicidade formal do registo (contrapondo que essa função
publicitária é assegurada pelos certificados de legitimação - que deverão conter a expressão dos direitos
limitados vigentes sobre os valores mobiliários e cuja exibição poderá ser requerida pelos terceiros que
pretendam contratar com o titular dos mesmos – e pelos documentos que atestem a emissão dos valores e
que serão depositados e publicados na entidade emissora e na entidade encarregue do registo), embora
reconhecendo a existência de uma imobilização dos ditos valores a partir da data da emissão do
certificado relativo à titularidade plena – e não à existência da garantia - dos valores e enquanto esse
certificado não for restituído (pois, enquanto tal certificado estiver em vigor dá-se o bloqueio dos valores,
impedindo as transmissões e a constituição de outras garantias enquanto o certificado não for restituído,
assim se garantindo a posição do credor pignoratício), distinguindo entre esta imobilização e a
indisponibilidade (pois, se não houver expedição do certificado ou uma vez devolvido este “la
inmobilización registral cesa y se abre el registro a la entrada de un nuevo titular. El certificado de
legitimación se convierte en certa medida, en la llave de acceso al registro del nuevo adquirente” e se o
credor pignoratício dispuser de um certificado deverá restituí-lo mal seja notificado da transmissão dos
valores – a qual opera sem necessidade do seu consentimento – sem prejuízo da possibilidade de obtenção
de um novo certificado): no caso, porém, de títulos cotados em bolsa, a constituição da garantia provoca a
exclusão da negociação em bolsa dessas acções (o que se compreende pois “exonera de la gravosa carga
entorpecedora que supondría recabar información acerca de la acutal situación que atraversarían los
valores”), podendo a ulterior transmissão desses valores produzir-se apenas directamente entre as partes.
Também Bautista Pérez, ob. cit., págs. 55 e 56, não exclui a possibilidade de os valores mobiliários
empenhados, mesmo que cotados em bolsa, poderem ser transmitidos fora do mercado bolsista: em
qualquer dos casos, a garantia previamente inscrita será oponível ao terceiro adquirente (o Autor advoga
ainda que a inscrição da transmissão deve ser requerida pelo notário - quando o contrato de penhor tenha
conste de documento público – ou pela entidade que tenha efectuado a transmissão, no caso contrário).
2260
Tiago Soares Fonseca, ob. cit., pág. 64.
604
conta aberta em outra entidade registadora, sem prévia comunicação ao credor
pignoratício (art.º 81.º, n.º 3).
Coloca-se, todavia, a questão da possibilidade concorrência de penhores sobre
uma mesma inscrição registal, ou seja, mais de um penhor sobre valores com
representação escritural,2261 uma vez que a exclusão dos mesmos da negociação (art.º
204.º, n.º 1, alínea a)) não significa necessariamente a inadmissibilidade de os mesmos
voltarem a ser empenhados, hierarquizando-se o grau de preferência de cada uma das
garantia em função da respectiva data de inscrição no registo (art.º 69.º, n.ºs 1 a 3), ou
seja, a impossibilidade de prática de actos de disposição sobre os valores previamente
empenhados não traduz, imperiosamente, a impossibilidade de oneração dos mesmos.
Se é indesmentível a obrigatoriedade de registo, já é bem mais controvertida a
natureza constitutiva ou declarativa do cumprimento desta formalidade,2262 sendo que
2261
De acordo com a lei espanhola, Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 299 e 300, alerta para o
risco de não existir segurança absoluta que, tendo em conta o reduzido conteúdo da cada anotação,
“vayan a constar en ella las sucesivas fechas de constitución de las distintas prendas”, embora o Autor
relativize a questão porque, por um lado, existe um livro diário com base no qual será fácil determinar
qual o direito primeiramente inscrito e, por outro, por ser rara a constituição de mais de um penhor sobre
este tipo de bens dado que “la prenda conlleva una sujección tan estrecha de la cosa al poder del
acreedor pignoraticio que, económicamente, el derecho de nuda propriedad, o la constituición de una
segunda prenda no tienen mucho valor”. Também Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 204, mostra reservas,
pois, apesar de reconhecer a possibilidade de constituição de segundos penhores sobre os mesmos bens
(em termos análogos aos previstos para a hipoteca), tal hipótese enfrenta o obstáculo da ausência de uma
regulamentação específica (para as acções ao portador, poder-se-ia pensar num segundo penhor “hecha
por outro documento público con una posesión por el titular del segundo gravamen y se podría hablar de
un endoso en garantía de acción nominativa, hecho con la expresión de ser segunda prenda productora
de aquel tipo de posesión y de la correspondiente inscripción en el libro registro de acciones
nominativas”).
2262
A mesma questão surge no direito espanhol, conforme noticia Pries Picardo, ob. cit., págs. 702 a 704,
pronunciando-se alguns Autores no sentido do carácter não constitutivo do registo (nomeadamente
distinguindo entre o contrato de penhor – a partir do qual surge para o empenhante o dever de constituir a
garantia, através da entrega do bem ao credor ou de outro sucedâneo, como o registo – e o surgimento do
direito real de penhor, que apenas se dá com a inscrição no registo), enquanto outros se inclinam para a
solução inversa (considerando que o penhor nasce com a inscrição e que, antes dessa data, quando muito,
poderá existir um contrato-promessa de penhor): do que não restam dúvidas, pois a lei assim o determina,
é que a garantia só é oponível a terceiros após a inscrição no registo (todavia, o Autor esclarece que, além
deste registo, no caso de acções nominativas será ainda mister inscrever a garantia no livro de sócios, não
impondo a lei qualquer dever de comunicação das entidades encarregues da gestão do registo de valores
mobiliários à sociedade emitente dos mesmos). Já Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 189 e segs.,
inclina-se para que a inscrição no registo seja mera condição de oponibilidade da garantia a terceiros
(com base no art.º 10.º da LVM, nos termos do qual “La constitución del gravemen será oponible a
terceros desde el momento en que se haya practicado la correspondiente inscripción”), outorgando assim
ao titular da garantia inscrita o direito de preferência e de sequela (recusando até que o terceiro adquirente
possa estar abrangido pela protecção conferida os terceiros de boa fé, uma vez que, tendo em conta a
obrigatoriedade de inscrição no registo, “es impossible le existencia de una prenda de anotaciones con
respecto de la que un tercero pueda ser considerado de buena fe”), enquanto Diaz Moreno, ob. cit., pág.
392 e segs. (sustentando que, dada a equiparação legal entre a inscrição no registo e o desapossamento do
devedor e o carácter constitutivo deste último, “La prenda no nace como derecho, ni siquiera inter partes,
hasta la inscripción; por tanto, tampoco existe hasta ese momento afección o vinculación especial de los
valores al cumplimiento de obligación alguna”) e Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 214
(negando a existência de um penhor entre a data do acordo das partes e a inscrição no registo,
contrapondo que o penhor “nascerá como derecho únicamente con la inscripción, no quedando afectos
los valores entretanto al cumplimiento de obligación alguna. Lógicamente ex ante existirá una
negociación o contrato consensual entre las partes, o incluso una promesa de prenda”) pugnam pelo
carácter constitutivo do registo: este último Autor, ob. cit., págs. 241 a 243, esclarece que o nascimento e
a oponibilidade da garantia são simultâneos (embora cumpra distinguir entre os valores não cotados em
bolsa – em que esse momento coincide com a inscrição da garantia no registo de uma das entidades
aderentes - e os cotados, caso em que tais efeitos se produzirão apenas na data da inscrição no registo
605
questão análoga surge a propósito da constituição e da transmissão desses mesmos
valores.2263
Poder-se-á advogar o carácter declarativo do registo do penhor com base no
entendimento, maioritário na doutrina, segundo o qual o registo das transmissões desses
valores tem esse mesmo efeito. Porém, há quem, pelo menos para as participações
sociais, sustente ser constitutivo o efeito do registo, escudando-se no facto de o art.º
23.º, n.º 3, do CSC ter deixado de exigir, para a constituição do penhor, a redacção de
central), operando esta última relativamente aos demais credores do constituinte (traduzindo-se no direito
de preferência) e aos terceiros adquirentes dos referidos valores (uma vez que este não podem
desconhecer a existência da inscrição no registo da garantia – e, por isso, não poderão ser considerados de
boa fé – e, para além do mais, porque a expedição do certificado de legitimação, ao provocar a bloqueio
dos valores, impede a realização de novas inscrições, de modo que “esa inamovilidad aprovecha al
acreedor pignoraticio, puesto que al intentar transmitir los valores, siempre constará sobre él la
existencia del derecho real limitado (…). El tercer adquirente, comprobando el certificado – espejo que
refleja la propria vida del valor anotado –, tiene la certeza de que no se ha produzido alteración alguna,
puesto que el registro contable hasta la restitución del mismo permanece cerrado. La buena fe del
adquirente exige el cerciorarse o solicitar cuando menos, la acreditación suficiente de titularidad de
quien pretende transmitir”).
2263
Soveral Martins, ob. cit., pág. 183 e segs., entende que, relativamente à criação destes valores, o
registo (à semelhança do título da acção) das acções escriturais, é meramente declarativo (apesar de o art.º
73.º, n.º 1, do CVM, afirmar que os valores mobiliários escriturais se constituem por registo em contas
individualizadas abertas junto das entidades registadoras), alegando que “esse carácter constitutivo do
registo em conta individualizada apenas diz respeito ao surgimento do valor mobiliário e não à criação
da posição representada” (negando estarmos perante um fenómeno de desmaterialização, “visto que
alguma materialidade existe: seja no papel onde o registo é efectuado, seja no suporte informático”,
preferindo falar de uma nova materialização); já no que toca à transmissão, (ob. cit., pág. 278), aceita a
natureza constitutiva do registo (afirmando que “sem esse registo não tem lugar a transmissão”,
originando um lançamento na conta do adquirente e outro relativo à conta do adquirente), o que não
significa que se prescinda de uma justa causa válida e eficaz de atribuição subjacente ao negócio: ora,
atendendo à circunstância de, quer a transmissão, quer a oneração, se produzirem mediante registo em
conta (cfr. art.ºs 80.º, n.º 1 e 81.º, n.º 1, respectivamente, afirmando este último mesmo que o penhor
“constitui-se pelo registo”), parece que o registo do penhor assumirá igualmente carácter constitutivo. No
entanto, o Autor, ob. cit., pág. 263 e segs., no que respeita às acções tituladas nominativas, alude à
existência de duas posições relativamente ao papel do registo e aos efeitos de uma transmissão não
registada: uma primeira, advogando a mera ineficácia perante a sociedade emitente, não podendo o
adquirente exercer os direitos sociais inerentes à participação, apesar de se ter tornado proprietário das
mesmas ou credor pignoratício ao qual tenham sido atribuídos tais direitos (posição criticada pelo Autor,
com o argumento que, se a sanção da ineficácia visava proteger a sociedade, o efeito produzido era
contraproducente, porquanto “teríamos, por um lado, um sujeito inscrito como titular que afinal não o
era mais, e um outro sujeito que era titular mas não estava como tal inscrito e, por isso, não poderia
exercer os seus direitos”); uma outra, a que o Autor adere, segundo a qual sem registo não haveria
transmissão, de modo que antes dele a transmissão não se terá por efectuada (baseando a sua posição na
maior facilidade de identificação, para a sociedade, dos seus associados – que se bastará com a simples
consulta do registo – ao assegurar uma coincidência entre titularidade e legitimação para o exercício dos
direitos sociais: por outro lado, parece ser esta a solução para que aponta o art.º 104.º, n.º 2, do CVM, ao
determinar que os direitos inerentes aos valores mobiliários nominativos não integrados em sistema
centralizado são exercidos de acordo com o que constar do registo do emitente, contestando que o n.º 5 do
art.º 102.º do CVM – ao ditar que a transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo
junto do emitente - permita infirmar esta conclusão, porquanto “a transmissão se dá com o registo mas a
lei faz retroagir os efeitos dessa transmissão ao momento em que foi requerido o registo junto do
emitente: efectuado o registo, a transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo
junto do emitente”). Como consequência deste entendimento, o Autor (ob. cit., págs. 275 e 276) defende
que, se o transmissário, cuja aquisição não seja registada, realizar nova transmissão, estará a transmitir um
bem alheio, até em homenagem ao princípio do trato sucessivo, consagrado no art.º 70.º do CVM (razão
pela qual não será possível que o último transmissário de uma cadeia de transmissões possa ser registado
como titular sem que se faça o registo das transmissões intermédias a partir do último titular inscrito).
606
um escrito particular, constituindo-se tal garantia precisamente e apenas através do
registo.2264
No que concerne aos valores mobiliários titulados, nominativos2265 ou ao
portador2266 ou até à ordem,2267 a lei remete para os meios de transmissão da titularidade
dos mesmos valores (art.º 103.º).2268
2264
Assim, Sofia Maltez, ob. cit., págs. 22 e 23.
2265
Em face do direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 618 e segs., distingue igualmente
entre acções nominativas e ao portador: relativamente às primeiras, o penhor constitui-se por meio de
endosso acompanhado da menção “em garantia” ou outra equivalente e com a inscrição no registo de
acções nominativas detido pela sociedade (sendo discutível se será ainda necessária a entrega do título,
respondo afirmativamente Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 166 - tendo em conta a natureza real
de qualquer endosso, para cuja eficácia é essencial a entrega do título - Veiga Copo, La prenda acciones
cit., pág. 168 e segs., argumentando que “Si para la eficacia del endoso pleno, además de la declaración
cambiaria, es esencial la entrega del titulo, esta misma solución debe ser aplicable para el endoso en
garantía”), devendo os administradores desta verificar a regularidade da cadeia de endossos antes de
efectuar o dito registo, exigindo a exibição do título com a cláusula de endosso dele constante (“Así, la
inscripción en el libro registro se facilita, ya que frente a la sociedad debe probarse únicamente la
regularidad de la cadena de endosos y en particular, el realizado a título limitado; por otro lado (…)
efectos protectores de la posición del endosatario proprios del derecho cambiario (…) la autonomía de
la posición del endosatario en garantía respecto a las excepciones que sean invocadas por el deudor en
sus relaciones con el endosante, salvo los límites de la exceptio doli” - Veiga Copo, La prenda acciones
cit., pág. 169). Em alternativa, admite-se igualmente a constituição da garantia nos termos do direito
comum, isto é, através de entrega dos títulos ao credor, seguida de inscrição no livro registo das acções
nominativas da sociedade (possibilidade essa aceite por Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, ob. cit.,
pág. 760 e por Veiga Copo, La prenda acciones cit., pág. 160 e segs. – declarando aplicável o regime
cessão de créditos, acrescida da entrega dos títulos, ou seja, “para la constitución del derecho bastará el
mero acuerdo de las partes, si bien, el acreedor pignoraticio (…) podrá – y deberá – exigir la entrega
inmediata de los títulos, con el fin de impedir al deudor cualquier ulterior disposición por endoso (…) su
oponibilidad frente a los acreedores del deudor, la forma será la propria del derecho común de créditos,
es decir, por medio de escritura publica (…). Para desplegar sus efectos frente a la sociedad, al acreedor
pignoraticio le bastará con exibir la escritura pública de constitución para obtener legitimación frente a
la sociedad a través de la oportuna inscripción en el libro registro” -, mas rechaçada por Salinas
Adelantado, El régimen cit., pág. 317, considerando que, nesse caso, surgiria um mero direito de retenção,
dado que “el presunto acreedor pignoraticio no puede ejercitar los derechos derivados del titulo, ni
frente a la sociedad, porque no está inscrito en el libro de socios ni puede pedir dicha inscripción, ni
frente a los terceros distintos de la sociedad emisora, que, por los principios generales de los títulos-
valores, sólo considerán acreedor pignoraticio al que aparezca como tal del proprio título”). Em
qualquer dos casos, a inscrição não tem carácter constitutivo, sendo unicamente condição de
oponibilidade da garantia à sociedade, (não condicionando a sua validade inter partes e face a terceiros
diversos da entidade emissora – cfr. Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 177), sendo comprovada através
da emissão de um certificado de legitimação que o credor pode obter a partir dessa data. Há quem admita,
também que o penhor sobre estes títulos se constitua nos mesmos termos do penhor de créditos, tendo por
objecto o crédito representado pelo título (Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 163) ou mediante um
endosso em branco (Veiga Copo, La prenda acciones cit., pág. 172, destacando que tal não viola a
nominatividade obrigatória imposta por lei em certos casos “ya que la legitimación para el ejercicio de
los derechos derivaría de la inscripción en el libro registro de sócios y no de la mera tenencia del título”
e, por outro lado, “tampoco se viola la responsabilidad solidaria de los transmitentes en el caso de
dividendos passivos, ya que se asegura suficientemente el objeto que persigue la ley: sujetar a
responsabilidad al primer transmitente”). Analisando este regime, o Mejias Gomez, ult. ob. e loc. cit.,
contesta o carácter privado deste registo (apelidando-o de “privado y dependiente”), até porque “el
registro de las anotaciones sobre la prenda depende de la misma entidad que ha de satisfacer el
contenido de los derechos entregues en garantía”, o que diminui “la indisponibilidad que pesa sobre el
bien gravado y su vinculación a la deuda” (além disso, a lei nem sequer indica quais as menções que
deverão constar de tal inscrição, entendendo o Autor que, por analogia, deverão ser os mesmos exigidos
para a transmissão das mesmas, ou seja, a identificação do credor pignoratício e o respectivo domicílio),
salientando igualmente o carácter não constitutivo deste registo (surgindo o penhor através de simples
contrato, assumindo a sociedade o papel de terceira), embora destaque que a notificação da constituição à
607
sociedade (que o Autor entende ser um ónus a cargo do credor) e o posterior registo são indispensáveis
para que o credor pignoratício possa exercer algum direito social que lhe venha a ser atribuído.
2266
Quanto aos títulos ao portador, o penhor sobre eles surgirá nos termos do direito comum, isto é,
mediante o consentimento das partes e a entrega dos títulos (neste sentido, Mejias Gomez, La prenda cit.,
pág. 618 e Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 188 e segs.), funcionando a transferência
possessória, não tanto como mecanismo de reforço da segurança do credor, mas sim “en cuanto a la
efectividad de la garantía, de ahí que se afime la necesidad de que la tradición sea efectiva, admitiéndose
la traditio brevi manu, pero no el constitutum posesorio, ni que el deudor conserve la cosa como
detentador de elle ni una posesión compartida con el acreedor”, sendo igualmente admissível a entrega
do bem a um terceiro (Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 190). Por outro lado, a detenção do
título por parte do credor pignoratício legitima-o para o exercício dos direitos sociais incorporados nas
participações sociais oneradas.
2267
Embora seja rara a sua utilização como valores negociáveis, Salinas Adelantado, El régimen cit., pág.
161 e segs., noticia que a dação em penhor dos títulos à ordem se efectuará através de um endosso em
garantia (admitindo mesmo que o credor pignoratício endossatário possa, uma vez vencido o crédito,
realizar um endosso pleno do título, porquanto “como es una facultad essencial de la prenda el ejercicio
del ius distrahendi por el acreedor pignoratício ante la falta de cumplimiento por el deudor, debe
sobreentenderse que éste podrá realizar todos los actos necessarios para transmitir de forma plena
título”), acrescido da entrega do título. Entre nós, Soveral Martins, ob. cit., págs. 226 e 227, esclarece que
o art.º 272.º, alínea d), veio determinar que as acções das sociedades anónimas apenas podem estar
representadas por títulos à ordem ou nominativos (resolvendo a dúvida que se suscitava, em face do art.º
484.º do Código Comercial, acerca da admissibilidade desta forma de representação): todavia, o Autor
aceita “que um endosso colocado num título nominativo deva valer com o sentido de uma declaração de
transmissão”.
2268
A respeito da transmissão, Soveral Martins, ob. cit., págs. 231 e 232, opina que aquela exige, além do
cumprimento das formalidades legais (v. g. do registo), sempre uma justa causa, o que se torna
particularmente evidente a propósito das acções tituladas nominativas, para cuja transmissão não basta a
simples declaração no título do negócio, sendo ainda necessária uma inscrição no título, a efectuar pelo
depositário (quanto a valores em depósito não centralizado), pelo funcionário judicial (quando a
transmissão resulte de sentença ou venda judicial) ou pelo transmitente (nos demais casos) – cfr. art.º
102.º, n.º 2, do CVM. Questão discutida é se a transmissão se considerada efectuada no momento em que
se verifique a justa causa, quando é aposta a declaração no título ou apenas no momento do registo (isto é,
se a declaração de transmissão e o registo são condições de validade ou de simples oponibilidade da
operação): a este respeito Soveral Martins, ob. cit., pág. 233 e segs., aceita o carácter indispensável,
mesmo entre as partes, da declaração de transmissão (com base no disposto no n.º 1 do art.º 102.º do
CVM), manifestando maiores dúvidas quando ao papel da inscrição no registo das transmissões. Todavia,
após a emissão dos valores mobiliários, terá que se proceder ao registo da emissão dos mesmos – que a
sociedade emitente tem o dever de efectuar, normalmente por via electrónica cujo funcionamento obedece
ao disposto na Portaria n.º 290/2000, de 25 de Maio, de acordo com a qual este registo opera também
como registo dos valores mobiliários não integrados em sistema centralizado, funcionando assim, quanto
a estes, como registo de transmissões e onerações desses valores) -, através da identificação do primeiro
adquirentes (art.º 44.º, n.º 1, alínea f), do CVM), começando as interrogações logo quanto ao momento
em que tal registo deve ser promovido (se antes de depois da representação dos títulos: o Autor inclina-se
para a primeira alternativa, alegando que o registo será “um registo do processo de emissão. Será um
registo de formação gradual, um registo que se inicia antes da representação dos valores emitidos. Isso
poderá, aliás, ser vantajoso quando se procura determinar quem é o accionista, designadamente no
momento em que se pretende representar as acções”). Só depois de realizado este registo da emissão,
cumprirá ao emitente (ou a intermediário que o represente) efectuar o registo das transmissões
posteriores, a pedido do depositário, do funcionário judicial competente (sobretudo nos casos em que um
accionista – mas não o transmissário, que ainda não é accionista antes da inscrição da transmissão no
registo do emitente - faça uso do processo especial de jurisdição voluntária consagrado no art.º 1490.º e
segs. do CPC - destinado a obter o averbamento no livro de registo de acções, quando a sociedade
emitente recuse, sem motivo válido, as acções que lhe sejam apresentadas para esse efeito – o qual
permanece aplicável não obstante o livro de registo das acções ter sido substituído pelo registo de emissão
das acções, nos termos do art.º 43.º do CVM: todavia, o Autor, ob. cit., pág. 272 e segs., entende que tal
procedimento apenas será utilizável às acções tituladas nominativas não integradas em sistema
centralizado, uma vez que as demais se transmitem por registo em conta, sem necessidade de
averbamento no registo de emissão de acções da sociedade emitente) ou do transmitente (art.º 102.º, n.ºs
2, 3, 4, 5 e 7, recusando o Autor que tal solicitação possa provir do transmissário – excepto se o fizer
608
Ou seja e nos termos do n.ºs 1 e 2 do art.º 101, se estes forem ao portador, o
penhor constitui-se através da entrega dos títulos ao credor ou ao depositário por ele
indicado2269 (se estes já se encontrarem depositados num depositário indicado pelo
adquirente, o penhor constitui-se através de registo na conta deste, produzindo efeitos
desde a data do requerimento do registo),2270 devendo a declaração (de transmissão ou)
de constituição de garantias ser efectuada a favor do (transmissário ou) do credor
pignoratício, não sendo admissíveis declarações em branco.2271
Caso sejam nominativos, a garantia nascerá de declaração de penhor escrita nos
títulos, seguida de registo junto do emitente ou intermediário financeiro que o
represente (cfr. art.º 102.º, n.º 1),2272 produzindo efeitos desde a data do requerimento de
registo,2273 sem necessidade de entrega do título.2274 Porém, se tais valores se
encontrarem integrados em sistema centralizado, o penhor surge do mesmo modo
preconizado para os valores mobiliários escriturais, ou seja, pelo registo na conta dos
titular desses valores (art.º 81.º, n.º 1, por remissão do art.º 105.º).2275
enquanto representante do transmitente -, mesmo considerando ser este que passará a exercer os direitos
inerentes à participação após o registo, por entender que “antes do registo, o transmissário ainda não se
tornou titular das acções (…). Quem pode efectuar a declaração de transmissão é que pode requerer o
registo porque, na maneira de ver do legislador, isso permitirá obter maior segurança nas transacções.
Será mais difícil que o registo se efectue sem vontade do transmitente (que será, antes do registo, ainda é
o titular). E, assim é, a própria sociedade fica a ganhar, na medida em que há maior certeza de que
aquele que surge legitimado pelo registo é também titular.”), mediante a apresentação do título (de modo
a que a sociedade emitente verifique se o transmitente é aquele que está registado como titular dos
valores) e a demonstração que o beneficiário do negócio quis assumir a posição de transmissário (embora
não seja necessário provar a vontade do transmissário em que o registo seja efectuado).
2269
Para Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 59 e 60, o penhor assume, nestes casos, uma feição
muito próxima da sua configuração civilística, especialmente em razão da necessidade de entrega do bem
empenhado (qualificando-o, por isso, com contrato real). Porém, o mesmo Autor ressalva a hipótese de
este penhor ser, além de um penhor de valores mobiliários, um penhor bancário ou comercial, o que
originará a desnecessidade da entrega ou a suficiência da entrega simbólica, respectivamente.
2270
Quanto a este último aspecto, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 60 e 61, acrescenta que a
comunicação deverá ser acompanhada de documentos comprovativos da celebração do contrato de
penhor.
2271
Soveral Martins, ob. cit., pág. 230.
2272
Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 22 e Sofia Maltez, ob. cit., págs. 18 e 19. Esta última Autora dá conta
da prática, mais ou menos generalizada, de realizar contratos de depósito relativamente aos valores
mobiliários titulados, contrato esse que, não obstante o carácter fungível do seu objecto, não implica a
transmissão da propriedade dos bens depositados para o depositário, nos termos do art.º 100.º, n.º 1, do
CVM (todavia, distingue consoante o penhor seja constituído sobre acções já depositadas na mesma
instituição que se virá a tornar credor pignoratício – caso em que esse depósito subsiste – ou, pelo
contrário, as acções empenhadas estejam depositadas em instituição diversa, caso em que as acções serão
entregues para depósito na instituição credora pignoratícia, a menos que esta consinta na manutenção do
anterior depósito).
2273
Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 61.
2274
Sustentando a mesma posição relativamente à transmissão deste tipo de acções, Soveral Martins, ob.
cit., págs. 276 e 277, uma vez que a lei é omissa quanto a tal exigência e, por outro lado, porque o registo
terá que ser solicitado pelo transmitente e este deverá apresentar o título para o efeito.
2275
Nesta conformidade, os valores mobiliários, titulados ou nominativos, integrados em sistema
centralizado encontram-se sujeitos a um regime idêntico quanto à sua transmissão e oneração, sendo que
tal integração é obrigatória quando se trate de valores admitidos à negociação em mercado regulamentado
(art.ºs 62.º e 99.º, n.º 2, alínea a), do CVM). Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 62, aponta ainda o
caso das acções tituladas representadas por um só título e depositadas em intermediário financeiro, mas
não integradas em sistema centralizado, caso em que será aplicável o regime dos valores escriturais
registados num único intermediário financeiro (art.º 99.º, n.ºs 2, alínea b) e 5 do CVM): de acordo com
este Autor, a remissão para o regime das acções escriturais justifica-se com a circunstância de as acções
serem representadas por um único título e, por isso, não ser possível constituir o penhor através da
respectiva entrega (excepto se for empenhada toda a emissão ou série).
609
Relativamente ao exercício dos direitos sociais, por parte do empenhante ou do
credor pignoratício, dependerá, para os valores mobiliários titulados ao portador, da
posse do título ou de certificado passado pelo depositário (art.º 104.º, n.º 1) e, para os
valores mobiliários titulados nominativos não integrados em sistema centralizado, dos
elementos que constarem do registo do emitente (art.º 104.º, n.º 2).2276
Alguns Autores advogam, no caso em que a constituição do penhor não se
encontre sujeita a registo junto da sociedade emitente – maxime dos valores titulados ao
portador2277 – que a garantia produzirá efeitos unicamente após a notificação àquela
sociedade, equiparando-a, para este efeito, a um penhor de créditos:2278 para além das
dúvidas que tal equiparação nos merece (e do que ficou dito a respeito dos valores
escriturais), a notificação da constituição da garantia à sociedade emitente, não deverá
assumir, salvo melhor juízo, natureza obrigatória (natureza constitutiva, nem tão pouco
o papel de condição de nascimento da garantia), tanto mais que, mesmo prescindindo
dessa notificação, o credor pignoratício poderá exercer os direitos sociais que lhe
venham a ser atribuídos.2279
Para além disso, naqueles ordenamentos nos quais a preferência pignoratícia se
encontre dependente da redacção de um documento escrito, identificando o crédito
garantido e o objecto empenhado, discute-se esta mesma exigência vigorará também
para a constituição de um penhor sobre valores mobiliários, sejam eles escriturais2280 ou
titulados.2281
2276
Para os que estejam integrados naquele sistema centralizado, dependerão, tal como sucede como os
seus homólogos escriturais, da emissão do certificado emitido pela entidade registadora (art.º 78.º).
2277
Também para os valores titulados nominativos não integrados em sistema centralizado, uma vez que o
exercício dos direitos inerentes aos valores empenhados depende dos elementos constantes do registo do
emitente (art.º 104.º, n.º 2), a não comunicação, por parte da entidade registadora à sociedade emitente, da
constituição da garantia pode limitar o exercício daqueles direitos por parte do credor pignoratício: para o
evitar, caberá a este requerer a esta última que consulte os registos da entidade registadora.
2278
Defende a necessidade de notificação à sociedade do penhor constituído sobre acções ao portador não
sujeitas a registo, Paulo Olavo Cunha, Direito das sociedades comerciais, 3.ª Edição, Almedina, 2009,
pág. 379. Ao invés, Sofia Maltez, ob. cit., págs. 19 e 20, sustenta a desnecessidade da notificação à
sociedade devedora, invocando o argumento de maioria de razão, isto é, o facto de tal notificação não ser
imposta para a transmissão das mesmas participações.
2279
Uma vez que, para este efeito, bastará a exibição do próprio título ou, em alternativa, do certificado
emitido pela entidade depositária (art.º 104.º, n.º 1).
2280
Pugna pela existência dessa obrigatoriedade Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 164 e segs.
(considerando que a inscrição é um sucedâneo do desapossamento do devedor e, por isso, não substitui a
necessidade de redacção daquele documento, surgindo a inscrição no registo como um requisito adicional,
ou seja, os contratos de penhor são actos extra-registais, embora, uma vez celebrados, devam
obrigatoriamente ser inscritos), concretizando que para a inscrição será necessário o depósito de cópias da
escritura e a prévia inscrição, a favor do constituinte, das acções a empenhar (cfr. ult. ob. cit., pág. 190 e
segs., destacando como este registo não é público, uma vez que não é acessível aos cidadãos em geral e,
por outro lado, que - embora o processo normal comece pela redacção do documento, prossiga com o
registo e culmine com o “desglose” – nada impede que o registo preceda a formalização daquele
documento, caso em que a garantia apenas se torna oponível a terceiros após o cumprimento deste último
requisito). Já Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 197 e segs., embora reconhecendo ser essa a
solução que melhor se coaduna com o direito vigente (na medida em que, no silêncio das normas sobre
valores escriturais, cabe aplicar o vertido no regime geral do penhor, no qual a redacção do documento
escrito surge como imprescindível), sustenta, de lege ferenda, a solução contrária (especialmente porque a
exigência de documento escrito – contendo suficiente indicação do crédito garantido e do bem onerado -
colocaria em risco a oneração de determinados valores, como futuros e opções, pois implicaria a
renovação daquele documento a cada alteração quase diária dos bens empenhados). Contrário a tal
exigência, mesmo em face do direito constituído, se mostra Diaz Moreno, ob. cit., pág. 398 e segs.,
alegando que no penhor de valores mobiliários escriturais “la oponibilidad y el nacimiento del derecho se
producen simultáneamente en virtud de la inscripción”, pelo que não é obrigatório que a garantia se
constitua através de documento público, nos termos do art.º 1865 do CCE, para ser oponível a terceiros (o
610
Autor acrescenta que o preceito em questão – inspirado na protecção de terceiros, nomeadamente dos
credores do empenhante, contra condutas fraudulentas do devedor, traduzidas na simulação da existência
de penhores para esvaziar o acervo patrimonial ao dispor dos demais credores – vai contra os princípios
gerais em matéria de direitos reais sobre coisas móveis – nos termos dos quais o adquirente do direito que
tenha obtido a posse do bem fica a salvo das pretensões dos credores do transmitente do direito – ao
permitir a reivindicação por parte dos credores do empenhante, sempre que a constituição do penhor não
conste de documento público: ora, a solução consagrada para os valores mobiliários representa um
retorno a estes princípios gerais, uma vez que “Si la inscripción equivale al desplazamiento posesorio,
entonces es lógico que tenga identicos efectos a la constitución de cualquier otro derecho real sobre cosa
mueble”). Também Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 243 a 246, discorda da necessidade de
escritura pública para a constituição de penhor sobre acções representadas através de anotações em conta,
admitindo que a demonstração da data da constituição da garantia é a do próprio registo (tendo em conta
o carácter constitutivo deste), bastando um documento particular para requerer tal inscrição (sem prejuízo
de a formalização em escritura pública ter a vantagem de, em sede de execução da garantia, possibilitar o
recurso ao procedimento mais expedito constante do Código Comercial). Neste mesmo sentido, vide
ainda Bautista Pérez, ob. cit., págs. 52 e 53, constatando que a LVM não impõe a redacção de um
documento público – em rigor nem sequer alude ao contrato constitutivo do penhor – concluindo, por
isso, ser bastante um documento particular para praticar a inscrição, sendo a data certa – e a consequente
oponibilidade a terceiros - assegurada por essa mesma inscrição (porém, o Autor não deixa de admitir
que, sendo o penhor uma garantia acessória de uma obrigação principal – normalmente um empréstimo –
e sendo os dois contratos formalizados contemporaneamente, raros serão os casos em que não será
redigido um documento público). Também De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., págs. 173 e segs.,
discorda da necessidade do cumprimento da formalidade prevista no art.º 1865.º do CCE, alegando que o
preceito da lei dos valores mobiliários que estabelece a necessidade de inscrição no registo como
condição de oponibilidade do direito inscrito “actúa como ley especial face a la ley general,
estableciendo un sistema alternativo de publicidad del contrato de prenda a través de un registro en una
entidad tutelada o supervisada por la Administración, que permite obtener certeza de la fecha de su
constitución y le otorge, iguales efectos jurídicos frente a terceros (…) generalizándose para la prenda
de valores anotados la solución existente para la oponibilidad de los derechos reales, es decir, resultan
oponibles desde que se constituyen como tales, que en el caso de la prenda de valores representados en
anotaciones en cuenta es a contar desde su inscripción”, acrescentando, em abono da sua posição, que a
redacção de um documento público, imposta pelo art.º 1865.º do CCE para o penhor comum, não aparece
no regime civilístico como um elemento essencial do contrato de penhor – esses encontram guarida nos
art.ºs 1857.º e 1863.º do mesmo Código, entre os quais se conta o desapossamento do devedor, que, no
caso de penhor de valores mobiliários escriturais, é substituído pela inscrição da garantia no registo – mas
apenas condição de oponibilidade do mesmo a terceiros (não obstante, o Autor reconhece que a entidade
encarregue de efectuar o registo apenas deverá efectuá-lo desde que seja comprovado que o titular dos
valores a onerar e o credor pignoratício consentem na inscrição da garantia, através de qualquer meio e
não apenas de documento público, ou seja, “la entidad debe cerciorarse de la voluntad de ambas as
partes, debiendo comprobar que la emisión de la acpetación proviene expresamente de las personas
interesadas o de otras con facultades suficientes de representación (…) deberá procurarse la debida
acreditación documental de la concurrencia de los consentimientos y a que se deberá quedar con copia
de los documentos acreditativos de los actos, contratos y notificaciones”, embora “aunque la entidad
tenga la obligación de recabar esos documentos, lo único que debe preocuparle es, si en alguna parte de
ellos, los interveniente consienten en que se inscriba tal derecho real, sin preocuparla la licitud o
corrección del resto del contenido de los documento, pues (…) deberá de abstenerse de practicar la
inscripción cuando le conste que no existe título verdadero, válido y bastante para constituir la prenda,
conclusión a la que únicamente se puede llegar mediante el análisis de los documentos constitutivos de la
prenda, que dan lugar a la inscripción”)
2281
No direito espanhol, respondem afirmativamente Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 171 e segs
(considerando que se assim não fosse poder-se-ia causar um prejuízo a terceiros, “fundamentalmente para
los acreedores que lo eran en una fecha anterior a la entrega de la prenda pero posterior a la fecha de
redacción del acto constitutivo, porque se verían afectados por un gravamen del que pudieron tener
conocimiento”), Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, ob. cit., págs. 670 e 671 e negativamente, quando o
penhor seja constituído sobre acções nominativas nos termos da lei cambiária, Veiga Copo, La prenda
acciones cit., págs. 169 a 171 (alegando que, relativamente à sociedade emitente, para aquilatar da
constituição da garantia bastará observar a regularidade da cadeia de endossos e, no que concerne aos
demais terceiros, “esta forma de publicidad que se logra con la escritura ya está inserta en el título-valor
– publicidad cambiaria – (…) dispensando de la necessidad de otorgar escritura pública, para tener
611
Como se vê, o legislador português não operou uma desmaterialização total dos
valores mobiliários2282 (nem mesmo no domínio da dívida pública),2283 antes admitindo
a subsistência dos valores titulados ao lado dos escriturais,2284 com a consequência de a
empenhabilidade do mesmo tipo de instrumento – v.g., as acções – variar consoante a
respectiva forma de representação.2285
constancia de la fecha”), mas já não para as acções ao portador (uma vez que a mera posse não publicita
o título em virtude do qual se possui “la constitución de prenda sobre acciones al portador, requiera la
escritura pública, del mismo modo que en el caso de cualquier bien mueble (…) puesto que, a diferencia
de las acciones nominativas, el título no publica el concepto en el que se posee, siendo necesario acudir
al recurso – más costoso – de la publicidad ad complementum – del documento público” - ob. cit., pág.
192).
2282
Conforme salienta Soveral Martins, ob. cit., pág. 179 e segs., a integração dos valores mobiliários
titulados em sistema centralizado apenas é obrigatória quando tais valores sejam admitidos à negociação
em mercados regulamentados (art.º 99.º, n.º 2, alínea a), do CVM, celebrando-se, neste caso, um contrato
de depósito entre o depositante e a entidade depositária, sem que esta se torne proprietária dos bens
objecto desse contrato – cfr. art.º 100.º, n.º 1), mas, quando tal suceda, verifica-se uma
“desmaterialização da circulação dos títulos”, uma vez que, embora não sejam destruídos os títulos
integrados no sistema, a sua transmissão passa a ter lugar – à imagem do que sucede com os valores
escriturais, de acordo com o art.º 105.º - através de registo na conta do adquirente (art.º 80.º, n.º 1, do
CVM), dependendo o exercício dos direitos sociais apenas da exibição dos certificados emitidos pela
entidade registadora e que atestem a existência do registo da titularidade desses valores mobiliários (art.ºs
78.º e 83.º, n.ºs 1 e 2, do CVM). Entre nós, nem mesmo para os valores mobiliários integrados em sistema
centralizados existe a obrigatoriedade de desmaterialização (cfr., a contrario, art.º 105.º do CVM).
2283
De facto, nos termos do art.º 11.º, n.ºs 2 e 5, da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro, a dívida pública
directa pode ser representada por títulos, nominativos ou ao portador, ou assumir forma meramente
escritural ou mesmo, mediante Resolução do Conselho de Ministros (precedida de proposta do Ministro
das Finanças), outras formas de representação.
2284
Aliás e de acordo com Soveral Martins, ob. cit., pág. 186, o CVM não impede sequer que, depois de
representados por registos em conta, os valores mobiliários venham posteriormente a ser representados
por títulos, no seguimento de decisão do emitente nesse sentido (fundamentando esta posição no disposto
nos art.ºs 48.º e 49.º do CVM).
2285
Também no direito italiano se assiste a idêntico fenómeno, mas com a diferença de a lei impor, para
as acções – e os instrumentos financeiros em geral - de sociedades cotadas a desmaterialização (cfr. art.º
28.º do Decreto Euro): relativamente a estas, o penhor constitui-se através do registo nas contas dos
intermediários financeiros (afiançando Niccolò A. Bruno, La disciplina del pegno di azioni secondo la
prassi jurisprudenziale, Luiss Guido Carli, 2001, pág. 17 e segs., ser desnecessária, quer a inscrição no
livro de sócios da sociedade emitente - bastando, para o exercício dos direitos sociais por parte do credor
pignoratício, os certificados emitidos pelo intermediário – quer a redacção de um documento escrito com
indicação do crédito e do objecto da garantia – cujo conteúdo é substituído pelas indicações exigidas para
o registo na conta dos intermediários), seguido do registo no livro dos sócios (facilitado pelo facto de o
n.º 3 do art.º 34.º do Decreto Euro impor a comunicação ao emitente dos registos efectuados nos registos
dos intermediários). Tratando-se de acções não cotadas, Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 6 e segs.,
distingue consoante as mesmas tenham ou não sido emitidas: neste último caso, a constituição do penhor
far-se-á através de simples inscrição no livro de registo dos sócios (cfr. art.º 5.º do r.d. n.º 239 de
25/3/1942); pelo contrário, quando sejam emitidos os certificados, a constituição da garantia poderá
ocorrer através da dupla inscrição do vínculo no título e no registo do emitente (sem prejuízo da
necessidade de entrega do título – embora admita a existência de posições dispensando tal requisito - e da
redacção de um documento escrito com data certa, contendo a suficiente identificação do crédito
garantido e do bem dado em garantia) ou, em alternativa, através de um endosso em garantia, juntamente
com a entrega do título, a redacção do citado documento escrito e a inscrição no livro dos sócios (muito
embora considere que este último pressuposto é apenas condição de oponibilidade da garantia à
sociedade). Tendo em conta da existência de normas específicas relativas ao modo de dação em penhor, a
jurisprudência maioritária rejeita a possibilidade de constituição de penhor sobre este tipo de bens
unicamente através das modalidades do direito comum - documento escrito e entrega - , reconhecendo-
lhe, quando muito, efeitos inter partes (embora constate existirem algumas decisões dissonantes,
admitindo a constituição do penhor sobre valores titulados unicamente através da observância das normas
de direito comum, argumentando que a publicidade da constituição da garantia resulta suficientemente
612
Esta progressiva desmaterialização2286 dos títulos de crédito em geral e dos
valores mobiliários e instrumentos financeiros em particular, é comum a diversos
ordenamentos, como o italiano,2287 o espanhol2288 e o francês,2289 muito embora, de
assegurada pela obrigatoriedade de as sociedades levarem ao registo comercial o elenco dos sócios e dos
beneficiários dos vínculos sobre acções)
2286
Para Annalisa Liuzi, ob. cit., pág. 45 e segs., a desmaterialização (entendida como “perdita di
corrispondenza fra forme di circolazione dei valori mobiliari e forme di circolazione delle cosa mobili”),
apresenta-se adequada para os chamados títulos de massa, mas não para os títulos individuais, pois a estes
não fará sentido aplicar as tecnologias de circulação próprias dos sistemas de gestão centralizada.
2287
Em Itália, pelo menos já desde 1986 – data da aprovação da Lei 19 de Junho de 1986, n.º 289, que
criou o sistema de gestão centralizada Monte Titoli – que o penhor sobre os títulos integrados no sistema
de gestão centralizada depende da inscrição no registo de vínculos que cada um dos depositários é
obrigado a ter, produzindo este registo os mesmos efeitos da constituição do ónus sobre o título (vide art.º
7.º desta Lei, acrescentado que os vínculos anteriormente constituídos sobre títulos entretanto
introduzidos no sistema se transferem, sem efeitos novatórios, para os direitos do depositante), vigorando,
desde 1993, um sistema análogo para os títulos da dívida pública integrados num sistema centralizado
(embora Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 41 e 42, chame a atenção para o facto de a lei ser omissa
quanto ao modo de constituição dos vínculos pignoratícios, sustentando que o penhor se traduzirá num
vínculo de indisponibilidade, criando uma reserva de valor a favor do credor, incidindo sobre a quota do
depositante). No entanto, para os títulos nominativos seria ainda necessária a inscrição no registo do
respectivo emitente, funcionando, neste último caso, a comunicação do registo ao emitente também como
condição de oponibilidade do penhor a esse mesmo emitente (assim, Gustavo Minervini, ob. cit., pág.
1047 e segs. e Gabrielli, Il pegno cit., pág. 227 e segs.: para este último Autor, este regime apenas se
aplicava aos títulos relativamente aos quais, de acordo com o regime tradicional, a constituição do penhor
necessitasse de uma inscrição no título, o que excluía a sua aplicação aos títulos ao portador – contra,
Annalisa Liuzi, ob. cit., págs. 60 e 61, advogando a aplicação também aos títulos ao portador, operando a
inscrição do registo como sucedâneo, não tanto da inscrição no título, mas do desapossamento),
comunicação essa que deveria ser efectuada pelo próprio depositário ao emitente dos valores, no prazo de
três dias a contar da inscrição no registo daquele (assim, Annalisa Liuzi, ob. cit., págs. 62 e 63). A
desmaterialização culminou com a provação do d.lg n.º 213, de 24/6/1998 (conhecido como decreto euro
por, entre outros aspectos, regular a entrada em vigor da moeda única europeia), cujo art.º 28.º estabelece
que os instrumentos financeiros negociados ou destinados à negociação em mercados regulamentados não
poderão ser representados por títulos: ainda assim e de acordo com Frederico Briolini, L’attuazione del
pignoramento e dei sequestri di azioni nominative, in BBTC, n.º 54 (Mar/Abr 2001), I, pág. 217, de fora
ficam os títulos de crédito, cuja empenhabilidade continuará a obedecer às regras contidas no Código
Civil, bem como quanto aos instrumentos financeiros integrados num sistema centralizado, os quais
devem obedecer ao disposto no art.º 87.º do d.lg n.º 58, de 24/2/1998 (regime este que requer a inscrição
do vínculo no registo do depositário – incidindo a garantia sobre os direitos do depositante - mas que,
segundo o último Autor citado, foi decalcado do regime do penhor de coisas, mas, uma vez que a
sociedade gestora detém uma massa de títulos idênticos - enquanto o penhor exige a entrega de um coisa
certa e determinada - foi necessária “un’espressa equiparazione normativa quoad effectum, tra iscrizione
nel registro del depositario e consegna al terzo (…), equiparazione che integra una forma particolare di
costituzione del pegno (art.º 2785 c.c.) coerente con il sistema di gestione accentrata”). Ainda assim, o
âmbito de aplicação do d.lg n.º 213, de 24/6/1998 permite-lhe abarcar a maioria dos instrumentos
financeiros empenhados, uma vez que “le banche preferiscano ricevere in garanzia strumenti finanziari
ammessi alla quotazione ufficiale di borsa per poter seguire costantemente il valore del pegno e
realizzare più agevolmente il prezzo”, deste modo permitindo “superare lo sfasamento tra la vita del
titolo e quella del rapporto obbligatorio garantito e (…) di consentire un’efficace amministrazione dei
beni vincolati (soprattuto per i titoli azionari che, per le frequenti oscillazioni del loro valore di mercato,
può essere utili vendere per sostituirli con altri piú convenienti” (cfr. Francesca Dell’Anna Misurale, ob.
cit., págs. 160 e 161). A propósito deste processo evolutivo, Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág.
141 e segs., esclarecem que apenas com este último diploma de 1998 se produziu uma desmaterialização
total, no sentido em que quaisquer vínculos sobre os valores mobiliários se constituem unicamente com o
registo na conta do intermediário financeiro, sendo a inscrição no livro de sócios mera condição de
oponibilidade à sociedade emitente.
2288
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 60, noticia que, desde 1988, a lei impõe a representação através de
anotações em conta para os valores mobiliários negociáveis (no mesmo sentido, Veiga Copo, La prenda
de acciones cit., págs. 127 e 128, alegando que, para os demais, vale o princípio da liberdade de escolha
da modalidade de representação por parte da própria sociedade). Segundo Salinas Adelantado, El régimen
613
acordo com o entendimento dominante, não desobrigue as partes do cumprimento das
normas gerais do penhor relativas à identificação escrita do crédito garantido e do bem
empenhado.2290
O fenómeno da desmaterialização dos valores mobiliários foi originado pela
constatação que a incorporação do direito num título, pese embora a inovação que
representou no momento da sua criação,2291 possui inconvenientes que a tornam
imprópria para o actual comércio jurídico.2292
cit., pág. 126 e segs., o processo evolutivo iniciou-se em 1974 (com a instauração de um sistema de
desmaterialização facultativa), passou, em 1982, pela desmaterialização dos títulos da dívida pública e
culminou, em 1988, com a adopção generalizada de um sistema desmaterializado para os valores
destinados à negociação (regulando de modo completo este tipo de representação dos valores, desde a
constituição das anotações em conta, à organização dos registos, ao regime da transmissão e constituição
de ónus sobre os valores e à protecção do terceiro de boa fé).
2289
No direito francês, o processo de desmaterialização iniciou-se com a Lei de 30/12/1981 (que
determinou a substituição dos títulos ao portador por títulos desmaterializados – cfr. art.º 94), tendo sido
posteriormente desenvolvido pela Lei de 3/1/1983, alterada pela Lei de 2/7/1996, cujo art.º 29.º dispõe
que o penhor sobre os títulos desmaterializados se constitui “tant à l’égard de la personne morale
émettrice qu’à l’égard des tiers, per une déclaration daté et signé par le titulaire; cette déclaration
contient le montant de la somme due ansi que le montant et la nature des titres constitués en gage. Les
titres nantis sont virés sur un compte spécial ouvert au nom du titulaire et tenu par la personne morale
émettrice ou l’intermédiaire financier selon le cas. Une attestation de constitution de gage est délivrée au
créancier gagiste. Tout titre venant en substitution ou en complément de ceux constitués en gage, par
suite d’échanges, de regrouprements, de divisions, d’attributions gratuites, de suscription en numéraire
ou autrement sont, sauf convention contraire, compris dans l’assiette du gage à la date de la
déclaration”. Actualmente, tal regime consta do art.º L211-20 do Code Monétaire et Financier – acerca
desta evolução, vide supra n.º 1.2.2 do Capítulo II e Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 40 e segs..
2290
É pelo menos a posição de Luca Panzani, ob. cit., pág. 950 (face ao regime introduzido pelo Decreto
Euro, para quem “le formalità previste dall’art. 2787 codice civile vanno riferite alla registrazione, che
sostituisce a tutti gli effetti, anche per quanto concerne le successive movimentazioni degli strumenti
finanziari, la chartula”), Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 137 (considerando que o registo satisfaz as
exigências relativas à data e à identificação do bem empenhado, mas não consente a individualização do
crédito assegurado) e Luca Enriques, ob. cit., pág. 767.
2291
Como realça Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 101 e segs., a incorporação de
determinados direitos – nomeadamente os de participação social – em títulos visou, por um lado, uma
finalidade probatória (sendo a posse do título a base para o exercício dos direitos sociais) e, por outro, um
desiderato circulatório (operando-se a transmissão dos direitos através da transmissão do título em que os
mesmos se incorporam). Na ausência da incorporação num título, a transmissão destes direitos teria que
regular-se pelo disposto para a cessão de créditos, com os inconvenientes decorrentes da dificuldade de
prova da data da transferência (porquanto na cessão “el derecho circula de manera silenciosa e invisible,
sin signo externo de publicidad de esa transmissión (al ser consensual y no necessitar de tradición. Ello
implica que el adquirente puede sufrir la agresión de los acreedores de su cedente, bajo la imputación de
que la transmissión es posterior a la reclamación de sus créditos y en fraude de sus derechos”: no regime
da incorporação em títulos, o princípio da tradição faz com que a entrega do título comprove a aquisição
face a todos), do risco de liberação do devedor (pois, no regime da cessão, recaem sobre o cessionário as
consequências de um pagamento efectuado pelo devedor ao cedente e, para o evitar, deverá o cessionário
notificar o devedor da cessão: ao contrário, no regime cartular, o devedor apenas se liberará se efectuar a
prestação a quem exiba o título), da ausência de protecção do adquirente em caso de falta de legitimidade
do alienante (protegido, no regime da incorporação num título, através da possibilidade de aquisição a
non domino, desde que o adquirente não se encontre de má fé e o transmitente fosse possuidor, embora o
Autor desvalorize este aspecto, uma vez que a generalidade das participações empenhadas são
depositadas e não permanecem em poder do credor) e de oponibilidade das excepções (enquanto no
regime da cessão o devedor pode opor ao cessionário todas as excepções que poderia opor ao cedente, no
regime titulado esse leque é substancialmente reduzido).
2292
Esta crise dos títulos-valor resulta “de la gran masificación de los mismos, que degeneran en la
ralentación en la movilidad de las riquezeas, y el entorpecimiento de los mercados de capitales (…) la
automatización, la autonomía y la despersonalización han condenado a la obsolescencia la plasmación
de las relaciones jurídicas por medio de documentación escrita” - Veiga Copo, La prenda de acciones
cit., págs. 114 e segs., falando, a este propósito, de um “paper crunch” ou, em alternativa, como “las
614
Este progressivo abandono do regime dos títulos de crédito iniciou-se com o
surgimento de depósitos colectivos em instituições de crédito especializadas, passou
pela criação de títulos globais, culminando no desaparecimento do suporte físico.2293
Todavia, o processo de desmaterialização pode assumir natureza substitutiva ou,
pelo contrário, meramente correctiva, residindo a diferença entre eles no facto de a
primeira alternativa conduzir à eliminação definitiva do suporte material, enquanto na
segunda a desmaterialização é reversível, isto é, não se impede o regresso à
representação cartular.2294
ventajas del papel han desembocado en los inconvenientes papeleros” (com efeito, o recurso a aumentos
massivos de capital - através da emissão de novas acções - por parte das sociedades privadas, associado à
emissão em larga escala de títulos da dívida pública, veio demonstrar a insuficiência da incorporação em
títulos). O mesmo panorama é apresentado por Soveral Martins, ob. cit., pág. 175, realçando o aumento
das exigências de celeridade na circulação das acções, os custos inerentes à emissão dos títulos e as
dificuldades do seu armazenamento (sobretudo a partir do momento em que a evolução informática
permitiu o desenvolvimento de soluções alternativas).
2293
Aponta este caminho Soveral Martins, ob. cit., pág. 175 e segs., noticiando como na Alemanha os
bancos criaram um sistema de depósito dos títulos, conferindo aos proprietários dos títulos depositados
um direito de compropriedade relativamente ao depósito colectivo (e, tratando-se de acções de uma
sociedade, para o exercício dos direitos sociais correspondentes bastaria um documento emitido pelo
depositário que comprovasse o depósito) e, posteriormente, surgiram os títulos globais (os quais não
exigem, para a transmissão dos direitos a eles relativos, a sua movimentação física, bastando a simples
transferência de registos). Em Portugal, o Decreto-Lei n.º 150/77, de 13 de Abril, determinou a
obrigatoriedade de registo ou depósito de acções, tanto nominativas, como ao portador (apesar de o
Decreto-Lei n.º 408/82, de 29 de Setembro, tenha eliminado tal dever relativamente às acções ao
portador), embora se continuasse a exigir a entrega física dos títulos para a liquidação das operações em
bolsa, exigência que só veio a ser suprimida com a aprovação do Decreto-Lei n.º 210-A/87, de 27 de
Maio (o que veio permitir o depósito em instituições financeiras dos títulos abrangidos pelo sistema de
liquidação daquelas operações, funcionando como um depósito irregular de valores mobiliários, através
do qual o depositário podia restituir ao depositante títulos da mesma espécie e valor, que conferissem
idênticos direitos, qualquer que fosse a numeração).
2294
Alude a esta distinção Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 100 e segs., demonstrando a sua
preferência pelos sistemas substitutivos, uma vez que os correctivos consagram uma solução intermédia
que dificulta a operacionalidade dos valores desmaterializados e mantém alguns dos inconvenientes dos
títulos cartulares. Como paradigma dos sistemas substitutivos, o Autor apresenta o vigente em França, no
qual a desmaterialização total, inicialmente apenas para os títulos ao portador (imposto por uma lei de
1941, mas que constituiu um fracasso, porquanto impunha o depósito obrigatório de todos os títulos ao
portador, o que incentivou uma massiva conversão dos mesmos em títulos nominativos, não abrangidos
por aquele depósito), posteriormente alterado no sentido de tornar o depósito facultativo (em 1949),
culminando, em 1983, com a desincorporação total de todos os valores mobiliários (sistema este que
assenta em duas premissas básicas - a obrigatoriedade e a generalidade - e que expressamente prevê o
penhor destes bens). Pelo contrário, o sistema alemão aplicável aos valores privados (uma vez que para os
públicos a desmaterialização total se encontra consagrada) tem natureza meramente correctiva, o leva o
Autor a emitir um juízo negativo a tal respeito (porquanto “se empeña em mantener los signos
tradicionales de los títulos-valores para una realidad en la que ya no pueden cumplir la finalidad para
que fueron creados”, tanto mais que para a emissão dos valores mobiliários continua a ser necessária a
existência de um título). Para Annalisa Liuzi, ob. cit., pág. 45 e segs., a desmaterialização pode assumir
diversas gradações (total, em que o título desaparece definitivamente e o direito que nele estava
incorporado passa a constar apenas de uma inscrição em conta; total facultativa, se o possuidor do título
pode escolher se inclui ou não o documento no sistema de gestão centralizada; e a desmaterialização
apenas da circulação, em que o título é depositado, a requerimento do seu portador, num gestor central e,
a partir desse momento, circula através de operações em conta – era este, no parecer da Autora, o sistema
inicialmente introduzido em Itália pelo sistema Monte Titoli, pois “non si verifica la scomparsa assoluta
del documento. Il titolo esiste materialmente ma viene depositato in amministrazione centralizzata nel
deposito alla rinfusa all’interno del quale può circolare liberamente come quota. Tutttavia, una volta
uscito dal sistema, il titolo di credito deve nuovamente sottostare all’osservanza del diritto comune”, pelo
que se “scorpora la circolazione del diritto della circolazione del documento, senza scorporare il diritto
dal documento” – acerca da evolução posterior do ordenamento italiano, vide as notas anteriores.
615
Adoptando uma visão demasiado conservadora e limitada, o fenómeno da
desmaterialização parece mesmo tornar inviável a colocação em penhor dos valores
representados por anotações em conta, na medida em que o regime geral da garantia
pignoratícia pressupõe o entrega de uma coisa ou de um documento que confira a
exclusiva disponibilidade daquela, estando a essa entrega subjacente a noção de
desapossamento do constituinte da garantia: ora bem, a desmaterialização parece tornar
impraticável, quer a entrega, quer o desapossamento.2295
Porém, a admissibilidade da colocação em penhor dos títulos desmaterializados
pode (e deve) ser sustentada, não apenas por ser a solução que decorre do direito
constituído, mas sobretudo porque a inscrição nos registos a que se fez referência
permite superar os possíveis entraves decorrentes da ausência de desapossamento que,
nos termos do regime pignoratício geral, caracteriza a constituição desta garantia, bem
como da anotação do ónus no documento material (cumprindo mais cabalmente os
desígnios publicitários inerentes à constituição da garantia).2296
Num plano diverso, a desmaterialização não responde, ao menos em termos
definitivos, à questão – que já se colocava a respeito dos título em papel - de saber qual
o objecto do penhor de títulos, agora escriturais, adensando até, em certa medida, as
dúvidas a este respeito.2297
2295
Assim, Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 143, não sem reconhecer que a noção civilística de bem (cfr.
art.º 810.º do CCI) ser mais ampla do que a de coisas materiais, pelo que o objecto do direito não terá que
ser necessariamente uma entidade material. Mais ainda, no direito italiano a aplicação do regime geral do
penhor não se deverá cingir à enumeração dos possíveis objectos do penhor, mas abranger igualmente as
condições necessárias para o surgimento do direito de preferência, ou seja, o documento com data certa
contendo a suficiente indicação do bem empenhado e do crédito assegurado (assegurando Pierpaolo
Marano, ob. cit., pág. 144, que esta última indicação, em particular, não resultará do registo no qual se
averba a constituição de penhor sobre instrumentos desmaterializados).
2296
Salienta estas duas anomalias Mia Callegari, Il pegno su titoli dematerializzati, Giuffrè, 2004, pág. 7
segs., acrescentando que tais desideratos são alcançados, em caso de desmaterialização, através da
inscrição da garantia nos registos dos depositários-intermediários, a qual produz os mesmos efeitos da
inscrição no título corpóreo. No que especificamente concerne à desconformidade com o regime geral do
penhor de títulos de crédito, a mesma Autora realça, não apenas a ausência de desapossamento (exigido,
para este tipo de bens em concreto, pelo art.º 1997 do CCI), mas sobretudo do seu carácter publicitário,
embora conclua que o mesmo poderá ser alcançado, até com maior propriedade, através da inscrição nos
registos previstos para os valores desmaterializados.
2297
A questão entronca numa outra, qual seja a de natureza das anotações em conta, relativamente à qual
se vislumbram, pelo menos, três posições: uma primeira que as assimila aos títulos corpóreos (dos quais
constituiriam uma nova sub-espécie, aparecendo os registos informáticos como uma adaptação às novas
realidades); outra, considerando que estaremos perante um novo registo jurídico de bens; e uma terceira
advogando que as anotações em conta constituem uma forma sui generis de representação dos valores
mobiliários, não integrável em nenhuma categoria antes existente, apesar de o seu regime jurídico
incorporar elementos do direito dos títulos-valores e do direito registal). A adopção de uma ou outra
perspectiva conduzirá à configuração da constituição de ónus sobre estes bens como penhores de coisas
(primeira tese) ou de hipoteca (segunda tese) ou uma nova espécie de penhor (considerando que a
inscrição do penhor no registo equivale ao desapossamento imposto pelo regime geral do penhor, do
mesmo modo que a transmissão da propriedade dos mesmos valores produzirá os mesmos efeitos da
tradição dos títulos). Todavia, parece consensual existir um conjunto de soluções que não podem ser
explicadas através da equiparação destes valores aos títulos cartulares (com sejam a aplicação de alguns
princípios registais, como o da prioridade e do trato sucessivo, da legitimação e da fé pública registal), do
mesmo modo que o regime se afasta, em diversos pontos, do regime registal (a entidade encarregue do
registo não é pública, do mesmo modo que esse registo também não é de acesso livre ao público, sendo
este último facto contrabalançado pela publicidade da escritura que deve ser exibida no momento do
registo e pela responsabilidade das entidades encarregues do registo). Acerca destas teorias que procuram
explicar a natureza jurídica das anotações em conta, vide Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs.
122 a 126, dando conta destas três posições no direito espanhol. Entre nós, Soveral Martins, ob. cit., pág.
186 e segs., destaca como o registo dos valores mobiliários pode ser efectuado em papel ou através de
suporte informático, mas ressalva como “Não são os suportes que representam os valores mobiliários,
616
A este propósito, deparamo-nos com diversas posições,2298 uma delas advogando
estarmos ainda perante um penhor de coisa (ou, pelo menos, sujeito ao regime
legalmente definido para este),2299 equiparando o documento desmaterializado ao título
mas sim os registos em conta. Os suportes são apenas isso mesmo: suportes de registos”: partindo deste
pressuposto o Autor considera existirem vários pontos comuns entre o regime dos valores mobiliários
escriturais e dos títulos de crédito (como sejam a presunção da existência do direito registado, a protecção
do adquirente de boa fé, a legitimidade para o exercício dos direitos sociais em função dos dados
constantes do registo), mas também outros tantos desvios, concluindo que a qualificação das acções
escriturais (ou os registos em conta) como títulos de crédito seria introduzir um factor de confusão (uma
vez que “uma coisa é o registo em conta, outra a participação social representada por esse registo. Se o
valor mobiliário não se confunde com a representação do mesmo, afirmar que o valor mobiliário
escritural é um título de crédito pode ser interpretado como querendo dizer que o valor mobiliário é a
representação do valor”), sem prejuízo da possibilidade de aplicação às acções escriturais de algumas
normas ditadas para os títulos de crédito, quando tal se justifique.
2298
Para um panorama geral das diversas posições, vide Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 131
e segs., nota 217, aludindo à contraposição entre aqueles que defendem tratar-se de um depósito regular
(que enfrenta o “insuperabile ostacolo la circostanza che i titoli sono immessi nel sistema quali entità
fungibili, per cui viene meno ogni rapporto di tipo reale tra depositante e titoli stessi”), de um depósito
regular “a granel” (convertendo a propriedade individual numa comunhão de direito sobre a totalidade
dos bens depositados, ou seja, o depositante torna-se “comproprietario pro concorrenti quantitate di una
quota ideale della massa”), de um depósito irregular (embora a tal pareça opor-se o facto de o depositário
não poder, ao contrário do que sucede no depósito irregular, servir-se e/ou dispor dos bens depositados),
de um património autónomo (como consequência da desmaterialização e da impossibilidade de o
depositante adquirir a propriedade dos bens depositados) ou de um penhor de créditos (cujo conteúdo
reside no direito de crédito a uma correcta gestão e à restituição dos bens depositados). Por outro lado e
como bem salienta Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 27 e segs., a qualificação do vínculo como
depósito “a granel” implica a que o objecto do penhor seja uma quota de compropriedade da massa de
títulos, enquanto para quem adopte a tese do património autónomo – nos termos da qual os depositantes
permanecem titulares dos direitos pela espécie e quantidade depositadas - deve considerar-se como
objecto do penhor um direito cartular, embora desmaterializado, inerente aos títulos inseridos no sistema
de gestão.
2299
Em face do direito italiano, Gabrielli, Il pegno cit., págs. 229 e 231 a 237 e Pegno cit., págs. 695 e
696, sugere que o penhor de títulos primeiramente criado (que previa a sua inserção num sistema de
gestão comum, a cargo da sociedade Monte Titoli) continua a ser um penhor de coisas, uma vez que
“deposito e pegno sono regolari, anche se il depositario (subdepositario) non detiene nomine proprio ma
come terzo consegnatario del pegno” (igual conclusão valendo para os títulos da dívida pública
integrados no respectivo sistema de gestão, mesmo que ainda não tenham sido emitidos: neste último
caso, o certificado provisório será inserido pelo credor no sistema de gestão, notificando a entidade
gestora da constituição do penhor, que terá por objecto o direito individual do empenhante à obtenção dos
títulos ou da respectiva importância, direito este que tem como titular do correspondente dever a entidade
gestora e não o emitente, porquanto é aquele que vai reclamar deste a emissão dos títulos). De acordo
com Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 110 e segs., também no direito alemão é esta a posição
dominante, fundamentando-se a aplicação do regime das coisas móveis, ora considerando estes bens
como coisas em sentido amplo, ora aplicando por analogia aquelas mesmas regras (preferindo o Autor
esta segunda alternativa, apelando à identidade da ratio entre os direitos-valor e os títulos-valor para
justificar aquela aplicação analógica), com algumas nuances, como a que resulta de a protecção do
terceiro adquirente decorrer, não já da posse de boa fé, mas sim da inscrição no registo (a qual, diga-se,
tem natureza constitutiva no que respeita à transmissão da propriedade ou de direitos limitados).
Apadrinha igualmente este entendimento Daniel Fasquelle, ob. cit., págs. 4 e 5, defendendo que, apesar
do desaparecimento do papel conduzir ao abandono da ideia de incorporação do direito no título, tal não
deve significar a inclusão do penhor de valores mobiliários escriturais no seio do penhor de créditos (em
resultado de uma confusão entre o direito de propriedade e o seu objecto, esquecendo que aquele, em
razão do advento dos bens incorpóreos, assumiu contornos inéditos), configurando-o antes como “un
droit réel sur la valeur inscrite en compte” (por comungar das duas características essenciais dos iure in
rem, ou seja, atribuição de um poder directo sobre uma coisa e oponibilidade absoluta), à imagem do que
se passa com as participações sociais (tendo em conta que, quer para os valores mobiliários, quer para
estas participações – em razão da natureza incorpórea de ambas – a ideia de posse se afigura inaplicável),
embora reconheça que a circunstância de recair sobre um bem não individualizado possa originar
dificuldades.
617
de crédito, representando aquele uma evolução deste, caracterizada por uma forma
diversa.2300
Esta posição, radicando na equiparação entre o objecto do penhor de títulos de
crédito e instrumentos desmaterializados2301 (nomeadamente entre os efeitos do registo
os do desapossamento material do título2302 e na materialidade do documento
2300
Neste sentido, Mia Callegari, ob. cit., pág. 23 e segs., contestando que o título desmaterializado seja
completamente abstracto, declarando que o mesmo possui “oggettività e materialità”, de tal modo que
será possível configurar “una fattispecie di titolo di credito incorporato in un documento non già
cartaceo, bensì elettonico. In tutte le esperienze di dematerializzazione, si ha una registrazione
computerizzata di informazioni, che corrispondono ai dati del documento: si potrebbe allora assimilare il
documento informatizzato alla creazione di un titolo di credito invece che su veicolo cartolare, su un
diverso supporto”. Esta posição é criticada por Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 43, por assumir que um
bem passível de tradição tenha que ser um bem corpóreo – esquecendo que a transferência de activos
entre contas é uma forma de tradição de bens incorpóreos -, e por partir de dois pressupostos errados: por
um lado, a incorporação dos activos na inscrição em conta e, por outro, a natureza corpórea da inscrição).
2301
Mia Callegari, ob. cit., pág. 28 e segs., salientando que tal conclusão é confortada pelo “parallelo tra
strumenti dematerializzati e fattispecie cartolare e la verifica della sussistenza dei requisiti cartolari in
capo ai diritti scritturali”, pelo que se poderá afirmar “una incorporazione di diritti anche nel documento
decartolarizzato, che si presenta dunque come un bene di secondo grado ed un bene materiale, al pari
del titolo di credito tradizionale” (a mesma Autora, ob. cit., págs. 57 e segs., justifica esta evolução com a
circunstância de, no passado, a incorporação do direito num documento ter representado um meio capaz
de cumprir os objectivos de rapidez e segurança das transações, actualmente assiste-se a um fenómeno
inverso “diretto ad affidare il trasferimento dei diritti a meccanismi differenti da quelli legati alla traditio
del documento cartaceo”, surgindo a desmaterialização como capaz de assegurar “operazioni che
riproducono in forme nuove il meccanismo cartolare e ricorre al documento tradizionale spesso con
funzione di mera legittimazione”: em suma, um percurso semelhante ao da circulação monetária, cuja
representação metálica e corpórea, tem sido paulatinamente substituída por outros instrumentos de
pagamento electrónicos, como sejam os operações realizadas através de cartões de crédito e débito). Em
termos análogos, Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 109 e segs., assegurando que os
direitos escriturais, embora estruturalmente desincorporados, “funcionalmente, deben circular como
títulos valor. De la misma manera que la constitución del derecho cartular requería la producción del
papel, la constitución del derecho escritural (…) requiere la producción de la inscripción en la cuenta”
(de modo que, quando o título é depositado, o depositário não adquire a respectiva propriedade, mas este
pode ser tratado como fungível, atribuindo-se a propriedade a non domino em função dos dados inscritos
no registo) e, no que respeita à constituição de penhor, a inscrição da garantia no registo confere ao seu
titular legitimidade para a executar, independentemente da respectiva titularidade (que circulará de acordo
com as regras do direito comum).
2302
Com efeito, através da incorporação do título na “chartula”, esta torna-se um instrumento necessário
e suficiente para o exercício dos direitos nela mencionados, de modo que a possibilidade de exercício
destes últimos constitui um reflexo da detenção do título. Ora, a inscrição em conta “analogamente, non
modifica nè altera il contenuto delle prerogative del titolare”, ficando este impedido de exercer o seu
direito na ausência de inscrição, para além de a sua ausência tornar inviável a circulação do instrumento
financeiro e de constituir condição de oponibilidade a terceiros da titularidade inicial e das futuras
cessões. De facto, o importante é que, nos instrumentos destinados a uma circulação célere e repetida,
exista a objectivação do direito num suporte – seja ele físico ou escritural – representando a inscrição
“una cristallizzazione giuridica dei diritti, proprio come l’incorporazione dei medesimi nei titoli di
credito” (cfr. Mia Callegari, ob. cit., pág. 53 e segs. e 59 e segs., ao ponto de considerar que o princípio
da literalidade deverá igualmente valer para os valores desmaterializados, “nella misura in cui i dati del
messaggio elettronico siano percepibili, comprensibili e riproducibili, pare naturale attribuire loro la
medesima efficacia vincolante che hanno le informazioni incorporate su di un supporto cartaceo”, até
porque as informações relativas à titularidade e aos vínculos sobre os instrumentos financeiros
desmaterializados, detidas pelo sistema informático da sociedade gestora e dos intermediários, equivalem
ao dados tradicionalmente inscritos no título, para além da possibilidade de comprovação do direito de
preferência através da emissão de certificados atestando tal facto). Nesta conformidade, não se afigura
imperiosa a representação cartular para desencadear a aplicação do regime consagrado para esta última
forma de representação, uma vez que “il ricorso allo strumento cartaceo non risponde ad esigenze
logicamente connesse all’aplicabilità della disciplina di rango cartolare. In questo senso, la chartula non
é l’ineliminabile e necessaria condizione per sottrare il credito ai principi circolatori ordinari (…) il
618
desmaterializado,2303 circunstância que o torna susceptível de direitos reais2304 - e da
respectiva tutela2305 - e de posse2306) sustenta a integração do regime especial previsto
619
para este tipo de bens com o regime geral do penhor, recorrendo, para o efeito e a
respeito das participações sociais, à constatação da objectivação da posição proprietária
do sócio.2307
Mais concretamente, também nesta fattispecie se produziriam efeitos análogos
aos do desapossamento,2308 designadamente ao nível publicitário,2309 e com a atribuição
configurazione della titolarità degli strumenti, qualificandosi invece come una mediazione che ha la sua
ratio nel garantire una gestione imparziale delle negoziazioni, a tutela dell’investimento”.
2305
Uma vez que o titular de boa fé (será, aliás, difícil imaginar a má fé do adquirente, atento o facto de a
generalidade das operações decorrerem através de intermediário) de um direito inscrito no registo dos
valores desmaterializados se encontra a salvo das acções de reivindicação propostas por um pretenso
titular anterior, bem como das excepções objectivas (encontrando-se, eventualmente, sujeito à invocação
das excepções pessoais por parte do emitente ou de outros titulares dos mesmos direitos) – neste contexto,
Mia Callegari, ob. cit., pág. 99 e segs., entende que tais soluções representam a “volontà del legislatore di
assicurare una tutela reale equivalente a quella tradizionale (…) parallelismo tra la tutela cartolare e
quella scritturale” (não sem, contudo, realçar a diferença resultante da necessidade de intervenção de um
intermediário financeiro e das eventuais disfunções do sistema de gestão centralizada).
2306
Sempre de acordo com Mia Callegari, ob. cit., pág. 93 e segs., a tradição simbólica ou indirecta
(entendida como aquela que entrega ao adquirente do direito, não a coisa em si, mas os meios necessários
para poder exercer um poder efectivo sobre o objecto do direito) há muito é admitida, de modo que o
termo “entrega” deve ser lido em termos amplos como significando “qualsiasi comporamente idoneo ad
attribuire la materiale disponibilità del documento”: ora, se assim é e a partir do momento em que a
circulação dos bens pode verificar-se através de transferências de contas, “si può ravvisare una innovativa
funzione di traditio dellla scrittura in conto” (enumerando ainda casos em que determinados bens, cuja
materialidade parece igualmente discutível, se encontram sujeitos a um poder absoluto por parte do seu
titular, como a energia eléctrica). Em face do nosso direito, Soveral Martins, ob. cit., pág. 289 e segs.,
enquadra esta questão no âmbito mais geral da susceptibilidade de posse dos bens imateriais (isto quer os
valores mobiliários sejam tituladas ou escriturais, ou seja, quer sejam representados por suportes físicos
ou por anotações em conta), aludindo à existência de múltiplas posições doutrinais e jurisprudenciais num
e noutro sentido relativamente às participações sociais, acabando por admitir tal posse (para mais
desenvolvimentos sobre a susceptibilidade de posse sobre os bens imateriais, vide infra n.ºs 5.1.1 e 5.1.4
do Capítulo I).
2307
Nomeadamente as quotas das sociedades de responsabilidade limitada e as partes das sociedade em
nome colectivo. Relativamente às primeiras, “non possono ricondursi agli schemi dei titoli di credito, ma
alle quale si è progressivamente riconosciuta una oggettivazione, sia in forza del loro valore economico e
della loro “rappresentatività” coroporativa, sia al fine di inquadrare la cessione dei diritti inerenti”,
facto este que levou, mesmo na ausência de uma norma expressa e por analogia com as sociedades
anónimas, a admitir o penhor sobre este tipo de participações. No que às segundas diz respeito e apesar de
algumas incertezas (relacionadas com a natureza jurídica das participações sociais deste tipo de
sociedades), a orientação dominante parece favorável à admissibilidade de constituição de direitos reais
sobre as respectivas partes sociais, com fundamento nas semelhanças com os títulos accionistas, através
de um percurso de “oggettivazione della titolarità dei rapporti sociali che trasforma la quota da concetto
in oggetto di diritto, consentendo di attribuirle natura di res, sia pure di carattere immateriale; e
orientando quindi la scelta nel senso dell’amissibilità della costituzione del pegno. Né ad essa osterebbe
(…) il fatto in sé che la quota non sis suscettibile di possesso (…) rilevando che l’elemento materiale del
possesso, il corpus, va inteso in senso general come rapporto di dominazione sulla cosa (…) che
normalmente è fisica, ma che può ben essere anche economica, sub specie della utilizzazione concreta
della cosa”. Outros exemplos de objectivação de bens imateriais podem vislumbrar-se na admissibilidade
dos penhores rotativos (e, em geral, em todas as fattispecie em que a garantia seja constituída sobre
objecto sujeito a transformações futuras) ou sobre o valor do conjunto dos bens onerados (que, no fundo,
traduz o reconhecimento legal dos penhores rotativos – cfr. art.º 46.º do Regulamento Consob, ao admitir
a sujeição ao penhor do conjunto dos instrumentos financeiros registados na conta de um intermediário),
bem como na identificação do objecto do penhor de estabelecimento comercial (entendido como um
penhor de coisa “nonostante la natura delle singole entità, le quali vengono in considerazione solo per la
destinazione unitaria e per la componente patrimoniale e risultano comunque tutte oggettivate ed
integrate nel patrimonio dell’impresa”, representando assim uma abstracção dos diversos elementos que
o compõem) – cfr. Mia Callegari, ob. cit., pág. 169 e segs..
2308
De acordo com esta perspectiva (cfr. Mia Callegari, ob. cit., pág. 179 e segs.), no penhor de
instrumentos desmaterializados devem ser observados os requisitos impostos pelo regime geral do penhor
620
ao credor de poderes em tudo idênticos aos dos titulares de penhor sobre outro tipo de
bens.2310
e, cumulativamente, o previsto no regime especial ditado para os casos em que a garantia recaia sobre
aquele tipo de bens. Ora, quanto aos primeiros, assume especial relevância o desapossamento do devedor
que, no entanto e em sede de instrumentos desmaterializados, se poderá ter por efectuado – partindo de
uma interpretação menos formalista e colocando o acento tónico na criação de uma situação de
indisponibilidade do bem onerado por parte do empenhante – através da colocação dos bens onerados
numa conta ad hoc (separando-os do restante património do seu titular) e da exteriorização de tal situação
através da publicitação das informações relativas à garantia, mecanismos estes que consentem a
identificação do credor pignoratício relativamente ao qual “l’intermediario diventa soggetto referente per
l’esercizio dei diritti inerenti i valori ed obbligato e responsabile della loro gestione (…) e risultano di
fatto idonei ad assicurare l’indisponibilità del bene da parte del costituente, anche e proprio a mezzo
dell’intermediario”, considerando este último um terceiro a quem o objecto da garantia é confiado
(embora reconheça não se poder falar de desapossamento físico, uma vez que prescinde da originária
detenção do bem por parte do devedor e do posterior empossamento do credor). Deste modo, o
desapossamento surge, in casu, com o “affidamento ad un terzo (l’intermediario) che già detiene i titoli.
Infatti, il debitore ne rimane titolare (…), a attraverso l’iscrizione in un conto separato al momento della
costituzione della garanzia è privato della loro piena disponibilità. I valori sono assoggettati alla nuova
destinazione in forza di un atto e sotto il controllo dell’intermediario, che li detiene, come già si
anticipava, non più solo in ragione dell’affidamento, ma anche in forza del vincolo” e sem que o devedor
possa dispor do bem empenhado sem a cooperação do credor, exercida através do intermediário (o que é
particularmente visível em caso de oneração de participações sociais, caso em que o credor terá a
disponibilidade dos direitos, patrimoniais e administrativos, inerentes a tais participações, embora os
exerça através do gestor, a quem pode solicitar a emissão de certificados e a notificação da sociedade
emitente). Todavia, a designação do terceiro, nesta situação, não resulta de um acordo das partes, mas sim
de uma decisão legislativa (à imagem do que sucede aquando da nomeação judicial em caso de desacordo
das partes), que se justifica pela obrigatoriedade de a negociação dos instrumentos financeiros se
processar através de sujeitos para o efeito autorizados, pelo que nenhum outro poderia ser depositário dos
ditos bens. Nesta conformidade, não se afasta o regime geral do penhor, nos termos do qual é admissível
o desapossamento sem que o bem a onerar se encontre na posse do devedor no momento da constituição
da garantia e sem a entrega, nesse momento, do bem ao credor, conforme se alcança da admissibilidade
de designação de um terceiro detentor ou da criação de uma situação de composse em casos em que a
utilização do bem por parte do empenhante se afigure indispensável: é o que acontece com os
instrumentos financeiros, uma vez que “richiedendo di essere intermediati da società specializzate (…) il
proprietario dei titoli si trova nella difficoltà di assoggettarli a pegno senza rinunciare al loro utilizzo,
atteso che la gestione dei medesimi avviene solo attraverso l’accentramento”.
2309
Mesmo sendo discutível a relevância publicitária do desapossamento, Mia Callegari, ob. cit., pág. 192
e segs., reconhece-lhe uma função de exteriorização que deverá manifestar-se nos mecanismos que
substituam esse desapossamento. No caso concreto do penhor de valores desmaterializados, tal desiderato
é assegurado através de indisponibilidade dos bens vinculados (através da actuação da gestão
centralizada) e da inscrição no competente registo (enquanto meio de prova da particular destinação dos
bens onerados), para além de este último dirimir os potenciais conflitos entre direitos sobre os ditos bens:
não surpreende, por isso, que o legislador equipare a inscrição no registo à constituição do vínculo
directamente sobre o título.
2310
Relativamente ao direito de preferência, naqueles ordenamentos – como o italiano - nos quais tal
prerrogativa se encontra dependente, em geral, de redacção de um documento escrito, de data certa, com
suficiente identificação do crédito garantido e do bem empenhado, coloca-se a questão de saber se o
mesmo terá que ser redigido para a sua atribuição no penhor de títulos desmaterializados (acerca deste
assunto, vide infra no texto). Se quanto ao requisito da data certa não se suscitam grandes dúvidas (uma
vez que a inscrição no registo assegura a sua observância), já a individualização do crédito garantido (o
qual, por vezes, não surge explicitado no requerimento de registo da garantia) e da res onerada (sobretudo
porque a jurisprudência impõe, para os títulos não escriturais, a enumeração da quantidade e da espécie,
razão pela qual, para os desmaterializados, cumprirá indicar os respectivos códigos alfanuméricos que
consentem uma posterior identificação cruzada dos títulos) se afiguram mais problemáticas (por outro
lado, a perda do direito de preferência pode, noutra ordem de considerações, resultar da não permanência
do desapossamento do devedor, in casu, a retirada dos valores da gestão daquele intermediário ou o
cancelamento do seu registo: para evitar que comportamentos imputáveis ao intermediário possam
produzir este efeito, dever-se-á considerar que, nestes casos, o penhor não se extinguirá, ficando apenas
quiescente, desde que o credor proceda a uma tempestiva defesa do seu direito). Para além da preferência,
621
Outras opiniões, pelo contrário, consideram tratar-se de um penhor irregular
(atendendo à transferência da propriedade dos instrumentos depositados junto dos
intermediários financeiros, em razão da respectiva fungibilidade)2311 ou, em alternativa,
o credor gozará ainda de alguns direitos patrimoniais e administrativos inerentes aos instrumentos
financeiros, embora para o exercício de alguns seja forçosa a obtenção de certificados a emitir pelo
intermediário financeiro (excepto se este comunicar a garantia ao emitente dos instrumentos), os quais
terão que ser exibidos, por exemplo, para exercer o direito de voto e de intervenção nas assembleias
gerais, devendo o intermediário). Por outro lado, o credor poderá ainda socorrer-se das acções destinadas
à defesa do seu direito, designadamente as possessórias (“In tutti i casi in cui vi sia un’alterazione
ingiustificata ed illegitima delle anotazioni in conto e delle registrazioni (…) con cui il creditore
pignoratizio, che veda modificata la propria posizione rispetto agli strumenti ovvero realizzati
trasferimenti non conosciuti e non autorizzati”) em caso de esbulho (“tutte le situazioni che comporino
un’alterazione della destinazione degli strumenti (es. cancelazione degli strumenti dal conto dei vincoli;
intestazione degli strumenti a soggetto diverso dal debitore)”) ou turbação (“situazini che comportino
un’alterazione provvisoria o parziale delle prerogative e della posizione del creditore (es. illegitima
attribuzione di un diritto agli utili al debitore o ad un terzo; indicazione inveritiera di un altro creditore
pignoratizio)”) as de reivindicação (cujo sucesso contra terceiros adquirentes – sempre que os direitos
destes sejam de constituição posterior ao registo do penhor ou, sendo anteriores, o credor tenha registado
o seu direito ignorando sem culpa a sua existência - conduzirá a uma reinscrição dos bens na conta dos
valores onerados). O credor pignoratício tem, noutra vertente, direitos relativamente ao intermediário –
por força do contrato de depósito celebrado entre ambos – sobre o qual impende a responsabilidade por
uma eventual perda ou deterioração do bem empenhado (por exemplo, por impossibilidade de exercer os
direitos sociais), pelo que o credor poderá dele exigir, em sede de responsabilidade contratual, uma
indemnização pelos danos sofridos. Finalmente, em sede de execução da garantia, serão aplicáveis as
normas gerais do penhor, com algumas adaptações (nomeadamente porque a venda será efectuada através
de um intermediário financeiro, que não terá forçosamente que ser o originário – e nunca judicialmente –
e porque os seus efeitos se traduzirão “in trasferimenti all’interno dell’ambiente dematerializzato: con il
passaggio tramite giroconto dei titoli al nuovo acquirente (e l’attribuzione del prezzo al creditore
pignoratizio) ove si opti per la vendita ovveto direttamente al beneficiario della garanzia, con apertura di
conto a suo nome ed iscrizione dei titoli nel medesimo, ove si opti per l’assegnazione”) - Mia Callegari,
ob. cit., pág. 201 e segs..
2311
Esta alternativa passa por considerar que a garantia se constitui sobre um depósito em dinheiro
efectuado pelo cliente, o qual se vem a confundir com o restante património da entidade bancária,
obrigando-se esta a restituir o tantundem (considera plausível esta solução Gabrielli, Il pegno cit., pág.
231 e segs., embora advirta para as dificuldades de sobreposição entre as relações de mandato e de
garantia existentes entre os mesmos sujeitos e, por outro lado, de compatibilização entre a estrutura do
penhor irregular e a da operação de aquisição e oneração dos referidos títulos). Segundo Pierpaolo
Marano, ob. cit., pág. 144, esta tese identifica como objecto da garantia as somas de dinheiro que se
pretendem investir para aquisição dos instrumentos financeiros (construção válida apenas no caso de
colocação em penhor de instrumentos financeiros relacionados com a constituição do penhor, mas não
quando o constituinte já seja titular do instrumento a dar em garantia). Parece aderir a este entendimento,
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 44, ao sustentar a natureza incorpórea dos activos escriturais (moeda e
títulos financeiros), como última etapa do processo de desmaterialização, embora com uma dimensão sui
generis decorrente da sua representação através de um título, ele mesmo um bem incorpóreo, rejeitando
que os valores escriturais sejam recondutíveis a um simples crédito do depositário à restituição, parecendo
antes que a natureza fungível destes bens não se opõem ao reconhecimento de um verdadeiro direito de
propriedade sobre os mesmos – sendo estes individualizados através da inscrição em conta – tendo como
objecto uma verdadeira unidade monetária – ou melhor, um stock de moedas ou instrumentos enquanto
valor, símbolo representativo dos instrumentos monetários que concretizam esse valor, ou seja, “Le solde
de compte est une monnaie parce que’il représente un certain nombre d’unités d’échange. Son contenue
varie en fonction des remises et retraits de son titulaire, le compte n’étant alors que le contenant” –, até
porque a natureza creditícia se coaduna mal com a disponibilidade deste tipo de activos, sendo esta
explicada pela tese monterista através da consideração que a entrega do bem ao depositário constitui
apenas uma troca “entre unité de valeur ficuciaire et scripturale”. O mesmo se diga, mutatis mutandis,
para os activos financeiros escriturais, os quais, pese embora o reconhecimento legal da sua fungibilidade,
são susceptíveis de propriedade, o que parece ser reforçado pela referência legal à propriedade destes
títulos desmaterializados e à admissibilidade jurisprudencial de criação de uma presunção de propriedade,
a favor do titular da conta, sobre os activos nela contidos).
622
de um penhor de créditos2312 ou dos direitos relativos aos instrumentos financeiros
onerados (nomeadamente o direito do titular a dispor dos que se encontrem registados
nas contas dos intermediários financeiros).2313
De acordo com esta última perspectiva, a desmaterialização não contende com a
essência da garantia pignoratícia, uma vez que o objectivo desta é o de retirar ao
constituinte o direito de dispor livremente do bem dado em garantia, surgindo o
desapossamento do empenhante como instrumental relativamente a esse objectivo: ora,
esse mesmo desiderato é alcançado, no âmbito dos valores desmaterializados, através do
registo, uma vez que este assegura igualmente, a favor do credor pignoratício, a
indisponibilidade do objecto da garantia.2314
Para além do exposto, o facto de os bens desmaterializados serem, não raras
vezes, colocados em sistemas de gestão centralizados e, noutro plano, de serem
empenhados como um todo e não isoladamente (ou seja, enquanto conjunto de valores)
origina interrogações adicionais, atendendo, no primeiro caso, à natureza regular ou
irregular do depósito junto das respectivas entidades gestoras2315 e, no segundo, da
suposta qualificação da fattispecie como penhor de universalidade.
2312
Seja como um penhor sobre o crédito do empenhante face ao credor bancário à restituição dos títulos
propriamente ditos ou da soma investida na aquisição dos títulos (afastando a sua aplicação às acções
cotadas em bolsa, relativamente às quais será difícil conceber um dever do devedor restituir o contra-
valor do investimento efectuado pelo constituinte da garantia) ou ainda como crédito do cliente
relativamente ao banco à entrega dos títulos que a banca adquiriu ou adquiriria por conta do cliente
(sendo que uma vez efectuado o registo na conta do cliente, a banca cumpriu o mandato que lhe foi
concedido pelo cliente, pelo que não é configurável nenhum crédito, uma vez que a desmaterialização
prescinde de qualquer entrega e é efectuada imediatamente após a aquisição) – Pierpaolo Marano, ob. cit.,
pág. 144 e segs., embora discordando de qualquer destas propostas.
2313
É a posição de Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 145 e segs.. Segundo este Autor, uma vez efectuado,
por parte do intermediário financeiro, o registo dos instrumentos financeiros pertencentes ao cliente, este
último adquire legitimidade exclusiva para o exercício dos direitos inerentes a esses mesmos instrumentos
(cfr. art.º 32.º do Decreto Euro). Se, em seguida, esses bens são empenhados, a constituição do ónus
resulta do registo na conta detida pelo intermediário financeiro, originando, em benefício do credor
pignoratício, a indisponibilidade dos ditos valores. Assim, “lo spossessamento viene ad essere sostituito
dalla registrazione in apposito conto del vincolo, in quanto manca una res materiale da consegnare,
ovvero sulla quale annotare il vincolo medesimo”, desempenhando as mesmas funções daquele, seja no
plano interno (protegendo o credor contra eventuais actos de disposição do empenhador enquanto sem
que este declare a constituição da garantia), seja no plano externo (dando a conhecer a terceiros que tais
instrumentos servem de garantia ao credor pignoratício).
2314
De acordo com Pierpaolo Marano, ob. cit., págs. 146 e 147, essa indisponibilidade manifesta-se
indubitavelmente quando o credor pignoratício for o intermediário financeiro, mas também se produzirá
quando não o seja, porquanto o intermediário tem conhecimento do beneficiário da garantia registada e,
por isso, apenas deverá proceder ao cancelamento desse registo ou à transferência dos instrumentos com o
consentimento do beneficiário da garantia (sob pena de incorrer em responsabilidade). Desta qualificação
do penhor de instrumentos desmaterializados como vínculo sobre o direito do seu titular a deles dispor,
decorre que o direito de preferência está condicionado (cfr. art.ºs 2787.º, n.º 3 e 2806.º do CCI) à redacção
de um documento escrito com data certa contendo a suficiente identificação do crédito assegurado e da
coisa empenhada (no entender deste Autor, o cumprimento deste último requisito deve, neste caso, ser
cumprido através da indicação da quantidade e espécie dos valores mobiliários do empenhante
relativamente aos quais ele perde o direito de dispor).
2315
Em face do sistema originário (Monte Titoli), Annalisa Liuzi, ob. cit., pág. 52 e segs., considera
estarmos perante um sub-depósito regular “alla rinfusa (…) per cui le cosa depositate non sono custodite
separatamente rispetto ai singoli depositi comporta la perdita della individualità del bene per il
proprietario (…) tra i depositnti si configura solo una compartecipazione alla massa dei documenti
depositati” ou seja, o depositante torna-se co-proprietário da massa de títulos depositados. Mais
concretamente, existem dois contratos de depósito, um primeiro no intermediário financeiro e um
segundo sub-depósito na Monte Titoli (a Autora afasta as objecções relativamente ao carácter regular
deste último depósito, alegando que, apesar de incidir sobre coisas fungíveis e consumíveis, o depositário
não dispõe, ao contrário do que sucede no depósito irregular, de poderes de disposição sobre o objecto do
623
Relativamente à inserção em sistemas de gestão centralizada, para além da
questão prévia da possibilidade de dação em penhor de bens integrados em semelhante
tipo de gestão, subsiste a necessidade de determinar qual o objecto de uma garantia com
semelhante configuração (um crédito, uma quota de compropriedade2316 ou mesmo uma
depósito). Defende igualmente esta qualificação Mia Callegari, ob. cit., pág. 36, nota 14 (considerando
que este depósito não atribui a propriedade dos bens ao depositário, mas se limita a converter o respectivo
direito de propriedade numa quota de participação sobre os mesmos, alegando que tal interpretação é
confirmada pela exigência legal de identificação específica e inscrição no registo, formalidades estas
destinadas a distinguir os bens depositados da massa de títulos entregues à sociedade gestora).
2316
Francesco Bochicchio, Il pegno di valori mobiliari: servici finanziari e garanzie reali, in Contrato e
impresa, ano 8, n.º 1 (1992), pág. 226 e segs., ressalva que a desmaterialização apenas serviu para
desvincular o exercício dos direitos incorporados no título do próprio título (como se demonstra pela
circunstância de a legitimação para o exercício dos direitos ser atribuída aos detentores dos certificados
emitidos pelos gestores atestando a participação na gestão) e não para introduzir formas de circulação
diversas das próprias dos títulos, pelo que o penhor sobre tais bens permaneceria um penhor sobre títulos,
muito embora com as modalidades de constituição específicas em razão da desmaterialização. Todavia, o
mesmo Autor duvida que o direito de propriedade do cliente sobre os valores em causa corresponda à
perequação de interesses visado pela lei, sobretudo porque tal direito de propriedade não assume qualquer
relevo relativamente a terceiros no que respeita ao exercício dos direitos sociais (para o que relevam
apenas os certificados emitidos e os registos detidos pelo gestor): assim, “le ragioni del cliente, essendo
rimesse ad un concreto esercizio, da parte del gestore, dei propri poteri, si concretizzano in un diritto
obbligatorio nei confronti del gestore”, pelo que apenas se poderá falar de um penhor de créditos, muito
embora o Autor duvide da utilidade prática de tal figura, tendo em conta que a gestão, embora versando
sobre títulos determinados, não os considera em si, pelo que “non è affatto idonea a costituire, in alcun
modo, la fonte delle varie sostituzioni e dei crediti da esse conseguenti, di modo che sembrerebbe
trattarsi di crediti futuri non derivanti da rapporto già determinato al momento della costituzione
dell’originario pegno e, quindi, non rientranti in quest’ultimo” (excepto se se entender, interpretando as
exigências legais numa perspectiva funcional, que a relação de gestão é suficiente para determinar a
relação jurídica de onde derivarão os créditos futuros). A fazer fé no relato de Mia Callegari, ob. cit., pág.
116 e segs., a jurisprudência italiana opta, prevalentemente, por qualificar esta garantia como um penhor
de créditos (tendo por objecto o direito de crédito à restituição do bem recebido pelo depositário),
negando que “l’imissione in gestione accentrata sia compatibile con un diritto individuale avente ad
oggetto una quantità di beni corrispondente a quella originariamente depositata (…) nella comproprietà
(…) non sia amissibile, per difetto di individuazione, la costituzione e il trasferimento di diritti reali sui
titoli”, posição esta subscrita pela doutrina maioritária, embora com divergências relativamente ao
conteúdo do crédito onerado (uns apontando para um direito de crédito relativo a coisas móveis, outros
para um direito cartular inerente aos títulos objecto de gestão centralizadas e, finalmente, outros ainda
para uma quota de compropriedade da totalidade dos títulos depositados). Já Gabrielli, Il pegno anomalo
cit., pág. 27 e segs., alude à existência de três posições diversas: uma, afirmando que o objecto do penhor
seria uma quota de compropriedade sobre a massa de títulos daquela espécie que se encontrem
depositados, como refere a Autora citada no início desta nota (partindo da qualificação do depósito como
regular – de modo a garantir que a propriedade dos valores depositados permaneça no depositante, pois,
tratando-se de depósito irregular, estaríamos perante um penhor de créditos): assim, “oggetto del pegno
sarebbero perciò i titoli fungibili e divisibili in cui si risolve la quota di partecipazione del depositante
alla massa detenuta unitariamente del Monte”, destarte convertendo a propriedade do depositante sobre
um bem determinado na titularidade de uma quota de participação na massa de títulos; outra, de acordo
com a qual o penhor incidiria sobre o direito de crédito à devolução de outras coisas de idêntica natureza
às inicialmente depositadas (partindo da qualificação do depósito como irregular, implicando a perda da
propriedade do depositário sobre os bens entregues pelo depositante); e uma última nos termos da qual a
garantia, apesar da desmaterialização dos títulos, recai sobre um direito cartular inerente aos títulos
depositados (ou seja, produzindo-se um fenómeno de “dematerializzazione dei diritti cartolari inerenti ai
titoli oggetto di gestione accentrata”), continuando o depositante proprietário dos bens depositados (e
não a sociedade gestora que apenas se torna possuidora dos mesmos, constituindo estes uma massa
separada de bens, um património autónomo, do qual o depositário não pode dispor senão em observância
das finalidades do sistema, em termos idênticos aos fundos comuns de investimento, mas com a diferença
de os depositantes de valores mobiliários não receberem certificados de participação).
624
coisa),2317 a qual está relacionada com a qualificação do depósito junto daqueles
sistemas.
Por outro lado, a circunstância de o penhor recair frequentemente sobre uma
carteira de valores e a configuração desta como uma universalidade, suscita diversas
interrogações conexas com a susceptibilidade de oneração pignoratícia deste tipo de
bens compostos (nomeadamente as que se prendem com a eventual falta de
identificação dos valores que compõem o portefólio2318 e a distribuição da
2317
É a posição defendida por Mia Callegari, ob. cit., pág. 123 e segs.. A Autora começa por enumerar um
conjunto de problemas decorrentes da sujeição da garantia ao regime do penhor de créditos
(nomeadamente a necessidade de notificação da constituição da garantia ao devedor do crédito dado em
penhor, uma vez que não é claro se o envio ao banco do documento de constituição da garantia é
suficiente e, por outro lado, não é seguro que o destinatário de tal notificação deva ser o intermediário ou
o emitente, razões que levaram, aliás, alguma jurisprudência a excluir a oponibilidade a terceiros deste
tipo de garantia, por força da inobservância daquele requisito legal), negando que tal concepção encontre
apoio no próprio elemento literal (que aponta no sentido de uma objectivação dos instrumentos
financeiros) ou substancial (uma vez que não considera razoável “l’identificazione del diritto di credito
con il diritto alla restituzione dei titoli (…). I documenti non incorporano infatti semplici posizioni
patrimoniali e, d’altro canto, la restituzione non equivale formalemnte ed a rigore alla soddisfazione di
un credito. Del resto, su un piano più generale, si ritiene che il pegno non possa avere ad oggetto un
diritto alla consegna materiale di una cosa certa e determinata. In quest’ultimo caso, poiché la garanzia
incide sulla res e non sul credito, il vincolo dovrebbe infatti costituirsi sulla res. Il diritto alla consegna
coinvolgerebbe inoltre un soggetto terzo rispetto al rapporto bilaterale tra concedente e beneficiario; e
avendo natura obbligatoria, sarebbe efficace solo tra le parti” – nesta conformidade, e tendo em conta
que os direitos decorrentes para o titular do direito não são apenas de natureza creditória, poderia admitir-
se estarmos perante um penhor de direitos, mas esta última figura é de admissibilidade bastante
controversa). Uma vez afastada a figura do penhor de créditos, caberá configurar a fattispecie como um
penhor de coisas, até porque “si ravvede una natura pur sempre materiale nella res-strumento finanziario
e, dall’altro, la posizione di titolarità sui valori è da ricondursi ancora ad una situazione proprietaria.
Decisiva a tal fine pare l’indagine svolta circa i caratteri dell’appartenenza degli strumenti. In questo
senso, chiaramente, l’esclusività e le caratteristiche tutte del potere di disposizione che il titolare –
suppure mediatamente, per il tramite di un terzo soggetto – consentono di ricondurlo al tradizionale
dirtitto di proprietà”, razão pela qual “il singolo partecipante abbia, come è logico concludere, la
titolarità separata sugli strumenti finanziari immessi e iscritti sul suo conto” (em consonância, a Autora
considera que o depósito efectuado pelo proprietário dos valores assume natureza regular, no qual não se
opera a transferência da propriedade para o depositário, negando, por isso, que tal depósito assuma os
contornos de um mandato através do qual o proprietário incumbiria o intermediário de abrir uma conta
em seu nome e de assegurar a manutenção da mesma, escrevendo que “il rapporto intercorrente tra
intermediario e cliente garantisca a quest’ultimo una protezione analoga a quella assicurata al
depositante in conto: il legislatore pone proprio l’accento sulla conservazione e sulla tutela degli
strumenti e delle scriturazioni, cioè, sostanzialmente, sulla custodia. A differenza del mandato, in cui
centrale è la gestione del mandatario ed il suo rendersi operativo, nell’attivitè di tenuta dei conti spicca
anche la fase per così dire di riposo, di “quiescenza” del rapporto scrituralle: l’attività
dell’intermediario non è solo quella periodica di rilascio delle certificazioni, di avviamento delle
operazioni di giro, e via dicendo, ma anche quella, continuativa, di mantenimento del conto, espressa
dallo stesso termine “tenuta” del conto”).
2318
Considera ser este, na ausência de disposição legal que expressamente o consinta, um obstáculo à
dação em penhor das carteiras de valores mobiliários (associado, no caso de substituição de valores
emitidos por sociedade diferentes, à ausência de fungibilidade entre os elementos que as compõem),
Dominique Doise, ob. cit., págs. 43 e 44 (isto sem mencionar o espinho decorrente da qualificação do
penhor, mesmo sobre bens incorpóreos, como um contrato real, o que torna inviável “que puisse s’opérer
ipso facto une sub-rogation réelle sur des titres de sociétés différentes qui se succéderaient au sein d’un
même portefeuille. Même si les parties conviennent (…) que dans leurs rapports elles considéreront
comme fongibles les valeurs de sociétés différentes qui viendraient à se succéder dans le portefeuille,
cette fongibilité conventionelle ne sera pas opposable aux tiers”: neste contexto, resta ao credor obter um
mandato do devedor, titular do portefólio, para poder, em nome deste, notificar os emitentes dos valores
onerados da substituição). Todavia e no que toca à questão da fungibilidade – maxime entre valores
mobiliários de diferentes emitentes -, Aynès, Rapport introductif cit., pág. 46, não se mostra tão céptico,
admitindo mesmo possa, por via convencional, atribuir carácter fungível a bens que, por natureza, o não
625
responsabilidade entre os elementos que a compõem),2319 assim como outras
especificamente relacionadas com a natureza deste quid onerado (como sejam as
possíveis repercussões das oscilações de valor da carteira ocorridas após a constituição
da garantia,2320 a obrigação ou não de notificar a contraparte na relação de garantia das
substituições efectuadas2321 e, finalmente, a forma de execução deste penhor com
objecto sui generis).2322
A questão assume uma complexidade acrescida quando se trate de empenhar
valores que são alvo de gestão patrimonial,2323 pois, para além dos entraves mais
são, sendo a oponibilidade desta convenção a terceiros garantida, excepto em caso de fraude (o Autor vai
até mais longe e, no âmbito das carteiras de valores mobiliários, sustenta a existência de uma presunção
de fungibilidade – comparando-as mesmo ao dinheiro, como um activo indiferenciado -, sob pena de, não
o fazendo, se colocar em causa a sua substituição por via sub-rogatória e, por arrastamento, impedir a
fluidez e modernização do abundante comércio jurídico garantido por portefólios de valores mobiliários).
2319
De modo a que cada valor responda por uma parte da dívida. Responde negativamente Bautista Pérez,
ob. cit., pág. 65, contrapondo que o objecto do penhor é a carteira no seu conjunto e, ainda, porque a
protecção dos terceiros adquirentes de cada um desses valores se encontra assegurada, porquanto essa
aquisição será livre de todos os ónus.
2320
A este propósito, Bautista Pérez, ob. cit., págs. 65 e 66, distingue consoante as flutuações de
produzam em resultado de alteração da cotação dos valores (recusando ao credor, em caso de redução do
valor da carteira, o direito de exigir um reforço da garantia ou o vencimento imediato da obrigação
garantida – pois o art.º 1129.º, n.º 3, do CCE, que prevê estes dois mecanismos pressupõe um acto próprio
do credor (o que não se verifica) ou um caso fortuito que faça desaparecer a garantia: ora, in casu a
garantia não se perde, apenas se deprecia - e, paralelamente, não admitindo que o constituinte possa, em
caso de aumento do valor da carteira, requerer uma redução proporcional da garantia) ou da entrada e
saída destes da carteira (hipótese na qual o momento relevante para determinar o valor dos bens no
momento da substituição e não o valor que possuíam no momento da constituição da garantia, solução
esta adoptada pela lei catalã e pelo regime do penhor financeiro).
2321
Bautista Pérez, ob. cit., págs. 67 e 68, entende que, quando seja o constituinte a gozar da faculdade de
substituição e no silêncio da lei, não existe esse dever de comunicação, embora advirta para a
conveniência de tal notificação ser prevista no título constitutivo da garantia (do qual poderá igualmente
constar a possibilidade de o credor, a qualquer momento, obter informações do devedor acerca da
composição da carteira).
2322
Bautista Pérez, ob. cit., págs. 69 e 70, coloca duas questões fundamentais: o que sucederá quando o
valor da carteira e, por outro lado, se a proibição do pacto comissório será aplicável. Relativamente à
primeira, o Autor entende que não será forçosa a alienação de todos os valores que compõem a carteira
(assim os convertendo em dinheiro), mas apenas da quantidade necessária para o pagamento da dívida
exequenda, cabendo a nomeação ao devedor (ou, pelo menos, podendo o devedor opor-se à nomeação
efectuada pelo credor), uma vez que, dada a elevada liquidez dos mesmos, é indiferente para o credor que
se alienem uns ou outros. No que concerne ao pacto comissório e tendo em conta o regime do penhor
financeiro (no qual se admite, quando o quid onerado for apenas dinheiro, proceder a uma compensação,
desde que notifique previamente o depositário da sua intenção, o qual procederá à transferência; quando o
penhor incida sobre outros instrumentos financeiros, o credor poderá solicitar a respectiva alienação ou,
em alternativa, ordenar a transferência dos mesmos para a sua conta, devendo para isso notificar o
depositário demonstrando o incumprimento, cabendo a este unicamente comprovar a legitimidade do
requerente e a autenticidade da firma e, em seguida, alienar os valores em questão através de um membro
autorizado do mercado. Todavia, em qualquer dos casos, a lei exige que a apropriação dos bens onerados
por parte do credor seja precedida de um pacto autorizativo nesse sentido, do qual conste as modalidades
de avaliação dos valores onerados) e, especialmente a lei catalã (na qual expressamente se afirma que se o
penhor recai sobre dinheiro ou títulos representativos de dinheiro, o credor pode fazê-lo seu, sem
necessidade de venda judicial, desde que notifique previamente o devedor e demonstre a recepção da
notificação e o respectivo conteúdo), o Autor conclui que “si en la cartera existe dinero o títulos
representativos del mismo poderá el acreedor pignoraticio adjudicárselos directamente, por cuanto no es
posible que con esa actuación el acreedor pueda lucrarse con dicha adjudicación, siendo esta la razón de
la prohibición”. Acerca das formas especiais de execução, vide supra n.º 8 do Capítulo I.
2323
Luca Enriques, ob. cit., pág. 670, define estes contratos como sendo aqueles em que uma das partes
assume, contra o pagamento de uma determinada importância, a obrigação de levar a cabo escolhas de
investimento relativas a um conjunto de valores mobiliários propriedade da outra parte, no interesse e
com o risco a cargo desta.
626
evidentes (ou seja, a necessidade de desapossamento2324 do empenhante e de
identificação do objecto da garantia e do crédito garantido2325 e o alegado efeito sub-
rogatório entre os valores que a integram)2326 o facto de a propriedade dos bens
permanecer no devedor2327 e de o terceiro gestor dispor, normalmente, de poderes de
alienação e/ou oneração dos mesmos vem suscitar novas interrogações.2328
2324
Quanto a este aspecto, Luca Enriques, ob. cit., pág. 764 e segs., realça que, mesmo antes da
constituição do penhor, os bens objecto da gestão já não são detidos pelo devedor empenhante, mas antes
pelo intermediário gestor (encarregue, por força do contrato, de zelar pela custódia de tais valores), pelo
que importará distinguir consoante o credor pignoratício seja o próprio gestor (caso em que a constituição
do penhor transforma a simples detenção em posse) ou um terceiro (caso em que será necessário firmar
um acordo entre empenhante, credor pignoratício e gestor, nos termos do qual este último se obrigará a
exercer o dever de custódia por conta dos outros dois).
2325
Para Luca Enriques, ob. cit., pág. 761 e segs, a suficiente identificação do objecto do penhor, exigida
por lei, se poderá alcançar de diversas formas. Antes de mais, sugerindo “che la scrittura costitutiva del
pegno contenga l’esplicita autorizzazione a che l’intermediario, in qualità di mandatario, formi e
sottoscriva, in nome e per conto del cliente, le sucessive scritture contenti sufficiente indicazione dei titoli
dati in pegno e del credito garantito” (embora esta solução comporte o grave inconveniente de, além de
obrigar cada nova escritura a possuir data certa, fazer com que a preferência pignoratícia relativamente
aos novos títulos empenhados apenas surja no momento da redacção do novo documento). Outra
alternativa passa por considerar que o ordenamento não exige sequer a formação de um novo documento
a cada substituição do objecto empenhado, pois da actividade de gestão não decorre qualquer prejuízo
para os credores pignoratícios, sendo a protecção destes que inspira aquela exigência legal (embora o
Autor entenda que este raciocínio não encontra suficiente apoio legal). De acordo com uma terceira
alternativa, que o Autor entende preferível por repousar na caracterização, por ele defendida, deste penhor
como um penhor de universalidades, a suficiente indicação do bem empenhado obter-se-á através da
identificação cumulativa do património mobiliário objecto da gestão, do conteúdo essencial do contrato
de gestão – em especial o âmbito dos poderes do gestor, assim permitindo conhecer a universalidade – e,
por último, da enumeração das contas das quais consta a referência aos bens que, em cada momento, se
encontram sujeitos ao vínculo pignoratício.
2326
Entendendo que a substituição dos valores mobiliários empenhados no âmbito de uma carteira
submetida a um contrato de gestão não se enquadra na figura da sub-rogação real, Luca Enriques, ob. cit.,
pág. 761 e segs., alegando que esta não se aplica às substituições efectuadas no seio de uma
universalidade e, por outro lado, considerando estarmos perante, não uma transformação, mas uma
simples modificação de um objecto que permanece qualitativamente idêntico.
2327
Francesco Bochicchio, ob. cit., pág. 201 e segs., reconhece que a manutenção da propriedade dos bens
empenhados no cliente dos serviços de intermediação financeira resulta do direito positivo, recusando
tratar-se de um caso de compropriedade (porquanto a faculdade de dispor dos bens cabe apenas à
sociedade gestora e não, como é próprio do regime da compropriedade, a cada um dos comproprietários),
rebatendo as acusações segundo as quais esta permanência do direito de propriedade representaria uma
cisão entre propriedade e poder de disposição, ficando este último reservado ao gestor (considerando ser
este um fenómeno comum na moderna realidade da empresa). Menos taxativo é Gabrielli, Il pegno
anomalo cit., págs. 44 e 45, assegurando que a posição adoptada relativamente à propriedade dos bens
objecto de gestão influi decisivamente sobre a natureza do vínculo a constituir, nos seguintes termos: caso
se entenda que a propriedade se transfere para o gestor, estaremos perante um penhor de créditos e
direitos (pelo que a substituição dos valores inicialmente empenhados em nada contenderia com o vínculo
pignoratício, sendo desnecessárias quaisquer formalidades aquando da substituição, a qual não teria
efeitos novatórios, uma vez que a garantia recai sobre todos os títulos e valores resultantes da gestão), ao
passo que para quem advogue a manutenção da propriedade no depositante qualificará a fattispecie como
um penhor de coisa (implicando que cada substituição dos bens determine o surgimento de uma nova
garantia, com a inerente necessidade de renovação das formalidades legais, nomeadamente para o
surgimento do direito de preferência).
2328
Luca Enriques, ob. cit., págs. 760 e 761, salienta que a impossibilidade de colocação em penhor dos
bens alvo de um contrato de gestão enquanto tais (ou seja, sem prejuízo da continuidade da actividade de
gestão sobre eles) lesaria sobretudo o devedor e os seus demais credores e não tanto o credor pignoratício,
porquanto deste modo perderia a possibilidade de incremento do próprio património em resultado da
gestão (em alternativa, restaria a concessão de um penhor irregular sobre o conjunto dos valores).
Francesco Bochicchio, ob. cit., pág. 201 e segs., alerta para a provável inoponibilidade a terceiros do facto
627
Com efeito, a interposição de um sujeito entre o credor pignoratício e o
empenhador pode originar dúvidas acerca da exacta configuração da operação de
garantia, podendo admitir-se estarmos perante um penhor de coisa,2329 um penhor de
de o gestor não ser o proprietário do bem, possibilitando que este possa ser reclamado pelo cliente
proprietário, em caso de alienação por parte do gestor sem o seu consentimento.
2329
É o entendimento de Francesco Bochicchio, ob. cit., pág. 217 e segs., para quem não estaremos
perante um penhor (tendo em conta que a propriedade dos bens permanece no cliente ao invés do que
sucederia se estivéssemos perante uma transferência fiduciária da titularidade do bem para o gestor,
assistindo ao cliente um direito de crédito à restituição dos bens) de créditos, isto é, “diritto di pegno, da
concedere una volta per tutte, su quei beni che risultino di volta in volta oggetto della gestione, senza
necessità di nuove formalità ad ogni sostituzione dei beni”. O mencionado Autor não deixa de reconhecer
existirem dois obstáculos de monta à admissibilidade deste entendimento, desde logo a necessidade de um
documento escrito contendo a suficiente indicação do bem empenhado, contornando-o afirmando que
“una scritura di concessione del pegno redatta una volta per tutte, in ordine alla gestione patrimoniale,
risulta idonea a presentare i requisiti richiesti dall’art. 2787 c.c.” (pelo que a suficiente indicação do bem
se deve ter por efectuada à luz da ausência de arbítrio na substituição dos bens que caracteriza a gestão,
na medida em que esta é conferida a um profissional e destinada à frutificação dos investimentos,
concluindo “sembrerebbe trattarsi, più che di individuazione effettiva, di individualità dei beni che,
infatti, non sono ancora conosciuti”, ou seja, “l’individualità pressupone, nell’ottica giuridica e
funzionale già evidenziata, la sola predeterminazione dei criteri per la sucessiva individuazione, la quale,
a sua volta, dipende da fattori esterni. Nella gestione, invece, anche l’effetiva individuazione dipende da
fattori già predeterminati al momento della costituzione del pegno”) e, noutra ordem de considerações, a
necessidade de desapossamento do constituinte, contrapondo que este efeito apenas será de considerar nas
relações entre o credor pignoratício e outros credores do constituinte, pelo que se deve ter por realizado
tendo em conta os elementos caracterizadores da gestão, como sejam a circunstância de a identificação
dos bens – que permanecem na propriedade do cliente - ocorrer com base em critérios predeterminados
(e, portanto, sem nenhum arbítrio), critérios esses com eficácia face a terceiros estranhos, nomeadamente
ao gestor: em suma, “il creditore pignoratizio acquisisce, per il tramite del gestore, un potere diretto e
sicuro su beni, da individuare in concreto, in base a criteri di ottimale investimento finanziaro, da parte
del intermediario (ovverosia del gestore stesso) che viene quindi ad esse vinclolato nei confronti proprio
del creditore”, ou seja, “al momento della concessione del pegno, il costituente viene ad essere privato di
ogni potere sui beni, mentre il creditore acquisisce una situazione attiva diretta su beni che saranno
scelti da un soggetto vincolato proprio nei suoi confronti”. No mesmo sentido, Mia Callegari, ob. cit.,
pág.146 e segs., alegando que, em caso de constituição de penhor sobre instrumentos financeiros objecto
de um contrato de gestão (ou seja, em que o intermediário tem o dever de efectuar escolhas de
investimento no interesse do cliente e com os riscos a caírem sobre este último), se verifica uma situação
de propriedade fiduciária “con la conseguente scissione fra la titolarità ed il potere effetivo di disporre,
analoga a quella che si ha a seguito della dematerializzazione”, sendo as quotas dos investidores
representadas por certificados individuais e cumulativos, os quais não raras vezes são concedidos em
penhor (se, quanto aos primeiros certificados, não se levantam grandes objecções à sua qualificação como
títulos de crédito, já maiores dúvidas suscita o certificado cumulativo – entendido como um único
documento ao portador representativo de uma pluralidade de quotas de participação dos diversos
investidores – embora a posição mais recente aponte para uma assimilação aos títulos de crédito, de
acordo com uma interpretação lata deste): em face do exposto e em qualquer dos casos, não existirá
nenhum obstáculo com o regime geral do penhor, não faltando o desapossamento do devedor e a
identificação do objecto do penhor (relativamente a este último aspecto, o cliente-investidor é proprietário
dos bens – cuja individualização ainda não é viável nessa data – mas “il fatto che le predeterminazione
dei criteri di individuazione vale (…) nei confronti del gestore, terzo estraneo al rapporto di pegno,
permette di argomentare che il creditore pignoratizio acquisisce per il tramite del gestore, un potere
diretto e sicuro sui beni, da individuare in concreto, in base a criteri di ottimale investimento
finanziario”), não atentando sequer contra o regime pignoratício o facto de a garantia recair sobre o
portefólio do investidor, cujo conteúdo pode variar no tempo (uma vez que “il diritto stesso del titolare
consiste nella restituzione dei beni esistenti al momento in cui lo si esercita, pare evidente che il vincolo
debba tollerare una certa mutevolezza”, justificada, ora pela autorização dada ao intermediário para
subscrever, a cada substituição, as escrituras exigidas para o direito de preferência pignoratício, ora pela
qualificação ao património objecto de gestão a natureza de universalidade de bens móveis).
628
créditos2330 ou até um penhor de universalidade,2331 sendo que a adesão a uma ou outra
perspectiva pressupõe a resolução da questão respeitante à transferência ou não para o
gestor da propriedade dos bens onerados.2332
2330
Francesco Bochicchio, ob. cit., pág. 222 e segs., sugere ser esta a configuração mais adequada aos
casos em que o empenhante confira um mandato para investir e gerir valores mobiliários predeterminados
a sujeitos que procedem à colocação no mercado desses valores, exercendo estes últimos, em nome do
primeiro, todas as operações resultantes do investimento efectuado. Com efeito, apesar de a propriedade
dos ditos bens permanecer no cliente empenhante, “vi è un diritto del cliente a che il mandantario curi
aspetti ed espleti compiti propri di altri soggetti, rispondendo nei suoi confronti. Il diritto reale del
cliente stesso sui beni oggetto dell’investimento rimane si fermo, ma viene, nel contempo, affiancato da
un diritto autonomo nei confronti mandatario, diritto ad una conduzione unitaria e corretta dei vari
profili connessi all’investimento” e será este direito o objecto do penhor de créditos (todavia, a validade e
a eficácia deste penhor circunscrevem-se aos limites do investimento originariamente efectuado, mesmo
quando ocorra a modificação dos objectos originais).
2331
É a posição sustentada por Luca Enriques, ob. cit., pág. 761 e segs. (no mesmo sentido, Dominique
Doise, ob. cit., pág. 42), para quem se deverá considerar o património objecto de gestão como um
património autónomo ou uma universalidade (ou seja, como uma pluralidade de coisas móveis,
pertencentes ao mesmo sujeito e com uma destinação unitária, entendida esta última como uma
organização de bens tendo em vista um tipo de uso ou de gozo diverso daquele que os simples bens são
capazes de proporcionar que, no caso da gestão, se traduz na aptidão “a produrre un rendimento più
elevato, anzitutto in virtù della possibilità di diversificare il rischio connesso ai beni in questione”).
Noutra ordem de considerações, o Autor recusa que a substituição dos bens empenhados seja enquadrável
no âmbito do instituto da sub-rogação real, uma vez que o mesmo não se aplica às substituições no âmbito
de uma universalidade e, além disso, “non si ha qui trasformazione, ma una semplice modificazione
dell’oggetto stesso che rimane (qualitativamente) identico”, pelo que “il pegno si estende dunque anche
alle somme di denaro che, nel corso della gestione, risultano a saldo delle varie operazioni effettuate
dall’intermediario e che, in attesa di essere reinvestite, devono essere depositate in un apposito conto
corrente cosidetto di appoggio, aperto presso l’ente creditizio gestore” (o Autor termina afirmando que,
mesmo para quem rejeite que o património alvo de gestão seja uma universalidade de móveis, não poderá
deixar de aceitar tratar-se de “un complesso funzionale (frutifero) di beni: anche a tale figura la dottrina
ritiene applicabile la regola per cui la sostituzione con altra di una dellle singole res che compongono il
complesso non lo trasforma in un nuovo, diverso bene”, pelo que sempre ficaria sob a alçada do art.º
2784.º do CCI, o qual, ao admitir como possível objecto de penhor as universalidades de móveis,
“considera la pluralità di cose che pur indica com il nome di »universalità di mobili« non sub species
universitatis, bensi nella loro »caratterizzazione generica di complesso di cose funcionalmente
collegate«”). Para além da redacção deste documento e caso os títulos objecto de gestão mobiliária se
encontrem depositados num sistema de gestão centralizada, será ainda necessária a inscrição no registo (a
qual deverá mencionar que o penhor incide sobre uma universalidade, quais aos títulos que, no momento
da constituição da garantia, fazem parte dessa universalidade e que, no decurso da gestão, o penhor
poderá passar a recair sobre outros que posteriormente venham a integrar a dita universalidade, bem como
as somas em dinheiro existentes na conta corrente de apoio), podendo, posteriormente, “ogni qualvolta
l’intermediario effettui delle operazioni sul patrimonio gestito, dovrà liberare del vincolo il valore
mobiliare che intende alienare e quindi iscrivere nel registro i valori mobiliari acquistati in sostituzione,
precisando la natura del vincolo, e cioè che si trata di pegno sul valore mobiliare in quanto facente
parte, in sostituzione di altro o altri precedentemente alienati (…) di patrimonio oggetto di gestione, già
precedentemente vincolato con iscrizione nel registro” (de referir que a manutenção do vínculo apesar
das substituições não resultava directamente da lei italiana no momento em que o Autor elaborou o seu
trabalho, mas acabou por ser posteriormente consagrada, conforme se viu). Pelo contrário, no direito
francês a consagração legal desta última solução remonta ao art.º 29 da Lei n.º 83/1, de 3/1 de 1983
(acerca desta norma e da evolução posterior, vide n.º 1.2.2 do Capítulo II), embora a interpretação dada a
este preceito não fosse unânime pois, como salienta Dominique Doise, ob. cit., págs. 42 e segs., se alguns
entendiam que a norma consagrava a figura da sub-rogação real (consentindo a substituição dos valores
inicialmente onerados, não apenas por outros do mesmo emitente, mas mesmo emitidos por uma entidade
distinta), outros sustentavam que a substituição apenas será admitida entre títulos emitidos pela mesma
sociedade (o Autor, embora de lege data apoie este segundo entendimento, de lege ferenda advoga uma
consagração legal inequívoca da figura da sub-rogação legal ou, pelo menos, a sua aceitação por via
jurisprudencial, considerando ser o único meio de assegurar uma garantia sobre valores mobiliários
verdadeiramente eficaz).
629
Inversamente, a constituição de um penhor não deixa de influenciar, em termos
assinaláveis, a própria relação de gestão que pré-exista relativamente ao momento do
nascimento do penhor.2333
Mas o fenómeno de desmaterialização não se cinge aos instrumentos privados,
estendendo-se igualmente aos títulos da dívida pública, forma cada vez mais frequente
de financiamento público por parte dos diversos Estados,2334 muito embora nem todos
estes activos sejam susceptíveis de penhor.2335
2332
Mais concretamente, como afirma Gabrielli, Il pegno cit., pág. 235 e segs., “Se infatti si aderisce alla
tesi della separazione dei valori depositati rispetto al patrimonio del gestore, e quindi si sostiene che la
titolarità dei valori rimanga in capo al cliente mandante, il pegno si dovrebbe allora costituire secondo il
modello del pegno di cose mobili. Nell’ipotesi in cui si ritenga che, in virtù del contratto di gestione, la
proprietà dei valori si trasferisca al contrario dal cliente al gestore, il pegno dovrebbe allora costituire
come pegno di crediti e di diritti. In tal caso infatti avrebbe come oggetto non i singoli valori in gestione
ma il diritto di credito, del cliente mandante nei confronti del gestore, alla restituzione in qualunque
momento (non dei singoli valori oggetto della gestione ma) del controvalore dei valori giacenti nel conto
del cliente”.
2333
A este propósito, segundo Luca Enriques, ob. cit., pág. 768 e segs., a constituição do penhor origina
“la paralisi di tutti – o quasi – i poteri di modificazione unilaterale del contratto di gestione, poiché
l’esercizio di essi determinarebbe altresì la modifiazione unilaterale dell’oggetto del pegno, ossia la
sostituzione non concordata della cosa oppignorata, che pacificamente non è amessa”. Apesar de o
credor pignoratício, ao aceitar em penhor um bem alvo de um contrato de gestão, aceitar as modalidades e
os limites constantes deste último contrato (pelo que o devedor-cliente poderá reagir, em caso de abuso da
coisa dada em penhor, exigindo o sequestro da coisa empenhada, destarte extinguindo o contrato de
gestão), a constituição do penhor produz uma modificação objectiva do interesse funcionalmente
subjacente à gestão, nomeadamente fazendo com que os bens onerados conservem o seu valor e não
sejam expostos a riscos excessivos, particularmente quando o intermediário-gestor não for o credor
pignoratício (neste caso, o gestor celebra um pacto com o cliente e o credor pignoratício, nos termos do
qual “si obbliga anche nei confronti del creditore pignoratizio a gestire i valori mobiliari secondo le
modalità previste e l’interesse individuato dal preesistente contratto: lo si desume dal fatto che contenuto
essenziale di tale patto è quello per cui il terzo custodisce la cosa anche per conto del creditore
pignoratizio”, pelo que o gestor incorre em incumprimento relativamente ao credor pignoratício quando
dissipe os valores objecto de gestão ou devolva os ditos bens o devedor sem o consentimento do credor
ou, finalmente, incumpra o contrato de gestão, designadamente gerindo o património perseguindo um fim
diverso daquele em vista do qual lhe haviam sido conferidos os poderes de gestão). Por outro lado, o
cliente-devedor fica, após a constituição do penhor, impedido de retirar as somas e os valores
(possibilidade esta subordinada à condição de inexistência de vínculos). Por último, importa considerar
qual a possibilidade de o cliente emitir instruções vinculantes (entendidas como um poder unilateral de
modificação do contrato de gestão no decurso da relação contratual, assim diminuindo a
discricionariedade da actuação do gestor) para o gestor: a este respeito, o Autor exclui que, existindo um
penhor sobre os bens objecto de gestão, o cliente devedor possa emanar instruções vinculantes com tão
grande amplitude (pois “se cosi fosse, il debitore, impartendo un’istruzione vincolante, potrebbe altresì
modificare unilateralmente l’oggetto del pegno”), nem tão pouco que tal direito se transfira, com a
constituição do penhor, para o credor pignoratício, embora distinga consoante o credor pignoratício seja
um terceiro (hipótese na qual o poder de emitir instruções cabe, conjuntamente, ao credor pignoratício e
ao devedor, devendo cada um deles proceder de acordo com os ditames da boa fé) ou o próprio
intermediário gestor (hipótese na qual o cliente perde aquele poder unilateral, sem prejuízo de poder
concertar o exercício de tal poder com o gestor credor pignoratício, de modo que, de acordo com o
princípio da boa fé, o intermediário não poderá recusar a execução de uma instrução inócua relativamente
às orientações gerais da gestão previamente acordadas, mas já o poderá fazer a respeito de instruções
extraordinárias ou que desvirtuem ou comprimam excessivamente os poderes de gestão).
2334
Segundo Muñoz Cervera, Prenda sobre valores públicos representados mediante anotaciones en
cuenta, in Tratado de garantias en la contratacion mercantil, Tomo II, Vol. I, Civitas, 1996, pág. 727 e
segs., o processo de desmaterialização dos títulos da dívida pública em Espanha iniciou-se em 1974 e
1977 (através de leis que permitiram a representação da dívida, não apenas através de títulos, mas
também por qualquer outro documento ou conta que formalmente a reconheça) e culminou, em 1988,
com a extensão do regime de representação em anotações em conta a todos os valores negociáveis
agrupados em emissões, incluindo assim os de dívida pública (por isso e conforme conclui Salinas
Adelantado, El régimen cit., pág. 209 e segs., o regime valores não diverge do consagrado para os valores
630
É nossa convicção que a inidoneidade dos títulos da dívida pública apenas se
verificará quando, do respectivo regime jurídico, decorra a inadmissibilidade de
alienação ou, mais latamente, de negociação dos mesmos, pois, quando tal suceda, não
se tem por preenchido o requisito da alienabilidade que constitui condição sine qua non
para a qualificação de um bem como empenhável: ora, pelo menos no que respeita aos
títulos negociados no âmbito do Mercado Especial da Dívida Pública (MEDIP), tal
escolho não releva, porquanto este é um mercado regulamentado, nos termos do Código
dos Valores Mobiliários, destinado à negociação electrónica por grosso de títulos da
dívida do Tesouro Português.2336
privados, “salvo las pequeñas modificaciones que imponen las especialidades del funcionamiento del
Mercado de la Deuda Pública representada en anotaciones en cuenta”). Alude igualmente a este
caminho de progressiva desmaterialização dos valores representativos da dívida pública, que conduziu à
substituição definitiva dos títulos em papel por valores escriturais, De la Santa Garcia, Prenda de valores
cit., pág. 271 e segs., mencionando o Decreto n.º 1143/1974, de 5 de Abril (que permitiu a cobrança de
juros da dívida pública sem necessidade de apresentação física dos títulos), a Lei Geral de 4 de Janeiro de
1977 e o Real Decreto n.º 656/1982, de 12 de Fevereiro (que admitiram a representação da dívida pública
através de inscrições em conta), os Reais Decretos n.º 505/1987, de 3 de Abril e n.º 1091/1988, de 18 de
Setembro (que aprovaram o sistema de registo em conta da dívida pública) e o Real Decreto n.º 116/1992
(que, previsto para os valores privados, é subsidiariamente aplicável à dívida pública).
2335
Muñoz Cervera, ob. cit., pág. 735 e segs., salienta que apenas os títulos da dívida pública negociáveis
(e não também os não negociáveis) podem ser objecto de penhor. A razão para este diverso tratamento
radica na exigência de transmissibilidade ou possibilidade de alienação que todo o objecto desta garantia
deve possuir, por força das normas gerais sobre o penhor e que está ausente na dívida pública não
negociável (para determinar quando é que um valor mobiliário é negociável, o Autor distingue entre os
admitidos a negociação fechada ou não pública – v.g. emissão de acções por sociedades anónimas não
cotadas em bolsa – e os objecto de negociação aberta ou pública, incluindo-se os títulos da dívida pública
nesta última categoria – desde que objecto de negociação dentro do sistema legal de anotações em conta
da dívida do Estado, porquanto a lei o considera expressamente como mercado secundário oficial de
valores – excepto quando se trate de valores emitidos por alguns entes territoriais menores, como os
municípios, porquanto muitas vezes tais valores não são destinados à negociação em mercados
secundários oficiais). De entre os valores não empenháveis cumpre destacar a chamada “dívida pública
especial”, não destinada a negociação, pois, como escreve o Autor “no es un valor negociable, ni un valor
mobiliario simple. Se trata simplemente de un derecho de crédito contra el Estado que, por voluntad del
legislador, no es susceptible de ser cedido inter vivos. Este último aspecto determina (…) la
impossibilidad de ser empeñado” (ainda assim, não exclui que esta dívida especial possa ser usada como
modo de financiamento, simplesmente quando a obrigação garantida se vence antes da amortização dessa
dívida e na medida em que não existe direito real, não pode ser realizado o valor da mesma, até porque tal
implicaria uma alteração na titularidade que a lei proíbe, pelo que resta ao credor aguardar a amortização
da dívida especial e aplicar os fundos obtidos na liquidação da dívida: em face do exposto, esta garantia
deverá ser configurada como recaindo sobre bens futuros, ou seja, o produto da amortização da dívida,
bem esse que ainda não existe no momento da constituição da garantia). Também para De la Santa
Garcia, Prenda de valores cit., pág. 274 e segs., o erigir da negociabilidade da dívida pública como
condição da sua empenhabilidade decorre do regime geral do penhor (na medida em que são os bens
alienáveis poderão ser objecto de tal garantia), razão pela qual se não se suscitam dúvidas quanto à
empenhabilidade dos valores admitidos a negociação no mercado de valores escriturais de dívida do
Estado e demais entidades públicas, como as Comunidades Autónomas (uma vez que este é considerado
como um mercado secundário oficial, o que torna os valores que o integrem perfeitamente negociáveis),
sendo mais duvidosa a hipótese de a dívida ser emitida por entes públicos menores, como os
Ayuntamientos e Diputaciones (a qual não integra aquele mercado secundário oficial).
2336
Acerca do funcionamento deste mercado, vide o site do Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito
Público, I.P., (mais precisamente, em http://www.igcp.pt/gca/?id=72). Quanto ao regime especial para os
diversos instrumentos da dívida pública, resulta da lei a possibilidade de alienação dos mesmos, pelo
menos na data do respectivo vencimento, como sucede com os bilhetes do tesouro (Decreto-Lei n.º
279/98, de 17 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 91/2003, de 30 de Abril – art.º 6.º), com as
obrigações do tesouro (Decreto-Lei n.º 280/98, de 17 de Setembro - art.º 6.º), com os certificados de
aforro (Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de Maio - art.º 6.º), com os certificados do tesouro (n.º 4 da
Resolução do Conselho de Ministros n.º 40/2010, de 20 de Maio), com os certificados especiais de dívida
631
A tal conclusão não obsta o facto de forma de organização deste mercado
específico,2337 a constituição2338 e os efeitos2339 das garantias sobre este tipo de valores
de curto prazo (n.º 4 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 111/2009, de 19 de Novembro) e com os
certificados especiais de dívida pública de médio e longo prazo (n.º 4 da Resolução do Conselho de
Ministros n.º 14/2011, de 21 de Fevereiro), razão pela qual, mesmo não sendo objecto de negociação num
mercado regulamentado, se nos afigura não haver obstáculos à sua oneração através de penhor.
2337
No ordenamento espanhol, o sistema tem na sua cúpula um organismo supervisor, a central de
anotações (que não é mais que um serviço público do Estado, sem personalidade jurídica), cuja missão é a
de gerir a emissão e amortização de valores (bem como o pagamento de juros e transferências de saldos
originados pelas transmissões no mercado secundário), organizar um mercado secundário entre os
titulares de contas na própria central e separar, dentro das contas abertas naquela central, a constituição de
garantias sobre os valores, identificação essa comprovada através da expedição do correspondente
certificado. Para além dessa central, existem ainda os membros do mercado, categoria na qual se integram
os titulares nas contas abertas em nome próprio na central de anotações (apenas entidades e
intermediários financeiros que preencham determinados requisitos de capacidade financeira), assim como
as entidades gestoras, cuja função principal é a de realizar funções de intermediação (podendo também,
adicionalmente, deter contas em nome próprio de contas na central de anotações). No que
especificamente concerne às competências em matéria de registo, a central de anotações procede às
inscrições nas contas das entidades autorizadas a possuir contas em nome próprio (nas quais se registam
as operações sobre a própria carteira de cada titular) e as contas onde se anotam os saldos de terceiros das
entidades gestoras (uma conta global mantida pelas entidades gestoras na central de anotações e que é o
reflexo exacto das contas que esses terceiros – não autorizados a operar directamente através daquela
central - mantêm nas entidades gestoras, sendo essa correspondência autorizada através da obrigação de
comunicação diária, por parte das entidades gestoras àquela central, dos saldos que tenha registados em
nome de terceiros), contas das quais apenas se reflecte o saldo global, ou seja, “tales terceros no
aparecen, en el registro de la CA, identificados individualmente, sino que su respectivo saldo se
adiciona, en dicho registro, con el de los restantes comitentes de la respectiva EG”. Quantos às entidades
gestoras, estas detêm o chamado registo individualizado ou de terceiros, separadamente para cada um dos
titulares das anotações e, ainda, com discriminação dos saldos mantidos por conta de terceiros e os seus
próprios (para mais desenvolvimentos, Muñoz Cervera, ob. cit., págs. 745 a 750).
2338
Muñoz Cervera, ob. cit., pág. 750 e segs., destaca como a constituição da garantia se processa em dois
momentos, quais sejam a celebração do contrato de garantia (sendo este um negócio consensual –
exigindo, pelo contrário, a redução escrito, embora não impondo a forma pública, De la Santa Garcia,
Prenda de valores cit., pág. 279) e o registo da garantia. Relativamente a este último, a inscrição opera
como sucedâneo da entrega do bem no penhor sobre bens corpóreos, devendo, para efeitos de registo, a
constituição da garantia ser comunicada à Central de Anotações (comunicação esta que deve ser
efectuada pelo próprio empenhante – caso possua uma conta em nome próprio naquela central – ou pela
entidade gestora, na hipótese inversa, muito embora a lei não estabeleça um prazo para o cumprimento de
tal formalidade), contendo a identificação dos valores a onerar (assim como o respectivo valor nominal, a
identificação do seu titular e da pessoa ou entidade a favor da qual se fará o bloqueio), produzindo esta
comunicação “el desglose dentro de las cuentas incluidas en la Central, de forma que permita la
individualización e identificación de los saldos en garantía (…) y, ahora sí, esse saldo desglosado puede
ser y va a ser (…) identificado nominalmente y con expressión de los detalles de la garantía”, uma vez
que até essa data os terceiros titulares não surgem identificados individualmente, mas apenas o saldo
global de todos os clientes de cada entidade gestora. Também as entidades gestoras assumem obrigações
a este propósito, uma vez que sobre elas impende o dever de, uma vez solicitada pelo cliente a
formalização de um penhor sobre os valores anotados nos seus registos, comunicá-lo à Central e, ainda,
separar tais valores dos demais pertencentes ao mesmo cliente (considerando-se a garantia constituída,
consoante os casos, no momento em que as entidades gestoras ou a central efectuem as competentes
anotações). Para além disso, qualquer destas duas entidades tem o dever de emitir determinados
documentos, os mais importantes dos quais são o resguardo (emitido pela entidade gestora
correspondente e que comprova a formalização da anotação em conta em nome do seu titular, muito
similar aos certificados de legitimação emitidos para os valores mobiliários privados, pois também não
são transmissíveis nem negociáveis, devendo ser emitidos a pedido dos interessados) e a certificação
(apenas expedida quando se constituam penhores ou outros direitos de garantia, cabendo a sua emissão à
central de anotações e, se for necessário e solicitado pelo empenhante, também pelas entidades gestoras,
sendo os mesmos emitidos para comprovar a imobilização dos valores onerados e conceder ao credor
pignoratício “un instrumento mediante el cual impedir que se levante el bloqueo del saldo en cuestión” –
Muñoz Cervera, ult. ob. e loc. cit. – devendo dela constar, entre outras, menção da quantidade de dívida
632
obedecer, como sucede nalguns ordenamentos, a regras parcialmente diversas das que
vigoram, em geral, para os valores mobiliários.
empenhada, da sua classe, ao empenhante e ao credor pignoratício e de modo que, enquanto o credor
conservar tal documento, não poderá ser levantada a imobilização dos valores empenhados - De la Santa
Garcia, Prenda de valores cit., pág. 288). De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 279 e segs.,
destaca que a separação dos bens empenhados relativamente aos demais de que seja titular o empenhante
far-se-á no seguimento da comunicação da constituição do penhor à Central de Anotações, por parte da
entidade gestora e de acordo com os dados fornecidos nessa comunicação, sem prejuízo da própria
separação interna que a sociedade gestora deverá fazer quanto às suas próprias contas: porém, surge a
dúvida se a garantia se considera constituída com a separação efectuada pela entidade gestora ou pela
central de anotações, inclinando-se o Autor neste segundo sentido, embora relativizando a questão,
porquanto frequentemente tais operações coincidem no tempo, uma vez que a lei determina que apenas
depois de efectuada a comunicação à Central e depois de efectuada a separação por parte desta os registos
de ambas as entidades possuirão a mesma validade e produzirão os mesmos efeitos.
2339
Segundo Munõz Cervera, ob. cit., pág. 769 e segs., a lei determina expressamente a imobilização
absoluta dos saldos afectos em garantia, parecendo até ser esta imobilização (e não a simples inscrição) o
elemento determinante para a constituição da garantia (dado que “es a partir del bloqueo por parte de la
CA quando la EG realiza las anotaciones contables y con causa de garantía” – em termos análogos, De
la Santa Garcia, Prenda de valores cit., págs. 292 e 293, escrevendo que “En el sistema de Deuda Pública
anotada debe entenderse que el desglose y el bloqueo consiguiente de los valores es (…) el momento en
el que debe entenderse perfeccionada la prenda”, esclarecendo ainda que este bloqueio se produz nas
contas da entidade gestora e da central de anotações, as quais normalmente serão simultâneas). A
competência para esta imobilização é deferida às mesmas entidades encarregues do registo (ou seja, às
entidades gestoras – para os saldos das contas anotadas no seu registo - e à central de anotações, quer para
aquelas entidades titulares de contas abertas junto desta entidade, quer para os saldos anotados na conta
de terceiros de uma entidade gestora na central de anotações: nesta última hipótese, a imobilização
produz-se quando a entidade gestora comunique à central a formalização da garantia). Esta imobilização
produz diversos efeitos relevantes, seja no que concerne à impossibilidade de o empenhante dispor dos
bens empenhados (devendo as entidades gestoras recusar qualquer ordem do empenhante neste sentido),
seja quanto ao reembolso dos valores onerados (em caso de amortização dos valores empenhados antes do
vencimento da obrigação garantida, a central de anotações procederá ao reembolso, mas o valor resultante
fiará imobilizado numa conta no Banco de Espanha e assim permanecerá até que seja levantada a
imobilização dos valores mobiliários, podendo equacionar-se se não estaremos perante um caso de sub-
rogação real imposta por lei?) ou à impossibilidade de alteração da entidade gestora dos valores
empenhados, embora o empenhante mantenha o direito a cobrar os juros produzidos pelo bem onerado
(De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., págs. 295 e 296). A extinção da garantia, pelo contrário,
depende de um requerimento solicitando o cancelamento da inscrição (que pode ser apresentado em
qualquer sucursal do Banco de Espanha), devendo o requerente, para obter tal efeito, devolver a
certificação de imobilização anteriormente emitida (para além disso, o levantamento da imobilização e o
cancelamento do registo poderá decorrer da execução da garantia e da alienação do bem empenhado).
2340
Margarida Costa Andrade, O penhor financeiro com direito de disposição de valores mobiliários, in
Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 70 (Janeiro/Dezembro 2010), p. 351-393, consultado em
http://hdl.handle.net/10316/13012, pág. 4, sustenta que a alienação em garantia e o penhor financeiro são
apenas duas modalidades de garantias financeiras – sujeitas a este regime especial – não prejudicando a
existência de outras que preencham os requisitos legalmente prescritos (cfr. art.º 3.º e segs.),
fundamentando a sua posição no facto o art.º 2.º, n.º 2, estabelecer serem modalidades de contratos de
garantia financeira, “nomeadamente” o penhor financeiro e a alienação fiduciária em garantia.
2341
Este recente diploma procedeu à transposição da Directiva n.º 2009/44/CE, do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 6 de Maio, visando incluir nos activos que podem ser objecto de garantia financeira os
créditos sobre terceiros. Para o efeito, foram modificados, entre outros, os art.ºs 7.º (para além de
esclarecer que, em termos formais, o regime do penhor financeiro se aplica, em termos gerais, a contratos
de garantia financeira e às garantias financeiras cuja celebração e prestação sejam susceptíveis de prova
633
nos quais se inclui o penhor financeiro,2342 embora surjam dúvidas quanto à natureza
jurídica deste instituto.2343
por documento escrito ou de forma juridicamente equivalente – e que o registo em suporte electrónico ou
em outro suporte duradouro equivalente cumpre a exigência de prova por documento escrito ou de forma
juridicamente equivalente à forma escrita – ressalva que, nas garantias financeiras que tenham por objecto
créditos sobre terceiros, a inclusão numa lista de créditos apresentada ao beneficiário da garantia por
escrito ou de forma juridicamente equivalente à forma escrita é suficiente para identificar o crédito sobre
terceiros e fazer prova da prestação do crédito dado como garantia financeira entre as partes), 8.º
(estabelecendo que a ausência de requisitos formais para a constituição e execução da garantia encontra
uma salvaguarda nos casos em que sejam utilizados créditos sobre terceiros como garantia financeira,
caso em que se admite a validade de regimes de registo ou notificação, para efeitos de conclusão,
prioridade, execução ou admissibilidade enquanto prova contra o devedor ou terceiros), 9.º (impedindo
que possa ser concedido ao credor pignoratício um direito de disposição quando o objecto da garantia
sejam créditos sobre terceiros) e 11.º (condicionando o direito de apropriação do credor pignoratício sobre
créditos empenhados sobre terceiros ao acordo das partes quanto à avaliação desses mesmos créditos).
Acerca da uniformização do direito das garantias financeiras, vide, por todos, Filippo Annunziata, Verso
una disciplina comune delle garanzie finanziare, in BBTC, 2003, II, págs. 177 a 241.
2342
Este regime prevê, pelo menos, duas formas distintas de contratos de garantia financeira, a alienação
fiduciária e o penhor. Porém, para que a garantia se encontre sujeita ao regime deste diploma é necessária
a verificação cumulativa de certos requisitos. De acordo com Patrícia Fonseca, ob. cit., págs. 8 a 10,
podemos identificar quatro requisitos distintos. Um primeiro, de natureza subjectiva, nos termos do qual é
necessário que o prestador e o beneficiário da garantia pertençam a alguma das categorias indicadas no
art.º 3.º, n.º 1 (ficando excluídas as situações em que uma pessoa singular intervenha como parte num
destes contratos), o que, segundo Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 5, significa que as pessoas
singulares não podem ser parte num contrato de garantia financeira (o que se justifica, de acordo com a
Autora, em razão da irrelevância da actuação de tais sujeitos para a União Europeia, designadamente por
não comportar riscos sistémicos), enquanto as pessoas colectivas privadas não financeiras apenas o
poderão quando a contraparte seja qualquer das entidades mencionadas no art.º 3.º; e, finalmente, os
organismos públicos estarão abrangidos, mesmo no que toca a entidades que não gestoras da dívida
pública ou não detentoras de contas de clientes (entendendo que o elenco constante da alínea c) do art.º
3.º, n.º 1, é exemplificativo). O segundo requisito diz respeito à natureza das obrigações assumidas, as
quais devem consistir numa prestação que tenha por objecto uma liquidação em numerário ou a entrega
de instrumentos financeiros (art.º 4.º). Por outro lado, o objecto da garantia financeira apenas poderá, nos
termos do art.º 5.º, consistir em numerário (entendido como o saldo disponível de uma conta bancária,
denominada em qualquer moeda, ou créditos similares que confiram direito à restituição de dinheiro, tais
como depósitos no mercado monetário) ou instrumentos financeiros (entendidos como valores
mobiliários, instrumentos do mercado monetário e créditos ou direitos relativos a quaisquer dos
instrumentos financeiros referidos).
2343
Em face do direito espanhol decorrente da transposição desta mesma directiva, Fernando Zunzunegui,
Una aproximación a las garantías financieras, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria
Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 418 e segs., considera que o
denominado penhor financeiro constitui uma garantia de natureza fiduciária, atenta a possibilidade de uso
e substituição dos bens onerados proporcionados por este regime (esclarecendo que a remissão para o
regime legal do penhor é enganosa, admitindo, quando muito, tratar-se de um sub-tipo de penhor “con
fisionomia propia que converge (…) con la modalidad de transmisión de la propriedad en función de
garantía”). Entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 283 e 284, entende que, quando as partes
acordem na possibilidade de o credor fazer seus os instrumentos financeiros dados em garantia, estaremos
perante um penhor irregular (adquirindo o empenhante um crédito à restituição do equivalente,
substituindo este, no património do devedor, os bens onerados). Segundo Diogo Macedo Graça, Os
contratos de garantia financeira, Almedina, 2010, pág. 45, o penhor financeiro aparta-se, em razão da
especificidade do seu regime (particularmente no que toca ao direito de disposição do bem empenhado
por parte do credor e às modalidades de execução da garantia, em especial no que concerne à afirmação
da validade do pacto marciano), quer do regime civil do penhor de coisas, quer mesmo do penhor de
direitos - muito embora o Autor se incline para a integração nesta última modalidade, uma vez que “não
recai sobre coisas corpóreas, ele antes traduz a afectação de coisas incorpóreas a fins de garantia” –
apesar de reconhecer que o regime civilístico do penhor será supletivamente aplicável, conforme decorre
do art.º 22.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio, nomeadamente no que toca aos direitos do
credor, aos frutos e proveitos do bem empenhado e ao uso do bem empenhado. Menezes Cordeiro, Direito
bancário cit., págs. 746 e 747, entende estarmos perante um penhor de direitos, que não constitui um
634
Este diploma, que procedeu à transposição da directiva n.º 2002/47/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho,2344 apresenta alguns desvios relativamente ao
regime geral do penhor,2345 sem que, todavia, afaste a necessidade de desapossamento
do constituinte para a constituição da garantia (cfr. art.º 6.º)2346 ou o carácter não solene
do contrato de penhor2347 ou a presunção antricrética.2348
verdadeiro direito real de garantia (por não incidir sobre coisa corpórea, traduzindo antes a afectação de
coisa incorpóreas a fins de garantia), tratando-se de “uma garantia especial, moldada sobre o penhor,
com relevo para a indisponibilidade do objecto, por parte do devedor e para a preferência da realização
pecuniária, havendo execução” e, quando ao credor pignoratício seja atribuído o direito de disposição do
quid onerado, perante um penhor irregular “um penhor em que o titular da garantia pode alienar ou
onerar o objecto da garantia, independentemente de qualquer incumprimento, devendo entregar o
equivalente” (embora o Autor esclareça que o credor pignoratício não se torna proprietário do bem
empenhado a seu favor, porquanto “ele pode onerar ou alienar; quanto ao resto, haverá que contar com
a vontade do dador da garantia”). Por outro lado, Joana Dias, ob. cit., págs. 173 a 175, considera que o
penhor financeiro constitui um penhor de créditos comum, com as especificidades resultantes da sua
natureza financeira (negando que, mesmo relativamente ao direito de disposição do objecto empenhado,
as soluções vertidas no Decreto-Lei n.º 105/2004 possuam carácter inovador, tendo em conta ser já esse
tipo de convenções prática há muito enraizada no domínio bancário).
2344
De 6 de Junho de 2002, publicada no JOUE L 168, de 27 de Junho. De acordo com Patrícia Fonseca,
ob. cit., pág. 7, os objectivos deste diploma foram a consagração de um sistema de garantias uniforme que
permita a constituição de garantias de modo simples e eficaz, não prejudicado pelas normas nacionais em
matéria de insolvência, bem como a limitação dos encargos e formalidades inerentes à respectiva
constituição. Todavia e de acordo com Fernando Zunzunegui, ob. cit., pág. 420, a criação de um regime
especial para protecção dos credores financeiros, destinado a simplificar a regulamentação geral do
penhor, suscita dúvidas em termos de conformidade com o princípio constitucional da igualdade, dúvidas
essas que, de acordo com o Autor, devem ser dissipadas tendo em conta “la imperiosa necesidad de
mantener la solvencia de las entiades financieras, en las que los incumplimientos de los deudores típicos
tienen mucho mayor importancia que para outro tipo de empresas”. De acordo com António Pedro A.
Ferreira, ob. cit., págs. 693 e 694, o ordenamento alemão procedeu a uma “transposição mínima” daquela
norma comunitária, socorrendo-se de diversas excepções nela contidas, não alterando significativamente
o quadro das garantias mobiliárias vigentes, especialmente ao nível da respectiva constituição. Segundo
Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 2, embora o objecto primordial da directiva fosse o de determinar
a lei aplicável em caso de concorrência de ordenamentos jurídicos, o diploma foi bem mais longe,
estabelecendo regras quanto à constituição da garantia, afastando determinadas regras falimentares e
consentindo, verificados que sejam determinados requisitos, a substituição, disposição e apropriação do
quid onerado.
2345
Importa, todavia, salientar que, nos termos do art.º 22.º deste diploma, em tudo que não esteja nele
previsto se aplicam os regimes, comum ou especial, estabelecidos para outras modalidades de penhor.
2346
Com efeito, subsiste a necessidade de desapossamento do objecto da garantia, considerando-se este
ocorrido quando o bem seja entregue, transferido, registado ou que de outro modo se encontre na posse ou
sob o controlo do beneficiário da garantia, incluindo a composse ou o controlo conjunto com o
proprietário (art.º 6.º). Apesar de o art.º 7.º dispor que o regime do penhor financeiro se aplica aos
contratos de garantia e às garantias cuja celebração e prestação possa ser provada por escrito, em suporte
electrónico ou outro suporte duradouro. Calvão da Silva, Banca, Bolsa e Seguros, 3.ª Edição, Almedina,
2011, pág. 200, qualifica este contrato como quoad constitutionem (no mesmo sentido, Isabel Matos, ob.
cit., pág. 147 e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 274 - retirando este último esta conclusão da
necessidade, imposta pelo art.º 6.º, n.º 2, de o bem a onerar ser entregue, transferido, registado ou se
encontrar na posse ou sob o controlo do beneficiário da garantia ou de uma pessoa que actue em nome
deste – e Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 7 – esclarecendo que, deste modo, o penhor financeiro é
um contrato real quanto aos efeitos e quanto à constituição), afiançando que o objectivo da norma é o de
“impedir plúrima utilização do objecto da garantia financeira pelo mesmo prestador (…) e dar
publicidade do acto face a terceiros“. Daí que Joana Dias, ob. cit., págs. 163 e 164, entenda que apenas à
primeira vista esta norma consagra uma inovação face as modalidades de entrega consagradas no art.º
669.º, tendo em conta que “o essencial é que o objecto da garantia fique no controlo do beneficiário da
garantia”. Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 10, nota 16, dá conta que a exigência de desapossamento não
constava da proposta de directiva apresentada pela Comissão em 27/3/2001, a qual apenas exigia a forma
escrita dos acordos de garantia financeira. A sua introdução terá sido sugerida pelo Parlamento Europeu e
motivada pela exigência de prova estes mesmos acordos, para além das funções normalmente atribuídas
635
ao desapossamento (publicidade face a terceiros e reforço da segurança do credor). Por seu turno
Menezes Cordeiro, Direito bancário cit., págs. 739 e 740, entende que a expressão “desapossamento” não
deve ser entendida em termos rigorosos – desde logo porque não estão em causa coisas corpóreas - , razão
pela qual se enumera um leque vasto (art.º 6.º, n.º 2, nos termos do qual Considera-se prestada a garantia
financeira cujo objecto tenha sido entregue, transferido, registado ou que de outro modo se encontre na
posse ou sob o controlo do beneficiário da garantia ou de uma pessoa que actue em nome deste, incluindo
a composse ou o controlo conjunto com o proprietário) de meios de lograr o dito “desapossamento”, o
qual se torna ainda mais indispensável neste tipo de garantia considerando a possibilidade de as partes
convencionarem o direito de uso e disposição do bem por parte do credor pignoratício, os quais pressupõe
aquele desapossamento. Já em face do diploma que, no direito italiano, transpôs esta mesma directiva
Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 146, sustentam entendimento diverso, sugerindo o
afastamento da necessidade de desapossamento do constituinte, de modo que “l’accento si sia spostato
dallo spossessamento del debitore alla tracciabilità della garanzia e alla indisponibilità del bene per il
debitore (…) una rivalutazione di tecnhice diverse e alternative allo spossessamento quale
tradizionalmente inteso”.
2347
Neste sentido, Calvão da Silva, ob. cit., pág. 201, entendendo que a não exigência de qualquer
formalidade para a constituição da garantia – além do desapossamento – determina que a prova do
contrato deva ser feita por escrito ou noutro suporte duradouro, nomeadamente electrónico (art.º 7.º), ou
seja, o regime do Decreto-Lei n.º 105/2004 “só é aplicável à garantia financeira efectivamente prestada e
se a sua prestação ou desapossamento puder ser provado por escrito ou qualquer outro suporte
duradouro”, assim se evitando o risco de fraude. Em termos idênticos, Joana Dias, ob. cit., pág. 164,
entende que, apesar de o art.º 7.º não declarar expressamente a sujeição do contrato de penhor a forma
escrita, a interpretação do dito preceito deverá ser a que “considera que a garantia financeira deve ser
prestada por escrito ou instrumento equivalente. Trata-se de uma formalidade ad probationem e não ad
substantiam” (convergentemente, Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 10 – esclarecendo, contudo,
que o desapossamento será suficiente para o nascimento de um penhor sobre valores mobiliários
escriturais e titulados nominativos, sendo, ao invés, necessária a redução a escrito para os valores
titulados ao portador - e, para o direito italiano, Albina Candian, La directiva cit., pág. 234, alegando que
se promove a eliminação de formalidades para a constituição ou oponibilidade da garantia, surgindo a
forma escrita como modo de provar a existência da garantia). Em sentido contrário, Hugo Ramos Alves,
ob. cit., pág. 274 (sustentando que “o contrato de garantia financeira terá de ser reduzido a escrito”,
propondo – uma interpretação correctiva do art.º 8.º, na parte em que este dispõe que “a eficácia ou a
admissibilidade como prova de um contrato de garantia financeira e da prestação de uma garantia
financeira não dependem da realização de qualquer acto formal”: todavia e modo contraditório, no
mesmo parágrafo o Autor acabe por afirmar tratar-se de uma formalidade ad probationem e não ad
substantiam), Já Menezes Cordeiro, Direito bancário cit., págs. 740 e 741, refuta estarmos perante uma
mera formalidade ad probationem (com o paradoxo de se admitirem contratos de garantia não escritos
cuja prova se poderia fazer por documento escrito), sustentando, também ele, uma interpretação
correctiva do preceito em análise, que conduza a “proclamar que a garantia financeira deve ser prestada
por escrito ou por via equivalente: declaração electrónica ou em suporte equivalente e, maxime: por
conversa telefónica gravada”, até porque, além do contrato em si, há que provar a realização do
desapossamento e “Tal prova deve ser feita por escrito ou equivalente e isso de modo a que o objecto seja
devidamente identificado”. Em face do direito espanhol resultante da transposição da mesma directiva,
vide Fernando Zunzunegui, ob. cit., págs. 422 e 423, reclama a obrigatoriedade de redução a escrito do
contrato de constituição da garantia, como condição de surgimento da mesma.
2348
Neste aspecto específico, Calvão da Silva, ob. cit., pág. 206, entende que do art.º 672.º decorre o
direito do credor aos frutos – os quais devem ser imputados, sucessivamente, às despesas, aos juros e ao
capital – podendo os que excedam tal medida ser atribuídos ao credor por estipulação das partes (pelo
que, também a este respeito, o regime do penhor financeiro nada acrescenta), considerações estas aceites,
grosso modo, por Diogo Macedo Graça, ob. cit., págs. 47 e 48, reforçando sobretudo a circunstância de os
bens empenháveis ao abrigo do regime do penhor financeiro serem frutíferos por natureza – v.g. os juros
do numerário e os dividendos dos instrumentos financeiros – e de, por outro lado, sobre o credor
impender a responsabilidade (cfr. art.º 683.º) de praticar os actos indispensáveis à conservação do bem
onerado, assim como de cobrar os juros e as demais prestações acessórias compreendidas na garantia.
Também Patrícia Fonseca, ob. cit., págs. 23 e 24, atendendo à natureza frutífera dos bens objecto de
penhor financeiro, entende ser igualmente de presumir o pacto anticrético, nos termos do art.º 672.º.
636
Apesar de o penhor financeiro se encontrar sujeito à exigência de
desapossamento, este é entendido em termos funcionais, isto é, o que releva é a
subtracção do bem à disponibilidade do empenhante e a publicitação da garantia.2349
Porventura os dois principais aspectos em que este regime se afasta do regime
geral do penhor2350 são a possibilidade de o credor pignoratício dispor, dentro de certos
limites, do objecto da garantia,2351 bem como a faculdade que lhe assiste de, em caso de
incumprimento da obrigação garantida, fazer seus os bens recebidos em garantia,2352 em
qualquer dos casos apenas desde que exista convenção das partes nesse sentido2353 e, no
que concerne ao direito de disposição e por força do art.º 9.º, n.º 3, desde que seja
efectuada menção no respectivo registo (tratando-se de valores mobiliários escriturais)
ou na conta de depósito (no caso de valores mobiliários titulados).
De facto, as partes podem convencionar atribuir ao credor pignoratício o direito
de dispor dos bens empenhados, autorizando-o a aliená-los ou onerá-los (art.º 9.º),2354
2349
Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 7 e segs.. A Autora, porém, admite (com base na
interpretação de diversos preceitos da lei, sobretudo dos art.ºs 17.º, n.º 1 – na parte em que alude a
“contratos de garantia financeira celebrados e as garantias financeiras prestadas ao abrigo desses
contratos não podem ser resolvidos pelo facto de o contrato ter sido celebrado ou a garantia financeira
prestada”, do qual retira que “independentemente da fase em que se encontre o iter negocial, seja um
contrato com desapossamento, seja um contrato com desapossamento, o beneficiário da garantia já
encontra protecção” - e 18.º, n.º 2 – “Os contratos de garantia financeira celebrados e as garantias
financeiras prestadas após a abertura de processos de liquidação e a adopção de medidas de
saneamento relativas ao prestador da garantia financeira são eficazes perante terceiros desde que o
beneficiário da garantia prove que não tinha nem deveria ter conhecimento da abertura desse processo
ou da adopção dessas medidas”, do qual a Autora conclui que a protecção será concedida aos contratos
celebrados após aqueles processos e medidas, mesmo que ainda não tenha havido prestação da garantia)
que, mesmo na ausência de desapossamento, o contrato de garantia possa produzir efeitos obrigacionais e
os efeitos especiais consagrados nas disposições acabadas de citar, entendendo, contudo, que o efeito a
que chama “garantístico”, e a que talvez devamos chamar reais, com excepção dos mencionados a
respeito da insolvência (exemplificando com o direito de promover a execução do bem), pressupõem
necessariamente aquele desapossamento.
2350
Em face do direito espanhol, García Vicente, ob. cit., págs. 37 a 41 e 70, realça que os aspectos
principais em que o Real Decreto-Ley n.º 5/2005, de 11 de Março, se afasta do regime civilístico do
penhor (o qual, aliás, é supletivamente aplicável ao penhor financeiro) residem subtracção às regras
concursais, a possibilidade de o penhor garantir o cumprimento de obrigações futuras, a liberdade de
oneração dos créditos futuros e a possibilidade inequívoca de constituição da garantia por declaração
unilateral do titular do bem quando o beneficiário for um estabelecimento profissional de crédito (e desde
que o bem em questão se encontre inscrito num registo).
2351
Deste modo se afastando do regime do Código Civil, em cujo art.º 671.º, alínea b), se consagra a
proibição de uso do bem empenhado pelo credor pignoratício, apenas se prevendo que o possa fazer
quando tal seja indispensável à sua conservação ou mediante autorização do constituinte. Analogamente,
no direito espanhol encontra-se igualmente consagrada a faculdade de disposição por parte do credor
(permitindo assim aumentar a liquidez dos mercados, graças à reutilização dos valores empenhados),
desde que restitua um objecto equivalente o mais tardar na data do vencimento da obrigação garantida,
podendo até pactar-se a compensação do valor dos bens dados em garantia com o valor da dívida
garantida (por outro lado, consagra-se também a faculdade de substituição do bem onerado por parte do
devedor, assim lhe consentindo fazer uso do bem, desde que o substitua por outro equivalente).
2352
Possibilidade esta que, prima facie, conflitua com a proibição do pacto comissório, plasmada no art.º
694.º.
2353
Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 1, destaca como, ao prever a possibilidade de disposição e de
apropriação, o regime do penhor financeiro constitui uma inovação similar à própria consagração da
alienação fiduciária em garantia, prevista no mesmo diploma.
2354
Como salientam Isabel Matos, ob. cit., pág. 49 e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 277, este preceito
permite a obtenção de um efeito semelhante ao das chamadas garantias rotativas. Já para Sofia Maltez,
ob. cit., pág. 66, esta faculdade é análoga à possibilidade de venda extraprocessual do bem empenhado,
consagrada no art.º 675.º, mas com uma diferença relevante: é que o art.º 9.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º
105/2004, admite o exercício do direito de disposição sem que a obrigação esteja vencida, argumentando
que as obrigações decorrentes do uso do direito de disposição (cfr. art.º 10.º) devem ser cumpridas até à
637
como se fosse seu proprietário,2355 solução esta, porventura importada dos direitos de
matriz anglo-saxónica,2356 que se destina a permitir a reutilização dos títulos dados em
penhor, assim aumentando a liquidez nos mercados.2357
Não falta, porém, quem entenda que a possibilidade de (uso e de) oneração, com
o consentimento do empenhante do bem empenhado, já decorre do regime geral do
penhor (cfr. art.º 671.º, alínea b)), pelo que o único segmento verdadeiramente inovador
do art.º 9.º do regime do penhor financeiro é aquele que consente a atribuição ao credor
pignoratício do direito de disposição (atendendo à tendencial proibição da prática deste
tipo de actos contida no art.º 671.º, alínea b))2358 e de oneração (considerando a
interdição do sub-penhor).
data convencionada para o cumprimento das obrigações garantidas (se a obrigação já se encontrar
vencida, aplicar-se-á o art.º 11.º), isto para além de o direito de disposição consagrado para o penhor
financeiro ter um fito específico, qual seja o de assegurar a defesa do objecto empenhado, permitindo uma
gestão activa e dinâmica deste. Por outro lado, o regime do penhor financeiro afasta-se do penhor
comercial, em sede de execução, porque o primeiro, ao contrário do segundo, admite que a venda seja
promovida pelo próprio credor (embora Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 115, nota 198, saliente
que, no caso das acções escriturais ou tituladas depositadas, a execução terá que ser levada a cabo, ainda
que após iniciativa do credor, por um intermediário financeiro autorizado). Para uma crítica da
possibilidade, aberta pela norma mencionada no texto, de alienação ou oneração do bem empenhado antes
da obrigação garantida ter sido incumprida, vide Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 114 e 115
(considerando tratar-se de um processo de execução rápido e não formal que, no entanto, desvirtua a
essência do penhor enquanto garantia real, que passa a ser “uma forma alternativa de satisfação
antecipada da obrigação garantida, numa espécie de dação pro solvendo”).
2355
Diogo Macedo Graça, ob. cit., pág. 49 e segs., reputa de precipitada a redacção da norma em questão,
pelo que “Devemos ler o preceito como se o mesmo atribuísse ao credor pignoratício a possibilidade de
dispor do bem dado em garantia nos mesmos termos e condições em que o pode fazer um proprietário.
Trata-se, portanto, mais de uma ficção legal do que de uma qualificação jurídica rigorosa”, entendendo
que o legislador ser deveria ter referido a “titular” e não a proprietário, uma vez que o objecto do penhor
financeiro são normalmente direitos de crédito (na óptica do Autor, esta conclusão impõe-se se tivermos
em conta que o penhor financeiro não produz a transmissão da propriedade para o credor - cfr. art.º 2.º, n.º
2): neste contexto, o Autor sustenta que o credor pignoratício age numa qualidade análoga à de um
mandatário (sem representação), uma vez que o prestador da garantia lhe confere poderes para dispor do
objecto daquela. Porém, se desta integração no âmbito do mandato decorre a aplicação das disposições
gerais do mandato sem representação (o que implica, desde logo, que os actos de disposição seriam
praticados no interesse do devedor e, principalmente, do credor, bem como o dever de transferir para o
mandante – constituinte da garantia – os direitos adquiridos em execução do mandato e, no que toca aos
créditos, o poder do mandante se substituir ao mandatário no exercício dos respectivos direitos - cfr. art.ºs
1180.º e 1181.º), não é menos verdade que a natureza garantística do penhor impõe alguns desvios (desde
logo a não aplicação da obrigação que recai sobre o mandatário de praticar todos os actos compreendidos
no mandato segundo as instruções do mandante – art.º 1161.º – ou nos termos previstos para a revogação
do mandato, de acordo com os art.ºs 1170.º e segs.).
2356
Margarida Costa Andrade, ob. cit., págs. 17 e 18, aponta como exemplo o direito norte-americano, no
qual o art.º 9.º do UCC admite que o credor pignoratício possa constituir livremente sub-penhores,
embora a concessão do direito de disposição do bem onerado apenas seja lícita quando tal seja necessário
para a preservação do respectivo valor, quando existir autorização judicial ou quando as partes assim o
convencionem.
2357
Para além dessa vantagem, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 275 e 276,
assegura que esta faculdade de disposição beneficia o credor (que, até ao vencimento da obrigação
garantida, poderá usar o bem, “transformando-o em liquidez nesse espaço de tempo através de uma
venda, ou, eventualmente, dando-o em garantia”) e o próprio devedor (que, em troca da concessão dessa
faculdade ao credor, poderá obter uma determinada quantia ou condições de crédito mais favorável). Em
termos análogos, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 277, Margarida Costa Andrade, ob. cit., págs. 13 e 14
António Pedro A. Ferreira, ob. cit., pág. 683 (aludindo este último ao facto de, no caso dos instrumentos
financeiros, esta faculdade de disposição permitir um aumento da liquidez dos respectivos mercados).
2358
Neste sentido, Calvão da Silva, ob. cit., págs. 205 a 208, salientando até que do regime civilístico
decorre que a legitimidade para alienar prescinde do consentimento do empenhante, quando seja
indispensável à conservação do bem, isto é, que “já em face do art.º 671, al. b), do Código Civil, com o
638
Apesar da aparente ausência de condicionalismos legais à outorga deste direito
de disposição ao credor, parece que as partes poderão limitar o exercício de tal
faculdade à verificação de determinados pressupostos e, num plano oposto, será
possível indicar certas obrigações do credor pignoratício que, mesmo na vigência do
direito de disposição, não poderão ser afastadas.2359
Do mesmo modo, nada parece impedir que ao credor seja atribuída unicamente a
capacidade realizar algum dos actos de disposição previstos na lei, isto, apenas para
onerar e não para alienar ou vice-versa.2360
Em caso de disposição não autorizada por parte do credor – seja porque não
existia, de todo, autorização, seja porque esta não cumpria os requisitos formais
impostos pelo n.º 3 do art.º 9.º, seja porque, havendo autorização, o credor pignoratício
extrapolou os seus limites - , não obstante sua a actuação ilícita, a defesa por parte do
devedor (maxime através das acções possessórias ou de reivindicação) poderá vir a ser
paralisada pela invocação, por parte do terceiro, da protecção de terceiros de boa fé
consagrada para alguns instrumentos financeiros, como os valores mobiliários (cfr. art.º
58.º do CVM).2361
639
Uma vez exercido o direito de disposição, o credor pignoratício encontra-se
obrigado a restituir ao devedor, em caso de cumprimento por parte deste da obrigação
garantida, objecto equivalente ao objecto original (art.º 10.º, n.º 1, alínea a)).2362
Todavia e em alternativa, as partes podem acordar na entrega ao devedor de
montante em dinheiro equivalente ao valor do objecto garantido na data de vencimento
da obrigação de restituição (valor esse que deverá ser obtido através de critérios
comerciais razoáveis)2363 ou na compensação de créditos,2364 sendo o crédito do
prestador da garantia avaliado nos mesmos termos (art.º 10.º, n.º 1, alíneas b) e c)).2365
2366
2362
De acordo com o art.º 13.º, serão objectos equivalentes aos empenhados aqueles instrumentos
financeiros do mesmo emitente ou devedor, que façam parte da mesma emissão ou categoria e tenham o
mesmo valor nominal, sejam expressos na mesma moeda e tenham a mesma denominação, ou outros
instrumentos financeiros, quando o contrato de garantia financeira o preveja, na ocorrência de um facto
respeitante ou relacionado com os instrumentos financeiros prestados enquanto garantia financeira
original. Como forma de contornar esta rigidez, Sofia Maltez, ob. cit., pág. 70, sugere que as partes
convencionem outro tipo de instrumentos financeiros, com o efeito de objecto equivalente.
2363
Para Sofia Maltez, ob. cit., pág. 70 e Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 27, as partes dispõem de grande
margem de discricionariedade na fixação desses critérios, podendo consistir na determinação prévia de
formas de cálculo, na remissão para valores de mercado ou na designação de um terceiro imparcial
(acrescentando a primeira Autora que os tribunais poderão controlar a posteriori essa razoabilidade,
posição subscrita também por Calvão da Silva, ob. cit., pág. 209 e Diogo Macedo Graça, ob. cit., pág. 56).
2364
Esta compensação tem natureza convencional, pelo que operará independentemente da verificação
dos pressupostos consagrados na lei (cfr. art.º 847.º) para este instituto – Patrícia Fonseca, ob. cit., pág.
27.
2365
Para Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 26, este direito de disposição regulado no art.º 10.º apenas se
refere ao penhor sobre aplicações financeiras, uma vez que incidindo a garantia sobre numerário, o direito
de disposição decorre da própria natureza da garantia. Todavia, a articulação destes art.ºs 9.º e 10.º suscita
algumas dúvidas. Desde logo, é discutível se as partes poderão convencionar a limitação ou redução
apenas a uma das hipóteses de restituição do objecto da garantia consagradas pelo legislador (responde
negativamente Joana Dias, ob. cit., pág. 169, tendo em conta a necessidade de tutela do devedor e de
evitar a violação da proibição do pacto comissório) e, noutra ordem de considerações, se as partes
poderão acordar que apenas haverá lugar ao exercício, por parte do credor pignoratício, do direito de
disposição se a restituição do objecto da garantia puder ocorrer através de compensação ou somente
mediante uma entrega em dinheiro (aceita a validade deste tipo de convenções Joana Dias, ob. cit., pág.
170, pois, ao contrário da hipótese anterior, “as partes limitam-se a condicionar o exercício do direito de
disposição à efectiva restituição através de uma das formas previstas na lei”).
2366
Por outro lado, o n.º 2 deste art.º 10.º estabelece que o direito de disposição não é prejudicado pelo
cumprimento antecipado das obrigações garantidas, norma à qual Sofia Maltez, ob. cit., pág. 68, atribui o
significado de, em caso de cumprimento antecipado pelo devedor da obrigação garantida, o credor
pignoratício não ter de cumprir antecipadamente a sua obrigação de restituição (apenas terá de o fazer na
data acordada pelas partes). No entanto, as partes poderão estipular o vencimento antecipado da obrigação
de restituição por parte do credor pignoratício e o cumprimento da mesma por compensação,
nomeadamente em caso de incumprimento do contrato ou de outro facto ao qual as partes atribuam
análogo efeito (cfr. art.º 12.º, que consagra a figura do close-out netting que, como destaca Diogo Macedo
Graça, ob. cit., pág. 59, permite uma aceleração do contrato, da qual pode resultar, como efeito da
compensação, um excesso que normalmente surge na esfera jurídica do garante, mas que
excepcionalmente pode verificar-se a favor do credor), entendendo Calvão da Silva, ob. cit., págs. 209 e
210, que tal possibilidade resulta já do regime geral do penhor (nos termos dos art.ºs 670.º, alínea c),
701.º e 780.º), acrescentando Joana Dias, ob. cit., págs. 176 a 178 e Pestana de Vasconcelos, Direito das
garantias cit., págs. 277 e 278, que cláusulas estabelecendo a perda do benefício do prazo são comuns na
praxis bancária (afirmando, por isso, tratar-se de um preceito tautológico).
640
garantia original (art.º 10.º, n.ºs 3 e 4): eis a consagração da figura da sub-rogação real,
sem efeitos novatórios.2367
Estes aspectos da regulamentação do penhor financeiro consubstanciam, salvo
melhor juízo, o reconhecimento legal do penhor rotativo neste domínio.2368
O outro aspecto em que este regime afasta, ao menos aparentemente,2369 do
regime geral do penhor relaciona-se com o disposto no art.º 11.º,2370 nos termos do qual
o beneficiário da garantia pode, em sede de execução, fazer seus os instrumentos
financeiros dados em garantia, desde que tal tenha sido convencionado pelas partes e se
houver acordo relativamente à avaliação dos instrumentos financeiros, ficando o
beneficiário da garantia obrigado a restituir ao prestador o montante correspondente à
diferença entre o valor do objecto da garantia e o montante das obrigações financeiras
garantidas.2371
Por força desta norma, o credor pignoratício pode obter a satisfação do seu
crédito com prevalência sobre outros, ainda que estes últimos, nos termos das regras
atinentes ao concurso de credores, lhe devessem ser antepostos.
Cumpre, porém, distinguir consoante o penhor financeiro recaia sobre numerário
(art.º 5.º, alínea a)) ou sobre instrumentos financeiros (art.º 5.º, alínea b)),
nomeadamente para efeitos das modalidades de execução: neste última hipótese, as
alternativas são a venda ou a apropriação; na primeira, designadamente quando se trate
de activos depositados em contas bancárias, o credor poderá operar a compensação ou
transferir os montantes em dívida para a sua conta.2372
2367
Neste sentido, Patrícia Fonseca, ob. cit., págs. 27 e 28 (considerando não ser esta uma solução inédita,
relembrando que o art.º 685.º, n.º 1, prevê uma outra hipótese de sub-rogação real) e Joana Dias, ob. cit.,
págs. 170 e 171 reconhecendo que esta norma “permitirá esclarecer algumas dúvidas e ultrapassar
imbricados obstáculos que se colocam no que concerne à admissibilidade de penhor constituído sobre
uma carteira de títulos sob a gestão discricionária de uma instituição de crédito ou sob a gestão directa
do cliente ou com formas mistas de gestão” (embora considere que tal norma não é inovadora no
panorama legislativo nacional, na medida em que da alínea b) do art.º 671.º já decorre a obrigação do
credor pignoratício não usar o bem empenhado sem o consentimento do autor do penhor). Por outro lado,
salienta a primeira Autora citada, o credor pode alienar ou onerar os bens recebidos em penhor na
qualidade de mandatário sem representação e não de proprietário, porquanto o penhor financeiro não
transfere a propriedade do objecto da garantia para o credor pignoratício. Diversamente, Sofia Maltez, ob.
cit., pág. 69, nota 177, apesar de aceitar tratar-se de um caso de sub-rogação, sugere que este fenómeno
produz a extinção do anterior penhor e o surgimento de um novo. Acerca da possibilidade invocação do
instituto da sub-rogação real no âmbito do penhor, vide infra n.º 3.2.5 do Capítulo II.
2368
Para mais desenvolvimentos, vide infra n.º 3 do Capítulo II.
2369
Acerca da questão de saber se o disposto no art.º 11.º constitui uma excepção à proibição do pacto
comissório, vide infra n.º 4 do Capítulo II.
2370
Em conformidade, aliás, com o art.º 8.º, n.º 2, que, sem prejuízo do acordado pelas partes, determina
que a execução da garantia pelo beneficiário não está sujeita a nenhum requisito, nomeadamente a
notificação prévia ao prestador da garantia da intenção de proceder à execução: esta norma atribui às
partes uma ampla liberdade na conformação da execução da garantia, não impondo qualquer
procedimento específico para o efeito - Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 279.
2371
Norma análoga vigora no direito espanhol, enfatizando Fernando Zunzunegui, ob. cit., págs. 426 e
427, a desnecessidade de procedimento judicial, de notificação prévia ao devedor e de um período de
espera, distinguindo entre as garantias sobre instrumentos financeiros (cuja execução se fará mediante
venda ou apropriação, mas sempre com necessidade de a forma de avaliação do bem se encontrar
contratualmente definida e ser conforme os ditames da boa fé) ou sobre dinheiro (cuja execução se fará
através de compensação ou de transferência para a conta do credor). De igual modo no direito italiano,
Albina Candian, La directiva cit., pág. 235, fala de mecanismos de auto satisfação, por consentirem ao
credor o direito de apropriação e utilização dos bens empenhados.
2372
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 282.
641
Ao invés, quando as partes estipulem uma convenção comissória (rectius,
marciana) ou não atribuam ao credor o direito de disposição23732374 (nos termos
expostos), a execução do penhor financeiro não obedecerá tendencialmente às mesmas
regras ditadas para o penhor comum.2375
Um último aspecto em que, ao menos da opinião de alguns, diverge do regime
geral do penhor radica na impossibilidade de o bem objecto de um penhor financeiro ser
penhorado no âmbito de uma execução movida por terceiro.2376
Incidindo o penhor sobre o saldo de uma conta bancária ou créditos similares,
importa distingui-lo do penhor bancário, tendo em conta que em ambos os casos a
propriedade do bem depositado presumivelmente se transfere para o credor pignoratício
2373
Quando seja atribuído ao credor apenas o direito de disposição (mas não de apropriação), Margarida
Costa Andrade, ob. cit., págs. 23 a 26, opina que, apesar do teor aparentemente cristalino do art.º 10.º, n.º
1, alíneas a) e b) (que parece apontar no sentido de o credor pignoratício apenas se encontrar obrigado a
restituir um objecto equivalente até ao momento do cumprimento e, a contrario, que o incumprimento do
devedor o desoneraria de tal obrigação), entende que a necessidade imposta por lei de equilíbrio entre os
valores da restituição e da obrigação garantida (cfr. art.ºs 10.º,n.º 1, alínea c) e 11.º, n.º 2) contende com
uma conclusão tão linear no sentido da desnecessidade de execução da garantia (pois tal equilíbrio
poderia falhar “se o credor pudesse, simplesmente, não cumprir a obrigação de restituição com base no
incumprimento: não se asseguraria que esta auto-satisfação não prejudicasse o devedor logo pelo facto
de o valor da obrigação ser inferior ao valor dos instrumentos financeiros de que o credor se
apropriasse”), obrigando antes a distinguir consoante o credor tenha ou não restituído ao devedor o
objecto equivalente ao onerado: na primeira hipótese, “tudo se encontra como se não tivesse havido
exercício do poder de disposição, pois o devedor é tido como proprietário dos bens equivalentes desde o
momento da celebração do contrato de garantia financeira, e os direitos do beneficiário da garantia
mantêm-se sobre o objecto equivalente como se este fosse o originário (art.º 10.º, n.ºs 3 e 4)”, pelo que o
credor pignoratício deverá promover a execução sobre tais bens nos termos gerais (todavia, a
reconstituição do quid onerado não implica a transferência efectiva para a conta do devedor antes do
vencimento da obrigação garantida, podendo antes permanecer na conta do credor, mas à disposição do
devedor no momento daquele vencimento ou da execução da garantia); na segunda hipótese e na
impossibilidade de apropriação directa, terá que, num primeiro momento, reconstituir a garantia e,
posteriormente, executá-la.
2374
Quando as partes acordem na concessão ao credor dos direitos de disposição e, em caso de
incumprimento da obrigação garantida, de apropriação, Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 24, nota
67, entende que o penhor se aproxima vertiginosamente da alienação fiduciária em garantia.
2375
Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 23, constata a ausência de qualquer norma que regule a
execução de um penhor financeiro, simples (à excepção do n.º 2 do art.º 8.º, de acordo com o qual a
execução da garantia não se encontra sujeita a qualquer formalidade, nomeadamente a notificação prévia
ao empenhante), concluindo que o credor “terá de proceder à venda deles para se ressarcir do
incumprimento”, embora essa venda seja extrajudicial, não apenas por força da norma acabada de
mencionar (que transpõe o segmento da Directiva comunitária que inibe a sujeição da execução a um
leilão público ou à sua prévia aprovação por um tribunal), “O que se compreende tendo em conta os fins
de celeridade, simplificação e informalidade que o novo diploma pretende atingir, bem como a fácil
avaliação do valor empenhado”.
2376
É a posição defendida por Pestana de Vasconcelos, Penhor, privilégio mobiliário geral cit., págs. 10 a
12. Partindo da imunidade do penhor financeiro face à declaração de insolvência, o Autor, apesar de
reconhecer que o diploma que regula o penhor financeiro é omisso relativamente às execuções singulares,
conclui pela colmatação desta lacuna “da seguinte forma: os bens objecto de penhor financeiro não
podem ser penhorados no seio de uma acção executiva interposta por um terceiro”. Em termos mais
precisos, o Autor defende que “retira-se de teleologia da disciplina destes contratos que se pretende
assegurar de forma muito sólida a sua execução, nos termos acordados e sem que, mesmo na
insolvência, onde, em regra, se verifica uma comunidade de sacrifícios, possam ser atingidos. Aceitar
que um credor comum exequente pudesse fazer cessar antecipadamente um acordo destes (art.º 868.º, n.º
3, CPC) (…) contraria fortemente a ratio de toda esta disciplina” (e, ainda mais, se o exequente for
detentor de uma garantia – v.g. o privilégio mobiliário geral da segurança social – que, em sede de
graduação de créditos, seja preferido ao crédito pignoratício). Em suma, remata o Autor, “se se blindam
estes contratos na insolvência, então também terão que ser blindados, no sentido de se assegurar sempre
a sua execução nos termos acordados, na execução singular”.
642
(art.º 1144.º), tendo o depositante um direito de crédito à restituição do montante
depositado (direito este que vai ser objecto do penhor): parece que o regime do penhor
financeiro apenas será viável quando estejam reunidos todos os requisitos de que
depende a aplicação do Decreto-Lei n.º 105/2004 ou quando tal for a vontade, expressa
ou presumível, das partes.2377
O penhor sobre instrumentos financeiros coloca, igualmente, a questão de
compatibilização deste regime com o previsto no Código de Valores Mobiliários para a
respectiva empenhabilidade, devendo a resposta ser análoga à preconizada para o
penhor financeiro de numerário.2378
Importa registar que o legislador luso, ao invés do que a legislação comunitária
transposta consentia, não inseriu uma norma que consinta às partes estipular a obrigação
de manutenção de uma proporção entre o valor da dívida garantida e dos bens
onerados2379, de modo que, em caso de diminuição do valor destes em relação ao
daquela e a fim de repor o equilíbrio acordado, a protecção do credor apenas poderá
advir do regime geral do penhor (nomeadamente do disposto na alínea c) do art.º 670.º).
643
suporte documental (respondendo o Autor afirmativamente, remetendo para a teoria dos direitos sobre
direitos, ou seja, “en estos supuestos, y como consecuencia de la “cosificación”, el requisito del
desplazamiento posesorio se entenderá cumplido con la notificación al deudor (…) lo importante es
conseguir la indisponibilidad del pignorante sobre la cosa, y esto se consigue en estos caos bien
mediante la comunicación al deudor, bien mediante la inscripción de la prenda en un Registro público
como ocurre con las anotaciones en cuenta (…) o con la prenda sin desplazamiento posesorio (…) el
fundamento de la exigencia del desplazamiento posesorio, que no es otro que pretender asegurar que el
deudor no va a enajenar el bien que se encuentra sometido a la garantía prendaria, violando con ello el
fin de la misma, produciéndose una fraude para los derechos del acreedor, que se vería desprovisto de
garantía que asegurara la obligación de la que es acreedor. De esta forma, si el bien objeto del derecho
sale del ámbito de disposición del deudor, el acreedor verá su derecho más protegido. Con esto como
base, podemos afirmar que el Código no está exigiendo forzosamente la entrega material, pudiendo
acudirse a una tradición ficticia perfectamente, siempre que la prenda se encuentre fuera del ámbito de
disposición del deudor”).
2381
Questão conexa com a da empenhabilidade da participação social é a respeitante à sua natureza
jurídica, acerca da qual remetemos para Frederico Briolini, ob. cit., pág. 190, nota 22 e Lorenza Bullo e
Claudia Sandei, ob. cit., pág. 45 e segs. (de acordo com estas últimas Autoras, esta questão entronca,
tradicionalmente, numa outra, mais vasta, do objecto das garantias que incidam sobre títulos de crédito,
digladiando-se aqueles consideram estarmos perante um penhor de direitos diversos do crédito e, no caso
das acções, dos direito nelas incorporados; outros face a um penhor de coisas, atribuindo aos títulos,
nomeadamente às participações sociais, a natureza de coisa móvel e considerando que, por via de
incorporação, o documento se identifica com o direito que representa, até porque será o valor de alienação
do título que, em sede de execução, servirá para satisfazer o credor pignoratício; e outros inclinando-se
para uma solução mitigada, admitindo que o penhor recai, no caso dos títulos representativos, sobre os
objectos neles especificados e, nos demais – incluindo as acções – sobre os direitos representados pelos
títulos), Stefano Poli, Il pegno di azioni, Giuffrè, 2000, pág. 255 e segs. (distinguindo entre a tese
tradicional, que adopta uma perspectiva unitária da participação social, de acordo com a qual as várias
posições subjectivas nela incorporadas constituem a consequência do status de sócio ou o objecto de um
direito subjectivo do sócio, qualificado como um direito real, de crédito ou sui generis; uma outra
segundo a qual a participação social será qualificável como uma posição contratual, derivando do contrato
de sociedade diversas posições subjectivas; e uma terceira, que destaca a obrigatoriedade de considerar
autonomamente a participação social incorporada em cada acção, que se traduz no complexo de posições
subjectivas nela incorporadas, ligadas entre si pela sua recondução a uma matriz societária comum: o
Autor, por seu turno, define a participação social como “complesso di diritti i obblighi derivanti (recte:
che trovano fondamento causale nel) contratto di società” e que, por isso, uma acção pode ser
considerada como uma autónoma participação, ressalvando, porém, que “dato che la individuazione del
contenuto della partecipazione sociale è questione di diritto positivo, il legislatore, in talune ipotesi, ha
richiesto, per l’esercizio di determinati diritti sociali (…) il possesso di un numero significativo di azioni;
in altre ipotesi, specificando nel campo del diritto societario alcuni principi generali (…) ha previsto dei
profili di rilevanza unitaria delle participazione tipo che ricadono nella titolarità di un unico soggetto”,
como sucede com o direito de requerer a invalidação de deliberações sociais ex art.º 2377.º do CCI).
Todavia, este último Autor relativiza a questão, assegurando que a resposta a dar à mesma não será
necessária para a identificação do regime aplicável ao penhor de acções, optando antes por uma
abordagem mais pragmática que consinta compreender a razão da existência de regras específicas para o
penhor de créditos – que o Autor entende ser a necessidade de criar formas alternativas ao
desapossamento material – e, por isso, conclui que o regime aplicável ao penhor de acções será o do
penhor de coisas, entendida a “coisa” como “il valore dell’oggetto costituito in pegno” ou “riserva di
utilità” – precisando que se deverá atender valor de mercado e não nominal dos títulos (destarte se
justificando as interferências do credor pignoratício na vida da sociedade), o qual corresponde ao valor
bolsista para o caso dos títulos cotados e, para os não cotados, ao valor patrimonial líquido por ser o mais
conforme ao que poderá ser obtido em sede de venda executiva - excluindo que o penhor de acções possa
configurar-se “pro quota, come un pegno avente ad oggetto sostanziale l’azienda sociale” (cfr. ult. aut. e
ob. cit., pág. 91 e segs.). Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 63 e segs., opina, numa posição sui generis,
que “el objeto de la prenda no es la cosa en sí, sino su valor y, fundamentalmente, su valor económico”,
embora qualifique a acção como um bem móvel (por serem móveis todos os bens não expressamente
qualificados como imóveis), susceptível de ser empenhado (excepto quando existam restrições legais
expressas, como sucede com as acções próprias), concluindo que, mesmo após o processo de
desmaterialização, é possível considerar “al título-valor como título destinado a la circulación, por lo
cual se incorpora a un documento o se anota en un sistema informatizado de negociación. De esta forma,
644
afastando-se, em diversos aspectos, das soluções vertidas no regime geral, surgindo
algumas dúvidas quanto à admissibilidade de semelhante garantia incidir sobre uma
quota de uma sociedade civil.2383
el título valor constituiría una categoría general, el título en sentido abstracto, y, en ella se incluirían dos
clases de valores, los cartulares, que se documentan en papel y responden a la noción tradicional, y los
títulos valores informatizados. Nos encontramos, por tanto, ante una nueva forma de representación de
los valores (…). Se trata de la cosificación de un derecho incorporal a efectos de sustraer su circulación
a las reglas del Derecho de las obligaciones”. Salienta a predominância, no direito francês, da
qualificação do penhor de participações sociais como um penhor de coisas, Jean-François Riffard, ob. cit.,
pág. 39, nota 5 (falando de coisas portadoras de direitos). No nosso direito, vide, por todos, Pestana de
Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 234, nota 663, relatando que a qualificação da participação
social oscila entre a posição daqueles que a consideram uma posição jurídica unitária de direitos e
obrigações do sócio enquanto tal – Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial cit., Vol. II, págs. 220
e 221 (posição essa que assume natureza contratual) - ou, mais complexamente, como um conjunto plural
que pode ser analisado como situação jurídica (que traduz a ligação entre o sócio e a sociedade e,
mediatamente, entre o sócios e os demais associados e até relativamente a terceiros) e como bem jurídico
que pode ser objecto de direitos (neste sentido, Paulo Olavo Cunha, ob. cit., págs. 313 e 314).
2382
Como refere Niccolò A. Bruno, ob. cit., págs. 3 e 4, para tal sucesso contribui, do modo indelével, a
possibilidade de o credor pignoratício poder intervir directamente na vida societária, assim velando pela
integridade do objecto da garantia.
2383
Pelo contrário, a empenhabilidade das participações sociais em sociedades civis é, por vezes, posta
em causa, tendo em conta a impossibilidade de configurar a participação neste tipo de sociedades como
um direito subjectivo: é a posição defendida por Leciñena Ibarra, La cesión em garantia de créditos
sociales derivados de la pertenencia a una sociedad civil de ejercicio professional, in Revista de Derecho
Patrimonial, n.º 11 (2003), pág. 120 e segs, alegando que a qualificação de uma situação como direito
subjectivo “presupone que la misma constituye una realidad independentizada exteriormente, con total
abstracción de la relación contractual que le dio origen (…) y caracterizada por el libre manejo y
ejercicio a discreción del titular”, o que não acontece com a participação social civil (pelo que carece de
existência como direito autónomo susceptível de alienação). Todavia, o Autor admite a empenhabilidade
do direito de crédito do sócio sobre o activo social existente em caso de liquidação (o qual pressupõe o
consentimento da sociedade, uma vez que a execução do bem empenhado poderia produzir uma
dissolução parcial da sociedade: todavia, este consentimento não afecta a validade ou eficácia da
constituição da garantia, desencadeando apenas a responsabilidade do sócio no plano interno) ou do
crédito aos dividendos (para o que não será necessário o consentimento da sociedade), a constituir através
da notificação da constituição da garantia à sociedade (não perdendo o sócio tal condição, nem a
titularidade do crédito dado em garantia): em caso de incumprimento da obrigação garantida sobre a
quota de liquidação, exigir-se-á a dissolução parcial prévia da sociedade para determinar a quota que cabe
a cada sócio (e, caso se materialize num bem, a garantia abarcá-lo-á por via de sub-rogação real); se, ao
invés, a garantia incidir sobre o crédito aos dividendos, passará a garantia a recair sobre o respectivo
montante. No direito francês, a dação em penhor de participações sociais nas sociedades civis encontra
acolhimento legal nos art.ºs 1866.º e segs. do CCF, nos termos dos quais o acto de constituição da
garantia terá que ser reduzido a escrito e notificado à sociedade emitente (ou por ela aceite), seguido da
inscrição num registo comercial (que incumbe ao credor – devendo esse juntar cópia da prévia notificação
à sociedade emitente –, que constitui condição de oponibilidade da garantia – prevalecendo, de acordo
com Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 396, o credor primeiramente inscrito, mesmo que
exista outro com garantia anteriormente constituída, mas posteriormente registada, e ainda que aquele
conhecesse a existência de uma garantia prévia, uma vez que se trata de uma publicidade objectiva e
constitutiva, à imagem da hipoteca - e que pode ser consultado por qualquer terceiro), sem que seja
necessária qualquer entrega do título ao credor, podendo este requerer a venda ou a atribuição judicial das
participações oneradas (Legeais, Sûretés 2009 cit., págs. 399). Todavia, o intuitu personae que caracteriza
este tipo de sociedades impõe algumas cautelas aos poderes de que dispõe o credor, pelo que qualquer
associado que pretenda constituir um penhor sobre as suas participações deve obter dos restantes o seu
consentimento, nos termos previstos para a cessão das participações (art.º 1867.º, n.º 1, atribuindo ao
silêncio o sentido de aceitação), consentimento este que, uma vez concedido, implica a aceitação do
cessionário-adquirente em caso de execução da garantia, desde que esta seja notificada com uma
antecedência mínima de um mês aos associados (embora, como bem salienta Jacques Ghestin e outros,
Droit spécial cit., pág. 399, esta aceitação seja meramente condicional, uma vez que qualquer sócio – ou a
própria sociedade – pode, no momento da venda ou da atribuição em pagamento, substitui-se ao
adquirente, pagando o preço da venda ou da avaliação efectuada); mais ainda, qualquer associado pode
645
A necessidade de um regime específico é ditada pela especificidade do bem a
empenhar, porquanto o interesse do credor pignoratício na manutenção da consistência
da garantia produz reflexos na vida interna da sociedade à qual digam respeito as
participações empenhadas, assumindo relevância no contexto da respectiva actividade
também aquele interesse do credor.2384
Assim, a constituição da garantia pignoratícia sobre participações sociais
encontra-se regulada, em termos genéricos, nos n.ºs 3 e 4 do art.º 23.º do Código das
Sociedades Comerciais,2385 onde se pode ler que o penhor apenas pode ser constituído
na forma exigida e dentro das limitações estabelecidas para a transmissão entre vivos de
tais participações,2386 aplicando-se tal norma às acções,2387 às quotas2388 e às partes
sociais.2389
exercer um direito de resgate (art.º 1867.º, n.º 3) nos cinco dias seguintes à venda e, caso não tenham
dado o consentimento à constituição da garantia, podem sempre exercer a faculdade de substituição (art.º
1868.º, n.º 2) ou requerer a dissolução da sociedade - Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 578.
Todavia, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 394 e 395, criticam o carácter lacunoso do
regime legal, especialmente no que toca à possibilidade de sub-rogação por ocasião de fusão (os Autores
recusam, na ausência de previsão legal expressa, esse efeito, até porque as novas participações, ainda que
possuam um valor aproximado ao das antigas, podem nem sequer representar os mesmos direitos: por
força desta solução, se o sócio devedor votar a favor da fusão, tal implicará a perda da garantia e, em
consequência, o vencimento imediato da obrigação garantida, salvo se for prestada outra garantia
equivalente). No nosso direito, o regime legal das sociedades civis (art.ºs 980.º a 1021.º) é omisso
relativamente à possibilidade de as mesmas serem dadas em penhor, pelo que, salvo melhor juízo, a
oneração pignoratícia deste tipo de bens dependerá de verificação das condições gerais a que o objecto do
penhor deve obedecer e, a tal propósito, o potencial obstáculo resultante da impossibilidade de penhora
sobre eles é afastado, porquanto tal operação é considerada legítima (neste sentido, vide o Acórdão da
Relação do Porto de 7/7/2005, in www.dgsi.pt, considerando que tal penhora se enquadra na penhora de
direitos – art.º 862.º, n.º 6, do CPC – incidindo sobre o direito ao produto da liquidação de quota em
sociedade de pessoas – o que constitui penhora de bem indiviso – ou sobre o direito ao lucro - que tem o
tratamento dos direitos de crédito): no entanto, na medida em que qualquer sócio não pode ceder a sua
quota sem o consentimento dos demais – cfr. art.º 995.º - e tendo em conta a alienação potencial que
decorre da celebração de um contrato de penhor, pode sustentar-se que a constituição desta garantia exige
aquele consentimento unânime).
2384
Exemplo paradigmático do reconhecimento legal do interesse do credor pignoratício é, no direito
italiano, a concessão, salvo convenção em contrário, do direito de voto ao credor pignoratício (salienta
estes aspectos Frederico Briolini, ob. cit., págs. 188 e segs., concluindo, por isso, que o regime geral do
penhor – pensado para os casos em que a garantia recaia sobre uma coisa móvel corpórea – não pode ser
aplicável sem mais, mas apenas em termos analógicos. Daí que a atribuição do direito de voto ao credor
não se possa fundar no direito comum do penhor – nomeadamente no seu dever de conservação do bem
empenhado – mas sim na necessidade de fazer com que o credor participe na vida societária defendendo
os seus legítimos interesses e, ainda, por motivos mais práticos relacionados com o facto de ser o credor
que normalmente está em poder dos títulos onerados e se encontra inscrito no livros dos sócios, isto é, por
força de razões próprias do penhor de participações). Em termos parcialmente coincidentes, Gian Carlo
Rivolta, Pegno ed usufrutto di quote di società a responsabilità limitata e diritto di voto, in Rivista del
diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, ano 59, Tomo I, pág. 209, nota 9, reconhece
igualmente que a atribuição do direito de voto ao credor pignoratício não decorre da obrigação de
conservação do bem empenhado que, por força do regime geral desta garantia, impende sobre o mesmo
sujeito. Acerca da titularidade do direito de voto inerente às acções empenhadas, vide infra no texto.
2385
Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, com a última redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 53/2011, de 13 de Abril.
2386
No ordenamento transalpino a lei apenas regulamenta especificamente o penhor de acções (cfr. art.º
2352.º e segs. do CCI), importando distinguir, segundo Stefano Poli, ob. cit., pág. 231 e segs. e em ordem
a determinar as formalidades necessárias para a constituição do penhor, as acções tituladas das escriturais.
Relativamente às primeiras, o penhor sobre acções nominativas surgirá através da inscrição do ónus no
título e no registo do emitente (sendo discutível a necessidade de entrega do título ao credor e a
observância do disposto no art.º 2787.º, n.º 3, do CCI) ou, em alternativa, através de um endosso em
garantia, enquanto sobre as acções ao portador a garantia se constituirá mediante entrega do título ao
credor (acompanhada da redacção de um documento escrito contendo a suficiente indicação do crédito
646
garantido e do bem empenhado). No que concerne às acções escriturais, parece existir uma contradição
entre dois diplomas legais que o Autor resolve considerando que o vínculo surgirá, no caso de títulos
sujeitos ao regime da desmaterialização total, através do registo em conta e, no caso de títulos submetidos
ao regime da desmaterialização parcial, mediante inscrição no registo dos ónus (embora o conteúdo de
ambas as inscrições seja similar, o Autor destaca o facto de subsistir “un unico registro con trascrizioni
progressive annue per la dematerializzazione in senso debole; in conti separati per ciascun titolare per il
regime previsto della legge Euro”). No direito espanhol, De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág.
125 e segs., salvo quando os títulos não tenham sido impressos e/ou entregues (hipótese na qual o penhor
se constituirá nos termos vigentes para a cessão de créditos e de demais direitos incorpóreos) ou quando
apenas tenham sido entregues os documentos provisórios ou de acções ao portador entregues e impressas
(caso em que o penhor não se poderá constituir por via de endosso, mas tão somente nos termos da cessão
em garantia, com posterior comunicação do negócio à sociedade para efeitos de inscrição da garantia), a
regra será a de, nomeadamente para as acções nominativas, o penhor se constituir através de cessão em
garantia (com posterior inscrição dos registos da sociedade emitente) ou mediante endosso, com a menção
em garantia (também com ulterior inscrição nos registos da sociedade emitente, funcionando esta como
condição de eficácia do negócio face à própria sociedade e, assim, requisito indispensável para o
exercício dos direitos sociais por parte do credor pignoratício).
2387
No direito francês, o penhor de acções encontra-se regulado no penhor de valores mobiliários – cfr.
Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 529. No direito italiano e conforme já foi referido,
existe regulamentação específica para o penhor de acções, embora, de acordo com Lorenza Bullo e
Claudia Sandei, ob. cit., pág. 139, a mesma apenas se aplique, no que concerne à constituição da garantia
e às suas vicissitudes, às acções nominativas, enquanto para as acções ao portador o penhor se constitui
através do desapossamento material do título e da sua entrega ao credor, acompanhado dos requisitos
formais de que a lei civil faz depender a outorga do direito de preferência, existindo um regime específico
para a dação em penhor das acções escriturais.
2388
Relativamente a estas e mesmo antes da entrada em vigor do CSC, Nogueira Serens, Penhor de quota,
in CJ, Tomo II, págs. 5 a 17, admitia já a dação em penhor da quotas de uma sociedade comercial,
qualificando tal penhor como penhor de direitos (atribuindo natureza mobiliária a essa quota,
independentemente da natureza mobiliária ou imobiliária dos bens integrados no património da sociedade
em questão) e entendendo que os direitos administrativos inerentes a essa quota – nomeadamente o direito
de voto – competiriam, na falta de norma específica e por força do regime geral do penhor de créditos
constante do art.º 683.º (nos termos do qual o credor é obrigado a praticar os actos indispensáveis à
conservação do direito empenhado, alegando o Autor que “incidindo o penhor sobre uma quota, o credor
só pode cumprir, cabalmente, essa obrigação se dispuser da titularidade dos direitos administrativos
inerentes à quota, que é, afinal o direito empenhado”), ao credor pignoratício. No direito francês e
mesmo após a reforma de 2006, não existe preceito específico quanto à dação em penhor das
participações sociais deste tipo de sociedades, opinando Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit.,
pág. 537 e Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 579, que a sua constituição (bem como a das
partes de sociedades em nome colectivo, relativamente à qual se verifica a mesma omissão legal) obedece
às regras gerais previstas para os bens incorpóreos (que, por seu turno – cfr. art.º 2355.º - remetem para o
penhor de coisas corpóreas), exigindo assim a redacção de um documento escrito e a inscrição num
registo existente na secretaria do tribunal do comércio do local da sede da sociedade (a lei ocupa-se
apenas – cfr. art.ºs L223-14 e L223-15 do Code de Commerce – dos efeitos de uma garantia com este
objecto, em termos praticamente idênticos aos consagrados para as sociedades civis): antes da reforma,
Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 255, relatavam que a constituição da garantia se efectuava, por
analogia com o penhor de créditos, através da notificação à sociedade em questão. No direito italiano,
apenas se encontrava, até há pouco tempo, regulada a colocação em penhor de acções, pelo que se
duvidava da dação em penhor das quotas das sociedades por quotas, embora Gian Carlo Rivolta, ob. cit.,
pág. 207, aceitasse da sua empenhabilidade, tendo em conta a normal transmissibilidade das quotas e
outros indícios normativos dos quais decorria, implicitamente, o reconhecimento de tal figura,
considerando apenas existirem limites específicos desta modalidade de participações sociais (em termos
concordantes, Stefano Poli, ob. cit., pág. 165 e segs., argumentando que a lacuna do regime de tais
sociedades deveria ser colmatada uma vez que o interesse do credor é análogo ao do credor titular de uma
garantia sobre acções e, além disso, por não existirem obstáculos que impeçam uma tutela societária do
mesmo credor - nem sequer com base num suposto intuitu personae supostamente inerente a este tipo de
sociedades – embora reconheça que nas sociedades por quotas os sócios gozem da liberdade de inserirem
no pacto social cláusulas determinando que o direito de voto caberá ao sócio, que a constituição do
penhor carece do consentimento dos demais sócios ou até que excluam a própria dação em penhor).
Todavia, depois da reforma do direito societário italiano de 2003, o art.º 2471.º do CCI afirma, de modo
647
A consagração de um regime uniforme de oneração das participações não
prejudica a subsistência de especificidades para cada uma das formas de representação
que aquelas podem assumir.2390
inequívoco, a empenhabilidade das quotas (para além de o art.º 2468.º, n.º 5, determinar expressamente a
aplicação, quanto à titularidade e exercício dos direitos sociais, a disciplina contemplada no art.º 2352.º
para as sociedades por acções), embora tenha deixado por responder outras questões conexas, como a
qualificação deste penhor (tendo em conta a natureza controvertida da própria quota – contrapondo-se os
que entendem estarmos perante um penhor de direitos aos que sugerem tratar-se de um penhor de
créditos), o modo de constituição da garantia (parecendo que, por analogia com o regime previsto para a
transferência das quotas no art.º 2470.º do CCI, o penhor apenas será oponível à sociedade emitente após
a inscrição nos seus livros, embora a garantia se possa constituir, com efeitos inter partes e face a outros
terceiros que não a sociedade, desde que seja devidamente identificado o crédito garantido e a quota
empenhada e efectuado a inscrição no registo comercial) e o concurso entre diversos credores
pignoratícios (afigurando-se como solução mais plausível a atribuição de prioridade ao direito
primeiramente inscrito no registo comercial) - sobre este assunto, vide Lorenza Bullo e Claudia Sandei,
ob. cit., pág. 148 e segs..
2389
No direito italiano, também não há norma expressa relativamente às sociedades em nome colectivo.
Não obstante, Mario Buonaiuto, in Pegno e usufruto di quote di società in nome colletivo, in
www.diritto.it/materiali/civile/doc7.html, pág. 1 e segs., admite a dação em penhor destas participações,
embora sustentando que tal negócio exigirá o consentimento dos outros sócios (à imagem do que sucede
para a transferência das mesmas partes sociais) pois, se assim não fosse, legitimar-se-ia a entrada de um
terceiro estranho na universo social (consentimento este que pode ser prestado caso a caso ou, em
alternativa, preventivamente em relação a qualquer futura transferência). Tendo em conta esta
necessidade de consentimento dos demais associados, o Autor qualifica o penhor de partes sociais como
uma cessão de contrato, rejeitando tratar-se de um penhor de créditos, pois, a ser assim, o penhor poder-
se-ia constituir através da simples notificação do contrato à sociedade. Já Lorenza Bullo e Claudia Sandei,
ob. cit., pág. 154 e segs., depois de noticiarem o reconhecimento quase unânime de um penhor com este
objecto, advogam igualmente que o mesmo se constituirá nos exactos termos da transferência, ou seja,
com o consentimento de todos os sócios ou, excepcionalmente, da maioria deles - embora ressalvem que
“ciò non significa che il pegno possa esssere costituito contro la volontà di qualche socio ma
semplecimente che il consenso di alcuni soci non deve necessariamente espresso in modo puntuale,
potendo essere dato anche in via preventiva una volte per tutte al momento della costituzione della
società” (já consideram mais problemática a atribuição dos direitos sociais inerentes às partes
empenhadas, admitindo as Autoras que o direito de rescisão caiba ao sócio e o direito aos lucros ao
credor, sendo mais discutível a titularidade do direito de voto, havendo quem o atribua ao sócio – tendo
em conta o carácter personalístico desta sociedade, evitando assim a intromissão de um estranho na vida
societária - , enquanto outros sustentam dever o mesmo caber ao credor, relativizando aquele carácter e
contrapondo que o credor terá interesse na conservação do valor da sociedade, enquanto objecto da sua
garantia). Por seu turno Stefano Poli, ob. cit., pág. 180 e segs., reconhecendo também a empenhabilidade
das partes sociais, recusa a aplicação analógica do regime ditado para as sociedades por acções,
“difficilmente compatibili con modeli societari, perlomeno nella tipologia legale, sono caratterizzati
dall’attibuzione a ciascun socio (illimitatamente responsabile) del potere di amministrare e
rappresentare verso terzi la società (…) caratterizzazione intuitu personae delle società in esame che
rafforza, in esse, rispetto alle società di capitli, il principio di inscindibilità della partecipazione sociale”,
sem prejuízo da atribuição ao credor, tendo em conta a sua função satisfatória da garantia, do direito aos
lucros (o Autor retira desta inaplicabilidade três corolários: a impossibilidade de concessão ao credor do
direito de voto – eventualmente com a única excepção da aprovação do balanço, atendendo à correlação
deste com o direito aos lucros do credor; por outro lado, a desnecessidade do consentimento dos outros
sócios para a constituição do penhor, uma vez que os poderes atribuíveis ao credor não lhe permitem
imiscuir-se na vida societária; por último, em caso de incumprimento da obrigação garantida, o credor
não poderá requerer a venda da quota de participação – pois tal permitiria a entrada de um estranho na
vida da sociedade – restando-lhe apenas solicitar a liquidação do parte social).
2390
Nesta conformidade, para as acções vide supra o que se disse a respeito das acções tituladas e
escriturais. Para as quotas, o art.º 228.º exige a redução a escrito do contrato de penhor e o consentimento
da sociedade; paras as partes sociais, o art.º 182.º requer documento escrito e consentimento expresso dos
demais sócios. Em ambos os casos, será ainda imperiosa a inscrição da garantia no registo comercial (art.º
3.º, alíneas e) e f), do Código do Registo Comercial) – sobre este assunto, vide Pestana de Vasconcelos,
Direito das garantias cit., pág. 282.
648
Esta remissão para as formalidades exigidas para a transmissão do direito a
empenhar resulta do próprio regime geral do penhor (art.º 681.º, n.º 1), sendo muito
discutível, porém, a aplicabilidade do n.º 2 da mesma disposição legal que impõe a
necessidade, no penhor de créditos, de notificação da constituição da garantia ao
devedor, excepto no caso de penhores sujeitos a registo.2391
Assim, por exemplo, no que respeita aos valores mobiliários escriturais2392 - -
particularmente as acções - e na medida em que a transmissão destes se produz através
de registo na conta do titular das acções (art.º 81.º, n.º 1, do CVM), nem sequer existe
necessidade de, neste caso, o contrato de penhor ser celebrado por escrito.2393
Acresce que, no caso de penhor sobre partes sociais e quotas, apesar de para a
validade do negócio constitutivo da garantia ser bastante documento particular, esta
deverá ser inscrita no registo comercial, conforme preceituam os art.ºs 242-A e 242-B,
do CSC e o art.º 3.º, alíneas e) e f), do Código do Registo Comercial.2394
Apenas se e quando se encontrarem cumpridas estas formalidades a constituição
da garantia é oponível aos terceiros em geral, nomeadamente aos futuros adquirentes da
participação.2395.
Todavia, para que a sociedade emitente tome conhecimento garantia, será, por
vezes, necessária a inscrição no livro dos sócios (como sucede com as acções
2391
Para além da qualificação do penhor de participações sociais como um penhor de créditos suscitar as
maiores reservas (vide, por exemplo, Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 15, negando que se trate de um
penhor de créditos, porque o direito conferido pela participação social não se reconduz a uma ou mais
prestações, tendo antes uma estrutura complexa e multifacetada, enquanto Sofia Maltez, ob. cit., págs. 6 a
8, entende estarmos perante um penhor de direitos, pois “mesmo no caso de penhor sobre acções
tituladas, objecto do penhor é a participação social em si e não o título encarado como uma coisa. Está
em causa o penhor do direito incorporado no título e não o penhor do próprio título”), ainda aceitando
tal qualificação será de descartar a obrigação de notificação à sociedade devedora, tendo em conta que o
fim visado pela notificação – dar a conhecer a existência do penhor ao terceiro devedor, impedindo-o de
pagar directamente ao empenhador – esta não será de exigir quando esse terceiro tenha conhecimento da
constituição da garantia de outro modo. Ora, tratando-se de acções tituladas ao portador, é já necessária a
sua entrega (e, portanto, a sociedade não deve desconhecer o nascimento do ónus) e, no que respeita às
acções tituladas nominativas e às acções escriturais, é forçoso o seu registo, pelo que caímos no caso em
que, de acordo com o próprio n.º 2 do art.º 681.º, não é obrigatória a notificação (porém, importa não
esquecer que o registo, em matéria de participações sociais e de valores mobiliários em geral, não tem,
conforme já foi referido, carácter público, sem prejuízo, todavia, da possibilidade de a sociedade emitente
solicitar às entidades registadoras, nos termos do art.º 85.º, n.º 1, alínea c), os elementos constantes das
contas de acções nominativas, assim conhecendo a existência do penhor).
2392
Relativamente à forma de transmissão dos valores mobiliários titulados, vide supra n.º 1.2.8.3 do
Capítulo II.
2393
Sobretudo desde que, com a nova redacção dada ao art.º 23.º do CSC pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006,
de 29 de Março (anteriormente o dito preceito dispunha que o penhor de participações sociais deveria
constar de documento particular). Discordamos, por isso, de Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 57,
quando afirma que o penhor de acções, independentemente da sua forma de representação, deve constar
de documento particular (partidária do nosso entendimento é Sofia Maltez, ob. cit., pág.17, nota 35).
2394
Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial cit., Vol. II, pág. 355 e Paulo Olavo Cunha, ob. cit.,
pág. 378.
2395
No direito italiano e no concerne às sociedades em nome colectivo, o art.º 2300.º do CCI obriga à
inscrição no registo comercial das modificações contratuais, pelo que Mario Buonaiuto, ob. cit., pág. 5,
sustenta ser a mesma formalidade exigida para a constituição do penhor, na medida em que “un vincolo
reale su di una quota costituisca senz’altro modificazione del contratto sociale (…) non si tratti di un
diritto limitato ai rapporti tra socio-debitore e creditore pignoratizio. Qui si trata di una situazione
soggettiva opponibille alla società, e quindi anche ai terzi”, notando existirem legítimos interesses de
terceiros a justificar tal necessidade de registo, designadamente dos demais credores particulares do sócio
(em conhecer a causa de preferência sobre a quota do seu devedor) ou dos credores sociais (os quais
poderiam confiar na soma liquidada ao sócio).
649
nominativas tituladas – cfr. art.º 102.º, n.º 1, do CVM)2396 ou, para as acções escriturais
ou tituladas integradas em sistemas centralizado, a exibição do certificado de
legitimação (art.º 78.º do CVM) ou, em alternativa, a comunicação da constituição da
garantia por parte da entidade registadora do penhor.2397
Quando seja legalmente imposta a inscrição no livro de registo dos sócios, a
sociedade apenas reconhecerá – nomeadamente para efeitos de exercício dos direitos
sociais – aqueles a favor de quem conste a última inscrição, do mesmo modo que em
caso de conflito entre duas ou mais garantias sobre as mesmas participações,
prevalecerá a que primeiramente houver sido registada.2398
Noutros ordenamentos, nos quais decorre do regime geral do penhor a
necessidade de, como condição de produção de efeitos face a terceiros, a constituição da
garantia ser reduzida a escrito do contrato constitutivo de penhor de acções – contendo a
respectiva data a contendo a indicação do crédito garantido e do bem onerado – discute-
se se a mesma valerá igualmente para o penhor de participações sociais.2399
Relativamente às limitações, importa abordar separadamente os diversos tipos de
sociedades, sendo admitidas em termos mais amplos e decorrendo directamente da lei
nas sociedades de cariz marcadamente personalístico, como as sociedades em nome
colectivo (art.º 182.º, n.ºs 1, 3 e 4),2400 por quotas (art.ºs 228.º, n.ºs 2 e 3 e 229.º do
2396
É a solução consagrada também nos art.ºs 55.º, n.º 2 e 57.º, n.º 2, da LSA espanhola, ressalvando
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 315 e 316, que tal formalidade não é condição de validade da
constituição da garantia, nem tão pouco de oponibilidade da mesma a terceiros, com a única excepção da
sociedade emitente das acções (acrescentando ainda que, para efectuar a inscrição, a sociedade deve
assegurar terem sido cumpridos os requisitos legais para a constituição da garantia).
2397
Relativamente à existência deste dever de comunicação, vide supra n.º 1.2.8.3 do Capítulo II.
2398
Nestes termos para o direito espanhol Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 206 e segs., partindo da
equiparação de efeitos entre o desapossamento e a inscrição neste registo, nomeadamente o registo das
acções nominativas (publicidade relativamente a terceiros – não totalmente segura, com o não é a
assegurada pela entrega material, mas decorrente do facto de o terceiro que queira celebrar negócios que
tenham como objecto participações poder solicitar ao empenhante um certificado do registo que ateste a
sua propriedade - , evitar a constituição de novos penhores sobre o mesmo bem e permitir a realização de
actos conservatórios, assegurando o certificado que o credor possa exercer alguns direitos sociais que lhe
venham a ser atribuídos) e apesar deste registo assumir carácter privado e não produzir os mesmos efeitos
dos registos públicos, em caso de conflito entre dois terceiros titulares de direitos conflituantes sobre a
mesma participação, prevalecerá o primeiramente registado, ainda que não seja o primeiramente
constituído (até porque, sendo o registo obrigatório, quem não o efectuar não pode ser considerado de boa
fé).
2399
No direito espanhol e segundo De la Santa García, ob. cit., pág. 125 e segs., a resposta é
inequivocamente afirmativa no que respeita às sociedades de responsabilidade limitada (cfr. art.º 26.º da
LSRL, no qual se exige que o penhor de tais participações conste de documento público), mas se afigura,
ante o silêncio da lei, mais complexa relativamente às sociedades anónimas (concluindo, ainda assim, por
uma resposta afirmativa). Responde também afirmativamente, quanto ao penhor de acções, Mejias
Gomez, ob. cit., pág. 615 e segs., invocando o facto de o art.º 57.º, n.º 1, da LSA determinar que o penhor
sobre este tipo de bens se constitui nos mesmos termos do direito comum (aceitando, eventualmente, que
o documento particular possa bastar para a produção de efeitos inter partes do penhor de acções, mas
concluído ser imperiosa a constatação da data certa em documento público para que tal contrato possa
produzir efeitos face a terceiros) e, para o penhor de participações, entende ser igualmente necessário um
documento público e a inscrição da garantia no registo da própria sociedade). No direito italiano,
defendem a manutenção desta exigência para o penhor de valores titulados nominativos Stefano Poli, ob.
cit., pág. 231 e segs. (alegando que a indicação do crédito garantido não resulta do endosso nem da
inscrição no livro dos sócios) e ao portador (quanto a estes, vide, no mesmo sentido, Lorenza Bullo e
Claudia Sandei, ob. cit., pág. 139).
2400
De acordo com estas normas, a parte de um sócio só pode ser transmitida, por acto entre vivos, com o
expresso consentimento dos restantes sócios, o mesmo valendo para a constituição de direitos reais de
gozo, tornando-se a transmissão eficaz para com a sociedade logo que lhe for comunicada por escrito ou
por ela reconhecida expressa ou tacitamente. Pelas mesmas razões que se expõe a respeito das quotas
(como se verá na nota seguinte) e na medida em que, também aqui, a lei se refere apenas a transmissão
650
CSC),2401 às partes dos sócios comanditados (art.ºs 469.º, n.º 1)2402 e dos comanditários
em sociedades em comandita simples (art.º 475.º),2403 sofrendo maiores restrições e
carecendo de disposição estatutárias nesse sentido nas sociedades anónimas (nas quais,
por força da alínea c) do n.º 2 do art.º 328.º do CSC, o contrato de sociedade apenas
pode subordinar a constituição de penhor sobre acções nominativas, e desde que se
demonstre a existência de requisitos objectivos ou subjectivos destinados a proteger o
interesse social)2404, à semelhança do que sucede noutros ordenamentos.2405
(omitindo qualquer referência à oneração), advogamos a aplicação deste mesmo regime à dação em
penhor das partes sociais (existe, contudo, um elemento específico deste tipo de sociedades que,
eventualmente, poderia impor uma solução diversa da defendida para a sociedade por quotas, qual seja o
facto de o n.º 3 do art.º 182.º mencionar expressamente os direitos reais de gozo, mas abstendo-se de
qualquer referência no que toca aos seus congéneres de garantia: a nosso ver, tal omissão pode ser
justificada pela integração da oneração no conceito genérico de transmissão, sobretudo tendo em conta
que a execução da garantia poderá acarretar a transmissão da propriedade da parte social).
2401
Reza o art.º 228.º, n.º 2, que a cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não
for consentida por esta (a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes
ou entre sócios), tornando-se tal transmissão eficaz para com a sociedade logo que lhe for comunicada por
escrito ou por ela reconhecida, expressa ou tacitamente (nos termos do art.º 230.º, aquele consentimento
da sociedade, que não pode ser subordinado a condições, deve ser solicitado por escrito - com indicação
do cessionário e de todas as condições da cessão, sendo expresso quando concedido por deliberação dos
sócios e tácito ou presumido se a sociedade não tomar a deliberação sobre o pedido de consentimento nos
60 dias seguintes à sua recepção – analogamente, considera-se prestado o consentimento da sociedade
quando o cessionário tenha participado em deliberação dos sócios e nenhum deles a impugnar com esse
fundamento, provando-se o consentimento tácito, para efeitos de registo da cessão, pela acta da
deliberação). Recusado o consentimento (todavia, como bem nota Coutinho de Abreu, Curso de direito
comercial Vol. II cit., pág. 363, esta decisão não é arbitrária, sendo antes sindicável judicialmente, com
base em abuso do direito – cfr. art.º 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC - nomeadamente quando tomada com o
único intuito de prejudicar o sócio transmitente – v.g., quando a manutenção do sócio não seja relevante e
o cessionário seja pessoa idónea, visando a recusa apenas amarrar o sócio alienante prisioneiro da
sociedade), por parte da sociedade, a respectiva comunicação dirigida ao sócio incluirá uma proposta de
amortização ou de aquisição da quota; se o cedente não aceitar a proposta no prazo de 15 dias, fica esta
sem efeito, mantendo-se a recusa do consentimento (art.º 231.º, n.º 1). Contudo, o pacto social pode
proibir de todo a cessão das quotas (art.º 229.º, n.º 1 – sem prejuízo do direito dos sócios à exoneração,
uma vez decorridos 10 anos desde o seu ingresso na sociedade) ou, no plano inverso, dispensar o
consentimento da sociedade para o efeito (art.º 229.º, n.º 2), interpretando Soveral Martins, ob. cit., pág.
315 e segs., os preceitos citados como consentindo cláusulas que proíbam a cessão das quotas, desde que
seja assegurado aos sócios o direito de exoneração, uma vez decorridos 10 anos sobre o seu ingresso na
sociedade. Apesar de todas estas normas se referirem apenas a negócios de transmissão de quotas, somos
de parecer que as mesmas são de aplicação à oneração daquelas participações sociais, não apenas porque
a constituição da garantia pode redundar numa venda (judicial ou não) e até porque, como salienta
Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial, Vol. II cit., pág. 358, “a transmissão de quotas entre
vivos é conceito mais amplo, compreende a cessão e as formas de alienação não fundadas na vontade do
titular das quotas (v.g., a venda e a adjudicação judiciais)”.
2402
Nos termos do qual a transmissão entre vivos da parte de um sócio comanditado, salvo disposição
contratual diversa, só é eficaz se for consentida por deliberação dos sócios.
2403
Mandando este preceito aplicar à transmissão entre vivos ou por morte da parte de um sócio
comanditário o preceituado a respeito da transmissão de quotas de sociedade por quotas.
2404
Mais concretamente, o pacto social pode subordinar a transmissão das acções nominativas ao
consentimento da sociedade (alínea a)), estabelecer um direito de preferência a favor dos outros
accionistas, em caso de alienação daquelas acções (alínea b)) ou subordinar a transmissão ou oneração
das acções a determinados requisitos, objectivos ou subjectivos, que estejam de acordo com o interesse
social (alínea c)). Em face deste regime, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 45, conclui que o
verdadeiro limite à constituição de penhor de acções reside na desconformidade deste com o interesse
social, o qual serve de fundamento ao condicionamento da eventual aquisição, por parte do credor
pignoratício, do direito ao exercício dos direitos sociais inerentes aos bens empenhados (durante a
vigência da garantia) ou mesmo da qualidade de sócio (em caso de execução da garantia). Porém, importa
esclarecer que apenas a respeito da alínea c) do n.º 2 do art.º 328.º a lei condiciona a validade das
cláusulas limitativas da transmissão das acções à existência de um interesse social relevante, o que, na
651
opinião de Soveral Martins, ob. cit., págs. 309 e 310, significa “que se pode partir de uma presunção de
conformidade com o interesse social das cláusulas de consentimento ou de preferência em si mesmas
consideradas. E, além disso, se a cláusula permitir realizar o interesse social, não será ilícita se também
serve para realizar interesses individuais dos sócios”. Para Sofia Maltez, ob. cit., págs. 24 e 25, o art.º
328.º do CSC não permite que o pacto social exclua, sem mais, a transmissão ou a constituição em penhor
das acções nominativas (no mesmo sentido, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 44): o que se admite,
sim, é que o contrato de sociedade sujeite a transmissão deste tipo de acções ao consentimento da
sociedade (caso em que o penhor se encontrará sujeito ao mesmo condicionalismo) e estabeleça quais os
possíveis motivos dessa recusa (caso não o faça, será lícita a recusa fundamentada em qualquer interesse
relevante da sociedade, nos termos do art.º 329.º, n.º 2, do CSC), podendo igualmente conter uma
referência específica relativa à dação em penhor. Fazenda Martins, ob. cit., pág. 105, entende que,
podendo o contrato de sociedade estabelecer que a transmissão de acções nominativas depende do
consentimento da sociedade (cfr. art.º 328.º, n.º 2, do CSC), também a constituição do penhor deverá
depender desse assentimento. Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial Vol. II cit., pág. 376, aponta
como exemplo de cláusulas restritivas lícitas ao abrigo deste art.º 328.º, n.º 2, alínea c), a transmissão ou
oneração de acções apenas para quem tenha determinada nacionalidade, exerça uma certa actividade não
concorrente com a sociedade ou seja já sócio ou familiar de sócio (limitações subjectivas) ou, noutro
âmbito, enquanto não decorrer um certo prazo contado da data de emissão das acções.
2405
Em face do direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 106 e segs., sustenta que estas
cláusulas estatutárias visam impedir a transferência das acções (seja atribuindo um direito de preferência
aos sócios, seja sujeitando a entrada de um eventual novo sócio à autorização da sociedade), pelo que não
impedem a constituição da garantia, devendo o seu efeito produzir-se unicamente no eventual momento
posterior de execução daquela, evitando ou condicionando a aquisição por parte do exequente ou de outro
potencial adquirente: mais concretamente, “Si no se cumplen las restriciones estatutarias, la sociedad no
reconocerá al socio como accionista, denegándole la inscripción en el libro registro de socios”, ou seja,
“la contravención de las restriciones estatutarias tan sólo afectará, en su caso, a la legitimación del
adquirente frente a la sociedad emissora, peró no a la validez y a los efectos derivados de la ejecución de
la misma”. Mesmo no que respeita à execução, “no cabe la possibilidad que estatutariamente se altere el
procedimiento judicial o administrativo de ejecución de acciones”, embora quando a aquisição das acções
ocorra no âmbito de um processo destes a sociedade deva apresentar um adquirente ou oferecer-se para as
adquirir pelo seu valor real no momento em que for solicitada a inscrição no livro dos sócios por parte do
novo adquirente (art.º 64.º, n.º 2, da LSA, asseverando o Autor que por valor real se deve entender “el que
resulte del procedimiento publico junto con los gastos causados por el mismo”, podendo os estatutos
estabelecer um valor diverso, mas nunca inferior): na óptica do Autor, deste modo conjugam-se os
interesses do credor (em alienar o bem nos termos que a lei prevê), dos accionistas (assegurando a venda
por um valor objectivo), dos demais sócios (evitando a entrada de estranho na vida da sociedade) e até
dos arrematantes (pois mesmo que os sócios se sub-roguem na sua posição, terão que lhe pagar, no
mínimo, o preço do remate). De acordo com Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 104 e segs., este tipo de
cláusulas constitui uma derrogação ao princípio geral de transmissibilidade (e aplicáveis à constituição de
garantias, uma vez que a execução destas pode conduzir a uma alienação das acções) das acções, pelo que
as restrições a este princípio encontram-se taxativamente consagradas na lei: ora, o art.º 63.º da LSA
dispõe que estas limitações apenas são admitidas se consagradas nos estatutos e unicamente com respeito
às acções nominativas, podendo sujeitar-se a constituição de penhor a autorização da sociedade apenas se
os estatutos determinarem as possíveis causas de recusa dessa autorização (a qual, salvo convenção em
contrário, caberá aos administradores da sociedade e, em caso de ausência de resposta ao pedido por um
período de 6 meses, será tacitamente deferida) - Mejias Gomez, La prenda de participaciones cit., pág.
608 e segs., acrescentando que tais limitações são, por maioria de razão, permitidas igualmente nas
sociedades de responsabilidade limitada (com as nuances relativas à fase de eventual execução da
garantia e com os especiais direitos que os sócios têm para condicionar o ingresso de um terceiro no seio
da sociedade). Todavia, o mesmo Autor alerta para o facto de estas restrições poderem valer também para
as acções representadas através de anotações em conta, mas unicamente se não admitidas a negociação
(pois, quanto a estas, a sua colocação no mercado pressupõe a apresentação de um documento
comprovando a inexistência de restrições estatutárias à livre transmissibilidade das acções). Menos
condescendente com este tipo de restrições se mostra Ballarín Marcial, ob. cit., págs. 198 e 199,
assegurando que a existência das mesmas “no puede impedir la constitución de prenda. Una cláusula
estatutaria que prohibiera dar las acciones en prenda o que la hagan prácticamente imposible sería
nula”, por violação do art.º 63.º, n.º 2, da LSA (nos termos do qual serão nulas as cláusulas tornem
praticamente impossível a transmissão das acções). De acordo com Veiga Copo, La prenda acciones cit.,
págs. 182 a 187, será admissível que uma cláusula estatutária que sujeite a autorização da sociedade à
652
Estas restrições podem justificar-se pelo intuito de evitar que o credor
pignoratício possa vir a exercer os direitos sociais inerentes às participações sociais,
assim como no propósito de eliminar o risco de alienação das mesmas em caso de
incumprimento da obrigação garantida (até porque, neste último caso, não podem ser
invocadas as eventuais cláusulas do pacto social que limitem a transmissibilidade das
participações).2406
Todavia e de acordo com o entendimento dominante, o elenco legal das
cláusulas limitativas da transmissão (ou oneração) é taxativo, razão pela qual serão de
rejeitar quaisquer outras eventualmente constantes do pacto social, em homenagem ao
princípio geral da livre transmissibilidade das acções:2407 por isso mesmo, devem as
apresentação de adquirentes alternativos ou que atribua aos demais sócios um direito de preferência em
caso de alienação das acções empenhadas (todavia, existindo tais cláusulas, “no se puede admitir ni que el
socio pueda obligar al beneficiario a que compre o a que se ponga en lugar del acreedor, ni es amisible
que el beneficiario pueda comprar o sustituirse por su voluntad en el lugar del acreedor prendario”),
mas nega a validade de uma autorização genérica para empenhar (pois, desse modo, se poderiam
contornar as restrições à transmissão das participações, bastando a constituição de uma garantia – mesmo
que fictícia – “para que el acreedor pignoratício tras la ejecución y adquisición de las acciones
desembocase en socio, frente a la cual la facultad del beneficiario de autorizar quedaria convertida en la
necessidad de adquirir del rematante”) e recusando que a concessão de autorização para a constituição do
penhor implique a aceitação do credor pignoratício no seio da organização societária (pois tal dependerá
da ausência de interessados no momento da execução da garantia e do não exercício dos direitos de
preferência por parte dos seus titulares). Finalmente, De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 117,
entende que o penhor de acções submetidas a restrições estatutárias à sua transmissão “podrán ser
libremente enajenadas cuando dicha enejenación sea consecuencia de un procedimiento judicial o
administrativo de ejecución. En el caso de una ejecución extrajudicial de la prenda, las acciones podrán
ser igualmente enajenadas, pero habrá que dar cumplimiento al derecho preferente de adquisición a
favor de la sociedad o del tercero por ella presentado”. No direito francês, encontra-se previsto na lei um
procedimento especial para a eventualidade de existência de cláusulas limitativas da cedência das acções
(no caso das sociedades em nome colectivo e por quotas tal procedimento existirá mesmo na ausência
desse tipo de cláusulas), nomeadamente aquelas que imponham a aceitação dos sócios para a entrada na
sociedade de qualquer cessionários: de acordo com este procedimento, o sócio empenhante deverá
apresentar um projecto de penhor à sociedade e, caso este não seja aceite (se for, tal implicará uma
aceitação do adquirente ou cessionário, sem prejuízo da faculdade da sociedade se substituir ao
adjudicatário - devendo entregar o preço estimado por um perito -, podendo, sem seguida, reduzir ou
anular o capital social), o credor pode executar a garantia, mas a sociedade pode opor-se, adquirindo,
directamente ou por terceiro, as participações em questão, pelo valor determinado por uma avaliação de
um perito. Em face do direito francês, a lei permite a restrição da oneração das participações em
sociedades de responsabilidade limitada (em termos praticamente idênticos aos previstos para as
sociedades civis – cfr. art.ºs L223-14 e L223-15 do Code de Commerce), enquanto para as acções os art.ºs
L228-23 a L228-29 do mesmo Código consentem, para as que revistam a forma nominativa e não se
encontrem admitidas à negociação num mercado regulamentado, que a sua oneração pignoratícia possa
encontrar-se, por efeito de cláusula estatutárias, sujeita ao consentimento da sociedade (sendo, nesse caso,
nulo o negócio feito em contravenção dessa imposição): existindo tal cláusula, o pedido de assentimento
deverá indicar o nome e endereço do credor pignoratício, o número de acções a onerar e o seu valor,
considerando-se o pedido aceite em caso de resposta expressa nesse sentido, bem como de ausência de
resposta num prazo de 3 meses a contar da sua formulação (esta resposta afirmativa implica a aceitação
do cessionário em caso de execução da garantia, sem prejuízo da faculdade que assiste à sociedade de,
posteriormente, readquirir as acções para reduzir o capital); pelo contrário, em caso de recusa, o conselho
de administração da sociedade devem, no prazo de 3 meses a contar da notificação daquela decisão,
adquirir as acções envolvidas no negócio projectado (seja por um accionista, seja por um terceiro ou,
ainda e uma vez obtido o consentimento do sócio empenhante, pela sociedade em vista de uma redução
do capital).
2406
Assim, Soveral Martins, ob. cit., págs. 392 e 393.
2407
Noticiando ser este o entendimento praticamente unânime da doutrina, Soveral Martins, ob. cit., pág.
301 e segs., rematando que a liberdade das partes se cinge ao estabelecimento das restrições consentidas
por lei ou de outras menos intensas (como limitar a operatividade das restrições em termos temporais, ou
a certos sujeitos ou a determinados casos). Na eventualidade de uma cláusula ser considerada inválida, tal
653
cláusulas ser interpretadas restritivamente e, por outro lado, a norma legal que consente
aquelas limitações não poderá ser aplicada analogicamente.2408
Estas limitações apenas se encontram previstas com respeito às acções
nominativas, na medida em que se afigura impossível condicionar a transmissão das
acções ao portador,2409 devendo ser inscritas nos títulos ou nas contas de registo das
acções, sob pena de inoponibilidade a terceiros de boa fé (art.º 328.º, n.º 4, do CSC)2410
e não podendo incidir sobre acções negociadas em mercado de valores mobiliários.2411
Discute-se, porém e no que especificamente respeita ao penhor, se a remissão
contida no art.º 23.º do CSC respeita às limitações relativas à transmissão das mesmas
participações (cfr. alienas a) a c) do n.º 2 do art.º 328.º do CSC) ou, pelo contrário,
apenas se dirige à alínea c) (relativa à imposição de limites estatutários à transmissão ou
oneração das acções), a única que expressamente se refere ao penhor.2412
não afectará o contrato de sociedade, excepto quanto se mostre que este último não teria sido concluído
sem cláusula viciada, admitindo-se, no limite, que esta última possa ser convertida em acordo parassocial.
2408
Soveral Martins, ob. cit., pág. 304 e segs..
2409
Complementarmente, o art.º 229.º, n.º 2, do CSC, determina que as acções devem ser nominativas
quando o contrato de sociedade contenha alguma restrição à sua transmissibilidade. Como salienta
Soveral Martins, ob. cit., pág. 310 e segs., o legislador terá considerado que os limites à transmissão ou
oneração das acções seriam incompatíveis com o regime dos títulos ao portador, quer estes sejam
titulados (cuja transmissão se dá pela entrega dos títulos, sendo a posse dos mesmos condição de
exercício dos direitos sociais, pelo que “Seria, pois, contraditório dizer que o título ao portador se
transmitia pela entrega e permitir depois que essa transmissão não tivesse lugar devido às limitações
constantes do contrato de sociedade”) ou escriturais ou titulados integrados num sistema centralizado (as
quais se transmitem através de registo na conta do adquirente, não podendo a entidade registadora ser a
adquirente, nem aquela tem o dever de prestar informações ao emitente sobre os elementos constantes das
contas – cfr. art.ºs 61.º, 64.º, n.º 1, 80.º, n.º 1, 85.º, n.º 1, e 105.º do CM: assim sendo, faria pouco sentido
“a introdução de limites à transmissibilidade das acções escriturais ao portador, pois relativamente a
estas a sociedade emitente não pode obter aquelas informações”), mas já serão entendíveis à luz do
regime leal delineado para as acções nominativas tituladas (para cuja transmissão se exige a intervenção
da sociedade emitente, uma vez que esta – por si ou através de intermediário – terá que registar a
transmissão) ou escriturais ou tituladas não inseridas em sistema centralizado (uma vez que as limitações
terão que ser transcritas nas contas de registo, tornando-se assim oponíveis a qualquer adquirente, de boa
ou de má fé) - admitindo igualmente a impossibilidade de condicionamento da transmissão de acções ao
portador, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 43.
2410
Publicidade esta que acresce à que deve ser dada ao próprio contrato de sociedade e cujo
cumprimento não se basta com a simples menção da existência das limitações, impondo-se antes a
respectiva transcrição (neste sentido, Soveral Martins, ob. cit., pág. 331, assegurando que, deste modo, se
obtém uma maior certeza e segurança, mas perde-se em termos práticos, sobretudo quando as cláusulas
limitativas forem muito extensas e prolixas). De acordo com Soveral Martins, ob. cit., pág. 330 e segs.,
decorre deste preceito legal que, perante um terceiro de má fé, as limitações podem ser opostas, mesmo
quando não cumpridos aqueles formalismos, os quais se revelam, pelo contrário, indispensáveis para a
oponibilidade a terceiros de boa fé (porém, mesmo quando inoponíveis a esses adquirentes de boa fé,
estes, após a aquisição, passam a estar sujeitos às ditas limitações, no caso de pretenderem transmitir as
acções).
2411
Nos termos do art.º 204.º, n.º 2, alínea a), do CVM, apenas podem ser objecto de operações em
mercados de valores mobiliários (entendendo-se como tal os mercados de bolsa, outros regulamentados e
os organizados de acordo com regras livremente estabelecidas pela respectiva entidade gestora – cfr. art.º
199.º, n.º 1, do CVM) os que sejam fungíveis, admitidos à negociação nesses mercados e livremente
transmissíveis, solução esta justificada por Soveral Martins, ob. cit., pág. 335 e segs., pela dificuldade de
assegurar a necessária protecção dos adquirentes no mercado de bolsista, caso fosse possível a existência
de limitações estatutárias à transmissão desses valores (para além de poder conduzir a uma sub-
valorização das acções da sociedade em questão, assim dificultando o seu financiamento).
2412
Soveral Martins, ob. cit., pág. 396 e segs., apesar de reconhecer que o elemento literal aponta no
sentido contrário (uma vez que as alíneas a) e b), ao contrário da alínea c), do art.º 328.º, n.º 2, do CSC,
não se referem especificamente ao penhor), opta pela primeira alternativa, concluindo que a oneração de
acções pode estar sujeita às mesmas limitações previstas para a transmissão das mesmas, isto é, à
obtenção do consentimento da sociedade (tendo, então, o accionista de solicitar este assentimento para a
654
De acordo com estes elementos e de lege data, não parece lícita uma cláusula
inserida no pacto social, na qual se estabeleça, pura e simplesmente, a impossibilidade
de constituição de garantias sobre as acções a favor de terceiros,2413 mesmo que apenas
durante um certo período de tempo,2414 devendo antes as restrições obedecer aos
requisitos da existência2415 e determinação,2416 podendo ser positivas ou negativas e,
num âmbito diverso, subjectivos (concernentes normalmente ao credor,2417 mas que
constituição da garantia e, se este for recusado, parece normal impor à sociedade o dever de adquirir as
acções), concessão de um direito de preferência a favor dos outros accionistas (de modo que os titulares
do direito de preferência se possam substituir ao credor pignoratício, realizando a operação garantida com
aquele penhor) ou estabelecimento de requisitos objectivos ou subjectivos a tal oneração), admitindo
mesmo o relacionamento destas diversas limitações entre si (ob. cit., pág. 326 e segs., exemplificando
com caso em que a sociedade atribua aos accionistas um direito de preferência para a hipótese de
consentir ou não consentir na transmissão ou, por outro lado, quando se estabeleça que a sociedade só
será chamadas a prestar o seu consentimento se nenhum dos sócios o exercer). Finalmente, cumpre
destacar que, quando as acções de uma sociedade se encontrem sujeitas a limitações quanto à sua
transmissão, o pacto social pode excluir a sua aplicação à constituição de penhor (neste sentido, Soveral
Martins, ob. cit., págs. 398 e 399, argumentando que, desta forma, se limita o princípio geral da livre
transmissibilidade das acções em menor medida do que aquilo que a lei consente).
2413
Neste sentido, em face do direito italiano, Roberto Weigmann, Società per azioni, in Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Março 1994, pág. 211 e segs., partindo do princípio da
invalidade de uma cláusula proibição de alienação das acções, tendo em conta que incorporação da
participação num título tem como função típica a de favorecer a respectiva circulação. Por outro lado,
“l’interesse della società emittente a sottopore a particolari condizioni i vincoli sulle azioni nominative
(…) non consiste nel comprimere in sé gli atti di disposizione del proprietário, ma nell’evitare che
soggetti invisi agli altri soci facciano ingresso in assemblea e vi esercitino i diritti corportativi” (tendo
em conta que o direito de voto, no direito italiano, é atribuído ao credor pignoratício, a invalidade da
cláusula poderia transmutar-se na obrigatoriedade estatutária de concessão do direito de voto ao sócio em
caso de penhor de acções, só que também esta possibilidade enfrenta a oposição de alguma
jurisprudência, que interpreta o art.º 2352.º, n.º 1, no sentido de apenas ser admissível a concessão do
direito de voto ao sócio por acordo entre este e o credor pignoratício – posição esta contestada pelo Autor,
argumentando que “Se si può disporre dell’assegnazione del voto, non si comprende perché il socio, il
quale è libero di contrattare al riguardo, non debba rispettare nelle convenzioni coi terzi l’impegno
statutariamente assunto verso i consoci, di condizionare la dazione in garanzia delle sue azioni alla
conservazione per sé del diritto di voto”). Discurso distinto merece a possível inserção de semelhante
cláusula numa sociedade por quotas pois, tendo em conta a possibilidade legal de impedir
estatutariamente a transferência da quota, por maioria de razão se deverá admitir a viabilidade da inserção
no pacto social de uma cláusula proibindo a colocação em penhor da mesma.
2414
Assim, entre nós, Soveral Martins, ob. cit., pág. 317, por entender que uma tal cláusula constitui uma
inibição (embora transitória) e não uma limitação (pelas mesmas razões, recusa a inclusão de cláusulas
que, embora não proíbam directamente a transmissão, as tornem praticamente impossíveis, por exemplo
quando as condicionam a factos inverosímeis).
2415
Significando terem que existir no momento da oneração e não que existirão ou poderão vir a existir,
considerando Soveral Martins, Cláusulas do contrato de sociedade que limitam a transmissibilidade das
acções: sobre os art.ºs 328.º e 329.º do CSC, Almedina, 2006, pág. 530, “que os requisitos existentes não
poderão ser relativos à própria transmissão ou constituição de penhor ou usufruto: não poderão ser
requisitos relativos a actos a praticar para que essa transmissão ou constituição tenha lugar”.
2416
Segundo Soveral Martins, ob. cit., pág. 531, esta exigência de determinação impõe a concretização
dos requisitos no contrato de sociedade, razão pela qual este não poderá remeter a identificação dessas
condições para uma posterior decisão de um qualquer órgão social, incluindo as deliberações da
assembleia geral (sempre de acordo com este Autor, “a exigência de determinação justifica-se por duas
razões. Por um lado, permite que os sócios, actuais ou futuros, fiquem a saber se será ou não fácil
encontrar (…) um credor pignoratício não abrangido pelos requisitos. Por outro lado, impede que se
utilizem no contrato de sociedade expressões demasiado vagas que tornem intransmissíveis as acções”.
2417
De acordo com Soveral Martins, ob. cit., pág. 533 e segs., as modalidades que estas restrições
subjectivas podem assumir passam por impedir que o credor pignoratício possa ser uma sociedade ou,
pelo menos, uma sociedade com determinada configuração (seja de modo a impedir a aquisição tendente
ao domínio total – cfr. art.º 490.º do CSC – seja não permitindo que a credora seja uma sociedade com
igual objecto social ou que prossigam actividades idênticas, evitando que um concorrente possa vir a
655
também podem respeitar ao constituinte2418) ou objectivos,2419 mas sempre tendo em
vista a protecção do interesse social:2420 em caso de inobservância destes requisitos,
poderá ser recusada a inscrição do penhor nos registos competentes.2421
acompanhar por dentro a actividade societária) ou, pelo contrário, impor que o credor pignoratício reúna
determinados requisitos (serem antigos trabalhadores, sócios ou ex-sócios, clientes ou ex-clientes ou
sejam parentes do constituinte – esta última limitação assume importância especial nas empresas com
acentuado cunho familiar). No entanto, o Autor chama a atenção para a existência de limitações quanto à
amplitude destas limitações subjectivas à transmissão ou oneração das acções, pois, por um lado, “não se
pode limitar de tal forma o círculo de possíveis adquirentes que, na prática, fique proibida a
transmissão” ou oneração e, por outro, “pode-se questionar a licitude de certas limitações que, por
exemplo, ponham em causa o princípio constitucional da igualdade”: com base nesta última
consideração, o Autor sustenta a necessidade de uma interpretação destas cláusulas conforme à
Constituição e aos princípios da ordem pública e dos bons costumes, negando, em conformidade, a
admissibilidade de cláusulas que só permitem ou proíbam a transmissão ou oneração a favor de
indivíduos de certa raça, sexo ou cor de pele ou que perfilhem a ideologia fascista e manifestando dúvidas
quanto às que estabeleçam restrições quanto à nacionalidade do credor pignoratício ou do adquirente
(acabando por aceitá-las – afiançando que “Não parece constituir necessária violação do princípio da
igualdade que se estabeleça como requisito que os adquirentes tenham determinadas nacionalidades” -
por entender ser compreensível que os accionistas desejem evitar que as acções da sociedade caiam nas
mãos de estrangeiros, pois tal pode significar “alterações legislativas de normas sobre investimentos
estrangeiros que tornem muito difíceis aumentos de capital. Além disso, como não é impossível um
estado de guerra com outros países, os requisitos relativos à nacionalidade podem evitar futuros
problemas resultantes de legislação nacional ou estrangeira para tempo de guerra”). Pelo contrário,
aceita - tendo em conta a relação entre a discriminação e o objecto social -, restrições relativas à
orientação política e/ou cultural dos credores pignoratícios (quando se trate de uma sociedade editorial ou
com determinada orientação política e/ou cultural) ou a qualidade de produtor de certas matérias primas
(nomeadamente quando o empenhante tenha assumido uma obrigação de prestações acessórias
relacionadas com o fornecimento daquelas matérias primas) ou a titularidade de determinadas
habilitações académicas ou profissionais (quando justificados tendo em conta o objecto social da
sociedade empenhante) ou a situação económica do credor (impedindo, por exemplo, que tenham sido
anteriormente declarados falidos ou insolventes) ou mesmo a combinação de mais de um critério
(impondo que o adquirente ou credor pignoratício de uma quantidade de acções superior a uma
determinada parcela do capital social deva possuir uma determinada formação profissional ou não exerça
actividades concorrentes com a da sociedade).
2418
Soveral Martins, ob. cit., pág. 532, aponta como exemplo as cláusulas que subordinem a constituição
de penhor aos sócios que não se encontrem em mora perante a sociedade quanto ao cumprimento de
prestações acessórias (embora duvide que se possa condicionar a constituição de penhor em função da
titularidade do status de sócio durante determinado número de anos, uma vez que tal equivaleria a uma
exclusão temporária da transmissibilidade das acções em questão, contrariando a lei que apenas consente
uma limitação e não uma exclusão – ainda que temporária – da empenhabilidade).
2419
Os quais, segundo Soveral Martins, ob. cit., pág. 539, dizem respeito “ao objecto da transmissão ou a
outros aspectos que não sejam relativos à própria pessoa do adquirente, usufrutuário, credor
pignoratício, alienante ou a quem constitui o usufruto ou o penhor. E, como têm que ser requisitos
objectivos existentes, são requisitos que não integram a própria transmissão enquanto acto ou processo”,
exemplificando com as que exigem que as acções a onerar por cada accionista representem menos do que
uma determinada percentagem do capital social ou atribuam menos do que uma certa percentagem de
votos correspondentes ao capital social (ou inversamente, que não consintam a oneração de acções que
representem mais do que uma percentagem do capital social ou dos direitos de voto) ou ainda que não
aceitem a transmissão ou oneração quando a soma das acções, a juntar às de que o adquirente ou o credor
é titular superem uma certa percentagem do capital social ou dos direitos de voto. Chamado a pronunciar-
se sobre a validade de tais estipulações e tendo em conta a proibição da intransmissibilidade das acções,
o Autor exclui a admissibilidade das cláusulas “que obrigam o accionista a manter na sua titularidade
acções representativas de certa percentagem do capital social ou a manter acções que confiram certa
percentagem dos votos correspondentes ao capital social”, excepto quando se consinta ao sócio, como
alternativa, alienar a totalidade das acções, pois, deste modo, o sócio tem uma porta de saída (do mesmo
modo, aceita igualmente que, tratando-se de sociedades em regime de grupo ou de domínio e quando
alguém seja accionista de ambas, se possa condicionar a transmissão das participações numa delas à
alienação das acções de que seja titular na outra). Pelo contrário, o Autor rejeita liminarmente as cláusulas
que visam impor a transmissão das acções nominativas através de oferta pública de aquisição (OPA) ou,
656
Do mesmo modo, tais limitações poderão ser introduzidas,2422 atenuadas ou
extintas2423 (e até agravadas)2424, mediante alteração do pacto social - desde que
inversamente, excluem a sua transmissão por esta via: relativamente a estas últimas – cujo objectivo á
proteger a sociedade contras as OPA – entende que não é possível excluir a transmissão, mas apenas
impor limites a esta e, por outro lado, porque não estabelecem um requisito que seja existente perante a
transmissão que se pretende efectuar; quanto àquelas que apenas aceitam a transmissão através de OPA,
sustenta que este tipo de cláusula “não subordina a transmissão à existência de um requisitos (…) que
têm que existir para que possa ter lugar a transmissão”.
2420
Apesar de este juízo conformidade com o interesse social deve ser efectuado aquando a redacção do
pacto social (ou da sua alteração), “a apreciação a fazer não tem que partir do que seja o concreto
interesse social no momento em que a cláusula é introduzida, mas sim de um interesse social potencial. A
cláusula estará de acordo com o interesse social se puder, em abstracto, servir para realizar esse mesmo
interesse social potencial” – Soveral Martins, ob. cit., pág. 544, devendo a apreciação da licitude do
interesse social invocado como fundamento das restrições fundar-se no contrato de sociedade no seu
conjunto, em especial no que respeita ao objecto social, à eventual existência da obrigação de prestações
acessórias e ao facto de haver ou não acções não integralmente liberadas (por não corresponderem a um
interesse social relevante, o Autor descarta a licitude das cláusulas que imponham que o adquirente ou
credor pignoratício seja solteiro ou casado no regime de separação de bens – porquanto, de acordo com o
art.º 8.º, n.º 2, do CSCS, ainda que a participação social seja comum a ambos os cônjuges, será
considerado como sócio aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição
posterior, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal -, mas já aceita a imposição que o
adquirente não tenha ultrapassado uma determinada idade, tenha residência numa certa área ou não exerça
dadas profissões, sobretudo tendo em conta a existência de participações acessórias a que o titular das
acções esteja obrigado). Em suma, a conformidade com o interesse social impõe a verificação se “a
limitação não tem relação possível com o que seja ou possa vir a ser o interesse social, revelando-se
como um mero capricho” – ob. cit., pág. 308.
2421
Neste sentido, Soveral Martins, ob. cit., pág. 545.
2422
A introdução de limites à transmissibilidade das acções pressupõe uma alteração do contrato de
sociedade, podendo esta ser decidida por deliberação da assembleia geral, desde que estejam presentes ou
representados, em primeira convocatória, accionistas que detenham, pelo menos, acções correspondentes
a um terço do capital social, devendo a deliberação ser aprovada por dois terços dos votos emitidos, quer
a assembleia reúna em primeira ou em segunda convocatória (art.ºs 383.º, n.º 2 e 386.º, n.º 3, do CSC):
para além disso, é ainda necessário o consentimento de todos os accionistas cujas acções sejam afectadas
por aquelas limitações (Soveral Martins, ob. cit., pág. 603 e segs., admite que este assentimento possa ser
dado na assembleia, mas também fora dela e até antes da assembleia em que tal limitação vai ser
introduzida). Por outro lado, importa registar que estas limitações podem dizer respeito a apenas uma
determinada categoria de acções, como sucede se a sociedade emitiu acções ao portador e nominativas e
decide limitar a transmissão apenas destas últimas (ou até se pretende de uma parte das acções
nominativas anteriormente emitidas, desde que as mesmas sejam identificáveis – v.g. as acções não
integralmente liberadas, cujo titular se encontre obrigado a realizar prestações acessórias à sociedade ou
decorrentes de um aumento de capital, embora neste último caso apenas se as limitações forem decididas
simultaneamente com aquele aumento). Outra questão respeita ao momento a partir do qual estas
limitações se tornam oponíveis aos adquirentes e aos credores pignoratícios, distinguindo Soveral
Martins, ob. cit., págs. 610 e 611, consoante a transmissão ocorra depois do registo e da publicação da
alteração e depois da inclusão dos limites dos títulos ou nos registos em conta (caso em que a
oponibilidade não suscita dúvidas) ou, ao invés, nada conste dos títulos ou dos registos (caso em que
apenas serão oponíveis a terceiros de má fé).
2423
Soveral Martins, ob. cit., pág. 611 e segs. realça como, ao contrário do que sucede com a introdução
de limitações, para a sua atenuação ou extinção não será necessário o consentimento dos sócios que sejam
afectados por tal deliberação social (o Autor entende que esta dualidade de soluções se justifica pela
“convicção de que o regime preferível para as sociedades anónimas é o da livre transmissibilidade das
acções”). As cláusulas de atenuação dos limites são mais frequentes, apontando o Autor como exemplos
aquelas que reduzem o leque das transmissões limitadas (quando a limitação, ao invés de se aplicar a
todas as transacções onerosas, se passam a aplicar apenas às compras e vendas) ou eliminam alguns dos
requisitos a que estas se encontravam adstritas; quanto à eliminação das restrições, estas podem respeitar
também unicamente a uma categoria de acções (v.g. as relativas a um aumento de capital). Estas
alterações ao pacto social devem ser registadas, afiançando o Autor que, mesmo antes desse registo – mas
após a deliberação social - a sociedade não pode invocar face a terceiros o regime entretanto modificado
(fundamentando a sua posição no art.º 168.º do CSC que determina a possibilidade de os terceiros de
657
respeitados os condicionalismos legais a que esta modificação estatutária se encontra
sujeita -, ou até por via de acordo parassocial.2425
Todavia, as restrições à empenhabilidade decorrentes de meros pactos para-
sociais, não produzem efeitos reais, uma vez que tais convénios são ineficazes perante a
sociedade.2426
Paralelamente, o pacto social poderá limitar, não apenas a constituição de ónus,
mas também condicionar o exercício dos direitos sociais por parte do credor
pignoratício, ou seja, impor limites no plano das relações externas – entre as partes no
contrato de garantia e a sociedade – ainda que, no plano das relações internas
subjacentes ao contrato de penhor, tais direitos caibam ao credor pignoratício.2427
prevalecerem de actos cujo registo e publicação ainda não tenham sido efectuados). No que
especificamente concerne às limitações introduzidas às acções a emitir aquando da realização de um
aumento de capital (limitações essas que devem ser deliberadas conjuntamente com o aquele aumento),
importa ainda esclarecer que, por força do art.º 485.º, n.º 1, do CSC, nos aumentos de capital por entradas
em dinheiro os accionistas à data da deliberação desse aumento têm direito de preferência (relativamente
a quem não seja accionista) na subscrição das novas acções, razão pela qual, todos estes terão que dar, de
acordo com o art.º 328.º, n.º 3, do CSC, o seu consentimento à introdução de restrições à transmissão das
acções (se tal consentimento for recusado, o Autor, ob. cit., págs. 623 e 624, entende que tal recusa não
afecta a validade da deliberação de aumento de capital, tornando apenas ineficaz, relativamente aos sócios
que não tenham assentido, esse mesmo incremento).
2424
Trata-se aqui de introduzir novos requisitos – objectivos ou subjectivos – que não constavam do
contrato de sociedade, devendo a deliberação social nesse sentido obedecer aos mesmos requisitos
consagrados para a introdução de novas restrições (e, em especial, ao consentimento dos accionistas cujas
participações sejam afectadas) - Soveral Martins, ob. cit., pág. 621 e segs..
2425
Soveral Martins, ob. cit., pág. 339 e segs., alude aos chamados pactos de bloqueio, normalmente
utilizados quando as partes não possam (v.g., acções ao portador) ou não queiram incluir cláusulas
restritivas no contrato de sociedade (pactos estes implicitamente consentidos pelos art.ºs 17.º do CSC e
19.º do CVM). Todavia, estes pactos encontram-se sujeitos a duas limitações não despiciendas: desde
logo, não podem ser usados como meio para defraudar a lei (pelo que não poderão proibir de forma
absoluta a transmissão das acções ou conduzir, na prática, a esse resultado) e, por outro, possuem
unicamente eficácia obrigacional, vinculando apenas os seus subscritores (razão pela qual não impedem a
produção de efeitos do negócio entre o sócio e o terceiro - adquirente ou credor pignoratício – e, em caso
de alienação, que o adquirente passe a ser considerado como sócio).
2426
Neste sentido, Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 105 e 106, salienta como estes acordos são
susceptíveis de abranger acções tituladas ou escriturais, rematando que a ausência de efeitos reais apenas
será de afastar quando o empenhante haja declarado, no momento da constituição da garantia, que as
acções não eram livremente transmissíveis.
2427
Partidário deste entendimento é Stefano Poli, ob. cit., pág. 203 e segs., reconhecendo a validade e a
oponibilidade de tais cláusulas ao credor pignoratício, deste modo compatibilizando os interesses deste
último no exercício dos direitos sociais que lhe cabem e da sociedade em impedir uma relevância
organizativa de sujeitos indesejáveis e estranhos à própria sociedade: com base neste pressuposto, o Autor
admite que a sociedade possa estatutariamente condicionar alguns dos efeitos do penhor de acções ao
consentimento dos órgãos sociais, como por exemplo o exercício do direito de voto (entendendo que tal
não contrasta com a livre transmissibilidade das acções, “dato che cio che viene limitata, non è la
circolazione dei titoli, ma (alcuni effetti di un) negozio strutturalmente idoneo ad ostacolare il
trasferimento delle azioni”) ou até que determine, a priori, que em caso de dação em penhor das acções
de qualquer sócio o direito de voto e os demais direitos de natureza administrativa caberão ao devedor
(ou, quando muito, a necessidade de designação de um representante comum para o exercício de tais
direitos), mas recusando a validade de cláusulas contendo uma proibição indiscriminada dos sócios
empenharem as suas acções (no caso de a cláusula limitar, tout court, a sujeição da alienação ao
consentimento da sociedade, o Autor entende que, à partida, tal disposição não deverá ser extensível ao
penhor, embora se trate sempre, caso a caso, de uma questão de interpretação do negócio jurídico) ou
mesmo das que prevejam o direito de preferência dos demais sócios relativamente à constituição do
penhor (neste último caso porque, sendo o penhor acessório de uma obrigação que liga o sócio devedor e
o credor, a escolha do parceiro contratual por parte do sócio não pode ser condicionada pela sociedade,
pelo que “La difesa della propria organizzazione da ingerenze di terzi non sembra poter giustificare la
facoltà della società di imporre al socio il vincolo di ricorrere al credito (assistito da garanzia reale)
658
No mesmo sentido depõe o entendimento que sustenta existir um limite de cariz
societário para quem defenda à atribuição legal dos direitos sociais a um dos sujeitos da
relação pignoratícia, porquanto este releva unicamente no plano da titularidade de tais
direitos, não dispensando o respeito pelas regras societárias de legitimação do sujeito
em questão para o respectivo exercício.2428
Regressando às limitações estatutárias propriamente ditas, cabe determinar quais
as consequências da sua violação - sendo certo que o art.º 328.º, n.º 4, do CSC, postula a
inoponibilidade aos credores pignoratícios de boa fé daquelas cláusulas que não se
encontrem transcritas nos títulos ou nas contas de registo -,2429 discute-se se o penhor
será simplesmente inoponível à sociedade ou, pelo contrário, radicalmente inválido,
mesmo inter partes.
As soluções avançadas cingem-se, normalmente, aos efeitos da transmissão da
titularidade das participações contra as cláusulas limitativas (nomeadamente para
avaliar se tal desrespeito impede apenas a aquisição da legitimação para o exercício dos
direitos sociais ou, mais drasticamente, impede mesmo a aquisição da titularidade das
participações sociais),2430 salvaguardando a protecção do terceiro adquirente de boa fé
necessariamente all’interno della compagine sociale”). Todavia, a nova redacção do art.º 2355.º-bis,
introduzida em 2003, passou a permitir, não apenas a limitação da transferência das acções, como
também a inibição da mesma transferência (neste último caso por um período não superior a 5 anos
contados da data da constituição da sociedade o do momento em que a proibição seja introduzida), para
além de legitimar a sujeição da transferência ao acordo dos outros sócios ou dos órgãos sociais
(condicionada à imposição de uma obrigação de adquirir ou de rescisão por parte do alienante): em face
deste novo quadro legal, Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 125 e segs., aceitam, nos limites
legais, a validade de cláusulas que restrinjam ou proíbam a constituição do penhor (considerando que o
penhor constitui uma alienação virtual e, por isso, sujeito ao regime previsto para a transferência das
acções), com excepção da cláusula que consagre um direito de preferência a favor dos outros sócios
relativamente ao penhor (alegando que à validade de tal pactuição “si oppone la necessaria coincidenza
della qualità di creditore e di titolare del diritto di garanzia”). Por maioria de razão, as mesmas Autoras
admitem igualmente cláusulas do pacto social que, em homenagem ao interesse social (designadamente
de evitar que estranhos se imiscuam na vida societária), impeçam a relevância interna do penhor, por
exemplo atribuindo ao sócio o direito de voto e os demais direitos administrativos (embora recusando a
atribuição estatutária dos direitos patrimoniais, maxime o direito aos lucros, em razão da ausência de um
interesse social atendível, atendendo a que é “indifferente per la società l’identità di colui che percepisce
gli utili”). Entre nós, estas limitações ao exercício dos direitos sociais deverão ser admitidas, tendo em
conta a admissibilidade da própria limitação à oneração das participações sociais, sendo-o com as mesmas
restrições que vigoram para estas últimas (sobre estas, vide anteriormente no texto).
2428
Neste sentido, Stefano Poli, ob. cit., pág. 130 e segs., assegurando que a titularidade dos direitos
sociais por parte do credor não o dispensa da observância dos “indici legali di legittimazione all’esercizio
dei diritti sociali, noché, più in generale, i precetti che determinano le regole organizzative della società
per azioni, che risultano applicabili al titolare del diritto sociale in virtù di un diritto reale limitato
sull’azione”.
2429
Conforme salienta Soveral Martins, ob. cit., pág. 449 e 450, se tais cláusulas se encontrarem
transcritas nos títulos ou nos registos, serão oponíveis mesmo aos adquirentes ou credores pignoratícios
de boa fé (e, quanto aos de má fé, mesmo que não se tenha efectuado aquela transcrição), admitindo o
Autor que tais estipulações podem ser opostas ao adquirente ou credor pignoratício, não apenas pela
sociedade, como também pelo transmitente ou pelo empenhante.
2430
Soveral Martins, ob. cit., pág. 550 e segs., recusa a tese da mera ineficácia do negócio perante a
sociedade, de acordo com a qual o adquirente tornar-se-ia titular das acções mas não poderia exercer
pelos menos alguns dos direitos sociais que ela comporta – tese esta que invoca em seu favor, entre outros
motivos, o disposto no art.º 228.º do CSC, que comina a ineficácia para os actos de cessão de quotas não
consentidos - (alegando que esta posição permitiria que, perante a sociedade, o transmitente permanecesse
sócio e entre as partes o titular seria o transmissário e que, por outro lado, o art.º 328.º, n.º 1, do CSC,
fala, sem distinção, de limites à transmissibilidade das acções, pelo que se deve entender que esses limites
respeitam tanto à transmissibilidade perante a sociedade, como perante as partes), a tese de nulidade (uma
vez que os limites à transmissão das acções resultam do contrato de sociedade e não de uma norma
imperativa), do acto complexo – nos termos da qual a alienação das acções é um negócio complexo, do
659
consagrada no n.º 1 do art.º 58.º do CVM,2431 mas as mesmas valerão, mutatis mutandis,
para a constituição de garantias.
Por outro lado, não raras vezes os sócios adoptam comportamentos que visam
contornar as limitações constantes do pacto social relativamente à transmissão ou
oneração das participações sociais, como sejam aos acordos fiduciários, os acordos de
voto vinculado ou a representação no exercício do direito de voto.2432
qual faz parte também o consentimento da sociedade, sem o qual o negócio não se pode considerar
concluído nem produtor de efeitos, nem mesmo entre as partes - (pois não consegue justificar os casos em
que a validade do negócio está sujeita, não à autorização da sociedade, mas antes à verificação de
determinados requisitos, sendo certo que a lei – cfr. art.º 328.º do CSC – reserva um tratamento idêntico
para ambas as situações), a Spaltungstheorie, que admite a transmissão de alguns direitos sociais para o
adquirente – nomeadamente os patrimoniais -, enquanto outros permaneceriam em poder do transmitente,
especialmente os susceptíveis de influenciar os destinos da sociedade e a qualidade de accionista (pois a
tal se opõe o princípio da indivisibilidade das acções, da qual decorre a sua incindibilidade) e a teoria que
admite a criação de um trust (aludindo à falta de um regime legal desta figura e concluindo que a mesma
conflitua com o princípio da tipicidade dos direitos reais). O Autor sustenta, partindo do regime da cessão
de créditos (mais concretamente do art.º 577.º, nos termos do qual a cessão não é admitida se for interdita
por convenção das partes), que quando as convenções proibitivas da cessão forem oponíveis ao
cessionário (o que sucede no caso das cláusulas limitadoras da transmissão das acções), a transmissão
realizada contra aquela proibição “torna lícita a recusa do registo da transmissão das acções tituladas
nominativas referido no n.º 1 do art.º 102.º do CVM e bem assim a recusa do registo na conta do
adquirente quanto às acções escriturais nominativas” (uma vez que a sociedade, o intermediário
financeiro que a represente ou outras entidades registadoras podem opor aos adquirentes a existência
desses limites): ora, sendo o registo condição para que a transmissão se opere, o transmitente permanece
titular (se as acções são tituladas, o transmitente tem direito a exigir a restituição do título que tivesse sido
entregue, não podendo a sociedade impedi-lo de exercer os direitos inerentes às acções; se, pelo contrário,
são escriturais, importa distinguir consoante o registo seja efectuado junto da sociedade emitente ou um
seu representante – caso em que aquela sociedade pode controlar os registos que são ou não efectuados –
ou, pelo contrário, junto de um único intermediário financeiro ou integradas em sistema centralizado,
como sem o registo da aquisição a favor do transmitente não se pode efectuar o registo a favor do
transmissário – princípio do trato sucessivo, consagrado no art.º 70.º do CVM – e “Na conta de registo
individualizada do transmitente das acções escriturais nominativas estarão transcritas as limitações à
transmissibilidade das acções”, deverá ser recusado a favor do adquirente – cfr. art.º 77.º, n.º 1, alínea c),
do CVM – em violação de tais limitações).
2431
Todavia, como realça Soveral Martins, ob. cit., pág. 578 e segs., a protecção do terceiro encontra-se
condicionada à sua boa fé (traduzida no conhecimento efectivo – e não no mero desconhecimento
culposo, uma vez que a ideia subjacente ao preceito é a protecção do comércio jurídico e esta é mais
cabalmente assegurada se os terceiros puderem invocá-lo ainda que o seu desconhecimento seja culposo
e, por outro lado, porque do regime geral da posse vertido no art.º 1260.º, n.º 1, decorre que a posse se
considera de boa fé quando o possuidor ignorasse, ao adquiri-la, lesar o direito de outrem - da falta de
legitimidade do transmitente), a quem não possuísse legitimidade para o efeito (abrangendo os casos em
que o sócio não é titular das acções ou, ainda, as hipóteses em que desrespeita cláusulas do pacto social
que limitam a transmissão das participações, mas não os casos de incapacidade – v.g. dos menores,
interditos e inabilitados – ou de problemas que afectam a criação da participação ou da sua representação
– v.g. falsificação do título), respeitadas que sejam as regras de transmissão aplicáveis (consoante se trate
de acções tituladas ou escriturais): verificados estes requisitos, o adquirente torna-se proprietário das
acções.
2432
Soveral Martins, ob. cit., pág. 589 e segs., relata que, no primeiro caso, o titular das acções permanece
como tal por conta do interessado em adquirir (ou até uma aquisição por terceiro, que actua por conta de
outro interessado em adquirir abrangido pelas limitações estatutárias), no segundo um sócio aceita votar
no sentido determinado por outrem e no terceiro atribui-se a outrem um mandato para representar o sócio
no exercício do direito de voto. Chamado a pronunciar-se sobre a validade deste tipo de estratagemas,
duvida dos acordos fiduciários (não apenas pela provável violação do princípio da taxatividade dos
direitos reais, mas ainda pela possibilidade de estes acordos serem negócios simulados, que encobrem
outro efectivamente desejado e proibido), aceita as segundas quando se destinem apenas a procurar obter
consensos quanto ao sentido de voto ou quanto ao seu exercício sobre determinadas matérias ou em certo
período de tempo (mas já não quando não tenham limite de assunto ou de duração, ou quando tenha um
conteúdo vago e indeterminado ou se prove que constitui um expediente para contornar a limitação
660
Noutra ordem de considerações e no que respeita os direitos inerentes à
participação,2433 estes só podem ser exercidos pelo credor pignoratício quando assim for
convencionado pelas partes (n.º 4 do art.º 23.º do CSC),2434 solução esta preconizada
igualmente pelo n.º 4 do art.º 81.º do CVM.2435
Esta solução, parcialmente distinta de outros ordenamentos estrangeiros - alguns
dos quais, como é o caso do direito espanhol,2436 estabelecem um regime idêntico, mas
estatutária de transmissão das acções) e, quanto às últimas, desconfia das representações perenes e das
procurações irrevogáveis e sem limite temporal.
2433
Como bem nota Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 99 a 101, a titularidade de uma participação
social envolve também uma série de obrigações, cujo cumprimento, em caso de colocação em penhor de
tais participações e por força do silêncio da lei, será da responsabilidade do sócio empenhante. Contudo,
tendo em conta que o incumprimento de alguns desses deveres pode prejudicar o credor pignoratício,
sobretudo quando lhe tenham sido atribuídos alguns direitos sociais (pense-se nas proibições de
distribuição de lucros aos sócios em mora ou de exercício do direito de voto aos accionistas que não
tenham realizado a prestação de entrada – cfr. art.ºs 27.º, n.º 3 e 384.º, n.º 4, ambos do CSC), cabe a este a
faculdade de os cumprir em vez do sócio, por força do interesse directo que tem na satisfação dos créditos
decorrentes do não cumprimento daquelas obrigações, sub-rogando-se nos direitos deste para com a
sociedade (cfr. art.ºs 593.º), embora este novo crédito contra o sócio devedor não se encontre garantido
pelo penhor.
2434
O mesmo regime parece valer para o penhor de obrigações, designadamente a atribuição ao credor
pignoratício dos juros das obrigações (aqui sem dúvidas, por força da inexistência de preceito análogo ao
n.º 4 do art.º 23.º do CSC), oferecendo mais dúvidas o direito de o titular das obrigações as converter em
acções ou de separar os warrants. Na primeira hipótese, o exercício daquele direito pelo titular das
obrigações extingue o objecto da garantia, mas o facto de essa extinção ser acompanhada de um aumento
de capital, fará com que o penhor passe a assegurar automaticamente as novas acções (ao menos quando
tal se afigure necessário para a manutenção do valor da garantia). Tratando-se de warrants, o não
exercício do direito de subscrição, cumulado com a sua não separação da obrigação para negociação
autónoma, conduziria à caducidade do warrant, a qual também prejudicaria o credor pignoratício, pelo
que se deve admitir a separação do warrant pelo seu titular e, uma vez verificado tal facto, permitir ao
credor requerer o reforço da garantia na proporção devida (vide, a este respeito, Fazenda Martins, ob. cit.,
págs. 118 e 119).
2435
Acrescentando o art.º 83.º que o exercício desses direitos pode ser exercido através da entidade
registadora ou, caso contrário, será necessário apresentar os certificados de registo previstos no art.º 78.º.
Pode colocar-se a questão de saber se o acordo de atribuição do exercício dos direitos sociais ao credor
pignoratício se encontra sujeito a registo, nomeadamente quando tal formalidade for exigível para a
transmissão ou oneração dos mesmos. Sofia Maltez, ob. cit., pág. 31, entende que “tendo as partes
convencionado o exercício dos direitos sociais pelo credor pignoratício, de nada adianta a este ter o
registo e o respectivo certificado em como foi constituído o penhor, se desse registo não constar também
que ele tem legitimidade para o exercício dos direitos. Assim, se as partes nada estipularem, não levando
qualquer convenção sobre o exercício dos direitos a ser registada, então nesses casos quem tem
legitimidade para o exercício dos direitos é o próprio titular das acções. Se as partes convencionarem
que os direitos serão exercidos pelo credor pignoratício, nesse caso entendemos que essa convenção tem
que ser registada, de modo a que haja legitimidade para o exercício”.
2436
Nos termos do art.º 72, n.º 1, da lei espanhola das sociedades anónimas, a regra é igualmente a da
atribuição dos direitos sociais ao titular das acções, mas não é lícito a este convencionar com o credor
pignoratício o exercício daqueles direitos, pois tal atribuição apenas pode competir aos estatutos da
sociedade (consagra a mesma solução para as sociedades de responsabilidade limitada o art.º 37.º da
LSRL), muito embora Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 223, saliente que uma alteração estatutária que
venha revogar a prévia outorga de direitos sociais na vigência de uma relação pignoratícia não deve ser
consentida (pois significaria um defraudar das legítimas expectativas do credor que havia efectuado um
empréstimo confiando na atribuição de certos direitos sociais), excepto quando se trate de acções ao
portador (pois, se assim for, a sociedade pode não ter conhecimento da constituição da garantia, pelo que
será de todo conveniente ao credor notificar a sociedade da constituição de penhor sobre este tipo de
bens). A ratio da exigência de alteração por via estatutária (e não meramente contratual), pode buscar-se
no desejo de “velar en todo momento por los intereses de la sociedad, manteniendo un régimen uniforme
frente a todas las prendas, e imponiendo la voluntad social por encima de la particular, debiendo de este
modo constar la atribución de los derechos al acreedor prendario explícitamente en los estatutos, sin que
sea suficiente lo establecido en el titulo constitutivo de la relación prendaria. La finalidad última que
661
apenas admitem o seu afastamento por norma estatutária (sendo, porém, discutível qual
o alcance que tal disposição estatutária possa assumir)2437 enquanto outros estabelecem
uma repartição dos diversos direitos sociais (como o direito italiano)2438 2439 - e de
persigue el precepto es evitar el entorpecimiento del buen funcionamiento de la sociedad. Ésta no puede
ni tiene qué entrar a examinar o indagar el título constitutivo cada vez que se produce un gravamen, pero
sí puede limitar la autonomía de la voluntad de éstos si conculcan el régimen estatutario” - Veiga Copo,
La prenda de acciones cit., pág. 300. Coloca-se a questão de saber se os estatutos poderão determinar que
a legitimação para o exercício dos direitos sociais caberá ao sujeito determinado no título constitutivo da
garantia, ou seja, remetendo os estatutos para o acordo das partes contraentes no penhor (responde
negativamente Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 301). Para uma crítica a este preceito, vide
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 298 (alegando que o mesmo foi pensado unicamente para o
direito de voto, acabando por aplicar cegamente aos outros direitos a mesma solução e que, além disso, é
insuficiente – tratando diversas questões de modo superficial – não sendo a sua redacção totalmente
clara). Para terminar, resta mencionar uma controvérsia acerca da possibilidade de a sociedade, caso a
caso e por sua conta e risco, renunciar à protecção legal e/ou estatutária que decorre da atribuição da
legitimação para o exercício dos direitos sociais ao sócio (nomeadamente permitindo o exercício desses
direitos a quem o título constitutivo da garantia conferisse tal prerrogativa), hipótese esta recusada por
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 302 e 303, alegando que tal significaria “atribuir a la
sociedad una potestad arbitraria de derogación singular de sus estatutos, desprotegiendóse no sólo ella,
sino a otros terceros que confían en el correcto proceder de la sociedad” (considerando assim inválidas,
quer as cláusulas estatutárias que remetam para o título constitutivo da garantia a definição da
legitimidade para o exercício dos direitos sociais, quer, por maioria de razão, as decisões societárias
tomadas neste mesmo sentido na ausência de norma estatutária sobre aquela legitimação). Por seu turno
Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 322 e segs., não deixa ainda de fazer referência a uma corrente
jurisprudencial que admite excepcionalmente a prevalência do título constitutivo do penhor sobre as
normas estatutárias, permitindo, por exemplo, que a sociedade, caso a caso e a seu próprio risco (isto é,
sujeitando-se a que quem exerça esse direito não fosse o seu titular, hipótese na qual não poderá alegar ter
sido o seu erro justificado), consinta o exercício dos direitos sociais a quem conste daquele título
constitutivo (o Autor contesta este entendimento, alegando que o mesmo repousa na identificação da ratio
legis única do regime vertido no art.º 72.º da LSA na protecção da sociedade, contraponto que “protegen
también a los demás terceros, que podrán confiar en que la sociedad actuará de esa forma en relación a
las prendas que existan sobre sus acciones”).
2437
Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 322 e segs., (depois de notar que a possibilidade dos
estatutos afastarem o regime legal responde a um duplo objectivo de impor um funcionamento uniforme
perante a sociedade de todos os penhores sobre as suas participações e, por outro lado, de determinar que
seja a vontade da maioria dos sócios – e não das partes no contrato de garantia – quem decida sobre a
legitimação perante a sociedade), entende que tais disposições estatutárias têm um limite, qual seja o de
“no permitir soluciones que dificulten el buen funcionamiento de la sociedad”, por ser esta a finalidade da
norma legal que confere ao pacto social esta competência (com base neste critério, o Autor reconhece
como válida a atribuição de todos os direitos sociais ao credor pignoratício, mas não que se remeta a
distribuição dos direitos sociais para o título constitutivo de cada penhor ou a atribuição conjunta de um
ou mais direitos sociais, nem tão pouco a atribuição de alguns direitos sociais ao sócio e outros ao credor
pignoratício, por analogia, nesta última hipótese com a obrigatoriedade de em situações de contitularidade
ser nomeado um representante comum para o exercício dos direitos sociais).
2438
O art.º 2352.º do CCI distingue entre o direito de voto (que atribui, salvo convenção em contrário, ao
credor pignoratício - cfr. n.º 1), o direito de opção (que é concedido ao sócio - cfr. n.º 2, acrescentando o
n.º 3 que, em caso de aumento capital por incorporação de reservas, o penhor passa a abranger as acções
resultantes da nova emissão) e os demais direitos administrativos (que são, salvo disposição do título ou
decisão judicial em contrário, conferidos a ambos – cfr. n.º 6): de fora ficam outros direitos de conteúdo
económico, o mais importante dos quais é o direito aos lucros, em relação aos quais a lei não se
pronuncia. Stefano Poli, ob. cit., págs. 42 e 42, justifica a solução legal com a necessidade de antepor as
exigências de ordem prática ao rigor dogmático, consagrando uma solução que contenha menores
obstáculos na legitimação para a intervenção e votação nas assembleias gerais, uma vez que a tal
legitimação é atribuída ao possuidor dos títulos (todavia, o mesmo Autor considera que tal justificação
tenha ficado sem efeito pela posterior imposição da nominatividade obrigatória das acções das sociedades
com sede em Itália). Contra a legitimação conjunta pode objectar-se que esta consagra o exercício dos
mesmos poderes, respeitantes a uma mesma participação, por mais do que um sujeito e, por outro lado,
violaria o princípio da paridade de tratamento entre as diversas participações sociais (Gian Carlo Rivolta,
ob. cit., pág. 230 e segs., refuta – a propósito dos direitos de impugnação das deliberações sociais, de
662
outras sugestões,2440 pode fundamentar-se na função exclusivamente garantística da
constituição do penhor, para cuja protecção não se torna premente a atribuição dos
direitos sociais inerentes ao bem empenhado (com o inevitável imiscuir de um estranho
denúncia das infracções praticadas e, em geral, aos direitos inspectivos - ambas críticas, assegurando,
quanto à primeira, que a sociedade não será o sujeito passivo contraposto ao exercício de tal direito, mas
antes podendo retirar inegáveis vantagens do exercício de tais direitos; quanto à segunda crítica,
contrapõe que tal princípio não pode ser invocado quando “si tratti di facoltà che interessano la
sorveglianza sul legittimo e corretto operare degli organi amministrativo e di controllo, o sulla
legittimità delle deliberazioni assembleari, laddove v’è anzi interesse per i partecipanti uti singuli e come
collettività”, pois “non comportano dei vantaggi per il partecipante che siano commisurati all’entità
della quota”). Tendo em conta que este n.º 6 apenas foi introduzido em 2003, anteriormente o
entendimento prevalecente era o de atribuir ao sócio a generalidade dos direitos sociais, com excepção do
direito de voto, único expressamente concedido ao credor (assim, Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 28, nota
40). Dúvidas colocavam-se quanto à aplicação deste preceito às sociedades por quotas, sendo a posição
maioritária a que defendia essa aplicação (aludindo a alguns arestos que respondem afirmativamente à
questão, vide Roberto Weigmann, ob. cit., págs. 212 e 213), enquanto outros a recusam (é o caso de Gian
Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 215 e segs., especialmente no que respeita ao segmento do preceito que
atribui o direito de voto ao credor pignoratício, alegando que a ratio do preceito – o facto de,
normalmente, o credor pignoratício ter a posse dos bens empenhados, circunstância esta decisiva para o
exercício daquele direito - não justifica a sua aplicação às sociedades por quotas, nas quais a legitimidade
para votar depende apenas da inscrição no livro dos sócios, sem necessidade da entrega dos títulos ao
credor, concluindo pela outorga do direito de voto ao sócio, tendo em conta que “la penetrazione di un
estraneo in assemblea e l’esercizio da parte sua del voto, possa esser cagione di perturbamento nella vita
della s.r.l.”). Actualmente, todavia, tais dúvidas dissiparam-se, uma vez que o art.º 2468.º do CCI
determina, de modo inequívoco, a aplicação do art.º 2352.º ao penhor de quotas.
2439
A respeito do preceito que, no direito italiano, regula o penhor de acções, opõem-se várias teorias:
uma primeira, dita “dominical”, nos termos da qual a atribuição do direito de voto e de outros direitos
sociais de natureza administrativa fundamenta-se nas regras gerais do penhor, mais concretamente nos
deveres de custódia e de conservação que impendem sobre o credor pignoratício; outra, chamada
“societária”, de acordo com a qual para a interpretação do art.º 2352.º se deverá recorrer às normas de
direito societário, procedendo a uma equiparação, no que respeita ao exercício do direito de voto e de
outros direitos sociais administrativos, entre a posição do credor e a do sócio (“salvo che non vi sia
discrepanza tra la ragione per cui lo specifico diritto è attribuito e il tipico intresse di garanzia per cui il
creditore pignoratizio viene inserito nell’organizzazione sociale”); outra, apelidada de cartular, justifica o
regime legal seria uma consequência decorrente da posse dos títulos por parte do credor pignoratício; uma
última qualificando o penhor de acções como uma fattispecie complexa, para cuja compreensão será
necessário coordenar as anteriores perspectivas (as quais, isoladamente, são insuficientes, a primeira por
desconhecer os limites societários ao desenrolar da relação pignoratícia e a segunda por contrariar o
princípio da tipicidade dos direitos reais, na vertente do conteúdo dos mesmos) – esta última é a adoptada
por Stefano Poli, ob. cit., pág. 51 e segs (escrevendo que o penhor de acções “è una fattispecie
funzionalmente complessa, caratterizzata dalla tutela di un interesse di matrice pignoratícia (e, quindi,
latamente dominicale) all’interno di un’organizzazione avente una fonte, una struttura ed una disciplina
diverse ed ispirate ad una finalità (circolazione invece che conservazione della ricchezza) potenzialmente
antinomica a quella sottesa alla normativa in tema di diritti reali”: nesta conformidade, será necessário,
em primeiro lugar, definir a titularidade dos direitos sociais no âmbito da relação entre o credor e o
devedor e, em seguida, resolver as questões atinentes à oponibilidade daquela titularidade, o que pode
obrigar a uma revisão das soluções adoptadas “qualora in tal fase emergano degli interessi, connessi al
vincolo associativo, che possano ritenersi prevalenti rispetto a quelli del rapporto di garanzia”).
Naturalmente que, adoptando a primeira tese, o preceito em questão será considerado como de
especificação do regime geral do penhor, ao passo que perfilhando a segunda a dita norma surgirá como
uma norma excepcional (acerca destas diversas posições e considerando que a jurisprudência se parece
inclinar para a primeira, vide Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., págs. 67 a 71 e Stefano Poli, ob.
cit., pág. 44 e segs.).
2440
Outra solução possível seria, particularmente no que se refere ao direito de voto, a suspensão do
direito na vigência da relação pignoratícia, mas, como salienta Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 215, nota
29, tal suspensão “avrebbe comportato delle conseguenze assai pregiudizievole per la vita sociale, specie
quando il pacchetto azionario gravato dal vincolo reale fosse stato di tale entità da impedire il
raggiungemento delle maggioranze per deliberare”.
663
na vida da sociedade), mas tão só assegurar da sua conservação,2441 argumentação esta
que pode ser combatida invocando o prejuízo que a mesma acarreta para o credor
pignoratício.2442
Todavia, ao menos em algumas situações, o titular das acções empenhadas
necessita, em ordem ao exercício dos direitos sociais, da colaboração do credor
pignoratício (nomeadamente quando estejam em causa acções tituladas nominativas e
seja imperiosa a apresentação dos títulos empenhados para o efeito, títulos esses que se
encontram, em virtude da constituição da garantia, em poder do credor pignoratício) -
porém, a necessidade desta colaboração pode colocar em causa a própria subsistência da
garantia2443
2441
Sem que, todavia, a solução legal deixe desprotegido o credor pignoratício pois, como expõe Tiago
Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 92 a 95, esse desiderato poderá ser alcançado, pelo menos de quatro
formas: o dever do sócio agir de boa fé (por força do qual deverá informar o credor de todos os factos
passíveis de afectar a consistência da garantia, como sejam, a aprovação de deliberações de aumento ou
redução de capital ou a existência de factos susceptíveis de desencadear a sua exclusão de sócio ou a sua
exoneração), a perda da disponibilidade das acções por parte do sócio, no seguimento da constituição da
garantia (quer para as acções tituladas ao portador, para cuja dação em penhor se exige a entrega do título,
assim impedindo novas onerações ou alienações, quer para as tituladas nominativas ou escriturais, em
relação às quais o registo da garantia limita novos actos de disposição – por força impossibilidade de
transmissão e, caso tenha sido emitido um certificado para o exercício de direitos sociais, do seu bloqueio,
nos termos dos art.ºs 204.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), do CVM, respectivamente – e, ainda que
ocorra a sua transmissão, o registo do penhor torna a garantia oponível a eventuais terceiros adquirentes),
o direito do credor exigir o reforço ou substituição da garantia ou o cumprimento imediato da obrigação
(nos termos dos art.ºs 670.º, alínea c) e 701.º, para assim reagir contra desvalorizações do valor das
acções dadas em garantia resultantes de flutuações bolsistas ou da não subscrição de aumento de capital
por parte do sócio empenhante) e de exigir a venda antecipada da mesma (quando haja fundado receio de
perda ou deterioração do bem empenhado – por exemplo, no caso de o sócio se recusar a prestar
informações sobre a situação do bem empenhado ou votar favoravelmente deliberações susceptíveis de
influenciar negativamente o valor das acções dadas em penhor - nos termos do mesmo art.º 670.º, alínea
c) e do art.º 1013.º do CPC).
2442
Conforme salienta Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 320 a 322 (e apesar de ressalvar que as
norma legal atributiva dos direitos sociais aos sócios “no quiere decir que todas los derechos
correspondan al socio, sino que, frente a la sociedad, el legitimado para su ejercicio será éste último (…)
en la relación intena pueda existir un reparto de facultades” e ainda que tal norma possa ser afastada,
mesmo no plano das relações externas, por cláusula estatutária em contrário), tal solução “provoca un
claro desiquilibrio entre la posición del titular de las acciones y del acreedor pignoraticio. Todo ello
porque éste último queda prácticamente excluido de cualquier tipo de relación directa con la sociedad
emisora, con lo que los posibles abusos que pudiera realizar el socio en el ejercicio de los derechos
sociales sólo poderán ser paliados inter partes con una acción de daños”. O Autor justifica a solução
legal com o facto de o legislador, apesar de ter elaborado a norma em sentido lato para todos os direitos
sociais, ter tido unicamente em mente o direito de voto, pelo que propõe uma interpretação flexível do
preceito, de modo a alcançar resultados diversos para direitos sociais como os dividendos, de subscrição
preferencial (recorrendo, para o efeito, à aplicação analógica das normas ditadas para o usufruto de
acções)
2443
Como bem nota Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 71 e 72, sendo empenhadas acções tituladas
ao portador não depositadas, o exercício dos direitos sociais a elas inerentes depende da respectiva
exibição (em face do direito espanhol, Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 327, realça como a
questão se coloca a respeito dos títulos ao portador – “porque aquí para el ejercicio de los derechos
sociales es siempre necessaria la exibición de los títulos o, en su caso, del certificado acreditativo de su
depósito en una entidad adherida” - , enquanto para os nominativos a colaboração restringe-se à inscrição
do penhor no livro dos sócios): ora, como o penhor destas acções implica a entrega das mesmas ao credor,
o empenhador terá que solicitar a este a restituição destas para aquele efeito, simplesmente tal restituição
poderá conduzir à extinção da garantia, por força do disposto no art.º 677.º. Para colmatar esta brecha e
quando se trate de acções escriturais, poderá o sócio empenhante exibir os certificados emitidos pela
entidade competente atestando a sua titularidade dos valores mobiliários ou, em alternativa, permitir que
o exercício dos direitos sociais seja levado a cabo pelas próprias entidades depositárias encarregues dos
registos (defende estas duas soluções Pries Picardo, ob. cit., pág. 711 e segs., sugerindo que a segunda
664
Em termos mais amplos, poder-se-á afirmar a existência de limites ao exercício
dos direitos sociais, independentemente de os mesmos serem exercidos pelo sócio
devedor ou pelo credor pignoratício.2444
alternativa se mostra mais apta para os direitos económicos e a primeira para os direitos políticos). Já
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 327 e 328, entende que o problema não se coloca nas acções
representadas através de anotações em conta (porque os certificados de legitimação o resolvem), mas
apenas nas tituladas, devendo ser solucionado através da apresentação das acções por parte do credor à
sociedade (e não mediante a entrega ao sócio empenhante, pois tal comportamento conduz à extinção da
garantia). Por seu turno, Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, pág. 672, destaca como este dever de
colaboração se projecta de modo diverso nas acções tituladas ao portador (devendo o credor entregar ao
sócio empenhante os títulos, já que a exibição destes é condição de exercício de diversos direitos sociais)
e nominativas (em que a exibição – e, por consequência, a entrega ao sócio – apenas é exigida para a
inscrição no livro dos sócios, pois a partir daí será esse sujeito o legitimado) e as escriturais (em que a
colaboração é dispensada, tendo em conta que a legitimação se fará através da exibição dos certificados
expedidos pelas entidades competentes). Por último Diaz Moreno, ob. cit., pág. 415 e segs., destaca
como, nos valores escriturais, o exercício dos direitos sociais de natureza patrimonial se fará através da
entidade encarregue da gestão dos valores empenhados (que acabará por incluir na conta do sócio os
valores ou o dinheiro a receber por força da sua posição de sócio), enquanto para os direitos políticos será
suficiente a exibição dos certificados de legitimação emitidos pelas entidades responsáveis pelo registo da
garantia (sendo certo que a lei proíbe a emissão, para os mesmos valores e para o exercício dos mesmos
direitos sociais, de mais de um certificado). A conclusões idênticas chega Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., págs. 311 a 314, destacando como para os títulos ao portador a exibição do título é condição
necessária e suficiente para o exercício dos direitos sociais, que nas acções nominativas a apresentação do
título só será necessária para a inscrição do penhor no livro de registo dos sócios (sendo, em qualquer dos
casos, imperiosa a colaboração do credor, enquanto detentor do título, a qual se poderá concretizar de
duas formas, “o bien presentando directamente las acciones ante la sociedad, o bién entregándolas a su
deudor-socio para que éste sea quien las presente”, não configurando nenhuma destas condutas uma
renúncia à garantia – ou a extinção do penhor por perda da posse do bem empenhado por parte do credor
pignoratício – embora advirta para o perigo de o devedor, na sequência da devolução do título por parte
do credor, o entregar a terceiro, dando o Autor menciona duas posições contrárias: uma, considerando o
terceiro como não estando de boa fé – e, desse modo, não podendo gozar da protecção da regra posse vale
título para fazer prevalecer o seu direito sobre o do credor pignoratício; outra, dando prevalência à
autonomia cambiária do título, privilegiando a posição do terceiro), enquanto nas acções escriturais
aquele dever de colaboração se dilui, na medida em que o legislador prevê um instrumento legitimador
alternativo, o certificado de legitimação (para além disso, o Autor entende que a violação do dever de
colaboração implica o pagamento dos danos causados por essa conduta, admitindo até que à contraparte
assista o direito de resolver o contrato com fundamento em incumprimento de obrigações acessórias ou
conexas com a principal). Finalmente, De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 240 e segs.,
entende que, quando estamos perante participações sociais que assumam a forma escritural, o dever que
impende sobre o credor de facilitar o exercício dos direitos sociais por parte do sócio devedor se encontra
esbatido, uma vez que os direitos económicos serão exercidos através da entidades encarregues do registo
das participações, a quem cabe cobrar quaisquer prestações de natureza pecuniária (devendo o sócio,
titular desses direitos, dirigir-se à entidade registadora e não à sociedade emitente, devendo esta cumprir
as ordens dadas pelo sócio relativamente à forma de exercício de tal direito: todavia, ainda que se
considere que os dividendos são frutos – para efeitos de aplicação de presunção anticrética e da
possibilidade de compensação, nos termos do art.º 1868.º do CCE – a entidade registadora não os deverá
entregar directamente ao credor, uma vez que o pacto anticrético apenas se presume quando o credor se
encontre em poder do bem onerado), enquanto os políticos serão exercidos mediante a apresentação de
certificados de legitimação emitidos pela entidade encarregue do registo (bastando a emissão de um único
certificado para o exercício destes direitos, sem necessidade de um para cada direito).
2444
Como salienta Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 295 a 297, o limite mais óbvio decorre
da proibição de exercício dos direitos sociais com o intuito de prejudicar a contraparte na relação de
garantia. Nesta conformidade, quando tal exercício caiba ao credor, decorre do regime geral do penhor
que sobre ele impende um dever de conservação do bem onerado, dever este que deverá prevalecer (salvo
casos excepcionais) sobre um eventual interesse contrário do sócio (“cuando este conflicto se verifique,
debe prevalecer el interés del acreedor a la conservación de la acción, puesto que el eventual interés del
socio que transcienda el de la conservación, está jurídicamente subordinado a la misma, no pudiendo el
acreedor en cuanto preordenato por la esencia misma del derecho de prenda a la tutela del crédito,
sufrir limitaciones por el solo hecho del contraste con los intereses del deudor dador de la prenda”), com
665
Todavia e salvo melhor juízo, estas normas legais e estatutárias (cfr. art.º 328.º,
n.º 2, do CSC) que atribuem ou limitam os direitos sociais apenas curam da legitimidade
para o exercício desses direitos perante a sociedade (relações externas),2445 sendo a
questão da titularidade desses mesmos direitos regulada no título constitutivo do penhor
ou, no silêncio deste, supletivamente pelo regime legal das participações sociais e do
próprio penhor (relações internas).2446
o limite resultante de “que el acreedor no deba usar la acción sólo para perjudicar al socio-deudor sin
ventaja objetiva para la acción”, até porque “no constituye actividad de conservación el uso de la acción
que no sirva a la participación social, es decir, que sirva sólo para dañar al socio”. Quando, ao invés,
seja o sócio a exercer os direitos sociais, deve fazê-lo “no en el propio interés personal, sino en aquél,
siempre personal pero uti socius; y sólo este último interés se adapta perfectamente a la finalidad de
conservación que al acreedor debe precisamente perseguir”.
2445
A diferença entre o ordenamento português e o espanhol é que entre nós a legitimidade, legalmente
estabelecida, para o exercício dos direitos perante a sociedade (relações externas) pode ser alterada por
decisão das partes no título constitutivo que, desse modo, acaba por influenciar, não apenas as relações
internas, como também as relações internas (pelo contrário, no direito espanhol as partes não dispõem de
poder para afectar as relações externas determinadas por lei, as quais só podem ser alteradas por decisão
estatutária).
2446
Como bem nota Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 632 e segs., cumpre dissociar as relações externas
(dos contraentes do penhor com a sociedade), das relações internas (entre os sujeitos da relação
pignoratícia): estas últimas regem-se, no essencial, pelo disposto no título constitutivo da garantia (e, em
caso de silêncio deste, pelas mencionadas regras legais e, ainda, pelas constantes do regime geral do
penhor), enquanto as primeiras, implicando sobretudo uma questão de legitimação perante a sociedade
(de modo que “la sociedad no tenga que indagar en las relaciones internas (…) para saber a quién o a
quiénes corresponde el ejercicio de los derechos sociales”), valerá o disposto na lei ou, porventura, nos
estatutos (ou, nas palavras de Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, ob. cit., pág. 672, os estatutos terão
que deixar intocada a questão da titularidade – por violação do art.º 48.º da LSA que atribui ao titular das
acções a condição de sócio - versando unicamente sobre a legitimidade para o exercício dos direitos,
assim tutelando os interesses societários e de terceiros que não terão que conhecer os pactos celebrados
no domínio das relações internas). Nesta conformidade e como salienta o mesmo Autor (cfr. Prenda cit.,
pág. 205 e segs.), a norma legal que atribuir os direitos sociais ao sócio tem carácter supletivo, apenas
podendo ser afastada por cláusula estatutária em contrário, podendo suceder que o título constitutivo do
penhor confira ao credor determinados direitos sociais, mas nada conste dos estatutos a esse respeito, caso
em que a estipulação contratual não produzirá efeitos para com a sociedade, que continuará a considerar
como legitimado para o exercício dos direitos sociais o sócio (desta exclusão pode derivar “un claro
desequilibrio de la posición de los otorgantes de la prenda, con lo que los posibles abusos sólo podrán
ser garantizados inter partes a través de una acción de daños”). Poderá, igualmente, surgir, embora mais
raramente, a hipótese inversa de o título constitutivo legitimar o sócio – ou de nada dizer – e os estatutos
atribuírem o mesmo direito ao credor, caso em que se aplicará o mesmo princípio e a sociedade apenas
reconhecerá este último, por ser a quem o pacto social legitima (em suma, “a través de la conexión entre
las disposiciones estatutarias y las contenidas en el título constitutivo de la garantía, el acreedor
pignoraticio estará en condiciones de conocer la verdadera dimensión de su derecho, de forma que los
otorgantes han de estabelecer de antemano sus relaciones con la claridad necesaria al objeto de obtener
una debida adecuación entre las relaciones externas e internas de modo que la legitimación formal que
estas relaciones entrañan queden debidamente coordinadas con la relación jurídico-societaria a cuyo
desenvolvimiento atienda, que no dificulte el ejercicio e la legitimación de los derechos que en buena
lógica deseen atribuir a uno u otro”). Em termos aproximados, para Salinas Adelantado, El régimen cit.,
págs. 306 a 310, não fora a existência do art.º 72.º da LSA e qualquer penhor de acções constituído nos
termos do direito comum seria oponível à sociedade emitente, mesmo que esta não tivesse tido
conhecimento da sua existência (excepto quanto se tratasse de títulos nominativos, para os quais a lei
impõe a obrigação de inscrição no livros dos sócios do penhor): ora, é precisamente para evitar que a
sociedade possa ser apanhada de surpresa que o mencionado preceito vem estabelecer, salvo disposição
em contrário dos estatutos, as condições para o reconhecimento societário da pessoa legitimada para o
exercício dos direitos sociais inerentes às acções dadas em penhor (as relações externas), podendo tal
solução ser, supletivamente e em caso de silêncio do título constitutivo, extensível às relações entre as
partes na relação de garantia (relações internas), mas apenas para colmatar lacunas do regime geral do
penhor (ou seja, para este Autor, as relações internas regular-se-ão, em caos de silêncio do título
constitutivo, pelo regime geral do penhor e apenas quanto às lacunas deste pelo art.º 72.º da LSA). Por
666
Por outro lado, registe-se que nada se opõe a que, de entre os diversos direitos
sociais, alguns sejam exercidos pelo credor pignoratício, enquanto outros permaneçam
sob a alçada do sócio empenhante,2447 solução esta, aliás, consagrada, como se verá, na
lei italiana.
A norma lusa em questão, apesar da sua formulação genérica, apenas menciona
expressamente, de entre a panóplia de faculdades que assistem ao titular da participação
social,2448 o direito aos lucros,2449 solução esta divergente da consagrada, por exemplo,
no ordenamento italiano,2450 mas idêntica à vigente no direito espanhol.2451
último, o mesmo Autor salienta que nem mesmo o sujeito legitimado frente à sociedade (no plano das
relações externas) poderá exercer os seus direitos como queira, mas antes tendo em conta o interesse da
contraparte no contrato de garantia (ou seja, “existen facultades que según las relaciones internas son de
ejercicio conjunto, pero que frente a la sociedad se ejercitarán exclusivamente por una sola parte, lo que
no modifica que ésta última deba realizarlo en interés de ambos”, sendo que, se o não fizer, tal facto não
assume qualquer relevância para com a sociedade, provocando apenas o dever de indemnizar a outra parte
na relação de garantia). Em face do exposto, as cláusulas estipuladas pelas partes no título constitutivo da
garantia não são oponíveis à sociedade, fazendo com que esta “no tenga que indagar en las relaciones
internas que unen a los distintos sujetos para saber a quién corresponde el ejercicio de los derechos
sociales”, de modo que poderá recusar legitimamente ao exercício dos direitos sociais por parte do credor
pignoratício (em caso de silêncio dos estatutos), ou do sócio empenhante (quando os estatutos atribuam
ao credor legitimidade para o exercício de algum direito social) - Veiga Copo, La prenda de acciones cit.,
págs. 294 e 295. Distingue igualmente entre as relações internas e externas De la Santa García, ob. cit.,
pág. 130 e segs., esclarecendo que a regulamentação das primeiras cabe, salvo disposição em contrário
dos estatutos, ao próprio contrato de penhor (e no silêncio deste, pelo regime legal), enquanto as segundas
se regerão pela lei e, porventura, pelo disposto no pacto social.
2447
Contra, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 301 e 302, invocando um suposto princípio de
unificação subjectiva do exercício dos direitos do sócio.
2448
Por exemplo, o art.º 21.º do CSC enumera como direitos inerentes à condição de sócio a participação
nos lucros, a participação nas deliberações sociais, a informação acerca da vida da sociedade e de ser
designado para os órgãos de direcção ou fiscalização da sociedade. Já o art.º 55.º, n.º 3, do CVM
considera como direitos inerentes aos valores mobiliários, os dividendos, os juros e outros rendimentos
(alínea a)), os direitos de voto (alínea b) e os direitos à subscrição ou aquisição de valores mobiliários do
mesmo ou de diferente tipo (alínea c)).
2449
Nas sociedades em nome colectivo e em face do direito italiano, Mario Buonaiuto, ob. cit., pág. 4 e
segs., sustenta a atribuição do direito ao lucro ao sócio sofre algumas limitações. Assim, no momento em
que os sócios dão o seu consentimento à constituição do penhor, reconhecem ser o credor pignoratício o
sujeito a quem devem ser distribuídos os lucros da sociedade (se, ao invés, o assentimento é prestado
previamente – por exemplo, estabelecendo a livre transmissibilidade da participação – o penhor torna-se
oponível à sociedade a partir do momento em que a sua constituição seja notificada à sociedade).
Todavia, o citado Autor não retira do exposto a conclusão que o direito aos lucros seja irrenunciável, uma
vez que “gli utili di società, a differenza dei frutti naturali, costituiscono un diritto per il titolare a
condizione che questi, in un modo o nell’altro, non vi abbia rinunziato (…)”, pelo que o credor
pignoratício “è in possesso di una cosa frutífera, è vero: la produzione di frutti è in ogni caso subordinata
allo statuto (chiamiamolo così) cui è in concreto soggetta la cosa stessa. E nel caso di una società, le
norme cui è soggetta la quota, per quanto riguarda gli utili, sono quelle poste nell’atto costitutivo, che
possono variamente disciplinare la distribuzione degli utili, con efficacia vincolante per tutti i successivi
acquirenti delle quote, nonchè del creditore pignoratizio” (acrescentando, em abono da sua posição, não
ser compreensível por que razão as políticas de auto financiamento da sociedade poderiam ser postas em
causa unicamente em consequência do facto de um sócio ter empenhado a sua participação). Em face do
direito pátrio e uma vez prestado o consentimento à constituição do penhor (art.º 182.º, n.º 1, do CSC), o
penhor é válido, pelo que as partes poderão, ao abrigo do art.º 23.º, n.º 4, do CSC, convencionar a
atribuição ao credor pignoratício do direito aos lucros, até porque tal atribuição em nada contende com a
responsabilidade dos demais sócios e, noutro plano, não afecta o funcionamento normal da sociedade e
dos seus órgãos.
2450
Apesar de o art.º 2352.º ser omisso relativamente à titularidade do direito aos lucros inerentes às
acções empenhadas, Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 103 e segs., noticiam que a opinião
maioritária da doutrina vai no sentido da atribuição de tal direito ao credor, independentemente de se
considerar o penhor de acções como um penhor de coisa ou de crédito e de qualificar o dividendo como
fruto natural ou civil, posição subscrita por Stefano Poli, ob. cit., pág. 500 e segs., com fundamento na
667
função satisfatória da garantia, afirmando a existência de um princípio segundo o qual “le obbligazioni
pecuniarie che derivino o accedano al bene oppignorato, che non abbiano il carattere dell’aleatorietà,
siano di pertinenza del creditore pignoratizio, al fine di diminuire l’entità dell’ammontare garantito”
(muito embora este último Autor prefira falar de um direito-dever que, caso não seja exercido, pode
legitimar um pedido de sequestro do bem por parte do devedor). Nesta conformidade, as duas primeiras
Autoras escrevem que “il creditore ha diritto di percepire tutti i dividendi distribuiti a qualsiasi titolo
durante il rapporto di pegno, salvo l’obbligo di restituire poi al socio quanto eventualmente ecceda
l’ammontare del credito garantito”, não apenas os dividendos correspondentes ao exercício social, mas
também os relativos de distribuição de reservas ou outros (no mesmo sentido, Stefano Poli, ob. cit., pág.
519 e segs., assegurando que abrange “tutti i dividendi ed relativi acconti di cui sia deliberata la
distribuzione, indipendentemente dal fatto che traggano fonte da utili d’esercizio o di bilnacio o riserve,
sino a concorrenza del credito garantito” e, por outro lado, que o sujeito legitimado para a cobrança dos
juros é o titular do direito no momento do pagamento). Coloca-se, todavia, a questão de saber se as partes
ou o próprio pacto social poderão derrogar este regime (no que concerne ao direito ao dividendo futuro,
uma vez que o direito ao dividendo cuja distribuição já haja sido deliberada se deverá considerar
destacado da acção e, por isso, o sócio dele poderá dispor livremente): a este propósito, as Autoras citadas
aceitam a primeira forma de derrogação, por entenderem que a disciplina legal não é absolutamente
imperativa, admitindo mesmo que o pacto possa ter eficácia erga omnes, desde que seja oportunamente
publicitada e não parcial em relação à mesma distribuição de rendimentos (no mesmo sentido, Stefano
Poli, ob. cit., pág. 525), mas rejeitam a segunda (alegando que a titularidade do direito ao lucro não
respeita ao interesse colectivo da sociedade, sendo antes um assunto da esfera individual de cada sócio,
inexistindo qualquer interesse legítimo da sociedade a que o dividendo seja percebido pelo sócio ou pelo
credor. Será igualmente inválida, por violação do princípio da igualdade entre as acções e da invalidade
dos pactos leoninos, a cláusula estatutária que estabeleça que a quota de lucros da titularidade do credor
pignoratício seja retida e permaneça no património social – em termos idênticos, Stefano Poli, ob. cit.,
pág. 527 e segs.). Por último, Stefano Poli, ob. cit., pág. 513 e segs., chama ainda a atenção para o facto
de o credor não ser titular de um direito subjectivo à distribuição periódica de dividendos, pelo que em
caso de ser dado diverso destino aos proveitos sociais, não poderá exigir à sociedade a sua quota parte dos
proveitos não distribuídos (restando-lhe unicamente impugnar a deliberação social que decida o
acantonamento dos lucros, designadamente quando tal prática for reiterada e ponha em causa os ditames
da boa fé).
2451
De acordo com a atribuição legal (cfr. art.º 72.º da LSA) genérica ao sócio devedor da legitimidade
para exercer os direitos sociais correspondentes às acções empenhadas, embora Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 357, de iure condendo (para além de mencionar diversos Autores que, de iure condito,
defendem a atribuição da tal legitimidade ao credor, assim evitando círculos inúteis, sendo indiferente
para a sociedade pagar ao sócio ou ao credor), defenda a solução inversa, entendendo “preferible atribuir
al acreedor pignoraticio los posibles beneficios devengados dentro del período fructífero constante la
prenda y, unicamente extensible a los otros rendimientos extraperiodus pignus por vía pacticia en la
relación interna” (mais especificamente, caberiam ao credor os dividendos distribuídos dentro do período
de vida da garantia com recurso a reservas constituídas em razão de benefícios correspondentes a
exercícios sociais integralmente abrangidos pelo penhor – cabendo ao sócio caso os benefícios respeitem
a exercícios em que o penhor não se havia constituído ou já se havia extinto; caberiam a ambos, de acordo
com a respectiva proporção relativamente ao total das reservas, os dividendos distribuídos no decurso da
relação pignoratícia com recurso a reservas iniciadas antes da constituição do penhor, mas incrementadas
na vigência deste; caberão ao sócio os dividendos repartidos fora do período de vigência de garantia com
base em reservas integradas por benefícios de exercícios cobertos ou não pela relação de garantia).
Todavia, para as acções escriturais e segundo Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 359, a
cobrança dos dividendos far-se-á através das entidades encarregues do registo, pelo que a sociedade
emitente pagará a quem constar como titular nos dados enviados pela entidade registadora (e, portanto,
em caso de penhor e salvo pacto em contrário, pagará ao sócio devedor: o Autor defende que o exercício
deste direito só poderá caber ao credor se este inscrever no registo a sua legitimidade para o exercício
desse direito, com eventual reenvio para os acordos das partes). Contra este entendimento, insurge-se De
la Santa García, ob. cit., págs. 134 e 135 (depois de reconhecer a existência do entendimento oposto, bem
como de um outro que procura harmonizar as disposições civil e comercial, de acordo com o qual o sócio
terá direito a receber os dividendos, mas deverá entregá-los ao credor, a fim de este os compensar com a
obrigação garantida), uma vez que “a la Sociedad le es indiferente quién sea el que perciba los
benefícios; este hecho, unido a que el contrato de prenda sobre valores se remite em su regulación al
derecho común, cuya normativa tajantemente el carácter anticrético del derecho de prenda, nos lleva a
668
O direito aos dividendos, para além da problemática respeitante ao seu
conteúdo,2452 coloca uma outra questão relativa à possibilidade de o seu exercício ser
afastado – no âmbito das relações externas - pelo contrato de sociedade, quando o seu
titular for, nos termos das relações internas e por força de cláusula expressa contida no
contrato de penhor, o credor pignoratício.2453
Contudo, a principal interrogação relacionada com o direito aos lucros prende-se
com a compatibilização com o regime civil do penhor, especialmente em face do
disposto, em matéria de frutos, no art.º 672.º.2454
concluir que, salvo que el título de prenda disponga otra cosa, será el acreedor pignoraticio el que
ejercite este derecho de cobro, para destinar lo adquirido a la compensación de le deuda”.
2452
Embora seja pacífico que o direito ao lucro tem como conteúdo mínimo o direito a participar nos
lucros obtidos pela sociedade, alguns Autores adoptam uma concepção mais ampla, significando o direito
do sócio à produção dos lucros e à sua distribuição (ou seja, enquanto não for deliberada a distribuição
dos lucros, existe um direito abstracto ao lucro, direito este que se concretiza após a deliberação social no
sentido da distribuição dos mesmos tendo, após essa data, um direito de crédito perante a sociedade).
Outros, porém, sustentam que os lucros não decorrem directamente da deliberação social, mas sim da
gestão social (neste sentido, Francesco Messineo, Il dividendo come fruto dell’azione di società, in
Rivista di diritto commerciale e delle obbligazioni, 1948, I, pág. 107 e segs., afirmando que “la
deliberazione non aggiunge nulla in materia, limitandosi ad una funzione di accertamento e non può
creare una seconda volta utili già esistenti, quando ne delibera la distribuzione, quasi che il dividendo
sorgesse per istantanea e miracolosa maturazione per effetto della deliberazione. L’assemblea ha,
dunque, il compito di convertire gli utili in dividendi, cio è in utili distribuibili”, até porque a deliberação
social faz sempre referência a um exercício social já findo), enquanto Stefano Poli, ob. cit., pág. 495 e
segs., distingue entre o direito abstracto aos proveitos e o direito concreto ao dividendo. O art.º 294.º do
CSC dispõe que, salvo cláusula contratual ou deliberação social aprovada por maioria de três quartos dos
votos correspondentes ao capital social em assembleia geral convocada para o efeito, não poderá deixar
de ser distribuído aos accionistas metade do lucro do exercício que, nos termos da lei, seja distribuível
(admitindo-se que estes desvios ao regime supletivo apenas poderão servir para estabelecer um mínimo
de distribuição dos dividendos superior ao mínimo legal, sendo mais duvidoso se as cláusulas poderão
dispor em sentido contrário ou permitir aos sócios decidir discricionariamente pela distribuição ou não
dos lucros distribuíveis ou até permitir-lhes decidir, por maioria simples, a não distribuição dos lucros ou
a sua distribuição abaixo do mínimo legal), vencendo-se este crédito dos sócios 30 dias após a deliberação
de atribuição dos lucros. Sobre estes aspectos, vide Sofia Maltez, ob. cit., págs. 32 a 35.
2453
Negando a possibilidade de o contrato de sociedade excluir o exercício do direito aos lucros por parte
do credor pignoratício, por entender que o direito aos dividendos pode ser exercido por este último sem
que tal interfira no interesse da sociedade (uma vez que, nos termos do n.º 2 do art.º 328.º do CSC, apenas
se poderá subordinar a constituição de penhor a requisitos relativos a esse interesse social), vide Sofia
Maltez, ob. cit., pág. 35.
2454
Em termos muito aproximados, a mesma problemática surgiu no direito italiano, propendendo a
generalidade da doutrina para qualificar o dividendo como um fruto da acção, por isso sujeito ao regime
geral dos frutos (neste sentido, Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 687, concluindo, em conformidade, que
tais dividendos “sebbene spetti all’oppegnorante, può essere incamerato dal crediore e, in tal caso, è
imputato, prima alle spese e interessi e poi al capitale. Il fruto dell’azione costituita in pegno spetta al
datore (socio); e il creditore pignoratizio lo percepisce, appunto come creditore utendo juribus del sócio,
non come diretto avente diritto”; Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 48, para quem tal conclusão se mantém
mesmo que o penhor se tenha constituído no curso do exercício social, com a única excepção nos casos
em que o penhor se extinga antes do encerramento do exercício social e da distribuição dos lucros; e
Faggella, ob. cit., pág. 117, incluindo no conceito de juros dividendos produzidos pelas acções, dele
excluindo apenas os respectivos prémios). Digna de registo é a posição de Francesco Messineo, Il
dividendo cit., pág. 101 e segs., precisando - não obstante não constar do elenco de frutos constante do
art.º 820.º do CCI - tratar-se de um fruto civil e não natural (pois nesta segunda categoria reentram apenas
aqueles que provenham da coisa, como produto material ou como parte daquela), não sem ignorar
algumas especificidades do dividendo (uma vez que constitui uma simples expectativa e o seu montante é
variável), mas sem que tal obste à qualificação (pois aquela expectativa converte-se em direito após a
aprovação da deliberação social que aprove a sua distribuição e, quanto à outra especificidade, ela será
meramente quantitativa e não qualitativa), concluindo que “il dividendo è frutto civile perché (…) esso si
ritrae dalla cosa, come corrispectivo del godimento che di questa altri há. È (diremo con linguaggio più
rigoroso) reddito della cosa”. Também no direito espanhol se coloca esta questão, assegurando Mejias
669
Gomez, La prenda cit., pág. 638 e segs., que, apesar da diferença conceptual entre fruto e dividendo (e até
a impossibilidade de qualificação deste como rendimento procedente da titularidade da acção, uma vez
que a lei interdita a criação de acções com direito à percepção de frutos), “la ratio legis, es decir,
favorecer al acreedor al asegurarle parcialmente el cobro y al deudor al reducir el importe de la deuda,
es la misma en uno y otro caso” (contra, Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, ob. cit., pág. 674,
recusando, em conformidade, que no plano das relações internas se possa aplicar a convenção anticrética
automática, até porque tal significaria “un cobro antecipado del crédito garantizado por prenda de las
acciones, que únicamente podría exigirselo al accionista quando así se hubiera pactado en el título
constitutivo del gravamen”): assim, o efeito anticrético previsto no art.º 1868.º do CCE e a compensação
que dele resulta não se poderá produzir automaticamente, uma vez que de acordo com o art.º 72.º da LSA
todos os direitos sociais relativos às acções empenhadas – incluindo o direito ao dividendo – cabem ao
sócio, razão pela qual “sólo hace procedente la compensación, cuando por disposición estatutaria o en
base al contrato de prenda se atribuya al credor el derecho a su percepción (de los dividendos)” (mais
concretamente, em caso de silêncio do pacto social a este respeito, o efeito anticrético automático não se
produzirá – a não ser que as partes o tenham previsto no próprio contrato de garantia – podendo o credor
exigir ao proprietário a entrega dos dividendos, mas sem que a sociedade seja obrigada a efectuar tal
entrega ao credor; ao invés, se nos estatutos figurar como legitimado para a cobrança dos dividendos o
credor pignoratício, aplicar-se-á o art.º 1868.º do CCE e, consequentemente, o efeito compensatório
resultante do pacto antricrético surtirá os seus efeitos), embora existindo posições contrárias, seja no
sentido de atribuir sempre o direito aos dividendos ao sócio (fazendo prevalecer a norma societária sobre
a lei civil e recusando que o credor possa exigir da sociedade os dividendos que caibam ao sócio – neste
sentido, Pries Picardo, ob. cit., págs. 712 e 713, afirmando que, mesmo a lei civil, “no otorga al acreedor
un derecho a los intereses que pueda producir la cosa pignorada, lo que impone que si el acreedor
percibe intereses debrá compensarlos con los que se le deben. El precepto está pensando en la prenda
clásica, donde la posesión del objeto pignorado corresponde al acreedor, quien, por tanto, es quien
recibe sus frutos; pero en modo alguno le está dando derecho a ellos. Por ello, en el caso de valores
anotados queda claro que los intereses puede y debe, salvo pacto en contrario, percibirlos el proprietario
de los valores”, Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, pág. 674, afirmando que “sólo el accionista
pignorante estará legitimado para compeler a la sociedad al pago de los dividendos que puedan
acordarse, salvo que otra cosa digan los estatutos” e Diaz Moreno, ob. cit., pág. 416 e segs., pelo menos
para os valores escriturais, advertindo que a norma civil está pensada para os casos em que o credor tenha
a posse dos bens onerados e, quando tal não suceda, a convenção anticrética apenas operará por expressa
vontade das partes – a qual terá unicamente efeitos inter partes - , pelo que “la entidad administradora de
las carteras de valores habrá de abonar los intereses en la cuenta de su titular” e Bautista Pérez, ob. cit.,
pág. 52, excluindo os dividendos do conceito civilístico de frutos, recusando assim o efeito anticrético e
atribuindo a sua titularidade ao sócio), seja conferindo tal direito unicamente ao credor (considerando que
o direito aos dividendos não se inclui entre os atribuídos ao sócio pelo art.º 72.º da LSA e, por isso, o seu
exercício caberá ao credor que, assim, os poderá compensar nos termos previstos na lei civil e, mais
concretamente, no pacto anticrético consagrado no art.º 1868.º do CCE – neste sentido, Ballarín Marcial,
ob. cit., págs. 216 e 217, salvaguardando a possibilidade de as partes, no título constitutivo da garantia,
convencionarem que o credor poderá cobrar os dividendos, mas deverá entregá-los ao sócio). Também a
favor da inclusão dos juros, dos dividendos e dos rendimentos produzidos pelos valores mobiliários no
conceito legal de frutos se mostra Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 293, 294 e 346 (considerando
não haver razões para consentir a compensação anticrética para os juros e não para os frutos, admitindo
até que se possam incluir os gastos relativos à conservação do bem empenhado). Já Veiga Copo, La
prenda de acciones cit., pág. 353 e segs., destaca como a questão se reconduz à admissibilidade de
compensação anticrética, não apenas para os juros, mas igualmente para os frutos, questão à qual o Autor
responde afirmativamente (pois, apesar de diferença conceptual no que concerne à respectiva origem e
quantia, “la ratio legis, es la misma en uno y otro caso: favorecer al acreedor asegurandóle parcialmente
el cobro y al deudor recuciendo el importe de la deuda”, até porque “el dividendo ha de entenderse como
fruto o rendimiento para el socio por la inversión realizada al desembolsar un capital, en la esperanza,
efímera en muchos casos, de recibir ciertos beneficios”, pelo que “Hemos de interpretar el vocablo
intereses, como término empleado en sentido amplio, equivalente a frutos, y dentro de éstos, civiles,
debiendo hacer una interpretación desde la lógica jurídica, abierta y extensiva a otro tipo de
productos”). Finalmente, Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 225 e 226, relativiza esta questão no
âmbito dos valores representados através de anotações em conta, uma vez que nestes a cobrança de juros
e dividendos se fará através das entidades aderentes ao sistema ou encarregues do registo (entidades estas
que se ocupam do exercício do direito económico perante a sociedade emissora).
670
Alguma doutrina sustenta uma interpretação restritiva do art.º 23.º, n.º 4, do
CSC, aplicando o disposto no art.º 672.º ao penhor de participações, considerando os
dividendos como frutos do direito social empenhado, compreendidos, por isso e salvo
convenção em contrário, no âmbito do penhor (e, por consequência, permitindo ao
credor pignoratício afectar esses dividendos à amortização do capital em dívida).2455
Em contraponto, outros Autores procuram conciliar as duas aludidas normas,
sugerindo que o art.º 23.º, n.º 4, do CSC opera nas relações externas (entre o titular do
direito aos lucros e a sociedade), ao passo que o art.º 672.º se aplicaria às relações
internas (entre o titular das acções e o credor pignoratício): ou seja, o empenhador
titular das participações tem legitimidade, perante a sociedade, para cobrar esses juros,
mas o direito a esses dividendos pertence ao credor pignoratício.2456
2455
A aparente atribuição do direito aos lucros, em princípio, ao sócio constituinte da garantia é alvo de
críticas por parte de Fazenda Martins, ob. cit., págs. 115 e 116, atendendo ao carácter inócuo, do ponto de
vista do interesse social, da concessão de tal direito ao credor (por esta mesma razão, em face do direito
constituído, será ilegítima a limitação ou proibição da concessão de tal direito ao credor por simples
convenção com o sócio empenhador). A solução parece ainda mais discutível tendo em conta a presunção
do pacto anticrético consagrada no art.º 672.º, pelo que “não se compreendem as razões para a
divergência entre o Código das Sociedades Comerciais e o Código Civil. As razões para a anticrese
procedem ainda mais no domínio da actividade económica”, interpretando, por isso, restritivamente o
art.º 23.º do CSC no que respeita aos dividendos, considerando tratar-se “de uma norma que trata da
legitimação para cobrança de dividendos face à sociedade (salvo estipulação em contrário, incumbirá ao
sócio), e não de uma norma de atribuição desses dividendos. Nesse caso rege o Código Civil (art.º 672.º),
e os dividendos pertencerão ao credor pignoratício, salvo estipulação em contrário”. Já Francesco
Messineo, Il dividendo cit., pág. 104 e segs., apesar de sujeitar o dividendo ao regime civil dos frutos
naturais, retira daí as seguintes consequências: o dividendo será cobrado por quem se encontrar na posse
da acção momento do respectivo pagamento; o dividendo caberá àquele que possuísse o gozo da acção no
período em que se maturou (caso o gozo se transferisse durante a esse período – v.g., por constituição de
um penhor – o dividendo caberá ao sócio e ao credor pignoratício, em função da duração do respectivo
gozo) ou, mais concretamente, “La maturazione totale del dividendo non può se non coincidire con la
fine dell’esercizio sociale, che ha prodotto il dividendo”, referido a “l’anno sociale, al quale il dividendo
si riferisce”; e, para esse cálculo, não se conta o momento no qual o dividendo é exigível (ou seja, a data
que vai desde o fim do exercício social até à deliberação de distribuição). Também De la Santa García,
ob. cit., pág. 130, sustenta que “cuando la cosa dada en prenda produzca intereses, el acreedor se
quedará con ellos (…) los rendimientos que produzcan las acciones o participaciones pignoradas,
debiéndose entender incluidos dentro del concepto “intereses” también los dividendos a los efectos del
art. 1868 CC, los aplicará el acreedor a la satisfacción de le deuda, bien como intereses, o bien como
capital”. Em termos semelhantes no direito espanhol, Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 346 a
348, destaca como, no plano das relações internas, a legitimidade do credor pignoratício deriva do regime
geral do penhor - e, em especial, da presunção do pacto anticrético (desde que se considerem os
dividendos como frutos) - , enquanto no âmbito das relações externas a solução se impõe uma vez que “si
en las relaciones internas los dividendos corresponden al acreedor pignoraticio parece innecesario que
el dinero pase primero al socio con la obligación de que éste lo entregue al acreedor pignoraticio, sobre
todo cuando para la sociedad sería igualmente sencillo pagar directamente al acreedor pignoraticio”,
até porque a solução contrária seria potencialmente perigosa para o credor, dada a possibilidade de o
empenhante recusar a entrega ao credor do dinheiro cobrado (sugerindo, por isso, uma redução
teleológica da norma do art.º 72.º da LSA que atribui legitimidade ao sócio para o exercício de todos os
direitos sociais): o Autor reconhece que a posição por si defendida poderá ser problemática quando as
partes no contrato de garantia tenham excluído o efeito anticrético, uma vez que, nesse caso, o credor
continuaria legitimado perante a sociedade para a cobrança dos dividendos (embora o Autor relativize a
amplitude do problema, por ser raro que o credor renuncie ao efeito anticrético que a lei estabelece em
seu favor).
2456
É a posição defendida por Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 75 a 78, para quem a titularidade
do direito aos lucros pertence ao credor, por força da presunção do pacto anticrético, aplicável igualmente
ao penhor de acções. Todavia, a legitimidade para reclamar os dividendos junto da sociedade, salvo
convenção contrário, cabe ao titular das acções, tendo o dever de os entregar ao credor pignoratício, ou
seja, “o art.º 23.º, n.º 4 do CSC consagra apenas uma regra de legitimidade e não uma regra de
titularidade, termos em que, por força do art.º 672.º do Cód. Civil, o direito aos dividendos pertencerá ao
671
Uma terceira alternativa consiste em, mantendo a separação entre as relações
internas e externas, atribuir ao titular das participações o direito aos dividendos também
no plano das relações internas, desaplicando o art.º 672.º mesmo no domínio da relação
entre credor e empenhador.2457
Embora reconhecendo que a segunda tese se afigura mais consentânea com a
distinção anteriormente delineada entre as relações internas e externas que brotam do
penhor de participações sociais, aderimos, não obstante, à posição primeiramente
exposta, pois se no plano das relações internas o direito for atribuído ao credor
pignoratício (como decorre do art.º 672.º, mesmo no silêncio das partes), não faz sentido
obrigar estes mesmos sujeitos a, como condição de eficácia no plano das relações
externas e para efeitos do art.º 23.º, n.º 4, do CSC, convencionarem expressamente a
atribuição desse direito ao mesmo credor.
Outro poder inerente à participação social é o de voto2458 nas assembleias gerais
das sociedades cujo exercício, salvo convenção em contrário,2459 cabe ao titular do
direito empenhado (art.ºs 23.º, n.º 4, do CSC e 81.º, n.º 4, do CVM).2460
credor pignoratício apesar de, salvo disposição em sentido contrário, só poder ser exercida perante a
sociedade pelo titular das acções” (posição reforçada pelo facto de a letra do art.º 23.º, n.º 4, do CSC,
falar de “exercício” e não de “titularidade” ou “propriedade”).
2457
É a posição defendida por Sofia Maltez, ob. cit., págs. 38 a 41, para quem, não obstante o dever de
administração e guarda da coisa também existir no penhor de créditos - por força do art.º 683.º - esta
norma não encontra aplicação no penhor de participações, pois a cobrança dos lucros é regulada pelo art.º
23.º, n.º 4, do CSC. Assim sendo, não cabendo ao credor pignoratício cobrar os frutos, não faz sentido
aplicar o art.º 672.º (além de sustentar que esta norma nem sequer regula a titularidade dos frutos, mas
antes o destino a dar a esses mesmos frutos). Para esta Autora, a questão reside em averiguar se os
dividendos recebidos integram o conteúdo do penhor de participações, sendo que a resposta deve ser dada
tendo em conta o conteúdo da participação enquanto objecto do penhor: assim sendo e na medida em que
o direito aos lucros “é um direito abstracto, o qual só se concretiza com a deliberação de distribuição de
dividendos (…) “o penhor de acções não abrange os dividendos entretanto deliberados. No entanto, nada
impede as partes de estipularem no contrato de penhor que, havendo lugar à distribuição de dividendos,
os mesmos ficam abrangidos pelo penhor ou podem ser utilizados para amortizar a dívida ou podem ser
utilizados para adquirir outras acções para reforço da garantia”.
2458
Importa, todavia, não esquecer que poderá haver acções que não conferem direito de voto, as
chamadas acções preferenciais sem voto (cfr. art.ºs 341.º a 344.º).
2459
Fazenda Martins, ob. cit., págs. 114 e 115, critica este preceito, não pela atribuição do direito de voto
ao constituinte da garantia, mas sim pela possibilidade das partes afastarem esta regra por simples
convenção, sustentando que se deveria exigir a intervenção dos estatutos societários para a produção de
semelhante efeito. O citado Autor vislumbra, no actual regime, a tutela do interesse social na
possibilidade de o contrato social, nas acções nominativas, poder limitar o penhor e o usufruto de acções
(art.º 328.º, n.º 2, alínea c), do CSC) e, mais em particular, proibir a atribuição do direito de voto ao
credor pignoratício: se nada ficar estabelecido no pacto social, qualquer sócio pode atribuir ao terceiro
credor, através de simples convenção oponível à sociedade, o aludido direito de voto (por exemplo, no
direito espanhol o afastamento da regra legal que atribui o direito de voto ao sócio terá que constar do
pacto social, sendo a convenção das partes impotente para lograr tal efeito, conforme já se decidiu na
Sentença do Supremo Tribunal de 5/11/1987 – cfr. De la Santa García, ob. cit., pág. 132). Pelo contrário
Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 80 e 81, sai em defesa da solução legal, ao sugerir que a posição
contrária extravasaria da finalidade garantística do penhor, para além de dificultar a compatibilização dos
interesses do sócio e do credor e, por último e no caso das sociedades abertas, poder mesmo traduzir-se
numa “maçã envenenada” para o credor, ao impor-lhe a observância de determinados deveres de
informação, nos termos dos art.ºs 20.º, n.ºs 1, alínea c) e 2 e 16.º do CVM (concluindo, por isso, que, na
prática, raramente as partes fazem uso da faculdade legal de atribuição ao credor do direito de voto).
2460
Em termos análogos, vide o art.º 72.º da LSA espanhola, com a diferença de o regime legal apenas
poder ser afastado por disposição estatutária e não por simples acordo das partes (em alternativa, Veiga
Copo, La prenda de acciones cit., págs. 333 e 334, aponta como alternativa para a concessão de
legitimidade ao credor pignoratício a sua nomeação como representante do sócio empenhante). Em face
deste regime, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 635 e segs., realça que, se os estatutos legitimarem o
credor para o exercício do direito de voto, não será frequente que o título constitutivo da garantia confira
672
Esta solução costuma ser justificada com base na anomalia que constituiria a
atribuição do direito de voto a alguém que não comunga da qualidade de sócio
(provocando uma ingerência de pessoas estranhas na formação da vontade social),
podendo contribuir para a modificação do valor da acção,2461 o que iria contra as regras
gerais do penhor - nos termos das quais o credor apenas pode conservar o bem
empenhado mas não pode dele dispor - 2462 para além do interesse meramente
indirecto2463 e temporário2464 do credor nas deliberações sociais.
Solução diversa logrou consagração, por exemplo, no direito italiano (cfr. art.º
2352.º, n.º 1, do CCI),2465 2466 sendo defendida sobretudo por quem veja na
tal direito ao proprietário das acções (mas, se o fizer, este último terá que se legitimar junto da sociedade);
ao invés, se o título constitutivo atribuir o direito ao credor, mas os estatutos legitimarem o sócio devedor
(ou nada disserem), será necessário que o credor “obtenga la oportuna representación de aquél, al objeto
de que pueda hacer efectivos sus derechos frente a la sociedad, para la assistencia y voto en la Junta
General de socios o accionistas” (acrescentando que esta faculdade de representação deverá ser atribuída
por escrito e com carácter especial para cada assembleia, devendo compreender todas as acções de seja
titular o sócio empenhante). De acordo com Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 328, nota 69, e
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 321 e 322, nota 66, a mesma solução é defendida, apesar do
silêncio da lei, no direito germânico (com o fundamento que o penhor é um direito de conteúdo
patrimonial que, por isso, não deve espraiar-se para outras faculdades de natureza política, admitindo-se
unicamente que o sócio empenhante possa nomear o credor como seu representante), no direito francês
(art.º 163.º da LSA) e inglês. Este último Autor (ob. cit., nota 67), coloca em evidência como tal cláusula
estatutária poderá contrariar o princípio maioritário consagrado na lei, “porque, en definitiva, puede que
no sean los accionistas, reunidos en Junta, los que decidan por mayoría en los asuntos propios de la
competencia de ésta, sino que esa mayoría se forme en virtud de los votos ostentados por personas no
accionistas”
2461
Neste sentido, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 212, alegando que, se assim não fosse, produzir-se-
ia “una disparidad entre el capital social y el ejercicio del derecho de voto”.
2462
Salienta este último aspecto Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 330.
2463
De acordo com Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 323 e 324, nota 70, o interesse do
credor traduz-se no impacto que tais deliberações possam provocar na consistência económica da sua
garantia, sendo indirecto sobretudo para quem identifique o objecto desta com o valor económico que o
mesmo representa (ao ponto de alguns afirmarem mesmo que o objecto do penhor de acções engloba
apenas o conteúdo patrimonial da participação, com exclusão dos demais inerentes à qualidade de sócio).
2464
Nas elucidativas palavras de Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 324 e 325, “La situación
prendaria tiene una vida limitada, resolviéndose en el normal de los casos con el cumplimiento de la
obligación principal (…). El socio una vez extinguida la obligación seguirá siendo socio, con lo que en
principio es lógico atribuirle un interés mayor en ejercitar los derechos”.
2465
Conforme aludido anteriormente, no direito italiano o direito de voto é atribuído, salvo convenção em
contrário, ao credor pignoratício. Contudo, Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 71 e segs.,
relatam que, não obstante ser unânime o entendimento de acordo com o qual tal preceito atribui ao credor
pignoratício um direito autónomo, alguns consideram que, para o exercício de tal direito, será necessária a
nomeação de um representante comum quando o penhor tenha sido constituído a favor de mais de um
credor (cfr. art.º 2347.º do CCI). Segundo Mário Bunonaiuto, ob. cit., pág. 2 e segs., porém, tal preceito
não é aplicável às sociedades em nome colectivo, para as quais vigora a regra inversa: uma vez que o
credor não está sujeito a responsabilidade ilimitada, não deveria ter poder decisório, nem sequer na
assembleia (porém, o mesmo Autor admite que as partes possam atribuir ao credor pignoratício o direito
de voto, pois o comportamento do sócio que justifica a necessidade de responsabilidade ilimitada é aquele
que se traduz em actos de gestão directa, que normalmente envolve relações com terceiros, enquanto a
participação numa deliberação social não assume relevância face a terceiros e, por outro lado, apenas
indirectamente constitui um acto de gestão). No direito português e na falta de qualquer norma específica
a tal respeito no título dedicado a este tipo de sociedades, valerá a regra geral vertida no art.º 23.º, n.º 4,
do CSC, que consente às partes no contrato de penhor convencionar a atribuição de qualquer direito social
ao credor pignoratício.
2466
De acordo com Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 73 e segs., esta norma deixa, todavia,
em aberto, pelo menos, três questões: a determinação dos limites ao exercício do direito de voto por parte
do credor pignoratício (a que se fará referência seguidamente no texto); os mecanismos invocáveis em
caso de violação de tais limites; e o âmbito da convenção em contrário admitida por lei. Quanto aos
673
regulamentação deste penhor uma mera especificação do regime geral da garantia
pignoratícia.2467
Com efeito, o credor poderá ter interesse em exercer o direito de voto, assim
influenciando as deliberações sociais, de modo a preservar a consistência económica da
sua garantia, evitando a aprovação de decisões que possam diminuir ou aniquilar o valor
patrimonial do direito empenhado:2468 todavia, o exercício do direito de voto por parte
limites atinentes ao exercício do direito de voto por parte do credor pignoratício, esses apenas se
reflectem na relação interna de garantia, não contaminando a validade da deliberação, isto é, apenas
originam o pagamento de uma indemnização e a possibilidade de o sócio devedor (mas não outro seu
credor, uma vez que o não cumprimento do dever de custódia é apenas invocável pelo constituinte da
garantia) obter, com fundamento em abuso do bem onerado por parte do credor, o sequestro das acções
em questão (até porque a invalidade da deliberação, ao tornar tais deliberações se instáveis, prejudicaria
os interesses sociais, em razão de uma anomalia atinente à relação interna entre um dos sócios e um
terceiro estranho à sociedade). Mais complexa se afigura a resolução da questão do alcance da convenção
contrária admitida por lei (que não se confunde com o pacto, com efeitos meramente obrigacionais,
destinado a regular as modalidades de exercício do voto da por parte do seu titular, o qual não produz
qualquer efeito relativamente à sociedade emitente), uma vez que se discute se tal cláusula atribui ao
sócio devedor a titularidade do direito de voto ou apenas o legitima para exercer tal direito em nome do
credor. Por seu lado Stefano Poli, ob. cit., pág. 396 e segs., prefere destacar da atribuição legal ao credor
da titularidade do direito de voto decorrem três corolários: antes de mais, o credor vota no próprio
interesse (e não, como sucede na representação, no interesse de outrem); depois, para averiguar da
eventual violação da proibição do sócio votar tendo em vista alcançar uma finalidade que contraste com o
interesse societário, relevará a posição do credor e não do sócio; finalmente, em sede de voto divergente,
mesmo quando seja empenhada apenas parte das acções do sócio devedor não haverá transgressão de tal
proibição, porquanto o credor pignoratício é titular do direito de voto correspondente às acções
empenhadas (só não será assim quando o credor seja, simultaneamente, sócio, pois, nesse caso, a
proibição destina-se a evitar que ele vote num sentido com as suas acções próprias e no sentido contrário
com as acções empenhadas).
2467
Em particular Stefano Poli, ob. cit., pág. 69 e segs., entende que a atribuição ao credor do direito de
voto constitui uma solução de continuidade relativamente ao regime geral do penhor, por ser idónea a
realizar o desapossamento do devedor, com as mesmas finalidades ínsitas nas regras gerais daquela
garantia. O mesmo Autor assegura que, pelo contrário, quando o direito de voto for atribuído ao devedor,
tal significa uma erosão do princípio do desapossamento do devedor - uma vez que este deve possuir os
bens para efeitos de intervenção durante a assembleia geral - a menos que se adira à tese de acordo com a
qual o desapossamento não será condição sine qua non para o surgimento do penhor, e se qualifique tal
fattispecie como anómala (sendo a finalidade publicitária assegurada pela inscrição do penhor no livro de
sócios – o que torna a garantia cognoscível a terceiros – e a privação da disponibilidade do bem
acautelada com a atribuição da posse das acções ao credor sempre que o devedor delas não necessite para
efeitos de legitimação para o exercício do voto e, ainda, pela possibilidade de o credor requerer a venda
antecipada do bem em caso de mau uso do bem por parte do devedor, nos termos do art.º 2795.º do CCI,
designadamente em caso de “significativo deprezzamento, indipendentemente dal fatto che ad esso
corrisponda una riduzione del capitale sociale dell’emittente e dalle modificazioni qualitative del
patrimonio sociale”).
2468
Para além disso e de um ponto vista estritamente prático, quando estejam em causa acções tituladas ao
portador, a atribuição do direito de voto ao credor constitui a melhor solução, na medida em que, desde o
momento em que tiver sido constituída a garantia, é o credor pignoratício que as detém, pelo que o seu
proprietário não poderia intervir na assembleia geral e exercer o direito de voto (no entanto, Gaspare
Spatazza, ob. cit., pág. 677, ressalva que o exercício do direito de voto por parte do credor pignoratício
pressupõe que este esteja legitimado para com a sociedade). Para Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 208 e
segs., esta é mesmo a principal, senão única, razão que pode justificar a atribuição legal do direito de voto
ao credor pignoratício (recusando que na base da opção legislativa esteja o reconhecimento de um
interesse do credor pignoratício na gestão social pois, se assim fosse, não se compreenderia qual a razão
de, a respeito do direito de voto, antepor o interesse do credor ao do sócio empenhante), uma vez que é
“normale il trapasso dei titoli azionari dall’azionista al titolare del diritto reale frazionario”
(contornando ainda a objecção daqueles para quem a atribuição, pelo legislador, do direito de voto é
independente da posse dos títulos – até porque a lei admite convenção em contrário – alegando que a
licitude de tal convenção justifica-se tendo em conta que nem sempre a entrega do título ao credor é
necessária para a constituição do penhor e, por outro lado, porque o sócio poderá ter interesse legítimo na
674
do credor encontra-se sujeito a alguns limites2469 de natureza legal,2470 de matriz
societária2471 ou decorrentes de princípios gerais de direito.2472
conservação da posse do aludido título). Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 330, acrescenta que
esta solução decorre da faculdade atribuída por lei ao credor pignoratício de se apropriar dos rendimentos
do bem onerado, constituindo o direito de voto mais uma utilidade por este produzida.
2469
Relativamente a este aspecto (e depois de salientarem que o direito de voto assiste ao credor
pignoratício nas assembleias gerais ordinárias, como nas extraordinárias e que, por outro lado, tais limites
resultam da possibilidade de o credor, ao exercer o direito de voto poder influenciar de forma notória a
vida social), Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 73 e segs., constatam a existência de posições
diversas, consoante se adira à teoria dominical ou societária: na primeira hipótese, as limitações ao direito
de voto decorrerão das normas gerais do penhor (e, em particular, do dever de conservação do bem
empenhado), enquanto na segunda os únicos limites resultarão dos casos em que o credor vote com o
intuito de prejudicar o sócio ou para prosseguir um interesse conflituante com o do accionista
(constatando que a jurisprudência aceita, pelo menos, os limites decorrentes do odium debitoris e, nalguns
casos, de interesses meramente egoísticos em contraste com os societários, ao passo que alguma doutrina
impõe ulteriores restrições, nomeadamente aceitando que, nas deliberações que extravasem da tutela do
seu interesse, o credor vote de acordo com as instruções dadas pelo sócio ou se abstenha). Em termos
semelhantes, Stefano Poli, ob. cit., págs. 277 a 283. No direito espanhol, Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 325 e segs., depois de esclarecer que o credor deverá exercer o direito de voto de
acordo com os princípios da conservação e da boa administração, sustenta que esse direito não pode
sofrer limitações pelo simples facto de estar em conflito com o interesse do sócio devedor, podendo
apenas ser comprimido em casos de odium debitoris, isto é, quando o exercício do voto seja inspirado por
preocupações de natureza unicamente e egoísta e visando causar danos ao credor (em suma, o credor deve
temperar, no exercício do direito de voto, os seus interesse com os do sócio empenhante – mas não com
os da sociedade – e, caso o não faça, tornar-se-á responsável pelos danos acusados ao titular dos bens
onerados): porém, o Autor admite que as partes, no âmbito das relações internas (e, portanto, sem eficácia
relativamente à sociedade) possam acordar deveres de informação ou de consentimento prévios a favor
daquele que não exerce o direito de voto, nomeadamente quando as matérias objecto de discussão possam
afectar os interesses deste último.
2470
No direito italiano (onde o direito de voto cabe, salvo convenção em contrário, ao credor), Stefano
Poli, ob. cit., pág. 283 e segs., sustenta que tais limites decorrem de imposições de natureza societária e
impõem a compatibilização dos interesses do credor (à conservação do valor patrimonial da participação
social e da produção de lucros da mesma) com os da sociedade (traduzidos, além dos anteriores, também
na manutenção do peso específico da participação no seio da sociedade), concluindo que “il creditore, pur
titolare e legittimato (primario) rispetto al voto, nell’esercitare tale diritto in alcuni casi dovrà, ex lege,
farsi carico anche delle aspettative del socio debitore (e vice versa, qualora voti quest’ultimo sulla base
di convenzione contraria)”. Nesta conformidade e a título meramente indicativo, o Autor distingue as
deliberações com relevância exclusivamente para o credor (nas quais o credor se encontra legitimado a
votar com fundamento exclusivo nos seus próprios interesses, ainda que tal voto seja susceptível de
prejudicar o sócio e a sociedade, como sucede com a deliberação de distribuição de lucros), para o sócio
(como sucede com as deliberações de aumento de capital ou de dissolução da sociedade, casos em que o
credor deverá votar tutelando a posição do sócio, nomeadamente através da consulta prévia deste ou da
ausência da votação – neste último caso para permitir ao sócio impugnar a deliberação) ou para ambos
(hipótese na qual o Autor entende que o credor possa votar tendo em conta o seu interesse, mesmo que
conflituante com o do sócio e da sociedade, uma vez que a lei, ao conceder ao credor o direito de voto, dá
primazia à sua posição): em qualquer dos casos, o credor, ao exercer o direito de voto, apenas pode
prosseguir interesses relativos à conservação do valor patrimonial da participação empenhada e, por outro
lado, deve obediência ao princípio geral da boa fé. Finalmente e como consequência decorrente da
proibição legal do sub-penhor (mais concretamente da inibição do credor conceder a terceiros direitos de
gozo sobre o bem empenhado), ao credor não será lícito – salvo quando se trate de um sindicato entre
credores pignoratícios - participar num sindicato de voto, pelo menos quando se trate de participação
minoritária, porquanto tal adesão “comporterebbe, in sostanza, il trasferimento del potere decisorio in
merito all’esercizio del voto ad un terzo – il titolare della maggioranza delle azioni sindacate”, bem
como não lhe será permitida celebração de acordos bilaterais por força dos quais o credor se obrigue a
votar num determinado sentido acordado com um terceiro que não o sócio devedor, a chamada venda do
voto (contudo, o Autor alerta para a circunstância de a violação desta proibição do sub-penhor constituir
um abuso da coisa empenhada, que legitima o devedor a pedir o sequestro do referido bem, “ma non
incide sulla validità del patto parasociale e delle singole delibere assembleari”).
675
2471
Destes limites resulta que, por vezes, o sócio se encontra inibido do exercício do direito de voto e,
quando tal suceda, a mesma proibição aplicar-se-á ao credor pignoratício. De entre os diversos limites,
Stefano Poli, ob. cit., pág. 298 e segs., destaca a proibição de votar imposta ao sócio em caso de mora no
pagamento dos “decimi” (que, porém, entende não ser extensível ao credor titular do direito de voto, uma
vez que a ratio da proibição é de natureza sancionatória do sócio devedor por incumprimento de uma
obrigação contratual, cujo cumprimento não pode ser exigido ao credor, alegando que o interesse dos
credores sociais à preservação da efectividade do capital social é assegurado através da venda coactiva, ao
passo que a suspensão do voto opera como mecanismo de protecção da sociedade e dos demais sócios, até
porque na solução contrária o prejuízo causado ao credor – terceiro relativamente à obrigação do sócio
para com a sociedade – “appare eccessivo, in quanto verrebbe ad essere mutilata la possibilità di
preservare il valore dell’oggetto della garanzia, non solo in riferimento al diritto di voto”). Para além da
interdição resultante do regime das acções próprias (a que se fará alusão no texto), o Autor menciona
ainda a suspensão por violação do dever de comunicação da existência de participações relevantes que
impende sobre as sociedades cotadas (mais detalhadamente, sobre todos os titulares de participações
numa sociedade cotada superiores a dois por cento e, ainda, sobre as sociedades cotadas relativamente às
participações em sociedades por acções ou de responsabilidade limitadas que excedam dez por cento, que
o Autor entende ser uma obrigação alargável, em caso de atribuição do direito de voto, ao credor -
conjuntamente com o sócio - , mas considera a “irrelevanza rispetto al creditore pignoratizio dell’omessa
comunicazione delle partecipazioni relevanti da parte del socio debitore”), assim como relativamente às
acções adquiridas em violação das obrigações impostas por lei em matéria de ofertas públicas (quer com
base num argumento literal – a lei fala, objectivamente, em suspensão do direito de voto e não,
subjectivamente, por referência ao sujeito titular de tal direito - quer por força da ratio da interdição, que
o Autor identifica na necessidade de assegurar a regularidade do controlo societário e, mais latamente, no
próprio funcionamento do mercado), negando, todavia, que a interdição que impende sobre os
administradores-accionistas nas deliberações sociais que tenham por objecto a sua responsabilidade seja
aplicável ao credor pignoratício titular do direito de voto (cfr. art.º 2373.º do CCI, uma vez que, nesta
hipótese, “chi vota è un soggetto diverso dall’amministratore, che esercita il diritto iure proprio e che ha
un autonomo interesse (di matrice pignoraticia) al controllo dell’attività del gestore, anzi, soprattutto
nell’ipotesi in cui l’amministratore sia, nel contempo, il proprio debitore”).
2472
De entre estes, Stefano Poli, ob. cit., pág. 331 e segs., destaca o conflito de interesses (consagrado, em
matéria societária, no art.º 2373.º do CCI, nos termos do qual as deliberações sociais aprovadas com o
voto determinante dos sócios que tenham, por conta própria ou de terceiros, um interesse conflituante
com o societário são anuláveis), cuja aplicação ao credor pignoratício titular do direito de voto o Autor
justifica com o facto de a atribuição deste direito a esse sujeito ter como finalidade a protecção do seu
direito de garantia, não podendo, por isso, “esercitare il voto per un interesse personale che esule dalle
finalità di garanzia e risulti in contrasto con l’interesse sociale”, o que conduz, indirectamente, a uma
consideração dos interesses da parte não votante da relação pignoratícia, ou seja, “potrà essere annullata
la delibera adottata con il voto del creditore pignoratizio qualora venga dimostrato che tale soggetto, in
concreto, abbia agevolato un interesse personale extra societario del proprio debitore; dall’altro lato si
configurerà una situazione speculare di conflitto di interesse per conto altrui nell’ipotesi in cui il socio
(…) eserciti il voto per il perseguimento di un interesse del creditore diverso da quello tipico di
garanzia”. Por outro lado, o mesmo Autor alude também à imperatividade no que tange à observância dos
princípios da boa fé e da correcção, quer nas relações entre o sócio e o credor (consequência, aliás, do
regime geral do penhor e que, em última instância, impõe a ambas as partes o dever de “improntare ai
canoni di correttezza e buona fede l’esercizio del voto e degli altri diritti sociali che siano loro attribuiti
ex lege o per accordo fra le due parti”), quer entre este último e os demais sócios (embora, em razão da
ausência de qualquer relação contratual entre estes sujeitos, o Autor retenha que o credor poderá sacrificar
os interesses da sociedade ao seu interesse à conservação da garantia do próprio crédito, significando os
princípios anteriormente mencionados como limite ao exercício do direito de voto por parte do credor
quando se verifique “una grave sproporzione tra il pregiudizio dell’interesse sociale ed il vantaggio
concretamente ottenuto dal creditore”). Em termos aproximados, Mejias Gomez, La prenda cit., págs.
215 a 217, realçando que a responsabilidade por eventuais prejuízos decorrentes do exercício do direito
de voto varia consoante o votante tenha sido o sócio (não podendo este esvaziar o conteúdo patrimonial
da garantia do credor, abstendo-se de exercer o direito de voto contra o s interesses deste último e
actuando de acordo com os ditames da boa fé e sem incorrer em abuso do direito, ou seja, a constituição
do penhor implica que “el socio utilice el voto conferido por la Ley, no en su beneficio exclusivo, sino
respetando los interesses del acreedor, si el acuerdo que la junta vaya a decidir puede repercutir sobre
ellos”) ou o credor (caso em que a obrigação de indemnizar o sócio ocorrerá quando aquele actue sem a
diligência de um bom pai de família e em desconformidade com a boa fé e a equidade): em qualquer caso,
676
Quando o direito de voto relativamente às acções empenhadas tenha sido
atribuído ao credor pignoratício,2473 cumpre determinar de que modo se deverá resolver
o conflito de interesses com o sócio,2474 entendendo-se que o credor deverá administrar
as acções como um proprietário diligente, respondendo pela sua conservação e
existência (art.º 671.º, alínea a)), sem prejuízo dos interesses do sócio, excepto quando
estes se oponham directa e frontalmente aos seus.2475
Podemos, por isso, afirmar que, independentemente de quem seja o votante,
deverá exercer tal direito em conformidade com o princípio da boa fé e sem incorrer em
abuso.2476
Quando exista convenção conferindo o direito de votar ao credor pignoratício,
importa determinar de que modo este pode comprovar, perante a assembleia, a
titularidade deste direito, ou seja, se tais acordos são oponíveis à sociedade,2477 o
sempre que o legitimado para o voto pelo título constitutivo da garantia não o seja pelos estatutos da
sociedade, “el otorgante legitimado estatutariamente debe astenerse de asistir a las juntas generales y
conceder a la outra parte representación. Si no actuase de esta forma, su voto sería válido, pero
respondería frente a la otra parte de los daños e perjuicios que sufra por virtud de aquellos acuerdos
para cuya adopción hayan sido decisivos los votos correspondientes a las aciones pignoradas” (por outro
lado, se o representante vota exclusivamente no seu próprio interesse, haverá um desvio de poder que
conduzirá à nulidade da deliberação, se para esta foi decisivo esse voto)
2473
Pelo contrário, quando seja o sócio a exercer tal direito, Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 222,
sustenta que este deverá ter em conta não apenas o seu interesse pessoal, mas igualmente os do credor
pignoratício.
2474
Um outro potencial conflito latente ocorre quando ao credor pignoratício haja sido atribuído o direito
de voto e, posteriormente, as acções em causa sejam alvo de apreensão judicial (por exemplo, por terem
sido alvo de arresto). No direito italiano, tal conflito é solucionado, ora em benefício do credor
pignoratício (argumentando que não tal direito não pode ser atribuído ao sequestrante relativamente às
acções previamente empenhadas, na medida em que esse direito já havia previamente saído da esfera
jurídica do sócio), ora do requerente do sequestro (assegurando que a atribuição do direito de voto ao
credor pignoratício se funda na necessidade deste velar pela conservação do objecto da garantia,
impedindo que o sócio devedor possa diminuir o seu valor: ora, a conservação de tal valor seria
igualmente obtida pelo sequestrador, tendo em conta a natureza da sua função).
2475
No ordenamento italiano, quando seja o credor a exercer o direito de voto (o que, aliás, é a regra),
discute-se quais os limites do exercício deste direito, oscilando as posições entre uma mais restritiva (de
acordo com a qual o limite será a proibição de causar prejuízo ao accionista devedor, isto é, devendo
“ispirarsi all’amministrazione e alla conservazione del valore delle azioni senza coltivare interessi
egoistici e senza perseguire lo scopo di nuocere al debitore” – Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 678) e
outra mais liberal (nos termos do qual o único limite seria o odium debitoris – entendido com um
comportamento não coincidente, nem com o interesse social, nem com o do devedor – assim legitimando
o voto do credor pignoratício em casos em que este seja guiado por motivações relacionadas com o
interesse social). De acordo com Gaspare Spatazza, ult. ob. e loc. cit., e Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág.
21 e segs., o primeiro entendimento colhe a aprovação da maioria da doutrina, tendo em conta que no
exercício do direito de voto deverão ser tomados em consideração apenas os interesses do sócio devedor e
do credor pignoratício (e não também o da sociedade), daí resultando, nas palavras do primeiro Autor
citado que “nel caso che il creditore esercitasse il diritto di voto nelle deliberazioni che per il loro stesso
oggetto non rientrano nell’ambito della tutela accordata al suo particolare interesse senza seguire le
eventuali istruzioni del socio debitore, il creditore potrebbe esse ritenuto unicamente responsabile per il
deterioramento o abuso della cosa (…) e dovrebbe rispondere per i danni cagionati al debitore-
proprietario”.
2476
Salientam a reciprocidade destes deveres Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, ob. cit., pág.673,
sugerindo, por isso, um consenso prévio entre o sócio e o credor (quando tal não suceda, “el legitimado
responderá cuando en el ejercicio del derecho de voto prescinda de los interesses de su contraparte,
causándole por ello un perjuicio. Asimismo, si el voto emitido por el socio contribuye a la formación de
un acuerdo que disminuya la garantía, el acreedor estará facultado para dar por vencida
antecipadamente la obligación principal”).
2477
No direito espanhol, Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 331 e segs., entende que, porquanto a
lei se limita a regular as relações externas e a legitimação perante a sociedade para o exercício do direito
de voto, a titularidade de tal direito será alvo de regulação nas relações internas. Assim sendo, se o título
677
mesmo se dizendo da convenção atribuindo o direito de voto ao devedor quando, por
lei, tal direito caiba ao credor,2478 parecendo que a resposta implicará uma análise da
dimensão da sociedade emitente e da forma de representação das participações.2479
constitutivo da garantia nada disser, duas alternativas se deparam: ou atribuir o direito de voto ao credor
unicamente para as deliberações que afectem directamente os seus interesses - como por exemplo a
distribuição de dividendos (posição que o Autor recusa, tendo em conta a dificuldade em determinar
quando uma deliberação afecta directamente o interesse do credor) – ou, pelo contrário, concluir que
credor e sócio “son cotitulares actuales del derecho de voto, de forma a que aquél de ellos que tenga la
legitimación frente a la sociedad deberá actuar de conformidad con un modelo de un diligente
representante común” (devendo, por isso, votar tendo igualmente em conta o interesse da outra parte na
relação de garantia, sendo até desejável a existência de um acordo quanto ao sentido de voto prévio à
realização da assembleia, ao menos quanto a matéria objecto da deliberação possa afectar directamente o
interesse do credor) e, em caso de o sócio não pretender assistir à reunião magna, deverá conceder a
representação ao credor ou a terceiro (sob pena de, não o fazendo, responder pelos prejuízos causados,
desde que o voto contrário do sócio tivesse sido decisivo para a não aprovação da deliberação). Se, pelo
contrário, o título constitutivo da garantia se pronunciar acerca da titularidade do direito de voto, teremos
ainda que distinguir consoante o atribua ao sócio (caso em que este o poderá exercer livremente, com os
limites decorrentes da boa fé) ou ao credor (caso em que o sócio deverá conceder-lhe poderes de
representação ou votar segundo as instruções que o credor lhe der, excepto se os estatutos indicarem este
último como legitimado perante a sociedade, hipótese que se assemelha em tudo àquela em que o título
constitutivo confira o direito de voto ao sócio).
2478
Para Gaspare Spatazza, ob. cit., págs. 680 e 681, tais convenções deverão ser trazidas ao
conhecimento da sociedade por qualquer meio, podendo o presidente da assembleia geral recusar a
presença de quem não demonstre a titularidade do direito de voto, ainda que tal direito lhe tenha sido
outorgado pela outra parte na relação de garantia (para além disso, o Autor – ob. cit., págs. 689 e 690 -
analisa outra hipótese curiosa, qual seja a de o credor ceder a terceiro, sem o consentimento do sócio, o
crédito garantido por penhor de participações e relativamente às quais dispusesse do direito de voto, a fim
de concluir se o cessionário pode exercer tal direito. Apesar de reconhecer a existência de decisões
admitindo a concessão do direito de voto ao cessionário, desde que ele demonstre a sua qualidade perante
a sociedade, sustenta a posição contrária, precisamente com base na falta de legitimação do cessionário
face à sociedade, porquanto, por força da falta de consentimento do sócio do devedor, o título permanece
sob a sua custódia, sem prejuízo da faculdade que assiste a este último de, querendo, requerer as
correspondentes anotações no título e na sociedade a favor do cessionário, a fim de consentir a este o
exercício do direito de voto). Já Frederico Briolini, ob. cit., págs. 196 e 220 a 221, sustenta que a
inscrição do vínculo no livro de sócios é necessária para a constituição do penhor sobre as acções
tituladas (nos termos do art.º 2024.º do CCI e do art.º 3.º do r.dl n.º 239, de 29/3/1942), mesmo que
integrados num sistema de gestão centralizada, (de acordo com o n.º 3 do art.º 87.º do d.lg n.º 58, de
24/2/1998, por força do qual o registo no depositário, condição necessária e suficiente para a constituição
do penhor, deverá ser comunicado no prazo de três dias à sociedade emitente, a fim de esta proceder às
correspondentes inscrições), mas será igualmente exigível quando a garantia incida sobre instrumentos
desmaterializados, mesmo que integrados num sistema de gestão centralizada (pelo menos na
interpretação proposta por este Autor para o n.º 1 art.º 34.º do d.lg n.º 213, de 24/6/1998 – na parte em
que dispõe que os vínculos sobre este tipo de bens se constitui unicamente através do registo nas contas
detidas pelos intermediários financeiros – segundo a qual a esta inscrição não basta para a constituição do
penhor, sendo ainda condição do nascimento da garantia a inscrição no livro dos sócios, interpretação esta
apoiada pelo facto de o n.º 3 do citado art.º 34.º impor aos intermediários financeiros o dever de
comunicar ao emitente os registos dos vínculos efectuados nas suas próprias contas, comunicação essa
cujo significado e função não se alcançariam caso o vínculo se constituísse unicamente com a inscrição
junto dos intermediários financeiros), por entender que, independentemente da forma de representação da
participação, a inscrição no livro dos sócios constitui um pressuposto essencial para a inserção no âmbito
da vida societária. Para Niccolò A. Bruno, ob. cit., págs. 26 e 27, por seu turno, não será necessária a
comunicação prévia da existência da convenção atributiva do direito de voto ao credor à sociedade, desde
que este demonstre, aquando da realização da assembleia, a sua legitimidade (designadamente exibindo
os títulos que lhe tenham sido entregues aquando da constituição da garantia), enquanto Lorenza Bullo e
Claudia Sandei, ob. cit., pág. 81 e segs., concordando que tal convenção constitui um pacto modificativo
do negócio constitutivo do penhor, sujeita-a aos mesmos requisitos de forma e oponibilidade (entendendo
a doutrina e jurisprudência maioritárias que será necessário, para que este último efeito se produza, a
inscrição da convenção no livro de sócios da sociedade e, conjuntamente, no próprio título ou no negócio
de transferência em garantia). Finalmente Stefano Poli, ob. cit., pág. 381 e segs., sustenta que os
678
Por outro lado, colocam-se ainda dúvidas no que respeita à articulação com a
tendencial proibição dos sindicatos de voto,2480 sendo certo que, conforme exposto
anteriormente, estas convenções possuem meros efeitos obrigacionais entre as partes
subscritoras, não podendo do ser opostas à sociedade.2481
Note-se que o próprio pacto social pode, nos termos do já analisado n.º 2 do art.º
328.º, determinar condicionar o exercício do direito de voto por parte do credor
pignoratício – estabelecendo que o mesmo apenas poderá ser exercido em determinadas
circunstâncias ou relativamente a certas matérias – ou até excluí-lo.2482
Discute-se, contudo, a licitude da convenção das partes no sentido da atribuição
do direito de voto a cada uma delas em função da matéria objecto de deliberação2483 ou
requisitos de validade da convenção (menção no título e no livro de sócios ou, em alternativa, no endosso
em garantia e no mesmo livro), bastarão para tornar a convenção oponível à sociedade emitente, com a
vantagem de eliminar as incertezas acerca da titularidade e da legitimidade para o exercício do direito de
voto (na ausência do cumprimento destes requisitos de validade, o Autor advoga a não transferência da
titularidade do direito de voto para o sócio, mas aceita a existência de um dever de abstenção do exercício
do direito de voto por parte do credor, uma vez que estaríamos perante um negócio de formação
progressiva que impõe às partes um dever de colaboração recíproco até à sua conclusão).
2479
Salienta a importância destes dois factores, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 316 a 319,
destacando como nas pequenas sociedades bastará normalmente ao credor, antes da realização da
assembleia, demonstrar a inscrição do seu direito no registo de acções nominativas (e, caso os títulos
sejam impressos, a mera exibição do mesmo) e, ao invés, nas sociedades de grandes dimensões será
imperioso organizar antecipadamente um sistema de controlo e verificação dos sujeitos legitimados para
participar nas assembleias, podendo os estatutos “condicionar el derecho de asistencia a la junta general
a la legitimación antecipada del accionista, exigiendo a los socios cumplimentar ciertos requisitos”
(como, por exemplo, estabelecendo o prazo e o modo de demonstrar a sua legitimidade e condicionando o
acesso à reunião magna à posse de um cartão de assistência), embora tais requisitos não possam impedir o
acesso dos titulares de acções nominativas inscritas no registo respectivo até 5 dias antes da data da
realização da assembleia ou de acções ao portador depositadas com a mesma antecedência. Para Fazenda
Martins, ob. cit., págs. 114 e 115, tais convenções são, por si só, oponíveis à sociedade. A nosso ver,
demonstração da titularidade do direito de voto, no nosso ordenamento, dependerá da forma de
representação das participações sociais: caso sejam tituladas, será necessário que o credor, uma vez
intimado, apresente o respectivo título e/ou demonstre a sua inscrição no registo da sociedade emitente;
caso sejam escriturais através da exibição do competente certificado de legitimação.
2480
A este respeito Stefano Poli, ob. cit., pág. 365 e segs., sustenta que a possibilidade de atribuição do
direito de voto ao sócio do devedor não pode transformar-se numa porta aberta para contornar a proibição
dos sindicatos de voto, admitindo apenas uma pacto obrigacional destinado a regular as modalidades de
exercício do voto por parte do seu titular, alertando, porém, que esta convenção “non produrrà alcun
effetto immediato nei confronti dell’emittente dato che (…) l’accordo non incide né sulla titolarità, nè
sulla legittimazione all’esercizio del diritto di voto”.
2481
De acordo com Stefano Poli, ob. cit., pág. 365 e segs., reforça que, mesmo a convenção destinada a
transferir para o sócio o direito de voto não se encontra sujeita ao cumprimento, para com a sociedade,
dos ónus publicitários impostos aos acordos para-sociais, uma vez que, por força do carácter temporário
da relação pignoratícia, esta não é idónea a influenciar de modo estável o controlo societário (até porque o
pacto “non aggiunge alcunché al numero dei voti posseduti dalle parti, ma si limita a regolamentare la
titolarità o le modalità di esercizio dei voti incorporati dalle azioni vincolate all’interno del binomio
socio deintore- creditore pignoratizio, di cui non viene alterata alterata l’incidenza complessiva
all’interno dell’assemblea”)
2482
Neste sentido, Sofia Maltez, ob. cit., pág. 43 e Fazenda Martins, ob. cit., pág. 115.
2483
Assim, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 212 e Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 81, nota 135.
No direito italiano, Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 217, aceita que o pacto social contenha uma cláusula
análoga, embora Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 83 e segs., noticie a existência de posições
favoráveis (fundadas na inexistência de um limite legal expresso, argumentando que tais cláusulas
poderão operar uma repartição do direito de voto em função da matéria ou da natureza extraordinária da
deliberação social) e desfavoráveis (considerando que o direito de voto só poderá ser transferido para o
sócio na sua totalidade, fundando esta posição no carácter indivisível do direito de voto e das acções em
geral e, por outro lado, com o ónus, que a posição contrária faria recair sobre os órgãos da sociedade
emitente, de verificar qual o sujeito legitimado para intervir na assembleia e votar, circunstância que
679
da sua natureza ordinária ou extraordinária,2484 embora seja de excluir a concessão do
direito de voto ao credor sobre determinadas acções empenhadas, com a manutenção do
mesmo direito por parte do sócio relativamente a outras tantas.2485
aumentaria os riscos de deliberações inválidas: nesta conformidade, tais pactos seriam nulos, cabendo o
direito de voto ao credor, a menos que tal convenção se pudesse converter num acordo com efeitos
unicamente obrigacional), embora ressalvando a unanimidade quanto à inadmissibilidade de uma
convenção destinada a atribuir o direito de voto sobre as mesmas matérias ao credor e ao sócio.
2484
Não distinguindo a lei, parece que a atribuição do direito de voto ao sócio é válida, não apenas para as
deliberações ordinárias, como também para as extraordinárias, até porque não faria sentido limitar a
interferência de um terceiro – o credor pignoratício – na actividade corrente da sociedade e, pelo
contrário, permitir a sua intervenção quanto estivessem em causa assuntos mais melindrosos (no direito
italiano – no qual a regra é, recorde-se, a atribuição do direito de voto ao credor – Gaspare Spatazza, ob.
cit., pág. 677, entende igualmente que, não distinguindo a lei, aquela concessão é válida para qualquer
deliberação social). O mesmo Autor (ob. cit., pág. 682) considera mesmo inválidas as convenções
atribuindo o direito de voto ao credor pignoratício apenas nas assembleias extraordinárias, cabendo ao
sócio votar nas ordinárias (bem como, em termos mais latos, que concedam tal direito em função da
matéria discutida nos convénios sociais, sem distinguir entre os ordinários e extraordinários), entendendo
que a lei estabelece que seja um único o sujeito como legitimado perante a sociedade para votar nas
assembleias gerais: comungam deste entendimento Stefano Poli, ob. cit., pág. 393 e segs. (afirmando que
a repartição do direito de voto entre o credor e o devedor em razão das matérias discutidas nas reuniões
magnas redundaria numa violação dos princípios da indivisibilidade e da igualdade das acções (acerca da
eventual violação deste princípio, remetemos para o que se dirá seguidamente no texto), de modo que as
sociedades “debbono subir ele decisioni delle parti del rapporto pignoratizio in merito alla spetanza del
diritto di voto, ma non le ulteriori deviazioni funzionali ed organizzative che conseguirebbero ad una
ripaartizione, ratione materie, del voto fra socio debitore ed creditore”: tal tipo de cláusula é, por isso,
qualificada como nula, cabendo o direito de voto ao sujeito legalmente determinado), Salinas Adelantado,
El régimen cit., págs. 333 e 334 (recusando a validade de uma cláusula inserida no pacto social atribuindo
a legitimidade aos diversos sujeitos em função da natureza ordinária ou extraordinária – pois esta
distinção assenta unicamente no critério temporal da sua celebração – das assembleias, concluindo que “el
ejercicio del derecho de voto frente a la sociedad deberá realizarse por una sola persona”), Veiga Copo,
La prenda de acciones cit., págs. 327 e 328 (alegando que, no direito espanhol, o critério distintivo entre
assembleias gerais ordinárias ou extraordinárias é baseado, não nos assuntos a debater, mas num critério
puramente temporal: todavia, o Autor admite a atribuição diferenciada, tendo em conta o objecto das
deliberações, da legitimidade para o exercício do direito de voto a cada uma das partes na relação de
garantia ou, em alternativa, a imposição de um dever de consulta à parte não votante) e De la Santa
García, ob. cit., págs. 133 e 134 (uma vez que “lo que sí es posible es que ocurra es que además de las
materias reservadas a la Junta General ordinaria puedan en ésta incluirse otros asuntos de diversa
índole, lo cual provocaría el conflicto de quién debría asistir y, en su caso, si es posible la asistencia de
los dos”, pelo que “no parece muy recomendable, ni siquiera jurídicamente posible, establecer en los
Estatutos sociales un uso compartido del derecho de voto, sino que se deberá estipular únicamente a
quién corresponde (…). Sí existirá, en el ámbito privado, la posibilidad de que las partes pacten cómo se
deberá ejercer el derecho de voto, bien siempre en la persona del socio, que en ciertas materias deberá
consultar al acreedor para saber su parecer o incluso para que le manifeste en qué sentido debe ejercer
el voto, bien a través de la concesión de la representación en la Junta al acreedor o bien mediante la
concesión de la representación a un tercero designado de común acuerdo, para que vote de conformidad
con las instrucciones que se le den o según su libre aldebrío si las partes confian en su buen criterio que
defenderá los intereses de ambos con equidad. En todos estos casos, resulta obvio que frente a la
sociedad el único al que se le reconoce el derecho de voto es al propietario de las acciones”). Contra,
admitindo a validade de tais cláusulas de repartição do direito de voto em função do objecto da
deliberação Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 26, Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 217 e segs. (este Autor
admite a validade de cláusulas, não só quando acordadas pelas partes, mas igualmente que semelhantes
soluções – e ainda outras, como a suspensão do direito de voto ou a subordinação do exercício do direito
de voto, por parte do sócio, ao consentimento prévio do credor pignoratício - possam ser impostas pelo
pacto social, argumentando, por um lado, que o mesmo resultado poderá ser alcançado pela simples
atribuição de um mandato a votar ao sujeito não titular do direito ao voto e, por outro, atenta a presença
no penhor de participações sociais “di interessi del tutto peculiari, i quali meritano di poter trovare libera
regolamentazione convenzionale”) e Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 212 (admitindo a repartição da
legitimidade entre sócio e credor em função do carácter ordinário ou extraordinário da reunião magna
680
Ainda na hipótese de o votante ser o credor pignoratício, mas o sócio
empenhante conservar outras acções não oneradas, cumpre indagar até que ponto não
estará em causa o princípio da unidade de voto (cfr. n.º 1 do art.º 385.º do CSC).2486
Em razão dos n.ºs 2 e 3 desta mesma norma, conclui-se que ao credor
pignoratício é legítimo votar em sentido diverso do empenhante, significando o
princípio da unidade de voto, neste contexto, que lhe é vedado votar de modo
contraditório no que concerne às acções que haja recebido em garantia.2487 2488
Por último, cumpre indagar qual a consequência do exercício do direito de voto
por parte de quem não esteja habilitado a fazê-lo, seja o exercício pelo sócio quando ao
credor tenha sido concedida tal faculdade,2489 seja o voto do credor na hipótese
inversa.2490
e/ou da matéria objecto de discussão, desde que, em qualquer caso, a pessoa legitimidade perante a
sociedade para cada assembleia geral seja apenas uma)
2485
Nesta conformidade, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 81, nota 135, concluindo que se tal fosse
admissível, permitir-se-ia uma duplicação do direito de participação numa assembleia geral, com eventual
violação do princípio da indivisibilidade da participação (sobre este princípio, vide infra no texto).
2486
Nos termos deste princípio, o accionista que possua mais de um voto não pode fraccionar os seus
votos para votar em sentido contrário, bem como não pode deixar de votar com todas as acções providas
do direito de voto.
2487
Neste sentido, Sofia Maltez, ob. cit., págs. 43 e 44 e Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 82
(argumentando que o credor pignoratício é titular de um interesse autónomo, potencialmente distinto do
titular das acções, para além de não actuar na qualidade de representante deste). O n.º 2 do art.º 385.º
dispõe que “um accionista que represente outros pode votar em sentidos diversos com as suas acções e
as dos representados e bem assim deixar de votar com as suas acções ou com as dos representados”,
acrescentando o n.º 3 que este n.º 2 se aplica ao exercício do direito de voto por parte do credor
pignoratício.
2488
Para além disso e encontrando-se o accionista empenhante em mora na realização da obrigação de
entrada e, por isso, impedido de votar (art.º 384.º, n.º 4), tal impedimento não é extensível ao credor
pignoratício, pois este impedimento visa compelir o sócio faltoso ao cumprimento, não tendo, assim,
razão de ser a sua aplicação ao credor (Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 81 e 82).
2489
No direito italiano, onde a questão apenas se coloca quando o voto em questão seja decisivo para a
formação da maioria requerida para a aprovação da deliberação, três são as posições principais que se
contrapõem: uma delas, sugere que tal deliberação é inexistente, argumentando ser esse o vício em que
incorrem as deliberações sociais tomadas com o voto determinante de pessoa relativamente à qual tal
direito social se encontre suprimido ou de pessoa não mandatada pelo titular do direito de voto (e, em
consequência, podendo ser arguida por qualquer pessoa); outra posição, advoga que a deliberação será
simplesmente anulável (discutindo-se se a legitimidade para propor a respectiva acção caberá
exclusivamente ao credor ou também ao sócio), pois a lei concede o direito de voto ao credor
pignoratício, mas admite que as partes – sócio devedor e credor pignoratício – , mas não a sociedade,
disponham de modo diverso, pelo que cabe ao credor titular do direito de voto “usurpado” pelo sócio
decidir se pretende pedir a anulação da decisão ou ratificá-la; uma terceira, minoritária, opta pela ausência
de consequências a nível societário (a este propósito, consultar Gaspare Spatazza, ob. cit., págs. 679 e 680
e Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., págs. 85 a 89 – estas últimas Autoras propendem para a
solução da anulabilidade, atento o disposto no art.º 2377.º do CCI – e Stefano Poli, ob. cit., págs. 409 a
419). Todavia, Stefano Poli, ob. cit., pág. 400 e segs., distingue os efeitos inter partes da violação das
regras acordadas relativamente ao exercício do direito de voto por parte do credor, nomeadamente os
decorrentes do facto de este não poder, ao exercer aquele direito, extravasar da prossecução de interesses
relacionados com a consistência patrimonial da sua garantia (caso em que o Autor advoga a existência de
consequências unicamente no âmbito de relação pignoratícia – como sejam a obrigação de ressarcimento
dos danos ou a faculdade do sócio requerer o sequestro das acções empenhadas alegando abuso por parte
do credor - mas sem afectar a validade da deliberação social, pois esta situação “non coinvolge interessi
di matrice associativa, bensì esclusivamente l’interesse individuale del socio e quello personale del
proprio debitore”, até porque a contaminação da denominação social “pregiudicherebbe gli interessi di
matrice societaria, in quanto comporterebbe una instabilità delle delibere assembleari per una anomalia
ed un conflitto che attengono ad un rapporto rispetto al quale la società ed i membri della compagine
sociale diversi dal debitore sono estranei”), das consequências da falta de titularidade do direito por parte
do sujeito votante (aderindo à tese da inexistência da deliberação para a tomada da qual tenha sido
681
Intimamente relacionado com o direito de voto encontra-se um feixe de outros
direitos, chamados direitos administrativos menores,2491 sendo que o carácter
decisivo tal voto – por ser esta a sanção aplicável ao exercício do direito de voto por parte de quem não
possua a respectiva titularidade, excepto de tal voto não tiver sido determinante, caso em que restará ao
sujeito lesado recorrer aos meios previstos no regime geral do penhor - e aplicando o regime das
deliberações nulas, mas não sem reconhecer que, em caso de exercício do direito de voto por parte do
sócio não titular de tal direito não prejudica o interesse da sociedade, o único sujeito com interesse em
agir e legitimidade para impugnar a deliberação será o credor), da violação das regras societárias relativas
ao exercício do direito de voto, designadamente das normas da boa fé e do conflito de interesses ou pelo
exercício do direito de voto quando o mesmo se encontre suspenso e tal suspensão seja extensível ao
credor votante (hipótese na qual o Autor se inclina, de iure condito, para a sanção da anulabilidade,
embora constatando que tal solução não é isenta de críticas, na medida em que “non appare del tutto
coerente con la gravità dei vizi ed idonea a garantire un’adeguata tutela degli interessi coinvolti”).
Questão conexa é a de saber se quais as consequências do exercício abusivo, por parte do titular do direito
de voto, sugerindo Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 24 e segs. e Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 223, que
tal comportamento apenas produzirá efeitos nas relações internas pignoratícias – podendo legitimar um
pedido de venda antecipada do bem empenhado e/ou de indemnização de danos - , negando o primeiro
que tal situação se reflicta na validade da deliberação. Já no direito espanhol, onde vigora uma regra
semelhante à consagrada na legislação lusa, Mejias Gomez, Prenda de participaciones sociales cit., pág.
636, sustenta que quando seja o sócio a exercer o direito de voto, haverá responsabilidade para com o
credor quando se produzam prejuízos em consequência do exercício do direito de voto (“porque el deudor
no debe vaciar de contenido el valor en prenda ni disminuir su función de garantía”); ao invés, quando o
votante seja o credor e do exercício desse voto decorram prejuízos para o proprietário, a responsabilidade
fundar-se-á no dever de conservação do bem empenhado que impende sobre qualquer credor pignoratício.
2490
A nosso ver, uma hipótese será a de o credor exercer o direito de voto quando o penhor for
constituído em violação das proibições estatutárias (caso em que a deliberação em que tenha votado o
credor pignoratício será anulável – cfr. art.º 58.º, n.º 1, alínea a), do CSC). Outra, será a de o credor votar,
não ofendendo o penhor qualquer disposição legal ou estatutária, mas quando, nos termos acordados entre
as partes no contrato de garantia, não lhe assista o direito de voto ou, assistindo-lhe tal direito, não tenha
demonstrado tal titularidade perante a sociedade. Em qualquer destas duas últimas hipóteses, o voto por
parte do sujeito não legitimado será raro, uma vez que dependerá da incúria ou inépcia dos órgãos sociais
na verificação (através da exibição das próprias participações, da consulta do registo ou dos certificados
de legitimação, consoante a forma de representação da participação) da legitimidade para o exercício de
tal direito. Em qualquer dos casos e sempre que o credor, não legitimado, exerça o direito de voto, a
sanção será a anulabilidade (cfr. art.º 58.º, n.º 1, alínea a, do CSC) quando a presença dessa pessoa foi
determinante para a formação do quórum constitutivo (art.º 383.º, n.º 2, do CSC) e, mesmo quando tal não
suceda, a mesma sanção é defensável, pelo menos quando o voto do impedido tenha sido decisivo para a
aprovação da deliberação (Coutinho de Abreu (coord.) Código das Sociedades Comerciais em
Comentário, Vol. I, Almedina, 2010, pág. 674, a respeito da hipótese inversa – impedimento do exercício
do direito de voto por parte de quem se encontrava legitimado para o efeito -, mas com conclusões
transponíveis, por identidade de razão, para a hipótese em apreço, vai mais longe e sustenta a
anulabilidade, mesmo quando o voto daquele que poderia votar – neste caso, do impedido - seja
irrelevante para a decisão tomada, argumentando que a finalidade da norma, assegurar a o exercício dos
direitos sociais por parte de quem se encontre legitimado para o efeito – e só por esses, acrescentamos nós
– reclama tal solução). No sentido da anulabilidade de uma deliberação social tomada com a participação
de um sujeito que não dispunha de poderes para o efeito (in casu, excedendo os seus poderes enquanto
representante comum) – e, aparentemente, desconsiderando a questão da relevância do voto do mesmo
para a aprovação da dita deliberação – vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Outubro de 2008, in
www.dgsi.pt; pelo contrário, sustentando que a participação indevida ou impedimento ilegítimo da
participação numa assembleia geral apenas gera a invalidade da deliberação respectiva quando os votos
daquele que participou sem o poder fazer ou do que poderia votar e não foi autorizado, fossem decisivos
para o sentido da votação (apelando ao chamado teste de resistência), vide Pinto Furtado, Deliberações de
sociedade comerciais, Almedina, 2005, págs. 641 e 642.
2491
Como já foi mencionado, o ordenamento italiano confere tais direitos, conjuntamente, ao sócio
devedor e ao credor pignoratício. Antes da consagração desta solução legal, Niccolò A. Bruno, ob. cit.,
pág. 37 e segs., argumentando precisamente com o carácter instrumental face ao direito de voto,
sustentava a atribuição deste direito ao titular do direito de voto, embora reconhecesse haver posições
contrárias, que repousavam na natureza excepcional da concessão do direito ao voto ao credor,
permanecendo todos os demais direitos na titularidade do sócio (não esquecer que, no direito italiano, o
682
instrumental face ao direito de voto pode condicionar a sua atribuição a algum dos
sujeitos da relação pignoratícia: todavia, tal não significa necessariamente que a parte
não titular do direito de voto não possa também exercer alguns desses direitos
sociais.2492
De acordo com a regra plasmada no art.º 23.º, n.º 4, do CSC, tais direitos
caberão, salvo convenção em contrário, ao sócio empenhante (ainda que não titular do
direito de voto), mesmo que tal princípio possa sofrer alguns desvios em face de alguns
preceitos que especificamente regulamentam o exercício de alguns desses direitos
Desde logo e a propósito do direito à informação2493 sobre a vida da sociedade,
afirma o art.º 293.º do CSC2494 que esta última prerrogativa assiste também ao credor
pignoratício quando a este compita, por força de lei ou de convenção, votar,2495
direito de voto é da titularidade do credor, salvo convenção em contrário). Já Gian Carlo Rivolta, ob. cit.,
pág. 226, defendia que, mesmo quando o direito de voto fosse concedido ao credor, o sócio apenas
perderia o direito de exercer “quelle facoltà cosi intimamente collegate con il voto da non avere un ragion
d’essere autonoma, ma da risultare funzionalmente perordinate all’esercizio di esso”. Hoje em dia tal
problema encontra-se solucionado pelo n.º 6 do art.º 2352.º do CCI que confere tais direitos a ambos. No
direito espanhol Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 342 e 343, considera que estes direitos caberão
ao sujeito titular do direito de voto (por serem instrumentais relativamente a este) e como, tendo em conta
a redacção lata do art.º 72.º da LSA – que atribui ao sócio o exercício dos direitos sociais - , este último é
normalmente concedido ao sócio, a esta competirão também aquelas prerrogativas acessórias.
2492
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 335 a 337, sustenta, a propósito do direito a impugnar
as deliberações sociais, que a existência de interesses específicos do sujeito não titular do direito de voto
pode consentir a atribuição ao mesmo do direito de impugnar aquelas decisões (mais especificamente, “el
socio tiene un razonable interés de tutelar la legitimidad de las deliberaciones y acuerdos asamblarios
aun cuando el ejercicio del derecho de voto sea conferido a otra parte. Unos intereses que no pueden ser
paralizados por la apodíctica afirmación de que voto e impugnación son atribuidos necesariamente al
mismo sujeto (…) una misma acción pueda atribuir el poder de impugnación tanto al titular del derecho
limitado como al socio, en cuanto que ambos son portadores de intereses autónomos”): porém, o mesmo
Autor aceita que, relativamente à generalidade dos demais direitos sociais (nos quais inclui,
exemplificativamente, o direito de convocação das assembleias gerais, de solicitar judicialmente a
nomeação de um auditor de contas ou requerer aos administradores a presença de um notário na
assembleia geral), o seu exercício corresponda ao sujeito legitimado para exercer o direito de voto.
2493
Normalmente o conteúdo do direito à informação costuma dividir-se em quatro grandes categorias:
um direito mínimo à informação (art.º 288.º), a informações preparatórias da assembleia geral (art.º 289.º,
n.ºs 1 e 2), à informação na própria assembleia geral (art.º 290.º, n.º 1) e o direito colectivo à informação
(art.º 291.º) – Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 84. Em termos paralelos no direito espanhol, Veiga
Copo, La prenda de acciones cit., págs. 344 e 345, distingue entre o direito de informação em sentido
estrito (entendido como direito a obter todos os dados e esclarecimentos para o exercício adequado do
direito de voto) e em sentido lato (que é independente do exercício do direito de voto).
2494
Defende a aplicação por analogia a outro tipo de sociedades do princípio vertido neste art.º 293.º,
Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial cit., Vol. II, págs. 349 e 350.
2495
Tendo em conta que a lei (cfr. art.º 23.º, n.º 4, do CSC) não concede o voto ao credor pignoratício, o
exercício autónomo do direito à informação só lhe pode advir de convenção celebrada com o sócio
empenhante. Para Sofia Maltez, ob. cit., pág. 44, ainda que o direito de voto tenha sido outorgado ao
credor pignoratício – e este disponha, por isso, do direito à informação – nem por isso o sócio
empenhador ficará despojado de idêntica faculdade (no mesmo sentido, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit.,
pág. 84, argumentando que, tendo em conta o carácter tendencialmente temporário da relação
pignoratícia, o sócio empenhante pode retomar, a qualquer momento, o exercício do direito de voto, não
se justificando, assim, a perda do direito à informação na vigência daquela relação). No direito italiano, o
n.º 6 do art.º 2352.º do CCI atribui este direito a ambos os titulares da relação pignoratícia (mesmo antes
da entrada em vigor dessa norma, Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 223 e segs., propunha a mesma
solução, admitindo que qualquer deles pudesse exercer autonomamente tal direito), enquanto no direito
espanhol a regra geral do art.º 72.º, n.º 1, da LSA faz com que este direito assista (tal como todos os
inerentes às acções), salvo disposição estatutária em contrário, ao sócio empenhante. Em face do direito
espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 219, destaca como, ainda que este direito compita ao sócio
(como normalmente sucederá, pois acompanhará a sorte do direito de voto), tal “no debe llevar a que se
excluya a la otra parte de los demás derechos politicos”, devendo, por isso e no que especificamente
683
enquanto o direito de participar nas deliberações sociais é inerente à titularidade do
direito de voto (cfr. art.º 379.º, n.º 1, do CSC),2496 pelo que acompanhará a sorte
deste.2497
Já se apresenta mais nebulosa a titularidade do direito de impugnar as
deliberações sociais,2498 de requerer a convocação das reuniões magnas2499 e de
respeita à informação “proporcionar a la otra parte, si así lo requiere, los informes, aclaracionesy
documentos precisos acerca de los asuntos comprendidos en el orden del día de la Junta”. Pelo contrário
Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 345 e segs., atribui este direito, conjuntamente, ao sócio e ao
credor pignoratício, por considerar “este derecho es algo más que un accesorio del de voto, cobrando
fuerza por sí mismo, complementando a aquél, y sin que ninguna de ambas partes pueda verse privada de
su derecho a conocer la marcha de la sociedad” (contudo, o Autor reconhece que, em princípio, o
exercício deste direito caberá à parte a quem compita exercer o direito de voto – sem prejuízo de uma
cláusula estatutária poder atribuir legitimidade para o exercício do direito de informação ao sujeito não
titular do direito de voto -, mas sem que isso impeça a outra parte de obter tais informações).
2496
Ao ponto de o normalmente apelidado direito de voto englobar, no entender de alguns (vide Sofia
Maltez, ult. ob. e loc. cit.,) três dimensões: a presença na assembleia, o poder de intervir na discussão e o
direito de voto propriamente dito. Por isso mesmo, Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 682, se mostra
desfavorável a uma convenção que outorgue a um dos sujeitos o direito de participar (e intervir) na
assembleia e ao outro o poder de votar. Pelo contrário, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 314,
declara que “es posible que se dé el derecho de asistencia sin su homónimo de voto, en la que los
accionistas pueden asistir pero no votar, por ejemplo al no cumplir las formalidades que fijan los
estatutos” (como sucederá quando, até 5 dias anteriores à data da realização da assembleia, não tenham
depositado as acções ao portador ou não tenham inscrito no livro da sociedade as suas acções
nominativas), considerando, ao invés, que “el derecho de asistencia implica, en suma, el derecho a
intervenir en los debates. No cabe una asistencia de mera presencia”.
2497
Para Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 79, este direito também se encontra abrangido pelo art.º
23.º do CSC, pelo que a regra será a do ser exercício pelo sócio empenhante.
2498
Embora importe distinguir consoante tais deliberações sejam nulas ou inexistentes (caso em que o
credor pignoratício, ainda que não titular do direito de voto, terá o poder de as impugnar – no mesmo
sentido para o direito italiano, Niccolò A. Bruno, ob. cit., págs. 33 e 34, Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág.
228 e Stefano Poli, ob. cit., pág. 445 e, para o direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 219)
ou meramente anuláveis (circunstancialismo em que apenas o titular do direito de voto estará legitimado
para contestar tais decisões, isto apesar de o n.º 1 do art.º 59.º do CSC fazer referência a “sócio que não
tenha votado no sentido que fez vencimento”, tal expressão deve ser interpretada de modo a abarcar
também o credor pignoratício, quando lhe tenha sido atribuído o direito de voto – relativamente a este
último aspecto, cfr. Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 92, nota 162 e Stefano Poli, ob. cit., pág. 455).
No direito italiano Gaspare Spatazza, ob. cit., págs. 683 a 685, Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 28 e segs.
e Stefano Poli, ob. cit., pág. 442 e segs., dão conta da existência de três entendimentos contrapostos, um
dos quais propondo que, mesmo quando o direito de voto seja atribuído ao credor pignoratício, o direito
de impugnar as deliberações sociais caiba exclusivamente ao sócio (fundamentando a sua posição no
carácter excepcional da atribuição legal do direito de voto ao credor pignoratício, daí retirando a
conclusão que nenhum outro direito lhe pode ser atribuído); um outro, baseado no carácter instrumental
do direito de impugnação face ao direito de voto, considerando que a legitimidade para contestar a
validade das decisões caberá ao titular do direito de voto (tese defendida por Stefano Poli, ob. cit., pág.
446 e segs., alegando que a função da impugnação é a de exercer um “controlo sulla legittimità formale e
sostanziale del procedimento di formazione della volontà assembleare (…) dell’organizzazione societaria
e non va piegata ad esigenze del rapporto pignoratizio”, considerando que a atribuição deste poder a
ambas as partes da relação pignoratícia resultaria numa violação dos princípios da indivisibilidade e da
igualdade das acções ao duplicar um direito social, atribuindo dois direitos de impugnação a uma mesma
acção. Para além disso, o mesmo Autor defende a aplicação da mesma solução, em razão da conexão dos
mesmos com o direito de voto, a outros direitos administrativos, como o de convocação e intervenção na
assembleia); um terceiro, por fim, reconhecendo legitimidade a ambos os sujeitos (naturalmente se o
direito de voto couber ao credor pignoratício), pois, como afirma Spatazza “data la temporaneità della
funzione di garanzia, il creditore pignoratizio potrebbe non impugnare deliberazioni che invece
potrebbero risultare pregiudiziali per la posizione del socio. In questo caso, è stato ritenuto, el socio
sarebbe legitimato ad impugnare la deliberazione”: foi este o entendimento que prevaleceu, na medida
em que o n.º 6 do art.º 2352.º do CCI estabelece, em regra, a atribuição dos direitos administrativos
diversos do voto – como é o caso do direito de impugnar as deliberações sociais – a ambos, ao sócio
684
denunciar judicialmente (nomeadamente através da propositura de acções
indemnizatórias) as infracções graves verificadas na gestão da sociedade:2500 ao menos
devedor e ao credor pignoratício (já Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 228 e segs., defendia a atribuição
conjunta desse direito quando ao credor pignoratício tivesse sido atribuído o direito de voto – tendo em
conta o carácter acessório do direito de impugnação face a este último, embora o credor apenas o pudesse
fazer caso não tenha participado na votação ou tenha votado contra - , e restringindo-o ao sócio quando
seja ele o titular do direito de voto). No direito espanhol Mejias Gomez, La prenda de participaciones cit.,
pág. 637, atribui legitimidade a ambos os sujeitos para impugnar as deliberações nulas (pois o art.º 117.º
da LSA confere tal poder a qualquer terceiro que possua um interesse legítimo – no mesmo sentido
Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 338 e 339), enquanto para as deliberações anuláveis e apesar de
a lei fazer apenas referência aos sócios, “creemos que debe extenderse su aplicación a los no socios pero
legitimados frente a la sociedad, bien por los estatutos, bien por el titulo constitutivo de la garantia o por
la correspondiente representación” e mesmo, quando as deliberações o possam afectar directamente,
quando o credor pignoratício não se encontre legitimado para a participação e o voto nas assembleias. Por
seu turno Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 341 e 342, defende que este direito caberá aquele
que, no plano das relações externas, esteja legitimado para o exercício do direito de voto, sem prejuízo de
“en las relaciones internas, que si no ha obrado como un administrador diligente, la otra parte pueda
interponerle una acción de daños” e sempre que o título constitutivo do penhor não atribua em exclusivo
o direito de voto a quem esteja legitimado para o seu exercício, caso em que o sujeito não legitimado para
o voto não terá direito a impugnar os acordos anuláveis (o Autor recusa a atribuição exclusiva ao sócio –
eventualmente mais conforme com o teor literal do preceito - ou ao credor pignoratício ou a ambos).
Finalmente Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 337 e segs., (depois de por em destaque o
carácter indisponível das normas sobre a impugnação – no sentido em que o título constitutivo da garantia
não pode afastar o regime legal - e de atribuir legitimidade ao sócio para a interposição de uma
providência cautelar de suspensão da deliberação ao sócio, sem prejuízo da possibilidade de o credor, em
caso de inactividade daquele, solicitar o direito de representação das acções empenhadas para propor a
medida cautelar e, em caso de recusa, responder pelos danos causados) atribui legitimidade para
impugnar as deliberações nulas ao credor e ao sócio (independentemente de quem seja o legitimado para
exercer o direito de voto), enquanto para as deliberações anuláveis a legitimidade assiste àquele a quem
caiba o direito de assistência e voto nas assembleias gerais (embora esta, quando tal lhe seja solicitado
pela outra parte, deva “bien a impugnar el acuerdo anulable – si tiene la atribuida la exclusiva
titularidad -, bien a otorgar a la otra parte el poder preciso para el ejercicio de la acción de
impugnación” e, não o fazendo, sujeita-se a ter que indemnizar pelos danos que causar. Por outro lado,
quando o título constitutivo da garantia confira a uma das partes o direito exclusivo de voto e a mesma
solução conste dos estatutos, o não titular não terá direito a impugnar as deliberações sociais; se, pelo
contrário, “el título constitutivo otorgare el derecho de impugnación al no legitimado frente a la
sociedad, el que sí lo estuviere deberá seguir las órdenes que le imparta el legitimado por el título
prendario, y si no lo hace, incurrirá en responsabilidad”).
2499
Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 683, cita decisões judiciais que negam ao credor pignoratício, mesmo
titular do direito de voto, o poder de solicitar a convocação extraordinária da assembleia geral, alegando
que, nos termos legais, tal prerrogativa compete apenas ao sócio, enquanto Niccolò A. Bruno, ob. cit.,
pág.35 e segs., cita decisões nesse mesmo sentido, embora indique outras na qual se reconhece o direito
de convocação ao titular do direito de voto, atento o carácter instrumental daquele relativamente a este.
Todavia, esta posição é anterior à introdução do actual n.º 6 do art.º 2352.º do CCI que passou a atribuir
este poder aos dois sujeitos.
2500
No direito italiano, sempre se discutiu a quem competiria o exercício de tal faculdade, existindo três
entendimentos contrapostos: um deles, restringindo a titularidade de tal poder ao sócio, outro
concedendo-o unicamente ao credor (neste sentido, Stefano Poli, ob. cit., pág. 467, justificando tal
entendimento com o facto de estes direitos de controlo – não apenas de denúncia, mas também de
inspecção das contas da sociedade – serem um meio de conservação do valor da acção enquanto objecto
da garantia do credor) e, finalmente, outro ainda atribuindo a ambos tal direito (argumentando ser esse um
aspecto essencial à conservação da garantia): foi esta última posição a plasmada em lei pela nova
redacção do n.º 6 do art.º 2352.º do CCI (sobre as diversas posições, vide Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág.
40 e segs). A solução consagrada por este preceito – atribuição dos direitos administrativos para além do
voto conjuntamente ao credor e ao sócio – encontra eco na norma relativa às acções inseridas num
sistema de gestão centralizada (art.º 33.º, n.º 3, do Regolamento Consob n.º 11768/98), embora seja
passível de críticas (contestando-se que a sociedade tenha que suportar o exercício disjuntivo e
cumulativo do mesmo direito social relativamente às mesmas acções) e possa ser derrogada pelas partes,
atribuindo exclusivamente a alguma delas a titularidade de alguns desses direitos.
685
nestas duas últimas hipóteses, a ausência de normas especiais conduz-nos, salvo melhor
juízo, à aplicação da regra geral e, por isso, à outorga de tal direito ao sócio (cfr. art.º
23.º, n.º 4, do CSC).2501
Por outro lado, cabe a analisar a titularidade dos habitualmente designados
direitos de incorporação ou de opção,2502 entre os quais podemos distinguir o aumento
2501
Embora, quanto ao direito de interpor judicialmente acções de responsabilidade, cumpra distinguir
consoante estas sejam propostas em nome da sociedade (art.º 75.º do CSC, caso em que a propositura da
acção depende de aprovação de deliberação social nesse sentido, na qual o credor poderá eventualmente
tomar parte, se lhe tiver sido concedido o direito de voto) ou dos sócios (art.º 77.º do CSC, caso em que se
trata de um direito estritamente pessoal, cujo exercício será alheio à vontade do credor pignoratício).
2502
No direito italiano e após a reforma de 2003, Lorenza Bullo e Cláudia Sandei, ob. cit., pág. 89 e segs.,
sustentam que a atribuição do direito de opção ao sócio devedor - que respeita à subscrição preferencial
cuja emissão já tenha sido deliberada - se justifica pela circunstância de, através do exercício do direito de
opção se manter “proporzionalmente inalterata la misura con cui egli concorre alla formazione della
volontà sociale; dall’altro, fa si che non si modifichi il valore reale della partecipazione azionaria”, não
devendo ser atribuído ao credor, uma vez que para este a vida societária apenas assume importância
durante um período limitado de tempo (embora admitam que o credor poderá requerer a invalidade de
uma deliberação que viole as normas legais relativas à exclusão ou limitação do direito de opção – tendo
em conta o seu interesse na manutenção do valor económico do objecto da sua garantia - , até porque o
direito de voto, salvo convenção em contrário, caber-lhe-á: todavia, alguns aceitam que o exercício do
direito de voto por parte do credor deva, quanto a esta matéria e tendo em conta o interesse principal do
sócio, ser precedido de uma consulta ao sócio). Mesmo antes da reforma, a solução era já defendida por
Stefano Poli, ob. cit., pág. 529 e segs., argumentando que das duas finalidades subjacentes à titularidade
de tal direito (a manutenção do peso específico no interior da sociedade e de evitar a depreciação do valor
das acções em caso de subscrição dos novos títulos pelo seu valor nominal) a primeira interessa
primordialmente ao sócio, enquanto a segunda também releva para o credor (por permitir preservar o
valor dos bens empenhados), pelo que “il diritto d’opzione coinvolge sempre e, comunque, in misura
maggiore, l’interesse del socio, ancorché debitore pignoratizio, mentre inerisce solo in via eventuale a
quello di cui è portatore il creditore”. Por último, importa chamar a atenção para o n.º 4 deste mesmo
art.º 2352.º, nos termos do qual, em caso de necessidade de efectuar pagamentos sobre acções não
integralmente liberadas, cabe ao sócios efectuá-los até três dias antes do vencimento (de acordo com as
Autora por último citadas, a regra será que tais pagamentos serão efectuados ao credor pignoratício – que,
em seguida, pagará à sociedade – sem prejuízo da faculdade de o sócio efectuar tal liquidação
directamente à sociedade), sob pena de, não o fazendo, o credor poder alienar as acções nos mesmos
termos previstos para a alienação do direito de opção (para além de, pretendendo manter a garantia,
efectuar directamente o pagamento das somas em falta, subrogando-se ex lege no crédito da sociedade
para com o sócio devedor): se tal venda não se verificar – designadamente por ausência de compradores –
as acções do sócio moroso poderão ser anuladas (cfr. art.º 2344.º), sem prejuízo do direito do credor
pignoratício requerer, neste último caso, a adjudicação em pagamento de tais acções ou, em alternativa,
um reforço da garantia (Stefano Poli, ob. cit., pág.613, recorda que o limitado campo de aplicação da
norma, tendo em conta que as acções desmaterializadas objecto de gestão centralizada devem estar
integralmente liberadas e, mesmo quanto às acções tituladas, a hipótese também será rara tendo em conta
a insofismável atenuação da garantia que resulta do carácter não liberado das acções). No direito
espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 662 e segs. (vide também Prenda cit., págs. 96 e 97),
sustenta que o penhor de acções não liberadas é possível, mas levanta problemas relacionados com a
possível reclamação dos dividendos passivos antes do vencimento da obrigação assegurada, assim como
com as eventuais responsabilidades derivadas do não pagamento e posterior reclamação por parte da
entidade emissora (uma vez que, se antes do fim do prazo para liquidação dos dividendos passivos, se
vencer a obrigação garantida, o credor pignoratício pode executar o objecto empenhado): se assim é,
devem os potenciais adquirentes das acções ser alertados para esta especial situação das acções. Já
Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, ob. cit., págs. 677 e 678, destacam que a obrigação de liquidação
dos dividendos passivos cabe ao sócio e, em caso de incumprimento, o credor pode cumpri-la
(aumentando assim o montante do seu crédito e podendo sub-rogar-se na posição da sociedade), exigir do
sócio o seu cumprimento (caso em que poderá recusar a devolução das acções ao sócio até que seja paga
esta importância) ou executar a garantia (em termos análogos, Ballarín Marcial, ob. cit., págs. 198 e 220,
ressalvando, porém, que em caso de mora por parte do sócio, se a sociedade optar por vender as acções e
sempre que tiver sido notificada da constituição do penhor, deverá notificar o credor pignoratício, atenta a
sua condição de potencial interessado). Por seu turno De la Santa García, ob. cit., pág. 115 e segs., admite
686
de capital por incorporação de reservas2503 e o aumento de capital por subscrição de
novas acções,2504 2505 bem como o modo de exercício desse direito.2506
687
la entrega de las mismas al acreedor, o, tratándose de acciones anotadas, no efectúa la inscripción de la
garantía en la cuenta respectiva, no se comprende cómo puede haberse constituido aquél derecho real
limitado sobre las nuevas acciones, dado el carácter esencial que la posesión del acreedor reveste a tales
efectos. En estos casos, pues, éste ostenta simplemente una acción de naturaleza personal a fin de
obtener del socio la entrega – real o ficticia, mediante la inscripción – de los nuevos valores y poder, así,
crear sobre ellos la garantía. Consecuentemente, cuando el socio se resista a entregar las acciones al
acreedor, éste podrá estimar vencida la obligación principal (…) y proceder a la realización de la
prenda”. Defendendo, ao invés, a extensão automática às novas acções decorrentes de um aumento de
capital com recurso a dividendos ou reservas, vide Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 219 (afirmando que,
nestes casos, “los derechos de asignación gratuita de éstas nascerán gravados con la prenda y, por tanto,
la enajenación de la plena propiedad de tales derechos (…) precisará, junto al del propietario, el
consentimiento del acreedor pignoraticio”). Finalmente Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 379
e segs., outorga o exercício de tal direito ao sócio (embora advirta que o mesmo opera de modo
automático), mas ressalva que a garantia se espraia, automaticamente, de modo a abranger as novas
acções.
2504
No direito italiano, o art.º 2352.º, n.º 3, do CCI, dispõe que o penhor, em determinados casos, se
estende às acções da nova emissão (apesar de o n.º 2 do mesmo preceito afirmar que o direito de opção
pertence ao sócio e que a este serão atribuídas as acções subscritas em resultado do exercício desse
direito). Antes da introdução daquele n.º 3 pela nova redacção do preceito – introduzida pelo d.lg n.º 6 de
17/1/2003 – assistia-se a uma discussão análoga à que se verifica entre nós, sendo vislumbráveis quatro
posições distintas (todas elas convergindo, porém, na negação do carácter de fruto do direito de opção e,
por consequência, do resultado do seu exercício): a primeira, configurando o direito de opção como uma
utilidade aleatória e, por isso, negando a extensão do penhor às acções optadas ou ao montante resultante
da alienação do dito direito de opção; uma segunda, considerando que o direito de opção constitui um
elemento patrimonial da acção destinado a assegurar ao accionista a integridade da quota de participação
no património social em caso de aumento de capital, sustentando que, em caso de venda do direito de
opção, o credor pignoratício pode cobrar esse montante (nos termos previstos para o penhor de créditos)
e, no caso de exercício do direito de opção, as novas acções estarão oneradas pelo penhor nos limites
necessários à conservação da garantia (isto é, nos limites em que o valor patrimonial das velhas acções
diminuir por efeito do direito de opção); uma terceira, próxima desta, sustenta que, em princípio, o penhor
não abarca as acções decorrentes do exercício do direito de opção, sem prejuízo de o credor poder, em
caso de diminuição da sua garantia, solicitar outra idónea (ou, caso tal não suceda, o imediato pagamento
do crédito); finalmente, não faltava quem advogasse que todas as novas acções optadas ficarão oneradas
pelo penhor (sobre este assunto, vide Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 46 e segs., Stefano Poli, ob. cit.,
pág. 537 e segs. e, sobretudo, Gaspare Spatazza, ob. cit., págs. 685 a 687, salientando este último que
grande parte da polémica radica na interpretação do n.º 3 do art.º 1998.º do CCI – nos termos do qual o
penhor de títulos de crédito não se alarga aos prémios e a outras utilidades aleatórias produzidas pelo
título – nomeadamente a fim de incluir na previsão da norma as novas acções optadas resultantes de
velhas acções empenhadas – ou da alienação do direito de opção – ou das acções gratuitamente atribuídas
ao sócio empenhante na sequência da passagem de reservas disponíveis a capital). Por outro lado e
segundo Lorenza Bullo e Cláudia Sandei, ob. cit., pág. 89 e segs., se o sócio exercer o direito de opção –
procedendo, para o efeito, ao pagamento das importâncias devidas - será duvidoso se o penhor se alargará
às acções resultantes de um aumento de capital oneroso (contrapondo-se a posição daqueles que admitem
tal extensão, de outros que a negam – apesar de admitirem que o credor se possa socorrer, em caso de
diminuição da garantia na sequência do aumento de capital, dos mecanismos previstos no regime geral do
penhor – e, finalmente, dos que apenas admitem a extensão relativamente às acções cujo valor seja
suficiente para compensar a diminuição da garantia causada pelo aumento de capital: na opinião das
Autoras, após a reforma de 2003 deve aceitar-se a primeira posição, uma vez que “la causa dell’acquisto
delle nuove azioni è da rinvenire nel versamento eseguito dal socio, onde esse devono spettare libremente
a costui (…) nel senso che il pegno non si estende alle nuove azioni sottoscritte dal socio in forza
dell’opzione, nemmeno in parte e precisamente nella misura in cui il valore reale delle azioni superi la
soma versata dal socio per sottoscriverle” – contra, Stefano Poli, ob. cit., pág. 544 e segs., alegando que
qualquer das partes, sócio e credor, possuem interesses relevantes no aumento de capital – o primeiro, a
obter as acções subscritas por força do direito de opção e o segundo a não ver diminuído o valor do
objecto da garantia – mas este último é de difícil identificação e quantificação e, ademais, poderá ser
assegurado através do pedido de reforço da garantia – “utilizzabile in caso di deterioramento o perimento
istantaneo (…) al momento in cui le nuove azioni vengono fatte oggetto di integrale sottoscrizione” – ou,
anteriormente a esse momento, mediante o requerimento de venda antecipada. Ao invés, diversas são as
soluções se o sócio não exercer o direito de opção (caso em que o credor terá o dever de o alienar, dando
688
preferência aos demais sócios) ou se o alienar (hipótese na qual o penhor passa a abarcar o produto da
venda da opção, argumentando que tal venda “costituisce una vicenda stranea all’organizzazione
societaria, che, monetizzando (parzialmente) lo stesso bene oggetto del pegno, comporta un’estensione
della garanzia al ricavato”, à imagem do que sucede com a cobrança ou venda do crédito empenhado –
contra Stefano Poli, ob. cit., pág. 567, negando tal extensão).
2505
No direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 641 e segs., partindo do pressuposto que o
art.º 72.º da LSA atribui a generalidade dos direitos sociais, salvo disposição em contrário dos estatutos,
ao sócio, entende que tal preceito abrange igualmente o direito de subscrição de novas acções decorrentes
de um aumento de capital (destinada a assegurar um número de acções que permitam manter um
equilíbrio entre as antigas e as novas acções detidas pelo sócio empenhante ou, em alternativa, que o
produto da venda desse direito de subscrição seja utilizado para recuperar a perda da sua posição no
âmbito da sociedade em consequência do aumento de capital). Nesta conformidade, existindo cláusula
conferindo ao credor este direito, poderá ele exigir do sócio empenhante o reembolso das quantias
adiantadas para o seu exercício “atribuyéndose la titularidad al socio pignorante, que habrá de extender
la prenda al número de acciones o participaciones precisas para equilibrar la disminución de la
garantía” (se, pelo contrário, o credor preferir não exercer este direito e optar pela sua alienação, deverá
aplicar o produto desta para compensar o montante em débito). Na ausência de disposição estatutária, o
legitimado para o exercício deste direito será o sócio e, então, das duas uma: ou exerce o direito e “la
prenda deberá comprender, al menos, aquellas acciones o participaciones que hubieran podido ser
adquiridas sin desembolso alguno por el titular”; ou o aliena e “habrá de entregar el producto de la
venta al acreedor pignoratício para que lo destine a compensar la deuda o proporcionarle una garantía
suplementaria que equilibre la disminución del objeto pignorado si la obligación garantida no ha
devenido hasta esse momento en deuda alguna” (solução que, de acordo com o mesmo Autor – cfr.
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 234 – pode consistir num penhor irregular sobre o produto da
alienação do direito de subscrição preferente e a extensão da garantia às novas equivalentes à perda de
valor do objecto empenhado). Em qualquer caso, sempre que o sócio não empenha um número de acções
equivalente à perda do valor que sofra a garantia (ou não entrega do produto da venda dos direitos), o
credor pignoratício poderá invocar a perda do benefício do prazo, excepto se o sócio devedor prestar
outras garantias igualmente seguras (todo este regime, porém, não se aplica aos aumentos de capital
efectuados com recurso a reservas ou a benefícios de livre disposição, nos quais, salvo estipulação em
contrário no título constitutivo do penhor, os direitos nascem já onerados pelo penhor – cfr. Mejias
Gomez, La prenda cit., pág. 233). Similarmente, Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 355 e segs.,
pois, embora atribua o exercício do direito de subscrição preferente ao sócio, esclarece que se este não o
exercer ou alienar até 10 dias antes do prazo fixado, ao credor assiste legitimidade para proceder à venda
dos direitos ou à subscrição das acções (em qualquer caso, vendido o direito “la prenda se extenderá al
producto obtenido, que será entregado al acreedor pignoraticio, transformándose en una prenda
irregular”; pelo contrário, em caso de subscrição das novas acções, “la prenda se extenderá a las
acciones cuyo desembolso hubiera podido realizarse con el valor total de los derechos utilizados en la
subscrición”). Mais longe ainda vai Ballarín Marcial, ob. cit., págs. 217 a 219, defendendo que, dada a
natureza anticrética do penhor, o credor tem direito a alargar a garantia aos frutos e acessões do bem
onerado, podendo, por outro lado, levar a cabo todas as condutas necessárias à conservação do objecto da
garantia, nomeadamente “se llegara a la venta de los derechos de suscripción se destinaría su importe
por el acreedor a extinguir total o parcialmente por compensación su crédito, dado que (…) se
extendería la prenda al dinero obtenido” (se, pelo contrário, se obtiverem novas acções, “es del todo
lógico que a ellas se extienda la prenda, pudiendo repetir el acreedor contra el deudor por el importe del
desembolso” ou, mais concretamente e nos termos do n.º 3 do art.º 70.º da LSA – ditado para o usufruto,
mas analogicamente aplicável ao penhor – a garantia abrangerá as novas acções cujo desembolso se teria
podido efectuar com o valor total dos direitos utilizados na subscrição, ficando as restantes acções
propriedade daquele que tenha desembolsado o seu valor). Em sentido contrário, Ignacio Arroyo e José
Miguel Embib, pág. 674, consideram que tal direito cabe ao sócio e, uma vez exercido, nem sequer
haverá lugar, na ausência de um norma legal expressa nesse sentido, a um alargamento da garantia de
modo a abranger as acções subscritas ou o produto da venda do direito (restando ao credor instar o sócio a
repor o valor da garantia e, se este não o fizer, produzir-se-á o vencimento antecipado da obrigação
garantida). Finalmente Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 368 e segs., evidencia como o
aumento de capital envolve uma diminuição do valor dos direitos patrimoniais incidentes sobre as antigas
acções, a qual pode ser paliada pela subscrição das novas acções (ou pela alienação do direito de
subscrição), atribuindo tal direito ao sócio (a quem incumbirá desembolsar as quantias necessárias para o
exercício de tal direito ou, em alternativa, aliená-lo ou abster-se de quaisquer destas condutas e deixar
caducar o direito de subscrição), mas sem que isso signifique deixar desprovido de qualquer protecção o
689
No âmbito da primeira modalidade aludida, o aumento de capital decorre da
transferência de valores inseridos nas contas de reservas, havendo lugar a uma
distribuição gratuita das novas acções aos accionistas ou um aumento do valor das já
existentes (cfr. art.ºs 91.º e 92.º do CSC),2507 surgindo a dúvida se as novas acções
emitidas se encontrarão identicamente oneradas pelo penhor.
Os vários entendimentos resultam, desde logo, da divergência acerca da inclusão
deste direito de incorporação na previsão do art.º 23.º do CSC, entendendo aqueles que
respondem negativamente a este quesito que o penhor passará a abranger
automaticamente as novas acções,2508 enquanto quem advogue a inserção daquela
direito do credor à conservação do valor económico do objecto da garantia (o qual será assegurado, na
opinião de alguns, através das regras gerais previstas para a diminuição da garantia – ou seja, a garantia
não passará automaticamente a abarcar as novas acções – devendo o credor requerer a constituição de
penhor sobre as novas acções, devendo a data de constituição da nova garantia reportar-se à do penhor
inicial. Pelo contrário, o Autor sustenta que, se o sócio não exercer o direito de subscrição ou de alienação
no prazo legal o credor dispõe do poder de o fazer e, se o fizer, em caso de subscrição “la garantía se
extenderá a las acciones cuyo desembolso hubiera podido realizarse con el valor total de los derechos
utilizados en la suscripción” e, optando pela venda, “la prenda se extenderá al resultado de la misma,
transformándose en una prenda irregular”). De la Santa García, ob. cit., pág. 135, entende que o direito
de subscrição preferente cabe, salvo convenção em contrário (não sendo necessária a inclusão no pacto
social de qualquer preceito a esse respeito, uma vez que se trata de matéria do foro das relações internas
das partes no contrato de penhor), ao sócio e, em caso de não exercício por parte deste, o credor poderá
considerar vencida a obrigação garantida e executar o bem empenhado (art.º 1229.º, n.º 3, do CCE), o
mesmo regime valendo para a emissão de obrigações convertíveis em acções da mesma sociedade cujas
acções tivessem sido empenhadas. No mesmo sentido, em face do direito espanhol, Bautista Pérez, ob.
cit., págs. 51 e 52, esclarecendo que as novas acções se encontrarão, por isso, na livre disponibilidade do
sócio (contudo, o Autor sustenta que, em caso de as acções entregues terem carácter de liberadas, “como
la única razón que existe para su entrega es la existencia de las antiguas, la garantía debe ampliarse,
también, a estas nuevas, evitándose así además, el efecto de dilución que la ampliación produce”).
2506
Nos termos da nova redacção do n.º 2 do art.º 2352.º do CCI e apesar de o direito de opção caber ao
sócio devedor, se este não efectuar, até 3 dias antes da data de vencimento, o pagamento das quantias
necessárias para o exercício de tal direito (e se nenhum dos outros sócios pretender adquiri-lo), o direito
de opção será alienado por conta do sócio através de um banco ou de uma instituição autorizada a
negociar nos mercados regulamentados. Antes desta alteração, Stefano Poli, ob. cit., pág. 579 e segs., já
se pronunciava no mesmo sentido, afirmando que “il creditore pignoratizio non costituisce un tramite
necessário per le attività connesse (alienazione del diritto) all’esercizio del diritto d’opzione e al
versamento dei decimi residui, di spettanza del socio anche in presenza del di pegno” (embora admita que
as partes possam acordar diversamente, desde que não excluam a responsabilidade do credor pelo dever
de custódia em caso de dolo ou culpa grave): porém, em caso de inacção por parte do devedor, o Autor
sustentava que o credor não podia proceder directamente à alienação do direito de opção, salvo acordo do
devedor, devendo antes recorrer a um intermediário especializado (para além disso, o Autor dá conta da
necessidade, muitas vezes sentida pelo sócio devedor, de colaboração do credor para exercer este direito
de opção, traduzida normalmente na necessidade de devolução do título empenhado, mas não no
adiantamento de verbas para o efeito: todavia, tratando-se de valores desmaterializados, esse dever de
colaboração recairá sobre as entidades legalmente encarregues da conservação e custódia dos bens
empenhados).
2507
No caso de se proceder à distribuição de novas acções, essa distribuição é gratuita, não carecendo os
accionistas de desembolsar qualquer montante para as adquirir, sendo o número de acções a distribuir
proporcional às acções anteriormente detidas por cada um dos accionistas (a menos que outro critério
esteja estipulado no contrato social). Na hipótese de a sociedade optar pelo incremento do valor das
participações existentes, serão emitidas novas acções com actualização do anterior valor nominal.
2508
Fazenda Martins, ob. cit., págs. 116 e 117, entende que o exercício dos chamados “direitos de
incorporação” cabe automaticamente ao credor pignoratício, independentemente de qualquer estipulação
das partes nesse sentido, assegurando que o art.º 23.º não cobre tais direitos. No aumento de capital por
incorporação de reservas, as novas acções emitidas deverão fazer parte da percentagem de capital sujeita
ao penhor, por não estar em causa o exercício de um direito, mas antes a conservação do valor do objecto
do penhor, que poderia ser diminuído caso este direito de incorporação fosse concedido ao sócio
empenhante. Por último, alega que a alternativa – aplicação do art.º 670.º, alínea c), com a consequente
690
faculdade no âmbito da mencionada norma distingue entre o exercício do direito de
incorporação (cujo titular seria o sócio, por força do art.º 23.º) e a sujeição das novas
acções ao penhor anteriormente constituído (sujeição esta automática, por força de sub-
rogação legal real, quando se trate de substituição das antigas acções por outras, mas
negando que tal oneração se produza, salvo estipulação em contrário, em caso de
distribuição de novas acções).2509
Já no aumento de capital por via de entradas em dinheiro, os accionistas têm um
direito de preferência na subscrição das novas acções, sendo o número de acções que o
accionista pode subscrever proporcional ao número de acções possuídas na data em que
for deliberado o aumento (cfr. art.º 458.º, n.º 1, do CSC), pelo que interessa conciliar o
não exercício dessa faculdade com o direito/dever do credor pignoratício à conservação
do objecto da sua garantia (art.º 670.º, alínea c)).2510
Salvo convenção em contrário, entende-se ser ao sócio empenhador que incumbe
exercer (ou não) este direito e, se o exercer, as novas acções extravasarão, excepto
quando haja acordo em sentido diverso, da órbita da garantia pignoratícia.2511
atribuição das novas acções ao titular de raiz, cabendo ao credor pignoratício, em caso de diminuição da
garantia, o direito de exigir a sua substituição ou o imediato cumprimento da obrigação garantida – acaba
por conduzir ao mesmo resultado, embora forma não automática (salienta este último aspecto Tiago
Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 91). Já na opinião de Maria Augusta Fernando, Oneração de valores
mobiliários, 2003, in
http://www.jpab.pt/files/text/hl5_2003%20Julho_Onera%C3%A7%C3%A3o%20de%20valores%20mobi
li%C3%A1rios_Maria%20Augusta%20Fernando.pdf, págs. 33 e 34, não estará na dependência das partes
a atribuição destes direitos, os quais cabem obrigatoriamente ao credor pignoratício (nascendo as novas
acções já oneradas pelo penhor), uma vez que “Se assim não se considerasse, e atendendo à natureza
deste aumento de capital, verificar-se-ia uma diminuição do objecto do penhor, pelo que o credor
poderia exigir a substituição da garantia, o seu reforço ou o cumprimento imediato da obrigação (art.º
670.º, alínea c), do CC)”.
2509
É a posição de Sofia Maltez, ob. cit., págs. 46 e 47, considerando que, nesta última hipótese, a não
extensão do penhor se justifica pelo facto de o direito às novas acções só se ter concretizado durante a
vigência do penhor (e alertando que, quando se produza uma diminuição do valor das acções dadas em
penhor em razão do aumento de capital, o credor pignoratício terá a possibilidade de exigir, nos termos do
art.º 670.º, alínea c), o reforço ou substituição da garantia). Já Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 90
e 91, apesar de fazer reentrar estes direitos na órbita do art.º 23.º do CSC, sustenta que a sub-rogação
legal se produzirá, quer no caso de substituição de acções (independentemente da forma de representação
destas, sendo que no caso das acções tituladas ao portador, o credor pignoratício terá direito à sua
entrega), quer no caso de distribuição de novas acções, para o efeito aplicando analogicamente o regime
previsto para o usufruto - art.º 92.º, n.º 4, do CSC – segundo o qual, havendo participações sociais sujeitas
a usufruto, estes incidirá nos mesmos termos sobre as novas participações ou sobre as existentes, com o
valor nominal aumentado (solução esta justificada em razão de, caso a sociedade optasse pela distribuição
das reservas em vez de as incorporar, o seu beneficiário seria o usufrutuário – cfr. art.º 1476.º, n.º 1,
alínea a), do CSC: ora, se o titular do direito aos lucros é, ao menos no entendimento deste Autor, o
credor pignoratício, a analogia impõe-se).
2510
Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 89.
2511
Fazenda Martins, ob. cit., págs. 116 e 117, justifica que o penhor não implica a concessão do direito
de voto (pelo que também não interessará ao credor manter uma determinada percentagem de votos no
capital social) e afirmando, por outro lado, que “a diminuição do valor das acções decorrente de um
aumento de capital é meramente residual e o interesse do credor pignoratício na manutenção da
garantia pode satisfazer-se, se for necessário, pela reposição do valor que emigrou das antigas para as
novas acções”, sendo que o prejuízo do credor poderá também advir do valor da amputação dos direitos
de subscrição ou da menos-valia que sofra a participação social empenhadas em consequência da
reorganização das participações sociais resultante do aumento de capital: em todos estes casos, o credor
poderá invocar o já citado art.º 670.º, alínea c) (o Autor propõe esta solução mesmo quando ao credor
caiba o direito de voto – e, por isso, tenha um manifesto interesse em intervir na vida societária – por
força da aplicação do art.º 23.º do CSC). Em termos idênticos, Sofia Maltez, ob. cit., págs. 49 e 50 (dando
conta que, na prática bancária, são frequentes as estipulações atribuindo o exercício deste direito ao
credor ou, pelo menos, determinando a extensão do penhor às novas acções), Tiago Soares da Fonseca,
691
No que concerne às participações representadas por títulos, há ainda que
considerar a hipótese de substituição dos originariamente empenhados, devendo
assegurar-se, não obstante tal ocorrência, a manutenção da garantia sobre os títulos
substitutos.2512
Quanto à obrigação de desembolso dos dividendos passivos, esta pesa sobre os
ombros do sócio empenhante, embora em caso de incumprimento o credor possa, em
alternativa, cumprir ele mesmo tal dever ou executar a garantia.2513
Há que avaliar, ainda, o destino do direito do sócio ao saldo da liquidação da sua
participação, o qual poderá surgir no decurso da sua exclusão ou exoneração,2514 da
ob. cit., págs. 88 e 89 (sublinhando que o mesmo regime se aplicará aos aumentos de capital por entradas
em espécie, ainda que não exista qualquer direito de preferência, e de diminuição do capital social) e
Maria Augusta Fernando, ob. cit. págs. 34 e 35 (salvaguardando, porém, que em caso de diminuição do
valor real das acções da sociedade, é legítimo ao credor socorrer-se do disposto no art.º 670.º, alínea c)).
2512
Esta hipótese de substituição encontra-se expressamente plasmada no art.º 59.º da LSA espanhola
(que prevê mesmo, em caso de não devolução dos títulos antigos, a sua anulação), defendendo Veiga
Copo, La prenda de acciones cit., que a legitimidade para receber os novos títulos assiste ao credor
pignoratício, pelo menos quando se trate de acções nominativas, porquanto este “está inscrito en el libro
registro de sócios, y, lo normal es que posea materialmente los títulos y estará interesado en disponer
cuanto antes de los títulos válidos. Al mesmo tiempo que el acredor pignoraticio vela por su proprio
interés, sirve al interés del socio”. Em termos práticos e para que a substituição não afecte a subsistência
da garantia, o Autor sugere que, sempre que possível, a sociedade proceda à correcção dos títulos, a fim
de preservar o endosso (pois em caso de substituição propriamente dita, poderá não constar do título o
endosso, a menos que sobre o novo título se inscrevam os endossos verificados sobre o título antigo,
designadamente através da inserção no novo título de uma declaração nos termos da qual o anterior título
havia sido anulado, com excepção do que se refere à cadeia de endossos).
2513
No primeiro caso, poderá exigir o reembolso ao sócio empenhante ou, em alternativa, sub-rogar-se na
posição da sociedade emissora (nesta conformidade, Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 362 e
363). Se, ao invés, alienar o bem empenhado, (no entanto, a opção por esta última faculdade pode
conflituar com o mesmo direito atribuído à sociedade emissora, devendo, segundo Mejias Gomez, La
prenda cit., pág. 95 e segs., prevalecer este último por representar os interesses dos sócios, de terceiros e
do giro comercial). Situação mais grave ocorre quando se verifique uma situação de mora do sócio no
cumprimento da sua obrigação de entrada, uma vez que um penhor constituído sobre acções nestas
circunstâncias enfrentaria diversos obstáculos (inibição do exercício do direito de voto e do direito aos
dividendos, possibilidade de a sociedade alienar as acções em mora), sendo apenas recomendável a sua
criação em circunstâncias muito peculiares (de acordo com Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 97,
quando o credor tenha obtido a promessa da sociedade não alienar as acções a empenhar e se o sócio – ou
o credor pignoratício – se comprometam a liquidar os dividendos em atraso). Para Veiga Copo, La prenda
de acciones cit., pág. 384 e segs., o exercício deste direito compete ao sócio – primeiro responsável pelo
pagamento dos dividendos passivos – sem prejuízo da possibilidade que assiste ao credor de, caso o sócio
o não faça, cumprir esta obrigação de desembolso dos dividendos passivos (caso em que se sub-rogará
nos direitos da sociedade para com o sócio incumpridor) ou proceder à execução da garantia (embora o
Autor alerte para que esta seja uma alternativa um tanto irreal, por duvidar que alguém pretenda adquirir
acções nestas circunstâncias): em qualquer das hipóteses, o que se pretende é evitar o risco de a sociedade
aplicar as medidas previstas para sancionar a mora no desembolso dos dividendos passivos – privação do
direito de voto, percepção de dividendos ou até venda das acções ou amortização das mesmas - assim
diminuindo o valor da garantia):
2514
No direito italiano, Gaspare Spatazza, ob. cit., pág. 687, menciona que, embora concordando que o
direito pertence ao sócio (argumentando que, se a lei confere ao sócio o direito de opção para manter a
sua participação na sociedade, por maioria de razão só a ele deve ser dada a possibilidade de por fim ao
vínculo social, para além de a concessão deste poder ao credor ser contrário à proibição de uso do bem
empenhado por parte dele – o Autor recusa mesmo que, por convenção das partes, tal poder possa ser
outorgado ao credor, alegando que tal pacto poderia redundar na transferência da propriedade das acções
para o aludido credor), alguns sugerem ser necessário o acordo de ambos os interessados para tal
exercício, enquanto outros admitem que o direito só pode ser exercido pelo sócio quando o credor
pignoratício tivesse votado contra ou se tivesse abstido na deliberação social com esse objecto. Também
se pronunciam pela atribuição deste direito de rescisão ao sócio Niccolò A. Bruno, ob. cit., pág. 45 e
segs., Gian Carlo Rivolta, ob. cit., pág. 232 e segs. (este último assegura mesmo que o sócio pode exercer
692
dissolução da sociedade ou da amortização da participação,2515 e de redução de
capital2516 ou de vencimento dos valores mobiliários,2517 designadamente para
tal poder mesmo que o direito de voto pertença ao credor e independentemente de este ter votado
favorável ou desfavoravelmente a decisão em questão – tendo em conta que a lei exige, como condição de
exercício deste direito, que o seu titular não tenha aprovado a deliberação em questão - , pois “non
essendo abilitato ad esercitare il voto, il socio non ha nemmeno la possibilità di approvare la
deliberazione in questione”) e Stefano Poli, ob. cit., pág. 462 e segs. (considerando que se o legislador
atribui ao sócio o direito de opção, a fortiori deverá ser igualmente o único titular do direito de rescisão).
De acordo com Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 110 e segs., apesar do silêncio da lei
(embora haja quem retire da atribuição do direito de opção ao sócio – que se poderá traduzir numa
modificação do seu peso específico na sociedade, por maioria de razão se deverá considerar que ao
mesmo sujeito deva competir o direito de rescisão, cujo exercício redundará na quebra da ligação
societária), o direito de rescisão deve caber ao sócio (seja para quem considere a rescisão como um acto
de gozo – e, por isso, vedado ao credor por não se destinar à conservação do bem empenhado – seja para
quem a qualifique como um acto de disposição), recusando inclusivamente a legitimidade de uma
convenção contrária das partes (alegando que a mesma constituirá até um indício de dissimulação de uma
alienação sob a capa de um penhor e, além disso, viola a proibição legal de exclusão ou limitação do
exercício do direito de rescisão); analogamente, na sentença da Corte de Cassação de 12/7/2002, n.º
10144, citada por Francesco Caringella, ob. cit., pág. 3557, decidiu-se que o credor pignoratício, ainda
quando lhe caiba o direito de voto, não poderá exercer o direito de exoneração, que pertencerá sempre ao
sócio empenhante, “configurandosi questo come un atto di disposizione in ordine alla partecipazione
societaria, di esclusiva spettanza del socio, ed essendo d’altra parte la tutela del creditores pignoratizio
affidata, in presenza una diminuzione del valore delle azioni conseguente a dei deliberati mutamenti
societari, all’istituto della vendita anticipata”. Quanto ao modo de exercício deste direito, deverá ser o
sócio a comunicar à sociedade a sua decisão (para além da obrigação do credor, quando seja titular do
direito de voto, de comunicar ao sócio o êxito da deliberação social que consentiu a exoneração e mesmo
da convocatória para uma assembleia geral que tenha na ordem do dia tal assunto), apesar de algumas
decisões judiciais admitam que tal comunicação possa ser efectuada pelo credor (que servirá apenas de
portador da notícia, cabendo sempre a decisão ao sócio) - Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., págs.
114 e 115. Uma vez exercido o direito de exoneração, o direito de garantia não se extingue, transferindo-
se antes para a soma obtida pelo sócio a título de reembolso das acções, ainda que tal valor exceda o valor
nominal desses títulos (uma vez que o objecto da garantia era o valor patrimonial e não nominal das
acções oneradas) - Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., págs. 115 e 116 e Stefano Poli, ob. cit., pág.
464 e segs.. No direito espanhol, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 348 e segs., atribui, salvo
disposição estatutária em contrário, o exercício do direito de separação ao sócio – sem prejuízo de, nas
relações internas, tal direito poder competir ao credor, caso em que o não exercício do mesmo perante a
sociedade por parte do sócio nos termos indicados pelo credor originará a responsabilidade deste último –
e, quando este o exerça, o direito do credor passa a ter como objecto a quota de separação (por efeito de
sub-rogação, transformando-se a garantia num penhor irregular); se, pelo contrário, o direito de separação
for exercido pelo credor, este cobrar-se-á com o montante recebido (e, sendo caso disso, devolverá o
eventual excesso), embora “si el socio desea continuar gozando de tal condición, por mucho que el
acreedor votare en contra del acuerdo, la separación no tendría lugar”, uma vez que o credor não pode
exercer o direito de voto com o objectivo de prejudicar o titular do direito de separação.
2515
Em sede de amortização de quotas oneradas, o art.º 233.º, n.º 4, do CSC estabelece a necessidade do
consentimento do credor pignoratício (punindo o art.º 512.º o gerente que amortize, total ou parcialmente,
quota sem obter aquele consentimento – assim como o sócio titular da quota onerada que promova a
amortização ou der o seu assentimento ou que, podendo informar o credor pignoratício do facto, antes de
executado, não o tenha feito intencionalmente - com multa até 120 dias), afirmando Tiago Soares da
Fonseca, ob. cit., pág. 85, nota 144, que alguns Autores sugerem a aplicação deste preceito também à
amortização de acções empenhadas (com o argumento que, também neste segundo caso, será necessário
proteger o credor pignoratício contra uma renúncia aos direitos sociais patrimoniais inerentes às
participações empenhadas, assim inutilizando a garantia dos credores). Para o direito espanhol, Salinas
Adelantado, El régimen cit., págs. 344 e 345, defende que o direito de requerer a exoneração, face à
sociedade, deve caber sempre ao sócio, embora o sócio possa comprometer o exercício desse direito
quando, estatutariamente, o direito de voto lhe tenha sido conferido.
2516
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 236, evidencia como, neste caso, se pode produzir uma
diminuição (ou até extinção) do valor do objecto empenhado, pelo que caberá ao credor invocar os
mecanismos legalmente previstos para tal eventualidade. Para Veiga Copo, La prenda de acciones cit.,
págs. 382 e 383, é ao sócio que deve ser dada a possibilidade de exercer o direito de subscrição das novas
693
determinar se o penhor se extingue ou, ao invés, esse crédito surge onerado pela
garantia.
Parecendo ser esta segunda a solução que se impõe, sob pena de se permitir ao
sócio fazer extinguir a garantia através da prática de diversos actos unilaterais relativos
à vida social: cumpre, porém, saber de que modo o credor pode fazer valer o seu direito
sobre o novo objecto da sua garantia – crédito de liquidação – que vem substituir o
original – a participação social - , através de um fenómeno de sub-rogação,2518 podendo
acções (passando o penhor, automaticamente, a recair sobre “las acciones correspondientes a las
fracciones de capital reconstituido”) e, se o não fizer, proceder-se-á à realização executiva da garantia (já
em caso de redução do capital por amortização de acções, sustenta que se dará uma sub-rogação
automática parcial relativamente ao objecto originário da garantia, passando a recair sobre esse dinheiro,
como penhor irregular; na hipótese de redução por exuberância do capital – seja através de liberação
proporcional das atribuições a efectuar, seja mediante reembolso proporcional das “aportações”
efectuadas e, em qualquer dos casos, com redução do valor nominal das acções, “la situación prendaria
permanece inalterada, pudiendo el acreedor solicitar que se aumente la garantía, y en caso de
devolución o reembolso de aportaciones, puede significar, en cambio, una extensión prendaria a la suma
reembolsada”).
2517
Diaz Moreno, ob. cit., pág. 419, entende passar o penhor a recair sobre o montante devolvido pelo
emitente, sugerindo que tal quantia deve permanecer bloqueada e afecta ao cumprimento da obrigação
garantida – eventualmente depositada numa conta que não poderá ser movimentada pelo devedor sem o
consentimento do credor – e não ser entregue ao sócio empenhante, pelo menos quando se trate de valores
mobiliários escriturais, uma vez que nestes a sociedade administradora dos valores terá conhecimento da
constituição da garantia
2518
Qualificando expressamente este fenómeno como uma hipótese de sub-rogação, Tiago Soares da
Fonseca, ob. cit., pág. 87. Defendem este mesmo entendimento em face do direito italiano Stefano Poli,
ob. cit., pág. 464 e segs. (chamando a atenção para a circunstância de, deste modo, se demonstrar a
consagração do princípio da sub-rogação real) e Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., págs. 115 e 116
e, no direito espanhol Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 646 a 648 e Prenda cit., pág. 235 (escrevendo,
nesta última obra que, salvo disposição em contrário do título constitutivo da garantia, “el crédito sobre la
cuota de liquidación nacerá gravado con la prenda. La garantía se transformaría así en una prenda
sobre el derecho a pedir la cuota y en una garantía real sobre la totalidad del producto obtenido”,
alegando que a mesma solução valerá para o direito de separação que envolva o reembolso do valor das
acções empenhadas e de amortização através de reembolso ao sócio empenhante, embora alerte que a
solução não encontra fundamento no regime geral do penhor que, ao contrário do português, não prevê a
possibilidade de substituição ou reforço da garantia em caso de diminuição do valor desta) e Diaz
Moreno, ob. cit., pág. 419. Já Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 348 a 350, sustenta que a
legitimidade para requerer da sociedade o pagamento da quota de liquidação pertence, salvo cláusula
estatutária em contrário, ao credor (por maioria de razão, uma vez que, segundo o Autor, a ele lhe cabe
igualmente a legitimidade para reclamar o pagamento dos dividendos e, por outro lado, que o mesmo
sucede nos penhores de créditos), transformando-se o penhor numa garantia sobre o direito a requerer a
quota e, depois, sobre a totalidade do produto obtido (mais concretamente, “Cuando se produce la
disolución de la sociedad la prenda se transforma primero en una prenda del crédito al cobro de la quota
de liquidación. Después, cuando se pague ésta, la prenda se transformará en una prenda irregular,
prenda de cosas o hipoteca dependiendo de lo que se haya obtenido por la cuota de liquidación”),
defendendo a aplicação das mesmas soluções para o direito de exoneração e de redução de capital com
restituição de aportações. Já Ignacio Arroyo e José Miguel Embib, págs. 675 e 676, embora concordando
com a extensão da garantia ao produto da quota de liquidação, destaca que tal extensão “requerirá un
acuerdo entre las partes, así como la notificación a la sociedad para que se abstenga de abonarlo al
socio. Ma, no existiendo acuerdo, y a falta de norma expressa, si a requerimiento del acreedor, el socio
no somete voluntariamente la cuota de liquidación, recibida la garantia, podrá aquél entender vencida la
obligación principal” (por outro lado, assevera que esta solução não pode valer para a amortização de
acções empenhadas por redução do capital para compensar perdas ou para preencher a reserva legal, caso
em que o penhor se extinguirá por desaparecimento do seu objecto, uma vez que a diminuição da garantia
não se deveu a responsabilidade do sócio devedor). Por seu turno Ballarín Marcial, ob. cit., págs. 219 e
220, defende caber ao sócio o exercício do direito de separação, podendo o credor compensar o seu
crédito com o crédito da liquidação (e, em caso de prejuízo, responderá o devedor pelos danos causados),
salvo que o título constitutivo de penhor disponha de modo diverso. Já Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 363 e segs., (depois de salientar que o exercício deste direito cabe ao sócio, traduzindo-
694
configurar-se como uma mera alteração do objecto do penhor de direitos (para quem
defenda que o penhor de participação social é um penhor de direitos ou de créditos) ou,
em alternativa, como uma transformação dum penhor de coisa num penhor de créditos
(para quem, pelo contrário, entenda que o negócio de dação em penhor das
participações sociais configura um penhor de coisa).
Salvo melhor juízo, a cobrança do crédito de liquidação, logo que este se torne
exigível e na medida em que o objecto deste consistirá normalmente numa prestação
pecuniária, deve caber ao sócio, podendo, contudo, ser efectuada pela sociedade,
conjuntamente, ao ex-sócio e ao credor pignoratício (art.º 685.º, n.ºs 1 e 2, aplicável, ao
menos, por analogia).2519 2520
Já em caso de aquisição forçada, mormente em virtude de uma aquisição
potestativa (cfr. as aquisições tendentes ao domínio total - art.ºs 490.º do CSC e 194.º e
segs. do CVM)2521 de acções previamente empenhadas, discute-se se haverá lugar à
695
aplicação do art.º 692.º, permitindo assim que os credores pignoratícios exerçam o seu
direito de garantia sobre o valor pago pela aquisição das mesmas.2522
Finalmente, a circunstância de as participações sociais empenhadas serem alvo
de um contrato de gestão poderá influir sobre a titularidade e o exercício dos direitos
sociais inerentes a tais bens.2523
Por último e na falta de disposição que afaste o regime geral, o sub-penhor sobre
as participações sociais deve ser rejeitado, nos mesmos termos das normas civilísticas
(cfr. art.º 671.º, alínea b)).2524
A atribuição de alguns direitos sociais analisados ao credor pignoratício pode,
porém, colidir com o princípio, legalmente consagrado no art.º 276, n.º 4, do CSC, da
indivisibilidade das acções, princípio este que, se seguido à letra, impedirá o
destacamento de certos direitos para os conferir ao credor pignoratício, apenas
admitindo que lhe sejam concedidos na sua globalidade.2525
em dinheiro (art.º 194.º, n.º 1), do mesmo modo que cada um dos titulares das acções remanescentes, nos
três meses subsequentes ao apuramento dos resultados da oferta pública de aquisição, pode exercer o
direito de alienação potestativa, devendo antes, para o efeito, dirigir por escrito ao sócio dominante
convite para que, no prazo de oito dias, lhe faça proposta de aquisição das suas acções (art.º 196.º, n.º 1).
2522
Em sentido afirmativo, Joana Dias, ob. cit., págs. 183 a 185, salientando que “Se atentarmos no facto
de o sócio minoritário perder as acções em resultado da aquisição potestativa pela sociedade dominante,
pode afirmar-se que há uma identidade de situações o que justificará a extensão do regime disposto no
art.º 692.º (…). Neste sentido, o penhor sobre as acções transferir-se-ia para a contrapartida paga pela
sociedade dominante ao sócio minoritário, como indemnização pela perda do seu direito de
propriedade”.
2523
De acordo com Luca Enriques, ob. cit., pág. 772, o titular do direito de voto será unicamente o credor
pignoratício, enquanto o direito de informação caberá ao devedor cliente e ao credor pignoratício (no caso
de o gestor ser um terceiro estranho ao contrato de penhor) e, quanto ao direito de rescisão, nega que ele
compita ao cliente devedor (pois tal traduzir-se-ia numa substituição unilateral do objecto do penhor e
que, em caso de incumprimento do contrato de gestão por parte do gestor, deve o cliente requerer o
sequestro dos bens empenhados) ou ao gestor credor (pelos mesmos motivos), mas apenas ao gestor
terceiro (nos termos em que possa rescindir o contrato de gestão). Já quanto ao direito aos incrementos
patrimoniais decorrentes da actividade de gestão, estes deverão ser considerados frutos do bem
empenhado e, como tal, o credor pignoratício poderá fazê-los seus e retirar o respectivo valor.
2524
Chegando à mesma conclusão em face do direito italiano, Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit.,
pág. 121 e segs., depois de desvalorizarem o facto de o art.º 2352.º do CCI admitir expressamente o co-
usufruto e nada ter dito acerca do sub-penhor, aludem à polémica quanto ao carácter inderrogável da
norma que proíbe o sub-penhor ou, em alternativa, da possibilidade de constituição deste com o
consentimento do constituinte do penhor. Caso se admita esta segunda hipótese, a distribuição dos
direitos sociais far-se-á do seguinte modo: aqueles que, após a constituição do penhor, pertenciam ao
sócio, mantêm-se na titularidade deste; relativamente aos que cabiam ao credor pignoratício, discute-se a
sua titularidade; quanto aos atribuídos conjuntamente ao sócio e ao credor pignoratício, pergunta-se se
também poderão passar a ser exercidos pelo credor sub-pignoratício. Existe, no entanto, um caso em que
a lei expressamente admite o sub-penhor, mais concretamente no regime do penhor financeiro, na medida
em que se determina que o credor pignoratício possa dispor, mesmo alienando, os objectos do penhor,
desde que tal possibilidade se encontre prevista no contrato de garantia (mencionam esta excepção as
Autoras citadas, sendo que a mesma vigora igualmente no nosso País, nos termos do regime do penhor
financeiro, em tudo idêntico ao italiano – acerca do penhor financeiro e deste aspecto em particular, vide
n.º 1.2.8.4 do Capítulo II.
2525
Sofia Maltez, ob. cit., págs. 27 a 29, salienta que, no actual panorama, alguma doutrina admite a
divisibilidade, ao menos dos direitos de carácter patrimonial, embora outros assegurem a unidade dos
direitos inerentes à participação social. Já Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 72, admite
inequivocamente essa divisão, excepto quando se trate de direitos intimamente relacionados com outros
(como, por exemplo, atribuição do direito de discutir em assembleia geral e o direito de voto a sujeitos
diferentes), exigindo embora que tal divisão conste do contrato penhor e seja dada a conhecer à
sociedade. Em face do direito italiano, em que o fraccionamento da titularidade dos diversos direitos reais
resulta da própria lei onde o princípio da indivisibilidade se encontra igualmente consagrado (art.º 2347.º
do CCI), juntamente com o da igualdade das participações sociais (art.º 2348.º), Stefano Poli, ob. cit.,
pág. 137 e segs., retira destas duas normas “l’impossibilità di divizione dell’azione (…) sia in sede di
696
Pese embora a já assinalada permissividade legal à oneração pignoratícia das
participações sociais, existem circunstâncias que obstam à sua colocação em penhor,
nomeadamente no caso das acções.
Desde logo, no que concerne às acções próprias, a sua dação em penhor enfrenta
limitações não despiciendas, não tanto por força do já citado art.º 23.º do CSC, mas
sobretudo em razão de outras normas de cariz societário.
Assim, limites se erguem à possibilidade de a sociedade oferecer, em garantia de
uma dívida por si contraída, acções próprias,2526 bem como da presunção de
contrariedade ao fim da sociedade da prestação de garantias – nomeadamente as que
incidam sobre as próprias acções - a dívidas de outras entidades (art.º 6.º, n.º 3, do
CSC),2527 para além da interdição de legal de concessão, por parte da sociedade, de um
penhor para a aquisição de acções dessa mesma sociedade por parte de um terceiro (art.º
322.º, n.º 1, do CSC).2528
legittimazione all’esercizio dei diritti sociali, sia in sede di circolazione dell’azione”, considerando não
resultar do regime legal do penhor de acções qualquer violação desta regra, porquanto tal regime
“risponde al diverso quesito riguardante la spettanza, al socio o al creditore, dei diritti medesimi (in
particolare il diritto di voto) sul pressuposto che, in tale ipotesi, non sussista condivizione delle azioni a
livello di titolarità della partecipazione” (todavia, o Autor reconhece que as partes poderão contornar a
proibição da indivisibilidade - valendo-se da autonomia das participações, nos termos da qual cada acção
ou quota incorpora uma completa participação social - “mediante la divisione delle singole azioni facenti
parte del pacchetto vincolato, ripartendosi, secondo le percentuali preferite, il diritto di voto mediante
una convenzione contraria, ex art. 2352, primo comma, che riguardi una parte solamente delle azioni
assoggettate al pegno”). Porém, o Autor entende que o regime legal do penhor de acções constitui uma
excepção ao princípio, não plasmado na lei mas reconhecido pela doutrina, da incindibilidade das
participações (entendido como proibição, dirigida ao sócio e à sociedade, de separar as posições jurídicas
incorporadas na participação, através da atribuição de alguma ou alguma daquelas a sujeitos diversos do
accionista), porquanto o art.º 2352.º do CCI atribui expressamente ao credor, salvo convenção em
contrário, o direito de voto, ao legitimar as partes a “modellare il contenuto della rispettiva
partecipazione alla organizzazione societaria, nei limiti (…) posti dall’inderogabilità dei principi di
indivisibilità e di egualianza delle azioni”. Já em face do direito espanhol Salinas Adelantado, El régimen
cit., págs. 323 e 324, entende que este princípio impede a atribuição estatutária de alguns direitos sociais
ao credor e de outros ao sócio.
2526
Nesta hipótese, Gomes da Silva, Acções próprias e direitos dos accionistas, in ROA, ano 60 (Dez.
2000), pág. 1278 e segs., entende razoável exigir uma autorização prévia da assembleia geral, uma vez
que “a sociedade pode convencionar que as acções sejam adjudicadas ao credor ou pode sempre ocorrer
que a sociedade não cumpra a sua obrigação, o que levará à venda judicial das acções”, ou seja, “a
sociedade se pode ver obrigada a dispor das mesmas, perdendo o controlo sobre as acções a partir do
momento da sua entrega”. Por outro lado, o mesmo Autor defende que, nada convencionando as partes no
contrato de penhor, o direito de voto compete ao titular das acções (ficando, por isso, o mesmo suspenso –
cfr. art.º 324.º); se, pelo contrário, o direito de voto for atribuído ao credor, duvida que este possa exercê-
lo - chamando a atenção para a circunstância de tal atribuição poder conduzir a que o direito de voto
reviva a favor da sociedade, considerando ser mais prudente não o conceder ao credor – concluindo que
“continuando as acções a pertencer à sociedade, os direitos inerentes às acções permanecerão
forçosamente suspensos ”. Contra, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 74, entendendo que, quando o
exercício dos direitos sociais haja sido conferido ao credor pignoratício, tais direitos devem deixar de
estar suspensos.
2527
Sobre este preceito, vide supra n.º 2.4.2 do Capítulo I.
2528
Vide, porém, as excepções a esta interdição consagradas no n.º 2 do dito art.º 322.º do CSC. Em face
do direito espanhol, o art.º 81.º, n.º 1, da LSA interdita que a sociedade por acções (proibição análoga
vigora para a sociedade de responsabilidade limitada) possa constituir um penhor sobre as suas próprias
acções para facilitar a aquisição, por parte de terceiro, de acções da sociedade empenhante ou de uma
sociedade dominante, assim evitando que a aquisição das acções seja financiada com o património social
e a possibilidade de abusos por parte dos administradores (alude a estas justificações Mejias Gomez, La
prenda cit., pág. 89): todavia, a lei prevê duas excepções, uma relativa aos negócios destinados a facilitar
a aquisição destas acções por parte dos trabalhadores da empresa (art.º 81.º, n.º 2, não aplicável às
sociedades de responsabilidade limitada), a outra respeitante às operações efectuadas pelos bancos e
outras entidades de crédito no exercício do seu objecto social, financiadas com bens não onerados da
697
Em termos paralelos, limitações vigoram também para a aceitação em penhor,
pela sociedade em questão, de acções próprias,25292530 justificadas com a necessidade de
sociedade (art.º 81.º, n.º 3), problemas surgindo quando o penhor de acções surge como um primeiro
negócio que, de modo indirecto e conjugado com outros (por vezes recorrendo a interpostas pessoas),
conduz a um financiamento para aquisição de acções (o Autor entende que a interdição operará, desde
que se demonstre que o penhor de acções tem como objectivo a aquisição de acções da sociedade em
questão, mas já não se o seu fito for o de adquirir outro direito limitado). A sanção para a violação da
proibição traduz-se na nulidade do negócio de financiamento através da concessão do penhor, mas não à
aquisição das acções propriamente dita (vide ult. aut. e ob. cit.). Todavia, o art.º 80.º da LSA admite a
dação em penhor de acções próprias (ou de uma sociedade dominante), desde que tal negócio tenha sido
autorizado pela assembleia geral (esclarecendo qual o número máximo de acções a adquirir, a duração da
autorização, que em nenhum caso poderá exceder de dezoito meses e, quando o penhor tenha como
objecto acções da sociedade dominante, a autorização deverá ser também dada pela assembleia geral
desta sociedade), que o valor nominal das acções oneradas, somado ao das que já possuam a sociedade
onerante e as suas filiais e, se for caso disso, a sociedade dominante e as suas filiais, não excedam dez por
cento do capital social, que a oneração permita à sociedade adquirente (e, se for caso disso, à sociedade
dominante) dotar a reserva indisponível, sem diminuir o capital nem as reservas legal o estatutariamente
indisponíveis (quando a aquisição tenha por objecto acções da sociedade dominante, será necessário ainda
que esta dote a dita reserva) e, finalmente, que as acções oneradas se encontrem integramente
desembolsadas: porém, estes requisitos não são exigíveis quando se trate de actividades realizadas no
âmbito das actividades ordinárias dos bancos e entidades de crédito, excepto no que se refere ao
cumprimento do respeitante à reserva indisponível (quando não se verifiquem estes pressupostos, o
negócio será ineficaz, incorrendo os infractores numa coima - art.º 89.º da LSA – cfr. De la Santa Garcia,
Prenda de valores cit., pág. 120). Para as sociedades por quotas, o art.º 40.º, n.º 4, da LSRL, não consente
que as sociedades aceitem em penhor as suas próprias participações ou de sociedades do grupo a que
pertença
2529
De acordo com o art.º 325.º, n.º 1, do CSC, as acções próprias que uma sociedade receba em penhor
são contadas para o limite de 10% do capital social, nos termos e para os efeitos do art.º 317.º, n.º 2, do
CSC (em termos concordantes, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 46 e 47, acrescentando que esta
solução se justifica pelo facto de acções dadas em penhor poderem, em sede de execução da garantia, vir
a pertencer à dita sociedade). Segundo Gomes da Silva, ult. ob. e loc. cit., isto não significa que, por força
da aceitação em penhor de acções pela própria sociedade, a essas acções empenhadas não se deva aplicar
a suspensão dos direitos inerentes às acções, especialmente o direito de voto, nos termos do art.º 324.º do
CSC (contra, Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 73,entendendo que mesmo a atribuição dos direitos
sociais ao credor pignoratício –neste caso a sociedade – não suspende o respectivo exercício,
fundamentando a sua posição na impossibilidade de, nesta situação, a sociedade não ser accionista de si
própria, mas apenas credora de um accionista e, por outro lado, salientando que no usufruto de acções
próprias o direito de voto sobre certas matérias é concedido ao usufrutuário). Relativamente a este último
aspecto, Gomes da Silva, ult. ob. e loc. cit., considera que, não obstante o n.º 4 do art.º 23.º do CSC
autorizar a concessão ao credor pignoratício do direito de voto, tal hipótese seja afastada por implicar
“que o credor pignoratício sociedade pudesse votar nas assembleias gerais, o que representaria uma
forma demasiadamente fácil de iludir todo o regime das acções próprias (…)”, regime este delineado
pelo legislador na defesa dos interesses dos sócios, exigindo uma deliberação da assembleia geral para a
aquisição e alienação de acções próprias e, ainda, a suspensão dos direitos inerentes a essas acções, com o
intuito de evitar que “a sociedade possa por alguma forma, efectivamente, ser sócia de si mesma. Para
esse objectivo, é essencial que a sociedade nunca possa votar. Assim sendo, é forçoso que as acções
aceites em garantia pela sociedade, no caso de se convencionar o exercício do direito de voto por parte
do credor, tenham o seu direito ao voto suspenso (embora o Autor sugira, de iure condendo, a suspensão
do direito de voto em qualquer situação de aceitação em garantia das acções, isto é, mesmo que o direito
de voto não seja conferido ao credor). Noutra ordem de considerações, não será necessária uma
deliberação da assembleia geral autorizando a aceitação de tal garantia, solução esta justificada pelo facto
de a aceitação em garantia não ser uma aquisição e, por outro lado, de o penhor apenas em casos
excepcionais conduzir à aquisição das acções por parte do credor - casos estes em que a autorização da
assembleia geral é exigida – uma vez que na maioria das situações não será a sociedade credora a adquirir
os bens empenhados (o Autor citado critica esta norma, alegando que a aceitação em garantia implica que
um lote de acções permaneça subtraído à circulação, ou seja, os direitos de voto podem ficar suspensos,
assim originando o aumento do peso proporcional das restantes acções: por isso, sustenta que a
necessidade de prévia deliberação da assembleia geral teria a vantagem de permitir que todos os sócios se
698
pronunciassem e fossem informados do penhor de acções e do montante das acções subtraídas à
negociação).
2530
No direito italiano e segundo Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 134 e segs., o art.º 2358.º
do CCI proíbe que a sociedade possa aceitar em penhor as próprias acções, facto que coloca dúvida
quanto à subsistência da garantia quando, após a constituição do penhor, as acções oneradas se tornem
propriedade da própria sociedade em resultado de uma fusão em que a sociedade emitente seja
incorporaste (por exemplo se a sociedade A, titular de um crédito para com o cliente X, garantido por
acções da sociedade B e esta vem a ser incorporada pela sociedade A; ou se a sociedade A incorpora a
sociedade B, sendo esta última titular de um crédito garantido por acções da sociedade A). De acordo com
estas duas Autoras, a doutrina divide-se entre os que afirmam a aplicabilidade da proibição legal
unicamente aos casos de aceitação voluntária do penhor de acções próprias (e não “all’acquisto
determinatosi ex lege o per effetto di una più ampia vicenda acquisitiva, come ad esempio una fusione”,
uma vez que neste último negócio “la delibera societaria di fusione è diretta solo a realizzare questa
operazione mentre il concambio delle azioni e il trasferimento della garanzia pignoratizia sui nuovi titoli,
cosi come la successione nel credito garantito da pegno sulle azioni incorporante, sono effetti automatici
ed accidentali dell’operazione di incorporazione e, come tali, non volontari”) e aqueles que, ao invés,
entendem a proibição em termos absolutos (ou seja, aplicável “ad ogni ipotesi in cui la società emittente
sia titolare di un diritto di garanzia sulle proprie azioni, indipendentemente dalla causa di cio, cosicché
la società incorporante che subentra nel pegno avente ad oggetto le proprie azioni dovrebbe restituire al
terzo le azioni ormai libere da vincoli, e perciò possedute senza titolo”). Não obstante o exposto, as
Autoras admitem a aceitação em garantia, por parte da sociedade controlada, de acções da sociedade
controlante (argumentando que “la mera circostanza che una società sia controllata da un’altra non
significa che la controllata, in quanto tale, agisca come interposta persona della controlante”). Por seu
turno Stefano Poli, ob. cit., pág. 305 e segs., realça que o art.º 2357-ter estabelece a suspensão do direito
de voto relativamente às acções próprias, restrição esta que deve valer igualmente em caso de constituição
de penhor sobre tais acções (e, portanto, mesmo que o direito de voto caiba ao credor), bem como na
eventualidade de dação em penhor de acções da sociedade controlada a favor da sociedade controlante
(cfr. art.º 2359-bis), porquanto os interesses societários subjacentes à tal proibição (evitar que os
administradores possam colocar em marcha os chamados “managings control” e apoderarem-se da
maioria em sede de assembleia geral) deverão prevalecer sobre os interesses patrimoniais do credor (os
quais encontram tutela nas regras gerais do penhor, maxime na exigência de substituição ou reforço da
garantia), mesmo que o vínculo pignoratício seja anterior à aquisição dos títulos por parte do emitente
(por último, o Autor alude ainda ao alargamento ao credor pignoratício da suspensão do direito de voto
prevista para as participações recíprocas de sociedades cotadas que superem os montantes legalmente
fixados, mesmo que na ausência de uma relação de controlo entre ambas as sociedades, uma vez que o
que se pretende sancionar são “i rischi di annacquamento patrimoniale e, soprattutto, le interferenze
(meglio: le distorsioni) che si vengono a creare nel rapporto fra la compagine sociale ed i gestori quale
conseguenza dell’incrocio azionario”). No direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 653 e
segs., anuncia que o art.º 80.º da LSA inibe a sociedade de aceitar como garantia as suas próprias acções
(ou as emitidas por uma sociedade dominante) nos mesmos termos vigentes para a aquisição das mesmas,
ou seja, é necessária a autorização da assembleia geral anterior à aceitação do penhor (indicando a
modalidade da operação, o número máximo de acções que se aceitam em penhor, a duração da
autorização e o integral reembolso das acções empenhadas), o valor nominal das acções aceites em
penhor, somadas as detidas pela sociedade e pelas suas filiais (seja a título de propriedade ou por efeito de
penhores anteriormente constituídos), não pode exceder 10% do capital social (na opinião do Autor – vide
Prenda cit., pág. 84, este limite refere-se ao capital social da entidade que aceita em garantia, “salvo en el
supuesto excepcional de que al pretender aceptar en prenda acciones de la sociedad dominante, el
capital social de ésta sea inferior al de la acreedora pignoraticia, en cuyo caso dicho capital constituiría
el límite del cómputo”) ou de 5% (no caso de acções admitidas a negociação), deverá ser criada uma
reserva especial para contra-segurar o valor das acções próprias (sem que a criação desta reserva implique
diminuição do capital social ou das reservas, legal ou estatutariamente, indisponíveis e devendo essa
reserva criar-se simultaneamente com a constituição do penhor) e não poderão ser aceites em garantia
acções próprias não integralmente desembolsadas (requisito este criticado pelo Autor – cfr. Prenda cit.,
pág. 86 – argumentando que a sua justificação – evitar a liberação, por confusão, do pagamento dos
dividendos passivos pendentes por parte de alguns accionistas – não colhe, porquanto o mesmo sucederá
em sede de execução da garantia se não houver interessados na segunda licitação do bem; também Veiga
Copo, La prenda de acciones cit., págs. 267 e 268, verbera esta exigência legal no momento da
constituição da garantia - afirmando que a obrigação de liquidar os dividendos passivos recai sobre o
sócio devedor, e não sobre a sociedade credora – mas admite que a mesma faça sentido em sede de
699
preservação da integridade do capital social2531 e com a incidência negativa de tais
negócios na estrutura financeira da sociedade, embora pareça que a proibição só alcance
execução da garantia, pois aí existe o risco da aceitação por parte da sociedade dessas mesmas acções em
caso de falta de interessados: ainda assim, o Autor entende que nula será a adjudicação, não o contrato de
garantia). Existem, todavia, casos em que a aquisição (e, por conseguinte, a oneração) de acções próprias
é consentida (art.º 77.º da LSA), de entre os quais avultam a execução de um acordo de redução do capital
social aprovado em assembleia geral, quando as acções façam parte de um património adquirido a título
universal e quando se encontrem integralmente liberadas e sejam adquiridas a título gratuito (Veiga Copo,
La prenda de acciones cit., págs. 268 e 269, entende que uma garantia é onerosa quando constitua
condição sine qua non para a concessão do crédito a assegurar, e será gratuita nos casos “en que su
constitución sea autónoma o independiente de la concesión del crédito, como ocurre cuando a posteriori
se garantiza una obligación preexistente. Una garantía será gratuita para el garantizado cuando éste no
ha pagada nada por ella, no arriesgando en esa operación. Esto explica que la adquisición de acciones a
título gratuito sea libre, pues la sociedad no realiza disposición alguna a cambio de esas acciones, y en
el caso de aceptación en garantía su constitución será libre siempre que no comprometa el patrimonio de
la sociedad en esa garantia”) e as inseridas no âmbito da actividade ordinárias das entidades bancárias e
de outras entidades de crédito (art.º 80.º, n.º 2, da LSA, preceito este cuja ratio, segundo Veiga Copo, La
prenda de acciones cit., pág. 270, repousa no facto de estas sociedades serem possuidoras de um vasto
leque de accionistas – que, ademais, normalmente são consumidores dos seus produtos financeiros – pelo
que o crédito é-lhes concedido mais na condição de clientes que de sócios, para além de não ser de crer
que algum dos accionistas se pretenda livrar da condição de sócio por esta visa, sendo certo que o pode
fazer através de uma simples ordem de venda em bolsa). Mesmo que respeitados estes limites, uma vez
aceites em penhor acções próprias, ficam suspensos os direitos administrativos - incluindo o direito de
voto - inerentes a tais títulos, sendo os direitos económicos atribuídos proporcionalmente às restantes
acções – cfr. art.º 79.º da LSA. Para impedir a ilusão da proibição, Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 213,
equipara à aceitação pela sociedade a aceitação por interposta pessoa, bem como a aceitação em garantia
de acções de uma sociedade dominante). Em caso de infracção destas normas, a sanção administrativa é
uma coima (cujo valor pode ascender ao valor nominal das acções aceites em garantia, sendo
responsáveis pelo seu pagamento os administradores da sociedade infractora) e, quanto ao negócio em si,
a lei não indica qual a cominação (Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 88 – propende para a nulidade,
tendo em conta tratar-se de um negócio contrário à lei, até porque “al continuar siendo el pignorante
dueño de la cosa, no sería aplicable la obligación de enajenar y se aplicaría, en principio, la normativa
sobre ineficacia de los negocios contrarios a la Ley”, enquanto Veiga Copo, La prenda de acciones cit.,
pág. 272, restringe essa nulidade à garantia – não afectando o crédito – embora, de lege ferenda, proponha
o vencimento automático da obrigação garantida, pois desse modo “la sociedad recuperaría el importe
del crédito, o en su defecto, procedería a la ejecución de la garantía – transmisión forzosa de la acción -,
pudiendo reclamar el resto contra su antiguo y ya ex socio”). Relativamente às sociedades de
responsabilidade limitada, a lei é bem mais restritiva (cfr. art.º 40.º, n.º 4, da LSRL) ao nem sequer
permitir a sua dação em penhor nos casos em que se admite a sua aquisição (não obstante, o Autor admite
essa possibilidade sempre que se trate de garantir operações permitidas pelo n.º 1 do mesmo art.º 40.º,
com a aplicação analógicas das normas vertidas para as sociedades anónimas, nomeadamente no art.º 79.º
da LSA), sendo esta infracção punida com multa e com a nulidade do negócio constitutivo da garantia (o
Autor, in Prenda cit., pág. 81, critica esta diferença de tratamento entre os dois tipos de sociedades, tendo
em conta que ambas são sociedades de responsabilidade limitada). Em face do direito francês, Dominique
Doise, ob. cit., pág. 44, nota 39, ensina que o penhor constituído sobre acções de uma sociedade detidas
por uma outra sociedade que, posteriormente, absorverá a primeira, se extinguirá sempre que essa
absorção se realize através de fusão (uma vez que não se pode transferir para os activos da sociedade
absorvida, nem para as acções da sociedade absorvente).
2531
Considera ser esta a principal (e porventura única) razão de ser da proibição Veiga Copo, La prenda
de acciones cit., págs. 257 a 261, rejeitando que a mesma resida na necessidade de evitar que possa ser
contornada a proibição de adquirir (pois só em casos muito remotos – depois da realização de duas hastas
públicas que tenham ficado desertas e, mesmo assim, a sociedade não tem o dever de as adquirir - existe a
possibilidade de o credor-sociedade vir a adquirir tais acções e, para o conjurar este perigo, “bastaría con
especificar que la prohibición de adquirir el propio capital se extiende también a estos supuestos”) ou na
influência indirecta e nefasta que a fattispecie poderia ter na gestão da sociedade (traduzida no facto de a
sociedade credora – e, por consequência, os seus administradores – poderem exercer o direito de voto
correspondente às acções oneradas, seja porque o título constitutivo da garantia lhe confere directamente
essa faculdade, seja influenciando o sentido de voto do sócio devedor: todavia, “este razonamiento por sí
solo no es suficiente para prohibir estos negocios pues se desactivaría fácilmente con la simple
700
as garantias voluntariamente aceites2532 e se coloquem diversas interrogações quando
estejamos perante um penhor rotativo ou omnibus.2533
suspensión del ejercicio del derecho de voto por parte de la sociedad emisora”). Nesta conformidade, a
verdadeira ratio da limitação legal reside no facto de “las acciones propias poseídas en concepto de
garantía no son bienes patrimoniales consistentes para asegurar una obligación crediticia frente a la
propia sociedad emisora, por la falta de valor patrimonial de las propias acciones y su incapacidad para
formar el capital. En cierto sentido equivaldría a que la sociedad se asegurase a sí misma (…). La
sociedad corre el riesgo de no poder ver satisfecho plenamente el crédito y conseguientemente reintegrar
su capital con cargo a la prenda, pues su valor puede haber disminuido notablemente. Incluso podría
darse el supuesto de que la sociedad restituya sus aportaciones a los socios mediante la concesión a
éstos de un crédito de difícil devolución garantizado con acciones que, debido a la salida de fondos del
patrimonio societario, han perdido valor” (o Autor refuta a posição de alguma doutrina que recusa ser
este factor suficiente para justificar a proibição – com o argumento que nada impediria a sociedade de
realizar a mesma operação sem qualquer garantia, o que seria ainda mais prejudicial para a integridade do
capital social -, contrapondo que a proibição se justifica para evitar “que la sociedad emprenda
operaciones arriesgadas que de otra manera no emprendería en la confianza de la garantía que le
proporcionan sus propias acciones”). Em suma, “La acceptación en garantía de las acciones propias
implica que, intencionalmente o no, la sociedad asuma el riesgo económico de la posible separación de
un socio, puesto que la pignoración de acciones propias conlleva una restitución de aportaciones a cargo
del patrimonio social en eventual perjuicio de la integridad del capital (…). Si el socio incumple y la
sociedad procede a ejecutar esas acciones existe un riesgo a que esas acciones no lleguen a cubrir el
montante del crédito (…) permaneciendo en crédito de la sociedad ante el socio deudor por la diferencia,
y que en caso de resultar éste insolvente, la sociedad correrá con dicho riesgo. De este modo se puede
argüir que si la sociedad acepta sus propias acciones en garantía, y no otros bienes del socio, con ello
está, si no negociando la separación del socio, sí al menos antecipandóla y aceptandóla, con peligro en
todo caso para la integridad económico-administrativa del capital”. Porém, Mejias Gomez, La prenda
cit., págs. 79 e 80, ressalva que, quanto à primeira justificação, a ela se pode contrapor que “se las
acciones proprias obtenidas son mala garantía para la sociedad (…) menos garantía tendrá la sociedad
si concede crédito sin ellas”: em suma, a ratio da proibição resulta da necessidade de “evitar que a través
de procedimientos indirectos se consiga eludir la normativa sobre acciones proprias, para asegurar
frente a los acreedores de la sociedad y otros terceros, la integridad del capital social, si bien es cierto
que la eventualidad de que se integren las acciones en el patrimonio de la sociedad en ejecución de la
prenda es más lejana”.
2532
Neste sentido, Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 81 e 82, admitindo, por isso, a aceitação de acções
independentemente da vontade da sociedade (por exemplo no seguimento de aquisição ou adjudicação
judicial, recebendo as acções próprias como consequência do incumprimento de uma obrigação), assim
como as garantias sobre acções próprias que se recebam no âmbito de um património adquirido a título
universal (por exemplo, assumido pela sociedade a título de fusão ou cisão). Pelo contrário a proibição
abrangerá, quer a aquisição negocial por parte da sociedade de um crédito garantido com um penhor de
acções próprias, bem como a aceitação de acções próprias através de interposta pessoa - quanto a este
último aspecto, o art.º 88.º da LSA equipara a aceitação por interposta pessoa à aceitação pela própria
sociedade – mas não o penhor enquadrado nas operações efectuadas no âmbito das actividades ordinárias
dos bancos e de outras entidades de crédito. Segundo Ballarín Marcial, ob. cit., págs. 212 e 213, a
proibição não alcança “la garantía ex lege, ni a la que va inserta en un acto más amplio, como una
herancia, ni (…) debe extenderse a la cessión de crédito así garantizado”, nem tão pouco quando o
penhor houver sido constituído a título gratuito (isto é, “cuando se conceda independiente del crédito
surgido con anterioridad”, bem como em caso de “adquisición de acciones gravadas con prenda por
virtud del ejercicio de un derecho depreferente adquisición estabelecido en los Estatutos siempre que
según ellos deba revenderlas a los socios dentro de un plazo determinado”, pois em tal
circunstancialismo não ocorrerá diminuição da integridade patrimonial). Também Veiga Copo, La prenda
de acciones cit., págs. 262 e 263, sustenta que a proibição legal não abrange as garantias legais, embora
advirta para a necessidade de analisar os processos dentro dos quais se verifica a aquisição da garantia
(por exemplo, no caso de a sociedade adquirir, através de cessão, um crédito garantido com penhor sobre
acções dessa mesma sociedade, não restam dúvidas que a aquisição da garantia se deu ope legis, mas “el
proceso en su conjunto es negocial, por lo que la norma prohibitiva debe ser aplicada”).
2533
Pois, como salienta Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 265, em caso de extensão da
garantia a outros bens do devedor que venham, no futuro, a ser detidos pelo credor pode vir a suceder que
“la sociedad resulta poseedora de acciones propias y eventualmente puede convertirse en acreedora
pignoraticia de sus acciones al extenderse la prenda”, embora, como a concessão de crédito não se
701
É, ainda, discutível a empenhabilidade de parte das participações sociais detidas
pelo sócio empenhante (seja originariamente, seja na sequência de uma divisão das
participações originárias),2534 não vislumbrando nenhum obstáculo quando a
generalidade dos direitos sociais correspondentes às participações oneradas seja
concedida ao sócio, podendo as objecções surgir na hipótese de repartição daqueles
direitos entre o sócio e o credor ou de atribuição exclusiva a este último – todavia,
mesmo neste último circunstancialismo e na medida em que se admite que,
relativamente à mesma participação, se repartam os direitos sociais a ela inerentes, por
maioria de razão se deverá consentir que apenas algumas das ditas participações sejam
oneradas e outras não.
Dúvidas também se levantam acerca da colocação em penhor de participações
sociais, em especial de acções, relativas a sociedades cujo processo de formação se não
tenha completado2535 (nomeadamente sobre acções de sociedades não inscritas no
registo comercial ou emitidas na sequência de um aumento de capital não anotado
naquele mesmo registo).2536
efectuou em função de tais acções, “Lo deseable es que la garantía se extienda o se sustituya – si es
rotativa – a cualesquiera otros bienes de que disponga del deudor, y sólo cuando no queden más bienes
que estas acciones propias, se procederá a extender la prenda como última medida”.
2534
A propósito das quotas, Raúl Ventura, Divisão de quota, in O direito, ano 98, n.º 2 (Abr.-Jun. 1966),
pág. 97, nega que seja permitido ao sócio dividir a sua quota em duas ou mais para fazer incidir sobre
uma ou mais das novas quotas o penhor - tendo em conta a divisão apenas pode ocorrer por força da
transmissão das quotas – pois, de outro modo, passariam a existir várias quotas na titularidade do sócio
devedor - naturalmente que, ocorrendo a execução do penhor, poderá verificar-se uma transmissão e esta
originará o efeito divisório (todavia, o Autor admite, ao menos implicitamente, o penhor sobre uma parte
da quota). No direito espanhol, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 198 a 202, admite que, em
caso de divisão das acções da sociedade por decisão societária, o sócio devedor possa libertar do ónus um
número de acções que excedam o valor das inicialmente empenhadas, desde que tal tenha sido
expressamente acordado pelas partes (desta forma se consagrando uma excepção ao princípio da
indivisibilidade da garantia e um afastamento da regra da indivisibilidade da acção, uma vez que as
participações primogénitas sofreram uma transformação numa pluralidade de novas). Por outro lado, este
mesmo Autor nega a viabilidade de um endosso parcial e, como alternativa, consente que o sócio detentor
de uma multiplicidade de acções e que pretenda empenhar apenas algumas delas solicite à sociedade e
obtenha a quantidade de títulos solicitada, assim produzindo um fraccionamento do título originário.
2535
Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., págs. 50 a 52, apesar de salientar a natureza não constitutiva do
registo comercial, apenas admite a celebração de um contrato-promessa de penhor de acções (pois o
contrato definitivo exige a entrega das acções tituladas ou o registo das escriturais), não obstante a
inviabilidade do recurso, em caso de incumprimento, à execução específica. Quando muito, concebe a
celebração de um penhor de direitos, tendo por objecto o poder do sócio exigir da sociedade, consoante o
caso, a emissão do título ou o seu registo em conta (para cuja constituição se deve exigir a notificação à
sociedade, ficando esta, a partir desse momento obrigada a entregar os títulos ao credor no momento da
emissão – tratando-se de valores titulados - ou, aquando do registo das acções, registar também o penhor
– no caso dos valores escriturais. Uma vez entregues as acções ao credor pignoratício ou efectuado o seu
registo, o penhor passa a incidir sobre as próprias acções). De acordo com o direito espanhol, Veiga
Copo, La prenda de acciones cit., pág. 142 e segs., entende que, apesar do carácter constitutivo do registo
da sociedade e dos argumentos normalmente invocados contra a empenhabilidade das acções neste
momento (a segurança do tráfico, a inexistência da acção antes do registo e necessidade de impedir a
especulação sobre uma participação de existência incerta), será de aceitar tal possibilidade, embora a
condicione ao consentimento dos demais sócios, concluindo que “Sí la sociedad se inscribe, el objecto
recaerá directamente sobre las acciones”.
2536
No direito espanhol Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 72 e segs., dá conta que o entendimento
dominante aponta no sentido da qualificação deste tipo de acções como bens fora do comércio (uma vez
que a sociedade ainda não detém personalidade jurídica própria), enquanto não se efectuar o registo,
excluindo assim a sua transmissão plena ou limitada (com o argumento que, se tal fosse consentido,
poderia não estar assegurado o desembolso das acções subscritas e com a necessidade de evitar
especulações acerca do valor das acções no momento da constituição da sociedade), até porque o art.º 62.º
da LSA proíbe a entrega ou transmissão das acções antes do registo – esta posição é igualmente
702
Esta interrogação entronca noutra, mais vasta, respeitante à susceptibilidade de
negócios jurídicos sobre as participações sociais antes do registo do contrato de
sociedade,2537 embora não deixe de relevar para o caso de, mesmo após o registo
daquele contrato, os títulos não serem emitidos ou não se proceder ao registo das acções
escriturais.2538
Problemas acrescidos surgem quando se pretenda constituir uma garantia de
natureza pignoratícia sobre títulos inexistentes ou ainda não emitidos,2539 distinguindo
defensável em face dos dados normativos da ordem jurídica lusa, porquanto o art.º 5.º do CSC condiciona
a atribuição de personalidade jurídica à sociedade à inscrição do contrato de sociedade no registo. Pelo
contrário, Ignacio Arroyo e José Miguel Embid, Comentarios a la ley de sociedades anónimas, 2.ª Edição,
Volume I, Tecnos, 2009, pág. 670, defendem que “hasta que las acciones se representen existe un
derecho no incorporado, ni en los títulos, ni en la cuenta. De ahí se desprende que, en este caso, y a
pesar del silencio de la Ley, la prenda recaerá sobre la acción como expoente del derecho de la
participación social” (e, por analogia com o que sucede para a transmissão de acções representadas – as
quais, nos termos do art.º 56.º, n.º 1, da LSA, se submete ao regime da cessão de créditos – o mesmo
deverá suceder com a constituição de penhor sobre as mesmas, pelo que “cabe sustitur la entrega de las
acciones por la notificación a la sociedad (…) una vez que las acciones se representen efectivamente, el
acreedor estará legitimado para reclamar a la sociedad la entrega de los títulos, o, en el caso de
anotaciones en cuenta, para la solicitar de las entidades correspondientes la inscripción de su derecho
en la cuenta”) – em termos muito aproximados, Ballarín Marcial, ob. cit., pág. 198.
2537
A este respeito, o n.º 6 do art.º 304.º do CSC, dispõe que os títulos provisórios ou definitivos não
podem ser emitidos ou negociados antes da inscrição definitiva do contrato de sociedade (ou do aumento
de capital) no registo comercial e, para as acções escriturais, o art.º 47.º do CVM estabelece que a
inscrição dos valores mobiliários exige o prévio cumprimento das formalidades próprias para a criação de
cada tipo de valor, incluindo as relativas ao registo comercial. Com base nestas premissas, Soveral
Martins, ob. cit., pág. 197 e segs., entende que a lei proíbe a emissão e a negociação dos títulos antes da
inscrição do contrato no registo e, para as acções escriturais, não se consente o registo das mesmas antes
do registo do contrato (uma vez que, até ao registo do contrato, não existe verdadeiramente sociedade – o
registo é constitutivo – do mesmo modo que os títulos também não existirão antes desse momento e, no
que toca às acções escriturais, se não se pode efectuar o registo, não se poderá realizar a transmissão dos
mesmos valores), embora o Autor sublinhe que a citada norma do CSC interdita unicamente a negociação
dos títulos antes do registo do contrato, mas, uma vez que depois da escritura já existem sociedades,
sócios e participações sociais, admite “a transmissão entre vivos da participação social depois do acto
constitutivo e antes de realizado o registo”, sem necessidade de alteração do pacto social (posição
corroborada pelo art.º 274.º do CSC, ao determinar que a qualidade de sócio surge com o contrato de
sociedade – o mesmo valendo para as acções escriturais, de modo que a qualidade de sócio também não
depende do registo em conta, mas apenas da outorga do contrato de sociedade - embora o art.º 37.º, n.º 2,
aplicável a qualquer tipo de sociedade, sujeite tais negócios ao consentimento unânime dos sócios).
2538
Soveral Martins, ob. cit., pág. 211 e segs., sublinha que tal se pode ficar a dever a negligência ou dolo
(para evitar os custos de emissão ou de registo ou para dificultar a transmissão das participações). De
qualquer forma, antes dessa emissão ou registo, o seu titular pode pretender transmitir as participações
sociais (apesar de, para as acções tituladas, o art.º 304.º, n.º 3, do CSC, estabelecer que os títulos
definitivos deverão ser entregues aos accionistas nos seis meses seguintes ao registo do contrato de
sociedade e, não obstante a possibilidade de a sociedade entregar aos sócios um título provisório
nominativo que substitui, para todos os efeitos, o título definitivo, enquanto este não for emitido),
discutindo-se como se processará tal transmissão, sustentando uns a aplicação das regras da cessão da
posição contratual, outros as da cessão de créditos e outros o regime previsto para as sociedades por
quotas (aderindo o Autor a esta última posição, concluindo que, por isso, a transmissão das participações
estará sujeita à comunicação à própria sociedade, embora não admita a existência da necessidade de
consentimento da sociedade, atento o princípio da livre transmissibilidade das acções).
2539
Para Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 46 e segs., “L’inesistenza del certificato nella sua cartacea
solleva dunque molteplici problemi, anzitutto se sia possibile attuare il vincolo pignoratizio prima della
materiale emissione del titolo e, conseguentemente, quello della definizione dell’oggetto del pegno,
necessaria per stabilire la disciplina da applicare alla fattispecie”, admitindo que a garantia se possa
constituir através do recurso a duas modalidades diversas, o penhor de créditos (assumindo a entidade
credora, no âmbito da relação de mandato e caso os bens se encontrem sujeitos a gestão centralizada, a
veste de depositária por conta do devedor, tendo este um direito à restituição do título ou ao seu contra-
valor no momento do vencimento da dívida, sendo este o objecto do penhor de créditos, acrescentando
703
alguns consoante os títulos se destinassem ou não a ser emitidos no futuro,2540 embora
em ambos os casos estejamos perante hipóteses em que o em que o objecto da garantia
que cumpriria distinguir consoante os títulos em questão venham a ganhar existência material – caso em
que será necessário constituir o penhor, nos termos gerais da lei civil - ou, pelo contrário, tal não aconteça
– caso em que o penhor permaneceria eficaz, sendo embora duvidosa a possibilidade de transferência,
sem efeitos novatórios, do objecto para o contra-valor dos títulos) ou de direitos (do direito do credor à
emissão dos títulos, exercitável contra o emitente, salvo quando os valores sejam alvo de gestão
centralizada – uma vez que, nessa hipótese, o titular do direito a obter os títulos é o gestor - caso em que o
penhor incidirá sobre o direito do gestor a obter os títulos ou o seu contravalor), embora qualquer delas
enfrente algumas críticas (quanto ao penhor de créditos, “appare difficilmente individuabile l’oggetto del
credito vantato dal mandante nei confronti della banca mandataria, una volta che questa ultima abbia
eseguito il mandato sottoscrivendo i titoli per conto del cliente (…) perchè, come detto, i titoli stessi non
sono entrati nel patrimonio del mandatario, il mandante non potrà vantare nei confronti di costui alcun
diritto fino al momento in cui i certificati non saranno materialmente stampati ovvero non si sarà reso
disponibile il relativo controvalore, a seuito della scadenza degli stessi”, apenas podendo identificar-se
um direito – traduzido na restituição do certificado provisório - quando o credor não cumpra o mandato
ou, em alternativa, caso se configure tal direito como objecto do penhor de créditos o direito face ao
emitente à entrega de coisas fungíveis, especialmente quando o credor actuasse em nome próprio “poiché
dell’acquisto di un credito, al pari dell’acquisto di cose mobili, anche se compiuto dal mandatario in
nome proprio, se ne può avvantaggiare il mandante a seguito di ritrasferimento automatico oppure
direttamente”). De qualquer modo, remata o mesmo Autor, a configuração do penhor de títulos não
emitidos poderá ser útil em matéria de penhor de quotas de sociedades (sendo necessária a inscrição no
livro dos sócios - sendo duvidoso se tal inscrição será suficiente para o surgimento da preferência ou, pelo
contrário, será ainda mister dar cumprimento às formalidades postuladas pelo art.º 2787.º, n.º 3, do CCI –
de modo que “il possesso della quota si ottiene attraverso l’iscrizione nel libro dei soci. La stessa regola
potrebbe applicarsi anche per soddisfare il requisito dello spossessamento proprio del pegno”, destarte
consentindo que a constituição de ónus sobre determinados bens “pur rimanendo il creditore privo della
loro disponibilità materiale, ogni volta che sia possibile dar corpo ad una figura di possesso collegata ad
annotazioni del vincoli reali su appositi registi”) ou de participação em fundos comuns. Depois da
reforma do direito societário italiano de 2003, nomeadamente com a nova redacção do art.º 2355.º do CCI
(de acordo com a qual, em caso de não emissão das acções, a sua transferência apenas se torna eficaz
perante a sociedade a partir da data da respectiva inscrição no livro dos sócios), Lorenza Bullo e Claudia
Sandei, ob. cit., págs. 140 e 141, aceitam que tal inscrição é condição, não apenas de oponibilidade à
sociedade emitente, mas também inter partes (uma vez que “in assenza di uno spossessamento sia
materiale che giuridico del bene oppignorato, non possa dirsi concluso alcun valido negozio di pegno
(…) e lo spossessamento giuridico può ben attuarsi attraverso l’iscrizione nel libro dei soci”, embora
ressalvando que “In caso di successiva distribuzione dei titoli, però, l’iscrizione nel libro dei soci diviene
insufficiente a dare notizia ai terzi e perciò il vincolo diviene inefficace se non viene annotato sui titoli”).
2540
De acordo com Stefano Ambrosini, ob. cit., pág. 308 e segs., é necessário distinguir, relativamente
aos títulos não emitidos no momento da constituição da garantia, consoante os mesmos sejam destinados
a ser emitidos no futuro ou, pelo contrário, não se preveja tal futura emissão, mas entende que a figura
que melhor se adapta a qualquer das duas hipóteses é a do penhor irregular de coisa futura (o Autor rejeita
a qualificação da fattispecie como penhor de créditos – tendo por objecto, precisamente, a obrigação de
entrega dos títulos - alegando que, mesmo quando exista um mandato do devedor ao credor para a
aquisição de determinados títulos que posteriormente seriam abrangidos pelo penhor, o penhor não
poderá ter como objecto o direito à entrega de coisas certas e determinadas “in quanto si sortirebbe
l’effetto di costituire un pegno su mobili in forme diverse da quelle stabilite imperativamente dagli artt.
2786 e 2787 c.c.; mentre anche nel caso in cui il diritto alla consegna si riferisse a cose fungibili,
l’efficacia della prelazione sarebbe comunque impedita dall’assenza di un pressuposto indefettibile quale
lo spossessamento da parte del debitore oppegnorato, avendo il pegno ad oggetto, nella sostanza, la cosa
e non il credito”). De acordo com esta posição, “consistendo tale figura, in pratica, in un trasferimento di
proprietà del bene, non si vede perché non possa trattarsi di un bene non ancora venuto ad esistenza,
similmente alla vendita di cosa futura”, até porque o penhor irregular origina o surgimento de um contra-
crédito para efeitos de compensação e “siccome la compensazione opera quando il credito viene a
scadenza, è solo in tal momento, e non prima, che rileva la necessaria esistenza della cosa in rerum
natura”. Em termos semelhantes, Mia Callegari, ob. cit., pág. 112 e segs., nos casos em que os títulos não
se encontrem emitidos no momento da constituição da garantia, mas sejam susceptíveis de futura
materialização (ou, ao menos, de uma futura possível emissão titulada), refere que a jurisprudência e a
doutrina dominantes consideram insusceptível de ser qualificada como penhor de coisas (tendo em conta
704
não existe no momento da constituição da mesma, por força da ausência de
representação das participações a empenhar:2541 em exemplo particular, em que já
existem títulos, mas estes são provisórios, diz respeito às acções tituladas
provisórias.2542
a impossibilidade de identificar uma “res” e, por outro lado, de não ser vislumbrável um bem susceptível
de posse), oscilando as posições maioritárias entre o enquadramento da fattispecie no penhor de créditos
para com o mandatário (tendo como objecto o direito à entrega dos documentos ou do seu contravalor) ou
no penhor irregular de coisa futura (produzindo-se a efectiva constituição da garantia apenas no momento
do surgimento da coisa e da sua entrega ao credor, do mesmo modo que apenas nessa data se poderiam
cumprir as formalidades de identificação do objecto do penhor legalmente exigidas).
2541
No direito espanhol, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 151 e segs., noticia que o recurso à
figura das acções não documentadas é comum nas sociedades fechadas (e, em geral, em todas as
sociedades, uma vez que estas não têm o dever de emitir e entregar as acções, a menos que os sócios o
solicitem) e admite a sua empenhabilidade “de acuerdo con las reglas generales de la cesión de créditos
en garantía, prescindiéndose de este modo de la documentación de las acciones” (aliás, a própria lei
reconhece a viabilidade deste negócio, ao estabelecer, no art.º 57.º, n.º 2, da LSA que “cuando los títulos
no hayan sido impresos y entregados, el acredor pignoraticio tendrá derecho a solicitar y obtener de la
sociedad, una vez inscrito el derecho real, una certificación de la inscripción de su derecho en le libro
registro de acciones nominativas” e, também, no art.º 55.º da mesma lei que estipula que a transmissão
das acções não documentadas se produzirá de acordo com as normas da cessão de créditos). Todavia, o
Autor realça a necessidade de adaptar o regime da cessão ao penhor - tendo em conta que este constitui
uma cessão limitada – considerando que a notificação da sociedade emitente não constitui requisito de
validade ou de oponibilidade a outros terceiros que não seja aquela sociedade, sendo antes uma mera
faculdade que assiste ao credor pignoratício (que terá interesse em fazê-lo, no caso de acções
nominativas, para inscrever a garantia no livro da sociedade - e, desse modo, impedir o sócio do exercício
dos direitos sociais – e, para as acções ao portador e apesar da inexistência de tal livro, a notificação será
igualmente necessária para obter esse efeito). Se e quando as acções venham a ser documentadas em
títulos, o objecto da garantia não se alterará (continuando a ser a participação social), mas apenas a forma,
tendo o sócio o direito a exigir da sociedade a entrega do título definitivo para, posteriormente, o remeter
ao credor (tendo este o direito a exigi-lo do sócio e, para evitar que o sócio entregue o título a terceiro,
deverá o credor pignoratício tomar determinadas precauções, como sejam “presentándose ambos ante la
sociedad u obteniendo representación del socio para exigir el ejercicio de ese derecho”).
2542
Admite a empenhabilidade destas últimas hipótese Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 53,
considerando que, mesmo provisórias, já constituem valores mobiliários (tendo em conta também que,
nos termos do n.º 2 do art.º 304.º do CSC, estes títulos substituem, para todos os efeitos, os títulos
definitivos, enquanto estes não forem emitidos. Para além disso, estes títulos terão um período de vida
diminuto, tendo em conta que, nos termos do n.º 3 do art.º 304.º, os títulos definitivos deverão ser
entregues num prazo de 6 meses após o registo do contrato de sociedade). No mesmo sentido para o
direito espanhol, vide Salinas Adelantado, El régimen cit., págs. 318 e 319 (invocando o argumento de
maioria de razão, na medida em que a lei admite expressamente a constituição de direito reais limitados
sobre acções não documentadas) e Ballarín Marcial, ob. cit., págs. 199 e 200 (configurando-o como um
penhor de créditos, cujo objecto seria a emissão, por parte da sociedade, dos títulos definitivos). De la
Santa García, ob. cit., pág. 110 e segs., distingue entre a hipótese de penhor de participações não
documentadas, sem que existam sequer títulos provisórios ou certificados de inscrição (sustentando, com
base no art.º 57.º, n.º 2, da LSA – de acordo com o qual em caso de não emissão e não entrega dos títulos
ao credor pignoratício, este tem direito a obter da sociedade um comprovativo da inscrição do seu direito
no livro de registo das acções nominativas – a admissibilidade de um penhor nestas circunstâncias,
servindo o preceito em questão como justificação para a ausência do desapossamento do constituinte,
sendo este substituído pela notificação do advento da garantia ao devedor. Todavia, o Autor esclarece que
a licitude de tal negócio se encontra condicionada à prévia inscrição no registo comercial da escritura da
qual brotam as participações sociais a onerar, uma vez que o registo assume papel constitutivo – até então
teremos meros projectos de participações – e o ordenamento espanhol não admite o penhor de bens
futuros: quando muito, admite “una prenda de créditos sobre los derechos propios del suscriptor
derivados de esas “acciones en potencia” y posteriormente sustituirse por una prenda sobre las
acciones, preo esto conllavaria la necesidad de realizar dos negocios jurídicos”. Esta garantia pode
configurar-se como um penhor de créditos, recaindo sobre um crédito e não sobre um título material,
formalizando-se através de uma notificação à sociedade, seguida da inscrição no livro da sociedade ou,
em alternativa, como uma cessão de créditos) e a hipótese de penhor sobre tais documentos provisórios
705
Por outro lado e mesmo que se admita a sua oneração, a ausência de um suporte
material presente faz nascer a dúvida acerca da natureza pignoratícia da garantia.2543
Finalmente, a existência de participações sociais com prestações acessórias
suscita igualmente dúvidas quanto à respectiva oneração,2544 o mesmo sucedendo com
aquelas que se encontrem numa situação de contitularidade - neste último caso, a
ausência de regulamentação específica para as participações sociais implica, salvo
melhor juízo, a aplicação do regime ditado para o penhor de bens em regime de
compropriedade.2545
(pois, segundo a generalidade da doutrina, são títulos-valor, de modo que a sua empenhabilidade não deve
oferecer dúvidas e, aquando da emissão dos títulos definitivos, serão substituídos por estes: todavia, como
os títulos provisórios são obrigatoriamente nominativos, será imprescindível a sua inscrição no livro de
registo de tais acções da sociedade emitente, do mesmo modo que aí terá que ser averbada a substituição
pelos títulos definitivos). Nesta última hipótese, cumpre ainda distinguir consoante as participações se
destinem a vir a ser tituladas (caso em que o penhor não se poderá constituir por endosso, mas apenas
através da entrega do documento provisório seguida da inscrição no livro societário, tendo o credor tem
direito a que a sociedade emita um certificado atestando que o credor detém um direito inscrito no livro
social) ou escriturais (caso em que parece mais difícil admitir possibilidade, pois, como destaca Veiga
Copo, La prenda cit., pág. 196, tal possibilidade acarretaria problemas práticos no momento da posterior
inscrição, para além do inconveniente da não eliminação do papel e de, desse modo, se violarem os
estatutos sociais que prevêem a representação das acções de modo escritural). Gabrielli, I negozi
costitutivi cit., pág. 164, por seu turno, duvida que seja possível constituir um penhor antes da emissão
material do título, uma vez que não é ainda possível determinar o objecto do penhor e, por isso, a
disciplina aplicável.
2543
Hardel, ob. cit., pág. 87 e segs., considera não estarmos perante um penhor, mas antes diante de uma
simples promessa, “d’un contrat synallagmatique passé entre le prêteur e l’emprunteur. Par ce contrat ce
dernier donne au créancier, en échange de l’avance consentie, une promesse d’affecter à son
remboursement une certaine quantité de titres, bien que ceux-ci ne soient pas encore émis. La mise en
possession n’est opérée que pour conférer un droit de rétention sur la chose, jusqu’au jour où celle-ci,
ayant une valeur propre, constituera una gage certain”.
2544
Na ausência de norma expressa, a este respeito (quer quanto à legitimidade de oneração, quer quanto
à constituição da garantia), na nossa legislação (a qual se limita a prever a possibilidade de o contrato de
sociedade impor, a todos ou a alguns dos sócios, a obrigação de efectuarem prestações acessórias – cfr.
art.ºs 209.º, n.º 1 e 287.º, n.º 1, do CSC, respectivamente para as sociedades por quotas e anónimas), a sua
oneração obedecerá ao exposto para a generalidade das participações sociais (com a ressalva de, no caso
das acções com participações acessórias, estas deverem obrigatoriamente assumir forma nominativa –
art.º 299.º, n.º 2, alínea c), do CSC). Em face do direito espanhol, Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 94
e 95, considera ser necessário o consentimento da sociedade de responsabilidade limitada para a
transmissão de qualquer participação desta índole (pelo que será necessária a comunicação à sociedade da
constituição da garantia). Nas sociedades anónimas, a regra também é a da necessidade de consentimento
da sociedade, muito embora se admita que o pacto social dispense tal autorização (quando exista essa
necessidade de autorização, o Autor sustenta que a mesma não será discricionária, devendo os estatutos
tipificar as causas de recusa): de qualquer modo, a prestação acessória vincula, não a concreta pessoa do
sócio, mas o titular das acções, o que torna impossível a transmissão das prestações desacompanhadas da
acção. Nesta conformidade, “la existencia de restriciones sobre acciones vinculadas a la existencia de
prestaciones accesorias no impide la prenda sobre las mismas”, embora, em caso de acções nominativas,
seja necessária a inscrição do penhor no livro de registo dos sócios. De la Santa Garcia, Prenda de valores
cit., págs. 118 e 119, distingue entre as acções (caso em que as mesmas deverão assumir a forma
nominativa – art.º 52.º da LSA – mas poderão ser livremente empenháveis, embora a respectiva
transmissão fique condicionada, salvo norma em contrário dos estatutos, a autorização da sociedade –
art.ºs 63.º e 65.º da LSA) e as quotas (caso em que a transmissão inter vivos de quaisquer destas
participações – art.º 24.º LSRL – carece de autorização da assembleia geral da sociedade).
2545
Nos termos do qual, se o comproprietário pretender onerar apenas a sua quota parte deverá obter o
consentimento dos restantes condóminos em possuir em nome do credor pignoratício (ou, em alternativa,
entregar a posse do bem a algum daqueles, ficando estes afectados pela constituição da garantia
unicamente no que concerne à parte adjudicada ao sócio na divisão que ocorra após a extinção da
contitularidade) ou, ao invés, desejar constituir um penhor sobre a totalidade da acção (caso em que será
necessário o consentimento de todos os consortes) – em termos análogos para o direito espanhol, vide
Mejias Gomez, La prenda cit., págs. 101 a 103. Outros obstáculos à dação em penhor deste tipo de bens
706
Ainda no domínio societário merece referência autónoma o regime especial
consagrado para o Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada, o qual
consente a oneração pignoratícia do próprio estabelecimento, aligeirando os requisitos
tradicionais de constituição desta garantia.
Assim, nos termos do n.º 1 do art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 248/86, de 25 de
Agosto, este penhor não implica o desapossamento do devedor a consequente entrega
do estabelecimento ao credor, devendo o negócio de constituição da garantia ser
reduzido a escrito e inscrito no registo (apenas produzindo efeitos a partir da data do
cumprimento desta última formalidade)2546 – cfr. art.º 16.º, n.ºs 1 e 2, por remissão do
art.º 21.º, n.º 2.
poderão advir do pacto social (impedindo o penhor sobre quotas de acções) e até de pactos entre os
comproprietários (nomeadamente pactos de indivisão, os quais, contudo, têm eficácia meramente
obrigacional e, por isso, não são oponíveis ao credor pignoratício).
2546
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 262 (acrescentando que a própria transferência
do estabelecimento se encontra sujeito a registo).
2547
Cfr. Salvador da Costa, ob. cit., pág. 34. Nos termos do art.º 1.º deste diploma, o Fundo pode
dispensar a entrega dos bens onerados, sempre que os referidos bens sejam necessários à continuação da
actividade dos respectivos estabelecimentos hoteleiros, caso em que os mesmos permanecerão em poder
do empenhante, o qual se tornará depositário dos mesmos - ou, tratando-se de possa colectiva, tal
incumbência passa a caber aos respectivos administradores ou representantes legais - (art.º 2.º), sujeitos à
aplicação das penas previstas para o criem de furto na eventualidade de alienarem, modificarem,
destruírem ou descaminharem os objectos dados em penhor, sem autorização escrita da comissão
administrativa do Fundo de Turismo, ou de os empenharem novamente sem que no novo contrato se
declare expressamente a existência do penhor ou dos penhores anteriores (art.º 3.º). O negócio de
constituição da garantia, porém, devera constar de documento autêntico ou de documento autenticado e os
seus efeitos contar-se-ão da data do documento, no primeiro caso, e da data do reconhecimento autêntico,
no segundo (art.º 2.º, §2).
707
penhor constituído, pelos sujeitos beneficiários, em favor das mesmas sociedades como
contra-garantia das garantias por estas prestadas (art.º 10.º, n.º 2, de acordo com o qual o
penhor incide sobre as acções do beneficiário cuja titularidade seja exigida como
condição de obtenção da garantia prestada pela sociedade de garantia mútua,2548
vigorando entre o momento da concessão do da garantia por esta última e a respectiva
extinção, sendo que durante todo esse período não poderão as participações
empenhadas, salvo casos excepcionais, ser objecto de transmissão).2549
Particularmente relevante é o modo de execução de tais garantias pois, na
primeira hipótese, a sociedade credora pode adjudicar a si mesma o objecto empenhado
pelo respectivo valor nominal ou, em alternativa, vendê-las extrajudicialmente (art.º 2.º,
n.º 8) ou, na segunda hipótese e independentemente de convenção nesse sentido entre a
sociedade de garantia mútua e o accionista beneficiário faltoso, poderão as acções
objecto do penhor ser adjudicadas à sociedade de garantia ou ser vendidas
extrajudicialmente (art.º 11.º, n.º 2).
2548
Quer a intransmissibilidade, quer a constituição deste penhor encontram-se sujeitas a averbamento nas
contas de registo ou de depósito em que as acções da sociedade de garantia mútua objecto daquela
limitação e daquele ónus se encontrem registadas ou depositadas – art.º 10.º, n.º 3 – e os casos
excepcionais em que é permitida a transmissão das acções empenhadas devem constar do contrato de
sociedade (art.º 13.º, n.º 1, alínea e)).
2549
De acordo com o art.º 14.º, n.ºs 2 e 4, a transmissão (segundo o n.º 8 do mesmo preceito, este regime
vigora para o penhor, com as devidas adaptações) de acções de accionistas beneficiários ou de accionistas
promotores para novos accionistas beneficiários ficará obrigatoriamente sujeita ao consentimento da
sociedade de garantia mútua, a conceder pelo respectivo órgão de administração: porém, esta recusa
apenas pode ser fundamentada na não verificação, em relação à entidade para a qual se pretendem
transmitir as acções, de algum dos requisitos dos quais os estatutos da sociedade de garantia mútua faça
depender a possibilidade de subscrever ou, a outro título, adquirir acções na qualidade de accionista
beneficiário (art.ºs 14.º, n.º 5) e, caso tal consentimento seja recusado, a sociedade de garantia mútua fica
obrigada a, no prazo de 90 dias contado da data da recusa do consentimento, adquirir ou fazer adquirir por
terceiro as acções pelo seu valor nominal (art.º 14.º, n.ºs 6 e 7). Quer os casos em que a constituição de
penhor e de usufruto sobre acções fique sujeita ao consentimento da sociedade, quer aqueles em que o
órgão de administração da sociedade de garantia mútua pode recusar o consentimento para a transmissão
de acções e para a constituição de penhor, devem constar do contrato de sociedade (art.º 13.º, n.º 1,
alíneas c) e d)). Por outro lado, não podem ser transmitidas acções de accionistas beneficiários para
accionistas promotores ou para novos accionistas promotores (art.º 14.º, n.º 3).
2550
Por exemplo, o Código Comercial de Macau admite a constituição de um penhor mercantil sem
desapossamento, quando incida sobre bem afecto ao exercício de uma empresa, acrescentando ainda que
constituição de penhor mercantil sobre bem cuja utilização seja imprescindível ao exercício da empresa
assumirá sempre esta modalidade (art.º 912.º - interpretando este preceito, Zhao Yi, ob. cit., pág. 100,
entende que, “Se se tratar de bens não imprescindíveis, as partes podem escolher a forma de penhor com
ou sem desapossamento, caso contrário o penhor deve ser feito com desapossamento”). Este penhor sem
desapossamento deve, sob pena de nulidade, ser celebrado por escrito – contendo a identificação do
empenhador, a identificação dos bens empenhados, o local onde estes se encontram, o montante da dívida
ou de elementos que permitam a sua determinação e o local e data de pagamento – com reconhecimento
presencial das assinaturas dos contraentes, sendo posteriormente inscrito no registo (art.º 915.º). Por fim,
cumpre salientar que o proprietário dos bens empenhados será considerado, relativamente ao direito
pignoratício, como possuidor em nome alheio, incorrendo na responsabilidade própria dos fiéis
708
reconhecimento da alienação2551 e da cessão fiduciária em garantia,2552 para além de
este mesmo sistema admitir, desde há longo tempo,2553 penhores sem
desapossamento,2554 nomeadamente o penhor rural,2555 mercantil e industrial2556 ou
depositários se alienar, modificar, destruir ou desviar o bem sem consentimento escrito do credor
pignoratício, e bem assim, se o empenhar de novo sem que no novo contrato se mencione, de modo
expresso, a existência do penhor ou penhores anteriores que, em qualquer caso, preferem por ordem de
datas (art.º 916.º, acrescentando o n.º 2 desta norma que, no caso de os bens em questão pertencerem a
uma pessoa colectiva, as sanções aplicam-se a quem tenha a respectiva administração).
2551
Pela primeira vez através da Lei n.º 4728, de 14 de Julho de 1965, mais concretamente no seu art.º
66.º (que rezava assim: “a alienação fiduciária em garantia se transfere ao credor o domínio resolúvel e
a posse indirecta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efectiva do bem, tornando-se
o alienante ou devedor em possuidor directo e depositário com todas as responsabilidades e encargos
que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal”). De acordo com Almeida Costa, Alienação
fiduciária em garantia e aquisição de casa própria – notas de direito comparado, in Direito e Justiça, n.º 1
(1980), pág. 49 e segs., os principais traços desta figura são a exclusão do seu âmbito dos bens
consumíveis, o carácter acessório da alienação face ao crédito que garantem, a transmissão da
propriedade por parte do devedor (que, não obstante, conserva a sua posse directa e fruição), embora com
carácter resolúvel (mormente em caso de cumprimento da obrigação garantida). Todavia, o recente
Código Civil veio proibir que o credor fiduciário se possa apropriar, ipso iure, do bem onerado, impondo
antes a obrigação de o alienar, judicial ou extrajudicialmente (cfr. art.º 1364.º).
2552
Esta última encontrou consagração na Lei n.º 4864, de 29 de Novembro de 1965, definindo Almeida
Costa, Alienação fiduciária cit., pág. 52, este negócio como aquele através do qual “os direitos do
adquirente (…) são cedidos em garantia à entidade financiadora, continuando o cedente a exercê-los em
nome do cessionário e apresentando-se defeso o pacto comissório”, concluindo que o regime é
semelhante ao da alienação fiduciária em garantia.
2553
Ismael Acevedo y Criado, ob. cit., pág. 23 e segs., anuncia que já o Código Civil Brasileiro de 1916
autorizava a constituição de um penhor agrícola sem desapossamento (art.º 781.º e segs.), tendo diversas
leis posteriores alargado o leque de bens objecto de garantias sem desapossamento (em especial a o
Decreto-Lei n.º 1271, de 16 de Março de 1939, relativo ao penhor de máquinas e utensílios usados na
indústria).
2554
Já consagrados no Código Civil de 1916 e que encontram igualmente acolhimento no actual Código
Civil, nos termos do qual no penhor rural (que, por sua vez, se subdivide em agrário e pecuário), no
penhor industrial, no penhor mercantil e no penhor de veículos automóveis, os bens onerados
permanecem em poder do constituinte - cfr. art.º 1431.º (de acordo com Sílvio Rodrigues, ob. cit., pág.
354, partindo do modelo do penhor legal, foram criadas outras garantias não possessórias em
determinados âmbitos, tais como os incidentes sobre máquinas e aparelhos utilizados na indústria, a
suinicultura, a indústria do pescado, a indústria do sal, a indústria da carne e dos derivados e os
estabelecimentos de ensino). Para além do desvio ao regime tradicional decorrente da ausência de
desapossamento (justificado pelo circunstância de o penhor tradicional “exigir a tradição do objecto da
garantia o fazia incompatível com as necessidades práticas da agricultura”, embora advirta que “ao
credor é deferida a posse indirecta, a posse jurídica, enquanto o devedor conserva a posse direta, a
posse de fato, a detenção física”), Sílvio Rodrigues, ob. cit., pág. 370, alude ainda à derrogação de dois
outros aspectos do regime geral do penhor, a saber, a circunstância de recair sobre bens - culturas e
animais - considerados como imóveis por acessão, o que é atestado pela circunstância de a garantia ser
inscrita no registo dos bens imobiliários (o que conduz alguns Autores a atribuir natureza hipotecária a
esta garantia) e, por outro lado, a possibilidade de a garantia incidir sobre bens futuros, maxime sobre
colheitas em formação (inviável, no regime tradicional do penhor, em razão da necessidade de entrega do
bem ao credor ou a terceiro). Atentos os maiores riscos para o credor desta modalidade de penhor, a lei
estabelece sanções penais para o empenhante, caso este desvie, abandone ou não entregue o bem ao
credor (art.º 625.º do CCB, atendendo à equiparação da posição do constituinte da garantia e do
depositário, sendo a situação do depositário infiel a única excepção à regra da interdição da prisão por
dívidas - cfr. art.º 5.º da Constituição Brasileira), opinando Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág.
358, que “Para se decretar a prisão civil, não há de se cogitar ter ou não o devedor, depositário dos
bens, que os desviou, procedido ou não com dolo ou malícia”. Para além disso, a lei n.º 10931, de 2 de
Agosto de 2004, consente que, em garantia de créditos bancários, possam ser onerados quaisquer bens
(corpóreos ou incorpóreos, presentes ou futuros, fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou não),
abrangendo os seus acessórios (como os frutos, valorizações e acessões físicas, intelectuais, industriais ou
naturais) – Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 225 a 229.
709
2555
No caso de penhor rural (que compreende o penhor agrícola e o penhor pecuário), estabelece o art.º
1438.º que a garantia se constitui através de instrumento público ou particular, posteriormente inscrito no
registo dos bens imóveis do local da situação dos bens (com uma duração de três ou quatro anos – para o
penhor agrícola ou pecuário, respectivamente, prazo estes justificados por Washington de Barros
Monteiro, ob. cit., págs. 370 e 371, por serem coincidentes com o ciclo das diversas culturas e da criação
de gado – renováveis uma única vez por igual período, embora a garantia subsista enquanto subsistirem
os bens onerados; quando o devedor prometa pagar a dívida em dinheiro, deverá emitir, a favor do credor,
uma cédula pignoratícia, isto é, um documento fornecido pelo registo comprovado o averbamento do
contrato de penhor – e os seus elementos fundamentais – que pode circular, por via de endosso, no
mercado como qualquer título negociável, de modo que os direitos contidos na cédula são reconhecidos
ao seu portador – Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 349) e, se o prédio se encontrasse
previamente hipotecado, o penhor rural constituir-se-á sem necessidade de consentimento do credor
hipotecário (conforme sustenta Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 371 e 372, esta dispensa
assenta no facto de “enquanto não vencida a hipoteca, iniciada sua execução, o devedor tem direito aos
frutos, uma vez que está na posse no imóvel, podendo, pois, empenhá-los, se assim lhe convier”), mas não
prejudica a preferência deste, nem restringe a extensão da hipoteca no momento da respectiva execução
(art.º 1440.º - isto significa, de acordo com Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 371 e 372 e
tendo em conta que a hipoteca abrange as melhorias, acessões e construções do imóvel, que
“permanecerá o credor hipotecário com preferência em relação ao credor pignoratício, desde que a
hipoteca tenha sido registrada anteriormente ao registro do penhor. Do contrário, isto é, caso o registro
do penhor anteceda ao registro o ónus hipotecário, o penhor preferirá à hipoteca quanto aos frutos
dados em garantia e resultantes dos bens hipotecados): porém e apesar da ausência de desapossamento,
ao credor assiste o direito de verificar o estado das coisas empenhadas, inspeccionando-as directamente
ou através de alguém da sua confiança (art.º 1441.º). No caso específico do penhor agrícola, este pode
incidir sobre máquinas e instrumentos agrícolas, colheitas pendentes ou em vias de formação, frutos
armazenados, lenha cortada, carvão vegetal ou animais ao serviço ordinário da exploração agrícola,
merecendo especial referência a possibilidade de a garantia incidir sobre colheitas pendentes ou em vias
de formação (art.º 1442.º, II) e, caso esta colheita se perca ou seja insuficiente para garantir o crédito, o
penhor abrangerá também a colheita imediatamente seguinte (art.º 1443.º, acrescentando que, caso o
credor pignoratício não financie esta nova safra, o devedor poderá constituir um novo penhor sobre esta a
favor de outrem em quantia máxima igual à do primeiro penhor, tendo esta segunda garantia preferência
sobre a primeira, a qual se cingirá a um eventual excesso apurado na colheita seguinte – comentando este
regime, Silvio Rodrigues, ob. cit., pág. 374, diz “Tal solução talvez seja injusta para o financiador da
safra frustrada, que, a despeito da anterioridade do seu crédito, é preferido, no resgate, pelo financiador
da safra nova. Mas ela atende mais ao interesse social, pois, se a lei negasse a vantagem da preferência
ao novo credor, este não se disporia a fazer o financiamento, o que resultaria em prejuízo para a
produção nacional”. Já Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 376, critica a circunstância de o
primeiro credor ou o devedor não terem que notificar o segundo credor da existência de uma garantia
anterior àquela que se visa constituir, enquanto Sílvio Salvo Venosa, ob. cit., pág. 569, admite que este
regime possa ser derrogado por vontade das partes). Já quanto ao penhor pecuário, este pode incidir sobre
os animais que integram a actividade pastoril, agrícola ou de lacticínios (art.º 1444.º), cumprindo destacar
a impossibilidade de o constituinte alienar os bens onerados sem o consentimento do credor pignoratício
(cfr. art.º 1445.º, nos termos do qual quando o empenhante pretenda alienar o bem ou, por negligência,
ameace prejudicar o credor, este poderá requerer o depósito do bem sob a guarda de um terceiro ou exigir
o pagamento imediato da dívida), assim como o efeito sub-rogatório da garantia (mais concretamente e
nos termos do art.º 1446.º, os animais da mesma espécie, adquiridos para substituir os mortos, ficam sub-
rogados no penhor, sendo aliás este efeito presumido, embora não produza efeitos relativamente a
terceiros se não constar de menção adicional no respectivo contrato, seguida de averbamento no
competente registo - Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 378 e 379, salienta que “A
substituição prevista neste artigo refere-se exclusivamente aos animais mortos. Portanto, não se estende
aos animais alienados com autorização do credor, pois, com relação a estes, observar-se-á o que foi
combinado pelas partes” e, pese embora o silêncio do legislador, “no que se refere às crias dos animais
empenhados, entende-se que estas se incorporam ao penhor, garantindo, pois, o pagamento da dívida”):
para além disso, Silvio Rodrigues, ob. cit., pág. 375, alerta para a necessidade e individualização
pormenorizada dos animais onerados (com indicação da respectiva denominação comum ou científica,
raça, marca, sinal ou nome), a fim de proteger terceiros.
2556
Nos termos do art.º 1448.º, este penhor constitui-se do mesmo modo que o penhor rural (com
excepção do facto de a emissão da cédula pignoratícia ser facultativa), tendo o credor um direito de
inspecção análogo (art.º 1450.º) e impendendo sobre o devedor a mesma proibição de alienação dos bens
710
sobre veículo automóvel,2557 estabelecendo mesmo a lei um procedimento de execução
específico para estas garantias pignoratícias não possessórias.2558
onerados sem o consentimento do credor pignoratício (com a agravante de, no penhor industrial e
mercantil, o consentimento do credor ser também necessário para a alteração dos bens e para a alteração
da sua localização) e, se o fizer, deverá repor outros da mesma natureza, que ficarão sub-rogados no
penhor (cfr. art.º 1449.º). Quanto ao seu objecto, este penhor pode recair sobre máquinas, aparelhos,
materiais, instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessórios e sem eles; sobre animais
utilizados na indústria; sobre sal e bens destinados à exploração das salinas; sobre produtos de
suinicultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivadas e sobre matérias-primas e
produtos industrializados (art.º 1447.º). Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 388, considera que
este penhor se distingue do civil em razão da natureza, civil ou comercial, da obrigação garantida
(acrescentando que o penhor em armazéns gerais e dos estabelecimentos de empréstimos sobre penhores
constituem duas modalidades especiais de penhor industrial ou mercantil), embora Sílvio Salvo Venosa,
ob. cit., pág. 572, desvalorize tal diferença, porquanto o regime aplicável a qualquer das modalidades –
civil e comercial – é, actualmente, bastante similar, sobretudo a partir do momento em que o penhor civil
passou a admitir a ausência de desapossamento quando recaia sobre certos bens.
2557
Esta garantia não difere significativamente das demais quanto ao modo de constituição (excepto no
que tange à necessidade de anotação da garantia no registo de propriedade do veículo – cfr. art.º 1461.º -
facto este que, como bem nota Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág., 352, faz com que os terceiros
tenham “meios de saber que se encontra empenhado ao adquirir o veículo, ou efectuar qualquer negócio
que o tenha por objecto, à simples inspeção ocular do documento, sem necessidade de recorrer à
certidão passada pelos cartórios”), ao direito de inspecção outorgado ao credor (art.º 1464.º), mas
apresenta a especialidade de o penhor apenas poder nascer se a viatura houver sido previamente segurada
contra furto, avaria, perecimento e danos provocados a terceiros (art.º 1463.º), bem como de a alienação
ou modificação do veículo sem prévia comunicação ao credor importar o vencimento imediato da
obrigação (art.º 1465.º) e, ainda, de a garantia apenas poder ter uma duração máxima inicial de 2 anos,
prorrogável por mais 2 (art.º 1466.º). Quanto ao seu objecto, podem ser empenhados quaisquer veículos
(cfr. art.º 1461.º), embora Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 390, restrinja o seu âmbito aos
veículos automotores de passageiros colectivos (autocarros, táxis, etc.) e particulares (carros e outros
utilitários de passeio) ou de carga (camiões e afins), enquanto Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág.
352, alarga o âmbito objectivo desta de modo a abarcar qualquer veículo destinado ao transporte de
pessoas ou bens, automatizado, a tracção animal ou não dotado de auto propulsão (desde que
identificados através do seu tipo, marca, cor, destino e número de série).
2558
Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 379 e 380, embora aluda às interrogações acerca da
eventual revogação deste regime por força da posterior aprovação do Código de Processo Civil, esclarece
que este procedimento se inicia com a apresentação da petição inicial por parte do credor (instruída com
uma via do contrato de penhor), prossegue com a citação do devedor para, no prazo de 48 horas, efectuar
o pagamento da quantia exequenda ou depositar os bens onerados: caso não o faça, o juiz poderá ordenar
o sequestro desta e a prisão do devedor, determinando a venda do bem.
2559
Foca este aspecto, Christian Mouly, La publicité des suretes reelles mobilieres, in European Review
of Private Law n.º 6 (1998), págs. 51 e segs., traçando o seguinte cenário a nível europeu: um cada vez
menor uso do penhor tradicional (em razão da exigência de desapossamento) e um recurso cada vez mais
frequente às garantias sem desapossamento. Todavia, enumera um aspecto negativo comum a todas as
garantias reais, qual seja o facto de serem mal conhecidas dos outros credores (especialmente se o
devedor não residir no mesmo País do credor ou daquele cuja lei é aplicável ao contrato), ainda que exista
um sistema de publicidade organizada por entidades administrativas, tendo em conta a dificuldade de
consulta destas publicidades administrativas, mesma quando acessíveis on line a partir de qualquer
computador, circunstância que está na base do sucesso das empresas que se dedicam a fornecer
informações acerca da solvabilidade de outras empresas (perante este cenário, o Autor sugere uma
711
De qualquer modo e em termos porventura redutores, poderemos contrapor, a
nível mundial, a concepção anglo-saxónica e a latino-continental,2561 parecendo que a
melhoria do sistema de publicidade, propondo que a mesma deva conter informação relativa à existência
das garantias, aos montantes garantidos e aos bens onerados, a hierarquia entre as diversas garantias de
acordo com a ordem de inscrição e a exclusão das garantias não publicadas do concurso de credores - sem
prejuízo, quanto a este último aspecto, da existência destas garantias e da sua possível oponibilidade aos
credores quirografários). Em termos aproximados e numa perspectiva mundial, Carlos De Cores e Enrico
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 22 e 53 e segs., falam de três gerações de garantias mobiliárias: uma
tradicional, correspondente ao penhor comum, erigindo o desapossamento como conditio sine qua non
para a perfeição da garantia e rejeitando a tradição simbólica e o constituto possessório (complementada
pela regra da posse vale título, destinada a suprir o carácter equívoco da publicidade da garantia); uma
segunda, que se foi impondo paulatinamente e à medida que foram sendo detectadas as insuficiências
económicas do desapossamento possessório, caracterizada pelo surgimento de penhores sem
desapossamento (deixando, em consequência, a traditio de ser elemento essencial do tipo contratual do
penhor, mas meramente instrumental relativamente à necessidade de assegurar a indisponibilidade do
bem empenhado por parte do devedor); e, finalmente, partindo da excepcionalidade e do âmbito de
aplicação restrito dos penhores sem desapossamento de segunda geração, uma terceira etapa caracterizada
pela generalização deste tipo de garantia e, paralelamente, pelo uso da propriedade com fins de garantia
(fruto, sobretudo, do maior papel atribuído à autonomia privada).
2560
Cassandra Sulpasso, Comparazione giuridica ed uniformazione delle legislazioni: le garanzie
mobiliari, in Rivista di Diritto Civile, Ano 41, n.º 4 (Jul/Ago 1995), pág. 567 e segs., enumera três razões
para o insucesso das tentativas até agora encetadas: a falta de clareza dos objectivos a alcançar; a
dificuldade em escolher um modelo que sirva de base para a disciplina uniforme; e o carácter incompleto
dos vários ordenamentos. Esta harmonização impõe-se em razão da crescente internacionalização da
economia e da consequente transferência dos bens de uns países para outros (nomeadamente em caso de
constituição de uma garantia sem desapossamento, há que reconhecer o direito do credor quando o bem
seja transferido para outro Estado diverso daquele onde se encontrava no momento da constituição da
garantia). Apesar da falta de êxito das tentativas até agora efectuadas, a Autora considera que as mesmas
representam “una fonte preziosa di esperienza accumulata per i lavori attualmente in corso presso
l’Unidroit ed altre organizzazioni e per quelli che, in seguito, potranno ampliarne la portata”, embora tal
tarefa pressuponha a necessidade de uma profunda análise comparatística. Noticia igualmente estas
dificuldades Nicola Cipriani, Patto comissorio e patto marciano: proporzionalità e legittimità delle
garanzie, Edizione Scientifiche Italiane, 2000, pág. 225 e segs. (“non si possono negare le difficoltà
oggettive di queste operazioni di uniformazione legislativa, che appiano sovente settoriali e
disorganiche”, embora demonstrando algum optimismo face ao futuro do direito europeu dos contratos).
Mais céptico é Olivencia Ruiz, ob. cit., pág. 54, para quem “El tema de las garantías mobiliarias
envuelve una serie de cuestiones, de Derecho patrimonial, registral y concursal, en las que la diversidad
de los sistemas nacionales resulta de muy difícil reconducción a fórmulas armonizadoras siempre más
idóneas en el ámbito de los negocios jurídicos que en el de los derechos reales”.
2561
Aludem a esta contraposição, Carlos De Cores e Enrico Gabrielli, ob. cit., págs. 18, 19 e 63 e segs.,
indicando que o modelo anglo-saxónico abrange também a vertente germânica (compreendendo os países
de common law – Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Índia e países africanos ex-colónias
inglesas - e os seguidores da vertente germânica, como a Alemanha, Holanda, Suíça e Áustria) e que o
modelo latino-americano vigora em França, Itália, Espanha e na maioria dos países da América Latina.
Este último modelo caracteriza-se pelo carácter absoluto do direito de propriedade (sendo as suas
limitações excepcionais), pela unidade e indivisibilidade do património (que tem como corolários o facto
de toda a pessoa ter um património e de não haver patrimónios sem pessoas), pela vigência da par
conditio creditorum e da estrita legalidade das causas de preferência (constituindo estas uma excepção
àquele), pelo numerus clausus dos direitos reais (na dupla dimensão de proibição de criação de direitos
reais atípicos e de modificação do regime legal dos tipificados na lei), pela concessão ao beneficiário das
garantias dos poderes de preferência e de sequela (destarte permitindo excluir do leque das garantias o
uso do direito de propriedade com fim de garantia, que não comungam destes atributos), pelos princípios
da acessoriedade e da especialidade (este último vigente, quer para o crédito assegurado, quer para o quid
onerado, sendo frequente a sua invocação para recusar a admissão do efeito sub-rogatório no domínio dos
penhor flutuantes ou rotativos) e pela tendencial invalidade de formas de execução privadas ou extra-
judiciais (com fundamento na necessidade de protecção do constituinte). Pelo contrário, o modelo anglo-
saxónico assenta numa maior respeito pela autonomia privada (o que redunda numa maior adequação às
necessidades da prática comercial), com a adopção de uma noção funcional de garantia (englobando,
entre outras, o recurso à propriedade com fins de garantia), consentindo negócios abstractos e facilitando
712
tendência dos últimos anos aponta no sentido da progressiva preponderância da
primeira.2562
Concorrem, em especial, para o insucesso das tentativas de harmonização até
agora encetadas a diversa amplitude com que vigora a proibição das convenções
comissórias,2563 a circunstância de alguns ordenamentos se mostrarem mais propensos
do que outros a aceitar garantias sem desapossamento2564 ou a prescindir da necessidade
de identificação concreta do objecto da garantia2565 e de publicitação da garantia e, em
termos mais gerais, de nem todos concederem o mesmo poder criativo à autonomia
privada.2566.
a execução da garantia (através do recurso a vias extra-judiciais). Chegada a hora de confrontar os dois
sistemas, os Autores demonstram uma clara preferência por este último, especialmente pela maior
abertura no que respeita à admissibilidade de penhores sobre universalidades (tendencialmente negado
nos sistemas continentais, em razão da não aceitação da sub-rogação legal, nem da acessão, nem da
transformação, pelo que nestes sistemas a garantia terá que ser constituída sobre os concretos bens que
integram a universalidade) e sobre coisas futuras (fruto da imperatividade do desapossamento como
condição de surgimento da garantia), pela aceitação do recurso à propriedade com fins de garantia e à
flexibilização dos mecanismos de execução (até porque em alguns deles não vigora a proibição do pacto
comissório).
2562
Aponta nesta direcção Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 186, sobretudo em razão
da adopção, por parte dos organismos internacionais, de conceitos e figuras típicas desses ordenamentos.
Já Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 332 e segs., recusa que o sistema alemão possa servir
de modelo, essencialmente por força da sua natureza oculta ou confidencial, totalmente contrária às
exigências de segurança do comércio internacional (mas também pelo facto de ser um sistema utilizado
em poucos países, apontando até o caso holandês, no qual uma recente reforma abandonou o sistema das
alienações fiduciárias anteriormente vigentes, substituindo-o por um outro que consagra o penhor como
única garantia mobiliária, afirmando-se ainda o princípio da publicidade das garantias), apontando o
modelo da hipoteca mobiliária (inspirado no modelo do art.º 9.º do UCC americano) como o mais idóneo
(não apenas por tal garantia ser reconhecida num número cada vez maior de países, mas também por
consagrar uma única garantia – ao invés da multiplicidade actualmente existente -, dotada de publicidade,
podendo mesmo prever-se que a inscrição no registo de um dos países a tornaria imediatamente oponível
mesmo nos demais países)
2563
Vide infra n.º 4 do Capítulo II.
2564
Relativamente a este aspecto, a generalidade dos ordenamentos de common law admite as garantias
sem desapossamento, enquanto nos sistemas de civil law tal possibilidade é excepcional (embora
reconheça a existência de uma cada vez maior abertura, substituindo normalmente o desapossamento pelo
registo). Cassandra Sulpasso, ob. cit., pág. 570 e segs., demonstra claramente a sua preferência pelas
garantias que prescindem do desapossamento do devedor, tendo em conta que “normalmente i beni
oggetto di garanzia sono necessari allo svolgimento dell’attività di impresa e che spesso si tratta di una
categoria di beni soggetta a variazioni (….) da qui l’interesse per sistemi di garanzia che non implichino
lo spossessamento del debitore e che consentano l’estensione della garanzia a beni che entreranno nel
patrimonio del debitore in un momento successivo (…) senza la necessita di un ulteriore atto di
disposizione da parte del debitore, al momento dell’acquisto di nuovi beni”
2565
Cassandra Sulpasso, ult. ob. e loc. cit., mostra-se novamente mais adepta das soluções dos sistemas de
common law, nos quais se generalizou a previsão de garantias sobre bens – normalmente empresariais –
sujeitos a variação, ao invés dos sistemas de civil law, nos quais tal possibilidade se encontra fortemente
limitada pela necessidade de determinação – ou, pelo menos, determinabilidade – do objecto da garantia
(cfr. Cassandra Sulpasso, ult. ob. e loc. cit.).
2566
Novamente Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 19 (apontando como exemplo de um ordenamento
mais fechado o italiano e de outro mais aberto o germânico), Cassandra Sulpasso, ob. cit., pág. 372 e
segs., (admitindo a existência de maiores entraves nos ordenamentos continentais de civil law, com
excepção do alemão e acrescentando uma outra divergência atinente à vigência ou não do princípio posse
vale título) e, especialmente, Mauro Bussani, Los modelos de las garantías reales en civil y en common
law. Una aproximación de derecho comparado, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria
Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 242 e segs., destacando como alguns
princípios, considerados de ordem pública, como o numerus clausus ou da par conditio creditorum,
influenciam decisivamente o regime legal, de modo que a lei de muitos países da Europa Continental
prescreve a nulidade dos acordos que visem modificar o regime legal das garantias (problema que se
713
Noutra ordem de considerações, é de registar a circunstância de nem todos os
sistemas admitirem o recurso ao direito de propriedade com funções de garantia,2567
embora o panorama europeu a este respeito seja tudo menos claro2568 - sendo até
legítimo questionar se a utilização das garantias fiduciárias não poderá ser suprimida,
apostando antes no reforço das garantias reais em sentido estrito, sobretudo as não
possessórias2569 - até porque a coexistência das garantias fiduciárias com outras mais
convencionais gera a dúvida acerca da aplicação às primeiras das regras vertidas para
estas últimas.2570
714
Por outro lado, as garantias fiduciárias colocam interrogações relativamente aos
riscos, para o devedor, da atribuição do direito de propriedade ao credor2571 e,
paralelamente, para o credor, em razão da concessão da posse do bem ao devedor.2572
É relativamente à busca de uma solução que dispense a entrega dos bens
onerados ao credor (ou a terceiro) que talvez mais se faça notar a discrepância entre as
diversas legislações, sendo possível diagnosticar duas alternativas principais: por um
lado, a instituição de um mecanismo publicitário (normalmente o registo); por outro,
utilizando a propriedade com fins de garantia (usualmente sem publicitação do
negócio).2573
Também no que concerne à possibilidade de alargamento da garantia que incida
sobre determinados bens (como mercadorias destinadas a revenda2574 ou a
significa que “Le formalisme et la publicité de la clause sont réduits au minimum: au regard du droit
commun, il suffit que cette clause ait été convenue par écrit (art. 2368, C. civ.)” - coadunando-se melhor
com a sujeição a registo da alienação fiduciária em garantia – cfr. art.º 2019.º, n.º 1, por remissão do art.º
2372-1) e em Inglaterra. Já no que concerne à execução da garantia, a principal questão relaciona-se com
a violação, por parte das garantias fiduciárias, da proibição do pacto comissório, a que se fará alusão infra
no n.º 4.3.5 do Capítulo II.
2571
Segundo Pierre Crocq, ob. cit., pág. 172 e segs., o principal risco decorre do facto de, embora a
propriedade do credor seja provisória (porquanto o devedor poderá cumprir a obrigação e recuperar a sua
propriedade), existir a possibilidade de ceder o bem a terceiro ou ser o mesmo agredido pelos credores do
credor fiduciário (ou até apreendido num procedimento falimentar eventualmente intentado contra este).
Ora, a protecção do constituinte da garantia perante estes comportamentos radica no direito de retenção
que lhe é reconhecido em caso de garantias sem desapossamento e, nas garantias com desapossamento,
por uma de duas vias alternativas: ou através da dissociação entre a propriedade do valor – entregue ao
credor – e a propriedade para efeitos de utilização do bem – conferida ou devedor (posição criticada pelo
Autor por apenas ser aplicável às garantias fiduciárias e não à reserva de propriedade; por se traduzir
numa nova garantia sem desapossamento, em contraste com o princípio da tipicidade dos direitos reais)
ou, como o Autor entende ser preferível, mediante a qualificação da propriedade fiduciária como uma
propriedade plena, limitada apenas por obrigações de natureza pessoal impostas ao credor em benefício
do devedor (embora reconheça que, deste modo, o devedor ficará menos bem protegido, na medida em
que carece de um direito real sobre o bem onerado oponível a terceiros, podendo a protecção ser
assegurada através de uma intervenção legislativa determinando que os bens dados em garantia
constituem um património autónomo, distinto do credor).
2572
Para Pierre Crocq, ob. cit., págs. 174 a 176, os principais riscos são a transformação do bem ou a sua
cessão a um terceiro de boa fé (este último é particularmente notório nos ordenamentos que adoptam a
regra da posse vale título). No que ao primeiro risco diz respeito, importa, desde logo, determinar a partir
de que nível de modificação se deverá considerar que o bem resultante da transformação não é o
originário, sendo as respostas muito díspares nos diversos ordenamentos (por exemplo, a transformação
de ovos em frangos é considerada na Holanda como dando origem a um bem novo, enquanto no direito
escocês a passagem dos ovos a salmões não afecta a identidade do bem originariamente onerado, da
mesma forma que sucede com a transformação das pernas de porco em presunto no direito italiano), mas
cumpre sobretudo saber da licitude das cláusulas de extensão da propriedade do credor ao novo bem
resultante da transformação (aceites e generalizadas no direito alemão, mas rejeitadas nos ordenamentos
francês e inglês). No que atine ao perigo de alienação ou cessão do bem a terceiro por parte do devedor (e
tendo em conta a regra da posse vale título), a protecção do credor pode ser assegurada através da
possibilidade de cessão ao credor fiduciário do crédito sobre o preço da (re)venda, da extensão da reserva
de propriedade sobre o crédito do preço de (re)venda ou da plena oponibilidade da reserva de propriedade
aos terceiros adquirentes (para o que se exige um sistema de publicidade para esta reserva, que destruirá a
boa fé do terceiro adquirente).
2573
Dá conta desta dicotomia, Anna Veneziano, ob. cit., págs. 12 a 16, alegando que o primeiro modelo é
particularmente idóneo para os bens de fácil identificação, enquanto o segundo se socorre de figuras
como a reserva de propriedade, o leasing mobiliário, a alienação fiduciária em garantia e, no que se refere
aos créditos de que seja titular o devedor, a cessão com fins de garantia.
2574
No que a este particular diz respeito, a extensão pode operar, essencialmente, em três direcções
diversas: ou sobre os bens adquiridos em substituição dos originariamente empenhados, ou sobre o
produto da alienação destes ou sobre o resultado da respectiva transformação. Segundo Anna Veneziano,
ob. cit., pág. 53 e segs., na primeira não se levantam problemas de maior (devendo ser admitida nos
715
transformação2575 ou sobre um conjunto de créditos - neste último caso, recorrendo-se
frequentemente a instrumentos alternativos ao penhor, como a cessão de créditos2576 ou
impondo o registo da garantia pignoratícia),2577 as soluções não são uniformes.
mesmos termos em que o seja a constituição de penhor sobre bens fungíveis, em especial desde que se
cumpram os requisitos de determinabilidade do objecto do contrato e se cumpram as formalidades
necessária para o surgimento ou oponibilidade da garantia), mas as duas restantes parecem lograr pleno
sucesso no direito alemão (em grande medida porque o regime da cessão de créditos neste ordenamento
facilita a circulação destes direitos, ao dispensar a notificação ao terceiro devedor do crédito cedido),
onde são muito usadas associadas às alienações em garantia ou, mais frequentemente, às vendas com
reserva de propriedade, e no direito inglês (com base no instituto da floating charge), sendo aceites em
termos mais restritivos no direito francês (no qual a legislação permite que a reserva de propriedade possa
ser estendida aos créditos resultantes da revenda do bem, mas apenas no limite do preço que ainda não
tenha sido pago pelo terceiro) e desconhecidas no ordenamento italiano (em cujo único sucedâneo
afastado é o contrato estimatório, através do qual o receptor das mercadorias as recebe, tornando-se seu
proprietário automaticamente no momento da revenda, sendo a parte não vendida restituída ao
fornecedor).
2575
Também este tipo de extensão se encontra especialmente difundida no direito alemão, associada a
uma venda com reserva de propriedade (ou, mais raramente, de uma alienação em garantia),
considerando-se que o adquirente efectua a transformação do bem por conta do vendedor, adquirindo este
automaticamente a propriedade dos produtos transformados (sendo, ao invés, tal prolongamento
desconhecido nos ordenamentos francês e italiano, com excepção, neste último, do penhor sobre
presuntos). Contudo, este tipo de extensão pode redundar num excesso de garantia, uma vez que o
vendedor se torna proprietário de todo o produto, ainda que apenas tenha contribuído com o valor da
matéria prima: para evitar este abuso, as jurisprudências alemã e inglesa prevêem “la costituzione di una
comproprietà (Miteigentum) con il debitore, determinando le quote spettanti a ciascuno in ragione del
rapporto tra il valore della materia prima e quello del prodotto finito” (utilizando este mesmo critério
para resolver o conflito entre diversos fornecedores cujas matérias primas tenham concorrido para a
laboração do produto final) – sobre este assunto, vide Anna Veneziano, ob. cit., pág. 58 e segs..
2576
Uma vez constatada a inaptidão do penhor para permitir a constituição em garantia deste conjunto de
bens (em razão do excessivo formalismo - em particular a necessidade de notificação ao terceiro devedor
do crédito onerado – e da necessidade de descrição analítica dos bens empenhados), surge como
alternativa a cessão de créditos em garantia. Porém, também esta figura não se encontra isenta de
escolhos (desde logo, nalguns ordenamentos, a sua própria admissibilidade), sobretudo naqueles países
(como em Itália e em França, nos quais, para além disso, a necessidade de determinação do objecto do
negócio e a tradicional aversão aos negócios fiduciários depõem no mesmo sentido) nos quais, à
semelhança do penhor, se subordina a oponibilidade a terceiros da cessão à notificação do devedor cedido
(o que requer o conhecimento antecipado dos detalhes do crédito que se pretende ceder, assim
inviabilizando uma cessão global, na qual se verifique uma contínua substituição do capital circulante por
novos créditos comerciais). Pelo contrário, naqueles ordenamentos (como o germânico) em que a
notificação ao devedor cedido apenas tem como objectivo impedir o pagamento ao cedente com efeito
liberatório, este instituto assume maior importância, não surpreendendo, por isso, que a figura assuma aí
particular relevância, consentindo a cessão de créditos futuros (desde que estes sejam determináveis no
momento do surgimento do próprio crédito) e mesmo a cessão global de créditos (a chamada
Globalzession, isto é, a transferência fiduciária ao financiador da globalidade dos créditos de que o
devedor seja titular, normalmente acompanhada da autorização ao cedente para a cobrança do mesmo,
sendo a garantia invocável em caso de falência do devedor, podendo o credor fazer valer um direito de
preferência sobre o valor da venda). Acerca deste assunto, vide Anna Veneziano, ob. cit., pág. 63 e segs.,
dando conta da admissibilidade da Globalzession igualmente nos direitos suíço e austríaco e, por outro
lado, da diminuição da rigidez do regime de circulação dos créditos nos regimes de base romanística
(operada particularmente em França com a Loi Dailly - nos termos da qual a cessão se torna plenamente
válida e eficaz face a terceiros pela redacção de um documento assinado pelo cedente - e na Bélgica com
a alteração do Código Civil) não foi suficiente para difundir a cessão global de créditos (no caso
específico da Loi Dailly, porque uma interpretação restritiva da mesma conduz a excluir do âmbito de
aplicação desse diploma os créditos futuros).
2577
No direito holandês, embora a regra continue a ser a da redacção de um documento escrito
acompanhada da notificação ao devedor do crédito empenhado - sendo esta última condição de validade
da cessão, mesmo inter partes (o mesmo valendo para a cessão de créditos) - , admite-se como alternativa
que a notificação possa ser substituída pela inscrição da garantia nos competentes registos (para o que se
exige a especificação dos créditos cedidos ou empenhados). Mais longe ainda vão os ordenamentos inglês
716
Um aspecto particularmente delicado prende-se com a publicidade das garantias
reais mobiliárias,2578 ou melhor, com necessidade ou não de instituição de um regime
destinado a tornar cognoscíveis estes ónus,2579 parecendo que as vantagens inerentes à
publicidade suplantam os inconvenientes que das mesma decorrem.2580
e norueguês: no primeiro, embora a garantia sobre créditos (nomeadamente de que sejam titulares
empresas pelo fornecimento de bens ou prestação de serviços) seja considerada válida entre as partes
desde o momento da sua constituição, a respectiva oponibilidade a outros credores do cedente e a
sucessivos cessionários é condicionado à inscrição no registo comercial (todavia, a data a ter em conta
para a produção de tal efeito é a da constituição de garantia, ou seja, o credor dispõe de um período de
tempo para proceder ao registo com efeito retroactivo ao momento da constituição; por outro lado, não
raras vezes permite-se ao devedor cobrar os créditos onerados, de modo a consentir o uso na sua
actividade comercial das somas arrecadadas); no segundo, estabelece-se que as empresas podem ceder ou
empenhar um conjunto de créditos relativos à sua actividade, sem necessidade de indicação nominativa
dos devedores cedidos, sendo que a garantia apenas se considera oponível a terceiros após a inscrição no
registo de bens móveis do local da sede da empresa constituinte (porém, prevalecem sobre os credores
garantidos inscritos os direitos de terceiros de boa fé titulares de um direito conflituante, mesmo que
constituído em momento posterior ao registo, desde que notifique a cessão ou o penhor ao devedor
cedido).
2578
Como bem nota Mouly, La publicité cit., pág. 69, “Mantenir des régimes nacionaux actuels de
publicité et d’opposabilité des sûretés réelles mobilières revient à laisser des entreves juridiques
importantes à la libre circulation des services financiers et du crédit”, até porque, em seu entender, as
reformas destinadas a melhorar a publicidade seriam de pequena amplitude e com parcos custos para os
credores, não implicando quaisquer encargos para o Estado. Salientam este aspecto Albina Candian, Le
garanzie cit., pág. 18 (contrapondo os sistemas francês e alemão) e Mauro Bussani, Los modelos cit., pág.
241 e segs. (destacando como a necessidade de publicidade não tem que comprometer a celeridade e
eficiência do sistema de garantias – apontando como exemplo o ordenamento americano – e,
paralelamente, que as garantias ocultas não serão, inexoravelmente, inimigas daquelas celeridade e
eficácia, conforme se alcança do direito alemão).
2579
Destacam este aspecto Cassandra Sulpasso, ob. cit., pág. 372 e segs. (constatando que a publicitação é
exigida pela generalidade dos ordenamentos – seja através do desapossamento ou do registo - mas
excluída pelo sistema alemão) e, especialmente, Mouly, La publicité cit., pág. 53 e segs.. Este último
Autor, assegura que a necessidade de instauração de mecanismos publicitários se fez sentir em França a
partir dos anos 60 do século passado (uma vez que, até então, a solvabilidade aparente do devedor
praticamente correspondia à solvabilidade real), momento em que passaram a ser admitidos negócios
ocultos como a reserva de propriedade e a cessão de créditos, para não falar do aumento exponencial das
dívidas fiscais, previdenciais e salariais das empresas (estas últimas garantidas por privilégios totalmente
desprovidos de publicidade, enquanto os créditos fiscais e previdenciais gozam de uma publicidade
“indignes de ce nom et dénuées d’eficacité”). Como se não bastasse a existência de garantias que escapam
ao crivo da publicidade, os registos que existem encontram-se dispersos e cada um abarca apenas um
determinado tipo de garantia (o Autor enumera 9 entidades gestoras de registos destinados à inscrição de
penhores e de hipotecas mobiliárias). No panorama europeu, as soluções oscilam entre sistema, como o
inglês, mais favorável à publicidade (no qual todas as garantias não possessórias se encontram sujeitas a
registo, com excepção da reserva de propriedade) e outros, como o alemão, mais avessos a ela (no qual as
garantias mais usadas – reserva de propriedade e aquisições fiduciárias – são ocultas, solução aplaudida
pelos credores – pois considerem que os custos associados à publicidade não compensam a possibilidade
de tomar conhecimento das garantias alheias, uma vez que estas duas garantias excluem o concurso de
credores - e até pelos devedores, invocando os entraves da publicidade para a fluência do comércio
jurídico). Já o sistema americano é aquele mais abrangente no que à publicidade diz respeito, impondo a
inscrição de todas as garantias (conceito esse que, como vimos, abrange qualquer instituto utilizado com
esse fim) - com excepção dos (poucos) privilégios creditórios e dos penhores com desapossamento - num
único registo de fácil acesso, gerido pelo Estado, inscrição essa que torna a garantia oponível a terceiros e
determina o seu lugar no concurso de credores.
2580
Mouly, La publicité cit., pág. 54 e segs., depois de invocar os inconvenientes normalmente associados
à publicidade, como sejam ao aumento dos custos que ela provoca (ao qual contrapões que “Il est plus
facile au créancier qui vient d’obtenir une sûreté de publier cette sûreté qu’au créancier qui envisage
d’octroyer un crédit de rechercher les sûretés et crédits qui existent dejà, en l’absencede publicite.
Imposer au premier de contribuer a l’information en publiant sa sûreté est un coût de transaction
moindre que de laisser au second le coût de recherche des sûretés occultes, ou le coût du risque d’être
717
Não se descura, porém, que a publicidade das garantias mobiliárias enfrenta
diversas dificuldades, mormente no que concerne à informação a publicar,2581 ao acesso
a essa informação (parecendo que só um registo público, de livre consulta por parte dos
interessados, será de molde a afastar liminarmente a boa fé de terceiros – traduzida na
ignorância do direito do credor com garantia sobre bens móveis -, o que se torna
especialmente relevante naqueles ordenamentos que acolhem a regra da posse vale
título)2582 e ao âmbito das garantias a submeter a tal formalidade,2583 assumindo este
último aspecto uma correlação inelutável com o conceito de garantia a adoptar.2584
prime par cês sûretés”), os efeitos perniciosos que decorrem do conhecimento da real situação do devedor
e a não uniformização da publicidade nos diversos ordenamentos jurídicos, realça que as vantagens
compensam largamente tais inconvenientes. Entre essas vantagens contam-se a diminuição dos custos de
transacção por duas vias (seja por força do fácil conhecimento da situação do financiado que proporciona,
seja em virtude da clareza da ordem dos créditos preferentes associada à publicidade) e a redução dos
custos de procura de informação ou das perdas devidas a uma informação insuficiente. Neste quadro, o
Autor propõe a instituição de uma publicidade “légère et peu coûteuse”, através do recurso a um sistema
informático e de tele-transmissão de dados. Também Rojo Ajuria, La unificación cit., pág. 81 e segs.,
defende a publicidade das garantias reais mas, partindo do exemplo do art.º 9.º do UCC norte-americano,
sustenta que a informação prestada pelo registo deve ser concisa e limitada, constituindo apenas um ponto
de partida para futuras investigações, sendo a sua função primordial a de “estabelecer la orden de
prelación entre los distintos acreedores garantizados” (relativamente aos terceiros adquirentes, a
inscrição e o direito de sequela que ela assegura, poderão funcionar relativamente a bens estáticos, mas
quanto a bens dinâmicos – como matérias primas, mercadorias ou bens destinados a revenda - a protecção
do credor tenderá a ser obtida através do prolongamento ou sub-rogação da garantia) e assegurando-se a
protecção contra condutas fraudulentas do devedor através da imposição de sanções civis e penais para a
eventualidade de prestação de falsas declarações com o intuito de obter crédito (embora aceite que, em
certos casos, a publicidade poderá ser descartada, como sucederá com determinados bens cuja ausência de
identificação não consente uma publicidade, pelo menos do tipo registal e, por outro lado, com os bens de
escassa relevância económica).
2581
A este propósito, Mouly, La publicité cit., págs. 58 a 61, adverte ser de descartar, por ser demasiado
pesada, a publicitação integral ou o depósito do contrato de garantia (cuja principal vantagem residiria na
possibilidade de controlo, por parte da entidade encarregue do registo, da validade do contrato:
simplesmente, tal controlo impõe um ónus enorme sobre essa entidade, dessa forma entorpecendo o seu
funcionamento, para além de aumentar consideravelmente os custos do registo), pelo que entende ser
preferível uma informação que resuma a situação financeira do constituinte, da qual consta a referência ao
montante dos créditos já concedidos, da respectiva data de vencimento e dos bens onerados (nestas
condições “Pour aprécier la solvabilité, il suffit lors de la consultation d’estimer les remboursements
effectués en fonction du temps écoulé depuis l’octroi du prêt”, excepto quando sejam empenhados bens
futuros – caso em que “la mention de cette extension será faite dans chaque inscription” - ou quando
sejam garantidos créditos futuros, caso em que “mention du plafond garanti sera donée”). A
consequência para a inobservância das regras publicitárias deverá ser a inoponibilidade da garantia,
eventualmente conjugada com a obrigação de indemnizar terceiros que tenham realizado empréstimos e
confiando na solvabilidade aparente do devedor (de acordo com o mesmo Autor, ob. cit., pág. 68, a
garantia não publicitada não poderá, por isso, ser oposta a outros credores – quirografários ou preferentes
– do mesmo devedor, nem sequer aos terceiros adquirentes do bem onerado: todavia, em alguns
ordenamentos como o francês e por força do princípio da posse vale título, “la publicité des sûretés
mobilières n’a pas d’influence sur la bonne foi de l’acheteur. Elle ne crée aucune présomption de
connaissance de la sûreté. L’acheteur n’a pas à consulter un fichier qui ne lui est pas en principe destiné.
La publicité n’y a donc pas pour conséquence de ralentir la libre circulation des biens”).
2582
A questão coloca-se, nomeadamente, ao nível da gestão de ficheiros e dos prazos. No que ao primeiro
diz respeito, importa averiguar – independentemente da opção por um ou mais registos para as diversas
garantias - o local onde a garantia deve ser inscrita (local ou nacional, ambas as opções com
inconvenientes – o central, porque a quantidade de informação entorpece a sua gestão; o local, porque
existe a hesitação entre o estabelecimento do devedor e do local dos bens onerados - , parecendo como a
solução menos má a opção pelos ficheiros locais com informação centralizada, acrescentando Mouly, La
publicité cit., pág. 62, que “Cette centralisation n’a pas besoin d’être physiquement effectuée. Il suffit que
l’information détenue par les fichiers locaux soit accessible en une seule fois”, permitindo a consulta
deslocalizada, através de telefone ou de suporte informático, podendo os dados do registo ser fornecidos
por prestadores de serviços especializados, assim dispensando a consulta directa e pessoal por parte dos
718
Por estes motivos, quer as intervenções sectoriais,2585 quer as de âmbito mais
geral (quer as desencadeadas pela Uncitral2586 - ou CNUDMI, na terminologia
719
espanhola -, pela Unidroit,2587 pelo BERD2588 ou pela OEA2589), não lograram entrar em
vigor, muito embora mereçam particular destaque uma informação global2590 e um
2586
UNCITRAL são as iniciais de United Nations Commission on International Trade Law. Este
organismo encarregou, na década de 70 do Século passado, o Prof. Ulrich Drobning da elaboração de um
estudo sobre os security interests nos principais ordenamentos mundiais, embora o estudo não se
limitasse a uma análise de direito positivo, propondo antes soluções com base na “better solution
comparative law” (embora reconhecendo a não premência e a inexequibilidade – em razão da diversidade
de regras formais entre os diversos ordenamentos - de aprovação de uma lei modelo). Esse estudo sugere
a sujeição do acordo de garantia a forma escrita - assim protegendo o devedor e evitando as fraudes – mas
não a registo – que considera excessivo e oneroso (este último aspecto é alvo de críticas por parte de
Cassandra Sulpasso, ob. cit., págs. 577 a 582, para quem Drobnig não tomou em devida consideração a
facilidade de obtenção de informação e a mais cabal protecção do credor e de terceiros que o registo
assegura, nem tão pouco a evolução tecnológica que torna o registo mais simples e económico e
sustentando que a posição do autor do projecto radica na sua nacionalidade alemã e na aversão da lei
germânica à publicidade das garantias, em especial pelo interesse dos empresários na manutenção do
sigilo das suas operações comerciais), muito embora não tenha conseguido delinear um conjunto de
normas uniformes, pelo que os seus trabalhos foram interrompidos em 1980 (reconhecendo, de acordo
com Anna Veneziano, ob. cit., pág. 264 e segs., a objectiva complexidade da matéria e que uma eventual
retoma futura dos trabalhos deveria ser limitada aos aspectos internacionais do tema; também Albina
Candian, Le garanzie cit., pág. 285, reconhece que o falhanço deste projecto – resultante, na sua óptica,
da incapacidade para estipular os requisitos de oponibilidade a terceiros das garantias - demonstra que
“affrontato a livello globale il problema dell’uniformazione del regime giuridico delle garanzie mobiliari
era insolubile”). Este mesmo organismo iniciou, em 1999, a elaboração de um outro projecto, restrito à
cessão de créditos, abrangendo também a cessão em garantia, admitindo uma cessão global
compreendendo créditos presentes e futuros, sendo o grau de preferência entre os diversos cessionários
determinado pela lei vigente no Estado onde o cedente tivesse a sua sede (cfr. Anna Veneziano, ob. cit.,
págs. a 283 a 289) e, mais ambiciosamente, desenvolve, desde Maio de 2002, um guia legislativo sobre
garantias reais que facilite a eficácia dos créditos financeiros, assim potenciando o desenvolvimento
económico (de acordo com Joaquim J. Forner Delaygua, Garantías reales mobiliarias. Las garantías
internacionales: ley aplicable, in Garantías reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e
Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, págs. 152 e 153, o último texto disponível, datado de 2005,
consubstancia um conjunto de recomendações, que vão desde a implementação de normas de conflitos a
questões substanciais de natureza diversa).
2587
Ou seja, Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (acerca dos seus estatutos, dos
Estados que o integram e dos seus propósitos, vide www.unidroit.org). De acordo com Cassandra
Sulpasso, ob. cit., pág. 583 e segs., esta instituição deliberou, em 1988, realizar um estudo exploratório,
elaborado pelo Prof. Ronald Cuming, acerca da necessidade de uma convenção internacional contendo
normas uniformes sobre certos aspectos das “security interests in mobile equipment” (não abrangendo
todos os bens móveis, mas somente os identificáveis de forma inequívoca, altamente tecnológicos e com
um elevado valor por unidade), estudo este. Este estudo concluiu pela necessidade de uma intervenção
legislativa neste domínio, criando um mínimo de normas uniformes de direito substantivo, com o
objectivo fundamental de criar “un international code, that would provide for a complete regulatory
regime for international security agreements providing for security interests in mobile equipment”. De
acordo com a Autora (no mesmo sentido, Anna Veneziano, ob. cit., pág. 279), as soluções apresentadas,
tomando como modelo o sistema norte-americano (contra, Jean Stoufflet, L’avant project de convention
d’Unidroit: réflexions sur son insertion dans le sistème juridique français, in Revue de Droit Uniforme,
Nuova Serie, Vol. 4, n.º 2 (1999), pág. 363, contrapondo que esta garantia se destina, antes de mais, “non
pas a absorber, mais a encadrer, á regrouper, les différentes techniques de garanties pratiquées pour les
financements considérés”), adoptam uma noção funcional de garantia, prevêem a necessidade de
inscrição num registo internacional cuja data determinará a anterioridade da garantia (prevalecendo
mesmo sobre terceiros adquirentes de direitos de boa fé) – excepto quanto às garantias de quem tenha
vendido a crédito bens novos ou tenha fornecido dinheiro para os adquirir, casos em que estes credores
serão sempre preferidos - , a possibilidade de extensão da garantia aos bens adquiridos sucessivamente e,
por último, de atribuição extra-judicial da propriedade do bem onerado ao credor em caso de
incumprimento da obrigação garantida (muito embora este último aspecto possa ser objecto de limitações
por parte de cada Estado, impondo o recurso à via judicial para a realização da garantia). Porém, esta
garantia não se destina a substituir as vigentes em cada um dos Estados, obrigando-se estes apenas a
reconhecer esta nova garantia internacional dentro das suas fronteiras (cfr. Anna Veneziano, ob. cit., pág.
272 e segs. e Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 287). Jean Stouffler, L’avant project de convention
720
d’Unidroit: réflexions sur son insertion dans le sistème juridique français, in Revue de Droit Uniforme,
Nuova Serie, V 4, n.º 2 (1999), pág. 364 e segs., realça, tendo em conta a noção de garantia contida neste
projecto (que inclui qualquer uma constituída em resultado de um contrato constitutivo de uma garantia
ou pertencente a uma pessoa que seja vendedor condicional nos termos de um contrato de reserva de
propriedade), a abrangência da mesma (incluindo os acessórios dos bens empenhados) e a sua realização
(que pode ocorrer, não apenas através de venda, mas igualmente por meio da tomada de posse do objecto
da garantia ou percebendo os respectivos rendimentos, podendo os Estados vedar as convenções
comissórias aproveitando uma salvaguarda contida no projecto) que “rien dans l’avant Project d’Unidroit
ne constitue un obstacle insurmontable à son adoption par la France”, embora reconheça que, em
matéria de transmissão das garantias possam surgir algumas dúvidas (uma vez que o crédito assegurado é
transmitido enquanto acessório da garantia, ao passo que no sistema francês se passa o inverso, ou seja, é
a garantia que é transmitida enquanto acessório do crédito). De acordo com Esther Muñiz Espada, El
convenio de Cape Town y sus protocolos sobre garantías mobiliarias, in Garantías reales mobiliarias en
Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006, pág. 210 e segs., este
esforço culminou com a aprovação da Convenção da Cidade do Cabo, de 2001, destinada a garantir o
financiamento de materiais de equipamento móvel (aeronáutico, ferroviário e espacial), criando para o
efeito uma garantia internacional, passível de ser reconhecida por cada um dos Estados signatários (que
entrou em vigor a 1/3/2006 – cfr. art.º 49.º e http://www.unidroit.org/english/implement/i-2001-
convention.pdf - tendo sido subscrita por 46 países, muitos deles formulando reservas, previstas na
própria convenção, quanto à aplicação de alguns dos seus aspectos), complementado por protocolos para
cada uma das específicas categorias de bens, dos quais o relativo ao material aeronáutico já entrou em
vigor a 1 de Março de 2006 – tendo sido ratificado por 40 Estados, como se comprova em
http://www.unidroit.org/english/implement/i-2007-railprotocol.pdf - e o respeitante ao material
ferroviário – conhecido como Protocolo do Luxemburgo, assinado em 23/2/2007 mas que, nos termos do
seu art.º 23.º - ainda não entrou em vigor por não ter sido ratificado pelo número de Estados exigidos por
tal preceito, conforme se constata em http://www.unidroit.org/english/implement/i-2007-railprotocol.pdf),
adoptando uma noção funcional de garantia (à imagem do sistema norte-americano), para cuja
constituição se exige apenas um documento escrito e que o constituinte tenha a disponibilidade do objecto
a onerar (sem necessidade de indicar o montante máximo assegurado pela garantia), impondo ainda a
necessidade de inscrição num registo internacional (que será um mero registo de ónus, sendo o bem
onerado, e não o devedor, o objecto da inscrição – daí a impossibilidade de recair sobre bens futuros ou
indetermináveis – sendo o registo efectuado electronicamente e encontrando-se disponível on line) como
condição de oponibilidade mas não de validade da garantia. Finalmente, em sede de execução, o convénio
prevê a possibilidade de atribuição da propriedade ao credor em pagamento da quantia devida, mas
apenas se os demais credores interessados manifestarem o seu acordo (caso contrário, o credor poderá
requerer aquela mesma atribuição judicialmente, o que, segundo o Autor, constitui uma excepção à
proibição do pacto comissório, justificada pela circunstância de produzir efeitos análogos aos da
aquisição do bem pelo credor em sede de execução judicial – e sem os custos desta – da progressiva
introdução de excepções àquela interdição – como sucede com o penhor financeiro – de a inibição da
usura, ratio da proibição, estar afastada em razão da baixa das taxas de juro, de outras figuras aceites pela
ordem jurídica produzirem efeitos análogos – como a reserva de propriedade – e de o próprio
procedimento notarial de execução do penhor contemplar a possibilidade de adjudicação ao credor).
Actualmente, encontra-se em fase de projecto uma outra Convenção da Unidroit sobre normas de
harmonização relativas aos instrumentos financeiros detidos através de intermediário – sobre este projecto
vide Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 1 e segs..
2588
O Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) elaborou, em 1994, uma lei
modelo para os direitos de garantia, com o objectivo de facilitar o financiamento aos países da Europa
central e de leste por parte de financiadores ocidentais. A lei modelo (cuja transposição para as diversas
ordens jurídicas poderá originar diferenças) sugerida por este projecto, que regula as garantias
constituídas sobre qualquer tipo de bens e de créditos, é moldada de acordo com as características dos
sistemas de civil law, mas procurando combiná-las com alguns aspectos inovadores da disciplina norte-
americana (nomeadamente admitindo a constituição de garantias sobre um conjunto de bens sujeitos a
variação, sobre bens futuros, a não obrigatoriedade de especificação detalhada do objecto da garantia e de
constituição da garantia para assegurar créditos futuros). De entre as soluções constantes deste projecto
salientam-se o seu carácter minimalista (regulando apenas alguns aspectos essenciais e fornecendo
definições simples e essenciais), uma noção unitária e abrangente das garantias por ele abrangidas
(abarcando, além das garantias comummente aceites nos países de civil law – incluindo a reserva de
propriedade -, alguns outros institutos, como sejam as garantias flutuantes, embora sem aceitar
integralmente o approach funcional, conforme decorre da exclusão do leasing), a referência aos modos de
721
constituição da garantia (estabelecendo como regra o desapossamento, mas consentindo o recurso
alternativo ao registo que, nesse caso, terá natureza constitutiva) e da criação de procedimentos expeditos
de execução (consentindo-se ao credor alienar o bem onerado por qualquer modo que considere
adequado, podendo o devedor opor-se judicialmente quando considere abusiva a execução e sendo os
demais credores preferentes do devedor protegidos através da existência de um depositário da quantia
arrecadada com a venda, a quem incumbe distribuir tal montante em função de uma ordem pré-
estabelecida). Acerca deste projecto, vide Cassandra Sulpasso, ob. cit., pág. 587 e segs., Anna Veneziano,
ob. cit., pág. 289 e segs. e Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 209 e 210.
2589
No âmbito da Organização dos Estados Americanos (mais concretamente pela Conferência
Especializada em Direito Internacional Privado), foi elaborada, em 2002 (no decorrer da 6.ª Edição
daquela Conferência e complementada pela elaboração de um projecto de regulamento modelo quanto ao
funcionamento do registo, aprovada no decurso da 7.ª Conferência, em 2009), uma lei modelo sobre
garantias mobiliárias, decalcada do regime do art.º 9.º do UCC, conforme se depreende do facto de a
garantia uniforme consagrada se poder constituir sobre bens móveis específicos, universalidades ou sobre
a totalidade dos bens do devedor (corpóreos ou incorpóreos, presentes ou futuros), em garantia de uma ou
várias operações, presentes ou futuras, independentemente da forma da operação e da titularidade do bem
a onerar, bem como da circunstância de se prever a criação de um registo de base subjectiva (à imagem
do sistema do notice filing norte-americano) e da prioridade absoluta concedida à garantia do financiador
da aquisição de um determinado bem, sobre esse mesmo bem – cfr. Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il
pegno cit., págs. 208 e 209. Todavia e como lei modelo que é, este instrumento não possui carácter
vinculativo para os Estados membros daquela Organização, pertencendo aos chamados instrumentos de
soft law de direito internacional, o que diminui significativamente o seu alcance. Para mais informações
acerca destes instrumentos, vide http://www.oas.org/consejo/pr/cajp/dir%20internacional.asp#cidip
2590
Este documento traça um panorama da situação mundial em matéria de garantias reais mobiliárias,
distinguindo entre as que recaem sobre bens corpóreos e as que incidem sobre bens incorpóreos. No que
às primeiras diz respeito, constata-se ser ainda o desapossamento a forma mais comum de constituição de
encargos sobre este tipo de bens, salientando-se as suas vantagens (impedir que o devedor disponha dos
bens sem o consentimento do credor, evitar a perda ou deterioração do bem em razão da negligência do
devedor e permitir a execução imediata do bem, sem necessidade de perdas de tempo e gastos para
reclamar a entrega do bem ao devedor) e os seus inconvenientes (privar o devedor do uso do bem –
prejudicando também o credor, na medida em que o devedor perderá capacidade para produzir riqueza e
solver os seus compromissos - e implicar custos de armazenamento e conservação dos bens onerados) e
concluindo que este mecanismo permanece útil para determinados tipos de bens, como aqueles que
possam ser facilmente entregues a terceiros habilitados para a sua guarda e conservação (como os
armazéns gerais ou os intermediários financeiros) ou os documentos que incorporam a titularidade de um
determinado bem (como sucede com os warrants ou os conhecimentos de embarque), pese embora se
reconheça a consagração de penhores sem desapossamento em quase todos os ordenamentos, na maior
parte dos casos apenas para determinados bens (estas garantias não possessórias caracterizam-se pela
necessidade de uma forma de publicidade que supere a ausência de desapossamento, pela possibilidade de
o devedor dispor ou onerar o bem empenhado, pela admissibilidade de o credor fiscalizar o cumprimento
do dever de conservação por parte do devedor e pelo ónus do credor se apossar do bem antes de proceder
à execução da garantia). Relativamente aos bens incorpóreos, este relatório destaca a importância
crescente do penhor de créditos, para cuja perfeição se exige normalmente a notificação do devedor
cedido (para além disso, alude-se igualmente ao reconhecimento, nalguns países, da cessão plena em
garantia do crédito garantido, caso em que estaremos perante uma garantia do tipo fiduciário).
Finalmente, anuncia uma cada vez maior aceitação da transferência de propriedade com fins de garantia -
(especialmente pela menor exigência formal, face às garantias reais, para a sua constituição e pela melhor
posição conferida ao credor em caso de concurso com outros credores do devedor), mas não sem
reconhecer alguns obstáculos em determinados ordenamentos (como a consideração da transferência da
propriedade em garantia como uma evasão ao regime geral das garantias – ao ponto de se cominar a sua
nulidade – ou a redução do seu efeito jurídico ao de uma garantia real clássica), rematando com a
enumeração das duas opções mais comuns (ou, especialmente nos países que não disponham de um
regime adequado de penhores sem desapossamento, admitir este tipo de garantias com requisitos menos
exigentes de constituição e com efeitos superiores aos de uma transferência da propriedade – com o que
se logra uma maior protecção do credor, mas se debilita a posição dos demais credores do devedor - ou,
ao invés, permitir a transferência em garantia, mas com os efeitos limitados de uma garantia real clássica
– assim se obtendo uma redução dos benefícios do credor e das desvantagens para os demais
interessados). Finalmente, a retenção da propriedade com os mesmos fins é utilizada em diversos países
(detectando-se até casos em que, apesar de não ser expressamente reconhecida nem proibida, o instituto é
722
projecto de guia legislativo2591 elaborados pela UNCITRAL em 2007 sobre garantias
reais.2592
Mesmo ao nível da União Europeia, as várias tentativas não obtiveram
sucesso2593 (excepto em determinados sectores)2594 pese embora continue na ordem do
objecto de utilização), sendo nalguns limitado o seu âmbito de aplicação a certos bens, deparando-se
várias opções de política legislativa (preservar a índole especial da retenção da propriedade baseado no
direito de propriedade, o que significaria criar um regime especial de privilégio para o credor; limitar esta
garantia ao financiamento da aquisição dos bens retidos, destarte relativizando os inconvenientes da
primeira alternativa; incorporar a reserva de propriedade no âmbito das garantias reais, assim diminuindo
a atractividade desta figura), por força dos inconvenientes que apresenta (nomeadamente, a
impossibilidade de o comprador onerar o bem adquirido a favor de outros credores e a dificuldade de os
outros credores do devedor executarem o bem sem o consentimento do vendedor) – para mais
desenvolvimentos, vide Carlos de Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 188 e segs..
2591
Este documento enumera um conjunto de objectivos a que deve obedecer qualquer regime eficaz e
eficiente de garantias reais: fomentar a concessão de crédito munido de garantias reais; permitir a
oneração de uma ampla gama de bens; facilitar e tornar célere a concessão de garantias; tratar de modo
igual as diversas fontes de financiamento; reconhecer a validade das garantias reais sem desapossamento;
fomentar um comportamento responsável das partes; estabelecer uma graduação clara entre os diversos
créditos preferentes; facilitar a execução das garantias; compaginar os interesses dos diversos
interessados; reconhecer o poder da autonomia das partes; harmonizar os diversos regimes nacionais das
operações garantidas (incluindo as leis de conflitos). Posteriormente, indicam-se um conjunto de
recomendações relativamente a determinados aspectos como os bens a abarcar pelas garantias tratadas
pelo guia (a generalidade dos bens, tanto corpóreos como incorpóreos, presentes e futuros) e aqueles
excluídos (por razões diversas os imóveis – tendo em conta os problemas específicos que suscitam - os
salários – por força da especial protecção de que gozam - e os valores mobiliários, em razão da
complexidade de questões que colocam e que justificam um tratamento legislativo especial), ao âmbito de
aplicação subjectivo (admitindo que qualquer sujeito possa ser devedor, garante ou credor), às obrigações
garantidas (de natureza contratual, pecuniárias ou não, bem como operações que cumprem funções de
garantia, como a alienação fiduciária ou a reserva de propriedade), terminando com exemplos das
principais operações de crédito que o guia pretende promover (financiamento de aquisição de mercadorias
e bens de equipamento, empréstimos renováveis sobre as matérias primas e os créditos por cobrar,
operações bolsistas, alienações com finalidade de garantia e o chamado sale and lease back).
2592
Disponíveis em www.uncitral.org.
2593
Desde logo, o projecto de convenção da federação bancária da então CEE de 1970, relativo aos
efeitos extra territoriais das garantias mobiliárias sem desapossamento, no qual, em termos simples, se
reconheciam nos demais Estados as garantias sem desapossamento constituídas num Estado membro -
desde que houvesse sido constituída de acordo com as regras do local onde o objecto onerado se
encontrasse no momento da constituição da garantia e esta fosse inscrita num registo único, de acesso
livre a qualquer terceiro, com uma validade inicial de 5 anos – mesmo que, posteriormente, o bem fosse
transferido para outro Estado (na opinião de Cassandra Sulpasso, ob. cit., pág. 577, o principal motivo
para o abandono deste projecto prendeu-se com a inexequibilidade da publicidade prevista e das
resistências alemãs à instauração de um sistema publicitário de alcance geral). Posteriormente, não logrou
melhor sorte o projecto de directiva de 1973 sobre o reconhecimento das garantias sobre bens móveis e da
reserva de propriedade (tendo em conta que requeria a criação de um registo central europeu ou de
registos internos em cada um dos Estados), abandonada em favor de um projecto limitado à reserva de
propriedade (também este não chegou a sair da gaveta) – sobre este assunto, vide Anna Veneziano, ob.
cit., pág. 266 e segs.. Melhor sorte teve a Convenção de Haia de 2006, sobre a lei aplicável a certos
direitos sobre valores depositados num intermediário (apesar de uma recomendação da Comissão
Europeia no sentido da ratificação, pelos Estados Membros, desta convenção), embora ainda não se
encontre em vigor, uma vez que apenas foi ratificada por dois Estados (de acordo com a informação
disponível em http://www.hcch.net/index_fr.php?act=conventions.status&cid=72 e, no caso português a
não ratificação comprova-se, a contrario, pela sua não inclusão na lista elaborada pelo Gabinete de
Documentação e Direito Comparado, disponível em http://www.gddc.pt/cooperacao/materia-civil-
comercial/conf-haia-direito-int-privado.html), sendo necessário que três o façam para entrar em vigor –
cfr. art.º 19.º da Convenção. Finalmente, o Anteprojecto de normas substantivas sobre bens ou direitos
registados em conta (datado de 2005 e elaborado por um comité de peritos) também ainda não entraram
em vigor - acerca destas duas últimas normas, vide Margarida Costa Andrade ob. cit., pág. 1, nota 1 e
Forner de Delaygua, ob. cit., pág. 155 e segs..
723
dia a discussão acerca da viabilidade do surgimento de um direito comum europeu das
garantias mobiliárias ou até mesmo da criação de uma garantia europeia,2595 sendo certo
que a imposição de limites às garantias mobiliárias não possessórias pode conflituar
com as liberdades fundamentais consagradas no Tratado da União Europeia.2596
Sobretudo nos países com sistemas de garantias reais mobiliárias mais próximos
do português – como sejam o espanhol, italiano e francês – a análise do direito
comparado mostra-se particularmente atractiva, surgindo o modelo germânico da
alienação em garantia e o norte-americano do security interest como inspiradores de
reformas legislativas,2597 embora enfrentando o risco da compatibilidade com a tradição
jurídica continental2598.
2594
De que é exemplo paradigmático a directiva n.º 2002/47/CE, de 6 de Junho, sobre acordos de garantia
financeira (que não se limita a indicar qual a lei aplicável a estas garantias – em regra, a do Estado onde
esteja situada a conta principal -, contendo diversas normas de natureza substantiva).
2595
Anna Veneziano, ob. cit., pág. 301 e segs., considera longínqua a ideia de regular a matéria das
garantias mobiliárias no âmbito de um eventual código civil europeu, concluindo que “l’armonizzazione
del diritto nazionale non appare un’ipotesi verosimile nel breve periodo, sia essa da intendersi come una
autonoma convergenza del diritto dei vari ordinamenti, oppure nel senso di una imposizione dall’alto,
tramite una legge modelo o altro strumento vincolante”. Relativamente à criação de uma garantia
europeia, restrita às relações internacionais, necessariamente inscrita num registo internacional comum,
do qual constariam apenas os aspectos essenciais dos bens onerados e com total omissão dos dados
relativos às condições de financiamento (no intuito de preservar o secretismo do acordo), a Autora
considera-a exequível, embora alerte para a irrazoabilidade de criação de um sistema de resolução de
conflitos e de imposição de limites à autonomia contratual baseada na intervenção judicial. Já Albina
Candian, Le garanzie cit., pág. 7 e segs., destaca que a exigência de integração económica europeia neste
domínio (não parecendo que a exclusão da competência das instâncias europeias relativamente às
questões da propriedade constitua obstáculo decisivo, pois não impediu a harmonização no domínio das
marcas e patentes e, em geral, no âmbito do direito industrial) enfrenta obstáculos decisivos nas tradições
jurídicas nacionais.
2596
Contesta este entendimento (embora reconhecendo que o mesmo encontra acolhimento em alguns
arestos do Tribunal Europeu, nos quais se recusa a eficácia a garantias estrangeiras constitui uma medida
equivalente a uma restrição quantitativa, incompatível com a liberdade de circulação das mercadorias)
Anna Veneziano, ob. cit., pág. 311 e segs., assegurando que as restrições às liberdades fundamentais,
desde que proporcionais, são admissíveis sempre que justificadas por razões de interesse público (para
além de a posição criticada parecer enraizada pela ideia de transformação das garantias estrangeiras em
institutos admissíveis no direito interno – evitando, deste modo, que exportadores alemães não venham
reconhecidos noutros países as suas garantias - , ideia esta que cria imensas dificuldades práticas).
2597
Relativamente às garantias sobre créditos, mas com consideração expansíveis ao domínio mais geral
das garantias mobiliárias, Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 321 e segs., começa por
analisar o modelo alemão, enumerando as suas principais vantagens (a possibilidade de abranger bens
futuros – maxime créditos futuros – com formalismos de constituição reduzidos – no caso do penhor de
créditos, dispensando mesmo a notificação ao terceiro devedor do crédito cedido – e, sobretudo, os
amplos poderes conferidos ao credor, em razão da aquisição por este da propriedade dos bens onerados e
da desnecessidade de execução dos bens para obtenção de pagamento) e inconvenientes (desde logo, o
seu carácter oculto, gerador de conflitos entre credores – designadamente em caso de cessão do mesmo
crédito a favor de diversos credores - e de incertezas, sobretudo para terceiros que, ao conceder crédito ao
devedor, não conseguirão avaliar com rigor qual o elenco dos seus bens previamente onerados a favor de
outros credores; para além disso, o sistema alemão é demasiado oneroso para o devedor, não apenas por
permitir que este onere todos os seus bens em garantia do mesmo credor e por dívidas quase infinitas –
nomeadamente em caso de cessão global de créditos – conduzindo à falência de muitas empresas, em
razão da dificuldade posterior de obtenção de crédito e, para mais, como os credores fiduciários dispõem
do direito de separação dos bens onerados da massa falida, os fornecedores de bens e os próprios
trabalhadores do devedor ficarão, não raras vezes, com os seus créditos por liquidar), para, em seguida,
realizar a mesma operação relativamente ao modelo norte-americano (quanto às vantagens, o Autor
aponta a amplitude dos bens oneráveis – sobre praticamente todos os bens móveis -, a existência de um
sistema publicitário capaz de assegurar os direitos de terceiros a conhecer tais onerações e a tornar
oponíveis erga omnes os direitos dos credores preferentes; relativamente aos defeitos, indica,
essencialmente, a circunstância de a imposição de um sistema publicitário para todo o tipo de bens
724
1.3 - Desapossamento como apenas uma das possibilidades de assegurar a
indisponibilidade do bem empenhado: a suposta função de publicidade do penhor
móveis – incluindo os de reduzido valor – seria irrealizável, originando uma quantidade de informação a
publicitar incomportável, assim colocando em risco a celeridade do comércio jurídico), concluindo, do
confronto entre ambos, ser preferível a opção pelo segundo (relativizando as críticas dirigidas a este
modelo, contrapondo o crescente peso da riqueza mobiliária, esclarecendo que a obrigação de registo não
vigora para todos os bens móveis – não só porque certos bens estão sujeitos a uma publicidade
automática, mas também porque o sistema continua a prever o desapossamento como mecanismo de
constituição de garantias mobiliárias - e, por fim, apelando às enormes possibilidades abertas pela
evolução da informática, possibilitando o desaparecimento dos ficheiros materiais e facilitando, quer a
realização da publicidade, quer a sua consulta por terceiros, as quais poderão ser efectuadas por via
informática, de forma imediata, com poupança de tempo e de custos): em suma, “Le système de
l’hypothèque mobilière serait ainsi plus adapté aux exigences de sécurité et de rapidité du commerce
juridique, que ne l’est le système de l’aliénation fiduciaire. La prise en considération des intérêts des
divers participants au commerce juridique ne se traduit pas en effet par un formalisme et un coût
excessif. Pour satisfaire les divers impératifs du crédit, c’est donc, pensons-nous, le système de
l’hypothèque mobilière qui doit être préféré”.
2598
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 330 e segs., volta a demonstrar a sua preferência pelo
sistema da norte-americano da hipoteca mobiliária, apesar do reconhecimento legal da reserva de
propriedade e da cessão de créditos em garantia no direito francês que poderiam induzir a uma resposta
mais favorável ao direito alemão (contestando o Autor esta maior aproximação, em razão da tradicional
hostilidade do direito gaulês relativamente à alienação fiduciária e, quanto ao reconhecimento da reserva
de propriedade, esta apenas abrange a sua modalidade simples, em prolongamentos verticais e/ou
horizontais; finalmente e acima de tudo, a natureza oculta do sistema alemão briga, porventura de modo
insuperável, com a publicidade exigida pelo sistema francês, rematando o Autor que “l’adoption du
système de l’alienation fiduciaire constituerait donc à nos yeux plus une régression vers un régime de
garanties occultes, qu’un progrès de notre droit des sûretés”), sobretudo porque o direito francês conhece
já diversas garantias mobiliárias sujeitas a registo (sobre estabelecimento comercial, máquinas e
equipamento comercial, filmes, warrants, navios e aeronaves), assim contribuindo para a manutenção da
publicidade como um dos traços caracterizadores do sistema (até porque “le développement de la
publicité était une des conditions requises pour le développement de la distribution du crédit”), do
mesmo passo que aponta o exemplo do Québec (província cujo Código Civil é profundamente inspirado
no francês) como um caso de adaptação bem sucedida do modelo norte-americano.
2599
Como noticia Piscitello, Le garanzie cit., pág. 107 e segs., a orientação jurisprudencial dominante
recusa a existência de desapossamento sempre que não seja assegurada a cognoscibilidade, por parte dos
demais credores do empenhante, da saída do bem empenhado da disponibilidade do devedor (destarte
inviabilizando algumas soluções engenhosas surgidas na praxis negocial, como o arrendamento – por
parte do devedor ao credor - do espaço onde os bens empenhados, a composse criada através do sistema
de dupla fechadura – em cada uma das chaves pertence a cada um dos sujeitos, mas sem que seja possível
entrar no imóvel sem a intervenção conjunta de ambos – ou, finalmente, a designação de um vigilante por
parte do credor para controlar a laboração dos produtos empenhados, mas sem que aqueles saíssem do
poder deste último).
725
percurso no sentido de relativizar a indispensabilidade da entrega material do bem ao
credor ou a terceiro.2600
De acordo com este último entendimento, quer nos casos de tradição simbólica,
quer nos casos de tradição ficta por meio de registo, quer, finalmente, nas situações em
que o constituinte é convertido em fiel depositário do bem empenhado (constituto
possessório), verifica-se sempre o desapossamento do devedor:2601 em suma, o penhor
poder-se-ia constituir através de qualquer das modalidades que a tradição dos bens pode
assumir e não necessariamente através da tradição material.
Daí que, no conceito de penhor, urgiria substituir a noção de entrega pela de
desapossamento, pois apenas esta última seria susceptível de abarcar todas as diversas
modalidades que a traditio pode assumir.2602
Avançando ainda mais, uma corrente doutrinal com particular relevo actual em
Itália2603 – embora ainda minoritária2604 e com formulações diversas2605 – nega a
2600
Paulo Cunha, ob. cit., págs. 195 a 197. Em termos análogos se exprime o preâmbulo do Decreto-Lei
n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939 (que criou o penhor, sem necessidade de entrega, em garantia de
créditos de estabelecimentos bancários autorizados), considerando que “a despeito de todas as suas
várias modalidades, a unidade conceitual persiste. Ainda há pouco ela foi acentuada entre nós e
encontra-se neste traço, que é comum a todos os regimes legais do penhor: a constituição da garantia
pignoratícia pressupõe o desapossamento do objecto empenhado e êste desapossamento pode verificar-se
pelos diversos modos de transmissão da posse que existem em direito. Um deles é o constituto
possessório (…)”.
2601
Embora nas duas primeiras hipótese – tradição simbólica e registo – o mecanismo alternativo à
entrega apresente a vantagem de preservar a publicidade da constituição da garantia, o que não acontece,
como já foi salientado, no constituto possessório. Esta última forma de constituição será, também por
isso, aquela que mais dúvidas suscita. De acordo com Paulo Cunha, ob. cit., págs. 195 e 196, “quando se
constitue o penhor e se deixa ficar a cousa em poder do devedor, transformando este em fiel depositário,
encontramos, afinal, dois actos jurídicos simultâneos, um constituindo o penhor e transferindo a posse do
devedor pignoratício para o credor; e outro, o acto do depósito, pelo qual desloca a posse do credor
pignoratício em nome alheio, para o próprio devedor, que antes já tinha posse dela (…). Isto é, o dono
da cousa empenhada conserva a sua posse de proprietário, posse essa em nome próprio, pela
constituição do penhor passa para o credor a posse em nome próprio do credor pignoratício, mas porque
o dono conserva a cousa a título de fiel depositário êle recebe em nome do credor, portanto em nome
alheio, essa posse do credor pignoratício, já que é êle que fica com a detenção material da cousa.”. Por
seu turno, no preâmbulo do já por diversas vezes citado Decreto-Lei n.º 29833, de 17 de Agosto de 1939,
pode ler-se que “O devedor continua na detenção do objecto, mas, por meio de um verdadeiro constituto
possessório, fica colocado na situação de depositário, com as correspondentes sanções penais. Melhor
explicando: pelo contrato de penhor o dono da cousa constitue a favor do credor o direito pignoratício e
é o credor quem fica com a respectiva posse em nome próprio; mas, pelo mesmo acto, é atribuída a
detenção da cousa ao próprio dono, que agora passa a ser mero possuidor em nome alheio e qualificado
de fiel depositário.”.
2602
Maiores dúvidas poderá suscitar a constituição do penhor por via de constituto possessório, tendo em
conta que, nestes casos, o poder de facto sobre o objecto da garantia permanece no devedor/constituinte
da mesma, parecendo, por isso, não haver qualquer desapossamento deste.
2603
Mas com adeptos também em França, como acontece com Christian Atias, ob. cit., pág. 73,
sustentando que as normas legais que referem a entrega do bem ao credor ou a terceiro como forma de
constituição do penhor surgem como “manifestation normale, ordinaire du gage, mais non comme son
principe”, surgindo a entrega apenas como a técnica mais frequentemente utilizada (para além disso, o
Autor acrescenta que aquelas normas também não permitem determinar o verdadeiro objecto do penhor).
Entre nós, vide Joana Dias, ob. cit., págs. 44 e 202, citando em abono da sua posição o Acórdão da
Relação de Lisboa de 8/2/1982, in CJ, 1982, Tomo I, pág. 244 e segs. (no qual se afirma que a
publicidade resultante da posse já não é característica essencial do penhor).
2604
Como adverte Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., págs. 167 a 170, “La costituzione di un
pegno senza spossessamento (…) appare tuttavia in contraddizione con i dati normativi e con la stessa
evoluzione della disciplina dell’istituto”, assegurando que “L’orientamento dominante è molto rigido ed
esclude che si sia realizzato lo spossessamento quando i creditori chirografari non sono in condizioni di
riconoscere l’esistenza del vincolo (…) Da tali permesse discenderebbe l’impossibilità di procedere ad
una valida costituzione del pegno in tutti i casi in cui non sia palese lo spossessamento”.
726
indispensabilidade da entrega como requisito de constituição do penhor, sendo o seu
principal mentor, sem dúvida, ENRICO GABRIELLI.2606
Em rigor, esta posição encontra raízes em tempos mais longínquos, porquanto já
no início do Século XX havia quem alertasse para o carácter não indispensável do
desapossamento real,2607 mesmo dentro das nossas fronteiras,2608 tendo esta posição sido
retomada recentemente por alguns Autores.2609
2605
Neste sentido, cumpre citar uma posição menos recente – Oppo, apud Barbara Cusato, ob. cit., pág.
193 – entendendo o desapossamento como destinado a produzir, no plano interno, a indisponibilidade do
bem e a sua retenção pelo credor e, no plano externo, a privar o constituinte da possibilidade de entregar o
bem a terceiro, não sendo, contudo, um elemento qualificante do tipo.
2606
Não tão incisivo é Paolo Piscitello, Costituzione in pegno cit., pág. 172 e segs., recusando qualquer
função publicitária ao desapossamento (e, em conformidade, qualquer assimilação entre a entrega dos
bens constituídos em penhor e o registo dos bens hipotecados), assegurando que aquele se destina a
consentir o surgimento do penhor. Assim sendo, considera bastantes para a constituição do penhor formas
de tradição atenuada, como sejam “la consegna delle chiavi al creditore, che la creazione di situazioni in
cui il debitore continuava ad avere una relazione apparente con i beni vincolati”, concluindo que “la
tutela del diritto di prelazione del creditore pignoratizio non escluda necessariamente l’utilizzazione dei
beni costituiti in garanzia nell’attività d’impresa”, sendo assim notória a “legittimità di tecniche di
realizzazione dello spossessamento compatibili con tali obiettivi”. Todavia, o mesmo Autor (in Le
garanzie cit., pág. 107 e segs.) vai mais longe, chamando a atenção para o facto de a posse dos bens não
pressupor imperiosamente a propriedade dos mesmos (como sucede com as máquinas alugadas ou as
matérias primas recebidas em depósito), pelo que “la conservazione dei beni nei locali dell’impresa non è
di per sé indice della proprietà dell’imprenditore e quindi della possibilità dei creditori chirografari di
costui di soddisfarsi sugli stessi” (e, sem sentido oposto, a ausência de posse pode não excluir a
propriedade dos bens, podendo antes ficar a dever-se a relações de carácter obrigacional – v.g. locação –
que não impedem a sua alienação, nem tão pouco a agressão por parte dos credores quirografários),
concluindo, por isso, que se “può escludere che per la costituzione di pegno sia necessario instaurare una
situazione di spossessamento palese al fine di consentire ai creditori chirografari di conoscere quali beni
sono soggetti alle loro azioni esecutive”, sendo suficiente “la consegna al creditore delle chiavi del
magazzino ove sono custoditi i beni vincolati o l’instaurazione di una situazione di concustodia (…)
conoscibile dai terzi con la ordinaria diligenza, purché sia esclusa la possibilita del datore di garanzia di
disporre autonomamente dei beni vincolati”, deste modo possibilitando “la costituzione in garanzia
dell’insieme delle merci contenute nei magazzini dell’impresa, pattuendo il trasferimento del vincolo sui
beni acquistati in sostituzione di quelli alienari, oppure la previsione di una clausula di lavorazione con
cui la banca consente all’utilizzazione dei beni vincolati, in modo da agevolare la concessione del credito
senza interrompere il normale svolgimento del processo produtivo”.
2607
Neste sentido, Hardel, ob. cit., pág. 179 e segs., assegurando que a natureza indispensável do
desapossamento real “se trouve en fait souvent réalisé de façon fictive, de telle sorte que l’on peut même
parfois se demander si la garantie du prêteur est effective (…) des textes sont venus successivement
admettre de façon formelle l’inutilité pour le débiteur de se dessaisir (…). Il n’y a aucune raison de ne
pas continuer en ce sens“, embora salientando que nem todos estes diplomas asseguram de forma cabal a
segurança do credor pignoratício (em razão, nomeadamente, por não assegurarem um verdadeiro direito
de sequela), o que constitui um entrave à sua utilização (pois “toute sûreté, qui n’est pas basée sur des
certitudes de restitution, ne peut pas être vue avec faveur par les prêteurs, ni donc devenir une source
abondante de crédit”). Mesmo no direito francês do final do Século passado, já era detectável uma
corrente de opinião contestando a posição clássica de atribuição de um carácter indispensável ao
empossamento do bem por parte credor pignoratício (entendimento tradicional este, oriundo do direito
romano, traduzido na qualificação do penhor como contrato real, satisfazendo a entrega intuitos
publicitários – que justificam, aliás, a natureza efectiva e não meramente fictícia ou realizada por via de
cláusula contratual ou de constituto possessório - e de protecção do credor contra eventuais actos de
disposição do bem onerado), seja uma contestação parcial (sustentando que a entrega do bem ao credor
constitui apenas uma condição de oponibilidade – e não de validade – do penhor, de modo que “la remise
de la chose n’est, au fond, que le premier acte d’exécution d’un contrat consensuel. La tradition n’est pas
une condition de formation”: todavia, o Autor desvaloriza esta posição, alegando que não chega a
resultados muito díspares da doutrina tradicional – na medida em que esta já preconizava os contratos
promessa de penhor amputados da entrega do bem -, ao que acresce ser muito duvidosa a utilidade de um
direito de penhor válido unicamente inter partes), seja mesmo uma contestação total (ora partindo da
contestação da própria categoria dos contratos reais – desde logo considerando-os um resquício de um
727
direito arcaico e formalista, afastando pelo princípio consensualista que impregna a lei civil; depois, a
obrigação de restituição que caracteriza esta categoria não justifica a sua autonomização, porquanto
outros contratos há em que tal obrigação existe sem que os mesmos sejam integrados no âmbito dos
contratos reais, como sucede com a locação: o Autor aceita este entendimento, concluindo que “Comme
l’obligation de déliverance dans la vente, l’obligation de remise de la chose peut três bien être une des
obligations qui fait naître un contrat réalisé solo consensu” -, ora alegando ser concebível um contrato de
penhor sem entrega do bem, o que seria confirmado pelo reconhecimento legal de penhores em que a
entrega poderá ser fictícia ou até de penhores sem desapossamento: o Autor rejeita esta perspectiva,
contrapondo que “Un gage sans dépossession n’est plus un gage, c’est une hypothèque. Plus que la
reconnaissance d’un droit de suite au créancier c’est le dessaisiment du débiteur qui est caractéristique
du gage”).
2608
Assim, Luís Pinto Coelho, ob. cit., págs. 74 e 75, afirmando, sem margem para dúvidas, que “não é
da essência do penhor a entrega da coisa. Nestes casos atende-se sobretudo aos incómodos e aos perigos
a que se submeteriam os proprietários, por um lado, e as mercadorias, por outro, se fosse necessária a
entrega (…) sem que de tudo isso resultasse qualquer vantagem, uma vez que se pode substituir a entrega
pela pressão moral que se estabelece sobre o lavrador, sujeitando-o a penas muito graves no caso de
vender os seus produtos e não pagar os empréstimos que lhe tenham sido feitos”. Nesta conformidade,
“Essencial é que se dê o desapossamento do proprietário, o que se consegue com o constituto obtido pelo
contrato. Não havendo a entrega, não há a faculdade de uso como elemento do penhor, mas há sempre o
direito ao valor de troca da coisa” (para além disso, procura demonstrar como a publicidade decorrente
da entrega do bem ao credor apenas lograr efeitos publicitários no momento da constituição do direito,
não sendo suficiente para a sua manutenção, porquanto “A coisa passa ao poder do credor e este, se for
deshonesto, poderá vender a coisa, passá-la para outrem, e esse terceiro não tem possibilidade de saber
se a coisa é do credor pignoratício ou não” – págs. 195 e 196).
2609
Rui Pinto Duarte, ob. cit., págs. 229 e 230, afirma que “é de enfatizar que a lei portuguesa não inclui
o desapossamento do constituinte nas características gerais da figura”, não apenas por força da
consagração legal de formas de constituição alternativas para o penhor de créditos e de outros direitos,
mas também porque “mesmo no que respeita ao penhor de coisas, a lei portuguesa conhece a
possibilidade de penhor sem desapossamento. É o caso de certos penhores a favor de instituições de
crédito”, enquanto Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 547 e segs., aponta na mesma direcção ao
constatar ser duvidoso que à entrega exigida por lei seja de atribuir o significado técnico de tradição do
bem empenhado (conforme se constata, desde logo, pela admissibilidade legal da composse e da entrega
simbólica), concluindo que “para haver penhor é necessário que o autor do penhor esteja privado da
possibilidade de dispor materialmente da coisa. O que se compreende, pois este elemento tem uma
função de publicidade essencial, evitando a criação de uma situação em que se pudessem fiar terceiros,
que em atenção a ela viessem a constituir direitos sobre a coisa empenhada”. Muito especialmente Hugo
Ramos Alves, ob. cit., pág. 78 e segs., negando que o contrato de penhor seja um contrato real quanto à
constituição, alega que o art.º 669.º, n.º 1, se aplica ao direito de penhor e não ao contrato do qual aquele
direito resulta (retomando, assim, a distinção entre título para constituição do direito – normalmente de
origem contratual – e acto constitutivo do direito, normalmente a entrega do bem ao credor ou a terceiro),
ou seja, “quando a Lei salienta que o penhor apenas produz os seus efeitos pela entrega da coisa objecto
de penhor, mais não se está a dizer do que a entrega é apenas condição de eficácia do direito de penhor.
O que equivale a dizer que nada obsta a que possa ser celebrado um contrato de penhor prevendo-se a
obrigação de o devedor entregar a coisa objecto do contrato, dado que a entrega diz respeito, apenas, à
execução do contrato”: como corolário deste entendimento, o Autor conclui que a função de garantia do
penhor se realiza através da subtracção da disponibilidade do bem ao empenhante, função essa que pode
ser lograda através de técnicas alternativas à entrega do bem (desde que aptas a alcançar aquela
indisponibilidade material do bem por parte do devedor, sendo essa disponibilidade transferida para o
credor, a quem passa a caber o exercício das faculdades inerentes ao seu direito de garantia), mas sem que
estas desvirtuem a natureza pignoratícia da garantia (constituindo, quando muito, “formas anómalas
(scilicet, diversas daqueloutras previstas pelo legislador) de explicitação da função de garantia própria
do tipo, o que permite efectuar uma assimilação coerente de tais factiespécies com a estrutura formal e a
disciplina do penhor legal”). A instrumentalidade da entrega face à indisponibilidade do bem por parte do
devedor ficaria, sempre segundo o último Autor citado, comprovada pelo facto de o próprio legislador
consentir a constituição da garantia através da composse, o que permite a simples locação do bem a um
terceiro (desde que acompanhada da convenção segundo a qual o locatário apenas poderá entregar o bem,
conjuntamente, ao credor pignoratício e ao empenhante).
728
Procurando sintetizar o pensamento daquele Autor italiano atrás citado,2610 este
começa por avaliar o papel desempenhado pela entrega nos contratos reais e, em
especial, no penhor, concluindo que a ausência da traditio não obstaculiza o surgimento,
por via do simples consenso, de um vínculo de natureza obrigatória entre as partes, o
qual constitui título para a constituição do direito real de penhor que surgirá após a
entrada forçada do credor na posse do objecto da garantia.2611
De acordo com esta perspectiva, a entrega representa apenas uma acto
preparatório de uma fase sucessiva da constituição do real de penhor (o desapossamento
do devedor e o empossamento do credor), sendo, por isso, meramente instrumental, pelo
que o mesmo efeito se poderá produzir através do recurso a mecanismos diversos da
traditio material,2612 conforme se alcança da circunstância de a própria lei prever, como
alternativas válidas, a entrega a terceiro, a criação de uma situação de composse ou a
entrega de documento que confira a exclusiva disponibilidade do bem ao credor (art.º
669.º).
Ora, excluída a tradição material dos elementos essenciais do esquema legal
típico do contrato de penhor, será relativamente ao desapossamento – enquanto efeito
decorrente da entrega – que se deverá averiguar da sua indispensabilidade face ao
regime legal típico do penhor.2613
Em face do exposto e por força de uma interpretação inovadora do art.º 2786.º
do CCI – correspondente ao art.º 669.º do nosso Código Civil - , adverte-se para o facto
de este preceito colocar como requisito para a constituição do penhor a exclusiva
disponibilidade da coisa por parte do credor pignoratício (ou, inversamente, a
subtracção dessa disponibilidade ao empenhante), omitindo qualquer referência ao
desapossamento do devedor ou ao empossamento do credor.2614
2610
Cfr. Il pegno, 2006, págs. 115 e 116, in I negozi costitutivi di garanzie reali, in BBTC, 1996, pág. 149
e segs., Spossessamento cit., pág. 934 e, especialmente, Il pegno anomalo cit., pág. 84 e segs..
2611
Neste sentido Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 87 a 91.
2612
Nas palavras de Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 92 e 93, “la consegna rappresenta, in verità,
soltanto l’atto materiale prodromico, nella scansione della vicenda costitutiva, ad una successiva fase
(…) che conduce ad attuare in concreto la garanzia del creditore: lo spossessamento del debitore”, de
onde decorre que “la consegna, nella varietà delle sue manifestazioni e modalità di attuazione, è
meramente accessoria alla produzione dello spossessamento del debitore – impossessamento del
creditore”, pelo que “qualora quest’ultimo effetto di realizzi ugualmente, seppure con strumenti tecnici
differenti dalla traditio, quest’ultima non potrebbe riservarsi che un ruolo subalterno nella descrizione
dello schema configurativo dell’operazione negoziale”. Também em face do direito espanhol Mejias
Gomez, La prenda cit., pág. 68 e segs., o requisito do empossamento do bem por parte do credor “no es
sin embargo consustancial a la institución de la prenda, en general, al admitirse nel nuestro
Ordenamiento (…) la prenda sin desplazamiento de la posesión” (mais concretamente, o Autor – cfr. ult.
ob. cit., pág. 165 e segs., depois de destacar que as funções do desapossamento residem em assegurar a
publicidade do penhor, salienta não ser conditio sine qua non para o surgimento da garantia pignoratícia,
na medida em que, por um lado, encontram consagração legal penhores sem desapossamento e, por outro,
há direitos cuja própria natureza não consente tal transferência possessória: nesta conformidade e porque
a função essencial do desapossamento “equivale al desapoderamiento en el pignorante (…) a fin de
favorecer el potencial ejercicio de enajenación de la prenda en caso de incumplimiento (…) la pérdida de
la posesión no es essencial para la definición de garantía respecto a la cual aparece como fórmula
instrumental, que se realiza principalmente medianta la sustración de la disponibilidad del bien de la
esfera del constituyente”, admitindo, por isso, a sua substituição por outros mecanismos publicitários que
produzam o mesmo efeito e impeçam que o bem onerado possa ser adquirido por terceiros de boa fé,
como o caso em que os bens se encontrem depositados em poder de um terceiro e este consinta, desde que
o acordo de tradição entre credor e devedor seja notificado a esse terceiro).
2613
Cfr. Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 93 e 94.
2614
Como escreve Gabrielli, Spossessamento cit., pág. 934, “il legisltore non ha afftto menzionato lo
spossessamento del debitore – o l’impossessamento del creditore – per definir ela disciplina del momento
costitutivo del diritto di garanzia, ma ha fatto leva sulla consegna della cosa, alla quale, come dato
729
Depois de analisar exaustivamente as justificações históricas que presidiram à
instituição da necessidade do desapossamento,2615 remata que este representa apenas o
instrumento para a realização de um desiderato mais amplo, qual seja o de impossibilitar
o constituinte de praticar actos de disposição do bem dado em garantia.2616
Esta indisponibilidade do bem onerado, por parte do constituinte do penhor,
conduz a que ao credor seja legítimo reter o objecto da garantia e, do mesmo passo,
priva o constituinte da possibilidade de entregar o bem a terceiro, com o efeito
liberatório decorrente da regra “posse vale título”.2617
Ou seja, “La traditio rei non è fine a se stessa, ma rappresenta lo strumento per
la realizzaione di una diversa situazione finale: la impossibilità per il costituente di
compiere atti di dispozione della res data in garanzia”,2618 isto é, será imperioso
neutro, va riconosciuto un valore meramente strumentale rispetto alla situazione finale che mira a
produrre” (vide, do mesmo Autor, in I negozi costitutuvi cit., pág. 150, “la consegna assume una
funzione meramente strumentale, quale atto materiale necessário per la realizzazione dello
spossessamento del costituinte, vale a dire per la sottrazione nei suoi confronti della esclusvia
disponibilità della cosa oggetto della garanzia (art.º 2786 cc)” e também in Garanzia rotativa, vincoli su
titoli di stato e disciplina del pegno, in Rivista di diritti civile, 1992, Tomo II, pág. 269 e segs., “l’art.
2786 c.c. in entrambi i commi richiama espressamente una situazione, ed un concetto, fondamentale per
la compreensione della teoria del pegno: la (esclusiva) disponibilità della cosa”). Também Paolo
Piscitello, Costituzione in pegno cit., pág. 175 e segs., nega que o desapossamento seja imposto por
razões de natureza publicitária, sendo antes necessário para limitar a faculdade de disposição por parte do
dador da garantia “come risulta evidente dal contenuto precettivo dell’art. 2786 c.c., ove si richiede che il
costituente non possa disporre autonomamente dei beni”, com uma dupla função: “tutela il creditore nei
confronti del deterioramento dei beni e delle alienazioni a terzi in buona fede. Inoltre, rende possibile ai
terzi di verificare – in seguito alla propria attività – l’esistenza del vincolo e di valutare in tal modo la
convenienza di ulteriori concessioni di credito”.
2615
Com uma viagem aos ordenamentos jurídicos francês (no qual o desapossamento assumiu
inicialmente uma única função de tutela do credor, tendo apenas sido invocada a necessidade de
protecção de terceiros – adquirentes ou outros credores do empenhante – num momento mais recente),
alemão (no qual o princípio do desapossamento cedo se revelou inadequado face às exigências
comerciais, tendo motivado o surgimento de diversos mecanismos de garantia que prescindem desse
desapossamento) e anglo-saxónicos (em especial através da criação da figura da garantia flutuante que
permite abranger um conjunto de bens unitariamente considerado) – Gabrielli, Il pegno anomalo cit.,
págs. 97 e segs..
2616
Que assim é, sempre na óptica do mencionado Autor, comprova-se através da admissibilidade legal
de constituição do penhor através da entrega a um terceiro ou de uma situação de composse do credor e
do devedor, desde que o constituinte não possa dispor do bem sem a cooperação do credor (cfr. art.º
2786.º, n.º 2, do CCI) – cfr. Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 115 e também in Garanzia rotativa,
vincoli su titoli di stato e disciplina del pegno cit., pág. 269. Em termos aproximados, Serafino Gatti, Il
credito cit., págs. 179 e 180, assegurando que “se si guarda allo spossessamento nell’ottica dell’effetto
cui è normativamente preordinato, non si può non convenire sul fatto che esso non è essenziale per
l’esplicarsi della funzione di garanzia, rispetto alla quale rappresenta soltanto la forma attraverso cui il
legislatore ha voluto dare concreta attuazione alla garanzia stessa (…) In realtà, per tutelare l’interesse
dei terzi a conoscere l’esistenza del pegno il legislatore poteva ricorrere a soluzioni diverse dello
spossessamento, che rappresenta uno dei mezzi utilizzabili e, forse, neppure quello più sicuro, visto il suo
carattere ambiguo. (…) Se, dunque, è vero che la funzione attribuita allo spossessamento può essere
assolta da qualche altro strumento, che in pratica consente di evitare che il bene gravato da pegno sia
acquistato da terzi in buona fede, bisogna sperimentare qualche formula alternativa in grado di rendere
operante questa stessa funzione di pubblicità”.
2617
Noutro plano, esta mesma indisponibilidade retira a coisa empenhada da circulação de direitos
(anulando eventuais conflitos externos entre diversos credores do constituinte) e elimina potenciais
conflitos internos entre adquirente sucessivos do referido bem (cfr. Gabrielli, Il pegno cit., pág. 116 e
também Spossessamento cit., pág. 934).
2618
Gabrielli, Garanzia rotativa, vincoli su titoli di stato e disciplina del pegno in Rivista di Diritto Civile,
1992, II, pág. 269.
730
analisar separadamente a função de garantia, por um lado, e os seus efeitos e os
instrumentos através dos quais aquela é alcançada, por outro.2619
Concluindo, “lo spossessamento non sia essenziale per la definizione della
funzione di garanzia nel pegno (…). La funzione di garanzia nel pegno infatti può ben
attuarsi ugualmente – e con gli effeti propri del tipo – anche utilizzando strumenti
legislativi, o tecniche contratttuali, diversi o alternativi allo spossessamento, purché
assicurino che la res oggetto della garanzia venga comunque sottratta, mediante la
costituzione del vincolo, al potere dispositivo del costituente”: de entre essas técnicas
alternativas contam-se a inscrição do vínculo nos próprios bens ou em registos
apropriados.2620
Por isso, pese embora o facto de serem utilizados mecanismos, legal ou
contratualmente previstos, anómalos e diversos do modelo típico do desapossamento,
tal não invalida, em razão da identidade do fito de todos eles, que se deva considerar
estarmos perante o mesmo tipo legal de garantia.2621
Noutros termos, a autonomia privada não se encontra legitimada a criar novas
formas de garantia real para além das tipificadas na lei, mas poderá, através de novos
métodos, moldar o perfil funcional do negócio constitutivo.2622
Em face do exposto, sendo o desapossamento destinado a produzir a
indisponibilidade do bem por parte do empenhante, assim como a impedir que aquele
mesmo sujeito possa entregá-lo a terceiro com efeitos liberatórios (por força do
princípio da posse vale título), esse mesmo desapossamento não será qualificante do
tipo legal do penhor, mas apenas instrumental.2623
2619
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 126. O mesmo Autor (in Sulle garanzie rotative cit., págs. 12 e
13), distingue entre a função de garantia – traduzida na criação de uma reserva de utilidade, a favor do
credor pignoratício, sobre o património do constituinte – e os possíveis efeitos – indisponibilidade, direito
de sequela, direito de preferência - que poderão decorrentes daquela função de garantia, ou melhor, “si
individuano uno o più modi mediante i quali quella funzione può tecnicamente realizzarsi”). Se assim é e
tendo em conta a diversidade de possíveis objectos da garantia, será ”possibile, per produrre l’effetto di
garanzia, utilizzare, di volta in volta, quegli strumenti già presenti nel sistema, o forgiati dal potere
creativo dei privati, che, nel rispetto dei principi ordinanti del sistema, risultino in concreto più idonei a
realizzare l’effetto divisato”.
2620
Cfr. Gabrielli, Il pegno. cit., pág. 116, I negozi costitutivi cit., págs. 150 e 151, Spossessamento cit.,
pág. 934 (salientando que “Il discorso sulla funzione di garanzia può quindi essere svolto scindendo il
piano della funzione dei suoi effetti, precisando le tecniche, i modi, le forme, con i quali essa può attuarsi
in concreto, poiché tale funzione è diretta a soddisfare un’esigenza di valorizzazione delle tecnhice di
realizzazione e di tutela degli interessi tipizzati nel modello di garanzia reale”).
2621
Cfr. Gabrielli, Il pegno cit., pág. 117 e I negozi costitutivi cit., pág. 151. Por isso, o citado Autor
rejeita que através destes mecanimsos alternativos se dê vida a modalidades atípicas de penhor,
considerando antes que “non si assiste ad una caratterizzazione dello schema, ulteriore o diversa rispetto
a quella del modello típico, cosi da incidere sullo stesso dando vita a sotto-tipi contrattuali, oppure a
negozi atipici, ovvero misti, perché si tratta, piuttosto, di forme anomale di esplicazione della fuzione di
garanzia própria del tipo” (vide ult. ob. e loc. cit.).
2622
Nestes termos, Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 44. Acerca da questão de saber se aquelas garantias
em que se opera o afastamento de alguns aspectos do regime legal do penhor (em especial a necessidade
de entrega do bem ao credor ou a terceiro) deverão reentrar no âmbito desta garantia, vide infra Capítulo
III.
2623
Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 152 e Il pegno anomalo cit., pág. 127 e Giuseppe Trapani, ob.
cit., págs. 117 e 118 (salientando que “lo spossessamento è una misura di sicurezza e di pubblicità
indubbiamente energica, ma è altrettanto vero che esso non è insostituibile”, concluindo que “nessun
principio di diritto si oppone alla costituzione di un pegno senza trasferimento del possesso. Lo
spossessamento non ha altro scopo che quello di rendere edotti i terzi e diventa inutile dal momento in
cui si porti alla conoscenza di questi ultimi la conclusione del contratto mediante l’organizzazione di un
sistema di pubblicità” ou, noutros termos, o desapossamento “è destinato a dare alla garanzia la
necessaria pubblicità, e che, per conseguenza, diviene inutile allorchè la pubblicità può essere ottenuta in
altra maniera”, designadamente através de “nuovi adeguati sistemi di pubblicità atti a supplire a quella,
731
A atestar esta afirmação estaria a circunstância de o desapossamento não ser, por
si só, suficiente para fazer surgir o direito de preferência (ou, noutros termos, para
tornar o direito de penhor oponível a terceiros), sendo antes necessária a redacção de um
documento com data certa contendo uma suficiente indicação da coisa empenhada e do
crédito assegurado (embora tal argumento careça sentido entre nós, uma vez que o
ordenamento luso é, como se viu, omisso quanto a esta exigência).2624
Resultados análogos podem ser alcançados através de meios sucedâneos, pelo
menos quando a determinados bens, até porque os dois objectivos normalmente
associados ao desapossamento – tutela do credor contra o risco de deterioração ou
perecimento do objecto da garantia e cognoscibilidade para terceiros da constituição do
penhor – nem sempre são cabalmente alcançados.2625
Deste modo, é a própria solução legal de, ao menos aparentemente, exigir o
desapossamento do empenhante que pode ser contestada, sobretudo tendo em conta a
possibilidade de alcançar, de modo mais cabal, os fins por ele visados através do recurso
a mecanismos alternativos.2626
Atestando o carácter não insubstituível da entrega do bem ao credor e do
desapossamento material do empenhante, aí está a regulamentação do penhor de bens
incorpóreos, cuja oneração terá obrigatoriamente de prescindir da entrega (ao menos em
sentido material) dos mesmos ao credor, sob pena de se negar a empenhabilidade de tais
coisas.2627
sempre rudimentale, anche se efficacissima, forma, che è data dallo spossessamento del pegno a favore
del creditore”). Transpondo este entendimento para a realidade lusa, diremos que o desapossamento será
ainda menos qualificante do tipo, na medida em que não poderá ter a segunda finalidade, atenta a não
recepção do princípio da posse vale título no nosso ordenamento.
2624
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 198 e segs.. De acordo com este Autor, a ausência de um
sistema publicitário (aquele que resulta do desapossamento é meramente ilusório), torna premente a
necessidade de tornar a garantia cognoscível por terceiros. Ora, esse instrumento é precisamente o
documento formal exigido pelo n.º 3 do art.º 2787.º do CCI (ou a notificação imposta pelo art.º 2800.º
para o penhor de créditos). Em face do exposto, o desapossamento é uma condição necessária, mas não
suficiente, para o surgimento do direito de preferência, ou seja, “La sottoposizione del bene ad una
situazione di indisponibilità è quindi pressuposto imprescindibile a favore del creditore, del sorgere e del
premanere del diritto di prelazione (…) ma non sufficiente per la produzione del suo effetto: opponibilità
ai terzi, al qual fine è richiesto l’atto di data certa”.
2625
Relativamente ao primeiro objectivo, poder-se-à contrapor que “non sempre creditore pignoratizio e
debitore sono in posizione di conflitto, per quanto concerne la disponibilità del bene. Qualora si tratti di
beni strumentali, anche il creditore ha interesse a che il possesso sia lasciato al debitore. L’uno sa
benissimo, infatti, che l’altro sarà in grado di restituirgli quanto gli deve solo se potrà continuare a
svolgere la prapria attività, e nel modo più competitivo. Quanto ai rischi di deterioramento,
occultamento od alienazione, la più efficace garantia è costituita dal lato stesso che quei beni sono
inseriti in un ciclo produttivo. Il debitore avrà infatti tutta la convenienza a conservarli in buono stato, nè
potrà distrarli dalla funzione cui, per loro natura, sono destinati. Come si potrebbero nascondere i
machinari di un opificio? E la loro vendita non significherebbe forse la fine dell’impresa?” (cfr. Antonio
Fontana, ob. cit., págs. 68 e 69). No que concerne à função publicitária, o desapossamento constitui um
meio rudimentar e ambíguo, como se comprova pelo facto de, desde tempos imemoriais e nas mais
diversas latitudes, se recorrer a outros mecanismos, como a aposição de marcas físicas sobre os objectos
onerados (cfr. auts., ob. e loc. cits.).
2626
Como salienta Serafino Gatti, Il credito cit., pág. 180, “per tutelare l’interesse dei terzi e conoscere
l’esistenza del pegno il legislatore poteva ricorrere a soluzioni diverse dallo spossessamento, che
rappresenta uno dei mezzi utilizzabili e, forse, neppure quello più sicuro, visto il suo carattere ambiguo”,
considerando que a solução legal resulta da influência da codificação francesa e do peso da tradição (no
mesmo sentido Fabrizio Maimeri, Trust cit., pág. 2).
2627
Dominique Legais, Garanties conventionelles cit., pág. 35 e segs., esclarece que, no penhor de bens
incorpóreos o que se impõe é, não o empossamento do credor, mas antes “une déssaisine du débiteur liée
à une saisine du créancier”. No entanto, em face da impossibilidade de entrega material do objecto
onerado, importará adaptar a exigência de desapossamento, o que se poderá alcançar através da
732
Mais concretamente no que respeita ao penhor de créditos,2628 o desapossamento
deve funcionar em moldes diversos, atenta a especificidade do objecto do penhor e
constatação do papel secundário que a entrega material desempenha face aos efeitos que a mesma produz,
isto é, “La dépossession réalise l’affectation unique et exclusive de la valeur d’un bien au créancier et se
caráceterise par la perte des prérogatives du constituant du gage sur la chose et non par celles qu’elle
fait naître au profit du créancier” (uma vez que o constiuinte fica privado do uso do bem, mas este uso
não é facultado ao credor, não tendo este último mais do que “un droit sur la valeur et a ce titre n’est
investi d’aucun pouvoir sur les utilités de la chose qui sont en quelque sorte stérilisées durant la vie de la
surêté. Le créancier conserve le bien exclusivement pour empêcher son détournement et par conséquent
pour assurer son paiment”), havendo até quem prefira falar, ao invés de empossamento do credor, em
“dessaisine do constituant du gage”. Como corolário deste entendimento, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit.,
págs. 20 e 21, assevera que “l’essentiel dans la dépossession n’est pas l’appréhension matérielle du bien
par le créancier mais la perte de ses utilités par le constituant”, concluindo que, se assim é, “la remise de
la chose, qui apparaît simplement comme un moyen de parvenir à la dépossession et non comme un fin en
soi. Recentré sur la perte des prérogatives du constituant, la dépossession est applicable aux biens
incorporels. Elle suppose que l’on admet qu’elle puisse s’exprimer dans selon des procédés
dématerialisés et donc une adaptation du modèle du gage” (não obstante, a Autora ressalva que “si la
nature incorporelle n’exclut pas catégoriquement la dépossession, tous les biens incorporels ne peuvent
pas être affectés en garantie selon cette forme. Tous les biens incorporels ne sont pas aptes à la
dépossession. L’exclusion résulte non de l’incorporéité mais de l’impératif d’exploitation qui gouverne le
régime de quelques biens incorporels, que nou nommerons biens d’exploitation”).
2628
No que especificamente respeita ao penhor de créditos, entende que a principal dúvida repousa em
saber como o constiuinte pode ficar inibido de exercer os direitos que detém sobre o crédito onerado,
considerando a maior parte da doutrina francesa que o será através da notificação da constituição da
garantia ao devedor do crédito empenhado (porquanto seria através desta notificação que o devedor do
crédito onerado era alertado para o direito do credor pignoratício, estabelecendo-se assim uma ligação
entre estes dois sujeitos ou, na opinião de alguns, a notificação serviria para empossar o credor, não
relativamente ao devedor empenhante, mas sim com respeito a terceiros), enquanto outros sustentam que
tal desiderato é obtido através da entrega do título comprovativo do crédito (utilizando, a ausência de
norma expressa a impor tal entrega, o argumento de analogia com a cessão de créditos – em cujo regime
se impõe tal entrega - e, sobretudo, com o penhor de coisas corpóreas, considerendo que “Dans les deux
cas, le constituante remet à son créancier l’object du gage. Certes, lorsqu’il y a gage sur créance, il n’y a
pas véritablement remise du droit puisque celui-ci n’est pas incorporé au titre. Cette fiction – la remise
do document équivalent à la remise du droit – n’exclut pourtant pas l’existence d’une mise en possession
(…) c’est une conséquence de la nature juridique du bien donné en gage, il est impossible de transposer
les règles applicables aux biens corporels”: em suma, “C’est que la remise du document constatant la
créance assure une fonction similaire à la remise d’un bien: le constituant qui a remis le titre au
créancier ne peut plus constituer une autre sûreté sur le même bien. Tout risque de fraude est ainsi
évité”): o Autor, contudo, contesta qualquer destas leituras, no que toca à primeira em razão de a mesma
ser historicamente oriunda de um sistema em que a transferência de direitos exigia, além do consenso,
uma formalidade ulterior (normalmente a tradição do objecto do direito), formalidade essa que, no caso
dos créditos, era substituída pela entrega (ora, num sistema consensual como o actual, a aquisição de bens
móveis dá-se por mero efeito do contrato, enquanto o cessionário de um crédito não adquire o seu direito
por via unicamente consensual, sendo ainda necessária a notificação para que o negócio possa produzir
efeitos relativamente a terceiros, isto é, “le motif pour lequel la Loi exige une formalité spéciale pour que
le cessionaire devienne propriétaire à l’égard des tiers, il est étranger à la transmission de la
possession”) e, ainda, porque da conjugação dos preceitos relativos ao penhor resulta a obrigação de
desapossamento do devedor, mas não quanto ao modo como tal desapossamento se realizará no penhor de
créditos (“il n’existe aucune disposition spécifique à la mise en possession des créances”), concluindo
que a única função da notificação é de índole publicitária (e, se assim é, “ne peut en effet jouer le rôle
dévolu à la remise de la chose lorsqu’il y a gage sur meubles corporels. En effet, la signification se
différencie trop de la remise d’un bien corporel pour qu’on puísse affirmer qu’elle assure la même
fonction. Quand il y a mise en gage d’un meuble corporel, le constituant remet la chose, object de sa
sûreté, à son créancier. Dans l’hypothèse du gage sur créance, c’est le créancier nanti qui procède à la
signification. Contrairement à la remise des biens corporels, la signification ne procure aucune sécurité
au créancier nanti. Il ne peut être assuré que la créance n’a pas dejà été mise en gage. Le créancier peut
donc être victime des agissements frauduleux de son débiteur. La remise de la chose a une fonction
préventive que ne possède pas la signification”); no que à entrega do documento comprovativo diz
respeito, a sua rejeição, prende-se com a circunstância de tal formalidade não eliminar os riscos de fraude
733
intromissão necessária de um terceiro sujeito (devedor do crédito empenhado) na
relação de garantia.2629
(uma vez que “rien n’assure que le créancier qu’il est en possession de l’original de la facture et que le
même document n’a pas déjà été remis a un autre (…). Le dessaisissement suppose donc l’existence d’un
billet de mobilisation qui soit unique et qui contienne un certains nombres de mentions, permettant
d’éviter toute fraude”), para além de apresentar diversos inconvenientes práticos (desde logo, porque tal
significaria a não empenhabilidade de todos os créditos não comprovados por escrito) - Dominique
Legais, Garanties conventionelles cit., pág. 35 e segs..
2629
Como salienta Legeais, Sûretés 1999 cit., págs. 45 e 46, a propósito do penhor de créditos, “ont doit
renoncer à soumettre à un même principe la mise en possession d’un bien corporel et celle d’une
créance. Il faut, en particulier, abandonner la notion de remise pour expliquer la mise en possession
d’une créance. La remise ne se conçoit que lorsqu’elle concerne un bien corporel. Ce qu’il importe de
dégager, en revanche, c’est la fonction de la mise en possession. Et ce, afin de déterminer solon quelle
nodalité cette fonction peut être assuré lorqu’il y a nantissement de créances (…). Lorsqu’une créance est
l’object du gage, les règles ne peuvent qu’être différentes. Il n’est alors plus possible de reconnaître au
créancier un certain nombre de prérogatives, aussi bien à l’encontre du débiteur de la créance qu’à
l’encontre du constituant, pour préserver la valeur de son gage. Si, en effet, il est possible de concevoir
un dessaisissment il ne peut portes que sur des prérogatives. C’est ainsi que le constituant, à compter de
la mise en gage, n’a plus le droit de réclamer paiment à son débiteur, de lui consentir une remise de
dette. Le gagiste est, lui, investi des droits dont est titulaire tout créancier lui permettant de garantir le
paiment de la créance à son échéance (…). Ainsi, c’est le transfert au créancier nanti d’un ensemble de
prérogatives qui réalise sa mise en possession. Dans le même temps, le desaisissement du débiteur est la
perte de ces mêmes prérogatives. Il est important de souligner que cette mise en possession peut
s’effectuer solo consensu, par le seul accord relatif à la constitution de la sûreté. Point n’est besoin d’une
formalité supplémentaire. Dès que l’accord des parties intervient, le constituant est dépouillé de certaines
prérogatives. Dans le même temps, le créancier en qcquiert un certain nombre. Grâce à la transmission
de ces prérogatives, le créancier nanti peut protéger son droit éventuel d’obtenir le paiment de la créance
gagée. Ce transfert de prérogatives est l’équivalent de la remise de la chose. Quand, en effet, une créance
fait l’object du gage, seule une paralysie des raports juridiques existant entre le constituant et son
débiteur procure une garantie au créancier (…). Le tranfert de droits au profit du créancier nanti n’est
pas l’équivalent de la remise d’un bien corporel. Celle-ci a, en effet, une fonction de publicité. Or, la
publicité de l’opération est, autant sinon plus, nécessaire quand il y a gage sur créances“. Já Garcia
Vicente, La prenda cit., pág. 25 e segs., destaca como a indisponibilidade obtida com o desapossamento
pode, no penhor de créditos, ser alcançada através de mecanismos alternativos, como a notificação do
devedor do crédito empenhado, de modo que “no es imprescindible formular los requisitos propios de la
prenda de créditos como equivalentes a los dispuestos con carácter general para la prenda ordinaria,
porque estos últimos se explican en razón del tipo de objeto pignorado y la reglas de su tráfico (las
propias de los bienes muebles corporales) y no expresan las reglas inmutables (por otra parte,
inexistentes) de la prenda”). Por fim Pace, ob. cit., pág. 45 e segs., depois de realçar que, no penhor de
coisas corpóreas, a entrega do bem ao credor não cumpre qualquer desígnio publicitário (pois, se o tivesse
pretendido, “sarebbe stato suficiente porre il debitore in istato di non poter disporre della cosa data in
pegno. I terzi non avrebbero potuto acquistare validamente e, quindi, il creditore pignoratizio non
sarebbe stato pregiudicato da alcun atto del debitore. Perciò la consegna effettiva à richiesta ad altro
scopo: cioè per assoggettare il bene al potere concreto del creditore. Nè tal elemento puo considerarsi
come un di più di pubblicità, perchè il possesso (…) non rende manifesto il diritto di chi possiede: tutt’al
più rende manifesto, e non sempre, che chi possiede ha un diritto, ma non quale diritto abbia”, conclusão
esta reforçada pela admissibilidade da tradição simbólica: em suma, no penhor a entrega do bem ao
credor pignoratício “ha soltanto come conseguenza riflessa la publicità, in quanto rende nota la
privazione della materiale disponibilità sulla cosa stessa, mentre la funzione prevalente, sostanziale, sta
nell’assoggettamento di essa al potere del creditore pignoratizio”), conclui que também o não tem, no
penhor de créditos, a forma de constituição legalmente prescrita - a notificação ao terceiro devedor do
crédito empenhado -, uma vez que tal formalidade se limita a dar a conhecer a este a constituição do
penhor, o qual, para terceiros, “rimane un atto occulto, nè questi utlimi sono messi in condizione di
averne notizia”, pelo que apenas cumpre a função de colocar o empenhante numa situação de
indisponibilidade face ao quid onerado – não podendo cobrar o crédito onerado, faculdade essa atribuída
ao credor pignoratício -, mas não a função de publicidade de facto negativa: ora, para cumprimento deste
objectivo publicitário, entende o Autor ser imperiosa a entrega ao credor pignoratício do documento
comprovativo da existência do crédito a empenhar.
734
No que particularmente concerne aos instrumentos financeiros e a outros bens
específicos, a constituição do vínculo através de inscrição num registo representa, ao
menos no parecer de alguns, uma confirmação do carácter fungível do desapossamento
enquanto mecanismo de constituição do penhor.2630
Por outro lado e conforme foi demonstrado no Capítulo I, a imperiosidade do
desapossamento impediria igualmente a dação em penhor de bens futuros.
Em suma, será de admitir que a obrigatoriedade de, no acto de constituição do
penhor, se operar, simultaneamente, o desapossamento do credor e o empossamento do
credor pignoratício, tende a ser superada, por uma de duas vias: ora considerando a
indispensabilidade apenas do desapossamento do empenhante (ou seja, mesmo não se
verifique a transferência material do bem para o credor, desde que se opere a traditio
por alguma das outras vias admitidas); ora, dando um passo mais, entendendo como
verdadeiramente essencial a perda da disponibilidade do bem por parte do empenhante
(ainda que não haja entrega ao credor ou a terceiro e mesmo que o empenhante nem seja
desapossado fisicamente do mesmo, como sucederá quando a constituição da garantia se
encontre sujeita a registo).
A questão principal que, a nosso ver, decorre desta relativização da exigência de
entrega do bem ao credor é a de saber se estar garantias, ao prescindirem do
desapossamento (ao menos material) do constituinte da garantia, não deverão ser
consideradas como hipotecas mobiliárias ou, por desvirtuarem um dos aspectos
supostamente qualificante do tipo legal de penhor, como garantias atípicas.2631
2630
Neste sentido, Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 146 e segs., escrevendo que o
desapossamento “è finalizzato a privare il costituente della possibilità di dar luogo, disponendo del bene
consente di escluderlo del novero dei requisiti qualificanti il tipo normativo. Ne consegue, quale ulteriore
corollario, la fungibilità dello strumento segnalativo, il cui scopo può raggiungersi anche percorrendo
strade alternative”, como sejam a aposição de marcas físicas ou a inscrição nos registos (representando as
novas modalidades de constituição do penhor um “sforzo del legislatore di adeguare le tradizionali
categorie giuridiche alle esigenze di una realtà in rapida evoluzione”, dada a “difficoltà di inquadrare i
nuovi beni entro gli schemi giuridici creati per disciplimare le tradizionali situazioni di appartenenza
delle cose materiali”). Nesta conformidade, conclui que a opção por uma destas modalidades, desde que
produzam efeitos análogos ao desapossamento – maxime tornando visível a oneração do bem – “non
incide sulla sostanza dell’istituto, giacché non comporta alcuna variazione della funzione di garanzia ma
unicamente delle modalità del suo realizzarsi. L’anomalia delle nuove figure di pegno (…) è dunque tutta
(e soltanto) mei meccanismi utilizzati per l’opponibilità, ovverosia nelle misure di connoscenza
variamente strutturate in considerazione della tipologia del bene”. Em termos parcialmente concordantes,
Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 68 e segs., destacando que os meios substitutivos do desapossamento
possessório são, principalmente e em termos gerais, a notificação do devedor (sobretudo para o penhor de
créditos, figura não consagrada expressamente na lei espanhola, embora, mesmo para este, o Autor
entenda não ser bastante para produzir a imobilização do direito empenhado) e a inscrição da garantia
num registo (particularmente idónea para acções não se encontrem representadas através de um suporte
físico), desde que qualquer destes mecanismos assegure “la indisponibilidad del pignorante y se atribuya
al acreedor pignoraticio la facultad de instar la enajenación de la acción pignorada”. Vide, igualmente,
Annalisa Liuzi, ob. cit., pág. 63 e segs., entendendo que o desapossamento não é essencial para a
definição da função de garantia, uma vez que o fim por ela visado é o de obter, a favor do credor
pignoratício, a indisponibilidade do bem por parte do constituinte do penhor: ora, “tale indisponibilità
può essere ottenuta anche utilizzando tecniche e strumenti diversi dallo spossessamento” e, no caso
específico do penhor de valores mobiliários alvo de gestão centralizada, “la mancata attuazione dello
spossessamento non incide affato sulla realizzazione della funzione di garanzia dato che la struttura del
sistema, attraverso procedure diverse per l’iscrizione dei vincoli sui titoli, garantisce lo stesso le finalità
tipiche del pegno”. Em termos idênticos, Mia Callegari, ob. cit., pág. 22, escrevendo que “lo
spossessamento rappresenti soltanto uno dei possibili modi di attuazione della funzione propria del
pegno e non individui il meccanismo esclusivo della sua costituzione. La funzione di garanzia (…) si
manifesta anche attraverso tecniche alternative a quella che si serve dello spossessamento del debitore,
ma, come si vuole sostenere, ad essa equipolenti”.
2631
Sobre este assunto, vide infra Capítulo III.
735
2 - Necessidade de determinação inicial dos créditos e dos bens objecto do
penhor (cláusulas omnibus): determinação e determinabilidade
2632
De acordo com Giovanni Stella, ob. cit., pág. 13 e segs., as instituições de crédito “hanno l’esigenza
di ricevere dal cliente una garanzia (…) idonea a tutelare molteplici ed anche eventuali debiti derivanti
da più atti negoziali inerenti alla singola operazione o da una serie di operazioni che possono succedersi
nel tempo”, enquanto os empresários “si rivolgono alle banche proprio confidando sulla rapidità e
continuità nelle concessioni di nuovi finanziamenti e linee di credito”, concluindo que estes anseios
ficariam frustradas se “ad ogni singola modificazione della posizione debitoria di un soggetto e ad ogni
singola operazione dovessero corrispondente altrettante pattuizioni, accompagnate dalle formalità del
caso”. Nesta conformidade, o mesmo Autor (ob. cit., págs. 58 e 59) realça a necessidade de a garantia
assegurar um crédito, independentemente da forma que este possa assumir (conta corrente, abertura de
conta, desconto bancário, de modo que “la varia natura delle operazioni effettuate e da effettuare ha un
carattere del tutto secondario e contingente nell’economia del contratto di garanzia, concepito
unitariamente ed essenzialmente come garanzia generica ed indistinta di un determinato ammontare
delle operazioni del garantito verso la banca”).
2633
Ob. cit., pág. 176.
2634
Neste sentido, Realmonte, Il pegno cit., pág. 635, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág. 25, Giovanni Stella,
ob. cit., pág. 20 (este último destaca que a necessidade de existência de um crédito garantido tem dois
objectivos: “da un lato, ad evitare vincoli reali (come tali, opponibili ai terzi) a tempo indefinito sui beni,
in deroga al fondamentale principio del nostro ordinamento della libertà della proprietà e della libera
circolazione dei beni medesimi; da altro lato, a tutelare gli altri creditori chirografari (favorendo cosi lo
sviluppo del credito in genere) che certo non sarebbero incentivati a dare a credito, se non potessero
controllare ed accertare il limite della prelazione altrui”) e Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 36,
para quem este tipo de cláusulas na sua versão mais radical – que estabelece a oneração dos bens do
devedor depositados junto do credor por todos os créditos, presentes ou futuros, que aquele venha assumir
perante este - faria com que o simples facto de determinados bens (acções) do devedor se encontrarem
depositados em poder do credor fosse suficiente “para que cualquier concesión de crédito de esta entidad
al titular de las mismas implicase una automática constitución prendaria sobre estas acciones”.
2635
No seguimento da reforma do direito francês de 2006, discute-se a necessidade de redução a escrito
do penhor comercial (como se referiu noutra sede), propendendo alguns Autores para uma resposta
negativa, daí retirando, como corolário, que tal solução “écarte pratiquement le principe de la spécialité
de la créance garantie, principe auquel la mention de la créance dans l’écrit asssure, en matière civile,
une stricte application. Le gage commercial peut être général: il peut garantir non seulement des
créances futures mais encore des créances indéterminées” – Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010
cit., págs. 504 e 505.
736
determinati)”2636 e, no que especificamente respeita ao crédito garantido, a sua
indicação serve dois propósitos essenciais: “nella fase di sicurezza, esso evita la nullità
della garanzia (è noto che, per il principio di accessorietà, l’esitenza del pegno dipende
dall’esistenza di un credito garantito), dall’altra parte, nel caso di esecuzione della
garanzia, esso serve a determinare il “valore” che deve essere soddisfatto”:2637 todavia,
esta objecção deverá ser relativizada naqueles ordenamentos que reconheçam as
chamadas garantias de máximo.2638
No que toca à propalada característica da acessoriedade da garantia face a uma
obrigação cujo cumprimento pretende assegurar, ela pressupõe, ao menos em regra, que
este crédito seja existente e válido,2639 sem que tal signifique, porém, a proibição de
2636
Em termos análogos, Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 38 e segs., acrescentando que,
relativamente à obrigação assegurada, “es precisa la concurrencia acumulativa de dos elementos:
concrección de los sujetos de la relación jurídica de la que han de surgir las eventuales obligaciones
principales y fijación de un límite máximo a la obligación garantizada”. Deste modo, a densificação do
crédito garantido pode efectuar-se através de uma cláusula em que “se enumeran taxativamente los
diversos negocios concretos de entre los cuales puedan surgir los créditos que se deban entender
incluidos en la prenda, con independencia de que éstos negocios sean ya existentes. Así, para que esta
clásula sea más viable debe concretar los negocios que gozan de una atipicidad suficiente en el tráfico
que permita su fácil individuación” e, por outro lado, “individualizando el monto del crédito, la
naturaleza del mismo, la fuente y el vencimiento”.
2637
Salinas Adelantado, Il pegno “omnibus”, in BBTC, n.º 60 (1997), I, pág. 607.
2638
É o que se passa no direito espanhol, onde encontra consagração legal a figura da hipoteca de
máximo, pois, “al existir un máximum de responsabilidad hipotecaria, es decir un techo o tope de
garantía, permite la existencia de cierta indeterminación en la obligación principal, sin detrimento de
que se pergeñen las líneas básicas del crédito” - Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 39 e segs.,
aludindo ainda o Autor à figura da fiança para garantia de créditos futuros, podendo estes ser meramente
determináveis com base nos sujeitos e num limite pecuniário pelo qual a garantia responderá.
2639
Destaca este aspecto Giovanni Stella, ob. cit., pág. 90, acrescentando que a acessoriedade impõe “che
debba sussitere un collgamento fra la costituzione del pegno e il credito garantito, nel duplo senso che le
parti devono, da un lato, manifestare chiaramente la volontà di istituire un rapporto di garanzia fra la
cosa vincolata ed il credito e, da altro lato, individuare il credito che si vuole garantire con la
imposizione del vincolo pignoratizio sul bene”.
737
constituição de um penhor em garantia de créditos condicionais ou futuros,2640 2641 ainda
que não decorrente de uma prévia relação existente entre as partes.2642
Ou seja, apesar do conteúdo normalmente atribuído ao carácter acessório do
penhor face à obrigação cujo cumprimento assegura2643, isso não significa,
inevitavelmente, a necessidade de referência a um crédito a assegurar existente e válido,
antes consentindo, dentro de determinados limites, cláusulas nos termos das quais a
obrigação assegurada não seja cabalmente delimitada no momento da constituição da
garantia, por exemplo em razão da sua natureza futura e/ou condicional.2644
2640
Entre nós e a propósito da fiança (mas com aplicação à generalidade das garantias), Januário da Costa
Gomes, ob. cit., pág. 301 e segs., depois de realçar a aparente dificuldade de compatibilização entre o
princípio da acessoriedade e natureza condicional ou futura do crédito garantido (“já que, sendo a
obrigação futura ou condicional e estando já o fiador vinculado, não há ligação actual do espacial
crédito fidejusssório existente (ou – se quisermos perspectivar a posição do fiador – do especial débito
fidejussório existente) ao crédito principal - eventual”), conclui pela afirmativa, uma vez que “se é certo
que o contrato de fiança é, desde logo, eficaz, apesar de se reportar a um crédito futuro ou condicional,
não menos certo é que o fiador fica desde logo vinculado: fica, desde logo, com débito (relativamente)
irrevogável, a que corresponde um crédito do futuro – mas também já actual – credor. Não serão ainda o
débito e o crédito fidejussórios, que ainda não nasceram, mas constituem já, respectivamente, uma
posição passiva e uma posição activa (…). Não estamos assim (…) perante meras promessas de fiança
em que o fiador deva ser chamado de novo a emitir nova declaração de vontade, já que o declarante
passa a garantir, desde logo, o futuro crédito (…). Assim sendo, no nosso entender, o débito do prestador
de fiança futura ou condicional, antes da actualização do crédito, não é um (mero) efeito preliminar de
fiança, mas uma consequência natural da especificidade da fiança em causa, fiança que acompanha a
actualização do crédito” (em consequência, o Autor rejeita estarmos perante uma excepção ao princípio
da acessoriedade, o que apenas sucederá se perspectivarmos esta como uma ligação imposta no
nascimento da garantia, a qual, aliás, é explicável a montante do direito de crédito). No que respeita ao
penhor, o próprio n.º 3 do art.º 666.ºexpressamente afirma a possibilidade de o penhor garantir obrigações
futuras ou condicionais.
2641
Importa esclarecer que se questiona a licitude de uma garantia constituída para assegurar uma
obrigação condicional e não a constituição de uma garantia, ela própria, sujeita a condição (acerca desta
distinção, vide Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 302).
2642
Assim, expressamente, a respeito da fiança, Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 306 e segs., (“os
créditos futuros relevantes são, hoc sensu, quaisquer créditos não existentes, não sendo necessário que –
quer como requisito assegurador da seriedade do vínculo, quer como exigência da acessoriedade – exista
já uma relação jurídica definida e firme entre credor e devedor”), não sem reconhecer a necessidade de
uma base de sustentação mínima que consinta “a correspondência entre uma determinada obrigação
efectivamente surgida e a obrigação perspectivada aquando da prestação da fiança”, o que impõe a
indicação do devedor e, eventualmente, uma limitação dos créditos garantidos em termos temporais e/ou
de montante (na opinião ao Autor, estas dúvidas não se colocam no que tange às obrigações condicionais,
uma vez que “existe já uma relação entre o credor e o devedor, que está na base do estabelecimento da
condicionalidade”). Contra, Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 195, registando que um penhor constituído
em garantia de créditos futuros será válido desde que, por um lado, seja indicada no negócio constitutivo
a relação jurídica da qual poderá surgir o débito e, por outro, tal relação seja já existente no momento da
celebração daquele negócio (o que exclui a legitimidade, na óptica do Autor, não apenas dos penhores
omnibus, mas igualmente daqueles constituídos em garantia de créditos futuros “nella ipotesi in cui i
rapporti giuridici che ne rappresentanno la fonte, sebbene già individuati dalla parti, non siano ancora
venuti ad esistenza”).
2643
Sobre este carácter acessório, vide supra n.º 6 do Capítulo I.
2644
A este respeito, Giovanni Stella, ob. cit., pág. 91 e segs., depois de defender a aplicação analógica do
art.º 2852.º, ditado para a hipoteca (assegurando que “una volta riconosciuto che tramite la applicazione
analogica dell’art. 2852 cod. civ. il pegno potrebbe assicurare la prelazione anche per crediti futuri (…)
a maggior ragione si dovrebbe ammettere che possa essere semplicemente constituito, sia puré senza
prelazione rispetto ai creditori concorrenti, un pegno per crediti futuri”, sobretudo tendo em conta a ratio
do preceito em impedir a criação de um vínculo real sobre a propriedade que não se sabe se e quando
surgirá, nem por quanto tempo se prolongará), entende que decorre do mesmo a licitude de um penhor
constituído em garantia de créditos futuros (para além dos créditos eventuais, “nel quale il pegno è
efficace del giorno dalla sua costituzione, il credito esiste e, semplicemente, non è ancora esigibile prima
del verificarsi del termine”) que resultem de uma relação jurídica pré-existente entre as partes que crie
738
Isto é, embora não seja admissível a constituição de um penhor em garantia de
um crédito indeterminado,2645 exigindo-se a menção de alguns elementos que permitam
identificar a obrigação assegurada (mesmo que por remissão para outros elementos
exteriores ao contrato),2646 tal não significa que todo e qualquer dos elementos do
negócio de garantia devam ser precisa e escrupulosamente enumerados no momento (e
no documento) da constituição do penhor.
Deste modo, consegue-se uma maior elasticidade na definição do objecto do
contrato – in casu do crédito assegurado – evitando a obrigatoriedade da sua
uma obrigação de fazer nascer o crédito (como sucede na abertura de crédito – cfr. art.º 1844.º do CCI - ,
no pagamento do preço estabelecido num contrato-promessa de compra e venda e na restituição de um
dada quantia objecto de um contrato-promessa de mútuo) ou, ao menos, uma relação ou um facto do qual
possa resultar o crédito (tais como a obrigação do locatário devolver o bem no termo do contrato; as
obrigações propter rem decorrentes de relações reais; a caução prestada pelo locatário em garantia de
créditos eventuais do locador; o alargamento legal da preferência pignoratícia aos juros; a constituição de
uma garantia antevendo um eventual incumprimento da obrigação originária; as obrigações decorrentes
de relações jurídicas duradouras – v.g. contratos de trabalho - mas ainda em execução, relativamente às
prestações não executadas; o crédito do fiador contra o devedor, em sede de direito de regresso), mas não
no caso de previsão genérica de um débito futuro, dependente unicamente da simples vontade das partes.
Por outro lado, embora reconheça que o grau de determinação do crédito garantido, para efeitos de
constituição do direito real, deverá ser menos restritivo do que o exigido para efeitos de outorga do direito
de preferência (pois naquele primeiro caso não se exige a redacção de nenhum documento escrito e, por
isso, admite a chamada determinação per relationem), bastando a identificação da relação jurídica da qual
poderá brotar o crédito garantido e a determinabilidade desse crédito (a aferir de acordo com os critérios
gerais de determinação do objecto dos negócios jurídicos e sem necessidade de estipular um limite
máximo no momento da constituição da garantia ou até ao qual a garantia responda no futuro: todavia,
“qualora il pegno sia costituito a garanzia di un credito futuro derivante da un rapporto giuridico di
durata ovvero non sia possibile predeterminare se e quando il credito potrebbe eventualmente sorgere,
sarà necessario prefissare una limitazione temporale del rapporto preso in considerazione ai fini della
garanzia”, desse modo evitando a criação de um vínculo real de duração indefinida): um penhor
constituído nestes termos produz efeitos desde a data da sua constituição, pelo que, mesmo antes do
nascimento da obrigação garantida, “il creditore può rivendicare il pegno dai terzi, tutelarneil possesso,
impedirne la sottrazione e il deterioramento. I diritti del creditore pignoratizio non possono essere
pregiudicati da atti di disposizione del debitore compiuti nell’intervalo fra l’atto di costituzione e la
nascita del credito”. Sucede, porém, que o Autor considera que estes requisitos não se encontram
preenchidos relativamente às cláusulas omnibus (“non solo i crediti non risultano immediatamente
individuati o determinati, ma non sono nemmeno determinabili (…) mancando la condizione
dell’esistenza e dell’individuazione del rapporto da cui sorgerà il credito”) e mesmo quanto às cláusulas
de extensão (na qual se alude a “crediti che nasceranno da operazioni o rapporti di natura bancaria del
tutto eventuali, che non sono assolutamente in corso e quindi esistenti al momento della costituzione del
pegno”, até porquea e numeração desses negócios “è del tutto esemplificativa e non riproduce operazioni
bancarie effetivamente in atto fra le parti”), nem tão pouco se o penhor for constituído em garantia do
saldo passivo de uma conta corrente bancária já existente entre as partes no momento da constittuição da
garantia (considerando que este negócio representa uma amálgama de diversas operações, “escludendo
che, in caso di concessione del pegno a garanzia genericamente del (saldo passivo di) conto corrente,
ricorra la condizione (…) di un rapporto giuridico esistente (ed individuato) al momento del contratto
costitutivo di pegno”), sem prejuízo de, no caso da cláusula de extensão, o penhor se considerar
validamente constituído relativamente aos créditos existentes e determinados (e mesmo quanto àqueles
abrangidos por uma cláusula que crie uma garantia em benefício de todos os créditos existentes nesse
momento entre as partes, uma vez que “si potrebbe affermare che tali crediti siano determinabili in base
all’atto costitutivo di pegno, sia pure con il ricorso a dati esterni”).
2645
Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 24 e 25.
2646
Neste sentido, Gorla e Zanelli e Zanelli, ob. cit., pág. 6, muito embora alertem para o facto de tal
prática somente ser admissível quando se traduza numa expressa individualização da relação em causa e
não numa mera referência a dados extrínsecos que se possam retirar do concreto relacionamento entre as
partes (apontando como exemplo deste segundo caso a remissão para uma relação de conta corrente
bancária). Limitando a possibilidade de recorrer a dados exteriores ao contrato, quando se empenhem
títulos de crédito, vide Carlo Rimini, ob. cit., pág. 195 e segs..
739
determinação absoluta ou a indicação exaustiva, bastando, pelo contrário, a sua
determinabilidade.2647
Todavia, esta remissão para elementos exteriores não poderá ser indiscriminada,
de modo a que a identificação do crédito garantido resulte exclusivamente desses dados
extrínsecos, devendo, ao invés, o contrato conter os critérios e indícios para a
determinação do objecto negocial.2648
2647
A própria jurisprudência adopta, pelo menos em algumas decisões (cfr. as Sentenças da Corte de
Cassação de 13/4/1977 e de 12/7/1991, citadas por Gabrielli, Il pegno cit., pág. 136 e Pegno cit., pág. 691,
respectivamente), este entendimento, afirmando, na primeira das mencionadas pronúncias, que “perché il
credito garantito possa ritenersi sufficientemente indicato non ocorre che esso venga specificato, nella
scritura costitutiva del pegno, in tuttti i suoi estremi soggettivi e oggettivi, bastando, a tal fine, che la
scrituta medesima contenga elementi idonei a consentirne l’identificazione”. Todavia, tal orientação está
longe de ser unânime, conforme se alcança, por exemplo, da decisão do Tribunal de Torino de 10/7/1990,
citada por Gabrielli, Pegno, in Rivista di Diritto Civile, n.º 39 (1993), págs. 689 e 690 (na qual se exclui a
possibilidade de uma determinabilidade per relationem, invocando que o art.º 2787.º do CCI, enquanto
norma especial, prevalece sobre o art.º 1346.º do mesmo Código). Em face do direito espanhol, Mejias
Gomez, La prenda cit., pág. 117, depois se salientar a licitude de constituição de penhor para assegurar
obrigações futuras, condicionais, admite igualmente que aquela garantia tutele créditos de montante
indeterminado, desde que, em qualquer dos casos, “sus elementos se encuentren perfectamente
determinados, minetra no cabe una prenda por créditos actuales, pero indeterminados” (embora o Autor
esclareça que não se pode constituir o direito real de garantia antes do nascimento do crédito assegurado,
dependendo aquele do surgimento deste e funcionando como condição suspensiva, ficando o penhor em
estado latente até ao nascimento da obrigação): em suma, o Autor preconiza que o penhor omnibus será
válido “siempre que la obligación assegurada resulte claramente determinable en función de la prenda, y
se encuentre dentro del límite de responsabilidad fijado al constituirla” (ou seja, será imperioso fixar um
tecto máximo até ao qual a garantia responderá), apelando, para o efeito, à chamada determinação per
relationem. Por seu turno Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 40 e segs., defende que “ab initio se
requiere un cierto grado de concrección sobre lo que es materia del contrato y, por lo tanto, del vínculo
jurídico. En efecto, de la propia noción de determinabilidad deriva la necesaria concurrencia al
celebrarse el contrato de los criterios que conducen a la necesaria y definitiva determinación, sin
necesidad de nuevo convenio inter partes. No podemos abogar por un grado de indetermineción extremo,
sino más bien relativizado haste un tope máximo que funcione como límite permisible para garantizar
una obligación a la que queda afecta la garantía, y siempre desde la base de una total identificabilidad
de los sujetos involucrados”. Já Cordero Lobato, Comentario cit., págs. 2142 e 2143, alude a uma
interpretação restritiva, por parte da Direcção Geral dos Registos e Notariado, no sentido de exigir que as
obrigações garantidas se encontrem nascidas no momento da constituição da garantia ou, quando muito,
que as obrigações futuras a garantir provenham de uma relação jurídica existente no momento da
constituição da garantia (negando, ainda, que tal exigência seja satisfeita agrupando todas as obrigações
pendentes num reconhecimento de dívida sem carácter novatório ou numa abertura de crédito com
finalidade solutória, nem tão pouco vinculando os vencimentos das obrigações garantidas), posição
contestada pela Autora, porquanto “si la cláusula de globalización reúne las concidiones del artículo
1273, la existencia de una relación jurídica única no añade más determinación a la cobertura en
garantía, ni oferece mayor información a los terceros sobre el volumen garantizado que la que proviene
de la expressión de una cifra máxima de responsabildiad”.
2648
Parece ser este um entendimento recorrente na jurisprudência citada por Gabrielli, Il pegno cit., pág.
136 (significando que “non che il credito possa essere individuato sulla scorta soltanto di elementi
esteriori all’atto di constituzione del pegno, ma che il credito possa essere individuato anche mediante
l’ausilio di dati esteriori a tale atto”, considerando que o mero reenvio para dados exteriores ao contrato
significaria um defraudar da obrigação de identificação do crédito garantido e que, por isso, esses
elementos externos deverão ser buscados no contrato, do qual deve constar a respectiva indicação (com a
consequência de, quando o contrato não permita não permita essa identificação, ser o próprio crédito
garantido também indeterminado) e por Francesco Caringella, ob. cit., págs. 3554 e 3555 (citando a
decisão da Corte de Cassação, 1.ª Secção, de 26/1/2006 - in Diritto e giustizia, 2006, n.º 14, pág. 36 – na
qual se pode ler que para a identificação do crédito assegurado “non ocorre che esso venga specificato,
nella scrittura costitutiva del pegno, in tutti i suoi elementi oggettivi, bastando che la scrittura medesima
contenga elementi che comunque portino alla indentificazione del credito garantito”, embora conclua que
não se encontram preenchidos os requisitos legais “se, per la genericità delle espressioni usate, il credito
garantito possa essere individuato solo con l’ausilio di ulteriori elementi esterni, ancor più se non
740
Perante este cenário, afigura-se extremamente relevante nomear os indícios que
devem constar do contrato de modo a permitir a identificação, em concreto, dos dados
externos aos quais cumpre recorrer para determinar o crédito.2649
Um outro caminho percorrido no sentido de flexibilizar a imposição legal de
determinação do crédito garantido decorre do recurso à noção de “operação
económica”, fazendo apelo à respectiva unidade enquanto dimensão instrumental
relativamente aos interesses prosseguidos, para admitir uma maior flexibilização da
determinação do crédito garantido.2650
Todavia, estas tentativas esbarram com a exigência, imposta por alguns
ordenamentos, de identificação suficiente do crédito garantido no documento
constitutivo da garantia, a qual “viene a contrastare con l’esigenza di fornire una tutela
non di un credito o di crediti specifici ma di un’intera operazione economica di cui non
si possono determinare inizialmente i tempi ed i modi”.2651
Importa, pois, avaliar até que ponto esta exigência de nomeação do crédito
garantido é satisfeita, especialmente nos casos em que do contrato não constem
elementos que permitam a respectiva identificação em termos taxativos, apesar de não
se duvidar da admissibilidade de criação de uma garantia destinada a assegurar mais do
que uma única relação de crédito.2652
preesistenti o almeno coevi alla formazione della scrittura”; cita ainda, em termos análogos, o aresto do
mesmo tribunal de 28/10/2005, no qual se afirma que o recurso a eventuais dados extrínsecos ao contrato
de penhor “richiede che l’atto contenga un’indice di collegamento che consenta l’individuazione dei
menzionati dati”, recusando, em conformidade, a suficiência da mera referência a uma conta corrente
bancária, sem qualquer outra identificação). Mais longe ainda vai Giovanni Colombo, ob. cit., pág. 208 e
segs., admitindo que “la scrittura contentente sufficiente indicazione del credito e della cosa e munita di
data certa non deve necessariamente identificarsi col negozio costitutivo del pegno. Il pegno può essere
stato costituito anche oralmente”, assegurando que o documento escrito exigido pelo art.º 2787.º, n.º 3, do
CCI, não constitui uma formalidade ad substantiam nem simplesmente ad probationem, mas um tertium
genus, não sendo imposta como condição da manifestação da vontade negocial e do surgimento do
contrato de penhor, pelo que “la scrittura può non essere coeva al sorgere del negozio: il negozio nasce
valido e perfetto indipendentemente dalla scrittura; solo affinché esso possa produrre certi effetti rispetto
ai terzi, o a determinati terzi, serà necessaria una scrittura, coeva o successiva al negozio”.
2649
A este respeito, a jurisprudência italiana não se tem mostrado unânime, conforme se alcança de
diversas decisões contraditórias indicadas por Gabrielli, Il pegno cit., págs. 137 e 138, oscilando entre
posições mais liberais (por exemplo, alguns arestos consideram suficiente a indicação, no contrato
constitutivo da garantia, do saldo passivo da conta corrente) e outras mais restritivas (nomeadamente
negando a idoneidade da referência ao saldo final da conta corrente ou uma referência aos sujeitos da
relação obrigacional garantida com um reenvio indiferenciado a qualquer crédito, presente ou futuro,
entre eles ou, ainda, a mera alusão à escrituração interna das instituições de crédito). O Autor citado adere
à primeira das posturas, considerando ser a mais conforme à necessidade de superar a rigidez do sistema
de garantias reais e, assim, contribuir para a sua modernização.
2650
Este conceito de operação económica (definida como “una sequenza unitaria e composita che
comprende in sé il regolamento, tutti i comportamenti e le attività che con esso si collegano per il
conseguimento dei risultati voluti, e la situazione oggetiva nella quale il complesso delle regole e gli altri
comportamenti si collocano, poiché anche tale situazione concorre nel definir ela rilevanza sostanziale
dell’atto di autonomia privata” – cfr. Gabrielli, Il pegno cit., pág. 135) permite distinguir determinação de
modalidades de determinação do objecto contratual, podendo a determinabilidade do objecto resultar (não
apenas da determinação contratual) também da estipulação, no regulamento contratual, de modalidades de
determinação do objecto, ou seja, das modalidades para a sua determinação, nomeadamente através da
interpretação do próprio contrato e de elementos externos a este, desde que recondutíveis à unidade da
operação económica.
2651
Nestes termos, Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 50.
2652
Gabrielli, Spossessamento cit., pág. 936, afirma que “Il rigoroso rispetto della tipicità delle forme di
garanzia reale non può (e in ogni caso non deve) indurre a circoscrevere la funzione di garanzia (reale)
ad un singolo e particolare rapporto di credito. Al contrario, a seconda dell’interesse sostanziale che si
vuole perseguire, la funzione di garanzia – proprio perché governa un’operazione economica unitaria -
741
A este propósito, importa averiguar qual o grau de descrição do crédito exigido
por lei, sendo certo que a própria terminologia utilizada pelos diversos Autores não é
integralmente coincidente.
Alguns contrapõem a mera “indicação” à mais completa “determinação”2653
(muito embora duvidando do carácter publicitário desta descrição)2654, outros falam de
um critério de enumeração taxativa2655 e, por último, não falta quem distinga entre
“determinação e determinabilidade”.2656
può rappresentare lo strumento mediante il quale la garanzia persista e continui nel tempo, al di là della
fissità dell’oggetto sul quale il vinclo si concretizza”.
2653
Em face do direito italiano, Michele Tamponi, Sulla clausula estensiva della garanzia pignoratizia ai
crediti presenti ed ai crediti futuri, in Rivista di Diritto Civile, n.º 20 (1974), II, pág. 225 e segs., sugere
que o termo “indicação” não tem um carácter unívoco na legislação italiana (sendo utilizado com as mais
diversas acepções), mas não é usado como sinónimo de determinação. Ora, na medida em que a lei
italiana fala de documento escrito contendo “sufficiente indicazione” do crédito garantido (e da coisa
empenhada), a “indicação” significa “descrizione del medesimo; manca in essa qualsivoglia finalità di
scelta: questa, vale a dire la determiazione del credito, è stata operata quando si è concluso il negozio
donde il credito stesso è scaturito (…). La scrittura, di cui all’art. 2787, comma 3º, c.c., non fa che
individuare, descrivere i crediti preesistenti al contratto di pegno, determinati sin dal loro sorgere, ai
quali la garanzia pignoratizia dovrebbe estendersi”, mas terá que ser suficiente, ou seja, “indicazione
bastevole, cioè idonea, ad impedire accordi fraudolenti tra creditore e debitore in danno dei terzi. É
perché questo scopo venga raggiunto, la scrittura dovrà, evidentemente, indicare l’ammontanare di
ciascun credito, la sua natura, la fonte, la scadenza” (muito embora o Autor admita que, tendo em conta
o intuito protector de terceiros que inspira a necessidade de identificação do crédito empenhado, tal
indicação possa resultar de outros documentos aptos à individualização das obrigações garantidas, desde
que possuam data certa).
2654
Michele Tamponi, ob. cit., pág. 230 e segs., embora reconhecendo que a necessidade de indicação
suficiente do crédito tutela a posição dos demais credores do empenhante, protecção essa não totalmente
alcançada pelo facto de o direito de preferência do credor pignoratício se encontrar limitado ao valor do
bem empenhado (“sia perché nulla esclude che venga data in pegno una cosa di valore notevolmente
maggiore del credito garantito, sia perché, ove non fosse richiesta la sufficiente indicazione della cosa, il
creditore potrebbe sostenere, a danno dei terzi e previo accordo col debitore, che le cose di proprietà di
questi da lui detenute a qualunque titolo (nolo, comodato, deposito) sono a garanzia di pretesi crediti”),
realça que tal indicação não publicita a constituição da garantia face a terceiros, nomeadamente face aos
potenciais credores do empenhante (uma vez que, por mais elementos que tal documento contenha, os
demais credores apenas deles terão conhecimento no momento da execução da garantia, isto é, em data
posterior à do incumprimento da obrigação garantida, pois antes apenas por vontade do empenhante – e
não do credor pignoratício, vinculado ao sigilo bancário, se for um banco, ou ao dever de boa fé que lhe
impõe a obrigação de não lesar o direito do seu devedor se não nos limites da defesa do seu próprio
direito, se for um credor particular - poderá ter acesso a tal informação), sendo o desconhecimento destes
face à constituição da garantia o resultado inevitável da ausência de um sistema de publicidade legal,
surgindo o desapossamento como único indício que alertará aqueles terceiros e lhes deverá aconselhar
prudência.
2655
É a posição de Salinas Adelantado, Il pegno cit., pág. 611 e segs.. Este Autor descarta a aplicação
analógica do art.º 2852.º do CCI, correspondente à ideia de determinação (com base na qual o penhor de
créditos futuros apenas seria válido se garantisse créditos – sem necessidade da indicação do montante
que sirva de limite à garantia - derivados de uma relação já existente no momento da constituição da
garantia, excluindo as não constituídas nessa data, mesmo que fosse previsível o seu surgimento no
futuro), bem como do art.º 1346.º, que admite o recurso ao conceito mais maleável de determinabilidade
(uma vez que o penhor pode resultar de fonte não contratual e que o critério mais restritivo do art.º 2852.º
deve prevalecer, por ser específico dos direitos reais, sobre o do art.º1346.º, previsto em termos gerais
para os contratos). Em seu entender e partindo da constatação da maior rigidez do regime geral da
hipoteca face ao penhor, do art.º 2852.º do CCI “si deve trarre soltanto la regola astratta di un maggiore
rigore nella determinazione del credito garantito di quello dell’art. 1346 c.c., ma non necessariamente il
criterio concreto di determinazione là contenuto”, critério esse que reside numa “predeterminazione
contrattuale, nel senso che se il credito garantito si individua attraverso tre fattori (i soggetti, il fatto
giuridichi che vi da origine, e la prestazione) tutti questi elementi si possono sempre determinare prima
che nasca il credito garantito, indipendentemente dal fatto che dipendano da un rapporto già esistente”.
De acordo com este critério, será necessária uma enumeração taxativa dos concretos negócios (com
742
Esta última distinção, permite avaliar quando é que o objecto contratual pode ser
determinado ou determinável, o que implica identificar a fronteira entre as situações em
que um objecto é indeterminado, mas determinável, e aquelas em que, pelo contrário, o
objecto é indeterminado e indeterminável, para o que será forçoso apartar a
determinação da determinabilidade2657 ou, mais amplamente, a determinabilidade em
sentido lato, em sentido amplo e per relationem.2658
identificação dos negócios com uma tipicidade suficiente que permita a sua fácil individualização e não
através do recurso a expressões ambíguas ou genéricas) dos quais poderão nascer os futuros créditos
garantidos pelo penhor, independentemente de serem ou não já existentes e sem necessidade de imposição
de um limite máximo pelo qual responderá a garantia. Em face deste critério, o Autor qualifica como
inválidas as cláusulas omnibus e de extensão (assim como aquelas em que se disponha que o penhor
garante o saldo resultante de uma conta corrente bancária), alegando que nestas apenas se identificam os
sujeitos das obrigações garantidas.
2656
Rubino, Determinatezza cit., pág. 473 e segs., expondo que um crédito será determinado quando
sejam individualizados os sujeitos, o facto jurídico que lhe dá origem e a prestação; pelo contrário, será
determinável mesmo quando apenas conste a indicação de um deles (admitindo que “il grado di
determinabilità è maggiore o minore a seconda che siano già determinati due su tre di questi fattori” e
que a determinabilidade de um determinado elemento, em geral, significa que este “pur non essendo
questo ancora determinato, sono tuttavia già certi e determinati i criteri, i punti di riferimento, che a loro
volta ne produrranno in seguito la determinazione”): se assim é, bastaria a simples indicação dos sujeitos
do crédito garantido. Todavia, o Autor reconhece que, por vezes, a ordem jurídica prescinde desta
equivalência entre determinação e mera determinabilidade, exigindo nalguns casos a determinação e
noutros uma determinabilidade qualificada: ora, é o que sucede com o art.º 2787.º, n.º 3, do CCI, que
exige, como condição da atribuição do direito de preferência, uma suficiente indicação do crédito
(embora assegure que a este entendimento se poderá objectar que a suficiente indicação do crédito se
destina também à protecção de terceiros adquirentes do bem empenhado e a estes o penhor será oponível
mesmo quando não haja suficiente indicação do crédito, pelo que deverá ser sempre exigível a indicação
do crédito mesmo para o surgimento dos demais efeitos do penhor, além da preferência). De acordo com
este Autor, tal norma impõe a identificação (no sentido de determinação) dos sujeitos e do facto jurídico
de onde emana o aludido crédito (afirmando, quanto a este último aspecto, que “la costituzione del pegno
è valida se fatta genericamente per tutti i singoli crediti derivanti da un rapporto complesso, già esistente
o da più rapporti complessi già esistenti, se quest’ultimo o quest’ultimi siano determinati, specificamente
indicati, nel negozio di pegno”), mas contenta-se com a simples determinabilidade, embora qualificada,
da prestação garantida (no caso das prestações pecuniárias, o montante da soma, de modo a que os outros
dois factores – sujeitos e facto jurídico – “siano propriamente determinati e non semplicemente
determinabili: in tal caso, se il terzo fattore, cioè l’ammontanare della somma, rimane ancora
determinabile, l’intero credito garantito, a sua volta, non è ancora determinato, ma presenta un grado di
determinabilità ben più approssimato di quello che avrebbe, ad es., se fossero determinati solo i
soggetti”). Em termos aproximados, Giancarlo Laurini, Sulla clausula di estensione della garanzia a
crediti futuri e indeterminabili, in BBTC, 1967, II ob. cit., pág. 431 (escrevendo que “non è necessario
che il credito sia determinato, oltre che nei soggetti e nel titolo, anche nel suo preciso ammontare, in
quanto quest’ultimo è richiesto soltanto per l’ipoteca (…). Per il pegno, infatti si esige, è vero, un grado
di determinabilità maggiore di quello ordinario, ma questo maggior grado consiste nel fatto che tanto i
soggetti quanto il fatto giuridico che ha dato origine al credito siano propriamente determinati e non
semplicemente determinabili”). O fundamento desta determinabilidade qualificada reside, segundo
Rubino, ult. ob. e loc. cit., na protecção dos terceiros (principalmente os demais credores do empenhante),
os quais, mesmo sabendo da inexistência de um regime de publicidade legal do penhor (ao invés do que
sucede com a hipoteca, cujo registo deve conter a indicação do crédito garantido), poderão pretender
informar-se acerca do montante do crédito e, por isso, “qualora il negozio di pegno si limitasse a fare
riferimento genericamente a tutti i crediti verso quel debitore, gli altri possibili futuri creditori
troverebbero, nell’informarsi del numero e della natura di questi crediti dificoltà”.
2657
Cfr. Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 153 e segs.. Segundo este Autor, a determinação não impõe
aos contraentes o dever de definição de todos os aspectos que integram o objecto contratual, mas
essencialmente do conteúdo do mesmo, muito embora ressalve tal definição deve subsistir no momento
da eficácia do negócio (e não apenas no momento da sua constituição), pois a determinação do objecto
negocial é imposta por lei como condição de produção dos respectivos efeitos. Assim sendo, a
determinação “può pertanto essere in concreto soddisfata mediante il rinvio alle stesse vicende attraverso
le quali l’operazione economica si svolge ed attua, tenendo altresì conto degli elementi di cui si compone,
743
Seja como for e apesar de o crédito garantido não ser o objecto do penhor, mas
unicamente o seu pressuposto, não é menos verdade ser forçosa a identificação, no
momento da constituição da garantia, pelo menos dos contornos essenciais da relação
ou relações jurídicas de onde poderão brotar aqueles créditos.2659
della realtà sulla quale è destinata ad incidere e delle finalità pratiche che proprone realizzare”, ou seja,
“nell’unità dell’operazione, e quindi nella loro dimensione strumentale rispetto all’assetto di interessi
che l’operazione vuole realizzare”. Relativamente à determinabilidade, a determinação apresenta implica
uma maior completude, de modo que o objecto se encontra determinado quando, no contrato, as partes
tenham fornecido uma descrição suficiente que permita a sua identificação (enquanto na simples
determinabilidade, embora falte tal descrição, as partes indiquem os instrumentos e as fontes para
alcançar tal identificação).
2658
Encontramos esta distinção em Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 158 e segs. (já Piscitello, Le
garanzie cit., pág. 93, nota 127, define a determinabilidade per relationem como aquela em que “l’oggetto
del contratto viene determinato facendo riferimento ad atti che di per sé realizzano una funzione
diversa”). Estaremos perante uma determinabilidade em sentido amplo o objecto não se encontra
determinado no contrato, mas são indicados ou identificáveis os critérios para fixação das modalidades
e/ou quantidades das prestações (exigindo-se apenas uma operação de cálculo e especificação no
momento da execução do contrato). Pelo contrário, fala-se de determinabilidade em sentido estrito
quando, no contrato, estejam previstos os critérios para alcançar a determinação (sendo que o resultado da
utilização destes critérios não modifica o conteúdo do contrato). É sobretudo a respeito da
determinabilidade em sentido estrito que se suscitam dúvidas acerca da sua compatibilidade com a
exigência de determinação do objecto do contrato, embora o Autor assuma uma posição de grande
flexibilidade, socorrendo-se – a propósito das cláusula omnibus - do conceito de operação económica,
escrevendo que esta “postula una maggiore elasticità nella definizione degli elementi di cui si compone,
proprio perché alcuni di essi – e fra questi l’oggetto in particolare – non necessitano di essere
inizialmente determinati pienamenti nei punti essenziali”. Finalmente, na determinabilidade per
relationem, o objecto do contrato é determinado por remissão para outros actos (das partes ou de
terceiros) que, por si só, não tenham uma função de identificação do contrato, apesar de ressalvar que, do
ponto de vista cronológico, tal relatio deverá ser contemporânea ao contrato (nesta conformidade, apenas
admite, relativamente ás cláusulas omnibus, que este método de determinabilidade possa funcionar para a
identificação dos bens já detidos, no momento da constituição da garantia, por parte do credor, mas não
para aqueles que, sucessivamente, venham a estar). Usa igualmente esta terminologia Piscitello, Le
garanzie cit., pág. 93 e segs., comungando das noções de determinabilidade em sentido amplo e em
sentido estrito, afirma que “l’oggetto è da ritenersi determinato anche quando al momento della
perfezione del negozio non è compiutamente descrito, ma sono indicate esclusivamente le tecnhiche per
la determinazione dello stesso, sicché l’individuazione si risolve in un’operazione di applicazione di
criteri già previsti dalle parti. In pariticolare, nei casi in cui la determinazione dell’oggetto non richiede
un’attività discrezionale ci si limita a specificare precetti già contenuti nell’accordo tra le parti senza
realizzare una forma di integrazione successiva dell’atto” (embora salientando que os indícies de
determinabilidade variam em função de cada uma das fattispecie).
2659
Realça este aspecto, Francesco Magni, ob. cit., págs. 369 e 370, expondo que “il credito è
sufficientemente indicato se risultano (dalla costituzione del pegno) i soggetti del rapporto e il rapporto,
non essendo, invece, necessario individuare la prestazione (ad es. L’ammontare del credito) né
sufficiente la mera indicazione dei soggetti”, concluindo pela nulidade (ou, pelo menos, pela
inoponibilidade) das cláusulas omnibus “perché i crediti vengono indicati univamente attraverso un
generico riferimento ai soggetti e a qualsiasi credito che li riguardi, senza alcun cenno ai rapporti dai
quali scaturiscono”. O Autor repudia entendimentos mais permissivos (que afirmam a validade das
cláusulas omnibus – pelo menos no que respeita aos créditos já surgidos no momento da constituição da
garantia e genericamente mencionados nesse momento – baseando-se, por um lado, no facto de a
suficiente indicação poder resultar de outros documentos estranhos ao contrato de penhor que possuam
data anterior à constituição da garantia e, por outro, na inexistência de um sistema de publicidade legal no
penhor, da qual resulta que os terceiros credores, mesmo quando o acto constitutivo do penhor contenha a
suficiente indicação do crédito garantido, não terão acesso a tal informação, sendo a tutela daqueles
credores assegurada, essencialmente, através do desapossamento), contrapondo que tal entendimento
choca com o carácter acessório da garantia e consequente necessidade de uma ligação funcional e
estrutural entre crédito e garantia. Menos rígido mostra-se Andrea Magazzù, L’acessorietà cit., pág. 453 e
segs., alegando ser legítima a dúvida quanto ao carácter essencial do crédito assegurado no instituto do
penhor, especialmente tendo em conta a autonomia estrutural deste em relação àquele, para além de
744
A observância da necessidade de determinação dos créditos garantidos pelo
penhor é imposta, entre nós, pelo princípio geral contido no art.º 280.º, n.º 1, parte final
(ao declarar como nulos os negócios cujo objecto seja indeterminável), limitando-se o
n.º 3 do art.º 666.º a consentir, a respeito do penhor, que esta garantia possa garantir
obrigações futuras ou condicionais.2660
Perante este quadro normativo, cumpre avaliar se a determinação imposta por lei
para a generalidade dos negócios jurídicos vigorará também para as obrigações
asseguradas por penhor ou, ao invés, existirão critérios específicos para estas
últimas.2661
Em alguns ordenamentos, como o italiano, em que as normas privativas do
penhor se afastam, ao menos aparentemente, dos ditames gerais (cfr. art.º 1346.º do
CCI) em matéria de determinação do objecto dos negócios jurídicos (cfr. art.º 2787.º, n.º
3,2662 do CCI), parece justificar-se a segunda alternativa proposta, requerendo a lei uma
identificação qualificada para as obrigações garantidas por penhor.2663
“l’amissibilità della efficace costituzione di garanzia per un credito eventuale, esclude l’utilità dello
schema del negozio antecipato em conseguentemente, induce a ritenere che il credito garantito non è
elemento essenziale della fattispecie del pegno”, concluindo apenas fazer sentido falar de uma relação
funcional ou teleológica entre o negócio constitutivo do penhor e o crédito garantido, recorrendo para o
efeito à causa do negócio jurídico de penhor – entendida como o desejo do credor na obtenção de um
reforço da probabilidade de cobrança do seu crédito – de modo a que “la causa del negozio di garanzia
implica che il programma di interessi, che si ripercuote sulle situazioni effetuali tipiche, si pone in
funzione del programma di interessi disposto col negozio (che si dice) principale”, pelo que “i termini dle
c.d. rapporto di accesorio sono immanenti alla causa del negozio di garanzia”.
2660
Com efeito, este preceito não estabelece regras que se afastem do princípio geral – contido no art.º
280.º - relativo à determinação das obrigações e dos negócios jurídicos em geral, pelo que estas
permanecem perfeitamente invocáveis nesta sede.
2661
No primeiro sentido, aparentemente, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 291,
salientando que, no caso de obrigações presentes, ainda que não indicadas, existe um critério para as
determinar. Pelo contrário, quando se trate de obrigações futuras, “terá que se estabelecer um critério que
permita saber quais as obrigações garantidas e quais não o são, sob pena de nulidade (art.º 280.º)” ou,
noutros termos, um critério “que permita(m) ao autor do penhor omnibus estimar, nesse momento, os
créditos que o bem dado em penhor poderá assegurar, ou então que possa controlar a constituição das
obrigações garantidas por esse penhor”, apontando como critérios exemplificativos a existência de
limites temporais, quantitativos (estabelecimento de um tecto máximo), indicação da fonte das obrigações
garantidas, eventualmente combinando vários destes elementos.
2662
Apesar de a norma em questão apenas se referir aos casos em que o crédito garantido supere €2,58 –
e, portanto, parecer que aquelas obrigações de identificação não se aplicarão quando o montante for
inferior - Salinas Adelantado, Il pegno cit., pág. 607, sustenta que os créditos de valor inferior ao
mencionado na lei não estão dispensados da respectiva identificação, mas apenas da “necessità di provare
com scrittura la data della costituzione del pegno”, sob pena de, dispensando a identificação dos
elementos aludidos, se eliminar o princípio da especialidade, que retém comum a todas as modalidades de
penhor.
2663
Com efeito, o art.º 2787.º, n.º 3, do CCI, estabelece, como condição sine qua non para o exercício do
direito de preferência por parte do credor pignoratício, a obrigação de identificação escrita do crédito
assegurado e do objecto da garantia. Já o art.º 1346.º, na esteira do nosso art.º 280.º, impõe o carácter
determinado ou determinável do objecto dos negócios jurídicos em geral. Perante este quadro normativo
(e atenta a já aludida ausência, ao invés do nosso art.º 666.º, n.º 3, de norma específica relativa à
admissibilidade de um penhor em garantia de créditos futuros ou convencionais), três são as questões
levantadas pelas chamadas cláusulas omnibus: desde logo a própria admissibilidade de penhor em
garantia de créditos futuros, os requisitos para aferir da determinação do crédito assegurado (os gerais do
art.º1346.º ou os específicos do n.º 3 do art.º 2787.º) e, caso se opte pela aplicação deste último preceito,
se tais cláusulas cumprem o requisito por ele exigido da necessidade de um documento com data certa
indicando o crédito garantido – colocando o problema nestes termos, Gorla e Zanelli, ob. cit.,, págs. 4 e 5,
considerando que a chave para a resolução destas interrogações deve buscar-se na tutela dos demais
credores, nomeadamente considerando o perigo que advém da possibilidade de este tipo de cláusulas lhes
ser oposto. Para Gabrielli, Il pegno cit., págs. 133 a 138, a relação entre os art.ºs 1346.º e 2787.º, n.º 3,
745
Nestes ordenamentos e uma vez que a redacção do documento escrito contendo
suficiente indicação do crédito garantido (e do bem empenhado) constitui requisito
insubstituível para o nascimento do direito de preferência, há que equacionar se o não
preenchimento daquela exigência legal não condiciona o próprio nascimento do direito
real de penhor, porquanto será questionável a viabilidade da constituição de um direito
real de garantia desprovido de prelação.2664
746
Na ordem jurídica nacional e não se encontrando o contrato de penhor, salvo
casos excepcionais, sujeito a forma escrita (nem sendo, a fortiori, imposta
especificamente para este negócio a menção, entre outras, do crédito garantido no
documento de constituição da garantia), parece que o critério a adoptar não poderá
deixar de ser o previsto, em termos genéricos, no art.º 280.º.
Porém, esta não exigência de redução a escrito do contrato de penhor poderá
comprometer a necessidade de identificação do crédito assegurado pela garantia – assim
como do objecto onerado –, porquanto a liberdade de forma consente uma ausência de
demonstração do cumprimento daquela imposição legal.
Este é, aliás, um argumento adicional que depõe a favor da posição, por nós
sustentada,2665 pugnando pela sujeição a forma escrita do contrato de penhor.
Com efeito, se assim não for, a questão da determinação do crédito garantido – e
do objecto da garantia – não obterá uma resposta satisfatória (mesmo quando,
adoptando uma perspectiva mais tolerante, se admita, para preenchimento do conceito
legal de determinação, o recurso a elementos alheios ao negócio de constituição da
garantia: com efeito e como vimos, mesmo esta não pode abdicar de uma mínima
indicação contratual), constituindo a ausência de suporte escrito uma porta aberta para o
defraudar da exigência de determinação do objecto dos negócios jurídicos (art.º 280.º,
n.º 1, última parte).2666
As conclusões poderão ser, no entanto, diversas considerando a natureza
acessória da garantia face à obrigação cujo cumprimento visa assegurar, uma vez que,
em regra, a concessão daquela constará do mesmo negócio jurídico de criação desta:
ora, se tal vínculo se encontrar sujeito a forma escrita (é o que sucede, por exemplo,
com o mútuo civil,2667 quando a quantia a mutuar for superior a €2500 – cfr. art.º
1143.º), o mesmo sucederá com a cláusula respeitante à garantia, destarte obviando aos
inconvenientes, do ponto de vista da determinação do objecto, da não redução a escrito.
Os problemas de determinação do objecto do contrato de penhor colocam-se,
com especial ênfase, a respeito do crédito garantido, sobretudo a propósito de cláusulas
(chamadas omnibus) principalmente utilizadas na praxis bancária, que se socorrem da
mesma garantia para assegurar a generalidade das relações entre o cliente e a banca,
proporcionando uma adequação automática da garantia à contínua variação do valor do
débito do primeiro daqueles sujeitos.2668
chirografari”, conferindo ao credor um “quid pluris rispetto alla garanzia genérica patrimoniale, tale da
giustificare la qualificazione in termini molto vicini ad un diritto di garanzia in senso tecnico”).
2665
Vide supra n.º 2.4.2.2 do Capítulo I.
2666
A este respeito, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 119 e 120, a sugeria, concordando com as
soluções do direito italiano, que, para especificação do crédito, “basta a indicação do seu montante não
sendo precisa a da data, natureza ou causa vencimento dele” e, quanto aos créditos ilíquidos, “conviria
designar o montante máximo a que a garantia respeita, para segurança de terceiros” (não bastando,
neste caso, a simples indicação do montante garantido, “pois esta não é bastante para terceiros poderem
identificar o crédito e fazerem ideia da sua eficácia”).
2667
Pelo contrário, se o mútuo for comercial (entendendo-se como tal aquele em que o objecto mutuado
se destine a qualquer acto de comércio – art.º 394.º do Código Comercial) e celebrado entre dois
comerciantes, a respectiva prova pode fazer-se, independentemente do respectivo valor, por qualquer
meio (art.º 396.º do Código Comercial).
2668
Este modus operandi justifica-se pela dinâmica própria das relações entre cliente e banca e,
sobretudo, do próprio funcionamento da empresa. Com efeito, se a cada nova concessão de crédito (ou a
cada agravamento da situação debitória do cliente) fosse necessária a formalização de uma nova garantia,
perder-se-ia a rapidez exigida por este tipo de negócios – cfr. Gabrielli, Il pegno cit., pág. 138. Por isso,
Salinas Adelantado, Il pegno cit., pág. 603, entende ser necessário superar a “visione tradizionale del
codice civile che regola il pegno come una forma di garanzia per un traffico giuridico relativo ad
operazioni di credito isolate” adoptando antes “una ottica nuova, che tiene conto dell’esistenza di
747
Embora a necessidade de determinação do crédito tutelado pelo penhor se faça
sentir também para os créditos já existentes no momento da constituição da garantia, é
especialmente no que se refere aos créditos futuros que o problema se coloca.2669
É o que sucede quando as partes ampliam o âmbito de aplicação da garantia para
além da relação obrigacional originária em vista da qual o penhor tenha sido constituído
(e que usualmente é determinada na data da constituição da garantia), de modo a
abranger outras eventuais relações creditícias entre as mesmas partes existentes nessa
data; ou, de modo diverso, estabeleçam simplesmente que o penhor assegura todos os
créditos presentes e futuros de que a banca seja ou venha a ser titular relativamente a um
determinado cliente: no primeiro caso, estaremos perante cláusulas de extensão,2670 no
segundo deparamo-nos com cláusulas omnibus ou geral.2671 2672
748
Caso paradigmático é o do penhor concedido aos bancos em garantia de
aberturas de crédito2673 em conta corrente efectuadas aos respectivos clientes2674 ou do
cliente-banca” e diferenciando-as daquelas que estendem o objecto da garantia a novos bens que venham
a entrar na posse do credor).
2673
Para uma noção desta figura, vide supra n.º 3.2 do Capítulo I.
2674
O CCI contém uma norma expressa (cfr. art.º 1844.º) admitindo a constituição de penhor em garantia
de uma abertura de crédito, estabelecendo que aquele não se extingue antes do termo da relação entre
banca e cliente, nem mesmo pelo facto de este deixar de ser devedor daquela. Esta disposição constitui,
como refere Barbara Cusato, ob. cit., pág. 46, um argumento utilizado para sustentar a admissibilidade, no
ordenamento italiano, de penhores em garantia de créditos futuros, na condição de subsistir a relação
principal. Já para Andrea Maggazù, ob. cit., pág. 457 e segs., a abertura de crédito (e também a
antecipação bancária) pode funcionar como a relação já existente – para os efeitos do art.º 2852.º do CCI
– e como primeiro elemento de uma fattispecie em formação, da qual poderão brotar novas relações
contratuais entre as partes. Todavia, reconhece que nenhum crédito, nem sequer com objecto
indeterminado, surge para o acreditante em virtude da abertura de crédito – surgindo o crédito de
restituição a partir do momento em que sejam efectuadas efectivas subvenções – pelo que o fundamento
jurídico do penhor em garantia de créditos eventuais residirá no depauperamento sofrido pelo património
da banca, uma vez que “l’accreditato ha, rispetto a una somma, che rimane proprietà della banca, la
disponibilità, mentre la banca si trova in una situazione di indisponibilità (soggezione)”, assim se
consagrando um desvio às regras tradicionais, permitindo que o titular do penhor não seja o titular do
crédito e surgindo a indissolubilidade da relação entre penhor e abertura de crédito como uma forma de
assegurar “una situazione di svantaggio in cui si trova” a banca: assim, conclui que “l’apertura di credito
è strutturalmente idonea a consentire la realizzazione della esigenza di determinatezza, in quanto è
determinato l’ammontare dell’accreditamento nei limiti del quale può sorgere un eventuale credito”, pelo
que “il pegno stipulato a garanzia di determinate antecipazioni è efficace anche in relazione a tutti gli
altri eventuali crediti dell’accreditante verso l’accreditato”. Contra, vide a decisão do Tribunal de Apelo
de Milão de 11/12/1987, in Giurisprudenza Italiana, com nota de Marino Perassi, In tema di pegno
omnibus, in Giurisprudenza Italiana, 1988, Tomo I, pág. 487 e segs., salientando que “l’inserimento della
operazione garantita direttamente dal pegno, vale a dire l’apertura del credito, nella regolamentazione
in conto corrente dei rapporti fra l’istituto e la società, può valere ad estendere al dal conto la
prelazione; il saldo medesimo puo infatti risultare dai titoli piú disparati, anche estranei a quelli
garantiti”, recusando que a mera referência à conta corrente seja idónea à identificação do crédito
garantido, uma vez que “vengano regolamentati tramite il conto corrente di correspondenza tutti i
rapporti fra banca e correntista, non da ultimo quello di apertura di credito, a garanzia del quale si
costituiscono frequentemente in pegno determinati beni o titoli (…) fa solo di contenitore di tutti i
rapporti intercorrenti fra le due soggetti; perció il richiamo finisce per rifarsi solo al creditore ed al
debitore, unici elementi sicuri, senza che il contenuto del loro vincolo possegga i requisiti di
determinatezza che sono necessari affinché si possa costruire un pegno a garanzia di un debito futuro o
condizionale. L’oggetto del rapporto obbligatorio viene ad essere meramente determinabile dalla volontà
dei soggetti nel corso della durata del contratto di conto corrente” (reforçando o Autor citado que, fora
do âmbito de aplicação desta norma do art.º 1844.º do CCI, “non sembra si possa ammettere la
costituzione di un pegno a garanzia di rapporti che non siano individuabili con (…) le parti ed il
rapporto, tenendo anche conto che il pegno rappresenta un diritto reale, regolato da norme inderrogabili
e sottoposto ad un principio di tipicità, sia per le forme di costituzione, che per il contenuto del diritto
medesimo”). De acordo com Piscitello, Le garanzie cit., págs. 14 e 15, nota 25, não pode considerar-se
existir uma suficiente indicação do crédito garantido quando exista apenas “il rinvio al saldo del rapporo
di conto corrente bancario. Il conto corrente bancario è un rapporto al quale si affiancano operazioni di
diverso tipo e non consente di per sé alcuna determinazione dell’importo del credito (…) È quindi
necessario che vi sia un’espressa individuazione del rapporto da cui può sorgere il credito con diritto di
prelazione” (concluindo, por isso, que nem todas as hipóteses de identificação do crédito garantido se
podem reputar legítimas). Já para Giovanni Stella, ob. cit., pág. 192 e segs., não bastará a simples
referência à conta corrente bancária ou ao respectivo saldo (mesmo que esta seja expressamente
identificada através do seu número e ainda que seja pré-fixado um montante máximo pelo qual o bem
empenhado responderá), uma vez que no contrato de conta corrente bancário “confluirebbe una serie del
tutto eterogenea di rapporti attivi e passivi, soffetti per di più al principio della compensabilità, i quali al
momento della costituzione del pegno non possono dirsi né suficientemente individuati, né talvolta
determibili”, excepto se “le parti costituiscano il pegno – con scrittura di data certa – a garanzia del
saldo passivo di una specifica apertura di credito in conto corrente (e di questo siano indicati gli estremi
nella scrittura di pegno o in altro documento chiaramente riferibile alla garanzia)”, muito embora
749
respectivo saldo2675 ou, em geral, de empréstimos garantidos por penhor: uma das
modalidades mais usuais é concessão destes empréstimos bancários garantidos por
penhor de títulos ou mercadorias, contrato este designado por antecipação bancária
(negócio este que, entre nós,2676 se encontra regulado no Decreto-Lei n.º 365/99, de 17
reconheça que alguma jurisprudência legitima outras fattispecie (nomeadamente quando, mesmo sem
uma referência expressa à abertura de crédito, o documento de constituição de penhor indique como
crédito garantido o que vier a ser utilizado – relativamente a uma determinada conta - até um determinado
montante ou, por outro lado, a concessão de uma linha de crédito relacionada com uma específica conta
corrente e, ainda, o montante utilizável através de levantamentos a descoberto, até um determinado
montante, sobre uma determinada conta corrente. Mais problemática se afigura a hipótese de, no acto
constitutivo da garantia, as partes fazerem referência apenas ao saldo passivo da conta bancária, da qual
sejam especificados os dados e se demonstre, a posteriori, que afinal apenas “sia intercorsa di fatto tra le
parti solo una determinata apertura di credito o un’altra determinata operazione inerente a quel conto
corrente specificamente indicato (e sempre che venga indicato preventivamente il “tetto” massimo
dell’affidamento)”).
2675
A respeito do penhor em garantia do saldo de uma conta corrente bancária, Alessandro Rizzieri, ob.
cit., pág. 203 e segs., distingue três hipóteses: a de a garantia ser criada para assegurar um descoberto
bancário já existente no momento da constituição da garantia (que o Autor considera lícita, sendo
irrelevantes quais as operações, reguladas na conta corrente, que tenham determinado aquele saldo
passivo, bastando a referência a este último, dado que “è possibile determinare con precisione tutti i
rapporti di debito indirettamente contemplati dalle parti (rapporti già esistenti, e non futuri) e così
evitare il pericolo dell’impiego della garanzia a tutela di crediti diversi da quelli per cui fu pattuita”); a
de o penhor ser constituído para garantir o pagamento de uma dívida que surgirá de uma operação
determinada e destinada a ser regulada em conta corrente, ou seja, casos em que a relação jurídica surja
contextualmente com a criação da garantia, mas o crédito é futuro e eventual, como sucederá com a
abertura de crédito e o desconto bancário (também aceite, porquanto “il pegno può essere costituito a
garanzia di un credito futuro della banca, ogniqualvolta il rapporto giuridico da cui esso potrà sorgere
sia esattamente individuato”, não sendo necessário “che il rapporto giuridico sia già in essere: dovrebbe
reputarsi sufficiente che sia esattamente determinato nei suoi elementi essenziali”); e, finalmente, a de a
garantia responder pelo futuro saldo passivo, assim compreendendo as dívidas que resultarão de todas as
operações reguladas na conta corrente que o cliente vier a efectuar com o credor (cuja licitude o Autor
recusa, porquanto não permite a determinação das relações jurídicas das quais poderão brotar os débitos
garantidos, verificando-se apenas uma enumeração genérica daquelas relações). Entre nós, o Acórdão da
Relação do Porto de 18/11/1996, in www.dgsi.pt, considerou lícita o penhor em garantia de uma abertura
de crédito, constituído para assegurar o cumprimento de todas e quaisquer responsabilidades existentes ou
a existir para com um determinado Banco, até a um limite de capital fixado e dentro de um horizonte
temporal de 5 anos, por entender que “o seu objecto é perfeitamente determinado, tanto quanto ao seu
montante, como quanto ao período de vigência”.
2676
Este último negócio é, em Itália, um negócio regulado na própria lei civil (cfr. art.ºs 1846.º a 1851.º
do CCI). De entre estes, merece especial referência os art.ºs 1849.º e 1850.º que consagram uma
equiparação entre a soma emprestada e o valor do objecto da garantia (especialmente o primeiro, que
consagra o direito do mutuário retirar a parte dos bens empenhados, desde que reembolse
proporcionalmente o valor que lhe havia sido entregue, acrescido das despesas de custódia). Ora bem, as
cláusulas de extensão, apesar de não excluírem este direito, sujeitam-no à extinção dos débitos contraídos
pelo referido sujeito perante a banca, mesmo que resultantes de relações jurídicas diversas da antecipação
bancária: não surpreende, por isso, a existência de posições advogando a invalidade de tais cláusulas, uma
vez que “produce un’alterazione del rapporto tra garanzia somma anticipata, là dove estende la
garanzia a somme diverse ed ulteriori rispetto a quelle propriamente “anticipate” al cliente. Risulta
quindi evidente la sua estraneità allo schema dettato dal legislatore per l’anticipazione bancaria” –
Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 129 (o mesmo Autor acrescenta que tal conclusão se impõe mesmo para
quem defenda que a disciplina legal é derrogável por vontade das partes, tendo em conta
“l’incompatibilità di una siffatta deroga con lo schema legale, in quanto verrebbe ad essere alterato
l’elemento della proporzionalità tra somma “anticipata” e garanzia, tipico dell’operazione”). Como bem
salienta Giovanni Stella, ob. cit., pág. 212 e segs., o problema coloca-se, designadamente, quando o
penhor, constituído simultaneamente com uma antecipação bancária, pretenda garantir também qualquer
outro crédito futuro do credor para com o devedor. Na óptica deste último Autor e passando um pouco
por cima das diversas teorias acerca da natureza jurídica da antecipação bancária (pelo menos quatro,
uma, maioritária, considerando tratar-se de um mútuo pignoratício; outra, afirmando estarmos perante
750
de Dezembro – reservando a sua celebração, por parte do credor pignoratício, a
determinados requisitos subjectivos - por remissão do art.º 402.º do Código
Comercial).2677
Nestes casos, em especial na abertura de conta corrente, o penhor surge antes do
levantamento ou disponibilização de qualquer importância por parte do cliente do banco
e, por outro lado, permanece mesmo quando todos os levantamentos tenham sido
efectuados e liquidados, desde que a relação entre as partes persista e possa fazer nascer
um novo débito.2678
A isto acresce que, tratando-se de contratos duradouros ou de execução
continuada, alguns admitem a faculdade de desvinculação do prestador da garantia, nos
termos gerais em que qualquer das partes pode resolver aquela modalidade contratual,
com especial ênfase nas garantias prestadas para assegurar aberturas de crédito em conta
corrente.2679
uma espécie de abertura de crédito; uma terceira, intermédia, falando de um tertium genus entre o mútuo
e a abertura de crédito; e uma última autonomizando este contrato de todos os outros), a resolução da
questão pressupõe a distinção entre a antecipação bancária simples ou com data de vencimento fixo (em
que existe uma entrega efectiva de uma soma pecuniária com obrigação de restituição na data de
vencimento da obrigação ou, anteriormente, em termos análogos ao mútuo) e em conta corrente (em
termos idênticos à abertura de crédito, em que é colocada à disposição do devedor uma soma - com a
faculdade deste a utilizar quando queira, de uma vez ou em diversas ocasiões – devendo restituir o
efectivamente usado no final do contrato: ora, esta figura apresenta inegáveis similitudes com a abertura
de crédito simples): neste último caso, a constituição do penhor em simultâneo com a criação da
disponibilidade de levantamento do crédito por parte do credor faz com que a garantia seja constituída
directamente para assegurar um crédito meramente eventual (e, por isso, indeterminável); no primeiro
caso, apenas faz sentido falar de cláusulas de extensão, mas estas enfrentam obstáculos decorrentes do
regime legal da antecipação bancária (em particular ao eliminar, em favor do financiado, a relação de
proporcionalidade entre o valor do crédito inicialmente concedido e dos bens onerados e, por outro lado,
ao comprometer a faculdade de desvinculação atribuída ao financiado, que lhe permite reaver uma parte
dos bens empenhados, contra o pagamento de uma parte proporcional do débito).
2677
Neste sentido, Engrácia Antunes, ob. cit., págs. 508 e 509.
2678
Cfr. Rubino, Il pegno cit., pág. 189. Joaquim Bastos, ob. cit., pág. 18, concorda que o penhor nasce a
partir da data da entrega da coisa ao credor, mas os seus efeitos apenas se produzem quando o cliente
utilize efectivamente o crédito, retroagindo ao momento da constituição do penhor.
2679
A respeito da fiança omnibus, Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 772 e segs., depois de constatar
ser aquele um contrato duradouro, assinala que “seria intolerável que o fiador tivesse de ficar necessária
e perpetuamente vinculado, impedido de paralisar ex tunc o fluxo de vinculações oriundo da relação
principal entre o credor e o devedor”, em conformidade, aliás, com o reconhecimento, nos contratos
duradouros por tempo indeterminado, da liberdade de denúncia, ainda que esta não haja sido
expressamente prevista pelas partes (e até mesmo que o contrato a interdite). O Autor distingue, porém,
consoante tenha sido estipulado um montante máximo de responsabilidade razoável e, simultaneamente,
um prazo limite de vinculação do fiador igualmente razoável (caso em que a faculdade de denúncia se
afigura ininvocável, “uma vez que as partes balizaram inteiramente o risco fidejussório: o fiador sabe, ex
ante, até quando e até quanto poderá ter cumprir”) ou quando seja estabelecido um limite temporal sem
fixação de um limite máximo de responsabilidade (caso em que a própria fiança poderá ser inválida, mas,
sendo válida, a denúncia não será possível, porquanto não existe o risco de perpetuação do vínculo
fidejussório: resta ao fiador a possibilidade de rescisão com justa causa) e, pelo contrário, as hipóteses de
não estipulação de um prazo de vinculação ou da indicação de um manifestamente desproporcionado,
especialmente quando associados à imposição de um tecto de responsabilidade abusivo (casos em que a
invocação da denúncia encontra o seu campo de eleição). Ocorrendo a denúncia, a determinação do
montante da dívida garantida deverá corresponder “ao saldo existente à data da eficácia da denúncia, não
lhe sendo oponível a ulterior prossecução da relação principal”, embora a responsabilidade do garante
possa ser aligeirada caso o saldo final da responsabilidade do devedor se venha a demonstrar ser inferior
ao existente no momento da denúncia. Temos dúvidas em transpor este entendimento para o penhor,
sobretudo quando o devedor for o empenhante, uma vez que o constituinte da garantia tem (ou deverá ter)
é, simultaneamente parte na relação jurídica assegurada e, por outro lado, porque não havendo
determinação suficiente (nos termos que a lei exige), a cláusula será nula e não produzirá qualquer efeito
(não sendo, por isso, recorrer à figura da denúncia para fazer cessar os seus efeitos).
751
Decorre do exposto que, neste tipo de cláusulas, de extensão e omnibus, se
entrecruzam questões diversas, quais sejam a licitude de constituição de penhor em
garantia de créditos futuros e/ou condicionais, a determinabilidade do crédito cujo
cumprimento se pretende assegurar (embora este último pressuposto se deva verificar
mesmo relativamente a créditos já surgidos no momento da constituição da garantia)2680
e, por último, a acessoriedade do penhor.2681
Em Itália, País onde a questão da determinação da obrigação assegurada com o
penhor se tem suscitado amiúde, as posições da doutrina e jurisprudência não têm sido
uniformes, oscilando o panorama entre o reconhecimento da validade de cláusulas
análogas às acabadas de descrever, enquanto outras impõem requisitos mais apertados,
nomeadamente exigindo que os créditos a garantir sejam condicionais ou a termo ou,
em alternativa, possam nascer de uma relação jurídica pré-existente.2682
A jurisprudência parece orientar-se, prevalentemente, no sentido de considerar
as cláusulas omnibus como válidas no âmbito das relações internas entre devedor e
credor, mas negando a sua eficácia face a terceiros em razão da ausência de suficiente
indicação do crédito garantido postulada pelo n.º 3 do art.º 2787.º do CCI,2683 exigência
2680
Salienta este aspecto Rubino, Determinatezza e determinabilità del credito garantito nella costituzione
di pegno, in BBTC, 1952, II, pág. 470 e segs..
2681
Assim, Marino Perassi, ob. cit., pág. 491 e segs., acentuando que admitir a possibilidade de
constituição num dado momento e da determinação do crédito garantido num momento posterior
significaria esvaziar de conteúdo o requisito da acessoriedade, na medida em que no momento do
surgimento da garantia não seria possível conhecer qual o crédito garantido - escrevendo que
“L’identificare i crediti garantiti dal pegno sulla semplice base dei soggetti fra cui gli stessi crediti
possano nascere senza altra ulteriore indicazione, comme avviene appunto nell’ipotesi di pegno omnibus,
viola il principio messo in luce ina apertura secondo il quale il pegno sorge a garanzia di un credito e
come accessorio di questo; se tale credito ancora non esiste al momento del venire in essere del pegno,
perlomeno deve già sussistere ed essere identificato il rapporto da cui il credito stesso nascerà o potrà
nascere. Senza neppure definire il rapporto da cui potrà scaturire l’obbligazione garantita non può
costituirsi un pegno, che altrimenti rischierebbe di non garantire nulla né al momento del suo venire in
essere, né in epoca succesiva; assumendo solo una certa potenzialità di garanzia futura, svincolata da
ogni concreto rapporto obbligatorio”, concluindo que “Non è certo possibile considerare determinato un
credito quando non si conosce neppure il rapporto obbligatorio da cui potrà scaturire” - e Enrico
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 6 (notando que os dois problemas colocados pelas cláusulas
omnibus são o de saber se a preferência pignoratícia pode abarcar outros créditos para além dos indicados
no documento constitutivo do penhor – à qual a resposta é, normalmente, negativa - e, prejudicialmente
em relação à primeira, se e em que termos será válida a constituição de penhor em garantia de créditos
futuros e indeterminados).
2682
Dá conta destas diversas posições Realmonte, Il pegno cit., pág. 635, acrescentando que a adopção do
entendimento mais restritivo visa equiparar, a este respeito, o penhor à hipoteca, aplicando àquele o já
citado art.º 2852.º e ainda que, de acordo com esta posição, não deverá ser admitida a constituição de
penhor em garantia de um saldo passivo resultante de todas as obrigações de crédito presentes e futuras
entre as partes, por considerar que a conta corrente bancária não deve ser considerada uma relação
jurídica (neste sentido, Giovanni Colombo, ob. cit., pág. 200, por entender que a conta corrente bancária
não é “un rapporto da cui possa sorgere un credito della banca dotato di un pur vago carattere di
determinabilità: è una sorta di calderone in cui vengono fatti confluire i risultati delle più svariate
operazioni”, pelo que, desse modo, se “rischia di ridurre la determinabilità alla semplice determinatezza
dei soggetti (…) lasciando del tutto generica la fonte del debito: fonte che non è il conto corrente, ma
l’antecipazione, l’apertura di credito, lo sconto dei effetti, la compera dei titoli, ecc.”, concluindo ser
“insufficiente il semplice riferimento al conto corrente ai fini della determinatezza del credito garantito, e
giudicherei necessaria invece l’indicazione del negozio di credito da cui il debito del cliente potrà
eventualmente sorgere”)..
2683
Embora, de acordo com Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 197, a mesma jurisprudência ressalve que
tal preceito “non richiede affatto che la fonte del rapporto obbligatorio sia già esistente, ma solo – ed è
cosa ben diversa – che sia determinata (o determinabile)”, pelo que a necessidade de sufiente indicação
do crédito requerida por tal norma “non è di per sè sufficiente per negare il diritto di prelazione con
riferimento ai crediti futuri, che possono nascere da rapporti che, sebbene non ancora esistenti, sono
752
esta motivada precisamente pela tutela de terceiros, mormente outros credores do
constituinte da garantia.2684
Também a doutrina2685 parece inclinar-se, predominantemente, para a invalidade
das cláusulas omnibus, alegando que a função de garantia se traduz no seio de uma
estrutura cujo objecto não se encontra inicialmente determinado e apenas determinável
comunque giá determinati con precisione ” (constatação esta confirmada pelo recente regime do penhor
financeiro, no qual se prevê que as obrigações garantidas podem ser obrigações futuras).
2684
Algumas decisões que adoptaram este entendimento foram as da Corte de Cassação de 19/6/1972 (in
Rivista di Diritto Civile, n.º 20 (1974), pág. 212 e segs.), do Tribunal de Catania de 19/5/1967 (in BBTC
1967, Tomo II, pág. 427, com nota favorável de Giancarlo Laurini, ob. cit., pág. 431 e segs., qualificando
como “invalida la clausula generica di estensione del pegno a tutti i crediti presenti e futuri vantati dal
Banco di Sicilia verso il medesimo creditore”, na medida em que “la validità della costituzione del pegno
per crediti futuri è subordinata, in ogni caso, oltre che alla loro determinabilità, anche alla dipendenza
degli stessi da un rapporto giuridico già esistente”), o Acórdão da Corte de Apelo de Turim de
12/4/1974, in BBTC 1975, Vol. II, pág. 224 e segs. (com o aplauso de Giuseppe Stolfi, In tema di pegno
per crediti indeterminati, in BBTC, 1975, II, pág. 228) e, sobretudo, Gabrielli, I negozi costitutivi cit.,
pág. 166 e também Pegno cit., pág. 688 e segs., (assegurando que tal orientação se baseia no facto de as
ditas cláusulas “sarebbe stiupulata in pregiudizio di una esigenza di ordine pubblico, comme quella
sancita in loro favore dall’art. 2787 c.c., diretta a tutelare gli altri creditori dal pericolo di collusioni tra
creditore pignoratizio e debitore”, na medida em que se deve excluir que “il credito pignoratizio possa
ritenersi sufficientemente indicato là dove manchi un qualsiasi riferimento al contenuto del rapporto
obbligatorio garantito e ci si limiti ad enunciare esclusivamente i soggetti del rapporto medesimo, con un
indeterminato rinvio ad ogni credito già in essere o che abbia in futuro a sorgere”, dando ainda conta de
inúmeras decisões judiciais neste sentido: o mesmo Autor - ob. cit., págs. 139 a 141 – reforça que a
postura da jurisprudência dominante radica na necessidade de o acto de constituição de penhor, para
cumprir os requisitos do art.º 2787.º, n.º 3, do CCI, conter uma indicação que consinta a identificação dos
dados exteriores a que se deverá recorrer para a completa determinação do crédito garantido, o que não
sucederá nas cláusulas omnibus dada a formulação genérica usada para identificação do crédito
garantido). Já Barbara Cusato, ob. cit., pág. 43, cita diversas decisões judiciais que perfilham ambos os
entendimentos, salientando, como exemplo da posição mais liberal a sentença do Tribunal de Roma de
31/7/1952, na qual se decidiu no sentido da “validità della costituzione fatta genericamente per tutti i
debiti del concedente verso quel creditore, o per un credito specificamente indicato ma com clausula
genericamente extensiva a tutti i crediti del medesimo creditore” e da posição contrária decisão do
Tribunal de Turim de 11/12/1987, a qual “esclude la validità del pegno a garanzia del saldo del conto
corrente, giaché in esso potrebbe essere inserito qualche credito derivante dai titoli piú svariati,
rappresentando unicamente il regolamento stabilito per il dare e l’avere tra banca e cliente”. O mesmo
panorama é traçado por Francesco Magni, ob. cit., pág. 374 e segs. (noticiando que a relutância em aceitar
as cláusulas omnibus é comum à jurisprudência de mérito e da Corte Suprema - pese embora algumas
decisões dissonantes - sustentando inclusivamente que a individualização do crédito garantido deve ser
contextual do surgimento garantia e constar do respectivo documento constitutivo, podendo os elementos
exteriores ao contrato servir unicamente para interpretar o respectivo conteúdo e não para o integrar) e
Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 199 e segs. (emora criticando alguns arestos que, além de invalidarem
as cláusulas ominbus, recusam a possibilidade de determinação per relationem do crédito garantido,
faculdade esta que o Autor entende não precludida por lei, na medida em que “l’art. 2787, 3º co., c.c. non
dice che il crdedito garantito, presente o futuro, non possa essere determinato facendo ricorso ad
elementi esterni al contratto costitutivo (…). Quando il rinvio è operato a dati certi e incontrovertibili
(…) non potrebbe dubitarsi che il credito, determinato per relationem, sia sufficientemente indicato fin
dal momento della costituzione del diritto di garanzia”: em suma, o que é incompatível com a aludida
norma “non è il modo indiretto di determinazione del credito consistente nel rinvio a elementi esterni,
bensì il riferimento a dati equivoci o modificabili da parte del creditore, che non consentano una sicura
individuazione del credito fin dal momento della costituzione della garanzia”).
2685
No direito espanhol, noticia a posição dominante da Direcção Geral dos Registos e Notariados
Espanhola no sentido da rejeição das cláusulas omnibus, Fernández del Pozo, ob. cit., pág. 120 (embora o
Autor conteste o que considera ser uma excessiva rigidez deste entendimento, apontando como exemplo a
seguir o direito catalão, no qual se consente expressamente a constituição de penhor em garantia de
qualquer obrigação futura, impondo apenas um tecto máximo de responsabilidade, para protecção de
terceiros).
753
através dos desenvolvimentos sucessivos da operação, muitas vezes dependentes da
discricionariedade do credor.2686
2686
Nesta conformidade, Gabrielli, Il peno anomalo cit., págs. 168 a 175 assegurando que a exigência de
determinação do objecto obriga a “rendere espliciti gli esiti di un procedimento logico di determinazione
– i cui termini di rilevanza sostanziale sono già compiutamente ricompresi nel regolamento – che va ben
al di là di un mero rinvio a indici di determinabilità esterni al regolamento”, como acontece no penhor
omnibus e, muito em particular Giovanni Stella, ob. cit., pág. 135 e segs.. Esta Autora, depois de
escalpelizar a ratio da necessidade de indicação suficiente do crédito garantido (“evitare che una generica
indicazione dell’ambito di operatività della prelazione possa essere utilizzata a posteriori per estendere
l’ambito dei crediti garantiti, cosi che vengano a fruire della causa di prelazione anche crediti non
previsti al momento della costituzione in pegno, ciò in contrasto con l’affidamento riposto dai creditori
chirografari sul patrimonio debitore”, evitando fraudes entre o credor pignoratício e o devedor, razão
pela qual, mesmo na ausência do documento contendo a suficiente indicação do crédito garantido, o
penhor pode ser oposto aos terceiros adquirentes da coisa e, em geral, aos proprietários da coisa diversos
do devedor) e do momento em que essa exigência se deva verificar (contestando que a protecção dos
demais credores do empenhante se conduza à necessidade de indicação do crédito garantido desde o
momento da constituição do penhor, contrapondo que tal exigência apenas terá que ser cumprida antes da
penhora ou apreensão judicial do bem por parte de outros credores – até essa data, a tutela destes é
assegurada através do desapossamento, enquanto indício de vínculos pré-existentes sobre o bem - uma
vez que este requisito formal constitui apenas condição de oponibilidade a terceiros credores da garantia),
considera que um crédito se considera, para os efeitos legais, suficientemente determinado quando do
documento escrito constem referências aos sujeitos, ao avolumar do crédito e à respectiva fonte. Ora,
perante um crédito futuro e colocando de parte a menção dos sujeitos, o Autor assegura que a indicação
da fonte do crédito se tem por satisfeita “identificato il negozio in base al quale il credito potrebbe
sorgere (e tale negozio deve, inoltre, essere già esistente”, enquanto para a enumeração do montante “in
linea di principio una volta specificamente il rapporto giuridico esistente da cui potrebbe sorgere il
credito, in relazione al pegno non risulta essenziale (…) la determinzione attuale ed immediata
dell’ammontare del credito (…) quale limite della prelazione. La indivizuazione del titolo costitutivo del
credito futuro rappresenta, normalmente, il criterio che consente la determinabilità dell’ammontare del
credito, sia pure successivamente” (embora distinguindo entre os casos – v.g. penhor em garantia de um
contrato-promessa de mútuo – em que a natureza do crédito consente a sua indicação específica no
momento da constituição do penhor, de outros em que tal não é possível – v.g. abertura de crédito: neste
último caso, constituem índices seguros de determinabilidade do montante do crédito garantido a
indicação de um tecto máximo pelo qual a garantia responde ou de um período de tempo dentro do qual
tal crédito deverá surgir). Por outro lado, o Autor adere à tese segundo a qual a determinação do crédito
garantido não terá forçosamente de constar do documento constitutivo do penhor, podendo antes resultar
de documentos posteriores, “nel senso che le indicazioni attinenti al rapporto giuridico da cui sorgerà il
credito potrebbero risultare, almeno in parte, da scrittura diversa da quella di pegno, purché sia
inequivoco il reciproco collegamento fre le due scritture. Quanto al concreto ammontare del credito
futuro esso (…) può, in questo caso, risultare a sua volta per relationem ed a posteriori, tramite
l’indicazione del rapporto giuridico-base”, recorrendo, para este último efeito, à figura da
determinabilidade per relationem, ou seja, consentindo o recurso a dados externos ao acto de constituição
do penhor). Todavia, mesmo em face desta maior abertura, o Autor conclui pela não conformidade do
penhor omnibus com os requisitos que condicionam a outorga do direito de preferência (pois
“consentirebbero di individuare solo i soggetti delle future obbligazioni, mentre rimanerebbe
assolutamente genérica, sotto il profilo oggettivo, l’individuazione del credito garantito”). Já Francesco
Magni, ob. cit., pág. 371 e segs., - depois de reconhecer a existência de entendimentos díspares, um
dominante apontando no sentido da invalidade de tais cláusulas e outro, mais liberal, admitindo a sua
validade (evidenciando que “il credito garantito è all’inizio indeterminato, ma successivamente
determinabile attraverso lo svolgimento concreto delle operazione economiche tra banca e cliente”, com
o argumento que neste tipo de cláusulas, apesar de os créditos garantidos não se encontrarem inicialmente
determinados, existe já uma identificação dos critérios para essa determinação, tendo em conta a operação
económica e o seu desenvolvimento), conclui pela validade do penhor “nella parte in cui viene garantito
il credito derivante da un’apertura di credito, essendo individuato il rapporto giuridico da cui scaturisce
il credito”, mas não aquele constituído em garantia do saldo passivo resultante da relação de conta
corrente existente entre cliente e banca (tendo em conta que através do “generico riferimento al conto
corrente non viene garantito uno o più negozi di credito bensì un contenitore (un calderone) dei risultati
di svariate operazioni bancarie aventi titolo in altri negozi negozi giuridici”, pelo que “il riferimento al
saldo passivo, senza alcuna specifica menzione dei contratti dai quali possa sorgere un credito della
754
Relativamente às cláusulas de extensão2687 - na senda do reconhecimento quase
unânime2688 da possibilidade de constituição de penhor para garantia de créditos futuros,
banca, è così assimilabile alla garanzia per tutti i crediti che dovessero sorgere tra le parti: non sono
determinati né determinabili i rapporti dai quali possono scaturire i crediti e, dunque, la prelazione”).
Por seu turno Marino Perassi, ob. cit., pág. 491 e segs., nega a admissibilidade das cláusulas omnibus,
especialmente quando a determinação do crédito garantido surja em momento posterior ao da constituição
do penhor, servindo a precisa indicação deste para “valutare se realmente il pegno abbia ragione di
esistere per la contemporanea o precedente sussistenza del credito; se cosi non fosse (…) la garanzia
reale finirebbe per essere fine a se stessa, priva della sua funzione accessoria e quindi non avrebbe
ragione di essere opposta ai creditori chirografari”, ligando-se este requisito com o da determinabilidade
do crédito garantido (e do objecto da garantia), pois para que a tutela dos demais credores nesta implícita
seja alcançada será forçoso que “l’atto contenente la determinazione stessa debba essere fornito di data
certa al fine della opponibilità di tezi, altrimenti verrebe frustratta la stessa finalità della norma in
esame. Appare allora logico, pensare ad un atto unitario, che provveda alla costituzione del pegno,
determinando altresí constestualmente il credito e l’oggetto del pegno stesso: ovvero a due atti distinti e
contestuali, sempre che ciascun atto sia accompagnato dal requisito della certezza della data” (e, se
assim é, não parece lógico “esigere una determinazione dell’ammontare del credito assitito da data certa,
con un valore non limitato ai rapporti fra le parti, quando poi una di queste può arbitrariamente variare
l’ammontare del credito stesso causando effeti che vanno al di là del mero aspetto obbligatorio sorto fra
le parti contraenti, coinvolgendo la sfera dei terzi, per via della prelazione e dell’efficacia reale”). No
parecer de Lelio Barbiera, Le garanzie atipiche e innominate nel sistema del codice del 1942, in BBTC,
n.º 55 (1992), pág. 729 e segs., o entendimento prevalecente – aplicando analogicamente o art.º 2852.º do
CCI - apenas admite que o penhor garanta créditos futuros e/ou condicionais se estes nascerem de uma
relação jurídica já existente, considerando nulas as cláusulas que não observem esta limitação (reconhece,
todavia, a existência de uma tendência mais recente no sentido de admitir que “il collegamento del credito
futuro (da garantire) con un rapporto già esistente viene inteso nel senso più lato, ritenendosi coperte dal
pegno tutte le operazioni di credito, di qualsiasi natura e anche future, incluse in un rapporto di conto
corrente bancario”, muito embora não deixe de salientar as objecções que contra este entendimento mais
maleável se levantam, assegurando que a conta corrente “non costituisce un rapporto unitario ma una
modalità di regolamento di molteplici rapporti”). Finalmente Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 123, rejeita
a validade das cláusulas contidas nas normas uniformes bancárias, excluindo que a determinação per
relationem se possa ecfectuar “stante il generico riferimento (qualunque) alle operazioni bancarie in essa
contenuto; né la circostanza che vi sia un’elencazione di queste ultime, tendenzialmente onnicomprensiva
di ogni possibile rapporto tra la banca ed il cliente, può ritenersi sufficiente all’uopo, in quanto la
genericità di una siffatta previsione riconduce, in definitiva, alla sola determinazione dei soggetti del
rapporto stesso”.
2687
Naturalmente, nas cláusulas de extensão o que está em causa é a validade do contrato de penhor na
parte em que alarga o seu âmbito de aplicação a outros créditos não suficientemente determinado ou
determinável, em nada afectando a licitude do penhor relativamente a um crédito originário que cumpra
aqueles requisitos: neste sentido, Rubino, Determinatezza cit., pág. 479, Giovanni Stella, ob. cit., pág. 175
e segs. (afirmando este último que “gli effetti del vizio possono rimanere circoscritti alla parte viziata del
contratto, posto che la clausula nulla non sarebbe concepita come essenziale dai contraenti: quindi,
l’inefficacia (…) non si estenderebbe automaticamente alla parte del contratto di pegno relativa al
credito sufficientemente determinato, Ciò in ossequio al principio della conservazione del negozio
giuridico che, nell’ipotesi di nullità parziale del medesimo, costituisce la regola (…). Inoltre, se il pegno
è stato costituito a garanzia di un credito determinato, con clausula di estensione, ma ex post risulta
dallo svolgimento del rapporto fra le parti che la sudetta clausola non ha in concreto operato – non
essendo sorti crediti diversi da quello espressamente garantito - si potrebbe essere indotti a ritenerla non
essenziale, valutandola come clausola di stile”) e Alessandro Rizzieri, ob. cit., pág. 209 e segs.
(assegurando que “l’inefficacia della clausula omnibus non esclude la prelazione con riferimento ai
crediti che siano stati comunque determinati”).
2688
Salinas Adelantado, Il pegno cit., pág. 609 e segs., coloca em dúvida este entendimento, sobretudo
“teunuto conto del principio di accessorietà, non sembra agevole ammettere che un pegno possa sorgere
quando ancora non esiste il credito garantito”, tanto mais que “a differenza di quanto avviene per altre
garanzie, non v’è nessuna norma che preveda espressamente questa possibilità”, mas constata ser esta a
posição unânime da doutrina, com base na aplicação analógica do art.º 2852.º do CCI, acabando, ele
próprio, por aderir a tal perspectiva, tendo em conta que, se a hipoteca pode garantir (dentro de certas
condições) créditos futuros, por maioria de razão o penhor, cujo estatuto legal é menos rígido do que o da
hipoteca, também o poderá fazer (concluindo que “quando si applichino analogicamente al pegno norme
755
ainda não surgidos no momento da constituição da garantia, desde que resultantes de
uma relação já existente2689 - a jurisprudência dominante2690 adopta uma postura de
maior abertura, admitindo a validade de tais cláusulas, declarando embora a sua
ineficácia face a terceiros no que concerne aos créditos diversos daquele
especificamente indicado no negócio de constituição do penhor, quando a relação do
qual nasçam não se encontre suficientemente identificada na data do surgimento da
garantia.2691
stabilite per l’ipoteca, non si deve dimenticare di fare gli adattamenti resi necessari dalle peculiarità del
primo, adattamenti che normalmente implicheranno una maggiore flessibilità della disciplina legale”).
2689
Dão conta deste facto, Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 123, Andrea Magazzù, L’acessorietà cit., pág.
450, Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 51, Rubino, Determinatezza cit., pág. 471 (negando, por não
observância do art.º 2852.º do CCI, a validade de um penhor constituído em garantia de abertura de conta
corrente, quando esta ocorra em momento posterior à constituição daquele), Giancarlo Laurini, ob. cit.,
pág. 431 (invocando, para além do art.º 2852.º do CCI, o facto de o penhor se desenrolar em duas fases
distintas “l’una (statica) sostanziale, l’altra (dinamica) processuale, l’ammettere la necessità del
collegamento (funzionale) accessorio nella fase esecutiva non puo implicare, almeno logicamente, che
tale necessità debba a qualunque costo ricorrere anche nella fase sostanziale”), Giovanni Colombo, ob.
cit., págs. 193 a 214 (salientando ser esta a posição quase unânime da jurisprudência), Francesco Magni,
ob. cit., págs. 368 e 369, Carla Carrassi, ob. cit., pág. 312 (invocando esta igualmente o art.º 1844.º do
CCI, que, em matéria de abertura de crédito, prevê a constituição de penhor em garantia de créditos ainda
não surgidos) e Marino Perassi, ob. cit., págs. 489 e 490 (precisando que tal validade se encontra
subordinada à determinação dos sujeitos e a relação de onde nascerão os débitos a garantir, pois, se tal
não suceder, a cláusula será nula), socorrendo-se, para o efeito, da aplicação analógica do art.º 2852.º do
CCI, previsto para a hipoteca. Todavia, o reconhecimento da possibilidade de o penhor assegurar este tipo
de créditos não nos desobriga da averiguação dos requisitos necessários para que tais créditos possam
considerar-se determinados (como salienta o último dos Autores mencionados, “L’attualità della fonte
dell’obbligazione garantita è dunque il pressuposto della validità della garanzia per un credito futuro
(…) mentre l’art. 2852 c.c. si limita ad individuar ele condizioni (necessarie ma non sufficienti) di
validità del pegno a garanzia di crediti futuri, l’art. 2787 c.c. impone in ogni caso (per i crediti attuali e
per quelli futuri) l’individuazione del credito garantito”). Para este efeito, será necessário normalmente
(nos termos do art.º 2787.º, n.º 3, do CCI) determinar o montante do crédito, a sua natureza, fonte e data
de vencimento, muito embora se aceite a possibilidade de a indicação possa ser efectuada per relationem,
desde que exista uma expressa individualização da relação da qual eventualmente surgirá o crédito (ou
seja, enumerando taxativamente os diversos negócios concretos dos quais possam surgir os créditos a
garantir, mesmo que tais negócios ainda não existam no momento da constituição da garantia), não
bastando, para o efeito, a simples remissão para a relação de conta correntes existente entre o cliente e a
instituição bancária.
2690
Carla Carrassi, ob. cit., pág. 314 e segs., constata alguma oscilação, mas salientando que a orientação
dominante as considera como inválidas (ou, pelo menos, inoponíveis a terceiros), pese embora mencione
uma decisão isolada admitindo, em termos amplos, a validade deste tipo de cláusulas e não sem fazer
alusão a uma orientação mais ou menos consolidada admitindo tal validade em termos mais restritos, isto
é, apenas “qualora il concreto svolgimento del rapporto tra le parti e la pratica consentano una
sufficiente indicazione”, não sendo necessário especificar o crédito garantido em todos os seus elementos
no documento constitutivo do penhor, bastando que deste constem os “elementi da consentire
l’individuazione del credito stesso, anche con il sussidio di dati esteriori” (apesar de a Autora notar que
“non si comprende se questi nuovi criteri (l’ordinaria prassi e il concreto svolgimento della vicenda) al
di là della loro evidente vaghezza siano da valutare sempre in funzione della volontà delle parti
riprodotta nella scrittura o se con essi voglia privilegiare l’utilizzo di accordi negoziali che non risultano
espressi nel documento né sono da questo desumibili”). Em termos análogos, Giovanni Colombo, ob. cit.,
pág. 194 e segs., realçando que ser dominante a posição defensora da simples inoponibilidade, embora
constatando que “il quadro giurisprudenziale non brilla dunque per chiarezza”.
2691
Cfr. Gabrielli, Il pegno cit., pág. 139 (assegurando ser este o entendimento dominante). Esta última
exigência todavia, não é de aplicação uniforme, pois como relata Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 125 e
segs., algumas decisões apontam no sentido de o art.º 2787.º, n.º 3, do CCI ser uma norma especial face
ao art.º 1346.º (que estabelece os requisitos gerais dos negócios jurídicos), exigindo, por isso, uma
“determinabilidade qualificada”, para efeitos da concessão do direito de preferência, concluindo pela
ineficácia da cláusula de extensão relativamente a terceiros “ove la clausula si limiti a far riferimento ai
soggetti del rapporto obbligatorio, o richiami per relationem circostanze e dati esterni al rapporto,
756
Em França, parece desenhar-se um panorama menos hostil a este tipo de
cláusulas, invocando-se em seu favor o reconhecimento da licitude de um penhor
constituído em garantia de obrigações condicionais, a termo ou futuras e, noutro plano,
realçando como a indicação da quantia devida não é um requisito de validade de
qualquer penhor, ao menos no momento da sua constituição.2692
Apesar de o penhor ser alvo de uma parca utilização no ordenamento alemão, as
condições gerais dos bancos desde cedo incluíram cláusulas relativas à constituição de
penhores sobre bens do empenhante – ou de terceiros – depositados junto das
instituições bancárias, cláusulas essas que, por força dos limites impostos pela
jurisprudência, viram a sua abrangência diminuída.2693
No direito espanhol, a legitimidade de tais pactos é defendida por alguns, com
base, quer em diversos argumentos utilizados para a fiança, quer na admissibilidade,
postulada pelo art.º 1861.º do CCE, de o penhor assegurar créditos futuros, ao menos
desde que respeitados os requisitos gerais de determinabilidade dos negócios
jurídico.2694
ovvero il saldo del conto corrente bancario” (nalgumas decisões considera-se mesmo que a avaliação
acerca da possível ineficácia da preferência deve ser efectuada por referência ao conteúdo do contrato no
momento da sua celebração, não podendo ser apreciado a posteriori com base na evolução da relação
garantida), enquanto outras, citadas pelo Autor (cfr. ob. cit., pág. 125, notas 37, 38 e 39), a propósito da
constituição de penhores em garantia de uma abertura de crédito em conta corrente ou do saldo passivo de
todas as operações de crédito incluídas numa relação de conta corrente, perfilham um critério mais
elástico (argumentando que o art.º 2787.º, n.º 3, não estabelece um critério mais apertado do que o
exigido para os negócios jurídicos em geral, pelo que bastará uma determinabilidade do crédito, para a
qual seria possível recorrer a elementos exteriores ao negócio constitutivo do penhor, embora a Corte de
Cassação tenha afirmado que o recurso a tais elementos exteriores “richiede che la scrittura contenga un
indice di collegamento che consenta l’individuazione de menzionati dati”, o que não acontecia no caso,
uma vez que no acto de constituição de penhor apenas se fazia referência a uma conta bancária sem a
identificar e sem conter nenhuma informação adicional). A favor deste entendimento mais flexível
(admitindo, por isso, com menor parcimónia a validade de semelhantes cláusulas) vide Gabrielli, Il pegno
anomalo cit., pág. 168, asseverando que “L’amissibilità del pegno, rispetto ai crediti futuri, non sembra
incontrare ostacoli nella misura in cui il credito sorgerà in dipendenza di un rapporto già esistente”.
2692
Dá conta deste panorama, Finez Ratón, ob. cit., pág. 200. Alude, genericamente, à admissibilidade de
um penhor em garantia de créditos sob condição, a termo ou futuros, Marty, Rayanaud e Jestaz, ob. cit.,
págs. 51 e 52.
2693
Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág.
1488, destacam como, na senda de tais limites, o penhor deixou de abarcar dinheiro e outros valores do
devedor que se encontrem em poder do banco credor, sempre que com uma finalidade diversa da
operação de crédito garantida.
2694
Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 103 a 108, noticia a existência de três entendimentos
contrapostos quanto às obrigações futuras passíveis de ser garantidas, um admitindo que será toda a que
não tenha nascido no momento da constituição da garantia (mesmo que o respectivo processo de
formação ainda se não tenha iniciado, estando dependente de um acontecimento futuro), outro
restringindo o conceito à pré-existência de um vínculo jurídico, do qual brotará a obrigação a garantir e,
finalmente, um terceiro, intermédio, dispensando a existência de um vínculo jurídico anterior, mas
impondo a verificação de determinadas circunstâncias objectivas (relativas aos sujeitos e ao montante da
dívida) que consintam uma determinação da obrigação futura: o Autor adere a esta última posição,
entendendo que “será afianzable cualquier obligación futura, entendiendo por tal la que no tiene
realidad, por no haber nacido, en el momento de constituirse la fianza, pero tal amplíssima posibilidad
ha de armonizarse con el principio que proclama el carácter exporeso de la fianza y con el requisito de
la determinabilidad. Ha de entenderese, pues, que sólo la obligación futura y determinada o
determinable, sin necesidad de una nueva declaración del fiador y del acreedor es susceptible de
afianzamiento, lo cual exigirá, como se ha observado, que, al menos, sean conocidas las partes entre
quienes la obligación principal debe surgir y, de alguna forma, esté determinado o sea determinable el
límite de la garantía o de la obligación principal. Sin embargo, me parece innecesaria (…) la existencia
una base de hecho de la cual pueda nacer la obligación futura, pues ésta, a mi entender, vendrá ya
implícita en los requistios anteriores” (asseverando que esta regra geral valerá igualmente – ob. cit., pág.
757
Aliás, a análise das cláusulas omnibus é efectuada, em diversos ordenamentos
(como o italiano,2695 alemão2696 e francês2697), sobretudo a propósito da fiança, o mesmo
473 - para a constituição de penhor em garantia de obrigações futuras). Já Salinas Adelantado, El régimen
cit., pág. 275 e segs., defende que o que está em causa não é a possibilidade de assegurar créditos futuros,
mas sim o grau de determinação que estes devem possuir para poder ser garantidos por um penhor: se
assim é, serão válidos os penhores quando “siempre que se fijase un limite máximo cuantitativo a la
responsabilidad que cubre la garantía”, propondo o Autor que o mesmo limite se aplique aos créditos
actuais, mas indeterminados. No que especificamente respeita à cláusula de extensão, o Autor reconhece a
existência de posições contrárias à sua admissibilidade (por constituírem um entrave à circulação dos
bens, por exonerarem o credor de qualquer risco nas operações de financiamento e por permitirem a
subsistência de sociedades infra-capitalizadas), mas adere ao entendimento contrário, pois tais cláusulas
“responden a la necessidad práctica de adaptar las garantías a las características especiales del tráfico
bancario, y, en concreto, al hecho de que en éste, la relación del banco con el cliente no suele limitarse a
una operación aislada, sino que se articula en una multiplicidad de negocios que se desarrallan a lo
largo de un periodo de tiempo relativamente largo” (não sem reconhecer a possibilidade de abusos por
parte dos bancos credores, mas entendendo que tais condutas devem ser reprimidas ao nível, não da
admissibilidade, mas sim da boa fé no seu exercício: mesmo neste segundo plano, as práticas abusivas são
fortemente restringidas desde que a validade das cláusulas de extensão seja limitada àquelas que
estabeleçam um limite quantitativo máximo de responsabilidade e, ainda, que apenas compreendam
operações resultantes do tráfico bancário usual). Por seu turno Garcia Vicente, La prenda cit., pág. 82 e
segs., apesar de advertir para alguns riscos das cláusulas globais ou omnibus (que conduzem à
necessidade de protecção dos demais credores e do próprio empenhante, para cuja tutela deverá impor-se
um tecto máximo de responsabilidade pelo qual a garantia responderá), acaba por se pronunciar favorável
à sua licitude, desde que cumpridos os requisitos gerais de que depende a licitude dos negócios jurídicos
em geral, nomeadamente a determinação do seu objecto, ao nível dos sujeitos, do objecto, da duração
temporal das obrigações a garantir, bem como do limite máximo de responsabilidade pelo qual a garantia
responde (rematando que, tendo em conta a ausência de um sistema de publicidade adequado, tal figura
levantará objecções adicionais quando o quid onerado seja um crédito) – pelo contrário, o Autor mostra
maior abertura relativamente às cláusulas de extensão, especialmente quando “ha sido pactada al tiempo
de la constitución de la prenda, detallando los supuestos en que procederá y la cifra máxima de
responsabilidad que soportará la prenda (…) de modo que su prioridad temporal se retrotrae al tiempo
de su constitución con independencia del tiempo de su nacimiento”. Favorável à licitude deste tipo de
cláusulas se mostra também Finez Ratón, ob. cit., pág. 203 e segs., salientando como o princípio da par
conditio creditorum - e a protecção dos demais credores do empenhante que lhe está subjacente – apenas
veda a criação de causas de preferência não tipificadas na lei, “Pero no excluye que los acreedores, en su
caso los bancos, busquen la preferencia de sus créditos a través de los contratos tipificados legalmente
que llevan como consecuencia tal fin”, esclarecendo que o que pode estar em causa não é a ruptura da
igualdade de tratamento entre os credores, mas antes a existência ou não de causa bastante para o efeito,
questão à qual apenas se poderá dar resposta de acordo com os dados normativos de cada ordenamento:
ora, no espanhol vigora a plena admissibilidade de garantia de créditos futuros – art.º 1861.º CCE – “No
sólo aquellos ya existentes al otorgarse la prenda, pero indeterminados en su cuantía, ni aquellos
propriamente futuros que pueden nacer en virtud de una relación jurídica preexistente a la constitución
de la prenda (…); también los que vengan simplemente condicionados a un hecho futuro, por ejemplo,
las eventuales relaciones entre el banco y el cliente”, pelo que nem sequer será forçoso limitar a
responsabilidade a uma determinada quantia, alegando que tal exigência se justifica, em sede hipotecária,
pelos princípios registais próprios do direito imobiliário (todavia, o Autor ressalva que, embora o credor
possa exercer todos os poderes de conservação do bem onerado desde a data da constituição da garantia e
sem prejuízo da plena oponibilidade da mesma a contar dessa mesma data, “ésta sólo podrá desplegar
plena eficacia desde el momento de existencia certa del crédito garantizado”). Por último, Fernández del
Pozo, ob. cit., pág. 120, relata que a orientação da Direcção Geral do Notariado aponta no sentido da
validade das cláusulas de extensão.
2695
Neste âmbito, Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 144 e segs., dá conta que, desde os finais dos anos
70 do século passado, a jurisprudência italiana dominante se inclina, maioritariamente, para a validade da
“fideiussione omnibus”, sustentando que “la determinabilitá per relationem, con riferimento cioè
all’oggetto delle obbligazzioni via via assunte verso la banca dal debitore garantito”, muito embora o
Autor aluda a inúmeras posições doutrinais contrárias a esta admissibilidade (nomeadamente fazendo
notar que, em ordem à determinação do objecto contratual, não bastará o simples reenvio para todas as
obrigações a contrair pelo devedor para com aquele credor, pois tal consiste num simples “rinvio in
bianco” (para os partidários deste entendimento, “La determinabilità del oggetto dovrebbe piuttosto
758
sucedendo ente nós,2698 mas não sem que se reconheça não poderem as conclusões
obtidas ser, sem mais, ser transpostas para o penhor, tendo em conta a menor extensão
ricorrere nel momento in cui si presta la garanzia, dovendosi essa intendere come un giudizio di
prognosi ex ante, cioè riferita alla conclusione del contratto di garanzia e non come un giudizio a
posteriori, per cui essa ricorre sempre, risultando irrelevante e non significativa una determinabilità solo
a posteriori”). No retrato pintado por Januário da Costa Gomes, ob. cit., págs. 622 a 640, o advento das
fianças omnibus (também apelidadas de fianças gerais, genéricas ou caldeirão) deve-se ao giro bancário,
tendo sido incorporado nas condições gerais da Associação de Bancos Italianos nos anos 60 do Século
XX, embora a sua compatibilidade com a obrigatoriedade legal de determinação do objecto do contrato
(cfr. art.ºs 1346.º e 1418.º do CCI) tenha sido questionada, sendo vislumbrável um entendimento que
aponta no sentido da ilegalidade daquela garantia (em razão da violação das citadas disposições legais),
um outro que admite a sua validade (para quem considere que a determinabilidade do objecto se faz per
relationem, através da referência aos negócios futuros) e um terceiro que impõe determinadas condições
para o seu reconhecimento (devendo a sua validade ser aferida caso a caso, em função da efectiva
existência ou não de elementos que consintam a determinabilidade do objecto do contrato), encontrando
esta divergência de opiniões eco na jurisprudência (com a Corte Suprema a pronunciar-se pela validade
da fiança omnibus, ao passo que a jurisprudência de mérito optava sistematicamente pelo entendimento
contrário): todavia, a questão acabou por ser resolvida pela chamada lei da transparência bancária (Lei n.º
154, de 17/2/1992, mais concretamente o seu art.º 10.º), que veio dar uma nova redacção ao art.º 1938.º
do CCI, passando este a dispor que, na fiança constituída em garantia de uma obrigação futura, será
forçosa a indicação do montante máximo assegurado.
2696
Segundo Januário da Costa Gomes, ob. cit., págs. 640 a 656, a uma maior permissividade da
jurisprudência do BGH (que, até 1995, reconhecia com grande amplitude, a validade das fianças prestadas
em garantia de obrigações futuras, mesmo que sem o estabelecimento de um tecto máximo de
responsabilidade), sempre se opôs a doutrina maioritária, reclamando a imposição daquele limite: com a
decisão do BGH de 18/5/1995, o tribunal alterou a sua orientação, mantendo que fiança omnibus satisfaz
as exigências de determinabilidade do objecto do contrato, mas impondo “ao lado de determinação dos
créditos garantidos, uma limitação do montante da fiança” (não sendo suficiente “a limitação da sua
responsabilidade aos créditos resultantes da relação negocial bancária”).
2697
De acordo com Januário da Costa Gomes, ob. cit., págs. 657 a 660, a jurisprudência tem aceite, com
algumas posições minoritárias em contrário, a validade das fianças omnibus, mesmo amputadas da
imposição de um tecto máximo de responsabilidade (a doutrina, por seu turno, oscila entre a exigência ou
a desnecessidade desta restrição).
2698
Evaristo Mendes, Penhor mercantil e fiança omnibus – anotação ao Acórdão do STJ de 11/5/1993, in
RDES, ano 37, n.ºs 1 a 3 (Jan. – Set. 1995), pág. 126 e segs., apresenta o seguinte quadro geral. A fiança
omnibus ou geral – em que o fiador garante ilimitadamente todos os débitos que o afiançado tenha ou
venha a ter para com o credor – é nula. A fiança geral por débitos existentes é válida. É igualmente
admissível a fiança geral limitada no tempo e quanto ao montante, bem como o é a constituída em
garantia de débitos emergentes de determinada relação de negócios existentes entre o afiançado e o credor
beneficiário. Traçando um panorama exaustivo da questão desde a entrada em vigor do actual Código
Civil, Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 661 e segs., salienta como a não imposição legal de um
limite máximo de responsabilidade assegurada pela fiança (ao contrário do sugerido por Vaz Serra)
originou sérias dúvidas doutrinais acerca das fianças genéricas, erguendo-se diversas vozes – quase todas
em comentários a arestos - contra a licitude de tais garantias (desde logo, em comentário ao Acórdão do
STJ de 2/11/1973, do próprio Vaz Serra – exigindo que, no momento da prestação, seja determinado o
título de onde a obrigação futura poderá resultar ou, pelo menos, como tal determinação se poderá
efectuar, sob pena de, assim não sendo, a fiança ser nula por violação do art.º 280.º, n.º 1, - mas também
de Albino de Matos – contestando a validação, por parte do Acórdão da Relação de Coimbra de
17/3/1987, de uma fiança prestada por todas as responsabilidades que a devedora viesse a ter perante o
credor, fosse qual fosse o título, contrapondo que tal fiança responsabilizava o fiador sem qualquer
limitação de tempo ou de montante, bem como sem qualquer indicação quanto às fontes da
responsabilidade - Menezes Cordeiro, em anotação ao Acórdão do STJ de 19/2/1991, entendendo que
admitir que uma pessoa possa declarar-se fiadora por todos os débitos que terceiro tenha ou possa vir a ter
é tão indeterminado como alguém se obrigar a pagar a outrem, sem limite, o que esta quiser - e Romano
Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 101, realçando como “Para que a fiança de obrigações futuras
seja válida torna-se necessário que estas, à data da celebração do negócio jurídico, sejam determináveis
por parâmetros objectivos; ou seja, o garante deve desde início conhecer os limites da sua obrigação ou,
ao menos, o critério ou critérios de fixação desses limites (…). Os critérios para apreciar os limites da
obrigação variam em função das situações concretas. Elas podem passar pela descrição das operações a
759
da responsabilidade que o dador do penhor assume comparativamente à do prestador da
fiança.2699
efectuar, por um especial conhecimento do fiador em relação às operações comerciais a realizar pelo
afiançado e das respectivas necessidades de crédito, etc.”). Já no que concerne às posições da
jurisprudência, Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 665 e segs., distingue duas fases, uma primeira em
que se retira da licitude da fiança prestada em garantia de obrigações futuras um reconhecimento quase
ilimitado das fianças genéricas (não se debruçando, por isso, com a profundidade necessárias sobre a
questão da determinabilidade do objecto da fiança) e uma segunda em que se constata a necessidade de
determinabilidade do objecto da garantia (invalidando, frequentemente, as cláusulas contidas nas
condições gerais utilizadas por diversos bancos), merecendo uma referência autónoma o Acórdão da
Relação de Coimbra de 26/5/1998 (confirmado pelo Acórdão do STJ de 3/12/1998), no qual, sem abrir
mão da exigência de determinação, considerou válida uma fiança omnibus típica, sem limites de
responsabilidade ou temporais, em função da qualidade dos fiadores e da especial relação mantida com a
empresa devedora principal (os fiadores eram sócios-gerentes da sociedade devedora). Quanto à posição
do Autor e tendo presente a ratio do art.º 280.º, n.º 1 – evitar que o fiador desconheça, no momento em
que presta a garantia, o âmbito da sua vinculação - , Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 681 e segs.,
distingue entre diversas modalidades de fiança omnibus, aceitando a validade daquelas em que o fiador
responde perante todas as obrigações, presentes e futuras, decorrentes das relações bancárias do devedor,
mas em que a responsabilidade se encontra circunscrita a determinado bem (raciocinando por analogia
com o regime do penhor omnibus prestado por terceiro, uma vez que “tal como o dador de penhor, o
fiador sabe, à partida, qual é a dimensão possível das suas perdas na relação com o credor, ele sabe
exactamente o que está em jogo, pelo que é, em princípio, de afirmar a determinabilidade do objecto da
fiança”, exceptuando o caso em que o bem em questão esgote o património relevante e visível do
devedor) e daquelas em que, mesmo não existindo tal limitação quanto aos bens a abranger, seja fixado
um máximo de responsabilidade (dado que “o fiador sabe de antemão qual é o limite máximo possível da
sua responsabilidade, qual é o nível – o quantum – de risco. A determinabilidade está, então, em
princípio, assegurada uma vez que existe um critério objectivo e limitativo”), negando, pelo contrário, a
admissibilidade de um fiança que responda, sem mais, por todas as obrigações assumidas e a assumir pelo
devedor face ao credor, no âmbito da relação bancária existentes entre estes (negando que a determinação
possa ser realizada unicamente per relationem, a menos que se pretenda “descolorir e desvalorizar por
completo este conceito, dando-lhe um mero significado formal e literal, em vez de o analisarmos à luz da
complexidade dos interesses e dos valores em presença”, e equiparando estes casos àqueles em que as
partes realizam uma mera enumeração exemplificativa das operações das quais pode resultar a
responsabilidade do fiador) e manifestando dúvidas quando a responsabilidade do devedor se cinge a um
número limitado de operações, taxativamente enumerado, entre o credor e o devedor, como sejam
aberturas de crédito ou garantias bancárias (a posição de princípio do Autor é contrária à licitude de tais
cláusulas - porquanto “o fiador não está, à data da constituição da garantia, em condições de abarcar o
quantum da vinculação, uma vez que desconhece o fluxo de crédito que irá ser concedido”-, mas
admitindo a respectiva validade em função de elementos adicionais, especialmente à posição do fiador
face ao devedor e/ao credor, nomeadamente quando o fiador seja sócio com poderes de gestão efectiva da
sociedade devedora).
2699
De facto, como salienta Evaristo Mendes, ob. cit., pág. 135, a validade do penhor omnibus deve ser
encarada de modo diverso, tendo em conta que “recaindo sobre direito ou coisa certa e determinada, ele
constitui, por definição, uma garantia limitada ao valor dessa coisa ou direito. Do ponto de vista da
tutela do garante, problema, porventura, mais importante será o da duração da garantia”. Já Neves de
Oliveira, ob. cit., págs. 20 e 21, dá conta de decisões reconhecendo a nulidade de tais cláusulas, ao passo
que outras apenas lhes reconhecem eficácia inter partes (adiantando ainda que, quanto às cláusulas de
extensão, algumas reconhecem mesmo a sua validade) e que, no que especificamente respeita ao penhor
de créditos, bastará “que seja, pelo menos, determinável a extensão qualitativa (ainda que não
quantitativa) da responsabilidade patrimonial assegurada pela reserva de utilidade”. Para Joana Dias,
ob. cit., pág. 136, “Quanto ao penhor omnibus, as reservas suscitadas a propósito da fiança omnibus não
têm o mesmo impacto. Ao limitarem expressamente o montante máximo que o penhor garante ou
empenharem uma coisa, o dador do penhor sabe exactamente qual é a dimensão possível das suas perdas
na relação com o credor, pelo que é de afirmar a determinabilidade do objecto do penhor. Do mesmo
modo, e no que concerne à acessoriedade, uma vez que o penhor só pode executar-se se a dívida nasce e
há incumprimento, sendo por isso irrelevante que se trate de um crédito futuro”. Por seu turno Januário
da Costa Gomes, ob. cit., pág. 669, nota 342, aponta decisões jurisprudenciais contraditórias, umas
decretando a nulidade dos penhores omnibus (cfr. Acórdão do STEJ de 11/5/1993, no qual se discutia
igualmente a validade de uma fiança omnibus, facto que, na opinião do Autor, terá influenciado a decisão
760
Ou seja, apesar de a lei permitir a constituição de garantias em geral e de penhor
em particular para assegurar o cumprimento de créditos futuros ou condicionais (cfr. n.º
3 do art.º 666.º),2700 tal não pode significar a outorga de um cheque em branco às partes,
sendo antes necessária a fixação de um critério objectivo destinado a permitir alcançar a
determinação da prestação garantida ou a garantir (cfr. art.º 280.º, n.º 1, parte final).2701
A indeterminabilidade das obrigações asseguradas pela garantia pode, noutro
plano, suscitar dúvidas de legalidade face ao regime legal das cláusulas contratuais
gerais, nomeadamente quando o alargamento desmesurado das responsabilidades
tomada relativamente ao penhor, em termos por ele censurados, porquanto “se impunha, porventura, a
ponderação de solução diversa, atenta a natural limitação da responsabilidade do dador de penhor em
função do valor do bem empenhado”), outras reconhecendo a sua validade (cfr. Acórdão da Relação do
Porto de 26/9/1989, in CJ, 1989, Tomo IV, págs. 202 a 204 – embora sem discutir a questão da
determinabilidade do objecto – e do Acórdão do STJ de 8/7/1997, in BMJ n.º 469, págs. 509 a 516, no
qual se reconheceu a licitude de um penhor constituído em garantia do cumprimento de todas as
responsabilidades, presentes e futuras, nomeadamente as emergentes de um contrato de abertura de conta,
com fundamento “no facto de ter sido fixado um limite máximo de responsabilidade e no de haver
também um balizamento temporal”).
2700
Para além dos preceitos mencionados no texto, há que referenciar ainda o art.º 499.º (que admite a
prestação de coisas futura) e o art.º 115.º, n.º 1, do CIRE (que alude expressamente à possibilidade de
existência de créditos futuros).
2701
Cfr. Joana Dias, ob. cit., págs. 133 a 136, concluindo que tal grau de determinabilidade “não deixa de
existir no penhor omnibus prestado para todas as obrigações, actuais ou futuras, do devedor principal
nascentes de certas e determinados tipos ou categorias de actividades por ele desenvolvidas, pois se
refere o conteúdo que as dívidas principais podem assumir nos futuros negócios do garantido com o
beneficiário da garantia” (pelo contrário, a Autora duvida da validade das cláusulas que garantam, sem
mais, todos os créditos futuros e eventuais, ainda que seja estabelecido o montante máximo que a mesma
assegura, tendo em conta a necessidade de determinação da obrigação e o carácter acessório do penhor).
Para Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 291 e 292, a determinação do objecto do negócio – conforme
resulta da directriz genérica ditada pelo art.º 280.º – destina-se a permitir aos sujeitos do mesmo saber,
com um mínimo de certeza, qual o objecto negocial, pelo que não se bastará com a mera identificação dos
sujeitos ou com uma pura e simples referência ao crédito garantido, impondo-se, no mínimo, uma
referência aos bens a onerar. Já segundo Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 597 e segs., a exigência
de determinação do crédito garantido “centra-se, antes de mais, no regime dos negócios jurídicos em
geral, mais concretamente no que dispõem os arts. 280/1 e 400 – donde decorre a necessidade de
determinação ou, pelo menos, determinabilidade da prestação - referidos, quer um quer outro, ao
momento da constituição do negócio jurídico” de garantia. Como salientam Romano Martinez e Fuzeta
da Ponte, ob. cit., págs. 98 e 99, o art.º 280.º, n.º 1, apenas comina a nulidade dos negócios de objecto
indeterminável, não impedindo que “o objecto do negócio esteja, a dada altura, indeterminado; o que
não pode é ser indeterminável”, esclarecendo que “a prestação pode ser indeterminada, mas
determinável, desde que se possa saber, no momento da constituição, qual o seu teor através de um
critério para proceder à fixação do respectivo objecto” (no que especificamente respeita à fiança, essa
determinabilidade impõe “a possibilidade de o fiador prefigurar o tipo, o montante e a medida do seu
compromisso, que corresponde à obrigação do devedor principal”), não existindo qualquer contradição
entre aquela norma e o art.º 400.º do mesmo Código (uma vez que “Só se deve por o problema da
determinação da prestação com base no artigo 400.º do Código Civil, sempre que a obrigação não for
nula, por força do artigo 280.º do Código Civil. Nada obsta a que, tendo o objecto do negócio ficado
determinado, o tribunal proceda à determinação da prestação, nos termos do artigo 400.º do Código
Civil, desde que as partes lhe tenham dado algum critério objectivo; na falta de tal critério, tendo em
conta o artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, deverá o tribunal declarar a nulidade do negócio jurídico”):
quanto à relação de não dissonância entre o art.º 280.º, n.º 1 e o art.º 400.º, vide também Januário da Costa
Gomes, ob. cit., pág. 673 e segs. (rejeitando a tese daqueles que sustentam que a aplicação deste último
preceito apenas se a obrigação em causa não fosse nula nos termos do primeiro, de modo que a
determinação da prestação, por alguma das partes ou por terceiro, apenas poderia ser pactada quando
houvesse um critério estabelecido para o efeito).
761
assumidas pelo garante conste das condições gerais utilizadas pelas instituições
bancárias.2702
Em face do que foi dito, advogamos que a (in)determinação do objecto do
contrato (de penhor) é, sobretudo, uma questão a resolver em sede de interpretação do
mesmo, afigurando-se despropositado falar de diversos graus de determinação, uma vez
que aquela exigência se encontra cumprida ou não.2703
Esta necessidade de determinação (ou, ao menos, determinabilidade) do crédito
garantido impõe-se para os créditos presentes (nomeadamente quando se pretenda
assegurar o cumprimento de todos os créditos existentes numa determinada data) e
relativamente a créditos futuros, com ou sem limitação temporal (especialmente no caso
das cláusulas omnibus), tanto mais que a garantia vai responder pelos créditos vigentes
na data da execução e não apenas dos existentes na data da respectiva constituição.
Porém, para este efeito pode não ser bastante que a garantia assegure unicamente
créditos presentes e ainda que estes sejam detalhadamente enunciados no negócio
constitutivo do penhor, em particular quando este tiver sido prestado por terceiro,
especialmente se este não for parte do contrato,2704 assim evitando que um estranho ao
negócio de garantia possa ser surpreendido por conluios entre as partes naquele
acordo).2705
2702
A respeito da fiança, Januário da Costa Gomes, ob. cit., págs. 692 a 697, sustenta que a invalidade
destas cláusulas omnibus poderá advir da sua qualificação como cláusulas surpresa (cfr. art.º 8.º, alínea c),
da LCCG) - porquanto alguém é chamado a prestar fiança para o cumprimento de um mútuo e, afinal,
decorre dos termos do contrato que a responsabilidade possui uma amplitude significativamente superior
(como sucederá “se o formulário de fiança identifica à cabeça, em termos significativamente destacados,
a operação de financiamento que constitui o Leit-motiv da prestação da fiança e vem depois, páginas ou
números volvidos, a incluir a cláusula omnibus, como se de aspecto de pormenor ou secundário se
tratasse”) – ou da violação do princípio geral da boa fé (designadamente quando, para cobrir uma simples
operação de crédito de montante reduzido, o bando exige a prestação de fiança por um período de tempo
que extravasa a duração do mútuo).
2703
Neste sentido, Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 673, impondo tal determinação que “à data da
celebração do negócio existam já – sejam logo definidos – elementos ou parâmetros para a (futura)
determinação”.
2704
Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 599 e segs., salienta que o critério da actualidade dos créditos
não é, de per se, bastante para o efeito (do mesmo modo que o não é a simples enunciação – ainda que
não exemplificativa – das possíveis fontes dos créditos a garantir), uma vez que quem presta a garantia
pode ser surpreendido posteriormente pela assunção de um débito que desconhecia, tornando-se, por isso,
imperioso concretizar o âmbito das obrigações a garantir, em termos análogos ao que sucede com as
cláusulas omnibus (discutindo-se se a garantia responde pelo crédito na sua configuração no momento da
prestação da garantia ou no momento da respectiva execução: o Autor aceita como regra esta última
alternativa, embora ressalve os casos em que, tendo sido a garantia prestada por terceiro, através de um
negócio posterior entre o credor e o devedor, a obrigação garantida é reestruturada de modo a agravar a
responsabilidade do terceiro garante): em face destas premissas gerais, o Autor desconfia da validade de
uma cláusula nos termos da qual a garantia abarque todos os créditos do devedor existentes na data da sua
constituição e independentemente da fonte de onde brotem (admitindo-a apenas se for possível constatar
que o prestador da garantia conhece perfeitamente a dimensão e o montante das dívidas, assim como
quando seja imposto um limite máximo de responsabilidade). A respeito da fiança, Romano Martinez e
Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 99, asseguram que a fiança genérica em garantia de obrigações já
constituídas, ainda que condicionais e mesmo que na ausência de indicação concreta das dívidas e dos
respectivos títulos de constituição, será admissível, uma vez que “o objecto deste negócio jurídico está
indeterminado, mas ele poderá concretizar-se por uma operação aritmética com base num universo
determinado (as dívidas existentes à data da fiança) (…) neste caso, o objecto da fiança, tendo um
parâmetro objectivo para a sua determinação, não é indeterminável (…). Em tal caso, as dívidas existem
e o fiador tem o ónus de indagar acerca do montante das obrigações garantidas; o mesmo se diga das
obrigações condicionais”.
2705
Para Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 679 e segs., a razão de ser da imperatividade de
determinação do objecto do contrato vertida no art.º 280.º, n.º 1 e válida para a generalidade dos negócios
jurídicos significa, no caso da fiança omnibus, impedir que o fiador fique totalmente à mercê do credor
762
As principais alternativas para a concretização dos créditos garantidos passam
por exigir que as partes indiquem, no contrato de penhor e para além dos respectivos
sujeitos, quais as obrigações garantidas (ou os concretos negócios dos quais podem
resultar), qual o limite máximo pelo qual a garantia responde e/ou o período temporal
durante o qual poderão surgir novos créditos tutelados pela garantia (ou, pelo menos,
que estes elementos sejam inferíveis a partir dos termos acordados pelas partes).2706
Das três modalidades aventadas, a mais óbvia consistirá em estabelecer um
limite máximo de responsabilidade que a mesma assegura, originando o surgimento das
chamadas garantias de máximo, consagradas nalguns ordenamentos (sobretudo a
respeito da hipoteca),2707 mas que não lograram acolhimento pelo legislador luso.2708
Nestes casos, o penhor destina-se a assegurar o cumprimento de obrigações cujo
montante definitivo ou até a própria fonte se desconheça no momento da constituição da
garantia, exigindo-se, em contrapartida, que as partes fixem, nesse momento, o limite
máximo pelo qual a garantia responde.2709
Todavia, a imposição desse limite não constitui uma panaceia capaz de, por si
só, legitimar o recurso às garantias omnibus, podendo esta ser consideras ilícitas, não
obstante aquela restrição, quando se demonstre, em face das circunstâncias do negócio,
que aquele limite é meramente formal, irrazoável ou flagrantemente
desproporcionado:2710 para fundamentar este juízo, far-se-á apelo ao princípio da
(ou das relações entre este e o devedor), antes impondo “uma prognose que permita ao fiador saber, ex
ante, até onde pode vir a responder”, a qual não se basta com a simples determinabilidade per relationem,
ainda que temperada com a circunscrição da limitação do fiador às relações bancárias entre o devedor e o
credor (uma vez que “não é sequer razoável supor que um fiador omnibus, ao subscrever uma fiança
desse tipo, esteja a contar poder vir a responder por obrigações que extravasem da normal relação
bancária banco-cliente (devedor): tudo o que está para além disso tem (…) carácter surpresa”).
2706
Assim, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 293, especificando que, relativamente às obrigações
garantidas, será imperioso determinar quais os créditos concretamente garantidos (por exemplo, através
da indicação dos débitos do empenhante para com o credor decorrentes de contratos anteriormente
celebrados e eventualmente ainda em execução), não bastando uma genérica remissão para as relações
entre as partes, mesmo que circunscrita às operações bancárias (o Autor entende que estas mesmas
exigências valerão para as cláusulas de extensão, com a diferença que o seu incumprimento não gerará a
invalidade de toda a garantia, mas apenas da cláusula de extensão, verificando-se uma redução do negócio
jurídico).
2707
A lei espanhola, por exemplo, conhece a figura da hipoteca de máximo, “un tipo de hipoteca en que
se constituye por una cantidad máxima, en garantía de créditos indeterminados en su existencia o
cuantía, que sólo se indican en sus líneas fundamentales, y cuya determinación se efectúa por medios
extrahipotecarios” - Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 277 e segs., da qual o Autor retira
argumentos para o reconhecimento de idêntica garantia relativamente ao penhor, definindo-o como um
penhor genérico e admitindo a sua validade desde que se estabeleça um limite máximo de
responsabilidade pelo qual respondam os bens onerados e, ainda, que o crédito assegurado seja delimitado
quanto aos seus aspectos essenciais (ou seja, não bastando a identificação sujeitos, cabendo ainda fazer
alusão ao tipo de negócios dos quais poderão brotar os créditos assegurados, por exemplo através do
recurso a cláusulas gerais que remetam para os negócios típicos da actividade bancária).
2708
Meneres Campos, ob. cit., pág. 108, relata como tais garantias se afiguram particularmente idóneas
quando esteja em causa assegurar contas correntes bancárias, cujo montante é extremamente variável ao
longo do tempo: todavia, na esteira da sugestão de Vaz Serra – que entendia encontrar-se tal modalidade
englobada no instituto geral da hipoteca e, por isso, submetida às mesmas regras - tal figura não se
encontra regulada especificamente na nossa legislação.
2709
Meneres Campos, ob. cit., pág. 108, a respeito da hipoteca, define estas garantias como aquelas em
que se garante uma dívida que não se encontra determinada ab initio, delimitando-se unicamente o
montante máximo assegurado, podendo abranger toda e qualquer obrigação integrável nos critérios de
globalização convencionados (por isso se distinguindo da hipoteca em garantia de uma abertura de
crédito, a qual apenas assegura a obrigação decorrente do saldo da conta corrente).
2710
Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 697 e segs., aponta como exemplo o caso da fiança no regime
italiano, cuja validade passou a estar sujeita, a partir da alteração do art.º 1938.º do CCI, à estipulação de
763
especialidade (em razão da falta de determinação da obrigação garantida), ao carácter
acessório da garantia (deixando ao arbítrio do credor a criação de novas e futuras
obrigações a abranger pela garantia) e à violação da regra da prioridade temporal no
concurso de credores (ao pressupor uma antecipação da garantia relativamente a
créditos não existentes na data da constituição daquela).2711
Um caso específico de reconhecimento normativo de uma garantia com estas
características encontra-se no direito catalão (cfr. art.º 569-14, n.ºs 1 e 2, do Código
Civil da Catalunha), justificando, por isso, um olhar mais atento.
Depois de o n.º 1 ditar que o penhor pode garantir qualquer obrigação, presente
ou futura, própria ou alheia, dos empenhantes, o n.º 2 acrescenta que, entre as
obrigações empenháveis se contam aquelas que cujo montante se desconhece no
momento da sua constituição (devendo, neste caso, determinar-se o valor máximo pelo
qual responde a garantia), deste modo assegurando o respeito pelo princípio da
especialidade da garantia, entendido como exigência de determinação de todos os
elementos das relações jurídico-reais.
Admite-se que, deste modo, se assegurem, não apenas obrigações existentes no
momento da constituição da garantia, mas cujo montante não se encontre determinado,
mas igualmente de obrigações futuras, no sentido de nem sequer existirem na data do
nascimento do penhor,2712 aceitando a doutrina dominante que, uma vez nascidas essas
obrigações futuras, a eficácia do penhor produz-se desde a data da sua constituição,
sendo oponível a outros credores cujos créditos nasçam entre esta data e o surgimento
da obrigação assegurada pelo penhor.2713
um montante máximo de responsabilidade, solução que, não obstante, não impede a sindicabilidade de tal
valor e mesmo que quando “for evidente que o recurso àquele limite teve apenas em vista uma formal
satisfação desse requisito, a fiança de limite máximo deve ser tratada como se nenhum limite tivesse sido
fixado” (nesse juízo será forçoso atender, por exemplo, à dimensão da empresa devedora, às suas
perspectivas de negócios e à posição do devedor relativamente a essa sociedade, muito embora tal juízo
tenha que ser fundamentado em dados sólidos). Todavia, o Autor assume que a imposição de um tecto
máximo de responsabilidade representa uma presunção relativa de licitude da fiança ominubs, por ser de
admitir que o fiador, em face da quantificação do montante que a dívida pode assumir, aceitou tal encargo
e avaliou a eventualidade de poder vir a responder por ela (até porque “Não é, de facto, forçoso, numa
situação em que é fixado um patamar de responsabilidade, que o fiador domine já, plenamente, todo o
evoluir possível, a nível de surgimento de créditos, até esse limite: haverá, pelo menos normalmente, uma
zona de luz e uma zona de penumbra, até chegar à sombra demarcada pelo tecto acordado”).
2711
Meneres Campos, ob. cit., pág. 109 e segs., concluindo que tais argumentos podem conduzir à
nulidade da garantia, por violação do art.º 280.º, na parte em que este comina tal sanção para os negócios
cujo objecto seja indeterminável. Porém, de entre todos estes argumentos, a Autora considera como mais
relevante o último dos mencionados no texto, por entender que, desde logo, “implica que o devedor não
possa, na prática, hipotecar de novo, pois dificilmente encontrará um credor disposto a aceitar uma
hipoteca de segundo grau, sendo a primeira indeterminada, quer do ponto de vista causal, quer do ponto
de vista temporal”, exigindo, por isso e como condição de validade destas hipotecas genéricas (expressão
que a Autor prefere a hipotecas globais), que seja identificada, na data da constituição da garantia “a
relação jurídica da qual derivará a obrigação a garantir, e só se esta vier a nascer e se tornar
autonomamente exigível é que haverá desenvolvimento da garantia hipotecária. Não parece suficiente a
simples indicação dos extremos formais do acto de concessão, como a data e local da escritura. Acresce
que é necessário mencionar os elementos que permitam individualizar com alguma certeza o crédito que
a hipoteca garante, como seja, os sujeitos, a fonte da obrigação, as prestações que compreende”.
2712
Contudo e com base no carácter acessório da garantia, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 62 e 63,
avança que as partes devem determinar a base causal da obrigação garantida e as suas linhas
fundamentais, de modo a permitir a respectiva identificação (especialmente nas hipóteses em que a
garantia se constitua para protecção de uma obrigação concreta da qual hão de nascer os créditos
garantidos).
2713
Neste sentido, Joan Marsal Guillamet, Las prendas flotantes. Un término polisémico, in Garantías
reales mobiliarias en Europa (coord. Maria Elena Lauroba e Joan Marsal), Marcial Pons, Madrid, 2006,
pág. 356 e segs..
764
Como bem se compreende, o máximo de responsabilidade respeita à garantia e
não ao crédito tutelado, pelo que sendo o valor daquela inferior ao deste o penhor não
abrangerá essa diferença.2714
Atenta a indeterminação inicial e a variação previsível do montante do crédito
assegurado, será indispensável uma posterior concretização do seu valor em momento
anterior ao da realização do valor do bem dado em penhor, procedimento este que
ocorrerá de acordo com aquilo que for acordado pelas partes2715 ou, em caso do silêncio
destas, por decisão judicial.
Em face destes dados normativos da lei catalã, duas posições são admissíveis,
contrapondo-se os que entendem que norma em questão configura o reconhecimento da
admissibilidade legal de um penhor omnibus ou global, a outros que, pelo contrário,
continuam a exigir uma mais cabal determinação do crédito garantido como condição de
atribuição do direito de preferência.2716
Uma outra via de combater a indeterminabilidade das obrigações cobertas pela
garantia passa pela estipulação de um limite temporal de surgimento dos créditos a
garantir, solução esta que goza de acolhimento legal entre nós, embora de modo
indirecto, relativamente à fiança (cfr. art.º 654.º)2717 e que, apesar da ausência de norma
2714
Por isso, se, em caso de venda do bem garantido, o valor obtido for superior ao máximo assegurado, o
credor garantido deverá reclamar o remanescente na qualidade de credor comum – cfr. Barrada Orellana,
ob. cit., pág. 62, em face do anterior art.º 13.º da Lei catalã de direitos reais, cujo conteúdo não diverge do
plasmado actualmente no art.º 569-14, do Código Civil Catalão).
2715
Ou seja, as partes, no momento do nascimento da garantia, poderão definir os critérios ou o
procedimento para, em momento posterior, concretizar o montante do crédito.
2716
Esta segunda posição tem sido adoptada, a propósito da hipoteca de máximo, pala Direcção-Geral dos
Registos e Notariado, com fundamento, essencialmente, na necessidade de evitar o prejuízo de terceiros
credores hipotecários que perderiam a sua preferência em favor de créditos posteriormente adquiridos e
cobertos pela garantia de máximo. No entanto, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 68 a 70, opta pelo
primeiro entendimento aludido no texto, refutando este argumento considerando que aquilo que
verdadeiramente interessa aos terceiros credores é a responsabilidade que incide sobre o objecto
empenhado, aspecto este perfeitamente determinado no penhor de máximo. Para além disso, o outro
argumento utilizado por aquela Direcção-Geral – segundo o qual a obrigação a garantir não pode ser
futura (sob pena de violação do princípio da especialidade) - é também rechaçado pela mesma Autora,
invocando que o próprio CCE admite tal hipótese e que o princípio da especialidade não é totalmente
posto em causa pelo penhor de máximo, uma vez que limita a responsabilidade do objecto da garantia a
um determinado montante (sob um dado prisma, a obrigação garantida por um penhor de máximo é até
mais determinada do que o penhor tradicional, uma vez que neste último assegura-se, não apenas o
capital, mas também os juros e as eventuais despesas de conservação até ao momento da realização do
penhor). Por último, à afirmação da Direcção-Geral de acordo com a qual a obrigação a garantir deverá,
quando muito, provir de uma relação jurídica existente no momento da constituição da garantia (pois só
assim se respeitaria o princípio da acessoriedade), a Autora replica que o nascimento de novas obrigações
provenientes de uma relação pré-exsitente é aleatório e, muitas vezes, dependente do simples arbítrio do
devedor, pelo que não se verifica o respeito pelo princípio da acessoriedade, a menos que se entenda,
como sugere a Autora, que este não exige uma obrigação actual no momento da constituição da garantia
(para concluir, a Autora sustenta não ser a possibilidade de assegurar com penhor créditos futuros uma
questão respeitante ao negócio de constituição de garantia, uma vez que o consentimento para o
nascimento daqueles créditos é alheio ao negócio de garantia – apesar de, desde o seu nascimento,
assegurar todas as obrigações nos termos acordados pelas partes - , o qual se perfecciona sem necessidade
de um novo acordo das partes).
2717
De acordo com este preceito, quando a fiança for prestada em garantia de créditos futuros, o fiador
pode liberar-se das suas responsabilidades sempre que aqueles créditos não forem constituídos num prazo
de 5 anos a contar da data do surgimento da garantia (excepto se as partes estipularem um prazo diverso).
Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 704 e segs., esclarece que esta faculdade de desvinculação
subsiste mesmo quando tenha sido acordado um limite máximo de responsabilidade e mesmo que este
ainda não tenha sido atingido no termo daquele prazo de 5 anos: todavia, “na fiança (válida) prestada
sem determinação de montante máximo, o fiador pode, a todo o tempo, denunciá-la, nos termos gerais da
denúncia aplicável aos contratos de duração indeterminada, ficando, no entanto, responsável por todas
765
expressa, não se nos afigura não dever ser aplicado como elemento de concretização das
obrigações garantidas por um penhor, por ser um elemento atendíveis nos termos e para
os efeitos do disposto no art.º 280.º, n.º 1.
No que toca à identificação dos negócios jurídicos garantidos pelo penhor, esta
tarefa considerar-se-á bem sucedida quando seja possível comprovar, no momento da
constituição da garantia, quais são aqueles ou, no mínimo, quais as relações jurídicas
das quais poderão nascer.
Em nosso entender e conforme já realçámos, a questão da determinação do
crédito garantido (e do bem empenhado) deve ser solucionada à luz dos critérios gerais
que presidem à identificação do conteúdo dos negócios jurídicos (art.º 280.º, n.º 1, parte
final), resultando da aplicação destes ao penhor a tendencial admissibilidade das
cláusulas de extensão (desde que as relações jurídicas das quais poderão nascer os
créditos garantidos sejam, elas próprias, devidamente concretizadas, o que parece
excluir a simples referência ao saldo de uma conta corrente bancária, pelo menos
quando não sejam densificados os negócios que poderão influenciar aquele mesmo
saldo; com maior probabilidade ainda se, para além disso, for imposto um limite
temporal para o nascimento dessas obrigações e/ou um limite máximo de
responsabilidade) e a mais que provável invalidade das cláusulas omnibus (pelo menos
quando o seu conteúdo não seja restringido pela indicação de um tecto máximo de
responsabilidade - acima do qual a garantia não responde – eventualmente associado a
uma limitação temporal para o surgimento dos créditos posteriores).
Quando se conclua pela ausência de identificação da obrigação assegurada,
importa especificar quais as consequências que daí advêm.2718
Para alguns,2719 o negócio de constituição de penhor será radicalmente inválido,
para outros2720 acarretará simplesmente a impossibilidade de proporcionar ao
as dívidas que, não estando embora vencidas, se tenham constituído até à data da eficácia da denúncia”
(o Autor não deixa de reconhecer que esta solução pode ser prejudicial para o credor, mas replica que este
“tem um remédio à mão: basta que exija ao devedor a prestação de uma fiança mais segura sob o ponto
de vista de continuidade temporal: basta que exija uma fiança por tempo indeterminado, ou a termo
certo, com montante máximo estabelecido”).
2718
Salientando este aspecto, Gorla e Zanelli e Zanelli, ob. cit., pág. 5. De facto, não é indiferente a
qualificação jurídica da invalidade, importando distinguir, a este respeito duas situações diversas: quando
nenhum dos créditos supostamente garantidos pelo penhor esteja determinado ou seja determinável (se o
penhor for nulo, tal significa que nenhum crédito chegou a estar abrangido pela garantia, pelo que os
direitos de terceiros sobre o objecto do penhor – nomeadamente de um terceiro adquirente do bem -
prevalecem sobre o do pretenso credor pignoratício, adquirindo aquele o bem sem o ónus pignoratício);
ou quando o crédito determinado no momento da constituição do penhor se vem a extinguir
posteriormente (caso em que a aquisição do bem após a extinção do crédito garantido é perfeitamente
válida e oponível ao credor pignoratício, o mesmo acontecendo se a aquisição ocorrer quando o bem se
encontrava onerado pelo penhor, tendo em conta o princípio da elasticidade do direito de propriedade).
Se, pelo contrário, a sanção for a da mera ineficácia face a outros credores do empenhante, o direito do
credor, nas duas situações apontadas prevalecerá face ao do terceiro adquirente.
2719
Neste sentido, a propósito das cláusulas omnibus, Giovanni Colombo, ob. cit., pág. 197 e segs.. Para
este Autor, tais cláusulas violam o limite ínsito no art.º 2852.º do CCI, limite esse “stabilito nel generale
interesse alla tutela della libertà della proprietà – in concreto, a tutela dei terzi acquirenti del bene dato
in pegno, i quali devono poter desumere da idonei elementi oggettivi l’entità del vincolo a cui il bene è
sottoposto”, pelo que “la volontà di costituire un pegno con tale estensione urta contro un limite posto
nell’interesse dei terzi, sè che il negozio – per la parte relativa alla estensione del pegno – è nullo”
(quando muito, admite que semelhante clausulado possa dar vida a um direito de retenção – mesmo que
com dúvidas, por força da possibilidade de criação de um direito dessa natureza - não sem realçar que
“parrebbe opportuno che le banche abbandonino la clausula così come essa oggi è formulata, per evitare
di essere accusate di ricorrere a patti invalidi nella speranza che la controparte, meno giuridicamente
agguerrita, dia ad essa esecuzione ignorandone l’invalidità”). Por outro lado, o Autor desvaloriza a
distinção entre a radical nulidade do penhor e a sua simples inoponibilidade, sugerindo que tal diferença
766
beneficiário da garantia um direito de preferência sobre os bens empenhados, sendo o
penhor válido, mas a sua eficácia diferida para o momento do surgimento efectivo do
crédito2721 (ou, noutros termos, reconhecendo à cláusula em questão a idoneidade para
apenas releva em duas hipóteses, isso é, quando nenhum dos créditos supostamente garantidos pelo
penhor seja determinado ou determinável e quando o crédito determinado no momento da constituição do
penhor se tenha já extinto: na primeira, “dire che il pegno è nullo equivale a dire che esso non è mai sorto
a garanzia di alcun credito: pertanto, se il costituente ha poi venduto ad un terzo la cosa data in pegno,
quel terzo ha acquistato una proprietà piena, non gravata del pegno”; na segunda, a extinção do crédito
determinado implica o mesmo efeito relativamente ao penhor, não obstante a existência de outros créditos
aos quais havia sido genericamente alargada a garantia, pelo que “la successiva alienazione del bene da
parte del costituinte comporta, in capo all’acquirente, l’acquisto della proprietà piena del bene; ne
consegue anche pur chi abbia acquistato il bene quando ancora era gravato da pegno diviene
proprietario pieno, per il principio della elasticità del dominio, nel momento in cui si estingue il debito
determinato, l’unico a garanzia del quale il pegno era stato validamente costituito”. Também Salinas
Adelantado, Il pegno cit., pág. 617 e segs., propende para a “nulilità senza che sia neanche possibile la
conversione in un diritto di ritenzione” e nem num direito de preferência (pois, em seu entender, os
requisitos impostos pelo art.º 2787.º do CCI são-no como condição de surgimento do direito de penhor e
não apenas do direito de preferência), mas, em seguida, admite que a cláusula possa funcionar como um
pré-contrato de penhor (com o efeito que “quando il credito garantito venga finalmente ad esistenza per
costituire il pegno basterà indicarlo in un documento con data certa, potendosi per gli altri elementi fare
semplicemente rinvio al contratto iniziale”, surgindo o direito real apenas nesta última data). Pierpaolo
Marano, ob. cit., pág. 124 e segs., notando ser esta igualmente a posição da doutrina maioritária, a qual se
pronuncia pela “nulilità della clausula di estensione del pegno a tutti i crediti della banca verso quel
determinato cliente e dunque a ritenere nullo il pegno per la parte relativa “all’estensione” della
garanzia”, posição essa subscrita pelo próprio Autor (não sem ignorar que alguns Autores – indicados na
pág. 127, nota 49 – apesar de sustentarem a nulidade da cláusula, defendem que a mesma possa produzir
efeitos como um pré contrato de penhor, com o alcance de quando o crédito garantido vier finalmente a
surgir, para constituição do penhor bancário bastará a redacção de um documento com data certa -
encontrando-se os demais elementos já determinados por referência ao contrato inicial – constituindo-se o
penhor, com a inerente preferência, apenas quando se conseguir identificar o crédito garantido). Esta
posição é seguida também por Giovanni Stella, ob. cit., pág. 170 e segs., a respeito das cláusulas omnibus,
por entender que estas cláusulas apenas consentem a identificação dos sujeitos, mesmo na parte em que
alarga o penhor a outros créditos presentes, “giacché quest’ultimi, nella clausola in questione, non
possono dirsi, comunque, sufficientemente indicati”. No nosso direito, defende a nulidade do penhor em
caso de indeterminação do respectivo objecto, Hugo Dias, Do penhor cit., págs. 290 e 293. Para o direito
espanhol, vide Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 283 e segs., recusando a ideia que a cláusula
possa ser convertida num direito de retenção ou num penhor amputado de efeitos erga omnes, afirmando,
ao invés, que “quando nazca el crédito garantizado, para constituir la prenda bastaría con indicar el o
los créditos en un documento público en el que, para lós demás elementos de la prenda, se hará una
remisión al título constitutivo inicial. Nótese, sin embrago, que la prenda nascerá sólo en el momento en
que se determine el crédito garantizado, y no antes” (o Autor ressalva ainda que tal nulidade não pode
afectar a garantia relativamente aos créditos determinados no momento da constituição daquela).
2720
Neste sentido, Gorla e Zanelli, ob. cit., pág.24, nota 2 e pág. 26 (admitindo que a cláusula possa
produzir efeitos inter-partes, nomeadamente um direito de retenção, traduzido na impossibilidade de o
concedente exigir a restituição do bem empenhado durante o tempo acordado para o eventual nascimento
de um crédito entre as partes, assim permitindo uma certa indisponibilidade do objecto), Marino Perassi,
ob. cit., pág. 494 (sustentando ser este o entendimento mais conforme à letra do art.º 2787.º, porquanto a
observância dos requisitos por ele exigidos é condição apenas do surgimento do direito de preferência),
Rubino, Determinatezza cit., pág.479 (realçando que, mesmo quando se reconhecesse a nulidade do
contrato de penhor, o mesmo poderia ser convertido num contrato-promessa de penhor), Lelio Barbiera,
ob. cit., pág. 730 (embora não tomando posição directamente sobre o assunto, reconhece ser esta a
posição dominante da doutrina e da jurisprudência) e Gaetano Piepoli, ob. cit., pág. 51 (embora
discordando, assume ser esta a posição dominante). Duvida desta possibilidade Realmonte, Il pegno cit.,
pág. 636, pois tal significaria a imobilização do bem dado em garantia, em contraste com os ditames da
própria lei.
2721
Reconhece a presença destas duas posições Francesco Magni, ob. cit., pág. 373 e segs., salientando
que a última delas, ao admitir a validade do penhor, permite que o credor pignoratício exerça todos os
direitos inerentes à garantia (como o direito de retenção, de requerer a respectiva venda em caso de
incumprimento do devedor e de opor o direito aos terceiros adquirentes), com excepção da preferência;
767
legitimar um direito de penhor, impondo ao devedor a obrigação de concretizar as
formalidades necessárias para o surgimento do direito de preferência).2722 Finalmente,
há até quem, mais radicalmente, declare a nulidade do inteiro contrato2723
Porém, a posição daqueles que sustentem a simples inoponibilidade da garantia
(ao invés da sua radical invalidade) pode ser contestada, alegando que não fará sentido
falar de um direito de penhor amputado de efeitos face a terceiros,2724 pelo que “o il
pelo contrário, a nulidade do penhor acarreta a impossibilidade de o credor exercer qualquer direito
relativamente ao bem objecto da garantia (não sendo, na opinião do Autor, sequer lícita uma conversão da
cláusula nula no sentido de esta atribuir ao credor um direito de retenção, pois tal representaria a
atribuição convencional de um direito de retenção oponível erga omnes e, por outro lado, caso se
reconhecesse essa oponibilidade nenhuma razão haveria para excluir o direito de preferência). Por último,
assevera que a jurisprudência maioritária se inclina para a tese da inoponibilidade, embora a questão não
assuma especial relevância, uma vez que a maior parte das controvérsias surge a propósito da
oponibilidade da garantia a outros credores do empenhante.
2722
Enrico Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 7, salientando que a eficácia externa deste tipo de
cláusulas é vedada pelo carácter de ordem pública da norma – art.º 2787.º, n.º 3, do CCI – que impõe a
observância de determinados formalismos como condição de atribuição do direito de preferência. Em
particular Giovanni Stella, ob. cit., pág. 179 e segs., depois de refutar que as cláusulas ominbus e de
extensão amputadas do direito de preferência se possam considerar como produtivas de efeitos inter
partes (as primeiras porque o contrato em questão seria um contrato atípico – e não um contrato de penhor
– tendo como objecto a retenção e venda do bem entregue ao futuro credor e, por outro lado, porque,
mesmo para a atribuição de tais efeitos seria necessária, nos termos gerais, a determinação dos créditos
em questão; as segundas em virtude de, no direito italiano, o direito de retenção a favor de outros créditos
já decorre da lei – art.º 2794.º do CCI – e, ainda, de o alargamento contratual de tal direito não ser
oponível a terceiros adquirentes e, por isso, não limitar a faculdade de disposição do devedor: em suma
“ad un eventuale contratto di pegno con effetti solo tra le parti (…) non avrebbe neppure più senso
parlare di pegno. La configurazione di un pegno quale mero diritto personale, contrapposto al normale
pegno reale, è contraria al diritto positivo e alla tradizione giuridica dell’istituto”), admite que tais
cláusulas possam significar um título para a constituição do penhor, considerando que, mesmo na falta do
documento escrito erigido como condição legal da atribuição do direito de preferência, “si potrebbe
ravvisare nel pegno omnibus la sussitenza, a favore del creditore, di un titolo per la costituzione del
pegno: l’accordo (scrito) di pegno e la consegna al creditore del bene vincolato obbligherebbero il
debitore, nel momento in cui verrà ad esistenza il credito, a completare l’atto costitutivo del pegno,
redigendo le formalità richieste per la prelazione” (esclarecendo, contudo, que tal título apenas possui
eficácia pessoal, sendo por isso inoponível a terceiros, nomeadamente em caso de disposição do bem por
parte do devedor).
2723
Vide algumas decisões citadas por Pierpaolo Marano, ob. cit., págs. 126 e 127, fundamentam-se no
carácter essencial desta cláusula no âmbito do próprio contrato (embora o Autor se incline para qualificar
esta cláusula como uma cláusula de estilo, “la cui nullità parziale non si comunica all’intero negozio, sì
da non pregiudicare l’efficacia della prelazione relativamente al singolo credito specificamente indicato
nel contrato”.
2724
Michele Tamponi, ob. cit., pág. 215 e segs., critica, em razão da sua obscuridade, a distinção entre a
eficácia inter partes da cláusula e sua ineficácia relativamente a terceiros. Em causa estava uma decisão
da Corte de Cassação que reconhecia à cláusula de extensão do penhor simples efeitos inter partes,
recusando ao credor pignoratício o direito de vender o bem empenhado (caso existissem outros credores
ou se a propriedade da coisa tivesse sido entretanto adquirida por terceiros). Ora, o Autor citado assegura
que “un diritto di pegno che non consenta al suo titolare di prevalere sugli altri creditori e sui
subacquirenti, è interamente svuotato di contenuto”, surgindo a redacção de um documento escrito
contendo a suficiente indicação do crédito garantido e do objecto da garantia, não como simples condição
do nascimento do direito de preferência, mas sim do próprio direito de penhor (o art.º 2787.º, n.º 3, do
CCI, ao exigir a redacção daquele documento quando o crédito garantido exceda €2,58 é interpretado pelo
Autor desta forma: mesmo que o crédito seja de montante inferior ao aludido, será sempre necessária a
sua indicação, não só para o surgimento da preferência, mas do próprio direito de penhor; quanto ao bem
empenhado, a sua identificação “si attua implicitamente, con la mera consegna, se il credito non supera
le lire 5.000, con la consegna e la scrittura di data certa, se eccede quella somma”), para além de
asseverar que a tal conclusão não se poderia objectar que nem sempre o penhor assegura concretamente a
preferência, em razão da existência de outras causas de preferência com graduação superior (pois em tal
caso “la prelazione non funziona non già per cause interne al contratto costitutivo, ma perché gli altri
768
pegno sorge, ed in tal caso alla validità inter partes conseguirà direttamente lo jus
prelationis nei confonti dei terzi creditori chirografari, o esso non viene ad esistenza, ed
in tal caso neppure effeti obbligatori tra le parti scaturiranno”.2725
Em face dos dados do direito positivo (art.º 280.º, n.º 1), a resposta, no
ordenamento luso, não pode ser outra que não a nulidade da cláusula omnibus no seu
todo ou, no caso das cláusulas de extensão, do seu alargamento àqueles créditos não
devidamente determinados, embora, em qualquer caso, tal invalidade não obste
inelutavelmente, no caso das cláusulas de extensão, à aplicação do instituto da redução
dos negócios jurídicos (art. 292.º).2726
creditori sono titolari di cause di prelazione poziori”). Por último, salienta que “ove la mancanza della
scrittura portasse ad escludere soltanto la prelazione, e non il diritto di seguito, i terzi subacquirenti si
troverebbero sforniti di una qualunque tutela”.
2725
Michele Tamponi, ob. cit., pág. 220 e segs., recusando a subsistência de quaisquer efeitos apenas inter
partes. De facto, o Autor nega que da cláusula de extensão se possa retirar a obrigação do devedor
cumprir (pois este decorre, obviamente, do nascimento da obrigação garantida) ou de colocar à disposição
do credor, em caso de incumprimento, os bens mencionados na cláusula (pois tais bens, como todo o
património do devedor, respondem pelas suas dívidas), bem como um pretenso direito de retenção (pois
das duas uma: ou tal direito de retenção seria inoponível ao devedor – e não teria qualquer efeito – ou, ao
invés, sendo oponível a terceiros, “non sussiterebbe ragione alcuna di escludere che dalla stessa possa
discendere lo jus prelationis proprio del pegno”) ou o ónus do credor se satisfazer primeiramente sobre
os bens mencionados na cláusula (pois tal consequência já resulta das normas processuais). Contra este
entendimento vide, entre outros, Giovanni Colombo, ob. cit., págs. 204 e 205, para quem a forma escrita
apenas é exigida como condição da concessão do direito de preferência, na medida em que “il contratto
costitutivo di pegno è un contratto reale a forma libera, non un contratto reale e formale, perciò il titolo
idoneo per l’acquisto del pegno sul bene non richiede affatto la forma scritta”, produzindo, desde o
momento em que se verifique o mútuo consentimento, um efeito relevantíssimo, qual seja a atribuição do
direito de sequela (pelo que, se após a constituição do penhor, o bem for alienado a terceiro, o credor
pignoratício conserva o direito de vender o bem e de se satisfazer, embora sem preferência, sobre o
produto dessa venda), sem que exista qualquer incongruência na sujeição do direito de preferência,
contrariamente à sequela, ao momento da redacção do documento escrito contendo uma suficiente
indicação do objecto da garantia e do crédito assegurado (por estarmos perante dois conflitos diversos,
um, entre o credor pignoratício e os demais credores do empenhante relativo à participação no produto da
venda do bem empenhado; outro, entre o credor pignoratício e o proprietário do bem empenhado, tendo
como objecto a existência ou não de um direito real: “per dirimere il primo conflito la legge, ad evitare
collusioni tra debitore e creditore a danno degli altri creditori, esige che la causa di prelazione sia
costitutita su beni specificamente indicati e a garanzia di un credito specificamente indicato in data
sicuramente anteriore all’atto di pignoramento di quei beni, e per ottenere ciò non può che affidarsi ad
un scritto di data certa (essendo impensabile attribuire data certa ad un atto orale). Per dirimere il
secondo conflito, quello tra proprietario e titolare del diritto reale di pegno, la legge ricorre al criterio di
soluzione tipico dei conflitti tra titolari di diritti reali su beni mobili, cioè al possesso di buona fede
fondato sul titolo idoneo; e se il titolo idoneo per l’acquisto di diritti reali su beni mobili è per regola un
negozio orale, non v’è ragione che solo per il pegno esso debba essere scritto”).
2726
Verificando-se a indeterminação do crédito garantido coloca-se, então, a questão de saber se tal
invalidade contamina toda a garantia, distinguindo Januário da Costa Gomes, ob. cit., págs. 703 e 704, a
propósito da fiança, três tipos de situações: no caso de uma cláusula base, identificando um crédito ou
conjunto de créditos garantido, acoplada à qual existe uma cláusula de extensão indeterminada, o Autor
conclui que a invalidade desta última não afecta a subsistência da primeira (por força da aplicação das
regras gerais da redução do negócio jurídico – cfr. art.º 292.º – e porque, se assim não fosse, a invalidade
total significaria premiar injustificadamente o fiador); já quando se trate de uma cláusula omnibus
redigida de modo a abarcar, indistintamente, os créditos que motivaram a prestação da fiança e o universo
de possíveis operações futuras, tal redução afigura-se, em razão da incindibilidade da cláusula, inviável
(excepcionando o caso em que, por invocação do princípio da boa fé, se demonstre ser abusiva a
pretensão do fiador de pretender a anulação total da garantia); finalmente, num caso idêntico ao anterior,
mas em que é feita alusão, por um lado, aos créditos existentes e, por outro, aos futuros, caso em que a
subsistência da primeira parte da cláusula está dependente da determinabilidade dos créditos existentes
(uma vez que o critério da actualidade destes não é, por si só, bastante para afirmar a sua licitude).
769
Pelo contrário, naqueles ordenamentos em que a identificação do crédito
garantido (rectius, a redacção de um documento escrito contendo suficiente
especificação, entre outras, do crédito garantido) seja condição de oponibilidade a
terceiros do penhor, ganha maior consistência a sanção da inoponibilidade da garantia a
estes, por inobservância de tal imposição legal.
2727
Salinas Adelantado, Il pegno cit., pág. 605 e segs., salienta que, pese embora as semelhanças entre as
duas situações, as soluções alcançadas a respeito das cláusulas omnibus – ou seja, quanto à determinação
do crédito assegurado – não são extensíveis à identificação do objecto da garantia.
2728
À imagem do exposto relativamente à identificação do crédito garantido, os preceitos específicos do
penhor não contêm nenhuma norma específica relativamente à necessidade de identificação do objecto da
garantia, pelo que não se coloca o problema, sentido no direito italiano, de saber se, a este respeito, a
norma específica em matéria pignoratícia (art.º 2787.º do CCI) se afasta da regra geral aplicável à
generalidade dos negócios jurídicos (art.º 1346.º do CCI) e, em caso afirmativo, qual prevalecerá: também
nesta sede, a doutrina dominante entende que o primeiro preceito afasta da regra geral, em razão da sua
natureza especial – neste sentido, entre outros, Maria Costanza, Valori mobiliari cit., pág. 1044.
2729
Veiga Copo, Prenda omnibus cit., págs. 35, em especial nota 5, considera como indícios de uma
garantia excessiva a afectação em garantia da totalidade – ou de uma imensa maioria – do património do
devedor; a constituição da garantia a posteriori; a não avaliação das garantias por terceiro; a proibição do
devedor obter outros financiamentos adicionais; que o valor dos bens onerados supere em mais de 130%
o valor das obrigações garantidas (a não ser que se trate de bens cujo preço seja particularmente volátil,
caso em que aquela margem poderá ser aumentada).
2730
Com a mesma salvaguarda, exposta a respeita das cláusulas omnibus, de o contrato relativo à
obrigação garantida se encontrar sujeito a tal formalidade e de a constituição da garantia constar de tal
negócio.
770
Por mais paradoxal que possa parecer, a não redução a escrito pode representar
um limite à determinação dos bens empenhados, pois, como se verá, a sua substituição
por outros no âmbito de uma mesma garantia (ou até a ampliação, em termos similares,
dos bens onerados) encontra-se normalmente condicionada à indicação, no documento
de constituição da garantia, dos bens que esta poderá vir a abranger futuramente: eis
uma razão adicional para reclamar a sujeição a escrito deste negócio.
Mais ainda, a determinação do objecto do penhor coloca-se em termos ainda
mais abrangentes em todos aqueles penhores, regulamentados por leis especiais, para
cuja constituição é dispensada a entrega material do bem, pois, nesses casos, torna-se
premente que aquela identificação se processe por uma via alternativa, que pode ser a
descrição do bem aquando do seu registo (como sucede no penhor de valores
mobiliários) e/ou a redução do negócio de constituição da garantia (solução consagrada,
por exemplo, para o penhor constituído em garantia de instituições bancárias).
Em suma, a necessidade de flexibilização da exigência do requisito da
determinação do crédito garantido constitui um argumento adicional para a sujeição a
forma escrita do contrato de penhor.
Que esta exigência de determinação do objecto empenhado não é cabalmente
assegurada pela entrega comprova-se pela circunstância de, naqueles ordenamentos em
que se exige a descrição do bem onerado no negócio constitutivo do penhor, persistir a
necessidade de entrega do bem ao credor ou a terceiro.
Nestes ordenamentos e termos perfunctórios, a generalidade da doutrina também
considera inválidas ou pelo menos amputadas do direito de preferência, as cláusulas que
não identifiquem devidamente os bens empenhados,2731 precisamente pelo perigo de
fraude para os demais credores do devedor que as mesmas comportam.2732
2731
Se, pelo contrário, no momento da constituição da garantia os bens não forem indicados (nem mesmo
através do género) ou ainda não existissem, deverá entender-se estarmos perante a constituição de um
penhor de coisa futura – Gabrielli, Il pegno cit., pág. 144.
2732
Assim, Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 175 e segs. (considerando que “Le note individuanti i
beni oggetto della garanzia devono peraltro essere necessariamente ricomprese nella parte descritiva del
regolamento contrattuale, per poterlo eventualmente, in un momento o in una fase successiva,
individuare in concreto”, sendo que “alla mancata individuazione non seguirebbe la nullità del negozio,
ma (….) unicamente la sua inefficacia reale”), Gorla e Zanelli, ob. cit., pág.59 e Francesco Magni, ob.
cit., pág. 378 e segs., chamando este último a atenção para a ausência de desapossamento e de redacção
de um documento contendo a suficiente indicação do crédito garantido no momento da constituição
garantido, fazendo com que tal garantia resultasse do mero empossamento, mesmo que acidental do
credor, admitindo, quando muito, que tal convenção produzisse efeitos obrigacionais (alertando para o
facto de tal conclusão valer não só quando o penhor recaia sobre bens futuros – isto é, não existente na
natureza – como também quando incida sobre um bem presente mas indeterminado e que não esteja na
posse do credor, pois “assumono rilievo unicamente l’individuazione ed il possesso del bene, entrambi
mancanti al momento della sottoscrizione”), assegurando ser essa a posição da jurisprudência dominante,
para a qual este tipo de cláusulas não produz qualquer efeito se não for acompanhada, a cada acto de
empossamento dos sucessivos bens, de uma identificação escrita dos mesmos ou se contiver uma
descrição suficiente dos bens sobre os quais o penhor se espraiará, pelo que o simples empossamento
futuro do credor não permite o nascimento do direito real, enquanto não existir um documento escrito
com a indicação do género, espécie e quantidade dos bens onerados (nem tão pouco será suficiente, para
este efeito, que os bens posteriormente detidos pelo credor sejam mencionados na escrituração interna do
credor, pois estes documentos têm carácter unilateral). Também Lelio Barbiera, ob. cit., pág. 731, admite
que a doutrina tradicional se inclina para a nulidade de tais cláusulas (atenta a fraude que as mesmas
representam para os demais credores do empenhante), não sem fazer menção de algumas vozes admitindo
que tais cláusulas possam originar um penhor desprovido do direito de preferência, enquanto Piscitello,
Le garanzie cit., págs. 12 e 13, nota 23, se inclina para a tese da validade da cláusula, mas amputando a
garantia do direito de preferência (para o surgimento do qual será imperiosa a redacção de um posterior
documento contendo a descrição dos ulteriores bens relativamente aos quais o penhor se espraiará).
771
Ou seja, o recurso a cláusulas em tudo análogas, do ponto de vista do bem
onerado, às analisadas cláusulas omnibus respeitantes aos créditos garantidos,
estendendo o penhor à generalidade dos bens propriedade do empenhante já detidos
pelo credor ou que, no futuro, se venham a encontrar em poder deste, é verberado pela a
doutrina jurisprudência predominantes, nomeadamente italianas, atendendo sobretudo à
necessidade de protecção de terceiros2733
No entanto, alguns admitem a sua validade, advogando que a individualização e
o desapossamento dos bens onerados poderão ter lugar após o acordo das partes relativo
à constituição da garantia, desde que o modo de especificação não seja demasiado
genérico, desligado do comportamento das partes ou referido a factos acidentais2734 (ou,
em alternativa, considerando que semelhante penhor constitui uma fattispecie
2733
Vide, por exemplo, o Acórdão da Corte de Apelo de Turim de 12/4/1974 (com nota favorável de
Giuseppe Stolfi, In tema di pegno cit., pág. 224 e segs.). Com efeito, admitindo-se uma tal indicação
genérica dos bens onerados pela garantia, os terceiros credores do empenhante poderiam ser defraudados,
pois bastaria que qualquer bem passasse para o poder do credor, a qualquer título, para passar a estar
abrangido pelo penhor, traduzindo-se num penhor de bens indetermináveis (e determináveis unicamente
através da mesma formalidade constitutiva do penhor, isto é, o empossamento do credor) – Pierpaolo
Marano, ob. cit., págs. 131 e 132, acrescentando que tais cláusulas configuram uma proibição de
alienação que não corresponde a qualquer interesse legítimo e, além disso, uma “maxi-garanzia”. Já
Stefano Ambrosini, ob. cit., pág. 319 e segs., considera tais cláusulas inoponíveis a terceiros
(designadamente aos demais credores do empenhante), admitindo apenas que as mesmas possuam efeitos
negociais entre as partes, enquanto Carla Carrasi, ob. cit., pág. 316, admite a existência de dois
entendimentos contrapostos, um negando a validade de tais cláusulas (afirmando que com o “mero
riferimento agli oggetti posseduti o che verrano in possesso della banca i terzi (altri creditori)
potrebbero facilmente essere frodati”), outro sustentando a sua validade (ao menos desde que sejam
indicados “i beni – ulteriori rispetto a quelli costituiti in pegno – ai quali l’impegno stesso si estende per
il saldo risultante da tutte le operazioni di credito incluse in un rapporto di (ad es. n.d.r.) conto corrente
in atto”). Em face do direito espanhol, Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 38 e segs., entende não ser
bastante a consideração do penhor como uma relação complexa, na qual o devedor daria o seu
consentimento inicial à sujeição à garantia de todos os bens que viessem a estar em poder do credor
pignoratício, uma vez que “No se trata aquí de una concesión en prenda de bienes futuros, sino de una
concesión en prenda de bienes indeterminados e determinables solamente con la misma formalidad
constitutiva de la prenda (imposesión)”, assegurando, ainda, que as indicações conducentes à
determinação dos bens dados em garantia devem constar do próprio documento que contenha o
consentimento das partes, e não de outro a redigir posteriormente (para além de aquele documento inicial
dever conter a enumeração dos bens ulteriores que poderão vir a ser atingidos pela garantia).
2734
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 144, afirmando que o efeito de garantia “soltanto a decorrere dal
momento dell’effettiva sottoposizione della res ad un vincolo di indisponibilità a favore del creditore, nei
cui confronti si realizzerà la situazione di vantaggio derivante dal dato materiale del possesso, alla quale
seguirà anche l’effeto di prelazione, se vengono rispettate le modalità relative alla sua produzione” e
qualificando a operação como uma “fattispecie a formazione progressiva”, com três fases distintas –
prestação do consenso, empossamento do bem e individualização por escrito - operando uma cisão entre a
concessão do penhor (que produz apenas efeitos obrigacionais, traduzidos no dever do empenhante de
levar a cabo todos os comportamentos necessários ao surgimento da garantia, designadamente na
identificação escrita do bem a empenhar) e a constituição da garantia (vide Il pegno anomalo cit., págs.
176 e 177 - coloca reservas a este entendimento Francesco Magni, ob. cit., pág. 379 e segs., notando que
o dever do devedor se circunscreve aos bens que venham a encontrar-se na disponibilidade do credor,
pelo que o mecanismo “assume rilievo pratico solo se la banca entra in possesso di beni del debitore,
mentre fino a quel momento la clausula di fatto non è operativa”). Em alternativa, poder-se-á considerar
– recorrendo à ideia de penhor sem preferência - que o penhor surge, relativamente ao devedor e aos
terceiros não credores deste, da conjugação do consenso do devedor a que todos os seus bens futuramente
detidos pelo credor estejam onerados com o empossamento deste, dependendo a operatividade da garantia
face aos terceiros credores da redacção de um documento escrito com a suficiente indicação do bem
empenhado (contra, Francesco Magni, ob. cit., pág. 380, alegando que, desse modo, se cria
convencionalmente um direito de retenção oponível a terceiros).
772
complexa,2735 seja apelando à necessidade de adaptação do regime geral do penhor às
específicas necessidades das relações bancárias).2736
Com efeito, algumas posições doutrinais têm procurado obviar a que a garantia
não possa incidir sobre bens futuros ou que ainda não se encontram em poder do
empenhante no momento da constituição da garantia, consentindo que as partes, no
momento constitutivo da garantia, façam menção dos bens que posteriormente (em
relação ao objecto inicial do penhor) poderão vir a ser abrangidos pelo vínculo
pignoratício.2737
Por outro lado, mesmo quando tais cláusulas, amputem o penhor do direito de
preferência (por violação da imposição legal de determinação), poderão ser
consideradas como válidas e produtoras de efeitos entre as partes, podendo originar a
obrigação do devedor de, posteriormente, estender a garantia a outros bens, apenas no
momento em que forrem preenchidas as condições legais de oponibilidade da
garantia.2738
2735
Mais concretamente, o empenhador, ao aceitar tal cláusula, prestaria o seu consentimento para a
sujeição ao penhor os bens que, no futuro, se viessem a encontrar em poder do credor. Tal figura
complexa completar-se-ia, precisamente, com a detenção dos bens por parte do credor, “poiché il
preventivo consenso costituisce il titolo del mutamento del’animus detinendi in animus possedendi e
dunque il titolo del necessario impossessamento a titolo di pegno” – Pierpaolo Marano, ob. cit., págs. 130
e 131 (mesmo que se entenda que tal penhor se encontra destituído do direito de preferência, em razão da
ausência do documento escrito com data certa, tal apenas determinará a inoponibilidade do direito aos
credores quirografários, mas não ao proprietário e aos terceiros adquirentes).
2736
Particularmente tendo em conta a circunstância de a relação que se estabelece entre a banca e os seus
clientes não costuma reduzir-se a uma determinada operação económica, antes desdobra-se numa
multiplicidade de negócios que se arrastam num período normalmente dilatado (para além disso, a
existência de eventuais abusos por parte da banca não constitui razão suficiente para não admitir este tipo
de cláusulas, pois trata-se de uma questão de boa fé no exercício de um direito) – Pierpaolo Marano, ob.
cit., pág. 131.
2737
Neste sentido, Gabrielli, Il pegno cit., págs.143 e 144, Il pegno anomalo cit., pág. 15 e segs. e também
em I negozi costitutivi cit., págs. 166 a 167 (afirmando nesta último obra que o penhor não será oponível
a terceiros “fino a quando non si indichi, in una scritura munita di data certa, quali siano i beni, ulteriori
rispetto a quelli oggetto dell’iniziale pegno, ai quali il vincolo si estende. Sarebbe necessario, per
realizzare quell’effetto, procedere alla redazione di altri atti che contegano l’indicazione del credito
garantito e dei beni costituiti in pegno, man mano che gli stessi entrino in possesso della banca”).
Todavia e como bem salienta o citado Autor, mesmo quando sejam respeitadas estas formalidades,
cumpre ainda indagar se estaremos ou não perante o surgimento de novos penhores, ou seja, se o
cumprimento de tais formalidades importa o nascimento de uma nova garantia ou, pelo contrário, não
produz efeitos novatórios sobre o penhor originariamente prestado.
2738
Sendo que o incumprimento desta obrigação fará incorrer o infractor no dever de indemnizar o dano
causado ao credor, à semelhança do que sucede no chamado penhor de coisa genérica (neste sentido
Gabrielli, Il pegno cit., pág. 144). Outra alternativa, passa pela possibilidade de o credor intentar uma
acção de execução específica, “che, per effetto del consenso sulla clausula di cui ci occupiamo e del
successivo impossamento, per un certo credito è sorto il pegno su quel certo bene; la sentenza dovrebbe
essere ritenuta sufficiente ad integrare la scrittura di cui all’art. 2787 c.c. (o a fungere di equipollente di
tale scrittura), e la data certa si farebbe decorrere, per gli effetti propri del giudicato, dal giorno della
citazione in giudizio” – Giovanni Colombo, ob. cit., pág. 207 (admite igualmente o recurso à execução
específica Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 15 e 16, realçando que a sentença, neste caso, “avrebbe
una funzione corrispondente a quella assolta nel caso di inadimplemento del contratto preliminare”,
produzindo os efeitos, não tanto do contrato não celebrado, mas da documentação não assinada pelo
devedor, admitindo que da cláusula de alargamento do penhor a outros bens para além dos
originariamente empenhados deriva, para o empenhante, essa obrigação). Esta posição, segundo Salinas
Adelantado, El régimen cit., pág. 219 e segs., qualifica esta interpretação como sucessiva, com o
resultado de “en el momento de la constitución inicial de la prenda ésta sólo sería tal par a los valores y
saldos que en ese momento estuviesen en poder del banco, mientras que para los otros sería necessario
que se produjese el traspaso de la posesión y la redacción de un nuevo documento público” (posição esta
que o Autor contesta, tanto ao nível dogmático – refutando que “se pueda decir que la prenda ya existe
773
Em termos mais concretos, ao subscrever um contrato de penhor contendo uma
cláusula dessa índole, o empenhante concederia ao credor pignoratício o direito de
sujeitar ao penhor os bens que posteriormente entrem em poder deste último, desse
modo completando o iter procedimental de constituição da garantia, funcionando o
consentimento prévio como título para a inversão do animus possidendi do credor
pignoratício: de animus detinendi para animus possidendi.2739
Mais ainda, para quem identifique o objecto do penhor como o valor económico
do bem onerado, ao menos na fase de execução, é possível dar um passo ulterior e
dispensar o cumprimento das formalidades a cada substituição do quid onerado.2740
De acordo com esta perspectiva mais elástica, será possível a substituição (e até
o incremento e a diminuição)2741 dos bens originariamente onerados, sem prejuízo da
para todos los objetos pero que no goza de eficacia erga omnes, ya que, en nuestra opinión, si la prenda
es un derecho real de garantía, no se puede sostener que exista una prenda sin eficacia erga omnes” -
quanto no que concerne aos seus efeitos, porquanto não permite a conservação da data incial para efeitos
de direito de preferência).
2739
Neste sentido, Giovanni Colombo, ob. cit., pág. 201 e segs., embora não deixando de assinalar a
indispensabilidade, para efeitos de atribuição do direito de preferência, de “via via che nuovi beni del
cliente entrino in possesso della banca, alla redazione di atti scritti i quali indichino il credito garantito e
i beni costituiti in pegno”. O Autor preocupa-se ainda em rebater alguns dos argumentos mais utilizados
para negar a validade de tais cláusulas, como sejam, o facto da mera referência aos objectos que venham
no futuro a estar em poder do credor pignoratício poder lesar os demais credores do empenhante (pois
bastaria ao empenhante entregar um objecto ao seu credor para ele ficar abrangido pela garantia) ou o
terceiro adquirente (pois, por força do princípio da posse vale título, a entrega dos bens a um credor de
boa fé faria o seu direito suplantar o daquele terceiro adquirente): quanto ao primeiro, “non può
realizzarsi, posto che per la prelazione - - non basta certo la clausula in esame e il succesivo
impossessamento, ma è necessario l’atto di data certa contenente la sufficiente indicazione de la cosa”;
quanto ao segundo, “non è più grave di quello che sempre incombe su ogni acquirente di bene mobile il
quale non consegua il possesso contestualmente alla stipulazione del negozio”. Por outro lado, sustenta
que a lei não impõe uma identificação dos bens no momento da constituição do penhor, apenas a exigindo
como condição do surgimento da preferência, esclarecendo que “la individuazione è necessaria – per la
natura reale del diritto di pegno – nel momento in cui il pegno sorge, ma non si vede quale principio
imponga di desumere da questa constatazione la necessità di individuazione dei beni già nella fase
prodomica della manifestazione del consenso”. Em termos paralelos, Gabrielli, Il pegno anomalo cit.,
pág. 175 e segs., alvitrando que este tipo de cláusulas possuem “un valore impegnativo inter partes,
quanto meno in ordine ai materiali comportamenti che le parti si impegnano a porre in essere per la
successiva estensione del preesistente vincolo di garanzia ad altri e successivi crediti e/o beni”
(acrescentando que, do ponto de vista dogmático, a cláusula em questão deverá ser incluída no âmbito do
penhor de coisa genérica – que apenas produzirá efeitos quando o credor obtiver a posse do bem e sejam
preenchidos os outros requisitos de que depende a atribuição do direito de preferência - ou de coisa futura
– quando os bens não sejam identificados sequer quanto ao género ou tão pouco existam no momento da
conclusão do contrato).
2740
É a posição sustentada por Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 221 e segs., contestando que a
finalidade do penhor seja, pelo menos em sede de execução (apenas na fase de segurança se poderá
afirmar ser a coisa o quid sobre o qual recai a garantia), a obtenção a coisa objecto da garantia, mas antes
o valor económico que dela pode ser retirado (como argumento adjuvante deste entendimento o Autor
invoca a norma proibitiva do pacto comissório, dado que “Si el acreedor pignoraticio no puede
apropriarse del objeto de la prenda sin valorar que éste coincide con la cantidad garantizada es porque,
en realidad, el objeto de su derecho no es la cosa en sí, sino su valor económico”). Ainda assim, o Autor
sustenta a necessidade de estabelecer as classes de bens que, em concreto, podem a vir a fazer parte da
garantia (embora não impondo a sua descrição minuciosa, “basta con hacer referencia a valores y
saldos”) e, ainda, a fixação de um valor máximo a que pode chegar a garantia (que não tem que coincidir
com o valor do crédito garantido, admitindo o Autor que possa superar o valor deste em 10%: sem suma,
“la consideración de los concretos elementos que integran la garantía como fungibles” (no entanto, no
caso dos valores mobiliários escriturais, surge um obstáculo adicional, qual seja o facto de “en la
inscripción de los valores que se incluyan en un momento posterior a la constitición inicial de la prenda,
constará como fecha de constitución la de la aidicón e no la inicial, con lo que los terceros podrían
alegar que ésta y no la otra es la fecha desde que la prenda les es oponible”).
774
manutenção do grau de preferência inicial, nos termos que se esclarecerão ao abordar a
problemática das cláusulas rotativas.2742
Claro que esta faculdade de alteração dos concretos bens abarcados pelo penhor
se mostra mais adequada para determinados bens, como os fungíveis (sujeitos a mistura
como outros do mesmo ou de género diverso, não contendo características que os
permitam distinguir de outros da mesma espécie, como acontece com alguns títulos de
crédito2743 e valores mobiliários (seja antes da respectiva emissão, seja mesmo em
momento posterior)2744 ou submetidos a um processo de transformação (nomeadamente
2741
Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 237 e segs., justifica a necessidade de ir além da mera
substituição sem modificação do valor global do objecto do penhor com a probabilidade de o produto da
venda dos valores que integram uma carteira de valores não serem imediatamente reinvestidos,
permanecendo na conta que o gestor possui do seu cliente “con lo que su posterior inversión en valores
no podría calificarse estrictamente como sustitución”. Todavia e para prevenir abusos
(“Fundamentalmente, por la possibilidad de que se cree por la connivencia entre el banco y el cliente un
credito aparente que justificasse la extensión de la prenda a todos los elementos depositados in extremis
en el banco”), no caso de aumento da garantia dever-se-á estabelecer uma quantidade máxima de valor
pelo qual o conjunto onerado responda; paralelamente, em caso de diminuição caberá estipular um limite
mínimo relativamente ao montante garantido por penhor (ou seja, à medida que o crédito seja liquidado,
consentir-se-á ao devedor desonerar uma parte proporcional dos bens empenhados), limite este que
deverá assegurar uma margem de garantia que acresça ao montante em dívida a cada momento (assim se
afastando, por convenção das partes, o princípio indivisibilidade da garantia).
2742
Acerca dos efeitos e dos requisitos de legitimação das cláusulas rotativas, vide infra n.º 3.1 do
Capítulo II.
2743
Quanto aos títulos de crédito, Carlo Rimini, ob. cit., pág. 194 e segs., entende ser necessária a
indicação, para cada um deles, da respectiva data de vencimento, do nome do emitente e da importância
do crédito nele incorporado, esta última menção considerada particularmente importante tendo em vista a
tutela dos demais credores (em sentido conforme, vide os Acórdãos do Tribunal de Bolonha de 18/1/1996
e de 3/12/1996, transcritos no memo local), rejeitando que o conteúdo do contrato possa ser retirado da
combinação do contrato escrito com os diversos endossos que o houvessem concretizado (por possibilitar
a substituição dos títulos inicialmente empenhados por outros, com prejuízo para os demais credores) ou
da enumeração dos títulos dados em penhor em documentos separados do contrato constitutivo de penhor
(pois nada garante que essa enumeração não venha a ser alterada em momento posterior). Já Pierpaolo
Marano, ob. cit., pág. 130, dá conta de uma desconformidade, ao nível judicial, entre a posição mais
exigente da jurisprudência de mérito (exigindo a indicação do número, do valor total dos títulos, assim
como a primeira e a última data de vencimento) e a menos rígida da Corte de Cassação (para qual bastará
a indicação da simples menção da natureza do título e do montante do crédito incorporado, alegando que
o art.º 2787.º, n.º 3, do CCI – em homenagem a sua ratio de evitar a substituição do bem originariamente
empenhado por outro de maior valor - não impõe a descrição de todos os elementos da coisa empenhada),
enquanto para Stefano Ambrosini, ob. cit., pág. 319 e segs., importa distinguir consoante os títulos sejam
fungíveis (caso em que bastará a identificação do emitente, da data de vencimento e da série de emissão)
ou não fungíveis, designadamente em função do seu diverso valor (caso em que será necessária ainda uma
identificação numérica dos títulos empenhados). Especificamente no que concerne aos títulos ao portador,
Silvia Lovisatti, ob. cit., pág. 704, aponta a existência de três entendimentos contrapostos: um, mais
liberal, sustentando bastar a indicação da natureza do título e do montante do crédito nele incorporado;
outro, bem mais restritivo, advogando a necessidade de referência adicional ao número de identificação e
ao valor de cada um dos títulos; finalmente, uma tese intermédia, adoptando como regra o entendimento
mais flexível, excepto para a eventualidade de títulos reembolsáveis através de sorteio, caso em que será
necessária a identificação exacta do título. Francesco Caringella, ob. cit., pág. 3555, enumera várias
decisões judiciais mais exigentes (uma das quais recusando que a identificação do objecto onerado - no
caso títulos de crédito - possa ser cumprida mediante uma simples indicação genérica dos “titoli ed i
valori depositati i che verrano depositati sul conto/deposito a garanzia esistente presso la banca
creditrice” – cfr. senteça da Corte de Cassação de 20/3/2004, n.º 4079) e outras em que a jurisprudência
se mostra mais flexível (bastando-se, no caso de penhor de títulos ao portador, com a menção “della
natura del titolo e dell’ammontare del credito in eso incorporato, senza necessità di ulteriore
specificazione di tutti gli elementi occorrenti per l’esatta identificazione del documento” – cfr. senteça da
Corte de Cassação de 28/10/2005, n.º 21084).
2744
Negando, em razão da indeterminabilidade do objecto da garantia (do contrato apenas constava a
referência à espécie de títulos, à sua data de vencimento e ao seu valor nominal total), a validade de um
775
matérias primas que venham a ser transformadas num produto final diverso da mera
junção daquelas).
Em termos mais gerais, poder-se-á afirmar que a exigência de determinação
varie em função da natureza do objecto do penhor.2745
No que toca aos bens fungíveis e em vista desta identificação, sobretudo quando
o contrato de penhor não tenha que ser reduzido a escrito e conter a identificação do
objecto empenhado (como acontece entre nós), este desiderato será mais cabalmente
atingido impondo ao credor o dever de manter separados os bens empenhados dos seus
próprios bens da mesma natureza (e, não o fazendo, atribuindo-se ao empenhante
legitimidade para reclamar a restituição do bem).
Pelo contrário, estando ausente esta identificação ou existindo cláusula expressa
exonerando o credor daquela obrigação de separação, este assume a obrigação de
devolução de outras do mesmo valor e quantidade, assim transformando a garantia num
penhor irregular: ora, as soluções defendidas neste parágrafo e no anterior encontraram
consagração no recentemente introduzido art.º 2341.º do CCF.
Não nos repugna até que, quando o penhor incida sobre bens fungíveis, se
estabeleça uma presunção nos termos da qual o credor pignoratício apenas seja obrigado
a devolver, em caso de cumprimento da obrigação garantida, outros bens de qualidade e
valor equipolentes aos inicialmente onerados.
No caso específico das universalidades, poder-se-á até considerar que a
faculdade de substituição é inerente ao próprio quid onerado, pelo que a alteração das
partes que compõem o todo surge como natural (assim consentindo, por exemplo, o
penhor de carteiras de valores mobiliários2746 e do estabelecimento comercial,2747
penhor constituído sobre títulos da dívida pública em Itália, vide o Acórdão do Tribunal de Roma de
18/7/1991, in Rivista di Diritto Civile, 1992, Tomo II, pág. 267 e segs., com anotação crítica de Gabrielli,
para quem um penhor constituído nesses termos “deve considerarsi validamente costituito in presenza di
tali elementi. È infatti la peculiare natura del bene che segna le note essenziali e i criteri per la sua
individuazione nel sistema della circolazione dei diritti” (posição reafirmada em Pegno cit., pág. 697,
embora citando diversas decisões que retêm não ser tais elementos suficientes). Em termos semelhantes,
Maria Costanza, Valori mobiliari cit., pág. 1044 e segs., constatando que “Per il caso del pegno su titoli
del debito publico, quindi, dovrebbe ritenersi sufficiente per soddisfare il requisito della determinatezza
dell’oggetto l’indicazione del valore dei titoli, dalla data e della serie della loro emissione”, embora
reconhecendo que, para efeitos de atribuição do direito de preferência e por força do art.º 2787.º do CCI,
será necessário o depósito dos ditos valores.
2745
Neste sentido, Maria Costanza, Valori mobiliari cit., pág. 1044.
2746
Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 228 e segs., refere-se principalmente às carteiras dinâmicas
(alvo de uma “gestión unitaria que busca obtener un beneficio mayor que el derivado de la rentabilidad
individual de los distintos elementos que lo componen (…) aprovechando las fluctuaciones del mercado,
por lo que es necessaria la realización de modificaciones constantes de los valores concretos que
integran la cartera”) e não tanto estáticas (que se ocupam da rentabilidade dos concretos elementos que a
compõem, sem que a sua reunião obedeça a alguma finalidade de exploração, como sucede com os
pequenos investidores que compra alguns valores e os deposita no banco), bem como às que sejam
objecto de gestão por parte de intermediários profissionais a nível individual (para cada cliente) e não
colectiva (como sucede com os fundos de investimento). Com base no entendimento exposto no texto, o
Autor admite a substituição dos bens inicialmente onerados (em conformidade com o que diz ser a
posição dominante), sem necessidade sequer de renovação das formalidades necessárias para a
constituição da garantia (aqui sim se afastando da generalidade da doutrina), apontando como paradigma
a Lei Catalã sobre garantias mobiliárias (e, desde logo o próprio preâmbulo do diploma, no qual se afirma
que o penhor de coisas fungíveis “tiene como base el paso del concepto de prenda objeto al de prenda de
valor. Esto significa la possibilidad de substituir la totalidad o una parte de las cosas dadas en prenda
por otras de la misma especie y calidad, siempre que se hubiese pactado expresamente, lo cual implica el
mantenimiento de la garantia. Esta regulación tiene especial trascendencia en el caso de una prenda de
un conjunto o paquete de valores”), muito especialmente o seu art.º 12.º, o qual consente a substituição
dos concretos bens que compõem um penhor sobre um conjunto de bens fungíveis (e em termos amplos,
quer quanto aos negócios concretos em que se baseie a substituição – troca de valores, reagrupamentos,
776
incidindo a garantia sobre o conjunto e não sobre cada um dos concretos valores que a
compõem).2748
direitos de subscrição, atribuições gratuitas, etc. - quer quanto à sua extensão – podendo ser total ou
parcial), exigindo unicamente um pacto a consentir tal substituição (pacto esse que, na opinião do Autor,
poderá ser posterior à data da constituição da garantia e, por outro lado, que se presume existir no penhor
de carteiras de valores, “ya que es inherente a este tipo de prendas el mantenimiento de la possibilidade
de substitución por parte del gestor de la cartera”), que os a substituição se faça por outros bens da
mesma espécie e qualidade (ou seja, impondo a especificação prévia do tipo de bens fungíveis constituem
ou podem vir a constituir objecto do penhor e, no caso de penhor de carteiras de títulos, que tipo de
valores se poderão incluir nestas: contudo, o Autor sustenta que este requisito deve ser entendido em
sentido amplo, não exigindo que a substituição se tenha que fazer sempre entre o mesmo tipo de valores –
v.g. acções por acções – exigindo antes uma equivalência económica entre bens objecto de cotação em
mercados oficiais, isto é, “se puede sustituir cualquier bien del conjunto siempre que sea por otro bien
incluido dentro de los que pueden formar parte de dicho conjunto y cuyo valor sea equivalente al o a los
que sustituye”), não se exigindo, a cada substituição, a renovação das formalidades previstas para a
constituição da garantia. Por outro lado, a própria constituição da garantia se poderá reflectir no contrato
de gestão, originando modificações, sempre inspiradas pela tutela do valor dos bens afectos em garantia,
nas faculdades do titular da carteira e do gestor: o primeiro, perderá o direito de retirar, no seu todo ou em
parte, as quantias ou valores de que seja titular (excepto quando se tenha convencionado um limite
mínimo para o conjunto dos bens empenhados e o constituinte pudesse fazer reintegrações parciais até
esse montante), o direito a revogar a comissão concedida ao gestor (a não ser com o consentimento do
credor pignoratício) e o poder de dar instruções vinculantes ao gestor relativamente às operações a
efectuar (embora o Autor considere que tal poder não se transfere para o credor pignoratício, pelo que
avança duas alternativas: ou a obrigação de o proprietário dos valores informar previamente o credor
pignoratício das suas intenções, para que este se possa opor quando as considere abusivas; ou o exercício
conjunto desse poder, devendo o gestor executar a ordem de apenas um deles quando tal instrução seja
claramente benéfica para a carteira). Pelo contrário o gestor deverá prosseguir uma política de
investimento com um risco mínimo (assegurando, antes de mais, a conservação do valor económico da
carteira), devendo informar também o credor pignoratício sobre a evolução da carteira (enviando
extractos periódicos se tal lhe for solicitado) e entregar a este último os rendimentos produzidos pelos
valores que compõem a carteira (nos termos do pacto anticrético presumido constantes do regime geral do
penhor), respondendo também perante ele pelo incumprimento dos seus deveres. Em face da alteração
que a dação em penhor acarreta para o contrato de gestão, o Autor admite que o gestor possa negar-se a
manter o conteúdo do contrato nas novas circunstâncias, podendo recusar-se a aceitar o papel de terceiros
depositário dos bens onerados.
2747
Sobre esta garantia, vide supra n.º 3.5 do Capítulo I.
2748
Qualifica o penhor de carteiras de valores mobiliários como um penhor de universalidades Bautista
Pérez, ob. cit., pág. 59 e segs.. O Autor, depois de distinguir as carteiras estáticas (nas quais os valores
que as compõem possuem um valor intrínseco – resultante das suas características essenciais, como a sua
categoria e liquidez - e outro extrínseco, resultante da avaliação que é feita desses valores no momento da
constituição da garantia e que, naturalmente, está sujeito às variações do mercado: de qualquer modo, o
que mais releva neste tipo de carteiras é a sua específica configuração, “de tal suerte que al acreedor
pignoraticio lo que más le interesa de la garantía es la no-variación en la composición de la cartera por
ser para él primordial la bondad de los valores que la integran”) e dinâmicas (nas assume primordial
importância, não o preço de cada valor que as compõem, mas sim do conjunto, daí advindo a
possibilidade de alteração da respectiva composição), consoante seja ou não possível alterar a sua
composição. Sucede, porém, que esta possibilidade de alteração do quid onerado parece chocar com a
necessidade de determinação ab initio do objecto da garantia (imposta pelo art.º 1858.º do CCE): todavia,
será possível considerar que essa condição se encontra verificada, desde que se considere que o quid
onerado no penhor de carteiras de valores não são estes últimos, mas antes “la propria cartera como
universalidad considerada en la que se pacta entre las partes un acuerdo de subroación real de los
distintos valores que la integran de tal suerte que se pueden cambiar unos por otros, de acuerdo con los
pactos y en la forma que se ha establecido al constituir el derecho real, sin que el objecto de la garantía,
la cartera, quede alterado”, tanto mais que esta concepção logrou acolhimento legal no direito catalão
(cfr. art.º 16.º da Lei sobre garantias reais de 2002, que consente, havendo pacto nesse sentido, que o
devedor possa substituir, total ou parcialmente, os bens fungíveis empenhados: em face deste regime, o
Autor constata que “la Ley Catalana ha evolucionado, acertadamente, del concepto de prenda del
objecto al de prenda de valor”) e no regime do penhor financeiro (ao atribuir ao credor, se as partes assim
o estipularem, um direito de substituição e/ou de disposição do objecto da garantia, completado com a
777
Também já se defendeu assumir esta obrigação de identificação do objecto
onerado contornos mais laços quando o objecto empenhado consista num crédito,
permitindo a dação em penhor de créditos não determinados:2749 porém, a necessidade
de notificação do terceiro devedor do crédito empenhado como condição do nascimento
desta garantia (art.º 681.º, n.º 2) requer, salvo melhor juízo, que no momento da sua
constituição, sejam indicados quais os aqueles terceiros (ou melhor, quais as relações
jurídicas entre esses terceiros e o empenhante) que poderão, no futuro, vir a ser
devedores dos créditos a onerar.
Um outro domínio específico em que a questão de determinação do quid
onerado se faz sentir com particular acuidade é o das garantias sobre depósitos
bancários, em particular quando incidam sobre o saldo de uma conta corrente.2750
obrigação de, o mais tardar no momento do vencimento das obrigações garantidas. Para além disso, este
regime consente igualmente o pacto que permita ao credor, em caso de diminuição do valor da garantia,
exigir o restabelecimento do equilíbrio inicial e, assim, a oneração de novos valores: o Autor estranha o
porquê da lei apenas aludir à reposição do equilíbrio a favor do credor e não a favor do devedor – em caso
de aumento do valor dos bens inicialmente empenhados -, mas aceita igualmente uma convenção neste
último sentido).
2749
Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 19, invoca, em abono da sua tese, um argumento literal retirado do n.º
1 do art.º 666.º, afirmando que “em relação ao penhor de créditos, o art.º 666.º estabelece que a
satisfação preferencial do crédito é efectuada pelo valor de créditos, pertencentes ao devedor ou a
terceiro. Já no que tange ao penhor de coisas, a mesma disposição esclarece que o interesse do credor é
satisfeito pelo valor de certa coisa móvel. A diferença do texto normativo reside precisamente na
qualificação da coisa móvel como certa, mas já não dos créditos”. Esta menor exigência relativamente ao
penhor de créditos destina-se a permitir o empenhamento de créditos não determinados, mas
determináveis (ou seja, mesmo que não se encontrem identificados todos os elementos do crédito a
empenhar, desde que seja respeitado o modo específico de constituição da garantia com este tipo de
objecto), tendo em conta que o desapossamento apenas seria constitutivo para o penhor de coisas.
2750
Alude a este problema Finez Ratón, ob. cit., pág. 198 e segs., mas, na senda das soluções do direito
francês, descarta trata-se de um obstáculo incontornável, realçando como o problema entronca num outro
– mais vasto – da admissibilidade de um penhor sobre coisas futuras, normalmente negado por força da
exigência de desapossamento material do empenhante: todavia, tal limitação não se verifica nos penhores
sem desapossamento e no penhor de créditos (figura que o Autor entende ser a mais adequada ao
enquadramento do penhor de depósitos bancários), considerando ainda que, no caso dos depósitos
bancários se verificará, quando muito, uma indeterminação da sua quantia e não da respectiva existência.
Seguindo esta linha de pensamento, o Autor admite que, no penhor de depósitos bancários, “la prenda
pueda extenderse a los bienes, títulos o otros valores del cliente que lleguen a poder del banco”,
sobretudo porque o art.º 1865.º do CCE (ao invés dos seus homólogos francês e italiano) não impõe a
expressa determinação do objecto onerado e, por outro lado, porque o Autor sustenta a desnecessidade de
notificação do devedor do crédito empenhado como condição de surgimento ou oponibilidade da garantia
(o que permite empenhar créditos futuros, mesmo quando se desconheça a identidade daquele): por ser
assim, o Autor entende que “no hay razón para excluir como objecto de la garantía el eventual saldo
acreedor a favor del cliente de una cuenta corriente bancaria” (até porque não se trata de um crédito
futuro em sentido estrito, mas antes de um créditos pré-existente de quantia indeterminada), assegurando
que “la cuenta corriente, como servicio de caja de las distintas operaciones entre el banco y el cliente, es
criterio suficiente de identificación del crédito garantizado”, esclarecendo, por último, que a garantia
pode abarcar igualmente as quantias que, em momento posterior ao da constituição do penhor, venham a
ser inscritas a favor do empenhante nas suas contas bancárias (a menos que, no contrato de garantia, se
estipule que esta incide apenas sobre o saldo existente nessa data), uma vez que o que está em causa não é
o penhor de um bem futuro (pois o depósito existe na data do surgimento da garantia), mas sim de
determinação do montante onerado e sendo que a falta desta não é um óbice à validade do penhor (é certo
que, em rega, a dação em penhor de um depósito bancário implica o bloqueio da conta – e, assim, a plena
determinação do valor onerado – mas tal não é forçoso, podendo o credor assumir o risco de autorizar a
sua movimentação ou a manutenção da relação de conta corrente). De acordo com Pierpaolo Marano, ob.
cit., pág. 132, se a subscrição do contrato contendo a cláusula de extensão da garantia a todos os bens que,
futuramente, viessem a estar em poder da banca credora ocorrer contextualmente à estipulação da
antecipação bancária ou sucessivamente as conclusões são as mesmas a retirar, em termos genéricos,
relativamente à validade de semelhante tipo de cláusulas (designadamente por semelhante cláusula
778
Em suma, para aqueles penhores cuja constituição se processe mediante o
desapossamento do empenhante, à partida essa entrega será bastante para preencher o
requisito legal de determinação do objecto onerado (apesar de, desse modo, se excluir a
oneração de bens futuros): porém, para aqueles bens para cuja oneração pignoratícia a
lei imponha formalidades distintas e, bem assim, para aqueles outros cuja variabilidade
no decurso da relação pignoratícia comprometeria, quiçá inevitavelmente, a sua
oneração, se, porventura, a cada alteração fosse necessária uma nova entrega de
determinado tipo de bens (como sucede com as universalidades ou as coisas fungíveis),
tal exigência legal deverá ser adaptada.
À imagem do defendido a respeito das cláusulas omnibus e de extensão relativas
ao crédito garantido, também nesta sede e por identidade de razão a possível
indeterminação do objecto da garantia (quando se trate de penhor que dispense a entrega
material do bem e os mecanismos alternativos – registo e/ou redução a escrito não o
consintam) conduzirá, de lege data, à nulidade da própria cláusula, por violação do art.º
280.º, n.º 1, que comina esta sanção (analogamente, se a falta de concretização for
apenas parcial – por estarem discriminados os bens a onerar no presente, mas não
aqueles a que a garantia pode vir a atingir no futuro – a invalidade dirá apenas respeito a
estes últimos, não prejudicando o surgimento da garantia relativamente aos
primeiros).2751
A finalizar, cabe realçar que estas interrogações acerca do preenchimento das
condições legais de identificação do crédito garantido e dos bens empenhados se
adensam quando são utilizadas conjuntamente cláusulas pretendendo abranger um
número indefinido de créditos garantidos e onerando todos os bens do devedor2752 que
estejam ou venham a estar no futuro, a qualquer título, em poder do credor
pignoratício,2753 constituindo o que já foi apelidado de penhor global.2754
comportar uma alteração da proporcionalidade entre a garantia e o crédito assegurado, alargando aquela a
créditos diversos dos resultantes do contrato de antecipação). Já, pelo contrário, quando o contrato de
antecipação bancária for posterior à do contrato no qual foi inserida a cláusula de extensão aos demais
bens do devedor futuramente na posse do credor (nomeadamente em consequência da dita antecipação
bancária), o Autor sustenta que o momento da constituição do penhor será aquele em que se celebra a
antecipação bancária (e não do contrato contendo a cláusula omnibus), pois só nesse momento se verifica
o desapossamento do empenhador.
2751
Aliás, esta última será a solução mais comum, uma vez que a identificação dos bens empenhados no
momento da constituição da garantia resulta da entrega efectuada ao credor ou a terceiro.
2752
O mesmo perigo poderá advir da junção de uma cláusula omnibus com outra de rotatividade,
afirmando Joana Dias, ob. cit., pág. 137, que, neste caso, “a rotatividade poderá transformar-se, deixando
de consistir na possibilidade de conservar, com carácter de continuidade, um direito de preferência
sobre um bem do mesmo valor mas mutável, num prolongamento indefinido no tempo de uma
preferência. Não pode permitir-se que o valor de um determinado bem do devedor ou de terceiro fique
vinculado ad eternum, por todas as dívidas de montantes e natureza totalmente indeterminados que um
devedor venha a contrair perante um banco”.
2753
Para Joana Dias, ob. cit., pág. 134, o penhor abrangendo todo e qualquer bem que faça parte do
património do devedor, por si só, não será ilícito, sobretudo quando o seu valor estiver limitado ao
montante do crédito garantido e este se encontre determinado, por exemplo por um tecto máximo de
responsabilidade. Como bem notam Gorla e Zanelli e Zanelli, ob. cit., pág. 6, a hipótese mencionado no
texto é viável para o penhor de coisas – para cuja constituição a entrega do bem ao credor é, em regra,
indispensável - , mas não para o penhor de créditos e de outros direitos, casos em que as formalidades
impostas por lei (redução a escrito e notificação ao terceiro devedor do crédito empenhado – cfr. art.º
2800.º do CCI) são insubstituíveis. Por seu turno Gabrielli, Il pegno cit., pág. 144, esclarece que, se no
momento da aposição da cláusula, os bens ou créditos empenhados não fossem indicados sequer pelo seu
género (ou ainda nem sequer existissem), tal garantia deveria qualificar-se como um penhor de coisa
futura.
2754
Denomina assim um penhor com estas características, Joan Marsal Guillamet, ob. cit., pág. 356 e
segs.
779
3 - Impossibilidade de substituição do objecto da garantia
2755
Dentro do fenómeno da rotatividade, podemos operar diversas distinções, tendo em conta várias
classificações. Assim, de acordo com a fonte, podemos encontrar a chamada rotatividade legal (em que a
substituição do objecto da garantia resulta directamente da lei – cfr. art.ºs 670.º, alínea c) e 692.º) e a
rotatividade convencional (quer nos casos em que não exista previsão legal a esse respeito, quer nos casos
em que a lei se limita a consentir que as partes acordem nesse sentido – cfr. art.º 9.º do Decreto-Lei n.º
105/2004, em matéria de penhor financeiro). Por outro lado e no que se refere à amplitude dos créditos
garantidos, a garantia rotativa pode abranger apenas créditos actuais ou, ao invés, também créditos futuros
(neste último caso, estaremos perante uma cláusula omnibus rotativa). Já no que concerne à abrangência
da fonte contratual, podemos distinguir a rotatividade para assegurar créditos resultantes de uma única
fonte contratual ou de uma fonte contratual múltipla. Poder-se-á igualmente diferenciar as garantias
rotativas relativamente à necessidade ou desnecessidade de desapossamento das mesmas. Por último,
cumpre separar, tendo em conta os poderes de disposição do devedor sobre os bens empenhados, as
garantias rotativas fortes (aquela em que o devedor possa dispor desses bens sem consentimento do
credor), médias (em que apenas ou poderá fazer com aquele assentimento) ou fracas (em que o poder de
disposição por parte do devedor é excluído). Para além disso, as partes podem alcançar o mesmo
desiderato da rotatividade através de outros esquemas contratuais, como seja a constituição de um penhor
sobre determinados créditos, conjugada com a cessão em garantia de todos os créditos, presentes e
futuros, do devedor não incluídos no objecto do penhor. Sobre este assunto, vide Joana Dias, ob. cit.,
págs. 100 a 103.
2756
Cfr. Gabrielli, Il pegno cit., pág. 224 (aceita esta noção Matteo Rescigno, Le garanzie “rotative”
convenzionali: fattispecie e problemi di disciplina, in BBTC, n.º 54 (2001), pág. 1 e segs.).
2757
Para uma noção aproximada Joana Dias, ob. cit., pág. 111.
2758
Gabrielli, Il pegno cit., págs. 257 a 216, confrontado com outras qualificações da figura,
nomeadamente quando a mesma incida sobre instrumentos financeiros (tendo em conta que a lei italiana –
cfr. art.º 34.º, n.º 2, do d.lgs. 213 de 24/6/1998 – prevê a criação de contas específicas destinadas à
constituição de vínculos sobre a totalidade dos valores mobiliários registados nessas mesmas contas),
rejeita estes outros entendimentos. Face àqueles que qualificam este penhor como “um penhor sobre o
valor do conjunto” (considerando que o vínculo se constitui sobre o valor do conjunto dos instrumentos
financeiros registados na conta, permitindo-se ao constituinte da garantia dispor livremente de cada um
dos instrumentos onerados, até ao momento em que a garantia deixa de flutuar e se cristaliza numa série
780
fenómeno se reportar, não apenas ao objecto da garantia, como também aos créditos
assegurados.2759
Por forma a melhor delimitar os contornos exactos das cláusulas de rotatividade,
deveremos distingui-las das cláusulas de extensão - as quais se caracterizam por alargar
o penhor a bens que posteriormente acresçam àqueles que constituíam o objecto da
garantia -, uma vez que, aparentemente, em ambos os casos o objectivo perseguido
pelas partes é o mesmo, qual seja o de permitir uma possível alteração da configuração
inicial do objecto empenhado.
A nosso ver, as cláusulas de rotatividade procuram assegurar um objectivo
similar ao visado pelas cláusulas de extensão (possibilitar a modificação dos bens
originariamente onerados), mas têm um âmbito mais restrito, porquanto, como melhor
se verá adiante, pressupõem uma paridade de valor entre os bens inicialmente onerados
e os substitutos, exigência esta que não se verifica no âmbito das cláusulas de extensão
(nas quais o valor dos bens que passem a integrar a garantia pode acrescer aos dos
onerados ab intitio).2760
de bens concretos, sempre no limite inicialmente acordado), contrapõe que o objecto deste tipo de penhor
são os próprios instrumentos financeiros e não o seu conjunto (tendo em conta que a própria lei se refere a
um vínculo “sugli strumenti finanziari” e, ademais, exige a indicação da respectiva espécie, quantidade e
valor – vide art.º 46.º do Regulamento Consob n.º 11768, de 23/12/1998, alterado pelo Regulamento
13085, de 18/4/2001), nem tão pouco a conta de depósito (a qual funciona apenas como lugar escriturário
onde tais valores são “colocados” e custodiados, até porque – prossegue o Autor - a conta em si não é um
bem, nem um direito, que possa ser objecto de penhor). As mesmas criticas podem ser dirigidas aos que
entendem estarmos perante um penhor “sobre o valor”, acrescentando que uma coisa é o interesse
protegido pela garantia (precisamente à obtenção do valor económico resultante do objecto recebido em
penhor) e outro é o próprio objecto da garantia (que deve ser concretamente identificado). Finalmente,
respondendo aos que apelidam o fenómeno de “penhor flutuante”, o Autor sustenta que esse tipo de
garantia é próprio dos ordenamentos de origem anglo-saxónica, encontrando consagração em Itália a
propósito da dação em garantia de bens da empresa (cfr. art.º 46.º do Texto Único em matéria bancária e
creditícia, aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 385, de 1/9/1993), não exigindo a identificação concreta
dos bens que compõem o conjunto, ao contrário do que sucede com o penhor de instrumentos financeiros,
relativamente ao qual a lei impõe tal identificação. Concluindo, o Autor sustenta que o penhor sobre
instrumentos financeiros se consubstancia num “pegno anomalo, contenente, per quanto riguarda la
conservazione dell’integrità del valore del vincolo, un patto di rotatività della garanzia”. Já para Luciano
Panzani, ob. cit., pág. 943 e segs., o penhor rotativo constitui uma modalidade do penhor de valor,
definido este último como aquele em que “l’oggetto dalla garanzia non viene in considerazione nella sua
individualità, in quanto res, ma per il valore dei beni che dalla garanzia sono oggetto e che possono
essere oggetto di sostituzione in costanza del raporto, purché ne rimanga immutato il valore”,
entendendo que o penhor de instrumentos desmaterializados incide sempre “sull’insieme degli strumenti
finanziari registati in conto”, muito embora um penhor com semelhante objecto não tenha que ser
forçosamente um penhor rotativo (isto é, “le istruzioni che l’intermediario deve rispettare attengono
essenzialmente al caso in cui sia previsto il patto di rotatività”, uma vez que é necessário assegurar a
manutenção do valor a cada substituição; “diversamente si avrà pur sempre un pegno sull’insieme degli
strumenti finanziari registrati in conto, ma non necessariamente un pegno di valore”). Segundo Paolo
Piscitello, Le garanzie cit., pág. 2 e segs., a característica essencial da rotatividade é a contínua variação
do objecto, sem que isso implique a constituição de um novo vínculo.
2759
Joan Marsal Guillamet, ob. cit., pág. 356 e segs., dá conta que, no direito espanhol, a expressão
“penhor flutuante” é utilizada, não só para designar a possibilidade de o empenhante alterar o objecto
inicialmente onerado (sempre ressalvando a dificuldade de conciliar esta figura com o desapossamento
possessório imposto pelo regime geral do penhor, advogando, em conformidade, que o seu terreno de
eleição é o da hipoteca mobiliária e do penhor sem desapossamento), mas igualmente a amplitude dos
créditos assegurados.
2760
781
Por outro lado, importa realçar que os penhores com pacto de rotatividade,
entenda-se ou não que estes operam por força de um princípio de sub-rogação real, não
se assemelham a um penhor de coisa futura.2761
Ao invés, se confrontarmos as cláusulas de rotatividade com as chamadas
cláusulas de “transformação” ou “laboração” (ou até às que alargam a garantia ao
produto da venda dos bens onerados ou aos respectivos créditos), constatamos que as
primeiras possuem um alcance mais vasto, uma vez que as segundas apenas permitem a
substituição dos bens onerados quando se verifique alguma das circunstâncias referidas,
ao passo que o mesmo fenómeno se poderá produzir no seio da rotatividade, ainda
quando não se tenha verificado qualquer transformação dos bens originariamente
empenhados.2762
As cláusulas rotativas assumem particular relevância quando a garantia incida
sobre bens substituíveis da empresa2763 e, sobretudo, sobre instrumentos financeiros,2764
2761
Este equívoco surge em algumas decisões da Corte de Cassação italiana (cfr. n.º 10685, de 27/2/1999,
n.º 8089, de 14/6/2000 e n.º 16914, de 11/11/2003), que qualificam o penhor rotativo como uma
“fattispecie a formazione progressiva”. Como salienta Gabrielli, Il pegno cit., págs. 246 e 247, os arestos
confudem “la struttura ed il mecanismo formale della rotatività del vincolo, com il suo realizzarsi nel
tempo, e non ha compresso che (…) il senso della rotatività del vincolo è proprio quello di creare ab
origine un’unitaria operazione economica, e quindi di escludere, nonostante le avvenute sostituzioni, il
carattere novativo del rapporto, cosi che la fattispecie fin dal momento della sua costituzione, sia dotata,
in ragione della completezza dei suoi elementi, di un effetto di garanzia e del diritto di prelazione, che
siano contestuali alla costituzione del diritto reale di garanzia”, pelo que penhor rotativo e penhor de
coisa futura se apresentam como realidades incompatíveis, porque naquele a garantia se encontra
constituída inicialmente sobre bens presentes, apenas sendo modificado, sem efeitos novatórios, um dos
seus elementos – o objecto – aquando das diversas substituições (em termos idênticos, Gazzoni, Qualche
dubbio sul pegno rotativo (in attesa di spiegazione), in Rivista del Notariato, 2000, pág. 1464 e segs.).
2762
Alude a esta distinção Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 115 e segs..
2763
Como nota Joana Dias, ob. cit., págs. 27 a 29, o objectivo das garantias rotativas é o de permitir a
continuação da actividade da empresa, consentindo “a alienação dos bens onerados e a reconstituição
das provisões e stocks, de modo a não interromper o círculo produtivo”. Para Paolo Piscitello,
Costituzione in pegno cit., págs. 178 e 179, o reconhecimento de garantias sobre o conjunto das
mercadorias (bem como das cláusulas de laboração) está dependente do “riconoscimento della rotatività
della garanzia, per evitare che ad ogni operazione di sostituzione dei beni vincolati debbano ripetersi le
formalità di costituzione del pegno e sopratutto si modifichino i pressuposti per l’esercizio delle azioni
revocatorie”, assegurando subsistir a necessidade de “un intervento del legislatore che adegui i modelli
tradizionali (…) mirare ad una riorganizzazione complessiva delle garanzie mobiliari sui beni
dell’impresa”. De acordo com este último Autor (in Le garanzie cit., pág. 4), as cláusulas rotativas sobre
bens da empresa apresentam duas vantagens essenciais: ao incidirem sobre um conjunto de bens
continuamente substituíveis, permitem a continuação da actividade da empresa (consentindo igualmente a
alienação e a reposição dos bens); em segundo lugar, desobrigam o credor dos custos de armazenamento
dos bens onerados: porém, adverte que a necessidade de desapossamento impõe que a manutenção dos
bens em poder do empenhante seja acompanhada da concessão em locação ao credor das instalações onde
os bens se encontrem, podendo este nomear alguém da sua confiança para vigiar o estado das coisas
oneradas (aludindo, ainda, ao facto de ser comum a previsão do prolongamento do vínculo sobre os
produtos decorrentes da transformação ou sobre as mercadorias adquiridas para prosseguir o processo
produtivo).
2764
O intuito é o de tornar possível uma gestão profissional (por parte do credor ou de um terceiro) e,
quando sejam dados em penhor instrumentos financeiros de curto prazo, impedir a anulação da garantia
antes do vencimento da obrigação garantida (além disso, estes bens são de fácil avaliação e possuem
liquidez de mercado, permitindo a sua substituição evitar a diminuição do seu valor) – neste sentido,
Piscitello, Le garanzie cit., pág. 2, acrescentando que os penhores rotativos sobre este tipo de bens não
colocam problemas de conservação e custódia, para além de os bens serem de fácil avaliação, permitindo
uma pronta liquidação em caso de incumprimento. Para Realmonte, L’oggetto del pegno: vecchi e nuovi
problemi, in BBTC, pág. 10 e segs., a colocação em penhor de instrumentos financeiros e/ou valores
mobiliários poderá, teoricamente, ocorrer de três modos diversos: ou através de um contrato através do
qual o empenhante confie ao credor ou a um terceiro a gestão dos valores, para constituir um penhor
sobre o direito à devolução dos valores (solução excluída por ser de negar a empenhabilidade do direito à
782
não admirando, por isso, que seja com respeito a este tipo de bens que as garantias
rotativas convencionais tenham surgido.
A necessidade de estipulação de cláusulas rotativas resulta do desfasamento
temporal entre a “vida” do objecto, muitas vezes curta, e a duração potencialmente
duradoura da obrigação garantida.2765
A respeito dos instrumentos financeiros, a rotatividade encontra-se intimamente
associada à sua desmaterialização, na medida em que esta confere inequívoca natureza
fungível a esse tipo de bens: não espanta, por isso, que a consagração legal daquela
desmaterialização seja muitas vezes acompanhada do reconhecimento das cláusulas
rotativas,2766 2767 sendo disso exemplo paradigmático o regime do penhor financeiro.2768
entrega de uma coisa certa e determinada, pois no património do empenhante o direito de crédito à
devolução não poderá transformar-se num direito de propriedade sobre os mesmos títulos, uma vez que
estes últimos já são seus) ou através de um penhor irregular, nos termos do qual a propriedade dos valores
se transmite para o credor pignoratício, ao qual assiste a faculdade de deles se dispor, com a obrigação de
restituir, no momento do vencimento do crédito garantido e em caso de cumprimento, outros bens da
mesma espécie de acordo com o valor determinado naquele mesmo momento ou o seu contra-valor em
dinheiro (hipótese que considera viável, mas com o inconveniente de o dador de penhor, além do risco
inerente à perda da propriedade daqueles bens, não poder dar instruções ao credor sobre o modo de gerir a
carteira de títulos dados em garantia e, para o credor pignoratício, de ter que restituir títulos que entretanto
tenham aumentado de valor) ou, finalmente, recorrendo à inserção no contrato de penhor de uma cláusula
de rotatividade, com base na qual seria suficiente a indicação, para além dos títulos originários, da espécie
de títulos pelos quais aqueles pudessem vir a ser substituídos, argumentando que de tal cláusula não
advirão prejuízos para os demais credores do empenhante desde que o direito de preferência se confine ao
valor dos bens inicialmente dados em garantia (porém, o Autor refere que esta possibilidade se defronta
com a necessidade de, a cada substituição, renovar o documento escrito contendo a suficiente indicação
da coisa dada em penhor e, para além disso, enfrenta a desconfiança da jurisprudência). Relativamente à
cláusula de rotatividade, o Autor propõe uma formulação alternativa, prevendo a transformação do penhor
regular originariamente constituído sobre determinados valores se transmutar, no momento do
vencimento destes e quando devessem ser renovados ou alienados a fim de adquirir outros, num penhor
sobre o crédito ex mandato à aquisição de novos títulos e à transferência da respectiva propriedade ao
empenhante ou à restituição do seu contra-valor.
2765
Como bem salienta Realmonte, L’oggetto cit., pág. 10 e segs., “La (quasi) inevitabile sfassatura
temporale tra la “vita” dell’oggetto della garanzia e quella del credito che con esso si intende garantire
fa emergere imediatamente l’esigenza, avvertita dal creditore pignoratizio, di neutralizare gli
“inconvenienti” insiti nelle sostutizioni del bene originariamente costituito in pegno e quella,
(eventualmente) contraposta, del datore di poter compiere siffate sostituzioni (…) che consenta la
sostituzione nel tempo – ad opera sia del datore, sia del creditore pignoratizio – dei titoli dati in garanzia
e non comporti, al verificarsi di ogni sostituzione, né la necessità di rinnovare il compimento delle
formalità prescrite per l’esercizio di prelazione” Em termos análogos, Piscitello, Le garanzie cit., pág. 8 e
segs., assegura que, no caso dos instrumentos financeiros, a convenção típica atribui ao constituinte da
garantia ou ao credor o poder de substituir os bens inicialmente empenhados por outros, assim
consentindo superar esse desfasamento entre o período de validade do título e o do financiamento e, por
outro lado, tornando possível uma eficaz administração dos bens onerados, nomeadamente através da
celebração de um contrato de gestão dos mesmos.
2766
No direito italiano, o processo de desmaterialização culminou com a entrada em vigor do Texto Único
de intermediação financeira (aprovado pelo d.lg. n.º 58, de 24/2/1998), em cujo art.º 87.º se prevê que os
vínculos sobre instrumentos financeiros integrados num sistema centralizado se transferem, sem efeitos
novativos, para os direitos do depositante através do endosso à sociedade gestora, considerando-se como
não escritos os averbamentos no título, devendo tais vínculos ser inscritos no registo gerido pelo
depositário, produzindo este registo os efeitos próprios da constituição do vínculo sobre o título
(acrescentando ainda o n.º 4 deste preceito que os averbamentos deverão ser comunicados, no prazo de
três dias, ao emitente para que este proceda às inscrições necessárias). Pouco tempo depois foi aprovado o
d.lg n.º 213, de 24/6/1998, diploma este impõe a desmaterialização obrigatória dos instrumentos
financeiros negociais ou destinados à negociação ou à difusão pelo público (art.º 28.º), impondo-se às
sociedades gestoras a obrigação de abrir uma conta em nome do emitente por cada emissão (art.º 29.º),
constituindo-se o penhor através do registo nestas contas detidas pelo intermediário, devendo este registo
comunicado ao emitente (art.ºs 34.º, n.ºs 1 e 3, 30.º, n.º 3). É com este último diploma (e com as normas
783
que a vieram desenvolver, maxime os art.ºs 45.º a 47.º do Regulamento Consob n.º 11768, de 23/12/1998,
alterado pelo Regulamento 13085, de 18/4/2001, de entre os quais cumpre salientar o n.º 1 do art.º 46.º
“per gli strumenti finanziari registrati in cont in sostituzione o integrazione di altri strumenti finanziari
registrati nel medesimo conto, a parità di valore, la data di costiuzione del vincolo è identica a quella
degli strumenti finanziari sostituiti o integrati” e o n.º 2 do art.º 47.º “contestualmente alla costituzione
del vincolo il titolare del conto impartisce all’intermediario per iscrito istruzioni conformi agli accordi
intercorsi con il beneficiario del vincolo in ordine alla conservazione dell’integrità del valore del vincolo
e all’esercizio dei diritti sugli strumenti finanziari registrati nel conto”) que se consagra de modo mais
explícito a viabilidade das cláusulas rotativas, sobretudo tendo em conta dois aspectos: em primeiro lugar,
o facto de a garantia se constituir unicamente através do registo nas contas do intermediário financeiro
comprova como uma técnica alternativa à entrega do bem não desvirtua a natureza pignoratícia da
garantia; em segundo lugar e decisivamente, o vínculo de garantia considera-se constituído e oponível a
terceiros no momento da sua constituição, independentemente de futuras substituições ou integrações,
sem necessidade de renovação das formalidades necessárias para a atribuição do direito de preferência,
com a única condição de a substituição ou integração ter lugar a paridade de valor (acerca desta evolução,
vide Gabrielli, Il pegno cit., págs. 225 a 235, entendendo que, com o último dos diplomas citados, “la
questione del pegno rotativo può considerarsi superata”; reconhecem igualmente que este último preceito
consagra a continuidade da garantia, apesar da substituição do bem empenhado, Francesco Magni, ob.
cit., pág. 388, Melissa Magnano, ob. cit., pág. 586 (falando do “definitivo superamento della materialità
del pegno; il vincolo non è costituito sulla res o su titoli determinati, ma sul valore di questi (…) gli effetti
propri della costituzione del vincolo si produccono con la sua iscrizione nel apposito registro o conto.
Ora non è più necessaria la consegna della res (quindi lo spossessamento) ed i titoli possono essere
sostituiti senza che da ciò discenda la costituzione di un nuovo pegno (…). Si tratta di un riconoscimento
esplicito, a livello normativo, del pegno rotativo come pegno di valore”, pelo que, uma vez constituída a
garantia e desde que o valor permaneça igual, a substituição do objecto não implicará nenhum ulterior
documento com data certa, nem produzirá efeitos novatórios) e Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit.,
pág. 137 e segs. (embora considere não ter havido um abandono da disciplina cartular, mas antes o
legislador tenha identificado o documento físico com o registo na conta do intermediário, de modo que “il
superamento della fisicità del titolo di credito non sembra comportare il superamento della sua logica di
funzionamento: i relativi diritti si trasferiscono e si costituiscono comunque (su e) attraverso la
individuazione di una res che, perduta la sua materialità, è divenuta res scritturale”. A Autora acrescenta
ainda que o mesmo regime vigora para os títulos da dívida pública). Também Giuseppe Martino, ob. cit.,
pág. 65 e segs., assegura que o diploma legal por último referido, conjugado com o respectivo
regulamento de execução, consagra o mecanismo da rotatividade e assegura a ausência de efeitos
novatórios do mesmo (embora sempre com a limitação do valor inicial do objecto onerado), concluindo o
Autor que se trata de um “pegno di valore, ovverosia un pegno dove l’oggetto della garanzia non sia
considerato nella sua individualità fisica, ma nel valore economico che esprime”, posição subscrita
igualmente por Clementina Scaroni, ob. cit., págs. 413 e 414 (realçando a desnecessidade de renovação, a
cada movimentação da conta, das formalidades prescritas para o surgimento da preferência pignoratícia,
destarte consentindo às partes “raggiungere convenzionalmente il risultato di ancorare il vincolo alla
data della sua originaria costituzione nonostante le successive modificazioni o integrazioni dei beni
concessi in garanzia (…). La garanzia rimane legata al valore economico degli strumenti finanziari
registrati in sostituzione o integrazione del vincolo e le successive sostituzioni sono senza effetti novativi
purché ciò avenga a parità di valore. I creditori successivi non subiscono alcun pregiudizio poiché si
tratta del medesimo vincolo, anche se modificato nell’oggetto”, pelo que conclui estarmos perante “un
unico pegno rotativo e fluttuante, che possa essere modificato nel contenuto, e non più pegni”). Todavia,
como salienta Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 135 e segs., existe alguma desarticulação entre os
regulamentos de desenvolvimento e o respectivo decreto-lei (para além do facto de a lei de autorização do
decreto-lei não fazer referência a qualquer intervenção no âmbito do penhor rotativo), tendo em conta que
aqueles falam da constituição de penhor sobre um “valor”, enquanto o decreto-lei respectivo omite tal
referência e tal quid não consta de entre aqueles que, nos termos do regime civilístico do penhor, podem
ser objecto desta garantia (tal desfazamento, prossegue o mesmo Autor, pode ser corrigido de duas
formas: ou considerando que o regulamento modifica a previsão legislativa – solução duvidosa – ou, pelo
contrário, entendendo que a expressão utilizada se encontra privada de qualquer significado autónomo,
sendo apenas fruto da confusão entre o interesse protegido com a garantia – obtenção do valor económico
representando pelo objecto do penhor - e o respectivo objecto – o conjunto dos instrumentos financeiros
registados na conta).
2767
No direito francês, o art.º art.º L211-20 do Code Monétaire et Financier dispõe que “Les titres
financiers figurant initialement dans le compte nanti, ceux qui leur sont substitués ou les complètent en
784
Apesar de a rotatividade andar muitas vezes de mãos dadas com fenómeno da
desmaterialização,2769 não será correcto falar de uma identificação absoluta entre
garantias não possessórias e rotatividade, no sentido em que esta última não tem que,
necessariamente, prescindir da entrega dos bens empenhados ao credor ou a terceiro, ou
seja, a rotatividade é concebível mesmo no âmbito de penhores com
desapossamento.2770
garantie de la créance initiale du créancier nanti, de quelque manière que ce soit, ainsi que leurs fruits et
produits en toute monnaie, sont compris dans l'assiette du nantissement. Les titres financiers et les
sommes en toute monnaie postérieurement inscrits au crédit du compte nanti, en garantie de la créance
initiale du créancier nanti, sont soumis aux mêmes conditions que ceux y figurant initialement et sont
considérés comme ayant été remis à la date de déclaration de nantissement initiale” – deste preceito
decorre que o penhor incide sobre a conta do empenhante (e não sobre o conteúdo da mesma), com a
consequência de o penhor surgir com o ingresso dos títulos naquela conta, abrangendo não só os
existentes na conta empenhada no momento da constituição da garantia, mas igualmente aqueles que os
substituam ou completem em garantia do crédito pignoratício (bem como os frutos e produtos em
qualquer moeda), os quais se encontram-se sujeitos às mesmas condições que os inicialmente oferecidos
em garantia e, por isso, se consideram entregues na mesma data. Já anteriormente, o art.º 29.º da Lei de
3/1/1983, alterada pela Lei de 2/7/1996, dispunha que, no penhor sobre os títulos desmaterializados
depositados em conta, “Tout titre venant en substitution ou en complément de ceux constitués en gage,
par suite d’échanges, de regrouprements, de divisions, d’attributions gratuites, de suscription en
numéraire ou autrement sont, sauf convention contraire, compris dans l’assiette du gage à la date de la
déclaration”. O expresso reconhecimento legal da possibilidade de substituição (ou de complemento),
sem prejuízo da continuidade da garantia, dos instrumentos inicialmente onerados por outros instrumentos
e/ou por quantias em dinheiro resultante da venda dos instrumentos previamente empenhados, representa,
no entender de Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 66, o reconhecimento que o objecto do penhor é o
portefólio de instrumentos financeiros e não os concretos activos originariamente onerado,
consubstanciando um verdadeiro penhor de uma universalidade de facto (para além de sancionarem a
validade de cláusulas contratuais destinadas a assegurar a manutenção do valor da garantia – através, por
exemplo, das chamadas “clauses de arrosage”, nos termos das quais o constituinte se obriga a onerar
novos bens em caso de o valor dos inicialmente onerados descer abaixo de um determinado nível, sem
que isso implique a constituição de uma nova garantia, uma vez que o penhor incide sobre o portefólio
entendido como uma universalidade e, por isso, “il n’y a pas de modification de l’oject de la sûreté,
puisqu’il ny a pas de modification en valeur para rapport à l’affectation initiale. Parce que l’arrosage
maintient seulement la valeur do gage au niveau convenu sans en augmenter la consistence, il n’y aurait
pas une nouvelle affectation” - e mesmo o aumento desse valor, nomeadamente prevendo um suplemento
de garantia em caso de aumento do valor do crédito garantido).
2768
Acerca do regime geral do penhor financeiro e ao reconhecimento legal da rotatividade de uma
garantia com este objecto, vide supra n.º 1.2.8.4 do Capítulo II.
2769
Salienta a ligação entre os dois factores Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 61 e segs., pondo em
destaque o papel fulcral desempenhado pelas sociedades de gestão centralizada, que abrem uma conta
para cada um dos emitentes que tenha introduzido no sistema os seus instrumentos financeiros (e na qual
são inscritas as diversas emissões e respectivas informações) e outras contas de propriedade e de terceiros
por cada intermediário, enquanto estes últimos abrem contas em nome de cada um dos clientes (onde
anotam todas as vicissitudes jurídicas dos instrumentos dela constantes): nesta conformidade, a
constituição de uma garantia sobre um instrumento financeiro deve ser duplamente inscrito, isto é, no
registo da sociedade gestora e da sociedade intermediária (podendo esta última emitir certificados
atestando a legitimidade para o exercício dos direitos sociais). Em face do exposto, “non ha più senso,
trattando di pegno, porsi il problema dell’effettiva individuazione della res”, uma vez que “il legislatore
ha sostituito la legitimazione basata sul possesso con la legitimazione basata sul meccanismo della dupla
registrazione” (embora ressalve que tal não desobriga as partes do ónus de identificação do objecto da
garantia, mas assegura que tal desiderato pode ser alcançado através de métodos alternativos de
escrituração aptos a determinar os títulos imateriais).
2770
Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 2, embora reconheça que, frequentemente, a rotatividade e a ausência
de desapossamento do empenhante se conjugam, entende que tal binómio não é forçoso, apontando como
exemplo o penhor rotativo – tipificado legalmente - de títulos de crédito, com pacto de substituibilidade
na data do vencimento com outros – que deverão, também eles, ser entregues ao credor - adquiridos com
o produto da venda dos inicialmente onerados.
785
Outro campo de eleição da rotatividade será o penhor irregular, pois poder-se-á
sustentar que a passagem do propriedade do bem onerado para o credor torna esta figura
imune a muitas das reservas formuladas a respeito das cláusulas rotativas.2771
Em Itália, no âmbito de uma clara recepção jurisprudencial de uma construção
doutrinal atribuída a ENRICO GABRIELLI,2772 desde 19982773 que a Corte Suprema
2771
É a posição de Relamonte, L’oggetto de pegno cit., pág. 12, segundo a qual a passagem da
propriedade dos bens para o credor torna irrelevantes as vicissitudes por que tais bens passem no decurso
do período que medeia entre a constituição da garantia e a eventual restituição do tantundem, pelo que as
substituições eventualmente efectuadas pelo credor pignoratício não afectam a operatividade da garantia
(chamando a atenção, porém, para os inconvenientes desta figura, sobretudo porque o empenhante não
terá a possibilidade de dar indicações ao credor pignoratício acerca da gestão dos títulos e ficará exposto
ao risco da perda da propriedade dos mencionados bens, enquanto o credor poderá ter de restituir títulos
que, entretanto, tenham aumentado de valor, porquanto a obrigação de restituição vence-se no momento
do vencimento do crédito garantido e tem por objecto bens da mesma espécie “secondo il valore degli
stessi al momento della scadenza, ovvero del loro controvalore”), posição que merece a aprovação de
Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 151 e, especialmente de Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 183 a 185.
Este último Autor, depois de relembrar que o penhor irregular apenas pode incidir sobre bens fungíveis e
de fácil avaliação em qualquer momento (no que especificamente respeita aos títulos de crédito, duvida
que aqui se possam considerar todos eles ou apenas os cotados em bolsa), admite que, no âmbito desse
especial tipo de penhor, se possa produzir a substituição dos bens empenhados, mas unicamente se tal
substituição se verificar por decisão e iniciativa do credor (podendo, assim, este alienar os bens recebidos
em garantia e, com o produto dessa venda, adquirir outros – mesmo se outra espécie – uma vez que tal
circunstância em nada altera a obrigação de restituição do tantundem, surgindo antes como um efeito
inerente à transferência da propriedade dos bens empenhados para o credor, próprio do penhor irregular:
nesta conformidade, a cada substituição não será necessária a renovação das formalidades para o
surgimento do direito de preferência), designadamente se o devedor conceder ao credor instruções acerca
da venda dos títulos dados em garantia e aquisição de outros ou o credor se obrigue a seguir tais
instruções (e desde que sem influência na obrigação de restituição a cargo do credor). Ao invés, quando
ocorrer a alteração da obrigação de restituição que impende sobre o credor (nomeadamente quando o
credor conceda ao devedor a faculdade de retirar os bens previamente concedidos em garantia e de lhe
entregar outros de diversa espécie, caso em que a obrigação deixa de dizer respeito aos bens
originariamente empenhados, para passar a contender com os posteriormente adquiridos em substituição
daqueles), estaremos perante uma alteração do objecto da garantia enquadrável no âmbito do penhor
regular (o mesmo Autor, in Sulle garanzie rotative cit., pág. 121, relata que a jurisprudência reconhece o
efeito rotativo no penhor irregular de títulos ou valores). Salienta também este aspecto Gorla e Zanelli,
ob. cit., págs. 35 e 36, repisando que no penhor irregular o credor se obriga a devolver, em caso de
cumprimento por parte do devedor, não os bens originariamente recebidos em garantia, mas outros da
mesma espécie e de igual valor, pelo que a possibilidade de substituição surge como inerente ao
funcionamento deste tipo de garantia, para além do facto de a propriedade do bem dado em garantia se
transferir para o credor, pelo que este poderá livremente dispor dele como bem entenda (no mesmo
sentido, Francesco Magni, ob. cit., pág. 385, salientando que a aquisição da propriedade dos bens
empenhados por parte do credor determina que “la sostituzione di quelli scaduti nel corso del rapporto,
mediante acquisto di altri, non incide sull’oggetto del pegno, dal momento che la banca deve sempre
restituire il tantundem. Il discorso, in effetti, non coinvolge il problema della rotatività del pegno, in
quanto riguarda beni fungibili, di cui la banca acquista la proprietà in origine”).
2772
Giorgio De Nova, Recensione a Enrico Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., págs. 408 a 410,
reconhecesse isso mesmo, aplaudindo a abertura jurisprudencial, até por não ter mediado um período de
tempo muito longo entre a elaboração doutrinal da figura do penhor rotativo e o seu acolhimento por parte
do aparelho judicial. Também Melissa Magnano, ob. cit., pág. 582, constata este facto, especialmente no
que se refere à consideração do objecto da garantia na sua componente de valor (e não na sua
individualidade) e ao enquadramento jurídico na rotatividade no âmbito da sub-rogação real.
2773
Primeiramente na decisão n.º 5264, de 28/5/1998 (apesar de ter decidido no sentido da invalidade da
convenção sub judice, por não verificação de um dos requisitos erigidos como condição de
admissibilidade dos pactos rotativos, in casu, o facto de a substituição do bem objecto da garantia ter
ultrapassado o dos bens originariamente onerados), com inúmeras anotações, como as de Luciano
Panzani, ob. cit., pág. 943 e segs. (aplaudindo, genericamente, os fundamentos da decisão,
designadamente na parte em que reconhece não ser a entrega do bem relevante em si, mas antes enquanto
meio para colocar o devedor numa situação de impossibilidade de dispor do bem empenhado – por isso
786
reconhece esta figura, atribuindo-lhe eficácia mesmo para além dos casos
considerando estarmos perante uma modalidade anómala e não atípica de penhor - e, por outro lado, ao
admitir a substituição dos bens originariamente empenhados – seja porque estes são tomados em
consideração pelo seu valor económico, seja porque daí não advém prejuízo para os demais credores,
desde que o valor dos bens substitutos não seja superior ao dos bens originariamente empenhados –
recorrendo, para tal, ao instituto da sub-rogação real), Chiara Mancini, La riconosciuta normalità del
pegno “rotativo”, in Giurisprudenza Commerciale, 1998, II, pág. 678 e segs. (colocando o acento tónico
nas condições impostas para a validade das convenções rotativas, a saber, que o novo bem tenha o mesmo
valor do precedente; que o novo bem seja entregue ao credor; e que a entrega de cada novo bem seja
acompanhada de um documento escrito com data certa contendo uma suficiente descrição do bem
empenhado e do crédito assegurado. A Autora contesta a necessidade de observância desta última
condição, alegando que “Se il vincolo di destinazione inersice al valore rappresentanto del bene e non al
bene in quanto tale, una volta costituitosi originarimente il pegno mediante consegna del bene (…) al
creditore con atto avente data certa, la quale contenga sufficiente indicazione del credito e della cosa, la
successiva sostituzione del bene – ma non del valore – non abbisogna di alcuna scrittura con data
certa”), Fabrizio Maimeri, Pegno rotativo: la dottrina ispira la Cassazione. Prime osservazione, in
Giustizia Civile, 1998, I, pág. 2162 e segs. (realçando a configuração do objecto da garantia enquanto
valor económico ou reserva de utilidade, a ausência do carácter novatório da substituição e a necessidade
de cada uma das operações de modificação do objecto do penhor respeitar o limite de valor dos bens
inicialmente empenhados), Carmine Stingone, Il pegno rotativo nella teoria delle garanzie reali, in Il
diritto fallimentare, 1998, II, pág. 609 e segs. (pondo igualmente em relevo os três requisitos de que
depende a validade das cláusulas rotativas e o facto de a decisão em questão fazer alusão ao princípio da
liberdade contratual – traduzida, neste caso, na obtenção de uma garantia capaz de proporcionar ao credor
a obtenção e a manutenção de uma reserva de utilidade sobre a qual poderá satisfizer, em caso de
incumprimento, o seu crédito - enquanto fundamento das mesmas), Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 90 e
segs. (salientando três aspectos: o facto de a decisão – depois de, em geral, declarar que os privados
podem incidir sobre o aspecto funcional, mas não sobre a vertente estrutural – não excluir a possibilidade
de as partes salvaguardarem a continuidade da garantia, apesar da alteração do respectivo objecto; os
limites, já aflorados, à validade das convenções rotativas, atribuindo especial atenção à necessidade de um
documento escrito contendo suficiente indicação do crédito garantido e do bem onerado não
consubstanciar a constituição de uma nova garantia, mas tão somente “ricollegare i nuovi beni alla
garanzia pignoratizia precedentemente costituita, salvaguardando la continuità del vincolo”; e,
finalmente, criticando a necessidade de redacção do dito documento a cada substituição do objecto da
garantia, alegando que das três indicações que desse escrito devem constar – crédito garantido, data da
constituição da garantia e objecto onerado – as duas primeiras se mantêm intactas e, relativamente à
última, se o penhor rotativo é um penhor de valor, no qual o que releva é o valor do bem e não a res
enquanto tal, “non si comprende la ragione per cui la consegna di un nuovo bene debba essere
accompagnata da scrittura con data certa e contenente sufficiente indicazione della cosa”, concluindo,
por isso, que “i giudici non sembrano aver colto appieno tutti i possibili effetti della propria impostazione
del problema e delle soluzioni prospettate”). Vide também o sugestivamente apelidado estudo de Andrea
Azzaro, Il pegno “rotativo” arriva in Cassazione: ovvero “comme la dottrina diventa giurisprudenza”, in
BBTC, 1998, II, págs. 491 e segs., reforçando o facto de a sentença em questão recusar a qualificação do
penhor rotativo como um penhor atípico (asseverando que nesta fattispecie a função de garantia se
manifesta através de técnicas alternativas ao desapossamento), mas não deixando de lhe dirigir algumas
críticas (nomeadamente pela contradição em que incorre, ao afirmar, por um lado, que “le modificazioni
oggettive dei beni darebbero vita alla costituzione di un rapporto nuovo” e, por outro, que “la
modificazione dell’oggetto non comporti il sorgere di un nuovo rapporto di garanzia che prenda data
dalla consegna dei nuovi beni”, contrapondo o Autor que a admissibilidade dos pactos rotativos deve
conduzir à conclusão que “La sostituzione dell’oggetto non determina nella fattispecie la costituzione di
un nuovo pegno rispetto a quello originario ma dà luogo ad una surrogazione reale: lo stesso valore
formale di garanzia può infatti accedere ad oggetti materiali diversi e mutevoli nel tempo”). Por último,
Clementina Scaroni, ob. cit., pág. 417 e segs., advertindo que a solução proposta nesta decisão judicial
“non supera il principio del necessario spossessamento dei beni da parte del creditore e che dunque mal
si concilierebbe con garanzie pignoratizie costituite su beni che debbono restare nella disponibilità del
debitore (ad es. pegni su scorte di magazzino, su merci in lavorazione ecc.)” e Gessica Pavasini, Pegno
rotativo, in Il pegno nei rapporti commerciali, Giuffrè, 2005, com direcção de Paolo Cendon, pág. 279 e
segs. (destacando que o reconhecimento do penhor rotativo não é absoluto, na medida em que não poderá
desvirtuar a estrutura fundamental do penhor e, para protecção dos demais credores, não poderá servir de
fundamento para um decréscimo do valor dos bens sobre os quais estes se podem satisfazer).
787
expressamente previstos na lei, ainda que sujeitando a sua validade a determinadas
condições, posição esta reforçada em diversas pronúncias posteriores da mesma
Corte2774 e de outros tribunais,2775 (apesar de, mesmo antes dessa data, vários arestos
dos tribunais comuns já deporem no mesmo sentido).2776 2777
2774
Designadamente no Acórdão de 27/9/1999, n.º 10685, in Rivista di diritto commerciale, 2000, II, pág.
255 e segs., no qual se pode ler que “È legittimo il c.d. pegno rotativo che si realizza quando nella
convenzione costituita della garanzia – avente efficacia obbligatoria – le parti prevedano la possibilità di
sostituire i beni originariamente costituiti in garanzia, con la conseguenza che la sostituzione posta in
essere non determina effetti novativi sul rapporto iniciale, a condizione che le sostituzioni risultino da atti
scritti aventi data certa, che avvenga la consegna del bene e che questo bene offerto in sostituzione abbia
un valore non superiore a quello sostituito”. Também esta decisão foi alvo de diversos comentários,
como os de Andrea Maria Azzaro, Pegno rotativo e operazione economica, in Rivista di diritto
commerciale, 2000, II, pág. 259 e segs., elogiando esta orientação e salientando que representa o
reconhecimento do carácter unitário da operação complexa “attraverso l’individuazione del dato
funzionale, il mantenimento della riserva di utilità nel limite del valore pattuito, e di quello strutturale, la
qualificazione dei singoli atti di sostituzione dell’oggetto della garanzia in termini di surrogazione reale”
e de Dario Finardi, Efficacia cit., pág. 775 e segs., colocando em relevo a circunstância de esta decisão ter
eliminado algumas dúvidas a que o anteriormente aludido aresto de 1998 havia dado azo (sobretudo na
parte em que se referia às modificações do objecto da garantia como “un rapporto nuovo”, embora
notando que esta expressão, enquadrada no conjunto da decisão, era interpretada como um lapsus calami,
como também salienta Luciano Panzani, ob. cit., pág. 943 e segs.), afirmando, em termos que não deixam
margem para dúvida, que “la contiunuità del rapporto non è incompatibile con la realtà del pegno,
perché deriva dalla convenzione con la quale le parti previdero la possibilità di sostituirne l’oggetto
senza estinzione del precedente rapporto di garanzia”, uma vez que “la genesi del diritto reale di
garanzia debba farsi risalire al momento della stipulazione originaria” (por outro lado, reforça que o
aresto em questão alude ainda os limites às cláusulas de rotatividade impostos – a identidade da natureza
e do valor dos bens empenhados – e ao fundamento da admissibilidade de tais cláusulas, que repousa, no
caso dos instrumentos financeiros, na sua desmaterialização, porquanto no quadro desta última “la
traditio appare sempre più aliena da questo sistema nel quale il bene negoziato è un elemento di una
banca dati, (…) la traditio materiale del bene si sostanzia nella ricezione di una comunicazione”).
Também Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 103 e segs., comenta esta decisão (colocando em destaque a
circunstância de o aresto sob anotação declarar a ausência de qualquer incompatibilidade entre a natureza
real do penhor e o efeito rotativo - e a consequente continuidade da relação de garantia - e, noutro plano,
o recurso à sub-rogação real para qualificar o elemento estrutural da fattispecie, conjuntamente com a
identificação do objecto da garantia no valor económico do bem e não no bem usado para o concretizar),
dirigindo-lhe duas críticas essenciais: a incongruência ao afirmar, por um lado, que o pacto de
rotatividade apenas pode produzir efeitos obrigacionais relativamente à futura substituição do bem
empenhado e, por outro, que a entrega do bem substituto será o elemento de uma fattispecie de formação
progressiva cuja origem remonta ao momento da celebração do acordo de rotatividade (contrapondo o
Autor que “il momento surrogativo non ha valenze costitutive della garanzia, che – al contrario – si
fanno risalire al momento costitutivo originário (…). Allora, se il valore non muta e le sostituzioni
oggettive non variano questa situazione, non ha senso parlare di perfezionamento del diritto tramite la
consegna della cosa, perchè in questo tipo di pegno la garanzia è costituita hic et nunc e le successive
sostituzioni comportano una mera surrogazione reale dell’oggetto della garanzia”); e, por outro lado,
pela assimilação entre penhor rotativo e penhor de coisa futura (distinguindo o Autor as duas figuras,
porquanto nesta última “la costituzione del diritto reale di garanzia si avrà con l’effettiva creazione della
cosa e con la sua consegna al creditore (…) esiste un diaframma temporale fra conclusione del accordo e
il sorgere del diritto reale di garanzia”, sendo que no penhor rotativo “esistendo già al momento della
stipulazione il bene, il diritto sorge contestualmente alla stipula, essendo – di conseguenza –
immediatamente opponibile ai terzi (…) il pegno rotativo è valido e efficace ab initio”, concluindo pela
inexactidão da explicação do penhor rotativo, realizada pelo aresto, como uma fattispecie de formação
progressiva). Também Gessica Pavasini, ob. cit., pág. 282 e segs., contesta o facto de a decisão em
questão propender para a qualificação do penhor rotativo como penhor de coisa futura, asseverando que
“il pegno è costituito ab initio e solo l’oggetto è modificato (…) al momento delle successive rotazioni”,
ao contrário do penhor de coisa futura que se constitui “solo quando la cosa è consegnata, una volta
venuta ad esistenza, senza ovviamente alcuna retroatttività dell’effetto reale, posto che se la cosa ab
initio non esisteva in rerum natura non si vede come su di essa sarebbe potuto costituire un pegno”.
Especial referência merece o comentário de Melissa Magnano, ob. cit., pág. 582 e segs., destacando que
788
esta decisão, ao contrário da de 1998, prescinde da necessidade de, a cada substituição dos bens onerados,
se proceder à redacção de um documento escrito com data certa contendo a suficiente indicação do
crédito garantido e do bem onerado, bastando que tal ocorra no momento inicial da constituição da
garantia (no mesmo sentido, Gessica Pavasini, ob. cit., pág. 285). Gessica Pavasini, ob. cit., págs. 286 e
287, cita ainda duas decisões posteriores da mesma Corte – n.º 16914, de 11/11/2003 e n.º 4520, de
3/3/2004 - , nas quais se reafirma, com remissão para os arestos de 1998 e 1999, a admissibilidade do
penhor rotativo.
2775
Vide, por exemplo, a decisão da Corte de Apelo de Milão de 4/7/2001 (no qual se reconhece a
validade dos pactos de rotatividade, na condição de o bem substituto não exceder o valor do bem
substituído), com comentário de Silvia Lovisatti, ob. cit., pág. 695 e segs.. Esta Autora, depois de
analisado o panorama jurisprudencial e doutrinal, conclui que se encontra superado o problema da
admissibilidade do penhor rotativo, concluindo estarem assentes os traços gerais da figura, como sejam a
sua natureza típica (apenas divergindo do penhor tradicional na medida em que o objecto da garantia
reside no valor do bem empenhado e não no bem em si), a noção de substituição (fundada na sub-rogação
convencional com efeitos análogos aos da sub-rogação real legal, podendo ser total ou parcial, embora
não haja unanimidade quanto ao facto de os pactos rotativos contemplarem, além da substituição, também
a integração dos bens inicialmente empenhados: um argumento a favor desta segunda alternativa pode
retirar-se do regime do penhor de instrumentos financeiros – cfr. art.º 46.º do Regolamento Consob citado
supra – em que se admite expressamente, além da substituição, também a integração, mas, em ambos os
casos, respeitando a paridade de valor) e a ausência de efeitos novatórios da substituição (devendo
atender-se, por isso, à data da originária constituição, designadamente para efeitos de invalidade em sede
falimentar). Todavia, existem ainda alguns aspectos relativamente aos quais as divergências persistem,
designadamente quanto à noção de paridade de valor (contrapondo-se os que entendem que o limite deve
ser aferido relativamente ao valor que o bem inicialmente empenhado tinha no momento da constituição
da garantia, aos que sustentam que se deve atender ao valor do mesmo bem no momento da substituição),
aos elementos que devem constar do acordo inicial de rotatividade (depois de constatar a falta de
unanimidade jurisprudencial e o escasso contributo doutrinal, conclui que se deverá exigir um grau de
especificação que permita aos terceiros credores controlar que os bens inicialmente empenhados não
serão substituídos por outros de maior valor, assim identificando os bens a que o vínculo se poderá
estender no decurso do funcionamento da cláusula de rotatividade – variando o grau de especificação em
função do concreto bem empenhado - e as modalidades em que a substituição poderá operar – sugerindo
alguns a criação de um dossier para aí agrupar os diversos títulos) e à eventual necessidade de renovação,
a cada substituição, do documento escrito de data certa contendo a suficiente descrição do crédito
garantido e do bem empenhado (noticiando que a generalidade da doutrina e jurisprudência respondem
afirmativamente quanto à identificação do bem e do crédito, mas são mais permissivas relativamente ao
requisito da data certa).
2776
Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 85 e segs., faz uma resenha destas decisões, começando pela sentença
da Corte de Apelo de Milão de 5/4/1974 (onde se afirmava, a propósito da substituição do título de
crédito originariamente empenhado por um outro título de crédito, que “Il mutamento dell’oggetto del
pegno non comporta la concessione di una nuova garanzia”), passando pelas decisões do Tribunal de
Apelo de Roma de 30/10/1995 (vide nota seguinte) e do Tribunal de Génova de 30/5/1997 (que, em
termos particularmente incisivos, assegura que “Il c.d. pegno rotativo trova riconoscimento, nel nostro
ordinamento, senza la necessità ogni volta di rinnovare la formalità di costituzione, in presenza dei due
requisiti della sufficiente determinazione del bene oggetto della garanzia nel patto di rotatività, risultante
per atto scritto oponibile ai terzi, e dalla derivazione del nuovo bene ad esso assoggettato dal
controvalore del precedente, anche eventualmente incrementato dal controvalore del precedente, anche
eventualmente incrementato del maggior valore conseguito dalla sua realizzazione e reimpiegato
nell’acquisto del nuovo”), culminando no aresto do Tribunal de Milão de citado na nota seguinte.
Clementina Scaroni, ob. cit., pág. 414 e segs., traça um panorama jurisprudencial, contrapondo decisões
que negam a admissibilidade das cláusulas rotativas (maioritariamente com fundamento na violação do
princípio da tipicidade das garantias reais, por estarem ausentes alguns elementos típicos do contrato de
penhor, como o desapossamento ou na ausência de documento com data certa contendo a indicação do
crédito garantido e do bem onerado), daquelas que as admitem (as mencionadas nas notas anteriores, na
presente e na nota seguinte).
2777
Especial referência, em razão dos diversos comentários, merece a sentença do Tribunal de Milão de
17/11/1997, comentada (e reproduzida) por Dario Finardi, Orientamento antiformalistico della
giurisprudenza di merito in tema di pegno rotativo, in Il Fallimento, 1998, pág. 729 e segs. (embora
reforçando tratar-se de uma orientação minoritária, reconhece o mérito de admitir a validade das cláusulas
rotativas ao considerar “inutile, non opportuno e non conveniente ripetere una nuova convenzione solo
789
per dare atto di diversi titoli offerti in sostituzione”, pelo que a grande vantagem de tais cláusulas se
traduz na viabilidade de “sostituzione nel tempo dei titoli dati in garanzia, trasferendo quindi la garanzia
sui nuovi beni ma conservando gli effetti reali del vincolo e senza determinare una novazione del
rapporto iniziale”, até porque “se si restringono eccessivamente i margini delle garanzie, indirettamente
si può incidere, contraendolo, sul sistema di finanziamento delle imprese e quindi, si aggiunge, sui tassi
di interesse”. Todavia e aparentemente, o citado aresto exigia, a cada substituição, a renovação das
formalidades legalmente prescritas, maxime a redacção do documento escrito contendo uma suficiente
identificação do crédito assegurado e do bem empenhado.) e por Carmine Stingone, Sulla validità ed
opponibilità del pegno bancario “rotativo”: nuove conferme dalla giurisprudenza, in Il diritto fallimentare,
1998, II, pág. 97 e segs. (salientando a circunstância de, in casu, a faculdade de substituição caber ao
credor – a quem cabia igualmente a possibilidade de reinvestir o produto da venda dos títulos entretanto
vencido – e, especialmente, ancorando a validade de tais pactos na liberdade contratual das partes se
socorrerem do instituto da sub-rogação real para modelar o conteúdo de uma garantia real típica para criar
uma figura anómala de penhor, adaptada aos interesses legítimos da operação económica posta em
prática. Todavia, a decisão comentada esclarece que será forçosa a identificação, ab initio, das sequências
de desenvolvimento da operação económica e dos bens que posteriormente se substituiriam aos
originariamente empenhados). Também objecto de diversas anotações, apesar de não ser absolutamente
clara quanto ao reconhecimento da rotatividade, foi a sentença da Corte de Apelo de Roma de 30/10/1995
- cujo recurso para a Corte de Cassação motivou a decisão n.º 5264, de 28/5/1998 supra mencionada -
nomeadamente por parte de Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 87 e segs. (reconhecendo que a mesma
incorre numa contradição ao sustentar a validade do pacto comissório, mas, paradoxalmente, entende ser
necessária uma nova constituição aquando do funcionamento do mecanismo sub-rogatório, quando
declara que “le parti sono libere di strutturare il funzionamento della garanzia con un oggetto del pegno
variabile nel tempo secondo modalità concertate ab initio, ma non possono far coincidere il
perfezionamento del contratto di pegno con la primitiva regolamentazione per tutti i beni che via via
saranno individuati come oggetto di pegno”) e de Umberto Borzi, Brevi note sull’ammissibilitá del pegno
bancario rotativo, in Revista di Diritto Commerciale, 1996, II, pág. 151 e segs., dando igualmente conta
das contradições do aresto (ao reconhecer a validade do pacto rotativo, mas acrescentando que o mesmo
choca com a natureza real do contrato de penhor, assegurando o Autor que, das duas uma: “o si nega la
configurabilità del pegno rotativo in nome di una rigida applicazione del principio della realità del
contratto, ovvero non si mette in discussione la configurabilità di un símile contratto di garanzia, e allora
non è necessario armonizzare il risultato dell’autonomia contrattuale con un principio di realità
derrogato a priori dal contenuto causale del pegno rotativo!”), advogando que, em face das
características do bens empenhados in casu (títulos desmaterializados e sujeitos a gestão centralizada), se
torna irrelavante a questão da entrega material, razão pela qual a “garanzia ha per oggetto più che un
insieme di titoli, un valore, expresso dai titoli (…). Ogniqualvolta la garanzia risulti inadeguata al
credito erogato, può essere integrata; ogniqualvolta i titoli vengano a scadere, la banca creditrice o il
costituente li sostituiscono con nuovi titoli di genere analogo” (até porque, sempre segundo o mesmo
Autor, “l’aggiornamento di titoli omogenei non porti modifiche all’assetto che le parti hanno voluto dare
con il primo accordo: se (…) la garanzia ad essa pertinente non si muta nei soggetti e nella funzione, non
si vede allora come una ordinaria attività di reinvestimento (…) possa portare qualche effetto novativo al
contratto”) e concluindo que, em face desta orientação, o melhor caminho será a opção pelo penhor
irregular (assim permitindo uma satisfação directa do credor sobre os bens onerados, sem necessidade de
recorrer às medidas executivas). Ainda em comentário à mesma decisão, mas mais céptico relativamente
à admissibilidade dos penhores rotativos se mostra Carlo Tabellini, Modificazione dell’oggetto della
garanzia e retrodatazione del vincolo reale, in Il Fallimento, 1996, pág. 678 e segs. (ao aceitar que
“Perché se è vero – come è vero - che il pegno su beni mobili sorge e si costituisce solo con lo
spossessamento del concedente, gli accordi che le parti abbiano raggiunto per ricollegare ogni dazione
di pegno di nuovi beni al loro originario contratto (il c.d. patto di rotatività) attengono piuttosto al titolo
che ha consentito quelle nuove dazioni di beni, ma non possono far venir meno il dato in sè che la
garanzia sui nuovi beni (…) sorge solo nel momento in cui questi ultimi vengono consegnati. La
disciplina e i patti che regolano quella nuova garanzia potranno forse dover essere ricercati, in virtù del
richiamo operato consensualmente, nall’accordo primigenio. Ma ciò non toglie che comunque il vincolo
sui nuovi beni sia sorto soltanto nel momento in cui gli stesssi sono stati consegnati”). Particularmente
desenvolvidas são as considerações de Giuseppe Chiné, Il pegno “rotativo” tra realtà e consensualità, in
Giurisprudenza Italiana, n.º 148 (1996), I, 2, págs. 569, salientando, por um lado, as contradições do
aresto (falando das suas boas intenções, ao afirmar que não se trata de discutir a validade e eficácia do
penhor rotativo, para depois concluir, contraditoriamente, em termos que conduzem “all’azzeramento del
contenuto del patto di rotatività, il cui unico effetto rimane, a conti fatti, di autorizzare un’attività
790
Atento este panorama, não surpreende, por isso, que se considere resolvida a
questão relativa à admissibilidade do penhor rotativo, importando antes delimitar com
precisão os contornos e os requisitos da figura nas hipóteses de rotatividade não
expressamente previstas na lei.2778
Noutros ordenamentos, porém, a questão não se afigura tão pacífica.
Por exemplo, em Espanha e aproveitando o silêncio do Código Civil sobre a
matéria,2779 alguma doutrina admite, em caso de substituição do objecto do penhor, a
permanência da original relação de garantia, desde que se comprove que os modelos de
garantia com objecto variável não violam disposições legais ou princípios de ordem
pública,2780 considerando que o objecto da garantia incide, não tanto sobre um
meramente materiale e cioè la sostituzione dei titoli concessi in garanzia con altri della medesima specie
e quantità (…) poiché al momento della sostituzione ed ottemperanza della lettera dell’art. 2787 c.c., un
nuovo contratto di pegno prenderà il posto di quello originario”), por outro criticando o modo como
encara o problema do penhor rotativo (analisando a questão de acordo com um modelo analítico
polarizado sobre cada um dos actos de substituição, sem a enquadrar no contexto sócio-económico em
que o fenómeno da rotatividade se integra, sugerindo o recurso à figura da operação económica) e, por
fim, aduzindo um conjunto de argumentos favoráveis à validade de tal figura (desde logo algumas
decisões judiciais que validam os pactos de rotatividade sem efeitos novatórios, depois elencando uma
série de normas legais que consagram os efeitos sub-rogatórios e, finalmente, ancorando a validade dos
pactos rotativos na constatação que o interesse do credor se dirige, não tanto ao bem enquanto tal, mas
antes ao valor que o mesmo representa – “senza che possa sussistere il concreto pericolo di sostituzioni
della res in corso di rapporto idonee a corrodere la garanzia”, razão pela qual é “possibile e lecito
sostituire con uno o più atti successivi l’originario oggetto della garanzia, senza che ciò dia luogo ad un
fenomeno di novazione oggettiva, non voluto dalle parti e, d’altro canto, del tutto ultroneo in relazione
allo scopo di conferire flessibilità ad una garanzia reale per adeguarla alla particulare natura giuridica
di alcune tipologie di beni costituiti in garanzia”. Quanto à sua oponibilidade, esta deverá prescindir da
redacção, a cada substituição, de um novo documento com a suficiente indicação do crédito assegurado e
do bem empenhado, desde que a escritura original contenha os elementos suficientes para determinar os
possíveis substitutos dos bens inicialmente empenhados: ora, como no caso concreto tinham sido
empenhados títulos do Estado, bastava a indicação da natureza e do valor mínimo dos títulos que
poderiam ser adquiridos com o produto da venda daqueles originariamente onerados, tanto mais que a
própria lei admite tal fenómeno de substituição a propósito destes títulos), concluindo que a rotatividade
em nada afecta a natureza real do penhor “anzi la valorizza nella misura in cui all’iniziale e decisiva
consegna della cosa vengono ricondotte le successive vicende dell’unitario rapporto di garanzia”.
2778
É a posição de Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 3, elencando três questões principais a resolver: a
identificação dos limites da sua utilização por parte da autonomia privada; sistematização das regras
ditadas para cada uma das garantias rotativas, contrapondo-as com as ditadas para a rotatividade legal; e,
por fim, a elaboração da disciplina global das garantias rotativas.
2779
Alguns autores citados por De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., págs. 229 e 230, entendem que
esta lacuna deve ser suprida com recurso ao direito catalão que, como veremos, prevê expressamente a
possibilidade de atribuição, por via convencional, de efeitos rotativos ao penhor.
2780
Neste sentido, Lopez Beltrán de Heredia, apud Stefano de Paola, ob. cit., pág. 9 e, sobretudo, Mejias
Gomez, La prenda cit., pág. 121 e segs. De acordo com este último Autor, a favor dos pactos de
rotatividade (nomeadamente a respeito de carteiras de acções) depõem a admissão de sub-rogação em
caso de perda ou deterioração do bem empenhado e o prejuízo que para o credor pignoratício e para o
empenhante decorreria da diminuição do valor das acções empenhadas, caso não fosse possível a sua
venda. Nesta conformidade, o Autor sustenta que a observância do princípio da especialidade impõe uma
dupla delimitação do objecto do penhor, por um lado qualitativa (identificando os concretos valores que
podem ser integrados na garantia) e por outro quantitativa (indicando o limite máximo a que pode chegar
o montante da garantia) e ainda “que la sustitución se lleve a cabo dentro de los límites y requisitos
pactados previamente en el documento público de constitución de la prenda” (apontando como solução
possível “recoger en el título constitutivo el procedimiento de sustitución de las acciones pignoradas,
enumerando qué classe de valores podrían sustituirlos, y especificando las causas de la sostitución, sea
por disminuición de la cotización o el valor de las acciones o ante otra circunstancia objectiva
claramente constatable. Se han de estabelecer en el título constitutivo unos límites entre la cotización de
las acciones pignoradas y la deuda pendiente en cada momento, de manera que superados estos límites,
a iniciativa del acreedor pignoraticio, a consecuencia de la perdida de cobertura de la garantía o, del
791
determinado objecto concreto, mas antes sobre o valor económico que o mesmo será
capaz de proporcionar, nomeadamente em sede executiva, ao credor.2781
Todavia, também neste ordenamento se reconhece a existência de limites à
operatividade do fenómeno rotativo, seja no que concerne à sua articulação com a perda
do benefício do prazo,2782 seja no que respeita aos requisitos que o pacto de rotatividade
constituyente, en base a la disminuición del valor de su inversión, venga la propria entidad acreedora
obligada a vender y reinvertir el producto en alguno de los valores previamente relacionados en la
escritura”, conferindo o sócio empenhante, no título originário de constituição da garantia, poderes ao
credor para proceder à venda, bem como ao posterior reinvestimento das quantias obtidas, ou à
substituição dos bens inicialmente onerados – para além disso, esta habilitação bastaria para o credor
solicitar junto da entidade competente os averbamentos e cancelmentos necessários, nomeadamente
quando se trate de acções representadas através de anotações em conta).
2781
Segundo Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 251 a 257, o penhor rotativo pressupõe a
consideração do objecto da garantia, não na sua individualidade, mas antes como valor económico (“la
prenda es un derecho de satisfación para cobrar el crédito, no en la cosa misma, sino en el valor del
objeto de la garantía” – aut. cit., Prenda omnibus cit., pág. 46), admitindo a validade das cláusulas
rotativas desde que não seja ultrapassado, apesar da substituição dos concretos bens, o valor económico
dos bens originariamente empenhados (assim mantendo inalterado o valor dos bens destinados à
satisfação dos demais credores do constituinte). De acordo com esta perspectiva do valor económico do
bem onerado, o Autor aceita que a modificação das concretas res oneradas se produz através de um
fenómeno de sub-rogação convencional (como, na fase executiva, o direito do credor pignoratício recai
sobre o valor económico do bem, “es posible, mediante subrogación real, llevar a cabo la sustitución del
objeto de la prenda, manteniendo la originaria unidad e identidad de la relación, en cuanto que el interés
protegido con la garantía no es aquel dirigido a la obtención de la res sino aquel dirigido a la
realización de la utilidad real, la del valor económico representado por la cosa” – Veiga Copo, Prenda
omnibus cit., pág. 46) que exclui o efeito novatório da substituição e, apesar de comportar uma alteração
do esquema normal do penhor, não conduz à qualificação do penhor rotativo como uma garantia atípica
(uma vez que a função de garantia permanece a mesma, variando unicamente o meio de a atingir).
Todavia, o Autor deixa no ar a questão relativa à possibilidade de ser convencionada uma cláusula
rotativa em momento posterior ao da constituição da garantia. Também García Vicente, La prenda cit.,
pág. 100 e segs., admite a substituição do objecto empenhado (apontando como exemplos legais de clara
consagração dessa possibilidade o regime do penhor financeiro e até, mais remotamente, o art.º 1129.º, n.º
3, do CCE, de acordo com o qual o devedor não perderá o benefício do prazo quando, em caso de
desaparecimento ou diminuição das garantias prestadas, estas sejam imediatamente substituídas por
outras novas e igualmente seguras), esclarecendo que, no penhor de créditos, tal substituição assume
particular relevância nos casos em que o crédito originariamente onerado se revista de especial
importância para o empenhante, seja em razão do seu montante (consideravelmente superior ao do crédito
garantido), seja por força da sua data de vencimento (mais breve): todavia, fora dos casos expressamente
previstos na lei, o Autor impõe duas condições para a substituição, quais sejam a manutenção do valor
económico da garantia (o que, no caso específico do penhor de créditos, significa que o crédito substituto
“represente, al menos, la misma utilidad para el acreedor de modo que el riesgo de insolvencia del
deudor cedido (sustituto) sea semejante”, embora reconheça que, neste tipo de garantia, a faculdade de
substituição não assume a mesma relevância que tem no domínio do penhor financeiro, sendo a sua
utilidade sentida quando o empenhante “quiera conservar o mejorar su posición de crédito con el
acreedor, a través de una sustitución que reduzca el riesgo de insolvencia de los deudores de los créditos
pignorados”) e a manutenção da ordem de preferência inicial da garantia originária (operando a garantia
como um penhor de créditos futuros, cuja preferência, uma vez operada a substituição, retroage à data da
primitiva constituição da garantia).
2782
Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 44 e segs., considera que a análise da validade das convenções
rotativas deverá ser precedida de uma avaliação do regime da perda do benefício do prazo (vertido no art.º
1129.º do CCE), designadamente para aferir da sua eventual inderrogabilidade. Mais concretamente, nos
termos do regime legal, verificar-se-á a perda do benefício do prazo quando a garantia diminua por facto
imputável ao devedor ou de desaparecimento por caso fortuito (a menos que a garantia seja
imediatamente substituída por outra igualmente segura). Em face deste regime, o Autor questiona se será
admissível que, por via convencional, se possa estabelecer como causas de substituição do objecto “no
sólo la desaparición del objeto sino también si es viable cuando opera una mera disminuición imputable
ya al deudor, ya por mero caso fortuito” (apontando como exemplo a flutuação da cotação bolsista das
acções): ora, o Autor responde negativamente ao quesito, argumentando, por um lado, com o disposto no
792
deve observar em ordem à sua validade,2783 especialmente quando a garantia recaia
sobre uma carteira de valores dinâmica – na qual se permite a modificação dos bens
art.º 1105.º (nos termos do qual ninguém deverá responder pelos eventos imprevisíveis, bem como por
aqueles que, embora previsíveis, forem inevitáveis: só assim não será quando a lei ou o contrato
disponham em sentido contrário) e, por outro, com o facto de o regime da perda do benefício do prazo
constituir uma protecção do devedor (pois apenas determina a obrigação do devedor repor a garantia em
caso de destruição total da coisa motivada por caso fortuito, mas não em caso de diminuição de valor da
mesma), concluindo, em conformidade, que “Sería ilícito portanto prever en un contrato de prenda que
en caso de pérdida de valor – disminución – tenga el deudor que reponer el valor de la garantía”.
2783
Para além do limite relativo à não ultrapassagem do valor dos bens inicialmente empenhados (o que
impõe a exacta avaliação dos bens que se substituem e, acima de tudo, a determinação do momento
temporal no qual se deverá fixar o valor dos bens que substituem os primitivos: ou no momento da
constituição do penhor ou no momento da substituição dos bens. Por outro lado, “La rotatividad es
compatible con la sustitución del objeto efectuada con bienes correspondientes al contravalor del bien
originario pero no a sus frutos, puesto que la sustitución debe hacerse con bienes con identidad de valor
a aquellos originarios” - Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 47), será forçosa a previsão, no pacto
inicial, da possibilidade futura e eventual de substituição dos bens empenhados (não sendo admitida “una
genérica previsión sobre la posibilidad de sustituir los bienes objeto de garantía por otros, sin precisar
ni el tiempo ni la modalidad de sustitución, y sin ni siquiera predeterminar el límite del valor económico
dentro del cual la sustitución puede ser efectuada”, exigindo-se antes uma determinação dos bens e
valores que podem vir a integrar a garantia “entendiendo estos valores como plenamente fungibles, si
bien, en la hora de proceder a inscribir la prenda en el registro contable, éste produce el desglose de los
mismos” – Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 251 e segs.). Em termos mais afirmativos, o
mesmo Autor (cfr. Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 45 e segs.) sustenta que a validade dos pactos
rotativos se encontra subordinada a uma suficiente identificação dos bens que podem vir a ser objecto de
substituição “así como los mecanismos a través de los cuáles los bienes originariamente sujetos dejan de
estarlo y cómo se procede formalmente a esa sustitución”, concluindo que ditas cláusulas “sólo se
admitirián si son suficientemente específicas, precisando la modalidad de determinación del valor de los
bienes, si prevén indicadores externos que permitan la inmediata identificación de los bienes (…) y
finalmente cuando se prevea formalmente toda operación de cambio del objeto que individualice los
nuevos bienes objeto de la garantía haciendo expresa referencia al originario contrato de prenda con
pacto de sustitución”. De modo mais detalhado, será possível proceder à substituição dos concretos
objectos empenhados, sem alterar o objecto da garantia (“La relación obligatoria-garantoria es la misma,
sin necesidad de modificar el título constitutivo de la prenda, cuyos elementos, a excepción del objeto,
están explícitamente en él determinados. En lo concerniente al objeto, siempre que se sustituyan cosas
dadas en garantía por otras de la misma especie y calidad, y se hubiese pactado expresamente, podemos
hablar de un mantenimiento de la garantía”), respeitando as exigências formais (importando distinguir, a
propósito dos valores mobiliários, os escriturais – admitindo a manutenção da data de constituição
originária da garantia, desde que os certificados de legitimação emitidos pela entidade competente
indicasse, além dos concretos bens onerados, “la posibilidad de la especie de valores que pueden ser
entregados como sustitución en caso de disminución de la cotización de esos valores” - os titulados à
ordem – caso em que “la constitución de la prenda variará de fecha pues no puede entenderse la incial
de la primera afección de valores, pues la fecha será la del endoso y no de la subrogación” - e ao
portador, caso em que no documento de constituição da garantia seria possível prever uma cláusula
rotativa, permanecendo como data de constituição da garantia a inicial), sem que tal implique a
constituição de uma nova garantia e recusando tratar-se esta de uma garantia atípica (considerando que
“el esquema negocial de una prenda rotativa implica una variación anómala y más elástica de la
estructura de una prenda normal, pero ello no debe llevarnos a pensar que nos hallamos ante una
garantía atípica, pues en definitiva la función de garantía, si bien se manifiesta mediante técnicas
alternativas o diversas, se cumple mediante la desposesión del constituyente” – Veiga Copo, Prenda
omnibus cit., pág. 57). Todavia, o aumento do valor da garantia, em resultado de sucessivas incorporações
e sem alteração da data de constituição da garantia, justifica a fixação de um limite máximo de valor da
garantia o qual, uma vez fixado, permitirá evidenciar a existência de desproporção abusiva entre tal limite
e os créditos garantidos, de modo que se o valor da garantia descer abaixo de tal limite, o credor pode
solicitar um reforço da garantia; pelo contrário, ultrapassado tal limite, o devedor empenhante poderá
dispor dos bens que ultrapassem o excesso de garantia (por exemplo, o Autor sugere que se permita ao
credor exigir o reforço da garantia e, se tal não acontecer a respectiva execução, quando o valor da
garantia diminua em mais de 10% - e o devedor, ao estabelecer que em caso ultrapassagem da margem de
garantia – fixada em 10% a 15% do valor do crédito garantido – o credor poderá exigir uma restituição
793
concretos bens onerados - objecto de gestão,2784 seja ainda sobre a necessidade de
repetição das formalidades de constituição da garantia a cada substituição.2785
Por seu turno o direito catalão admite, em termos amplos, as substituições, totais
ou parciais, dos bens fungíveis empenhados, desde que exista convenção nesse sentido,
entendendo-se, para todos os efeitos, que a data da constituição da garantia se mantém
inalterada como se tivesse sido constituída inicialmente sobre os bens que entretanto
substituírem os inicialmente empenhados (art.º 569-17, n.ºs 1 e 4 do Código Civil da
Catalunha),2786 contendo ainda regras específicas quanto ao modo de efectivar a
parcial e proporcional dos bens onerado: assim, “sí el valor de las concretas acciones pignoradas
aumenta, el número exacto de los que se consideran incluidas en la prenda disminuirá. Por contra, si se
reduce el valor económico, el número de elementos concretos que lo componen aumentará” - Veiga
Copo, Prenda omnibus cit., pág. 59).
2784
Nesta eventualidade Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág. 52 e segs., depois de alertar para o risco
de violação da proibição do pacto comissório (o qual poderia ser contornado considerando que “el cliente
no sería titular de los bienes singulares atribuidos en gestión, sino de aquellos bienes que resulten do
volta in volta objeto de la gestión, en razón a su continua sustitución o cambio”), realça como os
requisitos da validade deste tipo de acordo são idênticos aos previstos para as cláusulas rotativas (aos
quais se fará referência no texto), residindo as principais especificidades na posição do gestor no âmbito
da relação pignoratícia (assumindo as vestes de depositário – caso se trate de valores titulados – ou de
administrador, no caso de valores escriturais: se, porém, a constituição do penhor for posterior ao
surgimento do contrato de gestão e o credor pignoratício não seja o próprio gestor, “la afección de la
cartera de valores a una prenda implica, primero, una reducción en los poderes de disponibilidad en el
titular de los valores para retirar éstos y también para aumentar el riesgo de la cartera, y segundo, se
van a cercenar los poderes del gestor a la hora de adoptar las decisiones de inversión y agravarse en
suma su régimen de responsabilidad”) e na influência da constituição da garantia nos poderes do gestor
(porquanto este passa a ter que agir também no interesse do credor pignoratício, preservando o valor
económico da garantia e abstendo-se de investimentos arriscados).
2785
De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., pág. 228 e segs., depois de reconhecer o inegável interesse
do devedor (nomeadamente em razão da flutuação do valor de mercado de certos bens – v.g., valores
mobiliários –, pois, aumentando o respectivo valor, pode o devedor ter interesse em aliená-los) e do
credor (sobretudo em caso de diminuição do valor patrimonial dos inicialmente onerados, podendo a
solução passar até por um acréscimo da quantidade de valores empenhados) na substituição (ou,
eventualmente, no reforço), na pendência da relação de garantia, dos bens inicialmente onerados por
outros, registando-se, por isso, o incremento de diversas cláusulas contratuais inseridas em contratos de
penhor – maxime no âmbito financeiro – em que, estabelecendo-se um limite máximo até ao qual a
garantia responde, se estipula que, em caso de diminuição do valor dos bens onerados, o credor poderá
exigir uma garantia suplementar (e vice-versa, em caso de aumento daqueles, o credor disporá do direito
de retirar do âmbito da garantia uma parte dos mesmos): todavia, o Autor duvida da licitude de tais
pactos, uma vez que “nos encontramos ante la figura de la prenda de cosa futura, no admitida en nuestro
ordenamento (…) por lo que, al no existir los valores o, al menos, no ser propiedad del pignorante y, por
tanto, no poder identificarse ni entregarse, dificilmente podermos entener perfeccionado el contrato de
prenda, por lo que, al margen de la prenda que se constituya sobre los valores titularidad del pignorante
en el momento de la firma, lo más que podrá pactarse por las partes es una promesa de prenda sobre
valores que pueda poseer en el futuro” (porém, para o penhor de valores mobiliários escriturais, o Autor
admite que, através da concessão, por parte do empenhante à entidade registadora, de um mandato
irrevogável para a oneração de valores de determinadas quantidade e espécie de que aquele seja titular, de
modo a que a entidade registadora pudesse efectuar o registo destes novos valores, retroagindo a data de
constituição da garantia sobre estes à data de constituição originária do penhor, embora tal apenas seja
possível quando a entidade registadora seja, simultaneamente, o credor pignoratício).
2786
A respeito desta norma, Joan Marsal Guillamet, ob. cit., pág. 356 e segs., destaca como a mesma não
implica a qualificação da figura como penhor irregular (uma vez que se trata de “una fungibilidad
asimétrica ex conventione en la medida en que esta característica sólo se predica del pignorante,
facultado para sustituir los valores gravados, sin que la entrega de los bienes pignorados al acreedor
pignoraticio implique que éste adquiera la propriedad de los mismos”), até porque se poderão considerar
como fungíveis valores que objectivamente o não são, dado que os bens substitutos e substituídos não têm
que pertencer à mesma emissão, conceito base em matéria de valores mobiliários.
794
substituição quando o objecto da garantia sejam valores mobiliários, cotados ou não
(art.º 569-17, n.ºs 2 e 3).2787
A citada norma do direito catalão assume, face às anteriormente mencionadas,
uma importância acrescida, uma vez que o seu alcance não se cinge a uma categoria de
bens específica (valores mobiliários,2788 instrumentos financeiros ou outros), antes
abrangendo todos os que possam ser qualificáveis como fungíveis, destarte consentindo
a sua invocação em termos bastante mais abrangentes.
Em Portugal e partindo da admissibilidade legal desta fattispecie no âmbito do
penhor financeiro, a sua validade em termos gerais é sustentada por alguns,2789 partindo
da identificação do valor da coisa – e não da coisa em si - como objecto de garantia,
ancorando esta conclusão na admissibilidade, mesmo na ausência de disposição legal
expressa consentindo o efeito rotativo da garantia, da sub-rogação real convencional.2790
2787
No primeiro caso, a substituição far-se-á de acordo com o valor das cotações respectivas no mercado
oficial no dia da substituição; quanto aos valores não cotados, normalmente titulados, bastará que os
mesmos se encontrem em poder do credor pignoratício (ou de um terceiro designado para o efeito) e que
a substituição seja inscrita no título.
2788
Quanto a estes, o regime vertido na legislação catalã, segundo Veiga Copo, Prenda omnibus cit., pág.
45 e segs., apresenta um aspecto digno de realce, ao admitir que a substituição se faça, não apenas entre
bens da mesma espécie, mas também com outros de espécie diversa, desde que estes se encontrassem
previamente identificados no elenco dos bens passíveis de vir a ser onerados.
2789
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 294 e segs.. parte da consagração legal de
diversas hipóteses de sub-rogação real (art.ºs 674.º. n.º 2, 685.º, n.º 1, 692.º e 701.º - os dois últimos
aplicáveis por remissão do art.º 678.º) para concluir que “o nosso direito positivo aceita com grande
amplitude a sub-rogação real no âmbito do penhor”, com a consequência que “o penhor mantém-se, mas
com outro objecto, e, necessariamente com a data de constituição original” (para além de, noutros casos
– cfr. art.º 81.º, n.º 1, do CVM, a respeito do penhor de valores mobiliários – a lei se bastar com a
indicação da quantidade de bens objecto de penhor, sem curar da respectiva identificação), ou seja, será
legítimo inferir dos dados normativos o reconhecimento da sub-rogação real legal. Pronuncia-se,
igualmente, em sentido favorável à admissibilidade dos penhores rotativos Hugo Ramos Alves, ob. cit.,
pág. 115 e segs. (depois de excluir do seu âmbito o penhor de estabelecimento comercial, uma vez que
neste o objecto é o próprio estabelecimento e não os concretos elementos que o integram), ancorando a
sua viabilidade na construção do penhor como um vínculo de indisponibilidade sobre um determinado
valor económico (de modo que a simples modificação do objecto material na garantia não briga com o
perfil funcional desta).
2790
Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 294 e segs., partindo da constatação que o
reconhecimento legal da sub-rogação não basta para aceitar a validade dos pactos rotativos, indaga da
licitude da sub-rogação real convencional: na opinião do Autor, a resposta não pode deixar de ser
afirmativa, tendo em conta que o ordenamento jurídico não considera requisito necessário para a
manutenção do penhor a imutabilidade do objecto (conforme se alcança dos anteriormente enumerados
casos de sub-rogação real legal, pelo que se a lei o admite, também às partes será lícito fazê-lo), que o
interesse do credor é dirigido ao valor do bem onerado e não tanto ao bem em si, (como se alcança do
próprio elemento literal da noção de penhor acolhida no art.º 666.º, n.º 1, da qual decorre, ademais, a
necessidade de o bem substitutivo dever ter um valor idêntico ao substituído), que a publicidade da
garantia assegurada pelo desapossamento é cumprida na medida em que, a cada substituição, haverá uma
nova entrega do bem substituto (para além de, frequentemente, os credores pignoratícios serem muitas
vezes bancos que se podem socorrer do penhor sem desapossamento para eles criado, permitindo “que o
devedor sem nunca se desapossar da coisa empenhada, por acordo com o credor, vá variando o objecto
empenhado, podendo desenvolver a sua actividade económica, a que a garantia não coloca entraves”, até
porque esse diploma já consente que o devedor, com autorização do credor, possa alienar ou modificar o
objecto da garantia) e, por outro último, que o acantonamento da admissibilidade do penhor rotativo ao
domínio do penhor financeiro – único onde existe consagração expressa - representaria uma incoerência
ao não admitir a mesma figura quando o quid onerado fosse constituído por outro tipo de objectos – v.g.
mercadorias ou matérias primas depositadas – (apontando o Autor como exemplo o recentemente criado
“gage des stocks” do direito francês), até porque no próprio penhor de estabelecimento se consente a
alienação – e posterior substituição – dos bens corpóreos que integrem o dito estabelecimento. Em termos
análogos, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 115 e segs., aceita igualmente a sub-rogação real
convencional, utilizável como meio de colmatar o desfasamento temporal tradicional entre o tempo de
795
A nosso ver, a desnecessidade de redacção de um documento escrito como
condição de oponibilidade da garantia (e, no que especificamente respeita às cláusulas
rotativas, à eventual obrigação de renovação de tais formalidades a cada substituição),
embora possa ser encarada como um escolho à determinação do bem onerado (imposta
pelo art.º 280.º), pode, paradoxalmente, elimina um entrave, vigente noutros
ordenamentos, para a operacionalidade das garantias rotativas, ao dispensar, a cada
substituição, a renovação dessa formalidade, concretizando-se a identificação do bem
substituto mediante a respectiva entrega ao credor ou a terceiro.
Uma vez traçado este panorama genérico, do qual ressalta o reconhecimento
legislativo transversal das cláusulas rotativas no âmbito do penhor financeiro, importa,
agora, determinar a licitude da rotatividade fora das hipóteses legalmente previstas (ou,
dito de outra forma, quais as condições de validade da rotatividade convencional), assim
como os requisitos a que as mesmas devem obedecer e, finalmente, estabelecer as
consequências da sua inobservância.
Esta tarefa de delimitação dos predicados a que os pactos rotativos se encontram
sujeitos – e a sua própria admissibilidade – enfrenta obstáculos não despiciendos, de
entre os quais avulta o denominado princípio da especialidade dos direitos reais, cuja
interpretação trará como consequência a invariabilidade do objecto da garantia,
impondo uma correlação forçosa entre o direito de preferência e os exactos bens
onerados.2791
Correndo o risco de começar pelo fim, diremos, relativamente às consequências
da invalidade das cláusulas, quando a redacção de um suposto pacto de rotatividade não
contenha uma identificação dos bens empenhados, do funcionamento da rotatividade e
da proibição de alteração do valor originariamente empenhados, será a própria
qualificação da figura que se encontra em jogo.2792
Por isso, quando os pactos rotativos extravasem os termos em que são admitidos,
o efeito será a invalidade do inteiro pacto de rotatividade, com a consequente restrição
do penhor sobre os bens inicialmente onerados, dando cada substituição lugar ao
surgimento de um novo penhor.2793
vida do objecto da garantia e da obrigação garantida e tendo sempre em conta que “o fito da garantia não
se dirige directamente à obtenção da res, mas sim da utilidade real, id est, o valor económico
representado pela coisa”, destarte consentindo a manutenção da relação apesar da alteração do seu
objecto material, até por ser esse o desiderato almejado pelas partes.
2791
Alude a este obstáculo Piscitello, Le garanzie cit., pág. 36 e segs., embora assegurando que tal
princípio não assume o mesmo significado nas garantias - rotativas ou não - legais (onde funciona como
modo de protecção dos credores quirografários, operando a identificação ex lege dos bens onerados como
forma de impedir a extensão a outros bens dessas garantias e, fora dos casos expressamente previstos,
garantindo a aplicação da par conditio creditorum) e nas convencionais, nas quais a necessidade de
redacção de um documento escrito contendo a suficiente indicação do bem onerado tem como objectivo
evitar manobras fraudulentas que, reforçando a posição do credor pignoratício, prejudiquem os credores
quirografários, designadamente quando se produza um substituição dos bens onerados por outros de valor
superior – por ser assim, o Autor conclui que, em princípio, “le variazioni dell’oggetto della garanzia,
anche se determinano un rafforzamento della posizione del creditore garantito, non devono comportare
pregiudizi per i creditori chirografari”.
2792
Giuseppe Martino, ob. cit., págs. 71 e 72, considera que, em hipóteses como esta, não estaremos
perante verdadeiros pactos de rotatividade (de cuja tipologia fazem necessariamente parte a identificação
do mecanismo rotativo, dos critérios para determinar os bens a que a garantia se poderá estender e
necessidade de o valor dos bens onerados ao longo da operação não ultrapasse o daqueles originariamente
onerados), mas antes face a “atti di autonomia privata diretti a regolare nel tempo la costituzione di tanti
pegni diversi quante sono le sostituzioni”.
2793
Matteo Rescigno, ob. cit., págs. 28 e 29 entende que tal efeito se produzirá quando a ilegalidade
decorra do desrespeito pelos pressupostos de especificação dos mecanismos de rotatividade ou da não
pré-determinação do valor da garantia (no mesmo sentido, Melissa Magnano, ob. cit., pág. 589). Por outro
796
Passaremos, em seguida, a analisar as condições de validade das cláusulas
rotativas ou, noutros termos, da admissibilidade da sub-rogação real convencional.
lado, quando a substituição não seja acompanhada do desapossamento do devedor e/ou da redacção de
um documento escrito contendo suficiente indicação do bem empenhado e do crédito garantido, as
consequências serão as mesmas previstas para a não observância de tais requisitos no penhor não rotativo
(ou seja, inoponibilidade a terceiros). Finalmente, na hipótese de as partes terem atribuído, em sede de
constituição da garantia, ao bem um valor diverso do seu valor real ou, por outro lado, terem realizado
uma substituição do objecto da garantia passando a onerar bens de valor superior, o Autor propende para
“una sorta di ideale riduzione della continuità degli effetti della garanzia rotativa al valore entro il quale
la sostituzione sarebbe stata legittima ovvero ai beni che legittimamente sarebbero divenuti oggetto della
sostituzione”, alegando que a invalidade total da cláusula seria “funzionalmente eccessiva e, soprattuto,
difficile di giustificare sotto il profilo formale: infatti non è possibile che l’intero patto di rotatività resti
inficiato per l’effetto di una violazione della sua esecuzione. La sanzione, in tal caso, non potrebbe che
essere confinata all’atto esecutivo illegitimo e cosi all’atto di sostituzione (…). Con la conseguenza che
esso potrebbe essere sostituito da altro atto di sostituzione o integrazione legittimo o potrebbe, ove i beni
lo consentano, esser ritenuto in parte valido”.
2794
Como afirma Giuseppe Martino, ob. cit., págs. 76 e 77, “L’idea di una garanzia rotativa è funzionale
allo scopo che determinate operazioni economiche perseguono, questa funzionalità sarebbe del tutto
frustrata se ad ogni passagio si rendesse necessaria la creazione di un nuovo titolo di prelazione”.
2795
E o direito de preferência pignoratícia cessará de cada vez que se opere uma substituição, por mais
vezes que esta se venha a produzir na pendência da obrigação garantida. Se assim é, poder-se-á perguntar
que vantagem existirá, do ponto de vista do concurso com outros credores, em estipular um penhor com
pacto rotativo e não celebrar novos contratos de penhor à medida da substituição dos bens inicialmente
empenhados?
2796
Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 70, escrevendo que “Parece que a substituição do objecto
do penhor deve ter como consequência a criação de um novo direito de penhor. Trata-se de um penhor
novo, não do antigo, que tinha outro objecto, devendo, portanto, observar-se, em relação ao novo
penhor, os requisitos necessários para a constituição do penhor”, ou seja e em regra, a entrega dos novos
bens ao credor. Em face do direito italiano, vide a Sentença do Tribunal de Apelo de Roma de
30/10/1994, in BBTC, n.º 49, Tomo II, págs. 183 a 187, na qual se afirma que, embora as partes possam
estruturar o funcionamento da garantia de modo a fazer variar o objecto do penhor de acordo com as
modalidades inicialmente fixadas, “non possono far coincidere il perfezionamento del contratto di pegno
con la primitiva regolamentazione per tutti i beni che via via saranno individuati come oggetto del
pegno” ou, noutras palavras, “non possono far retroagire la costituzione del pegno al primo negozio
stipulato tra le parti” (todavia, em comentário a este aresto Carmine Stingone, Pegno di titoli di crediti;
sostituzione dell’oggetto, in BBTC, n.º 49, Tomo II, pág. 87, observa que o mesmo reconhece
797
A este entendimento, no entanto, contrapõe-se um outro, mais liberal, segundo o
qual a ausência do referido efeito novatório será de admitir desde que se adopte uma
perspectiva funcional (nos termos da qual o penhor visa criar a afectação do valor
económico de um dado bem), a qual se impõe sobretudo quando o objecto empenhado
tenha natureza fungível.2797
expressamente a validade das cláusulas rotativas, apenas lhe conferindo efeitos novatórios em razão do
modo ambíguo e equívoco como se encontrava redigida, traduzindo-se afinal num pacto de substituição e
de reintegração e não num verdadeiro pacto de rotatividade), bem como as diversas decisões judiciais
citadas por Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 133, nota 73 (para as quais, em resumo, “la sostituzione delle
cose oppegnorate determina il sorgere di un nuovo pegno rendendosi necessaria, per il diritto di
prelazione, un’ulteriore scrittura rispondente alle (…) sufficiente indicazione delle cose e del credito,
data certa; formalismo che si giustificherebbe al fine di tutelare i creditori chirografari”). É também este
o entendimento seguido por Francesco Magni, ob. cit., pág. 385, para quem, em caso de substituição – por
iniciativa do credor, após autorização do empenhante – ou restituição (a fim de o empenhante entregar
outros para os sujeitar ao penhor) dos bens originariamente empenhados, “il pegno si costituisce, a tutti
gli effetti ed anche dell’azione revocatoria, sul nuovo bene con la consegna o con la sua sufficiente
indicazione con atto scritto” e por Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 35 e 36, para quem surgirá um novo
penhor (afirmando que “Nei rapporti coi terzi le parti possono d’acordo sostituire l’oggetto de pegno, ma
si tratterà di un nuovo pegno che prende data del momento della sua costituzione”, qualificando como
nulas as cláusulas que prevejam a extensão da garantia a outros objectos, além dos originariamente
empenhados). Assegura ser este o entendimento dominante, Luca Ruggeri, Il pegno rotativo, in La
giurisprudenza civile comentata, ano 18, n.º 6 (Nov/Dez 2002), II, pág. 709 e segs. (reconhecendo que,
quando muito, é reconhecida eficácia inter partes à cláusula).
2797
De acordo com Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 19 e 20, a admissibilidade das cláusulas rotativas
pode ser retirada, ao menos recorrendo à analogia, da alínea c) do art.º 670.º – nos termos da qual o credor
tem o direito de exigir a substituição ou o reforço do penhor se a coisa empenhada perecer ou se tornar
insuficiente para a segurança da dívida - caso em que unanimemente se reconhece não existir novação
objectiva da garantia, considerando que “o mesmo escopo é prosseguido, no penhor de créditos, pela
cláusula de rotatividade, desde que, uma vez circunscrito o universo de créditos abrangidos, as unidades
de representação que integram a reserva de utilidade sejam determináveis a todo o tempo, de acordo
com o critério pré-fixado no negócio jurídico de garantia”. Em termos análogos, Joana Dias, ob. cit.,
págs. 47 e 48, salientando que na hipótese visada pelo citado preceito “não existe novação objectiva da
garantia, dado que se trata unicamente de prover pela adequação do quid garantístico à dívida. O
mesmo objectivo é alcançado com a aposição de uma cláusula de rotatividade desde que circunscrito o
universo dos créditos abrangidos, as unidades de representação que integram a reserva de utilidade
sejam determináveis a todo o tempo, de acordo com o critério pré-fixado no contrato de garantia”. No
direito italiano, Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 76, admite a ausência de efeitos novatórios sempre que,
no caso concreto, se demonstre que as sucessivas substituições se produzem no seio de um procedimento
unitário, não sendo mais do que a exteriorização do perfil dinâmico da operação, posição esta tributária
do entendimento expandido por Gabrielli, Il pegno cit., pág. 237 e segs. (partindo do conceito de operação
económica, o Autor retém que as substituições operadas no seio daquela não implicam uma modificação
da relação de garantia, realçando apenas a sua natureza mutável e causal, de tal modo que a alteração de
um dos seus termos – o objecto imediato – não comporta o surgimento de uma nova relação de garantia.
Com efeito, “La sostituzione dell’oggetto non determina nel pegno rotativo la costituzione di un nuovo
pegno rispetto a quello originario ma dà luogo ad una surrogazione reale: lo stesso valore formale di
garanzia può infatti accedere ad oggetti materiali diversi e mutevoli nel tempo (…) nella fattispecie in cui
opera un’appropriata tecnica contrattuale, in quanto, escludendo qualsisasi effetto novativo, mantiene
l’originaria identità del rapporto nell’unità dell’operazione”: todavia, não deixa de advertir para a
necessidade de a convenção, para produzir efeitos face a terceiros, dever constar de um documento escrito
com data certa, no qual será explicitado o mecanismo de rotatividade e inseridas as indicações
indispensáveis para permitir determinar os objectos para os quais a garantia poderá transitar). Em face do
direito italiano, a ausência de efeitos novatórios é defendida igualmente por Carmine Stingone, Sulla
validità cit., pág. 187, desde que a cláusula de rotatividade “viene costituito in modo tale che l’operazione
economica risulti scandita, fin dall’origine, nelle sue sequenze sia con la preventiva individuazione dei
beni sui quali il meccanismo di garanzia verrà com successivi passaggi nel tempo ad incidere, sia con la
individuazione del meccanismo di rotatività della garanzia”. Mais dúbia é a posição de Rubino, Il pegno
cit., pág. 204, segundo a qual “Se d’accordo fra le parti la cosa data in pegno viene sostituita con
un’altra, si há un caso di surrogazione reale, e, si ammetta o neghi la nascita di un nuovo singolo diritto
798
Esta segunda corrente funda-se, ora no instituo da sub-rogação real - ou melhor,
considera que o pacto de rotatividade se traduz numa sub-rogação convencional do
objecto do penhor,2798 assim mantendo a identidade da primitiva relação de garantia e
excluindo qualquer efeito novatório, sempre que seja individualizado o mecanismo de
rotatividade e o seu objecto2799 - ora, mais raramente, considerando os bens objecto do
penhor como um património separado.2800
Assim, se no regime tradicional do penhor se poderá distinguir entre contrato
pignoratício (para o qual basta o consentimento das partes) e constituição do direito de
penhor (para o qual é necessária a entrega do bem ou outro acto equivalente) -
momentos estes que não têm que ser cronologicamente coincidentes - no penhor
rotativo, ao invés, tais momentos coincidem no tempo, surgindo a garantia
reale, sta per certo che il rapporto complessivo di pegno (…) permane identico. (…) Tuttavia per la
prelazione, nell’ipotesi dell’art. 2787, 3º comma, ocorre un nuovo atto scritto”.
2798
Vide em nota anterior neste mesmo n.º 3.2.1 deste Capítulo II, quais os Autores que professam,
especialmente entre nós, este entendimento.
2799
É esta a posição defendida por Gabrielli, Il pegno cit., págs. 240 e 241 (subscrita por Pierpaolo
Marano, ob. cit., págs. 133 e 134 e por Andrea Azzaro, Pegno rotativo cit., págs. 263 e 264),
considerando que “questa possibilita di surrogazione reale dell’oggetto del pegno non è incompatibile
con il diritto positivo, che prevede la riferibilità della garanzia a un valore economico piuttosto che al
bene di volta in volta utilizzato per concretizarlo”, assegurando que o carácter real da substituição
respeita, não ao direito de penhor originariamente constituído, mas sim ao seu objecto, o qual vem a ser
modificado “solo nella sua materialità, ma non anche nella sua identità giuridica, data appunto dal suo
valore economico”. Nesta conformidade, o mesmo Autor (cfr. Sulle garanzie rotative cit., pág. 125),
advoga que a rotatividade deverá ser admitida quando “la modificazione dell’oggetto avviene, a seguito di
un preventivo accordo delle parti, nel contesto di un’unitaria operazione economica (…) Nella
predisposizione del regolamento negoziale è infatti possibile, mediante apposita disciplina, indicare i
beni o titoli sui quali il pegno originariamente costituito potrà trasferirsi, prevedendo (…) le singole fasi
mediante le quali l’operazione si modulerà e dispiegherà articolandosi nel tempo, noché la res (bene,
valore o diritto) oggetto della garanzia. A tal fine, nel regolamento del negozio costitutivo del pegno,
quale sua parte integrante, potrà inserirsi uno specifico patto di rotatività della garanzia”). Aceita
igualmente este entendimento Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 172 e segs., afastando dois
possíveis obstáculos ao alargamento do fenómeno da sub-rogação real legal à sub-rogação convencional:
a pretensa excepcionalidade das normas legais (contrapondo que tal carácter excepcional se deve
considerar ultrapassado, uma vez que “la surrogazione reale è semplicemente lo strumento regolatore del
meccanismo di sostituzione che permette la conservazione dell’interesse giuridico protetto al valore
economico della cosa”) e a ausência de condições análogas às legais no domínio convencional que
justifiquem uma aplicação analógica daquelas (considerando irrelevante que a necessidade de substituição
do objecto da garantia não surja em consequência de um acontecimento imprevisível – como acontece na
sub-rogação legal – mas seja antes o resultado de um acordo das partes, até porque a razão de ser deste se
encontra muitas vezes relacionado com a natureza dos bens onerados – v.g. o rápido vencimento de
alguns títulos de crédito – e, sobretudo, porque a ratio da consagração da sub-rogação real – “rendere piú
efficace la causa di prelazione per soddisfare al meglio non solo l’interesse del creditore, ma quello del
debitore, che piú facilmente e a migliori condizioni può ricorrere al credito” – é extensível à sub-rogação
convencional), concluindo que “la surrogazione convenzionale può essere regolata allo stesso modo di
quella legale”.
2800
É a posição de Realmonte, L’oggetto cit., pág. 13 e segs., (a respeito dos títulos de crédito),
sustentando que, como condição de obtenção da preferência pignoratícia, bastará considerar os bens
objecto da garantia como património separado, pois “nessun pregiudizio potrebbe derivare ai creditori
dalle varie successivi sostituzioni, purché la prelazione operi entro il limite segnato dal valore dei beni
originariamente costituiti in pegno”. O mesmo Autor defende ainda uma outra possível variante da
rotatividade, qual seja aquela cláusula em que se prevê a transformação, no momento do vencimento dos
títulos empenhados e que devam ser renovados ou alienados a fim de adquirir outros, de um penhor
regular originariamente constituído sobre títulos “in pegno sul credito ex mandato all’acquisto di nuovi
titoli e al loro trasferimento in proprietà al datore o alla restituzione del loro controvalore”. Esta última
alternativa, como bem nota Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 134, corre o risco de originar a conversão do
penhor de coisas num penhor de créditos “venga considerata integrante una vera e propria
trasformazione della garanzia per la quale è necessaria una nuova costituzione”.
799
originariamente, enquanto as sucessivas substituições representam apenas uma mera
sub-rogação real do objecto da garantia.2801
A ausência de efeitos novatórios é, por vezes, assumida nas hipóteses legalmente
reconhecidas de rotatividade, como no penhor de valores mobiliários e no penhor
financeiro, não produzindo a substituição e/ou integração dos bens inicialmente dados
em garantia qualquer alteração no que concerne à data de constituição da garantia.2802
Mas a problemática da atribuição ou não de efeito novatório reflecte-se, não
apenas no que concerne à preferência pignoratícia do credor, mas igualmente em termos
falimentares, nomeadamente para averiguar se o negócio de constituição da garantia foi
ou não celebrado no denominado período suspeito e, por isso, estará ou não ferido de
invalidade2803 (ou, dito de outro modo, se a substituição dos bens empenhados poderá
conduzir à invalidade do negócio de garantia).2804
2801
Assim, Andrea Azzaro, Pegno rotativo cit., pág. 264.
2802
Vide, no ordenamento italiano, os já mencionados art.ºs 34.º do Decreto Euro e 46.º e 47.º do
Regulamento Consob que desenvolveu o primeiro preceito e, entre nós, o que ficou dito no Capítulo I
sobre o penhor financeiro (em especial o art.º 10.º, n.º 3, ao determinar que o objecto equivalente
substitui, para todos os efeitos, a garantia originalmente prestada, considerando-se como prestado no
momento da prestação desta). Como escreve Luciano Panzani, ob. cit., pág. 950, tais normas “hanno
ribadito il meccanismo della rotatività, ove la sostituzione degli strumenti finanziari non incide sulla data
di costituzione del vincolo, non verificandosi alcun effetto novativo del rapporto” (também Fabrizio
Maimieri, ob. cit., pág. 4, salienta que a substituição ou reintegração dos títulos inicialmente empenhados
não produz efeitos novatórios sempre que tais modificações se circunscrevam ao valor dos valores
primeiramente dados em garantia).
2803
Mais concretamente, se a garantia rotativa se deverá considerar constituída no momento da celebração
do contrato inicial ou, pelo contrário, a cada substituição se deverá entender estarmos perante a outorga
de uma nova garantia. A opinião dominante é a de considerar que o período suspeito deve avaliar-se com
referência ao momento de constituição do penhor, uma vez que os demais credores “non risentono alcun
pregiudizio dalla sostituzione, che rispetto ad essi avviene sempre nei limiti di valore del bene
originariamente dato in pegno” (Gabrielli, Il pegno cit., pág. 248 – acrescentando que a tese contrária
atribuiria a tais credores, pelo simples facto de se ter verificado uma substituição do objecto empenhado,
um tratamento mais favorável do que aquele que lhes seria outorgado caso o penhor permanecesse
cristalizado sobre o bem originário; no mesmo sentido, Rubino, Il pegno cit., pág. 204), reconduzindo a
noção de contextualidade a um momento volitivo e negocial – e não formal e cronológico – quando a
concessão do crédito e a prestação da garantia sejam relações que obedeçam a um desenho económico
conjunto, enquanto contemporaneamente pretendidos pelas partes. Esta solução mereceu o acolhimento
da Corte de Cassação no já diversas vezes mencionado Acórdão n.º 5264/98, citado por Luciano Panzani,
ob. cit., pág. 946, no qual se decidiu pela “contiunuità del rapporto originário, i cui effetti risalgono alla
consegna dei beni originariamente dati in pegno. Pertanto, ai fini dell’esperibilità dall’azione
recovatoria fallimentare, la genesi del diritto reale di garanzia deve stabilirsi al momento della
stipulazione originaria e non a quello successivo della sostituzione” (no mesmo sentido, Gessica
Pavasini, ob. cit., págs. 298 e 299, para quem o penhor rotativo “si perfeziona con la consegna al
creditore della res oppignorata in virtù della stipulazione originaria e, a partire dal momento della sua
costituzione, dispiega un effetto di garanzia e di prelazione sull’intera operazione economica ad esso
sottesa, abbraciando anche le successive sostituzioni, cui consegue, dunque, solamente il mutamento
dell’oggetto del vincolo”).
2804
Respondem negativamente Realmonte, L’oggetto cit., pág. 14 e Pierpaolo Marano, ob. cit., pág. 154,
desde que a substituição se verifique entre bens do mesmo valor dos precedentemente empenhados,
avaliada no momento da substituição e não no momento da execução da garantia (caso falhe essa
equivalência de valor, especialmente quando o valor do bem substituto supere o do bem substituído, estes
Autores entendem estarmos perante a constituição de um novo penhor e, por isso, o período suspeito
contar-se-á da data do último acto negocial e não do originário acto de constituição da garantia),
argumentando o segundo dos Autores citados que “i creditori non risentono alcun pregiudizio dalla
sostituzione, che avviene nei limiti del valore dei beni originariamente dato in pegno; tanto più ove si
consideri che non vi è ragione di tutelare i creditori chirografari, per il solo fatto dell’avvenuta
sostituzione, in modo più pregnante di quanto lo sarebbero stati se la sostituzione non fosse intervenuta”.
As mesmas conclusões valerão mesmo para o caso específico da antecipação bancária – de cujo regime
legal resulta a possibilidade de uma desvinculação parcial da garantia, proporcional ao pagamento de
800
No nosso direito, a questão reside em saber se, para efeitos do art.º 121.º, n.º 1,
alínea c),2805 do CIRE (de acordo com o qual são resolúveis em benefício da massa
falida, sem dependência de quaisquer outros requisitos, a constituição, pelo devedor, de
garantias reais - expressão que inequivocamente abrange todos os penhores, mesmo os
que incidam sobre direitos2806 - relativas a obrigações preexistentes2807 ou de outras que
as substituam,2808 nos seis meses anteriores à data de início do processo de insolvência),
se deverá considerar que, no âmbito de um penhor rotativo, a mutação antecipadamente
programada pelas partes do objecto de uma garantia anteriormente constituída se
verifique nesse período suspeito de 6 meses anterior ao começo do processo falimentar.
Desde logo, cumpre esclarecer que a resolução ope legis das garantias reais
imposta pelo preceito acabado de citar apenas se aplica às que sejam constituídas pelo
devedor insolvente e não às prestadas por terceiro.2809
Em nosso entender, pode até questionar-se se o preceito legal em questão não
abarcar apenas a substituição da obrigação garantida por outra e não a substituição da
própria garantia (nem, por maioria de razão, a modificação do objecto desta, no seio de
um penhor anteriormente constituído e de acordo com o estipulado pelas partes).
Todavia, ainda que se considere, como parece mais razoável, que a lei interdita a
substituição de garantias, sempre se dirá que, no âmbito do penhor rotativo previamente
acordado, a modificação do objecto não se traduz na substituição da garantia, a qual
permanece a mesma inicialmente prestada, encontrando-se a alteração de um dos seus
termos originariamente consagrada aquando da respectiva constituição.2810
Por outro lado (e independentemente da existência ou não de cláusulas de
rotatividade), no âmbito do penhor financeiro verifica-se uma inadmissibilidade de o
parte do montante antecipado pelo credor – uma vez que, neste circunstancialismo, a eventual
substituição dos títulos restantes, em caso de vencimento destes, será sempre efectuada com outros de
valor inferior aos inicialmente empenhados (cfr. art.º 1851.º do CCI).
2805
Importa, ainda, referir que, nos termos da alínea e) do mesmo preceito, são também resolúveis os
negócios de constituição de garantias reais em simultâneo com a criação das obrigações garantidas, dentro
dos 60 dias anteriores à data do início do processo de insolvência (relativamente às garantias constituídas
em momento anterior ao da obrigação assegurada – v.g. um penhor dado para garantia de uma abertura de
crédito - Gravato Morais, Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, 2008, pág. 103,
entende que a hipótese deverá ser enquadrada neste mesmo normativo). Para além disso e ainda que não
se preencham estes requisitos temporais, o art.º 120.º, nº 3, presume, de forma absoluta, a natureza
prejudicial destes actos para a massa falida, assim consentindo a sua resolução nos termos previstos para a
generalidade dos actos e negócios jurídicos – cfr. art.º 120.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, do CIRE.
2806
O penhor de direitos, mesmo para quem o exclua da órbita dos direitos reais de garantia ou das
garantias reais, será de incluir no âmbito desta disposição legal – no mesmo sentido, Gravato Morais,
Resolução cit., pág. 98 (argumentando que “mesmo que não se considere tal penhor como uma garantia
real, a sua similitude de regime com estas e essencialmente a possibilidade de ser o devedor a constituí-
lo permitem integrá-lo na lógica da disposição”).
2807
Quando se trate de constituição de garantias em data posterior à data de nascimento da obrigação
garantida, tal negócio deverá considerar-se a título gratuito (e, por isso, automaticamente resolúvel com a
declaração de insolvência, desde que praticado nos dois anos anteriores àquela declaração – art.º 121.º, n.º
1, alínea b), do CIRE), salvo se o empenhante recebe alguma vantagem em troca (por exemplo, uma
prorrogação do prazo para cumprir a obrigação garantida ou uma redução dos juros e/ou do capital) –
neste sentido, Gravato Morais, Resolução cit., págs. 100 e 101.
2808
Apontando como exemplo de uma obrigação substituta de outra, para este efeito, a novação objectiva
de uma obrigação inicialmente desprovida de garantia, a qual apenas foi constituída aquando do acordo
novatório, vide Gravato Morais, Resolução cit., págs. 101 e 102.
2809
Assim, Gravato Morais, Resolução cit., pág. 96.
2810
Concordantemente, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 294, sustentando que, no
penhor rotativo, uma vez que as diversas substituições do bem originariamente empenhado – porque
integradas num programa comum previamente acordado - não comportam, para este e para outros efeitos,
a constituição, a cada substituição, de uma nova garantia: neste contexto, a data a atender para a
(eventual) aplicação deste preceito será a inicial de constituição do penhor rotativo.
801
administrador da insolvência resolver estes contratos - o que significa que terá que os
cumprir - num determinado período anterior à declaração de falência – art.º 17.º, n.ºs 1 e
2, do Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio2811 (para além de, nos termos do art.º 18.º,
n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, não poder ser invalidada, ainda que praticados durante o
mesmo período, a prestação de nova garantia no caso de variação do montante das
obrigações financeiras garantidas, a prestação de garantia financeira adicional em
situação de variação do valor da garantia financeira ou a substituição da garantia
financeira por objecto equivalente, por exemplo no âmbito de um pacto de
rotatividade).2812
Há, ainda, que averiguar se a declaração de falência produz ou não a
cristalização automática da garantia em determinados bens ou, dito de outro modo, se ao
administrador da insolvência assiste legitimidade para proceder à substituição de bens
no quadro de um penhor rotativo previamente consentido pelo devedor:2813 poderá,
porém, admitir-se tal possibilidade, tendo em conta os latos poderes – embora não
ilimitados2814 - de que goza aquele administrador.2815
2811
Mais precisamente, não podem ser resolvidos pelo facto de o contrato ter sido celebrado ou a garantia
financeira prestada no dia da abertura de um processo de liquidação ou da adopção de medidas de
saneamento, desde que antes de proferido o despacho, a sentença ou decisão equivalente (n.º 1, alínea a))
ou num determinado período anterior definido por referência à abertura de um processo de liquidação ou
à adopção de medidas de saneamento à tomada de qualquer outra medida ou à ocorrência de qualquer
outro facto no decurso desse processo ou dessas medidas (n.º 1, alínea b)).
2812
No direito italiano, onde o problema também se coloca, o art.º 9.º do diploma que instituiu o penhor
financeiro estabelece que, para efeitos de avaliação da licitude destes negócios em sede falimentar, a
prestação de garantias na decorrência de uma cláusula de substituição não comporta a constituição de uma
nova garantia e considera-se efectuada na data da prestação da garantia originária e, por outro lado,
quando a garantia tenha sido prestada na sequência de uma cláusula de integração considera-se prestada
contemporaneamente ao surgimento do débito garantido ou da prestação da garantia originária (a este
respeito Gabrielli, Il pegno cit., pág. 263, entende que tal norma apenas se aplica quando a alteração do
valor da garantia originária ou da obrigação assegurada decorra de circunstâncias alheias à vontade das
partes – v.g. variação do valor de mercado – pois, caso contrário, a contabilização do período suspeito
deve fazer-se a partir da data da prestação da garantia integrativa).
2813
Responde negativamente Piscitello, Le garanzie cit., pág. 149, nota 49, contrapondo que a declaração
de falência apenas gera a necessidade de as operações de substituição decorrem no respeito pelas regras
que vigoram para os actos de disposição dos bens do falido após aquela declaração (todavia, tais regras
poderão comprometer o respeito pelo pacto de rotatividade, nomeadamente quando os bens onerados
sejam instrumentos financeiros, pois será difícil respeitar as contínuas substituições impostas pelas
oscilações do mercado: o risco será menor no caso de bens produtivos, podendo aceitar-se que a sua
substituição reentra no leque de actos que o administrador da insolvência pode praticar).
2814
Catarina Serra, O novo regime português da insolvência, 4.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 40, realça a
responsabilidade do administrador pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da
massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem e, ainda, pelos danos
causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os
respectivos direitos e estes resultarem de acto do administrador (cfr. art.ºs 59.º, n.ºs 1 e 2 e 82.º, n.ºs 2,
alínea a) e 4, do CIRE), podendo, no limite, a sua conduta levar à respectiva destituição por decisão do
juiz, fundamentada em justa causa (art.º 56.º, n.º 1, do CIRE): a este respeito, Menezes Leitão, Direito da
insolvência, 3.ª Edição, 2011, Almedina, pág. 127, salienta ser esta uma cláusula geral, como tal
susceptível de preenchimento valorativo casuístico, pese embora a enumeração exemplificativa de
condutas que se enquadram em tal conceito (cfr. art.ºs 58.º, 168., n.º 2 e 169.º do CIRE).
2815
A competência do administrador da insolvência para a prática de tais actos poderá ancorar-se no
disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 55.º do CIRE - preceito que legitima aquele sujeito para a prática de
actos destinados à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da
empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica – e no art.º
81.º, n.º 1, do mesmo Código (o qual dispõe que, com a declaração de falência, o administrador da
insolvência assume os poderes de administração e disposição dos bens que integram a massa falida – a
qual, nos termos do art.º 46.º, n.º 2, do CIRE não abrange, salvo vontade em contrário do insolvente, os
bens impenhoráveis - sendo esses mesmos poderes retirados ao insolvente): ora, em especial deste último
802
Sem prejuízo da verificação adicional de outros pressupostos, a ausência de
efeitos novatórios é defensável, não apenas com base nos argumentos jurídicos atrás
expostos, mas igualmente nas considerações atinentes à inutilização das garantias
rotativas que a solução contrária representa.
Essa continuidade da garantia releva, sobretudo, para efeitos de conflitos com
terceiros, retroagindo o direito do credor pignoratício retroagir à data inicial de
constituição da garantia rotativa,2816 desde que respeitados os diversos requisitos a que
preceito retira-se a faculdade de o administrador da insolvência dispor dos bens onerados (pois, como
bem salientam Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da insolvência e da recuperação de empresas
anotado, Quid Juris, 2008, pág. 339, “Os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao
administrador da insolvência”, abrangendo, assim, a prática de actos de oneração e de disposição),
entendimento este confortado pelo art.º 158.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código que expressamente atribuem
ao administrador da insolvência legitimidade para dispor dos bens da massa insolvente, mesmo antes da
declaração de insolvência, que não possam ou não se devam conservar por estarem sujeitos a deterioração
ou depreciação (Menezes Leitão, Direito da insolvência cit. págs. 122 e 123). Neste conformidade, será
legítimo ao administrador, no cumprimento de um acordo de garantia rotativa previamente estabelecido,
executar tal contrato e dispor dos bens inicialmente onerados, embora, de acordo com o art.º 102.º, n.º 1 e
desde que se considere o penhor como um contrato bilateral (todavia, não falta quem defenda a aplicação
do preceito a contratos unilaterais e até aos negócios jurídicos unilaterais – cfr. Oliveira Ascensão,
Insolvência: efeitos sobre os negócios em curso, in Themis, Edição especial Novo direito da insolvência,
2005, págs. 111 e 112: este Autor justifica tal posição alegando que “a analogia com o contrato é
determinante. Se o que se assegura é um tempo de espera, em que se pondera se o cumprimento é ou não
benéfico para a situação decorrente da insolvência, então do mesmo modo parece aqui conveniente a
suspensão. A comum natureza de negócio jurídico, associada à ratio legis, ampara bem esta solução.
Mas a aplicação é analógica, uma vez que não há razão para pretender que o legislador disse menos do
que queria”), possa optar (porém, quando o cumprimento das obrigações pontual das obrigações por parte
da massa for manifestamente improvável, a opção pela execução do negócio é considerada abusiva – art.º
102.º, n.º 4, do CIRE) por não executar tal acordo – (segundo tal preceito, em qualquer contrato bilateral
em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem
pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela
execução ou recusar o cumprimento) – o mesmo valendo para o próprio contrato do qual decorre a
obrigação garantida (excepto quando se trate de uma conta corrente, caso em que, de acordo com o art.º
116.º, a declaração de insolvência produz, inelutavelmente, o respectivo encerramento) ou de um contrato
de prestação duradoura de serviço no interesse do insolvente (hipótese na qual a declaração de insolvência
não origina a respectiva suspensão, podendo qualquer das partes denunciá-lo, mediante pré-aviso – art.º
111.º, n.º 1). Em caso opção pela execução, o crédito do contraente é convertido em crédito da massa
(art.º 51.º, n.º 1, alínea f)); em caso de opção pela recusa do cumprimento, nenhuma das partes tem direito
à restituição do que prestou, sem prejuízo do direito à separação da coisa, sem prejuízo do direito da
massa insolvente a exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor
- na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte – e da faculdade da outra parte exigir,
como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do
valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada - cfr. art.º 102.º, n.º 3, alíneas
a), b) e c) e Maria do Rosário Epifânio, Manual de direito da insolvência, 3.ª Edição, Almedina, 2011,
pág. 152. Decorre do exposto que a sorte do contrato de garantia e do negócio assegurado pode ser
distinta, nomeadamente porque o administrador da insolvência pode optar por manter em execução este
último (originando, porventura, um aumento do montante desta, o qual será considerado como crédito da
massa – art.º 51.º, n.º 1, alínea f)), ainda que a garantia seja extinta (por força do assinalado art.º 121.º, n.º
1, alíneas c) ou e)), uma vez que tais contratos, apesar de conexos, são juridicamente independentes
(acerca da autonomia entre eles, rejeitando a sua qualificação como uma união ou confusão de contratos,
vide o Acórdão do STJ de 12/7/2011, in www.dgsi.pt).
2816
Contra, Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 26 (em termos análogos, Melissa Magnano, ob. cit., págs. 588
e 589), para quem a solução não pode ir no sentido de fazer retroagir o direito do credor pignoratício,
sobre os bens que entretanto tenham substituído os originais, ao momento inicial da celebração do acordo
rotativo, concluindo que “La tutela del creditore pignoratizio, infatti, non può spingersi al punto di
creare una sorte di fictio di insorgenza di un diritto di pegno prevalente sui diritti dei terzi si di un bene
prima che lo stesso sia effettivamente divenuto – sia pur in base ad un lecito meccanismo di rotatività –
oggetto di quella garanzia”, até porque através do penhor rotativo “non si può creare una sorta di
macrovincolo potenziale sui beni mobili e sui crediti del debitore a cui i terzi debbono sottostare per virtù
803
deverão obedecer as cláusulas rotativas, não modificando, assim, o grau de preferência
originário do credor pignoratício.
Mais precisamente, no que concerne ao conflito entre o credor pignoratício e
terceiros adquirentes de outros direitos sobre os mesmos bens,2817 da aplicação do
princípio da prioridade temporal (conjugado com o aludido efeito retroactivo) resultará
o predomínio do direito do primeiro: porém, poderá assim não ser naqueles
ordenamentos em que vigore o princípio da posse vale título (nos quais, se o terceiro
tiver obtido a posse do bem de boa fé antes de o credor pignoratício ser empossado nos
bens que venham a substituir os inicialmente onreados e quanto a esses, o credor
pignoratício será preterido, desde que o terceiro se encontre de boa fé).2818
Verifica-se, deste modo, que a resolução deste conflito dependerá da aceitação
ou não do princípio da “posse vale título”: naqueles ordenamentos, como o nosso, nos
quais tal regra não vigore, a oponibilidade do direito do credor “rotativo” constituirá a
regra;2819 ao invés, nos sistemas que adoptem o aludido princípio, os direitos de credor
poderão ser atingidos, sempre que o terceiro adquirente demonstre a sua boa fé
(traduzida na ignorância da existência prévia do direito de preferência).2820
Já no que toca ao concurso com outros credores com garantias2821 (maxime
penhores comuns, não rotativos) sobre os mesmos bens, relevará a data originária e,
consequentemente, prevalecerá o credor titular do penhor rotativo, novamente desde que
respeitados os requisitos de que depende a validade dos pactos, sendo esta regra
temperada pelos privilégios que, eventualmente, se lhes sobreponham aos penhores.2822
A amplitude desta superioridade do direito do credor pignoratício, decorrente da
ausência de efeitos novatórios das substituições efectuadas no seio de um penhor
rotativo, justifica, em nome da protecção dos direitos de terceiros, a imposição da
observância de um conjunto de requisitos adicionais em ordem à validação deste tipo de
garantia.
della semplice sitpulazione di un pegno con patto di rotatività”. A não ser assim, a garantia transmutar-
se-ia num privilégio rotativo (com a consequência absurda de, tendo o devedor alienado um bem a
terceiro, e passando esse bem a estar coberto, no seguimento da sua entrega ao credor, pela garantia
rotativa, se produzir a constituição de penhor a non domino, que requer a boa fé do credor pignoratício).
2817
Piscitello, Le garanzie cit., pág. 149 e segs., assegura que o conflito com terceiros adquirentes é mais
comum quando são onerados bens destinados a transformação, uma vez que é normal a sua alienação a
terceiros, antes ou, mais frequentemente, após a sua laboração.
2818
Ou, como escreve Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 26, “ove il terzo abbia acquistato il proprio diritto
prima della consegna del bene al creditore pignoratizio questi intanto acquisterà il diritto reale di
garanzia in quanto, acquisito il possesso del bene, versi in buona fede” (nos mesmos termos, Melissa
Magnano, ob. cit., pág. 589).
2819
Excepto, eventualmente, os decorrentes das regras do registo, quando a aquisição e oneração dos bens
em questão se encontre sujeita a tal formalidade.
2820
Por exemplo, no direito italiano Piscitello, Le garanzie cit., pág. 168 e segs., alega que tal boa fé será
mais facilmente demonstrável quando o vínculo recaia sobre matérias primas ou produtos destinados a
transformação (uma vez que a oneração de tais bens não se encontra sujeita a qualquer registo e, para
mais, tais bens continuam em poder do seu proprietário, não obstante a constituição da garantia), do que
na hipótese de incidir sobre instrumentos financeiros desmaterializados (pois, para este tipo de bens, é
forçosa a inscrição no registo dos ónus, o que possibilita a sua cognoscibilidade por terceiros), para além
de se suscitar a dúvida se aquele princípio não se circunscreve aos bens corpóreos.
2821
No direito italiano e perante um conflito entre um credor pignoratício e outro munido de uma penhor,
Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 27, entende ser necessário um documento de data certa, a cada
substituição, para que o credor possa fazer valer o seu direito contra o titular de uma penhora sobre os
mesmos bens (subscreve esta posição Melissa Magnano, ob. cit., pág. 589).
2822
Em face do direito italiano, Piscitello, Le garanzie cit., pág. 163 e segs., defende que, para
determinação da data de surgimento da preferência do penhor rotativo, relevará, não a data de
constituição, mas aquela em que – por força do cumprimento de certas formalidades - a garantia se tornou
oponível a terceiros).
804
3.2.2 - Necessidade de o pacto de rotatividade ser definido ab initio e conter a
indicação dos bens originários e daqueles que os poderão vir a substituir
Desde logo, urge determinar qual o conteúdo mínimo a que tais pactos devem
obedecer de modo a preencher os requisitos legais que impõem a determinabilidade do
objecto dos negócios em geral (art.º 280.º) e do penhor em especial (art.º 666.º, n.º 1).
Uma interpretação mais restritiva imporia a indicação, logo no momento da
constituição do penhor, não apenas do objecto inicial da garantia, mas igualmente dos
bens sobre os quais a garantia originária poderá vir a incidir.2823
Porém, a este contrapõe-se um entendimento mais flexível, partindo da distinção
entre determinação e indicação (ou, em termos aproximados, entre determinação em
sentido amplo e em sentido estrito), sustenta que o objecto contratual se encontra
definido, nos termos legalmente exigidos, não apenas quando se encontre
completamente definido – sem necessidade de recurso a fontes exteriores - no
regulamento contratual (ou seja, quando se estabelecem de forma cabal os critérios para
individualização da quantidade e/ou qualidade do objecto do contrato), mas igualmente
quando “no negócio jurídico está consagrado o mecanismo que reenvia para a fonte
donde pode extrair-se o conteúdo”.2824
Parece, assim, legítimo concluir que, nas garantias rotativas, a identificação do
objecto resulta (e basta-se) com a menção do mecanismo com base no qual as diversas
substituições se produzirão, não se impondo a especificação dos bens que poderão vir a
ser onerados,2825 isto é, consente-se que as partes, no acto da celebração do negócio, não
tenham que descrever analiticamente os objectos que, posteriormente, poderão vir a ser
2823
No nosso ordenamento, assim parece entender Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág.
294 e segs., ao impor como requisito de validade da rotatividade que “a cláusula de rotação deverá
permitir determinar claramente quais são os bens que em qualquer momento são objecto do penhor. Este
terá que ser a todo o momento certo, determinado e presente”.
2824
Joana Dias, ob. cit., págs. 188 e 189. De acordo com esta Autora, este segunda modalidade de
conformação do objecto do contrato”requer uma menor especificação no acto de celebração e permite
um mais amplo recurso a outras fontes de integração uma vez que se destina a ser completada. Neste
caso, acciona-se um procedimento em duas fases: na primeira (indicação) expõe-se o mecanismo
determinativo, na segunda, e posteriormente, o mecanismo é accionado através da intervenção de uma
fonte exterior”. Na verdade, “o objecto está determinado mesmo quando no momento da celebração do
contrato não se acha completamente especificado o seu objecto, mas as partes limitam-se a indicar as
técnicas ou mecanismos a utilizar para determinação futura do mesmo”. Analogamente, Gabrielli, Il
pegno cit., págs. 240 e 242, para quem será forçoso, no momento da constituição da garantia, quer
descrever o mecanismo da rotatividade – ou seja, o perdurar da garantia real -, quer fornecer as indicações
necessárias para identificar, nas diversas substituições futuras, os bens que passarão a fazer parte da
garantia) e in Garanzie rotative cit., pág. 2 (textualmente impondo a identificação “sia il meccanismo di
rotatività (e quindi di persistenza nel tempo) del vincolo, sia le indicazioni necessarie per individuarne
nei successivi passagi e trasformazioni degli oggetti (vale a dire i singoli beni) sui quali la garanzia
verrà nel tempo ad insistere”) e também Melissa Magnano, ob. cit., págs. 587 e 588 (falando da
obrigatoriedade de “determinazione pattizia delle modalità con le quali deve avvenire la modificazione
dell’oggetto; dovrà sempre essere verifibile in base a criteri predeterminati negozialmente l’affermazione
del creditore che un bene è sottoposto a garanzia godendo degli effetti della rotatività. Più chiaramente i
beni oggetto della garanzia devono essere sempre identificabili in modo che si raggiunga la certezza che
formino oggetto del vincolo in applicazione del patto di rotatività”).
2825
Neste sentido, Gessica Pavasini, ob. cit., pág. 293 e segs., acrescentando que o grau de especificação
não é líquido, não tendo sequer o diploma relativo ao penhor financeiro cuidado deste aspecto. Em termos
semelhantes, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 115 e segs., entende que esta exigência se basta com a
concretização, ab initio, dos bens ou dos mecanismos destinados a identificar os bens a onerar
futuramente (ou seja, não sendo forçosa a especificação inicial dos bens que poderão a integrar a garantia,
mas sendo necessário indicar as técnicas que consintam a determinação dos mesmos).
805
abarcados pela garantia, bastando identificar os critérios para individualização desses
mesmos bens.
A mesma conclusão é alcançada, relativamente à dação em penhor de bens alvo
de gestão por parte de intermediários financeiros (a qual pressupõe a substituição
contínua do objecto da garantia), mesmo que não se admita o fenómeno da rotatividade,
configurando a operação como criadora de “un legame stretto con i beni oggetto delle
continue sostituzioni, di cui i terzi interessati possono essere a conoscenza, nelle
modalità proprie della circolazione dei beni mobili. Legame stretto con i beni in essere,
è ben da rimarcare, sin dalla concessione della garanzia pignoratizia”.2826
A imposição da identificação, ab initio, do mecanismo rotativo (e,
eventualmente, também dos bens que poderão, no futuro, integrar a garantia) radica na
necessidade de protecção de terceiros, aos quais tal pacto possa vir a ser oposto.
Cumpre, porém, distinguir entre os credores comuns do empenhante e os demais
terceiros, uma vez que a sua posição dos primeiros é salvaguardada, primacialmente,
através da impossibilidade de o valor dos bens substitutos exceder o dos bens
substituídos, mais complexa de afigurando a tutela daqueles titulares de direitos (ou que
pretendam adquiri-los) sobre os bens aos quais se venha a alargar o penhor rotativo.
Quanto a estes e ainda que se adopte um critério mais exigente (reclamando a
obrigatoriedade da menção, no contrato inicial, dos bens que a garantia poderá
alcançar), a comprovação da existência do ónus implicaria a consulta do documento
constitutivo da garantia e do pacto de rotatividade nele inserido (excepto, porventura, se
a garantia se encontrar sujeita a registo e este for de acesso público), o que se afigura
despropositado e demasiado oneroso, ao que acresce, em regra, a não imposição de
redução a escrito do próprio contrato de penhor no nosso ordenamento.
Para os outros credores preferentes do empenhante (e para os adquirentes de
direitos em geral) nomeadamente aqueles cujas garantias se constituíram após o
surgimento do penhor rotativo sobre bens aos quais este se venha a alargar (mas antes
de tal alargamento), a estipulação de acordos rotativos (e a sua não publicitação) poderá
ser nociva.
Daí que a consideração dos interesses destes sujeitos determine que a mutação
do quid onerado pressuposta pelas cláusulas rotativas seja, de algum modo, publicitada,
sob pena de aqueles adquirirem um direito sobre um bem que julgavam livre de ónus e
encargos, mas que, afinal, estava abrangido por um pacto de rotatividade que o poderia
atingir, com efeitos retroactivos à data da constituição da garantia giratória.
Poder-se-á sustentar que tal desígnio publicitário pode ser alcançado mediante a
entrega dos bens substitutos ao credor ou a terceiro (ou, em termos mais latos, mediante
a renovação, a cada substituição, dos requisitos constitutivos do penhor, em função da
natureza dos bens onerados): todavia, mesmo que se exija o cumprimento desta
formalidade, persiste o potencial prejuízo para os titulares de direitos constituídos sobre
bens não originariamente abrangidos pela garantia rotativa em momento anterior à sua
2826
É a posição de Francesco Bochicchio, ob. cit., pág. 219 e segs.., recusando, em conformidade, a
necessidade de renovação dos requisitos formais a cada substituição dos bens empenhados. Este Autor
sustenta que a sua posição diverge conceptualmente da rotatividade, pois – apesar de compartilhar os
resultados atingidos relativamente à necessidade de uma interpretação elástica da obrigatoriedade de
determinação dos bens empenhados - entende (vide nota 40) que nesta última “il rilievo dato al concetto
di utilità reale, accompagnato dalla svalutazione del ruolo dei singoli beni, appare, in effeetti, in
contrasto con la circostanza che le formalità sono riferite ai singoli beni”: não obstante esta divergência
conceptual, a posição do Autor acaba por desembocar na admissibilidade de acordos estabelecendo a
rotação ou modificação do objecto da garantia, desde que “le rotazioni di beni avvengano nel rispetto
delle formalità previste dalla legge per i medesimi singoli beni, sia pur intendendo tali formalità in senso
elastico e fuzionale”.
806
integração, por via de substituição, na órbita daquela, uma vez que antes de tal
substituição, tais bens aparentam estar livres de ónus e encargos.
Nesta conformidade e salvo as hipóteses legalmente previstas, a rotatividade
convencional, com efeitos retroactivos, apenas poderá operar relativamente a bens
fungíveis (por ser inerente a estes, excepto convenção em contrário, a possibilidade de
substituição por outros da mesma espécie) ou a bens compostos em que a faculdade de
substituição surge como natural (como sejam as universalidades):2827 não é por acaso
que a esmagadora maioria de casos de rotatividade legalmente previstas operam
relativamente a bens fungíveis (veja-se, por todos, o exemplo do penhor financeiro).
Para outros bens que não estes (designadamente no âmbito de pactos de
laboração ou transformação), a rotatividade apenas poderá operar se e quando a lei
assim o permitir, funcionando a previsão legal, face a terceiros, como um modo de
cognoscibilidade indirecta.
Fora destas hipóteses, poderá aceitar-se a rotatividade convencional
relativamente a bens cuja dação em penhor se encontre sujeita a registo (uma vez que a
inscrição neste do pacto rotativo torna-o do conhecimento dos eventuais interessados)
ou a créditos (porquanto, salvo melhor juízo, o modo de constituição de penhor sobre
tais bens – notificação do devedor do crédito empenhado – não cumpre desígnios
publicitários, pelo que a substituição de uns créditos por outros não acarretará, do ponto
de vista da cognoscibilidade da garantia, um agravamento da posição de terceiros).
2827
Sublinha este aspecto Joana Dias, ob. cit., págs. 113 e 114, destacando que as cláusulas de extensão
aos bens que passem a integrar tal universalidade envolvem, em sentido inverso, uma compressão dos
bens que entretanto dela saiam, concluindo que a rotatividade “apenas serve para regular este movimento
ou fluxo ou refluxo no intuito de estabelecer e manter o equilíbrio”, muito embora saliente que os novos
elementos que passem a integrar o estabelecimento não passarão automaticamente a estar abrangidos pela
garantia, nem mesmo quando sejam adquiridos à custa de valores saídos dessa mesma universalidade,
alegando não existir qualquer fenómeno de acessão (já quando exista substituição, a coisa ocupará o lugar
da anterior, operando o princípio da prioridade temporal – ou seja, valendo a data de constituição inicial -
no que concerne ao conflito com titulares de outros direitos sobre o mesmo bem). Em nosso entender e
conforme já tivemos oportunidade de realçar, a especial configuração da universalidade fará com que,
independentemente de cláusula expressa nesse sentido, a garantia abranja automaticamente os bens que
passem a dela fazer parte (e, inversamente, deixando de recair sobre aqueles que entretanto deixarem de
integrar a dita universalidade) enquanto subsistir o crédito garantido, incidindo, em caso de execução,
sobre os existentes nessa data.
2828
Salientam este aspecto Joana Dias, ob. cit., pág. 194, nota 502, Pestana de Vasconcelos, Direito das
garantias cit., pág. 294 e segs., Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 115 e segs. (destacando a necessidade de
preservação do valor inicialmente onerado e subordinando a eficácia das cláusulas rotativas ao valor que
o bem possuía no momento em que se verificou a substituição, tutelando assim os interesses dos credores
807
Deve, por isso, erigir-se como conditio sine qua non da validade dos acordos
rotativos a impossibilidade de, por força das diversas substituições ínsitas neste
mecanismo, ser ultrapassado o valor dos bens originariamente empenhados: quando tal
suceda, deve considerar-se irreversivelmente extinta a cláusula de rotatividade.2829
Assim sendo, o credor não poderá obter um valor superior à utilidade real que
receberia em caso de execução do bem inicialmente dado em penhor, cabendo ao credor
pignoratício demonstrar que, não obstante as diversas substituições, o valor originário
permaneceu inalterado (ou, pelo menos, não foi excedido) e que, por isso, nenhum
prejuízo resultou das permutas para os demais credores do empenhante, porquanto a
parcela do património deste à disposição daqueles permanece inalterada.2830
Contudo, não existe unanimidade quanto ao modo de aquilatar da aludida
paridade de valor, desde logo no que toca ao sujeito encarregue ou autorizado a realizar
as substituições dos objectos onerados,2831 até porque, nalgumas situações, o incremento
daquele valor seja fruto da actividade do credor pignoratício (pense-se na gestão de um
penhor sobre instrumentos financeiros), destarte relativizando o prejuízo para os demais
credores do empenhante, na medida em que o aumento do património do devedor se
ficou a dever a uma actividade de terceiro e não à actuação do próprio empenhante.2832
comuns do empenhante em não verem diminuído o património deste), Realmonte, L’oggetto cit., pág. 13,
o Acórdão da Corte de Cassação Italiana n.º 5264 de 28/5/1998 (citado por Luciano Panzani, ob. cit., pág.
944), Fabrizio Maimieri, ob. cit., pág. 4 (afirmando que “non rileva di quali titoli sia composto il deposito
vincolato, purché il loro valore non sia superiore a quello determinato al momento della costituzione
della garanzia”, pelo que os bens “depositati in sostituzione di quelli inizialmente depositati e/o a
reintegrazione della garanzia a seguito di vendita o per altra causa, sono soggetti all’originario vincolo
di pegno nei limiti del valore risultante all’epoca della sottoscrizione del presente atto”), Dario Finardi,
Efficacia reale cit., pág. 778 (demonstrando como o risco de prejuízo para os demais credores é mínimo –
desde que assegurada a paridade de valor – na medida em que a “garanzia rotativa in sé non viola la par
conditio più della costituzione di una garanzia ordinaria, atteso che il valore economico oggetto di
garanzia rimane il medesimo, e che la procedura concorsuale trasforma appunto tutti i beni del debitore
nel loro valore economico, per cui per essa due beni di valore equivalenti tout court e quindi infine la
convenzione di rotatività è priva di effetto” até porque, no que respeita aos instrumentos financeiros, se
“l’interesse alla par conditio è leso solo dal pericolo di collusioni, è ragionevole ritenere che il crescente
processo di istituzionalizzazione dei soggetti che gestiscono il mercato mobiliare e di credito dovrebbe
escludere o minimizzare tal pericolo”), Carmine Stingone, Sulla validità cit., pág. 99 (assegurando que de
tal pacto não pode “recare ai terzi un pregiudizio maggiore di quello che altrimenti si sarebbe potuto
realizzare in assenza del patto”) e Melissa Magnano, ob. cit., pág. 587 e segs..
2829
Neste sentido, Joana Dias, ob. cit., págs. 193 e 194. Uma eventual alternativa passaria pela
manutenção da garantia sobre uma parte dos bens de valor correspondente aos inicialmente empenhados,
mas a Autora descarta-a (não sem reconhecer que teria a vantagem de impedir que a substituição dos bens
originais por outros de maior valor afectasse todo o contrato), por entender que tal solução enfrentaria
problemas de aplicação prática, designadamente quanto aos critérios para aferir a avaliação do aumento
do valor, bem como no que respeita a objectos cujas especiais características dificultem a avaliação – v.
g., bens de valor estimativo ou preciosos (no mesmo sentido, Piscitello, Le garanzie cit., págs. 102 e 103).
2830
Assim, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 250 e Il pegno anomalo cit., pág. 218.
2831
Tendo em conta este aspecto, Joana Dias, ob. cit., págs. 190 e 191, distingue consoante a substituição
seja efectuada pelo credor pignoratício (caso em que bastará prever que, na operação de substituição,
devam ser reutilizadas as quantias recebidas em razão da disposição dos bens anteriormente onerados – v.
g. o penhor de instrumentos financeiros) ou pelo empenhante. Nesta segunda hipótese – que assume
particular relevância quando são empenhados bens produtivos, dos quais o empenhador não pode ser
privado – a resposta não será tão linear, importando distinguir entre as cláusulas que prevejam o
prolongamento do vínculo sobre produtos finais ou a sua continuação sobre novas matérias primas
adquiridas para o prosseguimento da actividade produtiva, conforme melhor ser verá mais à frente no
texto.
2832
Em termos análogos, Joana Dias, ob. cit., pág. 195.
808
A falta de consenso atinge mesmo a própria comprovação da identidade de valor
entre os bens substitutos e os substituídos,2833 pois para alguns deverá atender-se ao
valor dos bens originariamente empenhados no momento da substituição (ou melhor,
das várias possíveis substituições) e não da execução, não sendo a validade daquela
afectada por eventuais variações sucessivas, decorrendo esta imposição também da
necessidade de protecção do empenhante e dos seus outros credores, evitando, por força
do mecanismo da rotatividade, um agravamento das suas condições patrimoniais.2834
Adoptando este entendimento, a cláusula rotatividade segue mais de perto o
valor dos bens sobre os quais incide, resumindo-se os seus efeitos à substituição de
2833
Mencionam a existência destas duas posições Gessica Pavasini, ob. cit., pág. 291 e segs.
(evidenciando que na maior parte das normas civilísticas em que se fundamenta a rotatividade a sub-
rogação se produz com base no valor dos bens no momento da substituição – rectius, “del valore che il
bene possiede nel momento in cui si verifica l’evento che consente il ricorso a tale strumento”, enquanto
a maioria das decisões judiciais se inclinam em sentido inverso), Luca Ruggeri, ob. cit., pág. 712 e segs. e
Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 6 e segs.. Já Silvia Lovisatti, ob. cit., pág. 695 e segs., realça que a
doutrina dominante adopta o critério do valor do bem momento da substituição – sustentando que, deste
modo, se tutelam os credores quirografários do empenhante, impedindo uma diminuição do seu
património, até porque a hipótese contrária permitiria substituir um bem cujo valor entretanto tivesse
decrescido por outro, naturalmente cujo valor não excedesse o do bem inicialmente dado em penhor (mas
não sem mencionar que a posição contrária encontra igualmente apoio, especialmente considerando, em
razão da ausência de disposições normativas, caber às partes optar por uma ou outra solução e, se optarem
por considerar o valor original, o penhor teria também uma função conservatória, ao passo que optando
pelo critério do bem original a garantia comportaria sempre uma certa componente especulativa, estando
dependente das flutuações de valor dos bens primariamente onerados: em qualquer dos casos, o valor não
pode ser convencionalmente estabelecido, devendo antes corresponder ao seu valor real). Também se
debruça sobre esta questão Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 164 e segs., constatando
igualmente que a doutrina dominante se inclina para o aferir da paridade de valor no momento da
substituição dos bens (aduzindo os mesmos argumentos citados e acrescentando que, na hipótese
contrária, se privaria o credor da faculdade, que lhe assiste, de se apropriar dos acréscimos de valor –
frutos ou juros - do bem onerado), enquanto os dados jurisprudenciais (embora citando uma decisão que,
ao falar em “pré-determinação”, parece propender para o momento da constituição da garantia) e
normativos (tendo em conta, em particular, a redacção não inequívoca do art.º 46.º do Regulamento
Consob sobre instrumentos financeiros) se apresentam equívocos, concluindo que “non possono
considerarsi precluse a priori variazioni dell’oggetto della garanzia (…) allorquando la sostituzione
dell’oggetto della garanzia risulti in concreto neutra rispetto agli interessi dei creditori chirografari”.
2834
Cfr. Gabrielli, I negozi costitutivi cit., pág. 171 e também in Il pegno cit., pág. 248 e segs., aditando
que o controlo sobre estas eventuais variações deve ser efectuado a posteriori, ou seja, em momento
subsequente ao da celebração do contrato de penhor ao qual seja aposta uma cláusula de rotatividade. Por
outro lado, o acolhimento da solução contrária permitiria a substituição de um bem que tivesse perdido
valor por outro de valor superior – naturalmente no limite do valor originário do bem substituído - em
prejuízo dos credores quirografários (salienta este último aspecto Silvia Lovisatti, ob. cit., pág. 700).
Depois de realçar não haver consenso jurisprudencial e apesar de reconhecer que a norma sobre o penhor
rotativo de instrumentos financeiros parece depor em sentido contrário, Matteo Rescigno, ob. cit., págs.
13 e 14, inclina-se igualmente para esta posição, argumentando ser a que melhor se coaduna com a
recondução do fenómeno da rotatividade à sub-rogação real (não requerendo, por isso, qualquer pré-
determinação do valor até ao qual os bens possam ser substituídos, do mesmo passo se respeitando a
“giustificazione funzionale dell’ammissibilità di un patto di rotatività e coiè il fatto che i creditori
chirografari non subirebbero un ingiustificato pregiudizio dalla sostituzione ove questa si mantenga
nell’ambito del valore del bene originariamente posto in pegno”) e enumerando alguns inconvenientes da
hipótese inversa (alegando que a mesma é até contraditória com a faculdade, reconhecida ao credor
pignoratício não rotativo, “di far suoi aumenti di valore, frutti e interessi del bene oppegnorato e
consentirebbe, ai danni dei creditori chirogragari, al creditore pignoratizio di sostituire beni che
abbiano perso valore con altri beni di maggior valore, entro il limite del valore iniziale dei beni oggetto
originario della garanzia”). Acolhem igualmente este entendimento Piscitello, Le garanzie cit., pág. 103,
nota 145 e Melissa Magnano, ob. cit., pág. 587.
809
determinados bens com outros do mesmo valor no momento da substituição (e sem
possibilidade de integração da garantia).2835
Para outros, ao invés, deverá atender-se ao valor originário dos bens no
momento inicial em que foram dados em penhor, argumentando que desde esse
momento foi esse o valor colocado em garantia da satisfação do credor pignoratício e,
assim, subtraído aos credores quirografários, parecendo esta posição encontrar
acolhimento normativo a respeito do penhor de instrumentos financeiros.2836
Em termos práticos, neste último caso o aumento de valor dos bens empenhados
verificado no momento da substituição, relativamente ao seu valor inicial, não
beneficiará o credor, do mesmo modo que este não suportará os prejuízos decorrentes da
perda de valor dos aludidos bens entre o momento da constituição e da substituição.2837
Questão intimamente conexa com esta é a de saber se a rotatividade apenas
admite a substituição dos bens empenhados por outros ou, pelo contrário, consente
igualmente a integração ou o incremento dos mesmos:2838 com efeito, a adopção do
entendimento que manda atender ao valor dos bens no momento da substituição, impõe
a recusa de tal incremento, o mesmo não acontecendo quando se perfilhe a posição
contrária e o valor dos bens onerados tenha diminuído entre o momento da constituição
da garantia e o da sua substituição.
2835
Destaca estas diversas consequências Matteo Rescigno, ob. cit., págs. 12 e 13.
2836
Alude a esta posição Luca Ruggeri, ob. cit., pág. 713, invocando em seu favor os art.ºs 34.º do dlgs.
n.º 213/98 e 46.º do diversas vezes citado Regulamento Consob, uma vez que tais normas pressupõem “la
visione di un pegno rotativo che grava su strumenti finanziari il cui valore viene a definirsi al momento
della costituzione del vincolo originario; ciò spiegherebbe il riferimento all’integrazione, che si
renderebbe necessaria qualora i strumenti finanziari vincolati si deprezzassero”. Todavia, o mesmo
Autor não deixa de reconhecer que tal entendimento comporta o risco de “porre un limite di valore,
fissato al momento di costituzione del pegno, entro il quale il creditore pignoratizio può integrare nel
tempo la sua garanzia qualora i beni si deprezzino, ledendo cosi, in concreto, le aspettative dei creditori
chirografari sui quali verrebbe a trasferirsi il rischio legato al valore di mercato dei beni oppegnorati”
(em termos análogos, Silvia Lovisatti, ob. cit., pág. 700, considerando que, deste modo, o penhor rotativo
assume um função conservatória, mantendo inalterado no tempo o valor da garantia). Matteo Rescigno,
ob. cit., pág. 6 e segs., depois de reforçar que este critério parece ter sido adoptado pelo art.ºs 34.º do dlgs.
n.º 213/98 e 46.º do diversas vezes citado Regulamento Consob, não deixa escapar alguma preocupação
face aos abusos a que tal critério se presta, por abrir a porta a “un possibile sfruttamento della rotatività
del pegno in modo da utilizzare per il soddisfacimento del creditore sia i beni oggetto dell’originaria
garanzia, sia quelli ulteriori, attrati per via della concessa rotatività, ma non meramente sostitutivi dei
primi, con il risultato concreto che la rotatività potrebbe trasformarsi non già nella possibilità di
conservare, con carattere di continuità, un privilegio su beni dello stesso valore pur se mutevoli nel
tempo, ma di godere di un prolungamento indefinito nel tempo di un privilegio, entro un certo limite di
valore, su beni in realtà fra loro sommantesi e cristallizzato nella sua origine alla data della iniziale
costituzione della garanzia mobiliarie”.
2837
Como nota Gessica Pavasini, ob. cit., pág. 291, deste modo se admitindo também a integração, uma
vez que “se il valore di riferimento per ciascuna sostituzione deve essere quello che il bene aveva quando
è sorto il vincolo, la successiva eventuale riduzione di quel valore non potrà garavare sul creditore
pignoratizio che, di conseguenza, nell’operare la sostituzione, bem potrà integrare l’oggetto della
garanzia sino al raggiungimento del valore originario del bene”.
2838
Dão conta de duas posições a este respeito Silvia Lovisatti, ob. cit., pág. 698 (inclinando-se para
aceitar igualmente a integração, sobretudo porque tal solução é admitida pela lei em matéria de penhor
rotativo de instrumentos financeiros), Matteo Rescigno, ob. cit., págs. 11 e 12. (anunciando que a
jurisprudência se mostra avessa à integração – do mesmo modo que as normas da lei civil nas quais se
fundamenta a admissibilidade da rotatividade convencional - mas que a lei relativa ao penhor de
instrumentos financeiros – em especial o art.º 46.º do Regulamento Consob – a prevê expressamente:
desta contradição poderá resultar que um penhor rotativo convencional não possa beneficiar da
possibilidade de integração) e Gessica Pavasini, ob. cit., pág. 290 e segs. (salientando que o regime do
penhor financeiro admite igualmente, para além das cláusulas de substituição, as de integração).
810
Embora admitindo que a questão seja espinhosa e que esta última alternativa se
adeque melhor à identificação do objecto das garantias rotativas com o valor económico
do bens onerados, e não com o concreto valor que cada um deles possa vir a deter
(sendo esse valor originário o que é subtraído à disposição dos demais credores), a
necessidade de impedir que, por efeito do funcionamento de uma cláusula rotativa, o
devedor (e/ou o empenhante) veja a sua posição agravada, face às regras ditadas para o
regime geral do penhor, impele-nos para a solução contrária.
De facto, se a cada substituição o credor pignoratício pudesse integrar o
conteúdo da sua garantia tomando como limite o valor originário dos bens empenhados,
tal significaria que o risco de diminuição de valor correria exclusivamente por conta do
empenhante e, pior ainda, que o credor gozaria de preferência relativamente a um
montante superior àquele de que gozaria caso a sua garantia não fosse rotativa (caso em
que essa preferência se cingiria ao valor dos bens onerados no momento da execução,
com as eventuais perdas de valor entretanto verificadas).
Contudo, importa salientar que a resposta pode variar em função da particular
natureza dos bens abrangidos por uma cláusula de rotatividade, não surpreendendo que
as próprias soluções legais variem, por exemplo, consoante estejam em causa matérias
primas2839 ou instrumentos financeiros.2840
2839
De acordo com Piscitello, Le garanzie cit., pág. 98 e segs., os problemas não se colocam quando se
preveja a passagem do penhor das matérias primas para os bens resultantes da sua transformação, mas sim
quando se convencione a transferência da garantia das matérias primas originais para outras
posteriormente adquiridas para a continuação do processo produtivo, uma vez que, no intervalo que
medeia entre a aquisição dos bens originários e dos bens substitutos pode verificar-se um aumento do
preço dos mesmos: verificando-se tal hipótese, o Autor entende dever a substituição conter-se no limite
do valor dos bens vinculados ab initio (e não abranger uma quantidade de bens análoga à inicialmente
onerada), pois “sebbene sia diminuita la quantità delle materie prime costituite in pegno, per il creditore
garantito il valore dei beni vincolati resta imutato”. No caso específico do privilégio consagrado no art.º
46.º do Texto Único a rotatividade da garantia não parece, aparentemente, subordinada ao critério da
paridade de valor, mas, como salienta Francesca Dall’Anna Misurale, ob. cit., pág. 162, nota 167, uma
vez que terá de ser indicado o montante pelo qual a garantia responde, será esse o limite da amplitude da
garantia rotativa (também a respeito desta norma, Matteo Rescigno, ob. cit., págs. 190 e 191, assegura que
a lei nem sequer alude à necessidade de manutenção do valor (alegando que, neste caso, “non solo deve
essere indicato il credito su cui viene costituito il privilegio (…) ma deve essere indicata la somma di
denaro per il quale il privilegio viene assunto, che dunque, a differenza della parità di valore, delimita
l’estensione della garanzia rotativa”, justificando esta solução com o carácter não possessório desta
garantia e, por outro lado, com o facto de o objecto da mesma apenas ser identificado – em razão da
dificuldade em descrever em concreto o quid sobre o qual recai - no momento da execução da garantia, o
que impede a sua invocação contra terceiros de boa fé que tenham tomado posse dos bens em questão
antes dessa data). Entre nós, Joana Dias, ob. cit., págs. 190 e 191, distingue entre as cláusulas que
prevejam o prolongamento da garantia para os produtos finais decorrentes do processo produtivo
(considerando-as lícitas, por não atentarem contra os interesses dos credores comuns, porquanto “É
verdade que a transformação das matérias primas ou semi-transformadas inicialmente vinculadas
implica custos adicionais para o dador da garantia, mas não parece que tal circunstância precluda o
reconhecimento da validade da convenção de prolongamento do vínculo sobre os produtos finais. Na
verdade, os credores quirografários do empresário, na medida em que uma parte da própria liquidez se
destina às despesas de laboração dos produtos que acabam por ficar neste, não ficam por isso
prejudicados”) ou a sua continuação sobre novas matérias primas adquiridas para o prosseguimento da
actividade produtiva (advogando que se deverá, tendo em conta a manutenção do valor da garantia real,
conter a extensão nos limites do valor dos bens inicialmente vinculados, não admitindo uma continuação
da garantia sobre uma quantidade de bens correspondente à inicialmente empenhada, porquanto entre o
momento da aquisição destes últimos e a sua substituição pode ter ocorrido um aumento do respectivo
valor).
2840
Quanto a estes, Piscitello, Le garanzie cit., pág. 104 e segs., entende que o problema está na
regulamentação desta matéria (mais concretamente no art.º 46.º do Regolamento Consob, cuja ilegalidade
o Autor advoga, considerando que a mesma não era competente para regular os aspectos civilísticos dos
vínculos sobre este tipo de objectos e, ainda, por extravasar o âmbito da autorização legal que lhe fora
811
De qualquer forma e independentemente de qual seja o entendimento adoptado,
cumprirá estabelecer critérios para determinação do valor dos bens, cuja paridade
representa o limite dentro do qual as substituições poderão verificar-se - e, por
consequência, no seio do qual a rotatividade pode operar -, não se concebendo que tal
avaliação possa ficar totalmente entregue ao livre arbítrio dos contraentes.2841
Noutra ordem de considerações, cumpre realçar que uma análise mais atenta do
facto conduz à constatação que nem sempre o incremento de valor implicará um dano
para os credores quirografários, parecendo até que tal aumento se traduz numa
vantagem para estes, na medida em que o devedor se vê desapossado de um bem cujo
valor excede o montante do crédito garantido (como normalmente acontecerá), destarte
permitindo aos credores não privilegiados satisfazer-se sobre o seu valor residual.2842
Tal prejuízo verificar-se-á, pelo contrário, caso o valor do bem originariamente
dado em penhor não fosse suficiente para garantia do crédito assegurado, uma vez que,
neste contexto, a substituição do primeiro bem por outro de maior valor conduzirá
812
unicamente a um melhoramento da posição do credor pignoratício, sendo pernicioso
para os demais credores,2843 como se poderá dar igualmente quando, apesar de mantido
o valor nominal dos valores mobiliários substituídos, seja alterado o seu valor efectivo
(entendido este como a “vendabilidade” do bem).2844
De qualquer modo e uma vez que as circunstância que conduzem, nos termos
acabados de expor, à verificação de um efectivo prejuízo decorrente do uso das
cláusulas rotativas são relativamente aleatórias e independentes da vontade dos
principais prejudicados com as mesmas (os demais credores do empenhante), pelo que,
por motivos preventivos e para a sua protecção, se impõe o respeito pelo critério da
paridade de valor.
Dever-se-á recusar-se, sobretudo, a possibilidade de, através das convenções
rotativas, o credor obter uma renovação da garantia no tempo, socorrendo-se
indefinidamente da continuidade do penhor, cuja data de constituição ficou cristalizada
no momento inicial da criação do vínculo,2845 não parecendo que tal perigo possa ser
conjurado através da mera fixação de um valor inicial (correspondente ao valor dos bens
inicialmente empenhados) dentro do qual a rotatividade possa livremente operar.2846
2843
Gabrielli, Il pegno cit., págs. 250 e 251.
2844
Foca este aspecto Chiara Mancini, ob. cit., pág. 683, assegurando que a paridade de valor não suscita
dúvidas quando os bens substituídos e substitutos sejam valores mobiliários cotados – uma vez a sua
alienação se encontra assegurada – mas o mesmo não se poderá dizer quando a substituição ocorra entre
bens cotados e não cotados. Nesta segunda hipótese, poderão advir prejuízos para terceiros credores do
empenhante, porquanto o património remanescente deste poderá considerar-se diminuído (por exemplo,
se os bens inicialmente empenhados forem substituídos – em razão da diminuição do seu valor - por
outros, mesmo que de igual valor nominal).
2845
Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 22 e segs., reforça que as normas civilísticas das quais se retira o
princípio geral da admissibilidade da rotatividade convencional têm em comum o facto de o bem objecto
da garantia se perder e ser substituído por outro ou, em alternativa, diminua de valor e seja necessária
uma integração, ou seja, “Il creditore, dunque, in questi casi perde (o vede quantitativamente limitata) la
possibilità di soddisfarsi in via privilegiata sul bene che formava oggetto della garanzia e acquista, non
sempre conservando la continuità degli effetti dell’originaria garanzia, la possibilita di soddisfarsi sul
suo surrogato, legislativamente determintato: non diverso può essere, a mio avviso, l’effetto del patto di
rotatività”. Nesta conformidade, sempre que se verifique uma substituição do objecto da garantia, o bem
originariamente empenhado deve sair efectivamente da esfera de disposição do credor pignoratício e
regressar à do empenhante, não usufruindo aquele de qualquer direito de preferência relativamente a esses
mesmos bens. E esta conclusão vale, quer se perfilhe uma posição mais restritiva (nos termos da qual a
rotatividade imponha que o objecto substituído deva sair materialmente da esfera jurídica do devedor e
nela entre, em contrapartida, o objecto substituído, como seu sub-rogado: se assim for, apenas seria
admitida a substituição do objecto da garantia com bens adquiridos com o seu contra-valor, seja este o
preço de venda ou o valor de reembolso), quer, por maioria de razão, se adopte um entendimento mais
amplo da rotatividade que consinta qualquer forma de substituição do objecto da garantia, mesmo que não
implique a saída definitiva do bem substituído da esfera jurídica do devedor e se trate apenas de uma
mera troca de objectos. Em especial nesta última hipótese, importa evitar que o credor pignoratício possa
utilizar o pacto de rotatividade, não num sentido meramente substitutivo, mas como forma de incrementar
ilegitimamente o valor da sua garantia (como acontece se, após a substituição, o bem substituído seja
usado pelo devedor para satisfazer uma parte do crédito do credor pignoratício; ou também através do uso
de cláusulas omnibus relativamente aos créditos garantidos e aos bens onerados). Quando tal suceda,
estaremos perante um negócio em fraude à lei, devendo recusar-se o efeito rotativo, considerando antes
que sobre o novo bem se constitui um novo penhor. (em termos análogos, Melissa Magnano, ob. cit., pág.
588).
2846
Foca este aspecto Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 24 e segs., reforçando que, se assim fosse, a garantia
rotativa se transformaria num privilégio sobre os bens do devedor em posse do credor imputáveis ao
penhor rotativo, ou seja, “così intesa, alla garanzia rotativa finisce per essere estraneo alcun riferimento
surrogatorio o integrativo dell’originario oggetto del vincolo”. Se assim fosse, o credor poderia imputar à
garantia rotativa bens cujo valor não excedesse o dos bens inicialmente empenhados e sem que a tal
imputação deve necessariamente corresponder a saída ou a diminuição de valor dos bens originais
(podendo até o credor escolher, de entre os bens empenhados, aqueles sobre os quais exercer o seu direito
813
Neste contexto e se a ideia subjacente a esta restrição é assegurar a manutenção
do valor do bem empenhado – ou, pelo menos, evitar o seu aumento – poder-se-á
duvidar do funcionamento da rotatividade num contrato de penhor do qual constem
cláusulas prevendo, em caso de incremento do valor dos bens empenhados
relativamente ao detido no momento da constituição da garantia, o direito do
empenhador dispor dos bens excedentários face àquele valor, desde que essa mais valia
ultrapasse uma determinada percentagem e se prolongue ininterruptamente durante um
período fixado contratualmente.2847
de preferência, sem que se pudesse resolver a questão da data de constituição do penhor para os restantes
bens). Em face do exposto, “anche ove si ritenga necessario inserire nel patto di rotatività il valore entro
il qual ela rotatività opera, essa pressuponga sempre l’attuazione di un meccanismo di sostituzione totale
o parziale, a parità di valore, o di integrazione in misura corrispondente alla diminuzione del valore,
dell’oggetto originario della garanzia”.
2847
Luciano Panzani, ob. cit., pág. 951, dá conta da utilização de uma cláusula com este teor nas
condições gerais usadas pela Associação Italiana de Bancos, bem como de outra estabelecendo o direito
dos bancos reduzirem, com efeito imediato, o crédito concedido ao devedor quando o valor dos bens
empenhados sofra uma diminuição relativamente ao inicialmente estabelecido e a garantia não seja
reintegrada com outros bens aceites pelos bancos credores.
2848
Acerca da natureza publicitária da entrega do bem ao credor ou a terceiro, enquanto requisito
constitutivo do penhor, vide supra n.º 5.1 do Capítulo I.
2849
Como salienta Joana Dias, ob. cit., págs. 203 e 204, esta leitura torna possível a dação em penhor de
bens que façam parte de um estabelecimento comercial sem suspender o desenrolar do processo
produtivo, bem como a operatividade, relativamente a esses bens, de uma cláusula de rotatividade.
Seguindo a mesma linha de pensamento, “a conservação dos bens nos locais da empresa não seja por si
só um indício bastante que permita concluir pela propriedade dos mesmos e, assim, da possibilidade dos
credores quirografários realizarem os seus créditos à custa dos mesmos (…). Destas observações pode
excluir-se que para a constituição do penhor é necessário criar uma situação de desapossamento notório
ou público a fim de permitir que os credores comuns possam tomar conhecimento de quais os bens que se
acham sujeitos a execução”, admitindo a mesma Autora formas atenuadas de desapossamento, desde que
idóneas para limitar o poder de disposição do empenhante (para, desse modo, tutelar o credor face à
deterioração dos bens e/ou à alienação a terceiros de boa fé e, simultaneamente, tornar possível aos
terceiros verificarem a existência do encargo pignoratício), designadamente a entrega das chaves do
estabelecimento onde se encontrem os bens dados em garantia ou a criação de uma situação de composse
que exclua a possibilidade de o empenhante dispor isoladamente desses mesmos bens.
2850
Vide Gabrielli, Il pegno cit. págs. 115 e 116 e também in I negozi costitutivi di garanzie reali, in
BBTC, 1996, pág. 149 e segs., e os Acórdãos da Corte de Cassação Italiana n.º 5264 de 28/5/1998 (citado
por Luca Panzani, ob. cit., pág. 944) e de n.º 10685, de 27/9/1999 (no comentário de Andrea Azzaro,
814
Mais concretamente e conforme exposto anteriormente, o penhor traduzir-se-ia
na criação de uma reserva de utilidade a favor do credor, consequência da
indisponibilidade do bem empenhado por parte do seu proprietário, assim se superando
o binómio entrega-desapossamento, na medida em que a criação daquela reserva de
utilidade poderá ser obtida através do recurso a técnicas diversas.2852
Por outro lado, o dito obstáculo poderá igualmente ser ultrapassado – ao menos
quando se trate de penhor incidente sobre bens objecto de gestão patrimonial –
considerando que, logo no momento da constituição da garantia, o empenhante é
privado de qualquer poder sobre esses bens, adquirindo o credor pignoratício uma
posição activa sobre os bens que serão, posteriormente, escolhidos pelo gestor (que,
aliás, se encontra vinculado perante o mencionado credor).2853
Noutra ordem de considerações, por vezes a lei impõe formalidades específicas,
alternativas ao desapossamento, como condição de surgimento da garantia e, nesses
casos, no momento da substituição dos bens serão esses mesmos requisitos que terão de
ser observados.2854
Mais ainda, pode até atribuir-se natureza imperativa ao preceito que institui o
desapossamento como formalidade inderrogável da constituição do penhor (e ao
carácter ao carácter real desse negócio constitutivo) e, não obstante, consentir que as
partes possam salvaguardar a continuidade da garantia em caso de mutação dos bens
sobre os quais a mesma recai.2855
Pelo contrário, aqueles que retêm o desapossamento como essencial tendem a
considerar que a substituição do bem inicialmente empenhado implica a perda do direito
de preferência sobre esse bem e o nascimento de um novo sobre o bem substituto.2856
Pegno rotativo cit., pág. 260, esta decisão representa o “rigetto della tesi che nei contratti reali assume la
traditio quale elemento perfezionativo della fattispecie”).
2851
Vide Joana Dias, ob. cit., pág. 142, nota 377, considerando que a necessidade de entrega comporta
excepções, designadamente “quando o credor já está na posse dos bens nos quais o penhor se considera
constituído no momento em que dá o seu assentimento (….) a substituição dos bens dados em garantia
poder prescindir de uma nova consignação. É isto que sucede frequentemente nos contratos bancários,
nos quais os credores pignoratícios são autorizados a realizar autonomamente as operações de
substituição do capital com o vencimento dos títulos”.
2852
Andrea Azzaro, Pegno rotativo cit., pág. 262 e Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 128 e Sulle
garanzie rotative cit., págs. 129 e 130 (aludindo, nesta última obra, às diversas hipóteses legais de
consagração inequívoca da rotatividade, para concluir que “è possibile costituire vincoli reali dotati
dell’efficacia del diritto di prelazione su determinati beni, pur rimanendo il creditore privo della loro
disponibilità materiale, ogni volta che la privazione della disponibilità (materiale o giuridica) del bene o
del diritto a favore del creditore risulti, mediante un atto di investitura formale dei termini effettivi e
concreti dell’operazione economica, indipendentemente dall’avvenuto ed effettivo spossessamento del
costituente”).
2853
Francesco Bochicchio, ob. cit., pág. 220, concluindo que “il trasferimento di tale situazione attiva dal
costituente al creditore ha tutti i requisti della perdita del possesso da parte dell’uno e di acquisto da
parte dell’altro ai sensi dell’art. 2786 c.c., anche se la stessa situazione attiva non può essere
considerata, di per sè, possesso”.
2854
Salienta este aspecto Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 186 e segs., apontando como
exemplos o penhor sobre instrumentos financeiros (para o qual a lei requer a inscrição num registo em
conta) e sobre presuntos (aposição de uma marca física e anotação num registo específico).
2855
Valeria Orlando, Il pegno rotativo, 2003, in www.tesionline.it, págs. 10 e 11. Pelo contrário, Gessica
Pavasini, ob. cit., págs. 296 e 297, coloca em relevo a necessidade de “che si realizzi il c.d.
“spossessamento” tramite la consegna al creditore dei beni che, di volta in volta, intervengono a
modificare l’originario oggetto della garanzia” (até porque, assinala, é esta a posição da jurisprudência).
2856
Assim, Gessica Pavasini, ob. cit., pág. 299, afirmando que, nos termos do regime civil do penhor, a
perda da posse do objecto onerado por parte do credor gera, salvo casos excepcionais (justificados pelo
facto de a perda da posse ser devida a factos excepcionais e independentes da vontade das partes), a perda
do direito de preferência sobre tal bem, de modo que “qualora la banca restituisca al debitore il titolo sul
quale era sorto originariamente il vincolo per sostituirlo con un diverso, la prelazione sul bene sostituito
815
Naqueles ordenamentos, como o italiano, o espanhol e o francês (embora, neste
último, com as nuances decorrentes da reforma de 2006) existe um obstáculo adicional,
na medida em que acresce, como condição da atribuição do direito de preferência (ou
até de validade da garantia), a necessidade de redacção de um documento com data
certa, contendo suficiente indicação do crédito assegurado e dos objectos dados em
garantia, razão pela qual a generalidade da doutrina2857 e da jurisprudência2858 italianas
exigem a repetição daquele formalismo em caso de substituição dos bens empenhados,
com a descrição dos bens substitutos.2859
per ciò solo si interromperebbe e se ne costituirebbe una nuova sul bene sostituto”, colocando em relevo
a necessidade “che si realizzi il c.d. “spossessamento” tramite la consegna al creditore dei beni che, di
volta in volta, intervengono a modificare l’originario oggetto della garanzia” (até porque, assinala, é esta
a posição da jurisprudência).
2857
Assim, Rubino, Il pegno cit., pág. 204 (apesar de não tomar posição acerca do carácter novatório da
substituição, reconhece ser inevitável, como condição de exercício do direito de preferência, a redacção
de um novo documento escrito), Gorla e Zanelli, ob. cit., págs. 35, Francesco Magni, ob. cit., pág. 386
(“le clausule di rotatività contenute nei contratti con le banche non consentono di ritenere amissibile la
fluttuazione automatica della garanzia da un bene ad un altro, senza rinnovo delle formalità previste
dall’art. 2787 c.c. e senza effetti novativi”, sustentando deverem ser especificados os novos bens que, de
tempos a tempos, irão substituir os inicialmente empenhados), Mauro Bussani, Il modello cit., pág. 173
(este Autor salienta ser esta a posição dominante – “La generalità degli studiosi, d’altra parte, esclude
l’idoneità delle clausule di sostituzione convenzionale a dar luogo alla prelazione fino a quando non si
indichi, in una scritura munita di data certa, quali siano i beni, ulteriori o diversi rispetto all’iniziale
oggetto della garanzia, sui quali il vincolo si sostituisce o si estende” - mas não adere explicitamente a
ela), Luca Ruggeri, ob. cit., pág. 713 (referindo-se, em especial, ao requisito da data certa, assegurando a
necessidade da observância da mesma para protecção dos credores quirografários – reconhecida
igualmente pela Corte de Cassação, atribuindo o Autor a este reconhecimento a intenção de reconhecer o
penhor rotativo apenas no respeito das formalidades previstas na lei civil - embora concluindo que, desta
forma, se diminui significativamente o interesse do penhor rotativo) e, apesar de não aderir a este
entendimento, Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 122 e segs. (fundando-se na exigência de evitar
fraudes entre o constituinte e o credor pignoratício em prejuízo de terceiros credores do primeiro,
designadamente a substituição do bem originariamente empenhado por outro de valor superior).
2858
Se a primeira sentença da Corte de Cassação Italiana de 1998 impunha tal requisito, a ulterior
pronúncia de 1999 já a dispensa, afirmando que “le parti possono obbligarsi a sostituire l’oggetto senza
necessità di ulteriori stipulazioni e, quindi, nella contituinità del rapporto originario” (aplaude esta
mudança de orientação Melissa Magnano, ob. cit., pág. 583 e segs., pois, desde modo, é por referência ao
acto inicial das partes que serão determinados a data, e a especificação do crédito assegurado e do bem
dado em garantia, enquanto “l’elemento che deve verificarsi in futuro, per il completamento della
fattispecie, è meramente materiale, consistendo esso, oltre che nella venuta ad esistenza della cosa,
altresì nella consegna di questa al creditore”). Corroboram ser este o entendimento dominante,
Realmonte, L’oggetto cit., pág.13 e Luciano Panzani, ob. cit., pág. 944, nota 2 (argumentando este último
que tal entendimento radica na necessidade de proteger terceiros – nomeadamente outros credores do
empenhante – contra potenciais acordos entre credor e devedor pignoratícios tendentes a substituir os
bens originariamente dados em garantia por outros de valor superior, assim diminuindo o acervo de bens
ao dispor daqueles outros credores). Também Francesco Magni, ob. cit., pág. 388 e segs., admite que a
posição maioritária da jurisprudência é avessa à plena operatividade das cláusulas de rotatividade, muito
embora não deixe de salientar a existência de recentes decisões mostrando uma maior abertura – desde
que respeitados um conjunto de requisitos, como a manutenção do valor dos bens originariamente
empenhados e a entrega dos bens substitutos ao credor -, ao ponto de consentir alguma margem “per
individuare i meccanismi in grado di perfezionare il sistema del pegno rotativo, adeguandolo agli scopi
perseguiti”, desde que contenham “i criteri per individuare i beni da sottoporre a vincolo in sostituzione
di quelli originari”, sem necessidade, para efeitos de atribuição do direito de preferência, da redacção de
um novo documento escrito no momento da substituição.
2859
Neste sentido, Realmonte, L’oggetto cit., pág.13, as decisões citadas por Luciano Panzani, ob. cit.,
pág. 944, nota 2 (argumentando este último que tal entendimento radica na necessidade de proteger
terceiros – nomeadamente outros credores do empenhante – contra potenciais acordos entre credor e
devedor pignoratícios tendentes a substituir os bens originariamente dados em garantia por outros de
valor superior, assim diminuindo o acervo de bens ao dispor daqueles outros credores. Também
Francesco Magni, ob. cit., pág. 388 e segs., admite que a posição maioritária da jurisprudência é avessa à
816
Todavia, não falta quem sustente que a questão deve ser resolvida em sede de
interpretação do negócio constitutivo do penhor, avaliando, em face do caso concreto,
se terão sido respeitados, no momento da constituição da garantia, os requisitos legais
(cfr. art.ºs 2787.º, n.º 3 e 2800.º do CCI), assegurando que tal se verificará sempre que
estejamos no âmbito da mesma operação económica, “dalla cui unità formale devono
emergere le indicazione necessarie ad identificare, nello svolgersi e avvicendarsi dei
successivi passagi del vincolo di garanzia, i beni o valori che ne costituiscono
l’oggetto”.2860
Mesmo os partidários do entendimento mais flexível e menos formalista
reconhecem que o regime legal veda uma substituição automática – no sentido de
prescindir do cumprimento dos requisitos impostos para o nascimento do direito de
preferência2861 – simplesmente admitem que a autonomia privada possa contornar tais
exigências, nomeadamente através da indicação, no regulamento negocial inicial, dos
plena operatividade das cláusulas de rotatividade, muito embora não deixe de salientar a existência de
recentes decisões mostrando uma maior abertura – desde que respeitados um conjunto de requisitos, como
a manutenção do valor dos bens originariamente empenhados e a entrega dos bens substitutos ao credor -
, ao ponto de consentir alguma margem “per individuare i meccanismi in grado di perfezionare il sistema
del pegno rotativo, adeguandolo agli scopi perseguiti”, desde que contenham “i criteri per individuare i
beni da sottoporre a vincolo in sostituzione di quelli originari”, sem necessidade, para efeitos de
atribuição do direito de preferência, da redacção de um novo documento escrito no momento da
substituição.
2860
Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., págs. 130 e 131, I negozi costitutivi cit., pág. 170, Il pegno cit.,
pág. 239 e, em particular, Il pegno anomalo cit., pág. 185 e segs. e Andrea Azzaro, Pegno rotativo cit.,
pág. 263 (distinguindo entre constituição da garantia – momento no qual o objecto deverá ser
determinado ou determinável - e suficiente indicação do objecto e do crédito, rematando que “Nella
ricostruzione dell’operazione economica, il primo momento, quello della costituzione del rapporto di
garanzia, ha riguardo all’accordo negoziale, mentre il secondo fa riferimento a succesivi atti, non
negoziali, determinativi dell’oggetto, che, in ossequio al patto di rotatività programmato dai contraenti,
comportano una modifica nel rapporto, e non del rapporto”). Este entendimento veio, posteriormente, a
ser acolhido por alguma jurisprudência (vide os arestos citados em Gabrielli, Il pegno cit., pág. 244, nota
64), mesmo ao nível da Corte de Cassação. Merecem especial referência, pelo seu carácter inovador (pese
embora a aparente contradição entre a afirmação da existência de uma relação nova e, por outro lado, da
unidade da relação originária, sem efeitos novatórios), as decisões desta Corte n.º 5264, de 28/5/1998, na
qual, embora ressalvando a necessidade de observância dos requisitos formais, se reconhece às partes a
possibilidade de “salvaguardare, con apposite convenzioni, la continuità della garanzia, non ostante il
variare dei beni che ne costituiscono l’oggetto che non facciano venir meno l’identità dei beni che ne
costituiscono l’oggetto”, tomando em consideração “la cosa per la sua componente di valore, in piena
aderenza all’interesse del diritto, che non è rivolto al bene nella sua individualità, ma al suo valore
economico”, considerando ainda que à manutenção da relação de garantia apesar da substituição do
objecto da garantia não obstam o princípio da tipicidade dos direitos reais, nem tão pouco a disciplina da
constituição do penhor e notando, por último, que a substituição se deve conter nos limites do valor do
bem originariamente empenhado, sob pena de potenciais prejuízos para os demais credores do
empenhante (no mesmo sentido, Luciano Panzani, ob. cit., pág. 946). Adere a este entendimento
Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 186 e segs., afirmando que, fora das hipóteses de
rotatividade legalmente previstas, a necessidade de, a cada substituição, se produzir o desapossamento
dos novos bens onerados constitui “un problema di interpretazione del negozio costitutivo della garanzia
e, in ultima analisi, di valutazione degli effetti dell’operazione economica”.
2861
Vide, por todos, Gabrielli, Il pegno anomalo cit., págs. 185 e 186., admitndo que “L’automaticità
della estensione del pegno costituito su determinati titoli ad altri o la sua trasposizione su altri –
problema proprio dela costituzione in pegno di titoli o valori oggetto di un servizio di gestione - deve (…)
ritenersi esclusa, poiché con riferimento ai nuovi titoli è d’uopo, anche in questo caso, formare di volta in
volta –per l’opponibilità del diritto di prelazione – la scrittura avventi i requisiti richiesti dall’art. 2787.,
comma 3º c.c.”, assegurando que tal necesidade se verifica mesmo quando o objecto do penhor seja um
crédito, designadamente um crédito relativamente à gestão centralizada de títulos (uma vez que
“L’esistenza e permanenza di un credito verso la gestione, infatti, non comporta che al mutare
dell’oggetto del credito, rimanga identico l’oggetto del pegno”), concluindo pelo carácter constitutivo das
formalidades legais.
817
bens sobre os quais o penhor originariamente constituído se possa transferir, prevendo,
concomitantemente, as várias fases e operações em que tal substituição decorrerá,2862
enquanto outros assumem uma posição de princípio contrária à obrigatoriedade de
renovação do cumprimento destas formalidades, mas acabam por admitir a sua
necessidade.2863
2862
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 187 e segs. (assegurando que, deste modo, os sucessivos actos
de substituição constituirão unicamente actos de execução de uma operação mais vasta e planificada a
priori) e Sulle garanzie rotative cit., pág. 127 (concluindo pela licitude dos pactos de rotatividade, os
quais, porém, “per essere efficace nei confronti dei terzi dovrà regolare e indicare, fin dal momento
costitutivo del diritto (…) sia il meccanismo di rotatività (e quindi di persistenza nel tempo) del vincolo,
sia le indicazioni necessarie per individuarne nei successivi passagi e trasformazioni gli oggetti (vale a
dire i singoli beni) sui quali la garanzia verrà nel tempo ad insistere, mantenendo così inalterati gli
originari valori dell’operazione economica e quindi la sua unità formale”). Em termos semelhantes,
Giuseppe Martino, ob. cit., págs. 74 e 75, entende ser necessário indicar, nos acordos de acordos de
rotatividade, os critérios para determinar a qualidade e a quantidade do objecto, mas ressalva não ser
indispensável uma enumeração analítica dos objectos que se substituirão aos inicialmente onerados,
bastando antes indicar as regras para a identificação dos mesmos e desde que o respectivo valor
permaneça inalterado (no mesmo sentido, Clementina Scaroni, ob. cit., pág. 419, admitindo que “”le parti
potrebbero indicare le singoli fasi attraverso le quali l’operazione si articolerà nel tempo, il meccanismo
di rotatività e le modalità di individuazione degli oggetti che si avvicenderanno nella garanzia. Il patto di
rotatività della garanzia dovrebbe avere i contenuti costruiti e articolati in funzione del tipo di interessi
sottesi all’operazione economica che si vuole realizzare nel rispetto dei requisiti richiesti dagli artt.
1346, 2787 e 2800 cod. civ.”). Entendimento semelhante é o de Piscitello, Le garanzie cit., pág. 95 e
segs., segundo o qual, partindo da noção de determinabilidade em sentido lato, a renovação das
formalidades a cada substituição do quid onerado não será exigível, desde que as partes fixem, no
documento constitutivo da garantia, os critérios de identificação dos bens dados em garantia, logo
adicionando que “in tale documento non è indispensabile elencare analiticamente gli oggetti che, di volta
in volta, saranno vincolati nel corso del rapporto, ma è sufficiente dettare le regole per la precisa
determinazione degli stessi”, desde que tal substituição não prejudique os demais credores do empenhante
(isto é, não diminua o activo líquido deste à disposição daqueles) e sem que o hiato entre a redacção do
documento e a sucessiva especificação dos bens onerados comprometa a oponibilidade do direito de
preferência do credor pignoratício desde a data constituição da garantia, assegurando que “purché la
scritura costitutiva del pegno contenga ab initio i criteri di determinabilità (…) l’effetiva determinazione
del termine di riferimento del contratto possa avvenire anche in un momento successivo, poiché la
determinabilità è compatibile con una situazione di pendenza” (todavia, o Autor distingue consoante a
faculdade de proceder à substituição caiba ao credor – caso em que será suficiente prever que a
modificação deve ter lugar utilizando o produto da venda o do reembolso dos bens inicialmente
vinculados, embora exista o risco de prejuízo para o empenhante, designadamente quando o credor
adquirir novos bens a um preço superior ao de mercado - ou ao dador da garantia – caso em que o maior
risco para os outros credores do empenhante torna mais complexa a forma de redacção e de
funcionamento da cláusula de rotatividade). Finalmente, Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 179
e segs., retém a desnecessidade de renovação, a cada substituição, destes requisitos de natureza formal,
desde que sejam tutelados os interesses dos credores quirografários – para protecção dos quais são
impostos tais requisitos – ou seja, quando o acto constitutivo da garantia contenha elementos suficientes
para tornar determinados (ou, ao menos, determináveis) os bens onerados, bem como o valor do objecto
da garantia (que deverá permanecer idêntico a cada substituição), considerando que tal será possível
“allorquando il pegno rotativo abbia ad oggetto beni destinati ad essere sostituiti con altri acquistati con
il controvalore della vendita dei primi” (embora reconheça que muitas vezes não será possível, no
momento do surgimento da garantia especificar “il valore che il bene assoggettato a garanzia avrà al
momento della sostituzione, sì che del pari incerta appare la possibilità che risulti corretta la
predeterminazione del futuro oggetto del vincolo”, não considerando suficiente “la clausula che
determinasse il valore del bene sostitutivo per relationem, attraverso il riferimento al valore che
l’oggetto della garanzia avrà al momento della sostituzione: per questa via, infatti, si potrebbe
considerarsi assolto l’onere dell’individuazione del valore, ma difficilmente quello della individuazione
del bene”).
2863
É a posição de Matteo Rescigno, ob. cit., pág. 17 e segs., assegurando que a noção doutrinal de
rotatividade aponta para a desnecessidade de renovação destas formalidades a cada substituição dos bens
empenhados, mas dá conta de uma indefinição jurisprudencial. Este Autor, não discutindo a necessidade
818
Esta (pretensa) necessidade de renovação das formalidades impostas para a
constituição da garantia, a cada substituição, parece colocar-se em termos semelhantes
quer se trate de uma substituição do objecto do penhor ou, antagonicamente, ocorra uma
extensão desse mesmo objecto.2864
A contestação da necessidade de observância rigorosa de tais preceitos – no
sentido de uma fórmula sacralizada e naturalística – conduz a uma concepção
alternativa, baseada nos princípios de elasticidade e dinâmica que inspiram a circulação
de observância deste requisito formal – bem como do desapossamento - no momento inicial da redacção
da cláusula de rotatividade, considera mais duvidosa a desnecessidade de renovação das mesmas a cada
substituição (afirmando que “Se è vero allora che la garanzia rotativa da un lato ripete la sua
ammissibilità teorica della’assenza dello strappo con il principio di tipicità delle garanzie reali e delle
cause legittime di prelazione e se è vero, come a me sembra, che tale strappo non si realizza solo se le
esigenze funzionali affidate allo spossessamento ed ai requisiti fissati negli artt. 2787 e 2800 c.c. vengano
comunque rispettate, è evidente che alla loro applicazione alle garanzie rotative possa ammetersi solo
l’adattamento che deriva dal particolare attegiarsi del loro oggetto”), distinguindo entre o
desapossamento (necessário para cada bem que venha a integrar a garantia rotativa ou, em alternativa, o
respeito de outras formalidades legalmente previstas), a exigência de um documento com data certa (cujo
cumprimento apenas será forçoso no momento inicial da constituição da garantia, pois “Per quanto la
data certa dell’atto recante la sostituzione dell’oggetto, per coerenza con i tratti costitutivi della
fattispecie, tale requisito non può essere considerato necessario al fine di assicurare il diritto di
prelazione né per affermare la c.d. continuità della garanzia”) e a identificação escrita do crédito
garantido e do bem onerado (assegurando ser necessária “la rigorosa predeterminazione del sistema
attraverso il quale si realizza la sostituzione dell’oggetto, requisito per la validità del patto di rotatività.
La specificazione dovrà essere tale da assolvere pienamente alla funzione di consentire ai terzi ed in
particolare agli altri creditori che determinati beni sono assoggettati alla garanzia mobiliare in
esecuzione del patto di rotatività; cosi dovrano essere indicati i meccanismi attraverso i quali i beni
originariamente assoggettati al pegno ne escano ed i nuovi beni vengano invece consegnati al creditore”:
com base neste critério geral, considera desnecessária a redacção de um novo documento quando no pacto
inicial se declare que os bens onerados apenas poderão ser substituídos por outros adquiridos com o
produto da venda daqueles, mas manifesta dúvidas relativamente a uma outra cláusula na qual se
estabeleça a livre substituição dos bens independentemente da venda dos iniciais e da utilização do
produto da venda destes na aquisição dos novos). Concluindo e com base nestas últimas considerações,
advoga a necessidade de redacção, a cada substituição, de um documento escrito contendo a suficiente
identificação dos bens vinculados à garantia (“che individui o contenga la sufficiente indicazione dei
nuovi beni oggetto della garanzia rotativa e che faccia esplicito riferimento all’originario contratto di
pegno con patto di rotatività”), pois só assim será possível aos terceiros credores do empenhante
controlar se os bens inicialmente empenhados não serão substituídos por outros de maior valor e, em
termos amplos, “verificare sia il rispetto del meccanismo negoziale di sostituzione (…) sia che i beni che
il creditore pignoratizio pretende oggetto della garanzia rotativa (…) siano effettivamente imputabili alla
garanzia rotativa invocata”.
2864
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 187 e segs.. No que à substituição diz respeito, a sua
admissibilidade, sem efeitos novatórios, funda-se no instituto da sub-rogação real, concluindo que “il
patto di sostituzione dei beni oggetto di garanzia è ammesso nel nostro ordinamento”, dispensando a
redacção do documento escrito a cada substituição, uma vez que “È infatti consustanziale alla
configurazione unitaria dell’operazione che nel suo svolgersi si modifichi uno dei termini, senza che cio
comporti, al stesso tempo, la nascita di un nuovo e diverso rapporto: circostanza questa che
contraterebbe con le finalità dell’atto di autonomia cosi come previste e volute dalle parti. Finalità che
consistono, appunto, nella possibilita di porre in essere un’operazione di garanzia che si potragga nel
tempo, superando il diaframma rappresentatodal singolo e particolare atto”, na medida em que a
finalidade visada pela constituição do penhor é a de assegurar uma riserva ad rem. Já no que concerne à
extensão do objecto do penhor (ou seja, à alteração sucessiva do vínculo de garantia, de um objecto para
outro), o Autor sustenta que nada impede as partes de configurarem que o penhor inicialmente constituído
possa ser automaticamente integrado com a indicação das sucessivas substituições ou extensões, sendo
assim possível que os efeitos erga omnes da garantia se produzam “a partire dall’iniziale data di
costituzione dell vincolo, in quanto le successive sostituzioni o estensioni dell’oggetto, operando
al’interno di un procedimento unitario, non modificano il rapporto dando luogo a nuove costituzioni di
pegno, ma, nel permanere della sua identità, ne evidenziano unicamente il profilo dinamico e causale”.
819
dos bens móveis, recusando, por isso, a necessidade de renovação dos requisitos formais
a cada substituição dos bens empenhados.2865
Especial referência merece o requisito da data certa – igualmente exigido pela lei
italiana (cfr. art.º 2787.º do CCI) – porquanto a necessidade de assegurar a sua
observância leva a que alguns enquadrem os pactos de rotatividade no âmbito dos
penhores sobre bens futuros,2866 embora não pareça ser esse o entendimento que melhor
capta a essência e o modus operandi dos penhores rotativos.2867
No nosso ordenamento a questão assume uma menor complexidade, porquanto a
única formalidade exigida, em regra, para a surgimento da garantia e para a sua
oponibilidade é a entrega do bem ao credor pignoratício, limitando-se, por isso, a
interrogação a descortinar até que ponto esta necessidade de entrega condiciona ou
impede o funcionamento da rotatividade.
Em nosso entender, será de impor para os bens que paulatinamente venham, na
sequência da cláusula rotativa, a integrar a garantia, o cumprimento das formalidades
legalmente prescritas para a constituição de penhor sobre as mesmas (entrega ou credor
ou a terceiro ou registo), sem prejuízo da ausência de efeitos novatórios poder assentar
na previsão contratual inicial e na imposição de a substituição se dever conter nos
limites de valor dos bens empenhados.
2865
Francesco Bochicchio, ob. cit., pág. 221, sustenta esta posição de maior abertura, não apenas
relativamente à necessidade de redacção de um documento escrito, como também quanto à imposição do
desapossamento (embora a sua análise seja circunscrita à dação em penhor de bens objecto de gestão
patrimonial, estas considerações são efectuadas em termos genéricos). Mais concretamente, o Autor
sustenta ser esta uma leitura lógico-sistemática dos preceitos civilísticos impositivos daqueles requisitos
(embora aceite que a posição contrária seja mais conforma à letra da lei), sobretudo tendo em conta que o
ordenamento “ha scelto, in pratica, la prevalenza delle ragioni del creditore pignoratizio, purché vi siano
requisiti formali idonei ad ufficializzare l’acquisizione di un potere diretto del creditore sul bene”,
acrescentando que a solução oposta, ao sacralizar tais requisitos, “finisce col neutralizare la scelta stessa,
sulla base di una (discutibile) maggiore meritevolezza dei creditori chirografari rispetto a quelli
garantiti”. Em termos igualmente enfáticos, Chiara Mancini, ob. cit., pág. 682, partindo do pressuposto
que o objecto da garantia é o valor do bem (de modo a assegurar a validade do acordo através do qual as
partes estipulem a substituição dos bens empenhados, sem efeitos novatórios), conclui não ser
compreensível a razão da indispensabilidade de um novo documento escrito a cada substituição (mais
concretamente, “se data e credito sono comunque quelli di cui al momento costitutivo del pegno, la
descrizione della cosa necessita esclusivamente nel momento costitutivo e non in quello continuativo-
modificativo (rispetto, appunto, al bene rappresentativo del valore”) della garanzia: se il concetto di
valore (e non di bene) indisponibile per il concedente, confema, nell’unicità del rapporto, l’unicità della
garanzia prestata, unica è la scrittura identificativa e com data certa necessaria a tal fine”).
2866
Para Luciano Panzani, ob. cit., pág. 947, no penhor rotativo a certeza da data – assim como a
suficiente indicação do crédito assegurado e do bem empenhado – “vanno riferite all’accordo originario,
amalogamente a quanto avviene nel pegno di cosa futura. Nell’accordo sono determinati sai il credito da
garantire sia il pegno da offrire in garanzia, mentre l’elemento che deve verificarsi in futuro per il
completamento della fattispecie, vale a dire l’individuazione dei beni destinati a prendere il posto da
quelli originariamente assoggettati al vincolo pignoratizio, è meramente materiale, consistendo nella
venuta ad esistenza della cosa e nello spossessamento (…), la data certa, che non deve essere riferita
all’atto di sostituzione dei titoli giunti in scadenza, bensì ed esclusivamente, al momento della
stipulazione originaria, senza che si verifichi alcun effetto novativo” (salientando ter sido esta posição
subscrita pelos arestos da Corte de Cassação n.º 10685/99 e 5264/98).
2867
Assim, Andrea Azzaro, Pegno rotativo cit., págs. 264 e 265, salientando que no penhor rotativo o
objecto da garantia já se encontra presente no momento da constituição da garantia, surgindo o direito real
nesse mesmo momento (desde que preenchidos os requisitos legalmente exigidos), enquanto as
substituições futuras – mesmo que com bens ainda inexistentes – se traduzem em meras modificações do
objecto da garantia, enquanto no penhor de coisas futuras a convenção pignoratícia produzirá apenas
efeitos obrigatórios, surgindo o direito apenas após o surgimento do objecto da garantia e a sua posterior
entrega ao credor.
820
Relativamente ao penhor de créditos, a lei condiciona-o à notificação do terceiro
devedor do crédito empenhado (cfr. art.º 681.º, n.º 2),2868 pelo que cumprirá indagar até
que ponto a exigência de cumprimento desta formalidade compromete a operatividade
das convenções rotativas.
Um princípio parece poder, desde já, enunciar-se: não é a necessidade de
notificação do terceiro devedor do crédito garantido que impedirá a operatividade das
convenções rotativas, ou seja, caso se conclua que estas não contendem, de modo
intolerável, com o regime geral do penhor de coisas – que pressupõe a entrega do bem
ao credor ou a terceiro – tal conclusão será extensível ao penhor de créditos, porquanto
a formalidade da notificação prevista para este não será mais conflituante com a
rotatividade do que o é aquela entrega.
Nesta conformidade, para a validade de um penhor rotativo que possa vir a
abranger créditos não inicialmente reentrantes no conteúdo da garantia, será bastante,
conforme referido anteriormente, a indicação das relações contratuais (ou,
eventualmente, das vicissitudes que as possam originar – v.g., o produto da alienação
dos bens originariamente onerados) das quais poderão advir os créditos a onerar, tanto
mais que, como resulta da exposição anterior, é muito duvidoso que à forma de
constituição do penhor de créditos possa atribuir-se algum relevo publicitário.
2868
No direito italiano e conforme analisado supra, o penhor de créditos requer igualmente a notificação
do terceiro devedor do crédito empenhado (cfr. art.º 2800.º), mas tal formalidade apenas é exigida como
condição de oponibilidade da garantia, não afectando a sua ausência a produção de efeitos entre as partes.
2869
Considerando que estas normas consagram a legitimidade das cláusulas rotativas, Joana Dias, ob. cit.,
págs. 170 e 171, Sofia Maltez, ob. cit., pág. 65 (embora a mesma Autora, ob. cit., pág. 69, nota 177,
apesar de aceitar tratar-se de um caso de sub-rogação, sugere que este fenómeno produz a extinção do
anterior penhor e o surgimento de um novo, facto que retira grande parte do interesse a este tipo de
convenções) e Patrícia Fonseca, ob. cit., págs. 27 e 28.
2870
Em Itália, essa transposição (e a consagração da rotatividade neste domínio) ocorreu com a aprovação
do d.lgs. n.º 170, de 21/5/2004, que aprovou o regime do penhor financeiro, em cujo art.º 5.º se prevê a
possibilidade de o credor pignoratício dispor, inclusivamente alienando (a faculdade de o credor
pignoratício usar o bem empenhado com o consentimento do empenhante já resultava do regime geral do
penhor, residindo a novidade na possibilidade de, no caso do penhor financeiro, o credor poder mesmo
alienar o objecto da garantia – assim Gabrielli, Il pegno cit., pág. 263), dos objectos financeiros objectos
de penhor – desde que tal esteja previsto no contrato e de acordo com o pactado -, sem prejuízo da
obrigação de reconstituir uma garantia equivalente em substituição da garantia originária antes da data de
vencimento da obrigação assegurada, não comportando a reconstituição a constituição de uma nova
garantia, considerando-se esta constituída na data de prestação da garantia originária (por outro lado, o
art.º 9.º do mesmo diploma estabelece a eficácia e a oponibilidade da garantia rotativa aos demais
credores). Tendo em conta estas disposições, Gabrielli, Il pegno cit., pág. 261 e segs., conclui que o novo
regime, ao estabelecer que a substituição de uma garantia substituta se considera efectuada na data da
garantia originária (desde que aquela pode ser considerada equivalente esta), realizou “il pieno e
definitivo riconnoscimento del principio della rotatività della garanzia non solo per i titoli
821
Noutros ordenamentos, como o italiano, o reconhecimento normativo da
rotatividade parece ter um âmbito mais vasto no que respeita aos objectos sobre os quais
tal efeito se pode produzir, podendo abarcar os que integram o estabelecimento
comercial e alguns produtos agrícolas como os lácteos e os presuntos.2871
Mais ainda, no caso específico das universalidades e tendo em conta a sua
especial configuração, uma garantia que sobre elas incida postula necessariamente a
rotatividade (no sentido de os concretos objectos onerados serem os que, em cada
momento, a componham e, especialmente, de a eventual execução apenas poder
abranger os que a integrem nessa data), até mesmo na ausência de qualquer estipulação
nesse sentido.2872
Com efeito, deverá até equacionar-se se, nas universalidades, a garantia não
assume contornos ligeiramente diversos, revestindo-se de uma natureza
dematerializzati e per il titoli di Stato (…) ma anche per la costituzione in garanzia di qualunque
strumento finanziario”. Sobre este assunto, vide igualmente Gessica Pavasini, ob. cit., págs. 288 e 289 e
Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., pág. 147. Quanto ao reconhecimento da validade das
convenções rotativas no domínio do penhor financeiro na legislação espanhola, vide García Vicente, La
prenda cit., pág. 100 e segs. e Joan Marsal Guillamet, ob. cit., pág. 356 e segs.. Este Autor relata que, com
a transposição da directiva comunitária sobre garantias financeiras, a possibilidade de substituição dos
bens onerados ganhou maior relevância, ao permitir-se, não apenas a mera substituição (caso em que
existe sempre um bem objecto da garantia e, por isso, não estaremos perante um penhor irregular - não
apenas por força da remissão para o regime geral do penhor, nem porque, recaindo a garantia sobre
dinheiro, este tem que estar depositado numa conta – uma vez que, se o poder de disposição do credor
determinasse a aquisição da propriedade dos bens onerados, não faria sentido a necessidade de
substituição, uma vez que o originário e o substituto pertenceriam ao dito credor), mas também a
disposição dos bens onerados (nesta hipótese e em virtude do lapso temporal que pode mediar entre a
disposição e a substituição impede igualmente a qualificação como penhor irregular).
2871
Quanto a estes bens, o regime legal especial criado no direito italiano foi analisado no anterior n.º
1.2.1 do Capítulo II.
2872
A este respeito, Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 234, entende, no seio das universalidades, a sub-
rogação é apenas aparente, “fruto de la determinación sub specie universitatem, que, a sua vez, puede
derivar intrinsecamente de la productividad orgánica de los elementos que componían el conjunto, o bien
extrinsecamente de la agregación de nuevos elementos equivalentes o no a los antiguos que fueron
separados de aquél” (como sucede com a incorporação da nova res na garantia que incidia sobre um
rebanho), do mesmo modo que não será correcto fazer apelo àquele instituto em caso de substituição da
coisa pelo seu preço – não se encontrando este concretamente representado por dinheiro individualizado -
ou vice-versa (que o Autor considera ser uma sub-rogação dentro de uma massa patrimonial de uma coisa
pelo valor pelo qual foi alienada e, por isso, tratando-se de patrimónios gerais das pessoas, “el juego de la
subrogación, de tan natural que es, se subreentiende, de modo que casi huelga halar de él”), alegando
que de verdadeira sub-rogação apenas se deverá falar a respeito da substituição de coisa por coisa
(abrangendo igualmente a substituição de uma coisa pelo crédito à cobrança do preço devido ou à
indemnização em caso de danificação ou destruição da coisa). O Autor constata que, considerando como
sub-rogação apenas a última hipótese aventada, “sólo quedarian subrogadas en lugar de las vendidas las
mercancías compradas, precisamente con el precio de aquéllas” ou, quando muito, dispensando a prova
da identidade física do dinheiro recebido com a alienação de umas na aquisição de outras, desde que o
valor de ambos seja equivalente (pelo contrário, alargando o conceito de sub-rogação às duas primeiras
hipóteses, a solução seria a de “todas las mercancías que están en la tienda, o en almacén, y pertencen al
titular del conjunto, se entenderán comprendidas en la hipoteca aun cuando su valor llegue a exceder
notablemente del correspondiente a las inicialmente hipotecadas. Por tanto, incluso las compradas con
nuevos capitales invertidos posteriormente en el negocio quedrán comprendidas en la hipoteca”), solução
esta que parece ter vingado a respeito das garantias sobre o estabelecimento comercial. Por seu turno
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 347, a Autora, ciente das dúvidas existentes quanto à afirmação da sub-
rogação real na ausência de texto expresso, entende que a contínua modificação dos bens que integram a
universalidade onerada mais não é que “une conséquence néccessaire de la nature de sûreté réelle.
Titulaire d’un droit sur la valeur du bien, le créancier peut exercer ses droits sur cette valeur dês lors
qu’elle apparaît, quelle que soit sa forme, et ce même si le législateur ne l’a pas expressément prévu”.
822
predominantemente flutuante2873 - ou seja, como uma garantia que, gravitando embora
sobre um bem composto cujo conteúdo se encontra em constante mutação, apenas
incide, em cada momento, sobre os bens que nessa data o integrem (comungando, por
isso, de um aspecto comum aos privilégios gerais, mas assemelhando-se aos especiais
por recair sobre um bem composto determinado e não sobre todo e qualquer bem, móvel
ou imóvel, do devedor) -, e não tanto rotativa, pois nesta a garantia incide sobre bens
determinados e presentes, que apenas por efeito do pacto rotativo (ou de determinação
legal) podem ser substituídos por outros:2874 alguns Autores falam mesmo, a este
respeito, da sub-rogação geral.2875
Analogamente, quanto aos bens fungíveis a sua substituibilidade decorre da
própria noção de fungibilidade, uma vez que o interesse das partes se dirige, não a um
determinado bem, mas antes a uma determinada quantidade de um dado género de
coisas, destarte consentindo que um bem seja comutado por outro sem prejuízo para os
envolvidos no negócio,2876 originando, como vimos, uma menor exigência de
determinabilidade de tais objectos, mesmo no momento originário da celebração do
contrato.
Este efeito sub-rogatório constitui, aliás, uma compensação pela ausência de
direito de sequela, por parte do credor pignoratício, sobre os bens que integram a
universalidade ou sobre os concretos bens fungíveis empenhados,2877 em especial no
âmbito das garantias não possessórias.2878
2873
Neste sentido, Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 239 e segs., qualificando como tal, no
ordenamento espanhol, a hipoteca sobre estabelecimento comercial, a qual pode abranger mercadorias e
matérias primas destinadas à exploração do referido estabelecimento, ao mesmo tempo se consente a
respectiva transformação e venda, ou seja, “se configura su objeto en base a una cantidad que debrá
existir siempre como mínimo almacenada”.
2874
Embora, naturalmente, a composição da universalidade possa ser alterada independentemente da
verificação de um fenómeno de sub-rogação, como sucederá sempre que um bem novo passa a fazer parte
da universalidade sem ser em substituição de outro que dela tenha saído.
2875
Andrea Magazzù, Surrogazione reale, in Enciclopedia del Diritto, Vol. XLIII, Giuffrè, Milano, 1982,
pág. 1501, define a sub-rogação geral como aquela que ocorre no seio de um conjunto de bens,
normalmente associada aos patrimónios autónomos e que é inerente a este tipo de bens. O Autor distingue
ainda, dentro da sub-rogação real geral, aquela que se produz no âmbito de uma universalidade
homogénea (sendo esta composta unicamente por bens do mesmo género, a sub-rogação apenas poderá
operar com bens dessa mesma qualidade, como por exemplo com um rebanho ou uma biblioteca) ou
heterogénea (caso em que a sub-rogação, ao invés, poderá assumir contornos mais alargados, como
poderá suceder com um estabelecimento comercial ou uma herança).
2876
Assim, Andrea Magazzù, Surrogazione reale cit., pág. 1501 e segs., enquadrando o fenómeno na sub-
rogação especial (respeitante a coisas determinadas e visando sujeitar um determinado bem a um direito
que afectava um outro bem). Dentro desta sub-rogação real especial, o Autor diferencia a sub-rogação
indemnizatória (em que a indemnização ocupa o posto do bem inicialmente onerado – cfr. art.º 692.º), por
contraprestação (em que o objecto onerado é substituído pelo produto da respectiva alienação) ou por
cobrança (por exemplo, em caso de cobrança do crédito onerado, transferindo a garantia do crédito para o
objecto da prestação).
2877
Para mais desenvolvimentos, vide infra n.º 1.1 do Capítulo IV.
2878
Com efeito, a generalidade dos bens alvo de garantias não possessórias são destinados ao comércio (é
essa, aliás, uma das razões que determinam a ausência de desapossamento), pelo que a atribuição de um
direito de sequela sobre cada um deles obstaria àquela comercialização. Todavia, a mera negação deste
direito de sequela comprometeria grandemente a eficácia da garantia (assim dificultando ou dificultando a
concessão de crédito): ora, o modo de conciliar estas duas exigência passa, precisamente, pelo recurso à
sub-rogação especial, nomeadamente permitindo ao credor que a sua garantia incida sobre outros
produtos do mesmo género detidos pelo empenhante (ou, eventualmente, sobre o produto da alienação do
bem onerado).
823
Fora das hipóteses em que a rotatividade encontre consagração legal,2879 importa
aferir da admissibilidade desta figura face aos princípios gerais regentes da economia
privada.
Conforme temos vindo a relatar, o enquadramento do rotatividade (e da
substituição do objecto onerado a ela inerente) no domínio do penhor comum é
defensável, desde as partes respeitados determinados requisitos, como sejam a
identificação, no momento da constituição da garantia, dos bens que podem substituir
(ou acrescer), os termos dessa substituição (ou acréscimo), a imposição de uma
equivalência entre o bem substituído e do bem substituto e uma avaliação imparcial dos
bens (quer no momento das substituições, quer no do eventual incumprimento).2880
Esta perspectiva, procura, em termos dogmáticos, ancorar a rotatividade, muito
em particular no que toca à ausência de efeitos novatórios a cada substituição, no
âmbito da sub-rogação real (legal ou convencional, consoante a rotatividade decorra,
respectivamente, da lei ou do acordo das partes), entendida esta como um fenómeno
através do qual, por força da verificação de um acto ou facto jurídico, se produz a
substituição de uma coisa por outra, passando esta a última a desempenhar a função
anteriormente exercida pela coisa substituída.2881
Mais precisamente, da enumeração legal de várias hipóteses de sub-rogação real,
no âmbito específico das garantias, seria dedutível um princípio geral de
admissibilidade de invocação deste instituto para lá dos casos previstos na lei,2882
2879
Como bem nota Mauro Bussani, Il modello cit., pág.172, este reconhecimento meramente episódico
não pode constituir a base para um reconhecimento genérico das cláusulas rotativas.
2880
Para além dessa avaliação no momento da substituição (para aferir da paridade de valor entre os
objectos substituídos e substitutos), os acordos rotativos deverão ainda prever, sob pena de violação da
proibição do pacto comissório, uma avaliação dos bens objecto da garantia na data do incumprimento do
devedor, completada com a obrigação de devolver o eventual excedente entre o valor da garantia
executada e da dívida assegurada (assim, Joana Dias, ob. cit., págs. 234 e 235).
2881
Em termos aproximados, Andrea Magazzù, Surrogazione reale cit., pág. 1501, afirmando que na sub-
rogação real “il diritto ha deux objects successifs, ciò essendo possibile per la fongibilitè retative de cês
deux objects entre eux; e dunque deux objects, un seul droit, telle est la formule qui résume la
subrogation reélle”, isto é, “varia non l’oggetto tout court, ma soltanto l’elemento materiale, e perciò
non muta propriamente l’oggetto (il bene in senso giuridico-formale) e si mantiene costante la tutela
dell’interesse tipicamente protetto”, assim se percebendo “perché la sostituzione della cosa sia
compatibile con la conservazione della situazione giuridica preesistente”). No que especificamente
respeita ao enquadramento da rotatividade no seio do instituto sub-rogatórios, Gabrielli, I negozi
costitutivi cit., pág. 169, “Il fenomeno dev’essere inquadrato all’interno della surrogazione reale, dato
che é consustanziale alla configurazione unitária dell’operazione economica – e all’interesse delle parti
contrattuali – che nel suo svolgersi ed articolarsi nel tempo si modifichi uno dei suoi termini, senza che
ciò comporti la nascita di un nuovo e diverso rapporto, dato che ciò contrasterebbe con le finalità
dell’atto di autonomia, che consintono, appunto, nella possibilitè di porre in essere un’operazione di
garanzia che si potragga nel tempo (…) in quanto l’interesse protetto con la garanzia non è quello
diretto al conseguimento della res, ma quello diretto al conseguimento dell’utilità reale: del valore
economico rapresentato della cosa (…) nulla vieta che le parti, per la regolamentazione dell’affare,
configurino nel contesto dell’opperazione la rotazione del vincolo di garanzia, da un oggetto all’altro,
attraverso una serie di passagi sucessivi” (vide, ainda, do mesmo Autor in Sulle garanzie rotative cit.,
pág. 120 e segs., “La sostituzione dell’oggetto non determina nella fattispecie la costituzione di un nuovo
pegno rispetto a quello originário ma dà luogo ad una surrogazione reale: lo stesso valore formale di
garanzia può infatti accedere ad oggetti materiali diversi e mutevoli nel tempo. La surrogazione
convenzionale dell’oggetto del pegno (…) rappresenta nella fattispecie in cui opera un’appropriata
tecnica contratuale, in quanto, escludendo qualsiasi effetto novativo, mantiene l’originaria identità del
rapporto nell’unità dell’operazione”). Também Rubino, Il pegno cit., pág. 204, enquadra a substituição
do bem empenhado, em execução de um acordo prévio estabelecido entre as partes, no âmbito da sub-
rogação real.
2882
Joana Dias, ob. cit., págs. 143 e 144 e 208 a 228, aceita a existência de tal princípio, apoiando-se na
existência de diversas normas consagrando hipóteses de sub-rogação real (cfr., para além do art.º 692.º, os
824
(especialmente destinado à conservação do valor do quid onerado)2883 ou, noutros
termos, atenta a proliferação de normas legais consagrando o efeito rotativo do penhor,
art.ºs 119.º, n.º 1, 823.º, 824.º, n.º 3, 1478.º, n.º 2, 1480.º, 1481.º, 1539.º, n.º 2, 1723.º e 2069.º) para delas
extrair um princípio geral “de acordo com o qual um direito real de garantia, no caso de substituição
total ou parcial da coisa ou do direito sobre que incide o seu direito, vê o direito originário passar a
incidir sobre outra coisa, sobre o remanescente ou um direito que, de alguma maneira, substitua a sua
função económica”, princípio este corroborado pela proibição do pacto comissório, a qual consagra “a
irrelevância individualizadora da res em si mesmo considerada para a qualificação do direito real de
garantia qua tale. Isto é, ao não poder fazer sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir é
ainda mais manifesta a relevância da res enquanto valor que assegura o cumprimento da prestação
devida” (embora a mesma Autora reconheça que a invocação da figura da sub-rogação real neste contexto
não é isenta de críticas, sobretudo tendo em conta a suposta inexistência de um princípio geral com esse
significado no nosso ordenamento, surgindo este instituto como “um instituto pluriforme inspirado em
diferentes princípios dos quais não resultam adequadamente (bem) definidos os limites”: segundo este
entendimento, a substituição do objecto da garantia apenas pode ocorrer nos casos expressamente
previstos na lei). No direito italiano aceita tal princípio Andrea Magazzù, Surrogazione reale cit., pág.
1508 e segs., considerando que a substituição do bem pela indemnização – cfr. art.º 27442.º CCI – não
constitui uma solução excepcional “rispetto al principio secondo cui il (ogni) diritto sulla cosa si estingue
per effetto del perimento della cosa medesima”, pois tal entendimento “dovrebbe indurre a ritenere che in
questa ipotesi la surrogazione si risolva in puro e semplice impedimento all’estinzione del diritto e,
quindi nella mera conservazione della garanzia reale trasferita sull’indemnità”. Ora, de acordo com este
Autor, não é este o sentido da norma, a qual “prende in considerazione il fatto che le ragioni dei creditori
già garantiti sulla cosa si possano realizzare sull’indemnità”, ou melhor, “lo specifico effetto disposto
dalla norma è invece il vincolo di determinate somme al pagamento dei crediti (…). La sorte della
garanzia reale non è segnata dal perimento della cosa (…) dipende dal mancato ripristino, che mete in
moto il meccanismo surrogatorio e porta al soddisfacimento dei creditori garantiti”), nem tão pouco no
âmbito das universalidades (nas quais “il fondamento della fizione che la legge opera, assoggettando la
res nova alla identica sorte stabilita per la cosa sostituita, dev’essere volta a volta individuato con
un’indagine sulla ratio delle singole norme”, embora o recurso à figura da ficção legal seja criticado por
alguns Autores citados por Andrea Magazzù, Surrogazione reale cit., pág. 1500, para quem a sub-rogação
opera nas universalidades “per foza stessa delle cosa: non è altro in sostanza che la sostituzione di un
valore economico ad un altro (…) sparisce completamente l’elemento giuridico di fronte a quello
puramente economico”). Já Umberto Borzi, ob. cit., pág. 151 e segs., apesar de não aludir expressamente
a princípio geral de sub-rogação real, admite, mesmo fora dos casos previstos na lei, a invocação da sub-
rogação convencional, especialmente quanto os efeitos desta última se assemelhem aos previstos em
alguns dos casos legalmente disciplinados (mais concretamente, se a lei admite, no penhor de créditos,
que o credor se possa satisfazer através do preço de venda do crédito recebido em garantia, o Autor não
vê porque razão não será de consentir que a sub-rogação se produza no domínio dos pactos rotativos,
rematando que “la chiave di lettura, in entrambi i casi, è rappresentata (…) dalla rilevanza del bene
posto in garanzia unicamente in quanto espressione di un valore economicamente rilevante. La differenza
consiste nel mezzo che porta alla forma di garanzia: nell’un caso è la norma del codice, condizionata
(…); nell’altro, il testo contrattuale (…) esprimente interessi economici meritevoli di tutela da parte
dell’ordinamento”). Também Gabrielli, Sulle garanzie rotative cit., pág. 124, afirma que “in linea di
principio il patto di sostituzione dei beni oggetto di garanzia è amesso nel nostro ordinamento, dato che
l’idea che sia possibile sostituire l’oggetto del pegno, con il consegunte trasferimento della prelazione,
trova conferma dall’art. 2742 c.c.”. Mais céptico se mostra Piscitello, Le garanzie cit., pág. 77 e segs.,
para quem tal preceito comporta duas hipóteses diversas, quais sejam a reparação da coisa e a constituição
do um vínculo sobre a indemnização a favor do credor titular de um direito de preferência, afirmando que
apenas na primeira ocorre uma manutenção do vínculo (pois, em caso de perda ou destruição da coisa
onerada, a relação originária se extingue, não obstante a manutenção do direito de preferência): em face
destes dados, de tal instituto não se poderão retirar argumentos decisivos para justificar a continuação da
relação de garantia em caso de substituição dos bens onerados (e, em particular, da rotatividade
convencional).
2883
Conforme evidencia Andrea Magazzù, Surrogazione reale cit., pág. 1506, a invocação da sub-rogação
torna-se premente se atendermos a que “se la funzione giuridica delle garanzie reali è caratterizzata
essenzialmente dall’interesse del creditore alla sicurezza del proprio credito, non può dirsi veramente
che tale interesse riceva adeguata tutela, ove la legge non adotti a favore del creditore i remedi necessari
nelle particolari contingenze che comportino pregiudizio per la garanzia, come sopratutto in caso di sua
diminuzione”.
825
restaria concluir pela ampliação do alcance deste, de modo a abranger outras hipóteses
não tipificadas na lei.2884
No nosso direito e restringindo-nos ao domínio específico do penhor, parecem
consagrar a sub-rogação real2885 os art.ºs 692.º (nos termos do qual, em caso de perda ou
deterioração ou diminuição de valor do bem empenhado, o credor manterá uma
preferência relativamente ao crédito de indemnização devida pelo terceiro responsável
ou à importância paga a título de indemnização)2886, 685.º, n.º 1, (o qual, em matéria de
2884
Neste sentido aponta Francesca Dall’Anna Misurale, ob. cit., pág. 162, a respeito da consagração
legal, em Itália, do penhor rotativo sobre instrumentos financeiros, sustentando que tal alargamento se
justifica sempre que estejamos perante um objecto da garantia com natureza fungível (ou seja, sempre que
o bem onerado seja encarado exclusivamente na sua componente de valor), com a única condição da
observância do critério da paridade de valor.
2885
Para uma enumeração das correspondentes normas no direito italiano, vide Gabrielli, Sulle garanzie
rotative cit. e Clementina Scaroni, ob. cit., pág. 710 e segs., invocando este última, para o mesmo efeito,
os art.ºs 2742.º (correspondente, mutatis mutandi, ao nosso art.º 692.º), 2795.º (equiparável ao art.º 674.º),
2803.º (análogo ao art.º 685.º, n.º 1 – norma igualmente mencionada por Francesco Magni, ob. cit., pág.
384, como uma hipótese legal de sub-rogação), 2815.º e 2816.º (que, em sede de hipoteca e quando se
verifique a extinção dos direitos de superfície ou enfiteuse, prevêem uma alteração do objecto originário
da garantia), 2825.º, n.º 2 (que dispõe no sentido de, em caso de hipoteca sobre bens indivisos, se após a
divisão forem atribuídos ao empenhante bens diversos daquele por ele hipotecado, a hipoteca transfere-se
para este outro bem, com o grau resultante da constituição originária e nos limites de valor do bem
precedentemente hipotecado e, se for atribuída uma soma de dinheiro por força da divisão, o credor fará
valer a sua garantia sobre tais montantes - em termos não integralmente coincidentes, o n.º 2 do art.º
689.º, dispõe que a divisão da coisa ou direito comum, feita com o consentimento do credor – na falta
deste assentimento, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 711, entendem que o direito
continua a incidir sobre a quota ideal do devedor, assim se prolongando a comunhão quanto à garantia e
originando que a venda judicial em caso de incumprimento inutilize a divisão anteriormente efectuada -,
limita a hipoteca à parte que for atribuída ao devedor, ainda que, segundo os mesmos Autores, ao devedor
seja atribuída uma parte da coisa superior à que correspondia à sua quota ou até a totalidade da coisa) e
2855.º (que permite, através de convenção das partes, estender a hipoteca devidamente inscrita a créditos
de maior despesas judiciais, para além de outra legislação avulsa, como as leis que regulam o penhor
sobre presuntos, sobre instrumentos financeiros ou sobre os financiamentos a médio e longo prazo já
citadas). Partindo destes exemplos e da função do desapossamento, Luciano Panzani, ob. cit. pág. 945
(citando em seu favor o Acórdão da Cassação n.º 5246) advoga “che la disciplina legale del pegno
consenta alle parti di configurare ulteriori ipotesi di surrogazione reale, senza che per questo di
determini una novazione del rapporto”, desde que não seja prejudicada a possibilidade de satisfação dos
restantes credores sobre o demais património do devedor. Também Mauro Bussani, Il modello cit., pág.
173 reconhece a pertinência da argumentação exposta (salientando que “su queste basi si può finire per
ammettere che in forza dell’autonomia privata un titolo possa legittimamente formarsi anche con
riguardo a un oggetto di cui le parti decidano la futura sostituzione”). Já Piscitello, Le garanzie cit., pág.
86 e segs., atribui especial relevância às normas sobre penhor de instrumentos financeiros, considerando
que as mesmas constituem argumentos decisivos a favor da legitimidade dos modelos convencionais de
garantia com objecto variável, uma vez que “L’espressa previzione della continuazione del rapporto di
garanzia non appare infatti conseguenza delle particolari modalità di costituzione, ma dipende, piuttosto,
dalla circostanza che nei vincoli costituiti su strumenti finanziari dematerializzati è, di frequente, pattuita
la variazione dell’oggetto”.
2886
A propósito deste preceito, duas teorias se confrontam. Uma primeira, defendendo que esta norma
consagra uma verdadeira substituição do objecto da garantia, por via sub-rogatória, passando a
indemnização a ocupar o lugar da coisa inicialmente empenhada, podendo assim o credor agir contra o
terceiro devedor da indemnização, com a mesma preferência que detinha sobre o bem originário (neste
sentido, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., págs. 197 e 198 - afirmando que “Esta
transferência corresponde a uma sui generis sub-rogação real, na medida em que a preferência que
incidia sobre coisa determinada transforma-se numa preferência sobre prestação de coisa indeterminada
(a indemnização), constituída em lugar daquela” – Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág.
715 – assegurando que, nos termos de tal preceito, “É admitida, pois, de uma maneira geral, a sub-
rogação nas indemnizações devidas, mantendo o credor hipotecário sobre o respectivo crédito as
preferências que lhe competiam em relação à coisa onerada” - Meneres Campos, ob. cit., pág. 43,
afirmando que “Não se trata aqui de uma extensão da hipoteca ao crédito indemnizatório, mas de uma
826
penhor de créditos e quando o crédito dado em penhor se vença antes do crédito
assegurado, determina que o penhor passe a incidir sobre o objecto da prestação),2887
sub-rogação, ocupando a indemnização o lugar da coisa hipotecada. É, por essa razão, legítimo ao
credor hipotecário actuar directamente contra o devedor da indemnização, conservando as premências
que lhe competiam em relação à coisa onerada”). Uma outra, ressalva que a continuação do contrato
apenas ocorrerá quando se produza a reposição do bem empenhado (pois é neste caso se poderia falar de
sub-rogação real em sentido estrito), pelo que no caso de perda ou destruição da res o contrato de garantia
se extinguira, sem que tal obste à manutenção da preferência original (para além disso, nalguns casos a
sub-rogação da indemnização à coisa pode comportar uma contradição com a manutenção do vínculo
originário, designadamente quando o objecto da hipoteca deixa de ser um bem imóvel e passa a ser um
móvel): em suma, de acordo com esta segunda perspectiva, “a regra da sub-rogação da indemnização da
coisa não nos oferece elementos decisivos para concluir no sentido da manutenção do contrato de
garantia, já que a sua disciplina se limita a estabelecer que as somas devidas pelo segurador ou pelos
outros obrigados estão vinculadas ao pagamento dos credores com direito de preferência”. No entanto,
para Joana Dias, ob. cit., págs. 145 a 147, mesmo que se adopte esta segunda perspectiva, ou seja, se
considere haver uma modificação do contrato “as modificações que impliquem a substituição do objecto
não são, em rigor, verdadeiras modificações”, pelo que conclui “pela admissibilidade da modificação do
objecto sobre que incida o penhor como direito real quando nos deparemos com situações em que a
substituição do objecto, sem implicar mudanças na identidade da “coisa” dê, no entanto, novo colorido à
afectação jurídica preexistente (…). A identidade da “coisa” mantém-se como objecto de satisfação (…),
o credor pignoratício beneficia de imediato, no sentido de ter à sua disposição privilegiada a satisfação
do seu crédito”. Identifica esta como uma hipótese de sub-rogação real Pestana de Vasconcelos, Direito
das garantias cit., pág. 240. No direito francês e perante idêntica norma, Simon Quincarlet, ob. cit., págs.
51 e 52, considera-a como uma consagração da sub-rogação real (afirmando que “l’indemnité étant
considerée comme la représentation de la chose ou tour au moins de sa valeur”), embora ressalvando que
alguns Autores se opõem a esta qualificação, optando por ancorar o preceito na figura da delegação tácita
(de modo que o legislador subentenderia que o devedor teria cedido ao credor os seus direitos sobre a
indemnização e, não fora tal delegação, essa indemnização teria que ser reclamada pelo devedor, uma vez
que o credor é alheio ao contrato de onde brota essa mesma indemnização).
2887
Qualificando esta como uma hipótese de sub-rogação, vide Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 59, pág.
212, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 703 e, particularmente, Joana Dias, ob. cit.,
págs. 151 e 152, que vai mais longe alegando que a desnecessidade de renovação dos elementos
necessários à constituição do penhor é sintomático, tendo em conta a rigidez e o formalismo que
caracteriza o regime legal das garantias legais. Assim sendo, “o instituto do penhor de créditos assume
nesta perspectiva uma importância significativa na construção de mecanismos de variação do objecto da
garantia, já demonstra bem como o mesmo legislador tomou em consideração hipóteses nas quais o
penhor continua sobre outros bens, admitindo implicitamente a legitimidade dos modelos rotativos (…).
Não parecem, todavia, suscitar-se obstáculos de relevo à conservação da unidade do contrato mesmo nas
hipóteses em que a modificação do objecto seja convencionada pelas partes. A previsão do Código Civil
do regime do penhor de créditos é, na verdade, o resultado de ao tempo da codificação as garantias
mobiliárias de objecto variável se utilizarem diminutamente e não tanto para induzir à exclusão da
continuação do contrato noutros tipos. Fica assim esclarecido que a modificação do objecto do penhor –
diferentemente do que resulta da doutrina tradicional – não preclude a manutenção do contrato de
garantia sobre outros bens e a manutenção do grau original e que os dados resultantes da análise do
penhor de créditos podem consubstanciar a expressão de um princípio mais alargado que permite a
conjugação da substituição dos bens vinculados com a manutenção do contrato de garantia”. Esta última
Autora (ob. cit., págs. 148 e 149), dá conta de vozes dissonantes, sustentando existir uma extinção do
contrato primitivo, acompanhada do nascimento de um novo vínculo diverso (sendo o primeiro um
penhor de créditos, com natureza obrigacional, e o segundo um penhor de coisas, de natureza real), mas
desvaloriza-as na medida em que decorrem mais da negação do carácter real do penhor de créditos do que
da análise do respectivo regime legal. Piscitello, Le garanzie cit., pág. 80 e segs, fundamenta em norma
idêntica contida no direito italiano (cfr. art.º 2803.º do CCI) a legitimidade da variação do objecto do
penhor e, em especial, das cláusulas rotativas, na medida em que o preceito em questão consagra a
manutenção da relação de garantia apesar da alteração do seu objecto - inicialmente e o crédito e
posteriormente o dinheiro ou outros bens cobrados pelo credor – (não sem mencionar a existência de
vozes dissonantes, advogando que, neste caso, se produz uma extinção da relação de garantia originária e
o nascimento de uma nova, sendo o mesmo de natureza obrigacional e o segundo de natureza real:
todavia, o Autor descarta tal concepção, alegando que a mesma é defendida pelos partidários da natureza
não real do penhor de créditos e, sobretudo, que a mesma é desmentida pelo função do instituto e pela sua
827
674.º (permitindo, em caso de venda antecipada, que os direitos do credor relativamente
ao bem empenhado se transfiram para o produto da venda)2888 e 670.º, alínea c) e 701.º,
(quando o credor, em caso de perecimento ou insuficiência do bem empenhado, venha
exigir - o reforço ou - a substituição do objecto da garantia),2889 o art.º 204.º, n.ºs 1,
alínea a) e 2 do CVM (o qual prevê que poderão ser objecto de negociação organizada
os valores mobiliários fungíveis - entendendo-se como tal os valores mobiliários que
pertençam à mesma categoria,2890 obedeçam à mesma forma de representação, estejam
objectivamente sujeitos ao mesmo regime fiscal e dos quais não tenham sido destacados
direitos diferenciados – integralmente liberados e não sujeitos a penhor ou a qualquer
outro ónus).2891
disciplina positiva), assim demonstrando “come lo stesso legislatore abbia preso in considerazione
ipotesi in cui il pegno continua su altri beni, ammtendo implicitamente la legittimità di modelli flottanti”:
neste contexto “non sembrano, tuttavia, frapporsi ostacoli di rilievo alla conservazione dell’unità del
rapporto anche quando la modificazione dell’oggetto sia convenuta dalle parti”, justificando a ausência
de outras normas que deponham no mesmo sentido com o facto de “all’epoca della codificazione le
garanzie mobiliare ad oggetto variabile erano scarsamente diffuse e non può, pertanto, indurre ad
escludere la continuazione del rapporto in altre fattispecie”.
2888
Aponta este preceito como contemplando uma hipótese de sub-rogação real, ao implicar a
substituição do bem onerado pelo produto da venda, Margarida Costa Andrade, ob. cit., págs. 19 e 20.
2889
A conclusão é válida quando ocorra a substituição do objecto da garantia, pois verificando-se o
reforço não se produz sequer uma alteração do objecto do penhor (por maioria de razão, se o credor exigir
o imediato cumprimento da obrigação garantida a situação também não poderá ser invocada para os
efeitos mencionados no texto). Com efeito, não faria sentido que a substituição produzisse efeitos
novatórios, pois semelhante raciocínio faria com que o exercício de um direito do credor pignoratício – de
pedir a substituição do bem empenhado – redundasse num prejuízo para si próprio, pois passaria a ser
titular de uma nova garantia apenas constituída no momento da substituição (e não momento da
celebração do originário contrato de penhor). Por outro lado, do que se trata é da substituição (ou reforço)
do objecto do penhor e não da substituição do penhor (como se alcança expressamente do art.º 701.º, n.º
1, para o qual remete o art.º 670.º, alínea c)), pelo que o vínculo originário permanece, não obstante a
alteração de um dos seus elementos – o objecto – especialmente porque mesmo esse elemento pode ser
modificado apenas parcialmente (suponha-se o caso de uma carteira de títulos, relativamente à qual o
credor apenas requer a substituição de alguns deles). A questão poderá afigurar-se mais complexa em
sede de insolvência, porquanto existe uma falta de contextualidade entre o surgir do débito e a sujeição à
garantia dos novos bens (o que poderá afectar o acto de concessão em penhor dos novos bens, podendo
aventar-se a possibilidade de o período suspeito apenas se começar a contar da data da substituição,
podendo contrastar, ao menos a priori, com o disposto no art.º 121.º, n.º 1, alínea c), do CIRE – preceito
que impõe a resolução automática, em benefício da massa, da constituição ou substituição de garantias
para assegurar obrigações pré-existentes, nos seis meses anteriores à data do início do processo de
insolvência), mas ainda assim, apoiamos a posição daqueles que sustentam que “l’onere di reintergazione
ha fonte nell’originario negozio di costituzione del pegno rispondendo tale opperazione ad un criterio di
normalità atteso che il debitore há inteso soltanto equilibrarei l rapporto tra debito e la garanzia che
esisteva in origine e che circostanze sucessive hanno modificato” – Pierpaolo Marano, ob. cit., págs. 155
e 156.
2890
Nos termos do art.º 45.º do CVM, consideram-se da mesma categoria os valores mobiliários emitidos
pela mesma entidade e que apresentem o mesmo conteúdo, ainda que pertencentes a emissões ou séries
diferentes. Para Joana Dias, ob. cit., pág. 157, a categoria de valores mobiliários para este efeito
“corresponde à ideia de conjunto ou classe, o que parece ser o mesmo que afirmar que sempre que um
valor mobiliário pertence a certa categoria não representa coisa diferente da subsunção de uma situação
em conceitos de certo nível”.
2891
Dos preceitos já analisados a respeito da constituição do penhor de valores mobiliários (cfr. art.ºs 81.º,
101.º a 103.º do CVM) e do facto de a fungibilidade se encontrar associada ao regime escritural de
circulação daqueles valores, decorre a possibilidade de celebrar contratos sobre o conjunto dos
instrumentos financeiros registados em conta e a simplificação das operações de substituição, facilitando
a gestão dos ditos valores. Para Joana Dias, ob. cit., págs. 158 e 159, “a previsão que, nas hipóteses de
substituição dos valores mobiliários empenhados se mantém – a paridade do valor – a data original da
constituição do vínculo representa a prova de que a constituição do objecto do penhor é compatível com
a continuação do contrato”. Por outro lado, a mesma Autora nega que se trate de normas especiais
828
Todavia, a recondução da rotatividade ao domínio da sub-rogação real não deve
obnubilar a não total identificação conceptual entre ambas as figuras,2892 (bem como,
eventualmente, entre a sub-rogação real e a fungibilidade)2893 até porque a segunda
possui um alcance significativamente mais vasto do que a primeira.
No entanto, o recurso à figura da sub-rogação real para explicar o fenómeno da
rotatividade não é isento de críticas, sobretudo atendendo à (suposta) ausência de um
princípio geral de sub-rogação que possa ser invocado para além dos casos (contados)
expressamente previstos na lei.2894
ligadas a uma forma particular de constituição de direitos, sustentando, pelo contrário, que tal resulta da
circunstância de nos contratos sobre valores mobiliários desmaterializados ser frequentemente estipulada
a variação do objecto, concluindo que “o registo na conta do intermediário representa uma técnica
destinada a tornar a criação de contratos ou vínculos sobre os bens que não existem materialmente, para
os quais as outras formas de constituição (desapossamento, anotações sobre os títulos, entre outras) não
são idóneas. E não subsistem razões plausíveis que levam à introdução de limites no que concerne à
manutenção do contrato reduzindo-a aos tipos em que esta técnica encontra aplicação. Em síntese, a
disciplina dos contratos de garantia sobre valores mobiliários desmaterializados, analogamente ao
penhor de créditos, confirma que a continuação do contrato original de garantia não é incompatível com
a substituição dos bens onerados”.
2892
Realça este aspecto, Joana Dias, ob. cit., págs. 225 a 228, destacando como na sub-rogação a
aquisição da coisa sub-rogante se funda na alienação ou perda da coisa sub-rogada, enquanto na
rotatividade a substituição não se encontra necessariamente dependente da verificação desses dois
requisitos, dependendo antes dos termos convencionados pelas partes.
2893
Destaca esta não equiparação, Cabrillac, ob. cit., pág. 315 e segs., para quem a aproximação entre a
fungibilidade e a sub-rogação não é admissível “puisque la subrogation suppose le remplacement d’une
chose determine par une autre alors que la fongibilité implique que seul le genre est pris en
considération et que les unités d’un même genre se remplacent ipso facto”, alegando que a sub-rogação
apenas poderá operar nos penhores com desapossamento do devedor, pois aqui a entrega realiza a
identificação do bem e elimina o seu carácter genérico (pelo contrário, nas garantias sem desapossamento
e na ausência de qualquer especificação, os bens permanecem fungíveis e nenhum direito real incidirá
sobre eles até que tal especificação se produza).
2894
Em face do direito italiano, Lucio Moscarini, Surrogazione reale, in Novissimo Digesto Italiano, 3.ª
Edição, 1957, Vol. VIII, pág. 969 e segs., nega a existência de um princípio geral de sub-rogação real,
aceitando, porém, que o instituto assuma especial relevância no que respeita aos direitos reais de garantia,
surgindo aqui como “lo strumento naturale per la realizzazione piena ed integrale dell’interesse portetto
con la garanzia speciale, che è appunto quello al conseguimento del valore economico della cosa e non
quello al conseguimento della res”. Este fundamento é comum às diversas hipóteses legalmente
consagradas, de entre as quais realça a sub-rogação, à coisa objecto da garantia, da indemnização devida
pela seguradora ou da coisa reparada com esta – cfr. art.º 2742.º do CCI – muito embora distinga
consoante a indemnização seja empregue para a reparação da coisa ou tal não aconteça: no primeiro caso,
a relação mantém-se a mesma, embora incidindo sobre um bem parcialmente diverso, pelo que estarmos
perante um caso emblemático de sub-rogação real (contra, Andrea Magazzù, Surrogazione reale cit., pág.
1513, para quem a reparação “evita qualsiasi diminuzione della garanzia e rende inoperante il
meccanismo surrogatorio (la vera e propria surrogazione dell’indennità alla cosa): l’originaria garanzia
reale si conserva pienamente, e del tutto imutata; dunque, nella stessa garanzia non si ha neppure un
mutamento dell’oggetto”); já na eventualidade de não se verificar tal reparação, a coisa originária é
automaticamente substituída pela indemnização, mas alega que “il rapporto non conserva la stessa
originaria struttura: da quella di diritto assoluto (…) esso assume la struttura di un diritto relativo:
essenzialmente quella di un diritto a ricevere direttamente l’indenità, fino alla concorrenza del credito,
direttamente dall’assicuratore. Il diritto del creditore pignoratizio (…) há però la sua fonte nel
preesistente diritto di garanzia speciale, che ne comisura quindi il contenuto, i limiti ed il vigore: in
questo senso (…) appare corretta la configurazione di un rapporto giuridico derivato, assunta come
nucleo centrale del concetto più ampio di surrogazione reale” (em termos diversos, Andrea Magazzù,
Surrogazione reale cit., pág. 1513 e segs., entende que, neste caso, “diventa operante il vero e proprio
meccanismo surrogatorio, ossia la surrogazione dell’indennità assicurativa alla cosa”, embora
advertindo que tal “non costituisce dunque una sorta di vincolo reale sulla somma dovuta
dall’assicuratore (…) né un vincolo di garanzia, e neppure un vincolo cautelare (…) l’effetto tipioco altro
non è che il mutamento del destinatario del pagamento: non più l’assicurato, ma i suoi creditori”). A
propósito desta norma, Andrea Magazzù, Surrogazione reale cit., pág. 1512 e segs., (depois de realçar ser
829
Num outro, poderá questionar-se até que ponto a sub-rogação real não implica o
afastamento do princípio da inseparabilidade do direito e da coisa ou da inerência,
caracterizador dos direitos reais, a menos que se entenda que tal característica se
mantém não obstante a substituição.2895
Mais ainda, não falta quem desvalorize a importância destas normas – e do
próprio instituto da sub-rogação – como (pretensos) exemplos de reconhecimento legal
do penhor rotativo, advogando que o reconhecimento desta garantia pode justificar-se
diversamente,2896 nomeadamente no que respeita à possibilidade de transformação de
imperioso distinguir a garantia real em si mesma do direito de preferência que ela concede ao seu
beneficiário), advoga que “il perimento della cosa non necessariamente si ripercuote sulla prelazione, la
quale può conservarsi del tutto immutata, come appunto accade nell’ipotesi di surrogazione
dell’indennità alla cosa”, pois a preferência “di per sé, non è quindi una situazione soggettiva avente per
oggetto la cosa, che si faccia valere sulla cosa, e su di essa il perimento non può direttamente incidere;
perciò, rispetto ad essa non ha senso parlare di mutamento dell’oggetto in senso giuridico”, daí que os
credores façam valer a sua preferência originária). Nega igualmente a existência deste princípio geral
Piscitello, Le garanzie cit., pág. 74 e segs., contrapondo que a sub-rogação real “costituisce istituto
proteiforme ispirato a principi differenti di cui non risultando ben chiari i confini” e, embora aceitando a
existência de um interesse meritório de conservação da relação originária comum a todas as hipóteses de
sub-rogação, conclui que “la sostituzione dell’oggetto ha luogo solo nei casi previsti dalla legge e non
può quindi essere introdotta dall’interprete” insusceptível de fundamentar dogmaticamente o fenómeno
da rotatividade.
2895
Para solucionar este problema Joana Dias, ob. cit., págs. 222 a 224, distingue a sub-rogação legal e a
convencional. Na primeira e salvo casos excepcionais, a substituição permite a manutenção do direito; já
na sub-rogação convencional – maxime em resultado da estipulação de uma cláusula de rotatividade – a
subsistência do direito resulta de o credor, ao aceitar tal cláusula, “renunciar ao objecto singular em si
mesmo considerado, ao exercício do seu direito de sequela relativamente aquele bem em concreto (o
objecto primitivo), manifestando uma vontade, clara e inequívoca, na realização do valor do bem”, sem
que tal signifique uma menor protecção do titular da garantia, porquanto este pode obter a satisfação do
seu direito através da realização do bem substituto, com eficácia erga omnes (em suma, conclui pela
possibilidade de manutenção do vínculo, desde que a substituição se produza entre bens do mesmo
género, qualidade e quantidade e, sobretudo, com igual valor, desde que a substituição se verifique até à
data estabelecida para o cumprimento da obrigação garantida ou de facto que desencadeie a execução).
Pelo contrário, para Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 64 e 65, a característica da inerência dos direitos
reais tem como corolário a inseparabilidade do direito da coisa, devendo esta existir, ser certa e
determinada no momento da constituição do direito real, surgindo a sub-rogação real (entendida como o
surgimento de uma coisa no lugar de outra num determinado património ou, mais especificamente
“passando sobre o novo objecto a incidir os poderes que antes recaíam sobre a coisa substituída”) como
uma excepção a esse traço distintivo, acarretando, em regra a extinção do direito pré-existente e a
constituição de um direito novo (nalguns casos, inclusive, a natureza do direito antigo e novo é diversa –
é caso, segundo o Autor, previsto no art.º 692.º para as hipotecas), apenas implicando a subsistência do
direito anterior nos casos em que tal decorra inequivocamente da norma em questão (apontando como
exemplo a continuidade do usufruto em caso de perda parcial da coisa ou direito objecto do usufruto – cfr.
art.º 1478.º, n.º 1). Adopta um entendimento ainda mais restritivo, Oliveira Ascensão, Direitos reais cit.,
págs. 404 e 633 a 635, baseado no princípio da inseparabilidade do direito e da coisa, defendendo que
“não se encontram na ordem jurídica hipóteses em que se possa dizer que o direito real subsiste
imodificado, após a substituição do objecto. Caso por caso pode verificar-se que há profundas alterações
na situação jurídica, que nos forçam a concluir que surge sempre um direito real novo” (e, aludindo
especificamente à hipótese prevista no art.º 692.º, invoca ainda que “o direito que recai sobre uma
indemnização não pode ser uma hipoteca, pois o objecto não é um imóvel; aliás, o direito não é
registável (…) será quando muito um penhor”), posição esta subscrita integralmente por Penha
Gonçalves, ob. cit., págs. 84 e 85.
2896
É o caso de Stefano Delle Monache, ob. cit., pág. X e segs., para quem em todos os casos previstos na
lei civil o direito do credor pignoratício sofre uma modificação relevante, passando a incidir sobre uma
prestação pecuniária, razão pela qual “il diritto reale, pur nel permanere del rapporto di garanzia, cede il
posto ad una situazione soggettiva del creditore la quale si lascia pienamente inquadrare nelle categorie
consentanee alla figura dell’obbligazione”, ou seja, se “il rapporto di garanzia si perpetua, mutano però
le forme giuridiche strumentali all’attuazione dell’interesse del creditore”, razão pela qual o instituto da
sub-rogação não justifica o efeito rotativo. Por outro lado, considera irrelevantes as normas relativas ao
830
matérias primas e da passagem da garantia para o produto resultante da sua
transformação (neste domínio, a licitude da rotatividade é, por vezes, ancorada no
disposto no art.º 700.º - preceito que atribui, de modo indirecto, ao constituinte da
hipoteca legitimidade para a prática de actos de administração ordinária do bem
onerado, apesar de tal norma não constar da remissão para o regime da hipoteca contida
no art.º 678.º), desde que tais operações se destinem à conservação do objecto da
garantia e à promoção da sua normal frutificação (mas já não se alterarem a substância
do bem dado em garantia).2897
Mas a rotatividade, concomitante ou paralelamente à sua inclusão no âmbito da
sub-rogação, tem sido igualmente explicada com recurso à concepção do penhor como
um direito que confere ao seu titular uma preferência (ou uma reserva de valor), não
tanto sobre um bem do empenhante em concreto, mas antes sobre o valor que ele
representa e que servirá de garantia2898 e, igualmente, à não recondução dos negócios de
garantia à tutela de um crédito ou de um negócio isolado.
Mais concretamente e começando por este último aspecto, esta perspectiva de
maior abertura face à rotatividade pressupõe o recurso ao conceito de operação
económica (a que já se fez alusão anteriormente), entendida como unidade de onde
emergem as indicações necessárias para determinar a função perseguida pelas partes
através dos actos praticados ao abrigo da autonomia privada.2899
penhor sobre instrumentos financeiros desmaterializados, sobre o penhor financeiro e sobre o penhor
irregular: nos primeiros dois casos, porque, não se tratando de coisas corpóreas, estaríamos fora do
âmbito dos direito reais; no último, porque a aquisição da propriedade das coisas empenhadas por parte
do credor pignoratício e o surgimento de uma obrigação de restituição de outros bens equivalentes
“escludono invero il profilarsi stesso del problema”.
2897
Assim, Joana Dias, ob. cit., págs. 203 e 204. Em nosso entender, porém, este argumento é débil,
porquanto o preceito em questão foi pensado para uma garantia não possessória, como é a hipoteca, na
qual o constituinte conserva o bem onerado em seu poder (sendo, por isso, natural que a ele lhe incumba
primordialmente zelar pela conservação do bem) e não para uma garantia cuja constituição impõe, em
regra, o desapossamento do constituinte, como o penhor (em que, como vimos, o dever de conservação do
bem impende sobre o credor ou o terceiro guardião do bem).
2898
Sobre esta teoria, vide n.º 1.2 do Capítulo IV.
2899
Gabrielli, Garanzia rotativa, vincoli su titoli di stato e disciplina del pegno cit., pág. 275, define
operação económica como “unità formale, attorno alla quale si possono coordinare le diverse
determinazione pattizie che compongono l’affare e i comportamenti delle parti”. O mesmo Autor, in Il
contratto e l’operazione economica, in www.judicium.it/Relazioni/Congresso_2002, pág. 3, considera a
operação económica como “una sequenza unitaria e composita che comprende in sé il regolamento, tutti i
comportamenti che con esso si collegano per il conseguimento dei risultati voluti, e la situazione
oggettiva nella quale il complesso di regole e gli altri comportamenti si collocano”. Nesta última obra, o
Autor disserta acerca da relação entre as noções de contrato e de operação económica (considerando que
têm em comum o facto de serem produtos da autonomia privada e “al di là dello schema formale del tipo,
il contratto è operazione economica”, assegurando que esta última pode assumir uma estrutura mais
simples – recondutível a um único acto e não requeira qualquer operação interpretativa - ou mais
complexa, “quando l’operazione si componga di una pluralità, di un collegamento, di una dipendenza, o
di un gruppo, di atti e di negozi”), atribuindo a esta última um significado qualificante e não meramente
descritivo dos interesses subjacentes à situação concreta, “quale schema unificante l’intero assetto di
interessi disegnato dall’autonomia privata, penetra all’interno delle singole cause che compongono il
collegamento negoziale, qualificandole in concreto, a prescindere dalla causa tipica dei singoli schemi
negoziali”, socorrendo-se do conceito de causa em concreto para explicar o carácter unificador da
operação económica relativamente aos interesses queridos pelas partes. O reconhecimento do conceito de
operação económica pode ocorrer de forma directa ou indirecta: no primeiro caso, o legislador
explicitamente afirma a sua relevância (ao ponto de o Autor falar de um fenómeno de passagem “dal tipo
di contratto al tipo di operazione economica”, de modo que “l’operazione – l’affare – viene disciplinata
dalla specifica normativa prevista per quel tipo di operazione, a prescindere dal tipo legale al quale, di
volta in volta, essa potrebbe essere ricondotta”, surgindo a intervenção do legislador, nesses casos, para
“regolare unitariamente fattispecie formate da una pluralità do contratti, le quali non potrebbero trovare
831
No que especificamente diz respeito aos negócios com finalidade de garantia – e,
em particular, nas modalidades anómalas de penhor – não raras vezes essa função não
se circunscreve a um momento cronologicamente determinado ou a um acto isolado,
projectando-se antes para o futuro, tornando, por isso, indispensável uma relação entre
os diversos actos que concorrem para o atingir do intuito de garantia.2900
Relativamente ao penhor rotativo, importará identificar as várias substituições
do objecto da garantia, de modo a evidenciar se as mesmas integram ou não a mesma
operação económica delineada pelas partes no momento da constituição da garantia.
Respondendo afirmativamente à questão, dir-se-á que “Le sostituzioni sucessive
dell’oggetto della garanzia, operando nel contesto di un’unitaria operazione
economica, che sia stata sottoposta nell’atto costitutivo del vincolo reale e alle regole e
forme stabilite dagli artt. 27887 e 280 c.c., non determinano una modifica del rapporto,
dando luogo a nuove costituzione di pegno, ma, nel permanere dell’originaria identità
del vincolo, ne pongono in evidenza unicamente il profilo dinamico e causale. Nella
continuità del rapporto gli effetti erga omnes del diritto reale di garanzia si producono,
dunque, a partire dall’iniziale data di costituzione del vincolo medesimo”.2901
Mais concretamente, apesar da modificação de um dos termos da operação
económica – o seu objecto – tal alteração não comporta o nascimento de uma nova
relação de garantia, pois tal contraria a intenção das partes, já configurada no momento
da criação do vínculo real, de criar uma garantia capaz de sobreviver a essas
variações.2902
De acordo com esta perspectiva, nem mesmo o princípio da tipicidade dos
direitos reais de garantia pode (ou deve) circunscrever a função de garantia a uma única
e particular relação obrigacional.2903
832
Poder-se-á até ir mais longe e afirmar que a noção de rotatividade é inerente à
função que determinadas operações prosseguem, a qual seria frustrada caso cada
substituição do objecto inicialmente empenhado importasse a constituição de uma nova
garantia, cuja operatividade apenas decorreria da data dessa substituição.
Retomando o outro elemento que serve de suporte a esta concepção mais lata da
rotatividade, importa configurar como objecto da garantia o valor económico do bem,
de modo que o quid sobre o qual recai o objecto da garantia é o valor que dele poderá
ser retirado e não tanto um ou outro bem especificamente determinado (ou seja,
abstraindo do objecto material e focando a atenção no objecto da garantia,
desconsiderando cada uma das res individualmente considerada).2904
Deste modo, o interesse protegido pela garantia pignoratícia não é a obtenção de
uma coisa determinada, mas antes ao valor económico representado por esse bem, a
chamada “utilità reale”.2905
Não divergentemente, a rotatividade pode ser encarada como “un stadio
puramente tecnico e non producente un allargamento fittizio della garanzia nel senso
quantitativo, ma piutosto un sviluppo nel senso quantitativo, una novità strutturale
notevole rispetto allle forme di garanzia possessoria, con il suo corollario della fissitá
dell’oggetto, che compensa l’affievolimento della funzionalità immanente a la garanzia
e, pertanto, imposta dall’esigenza della sua conservazione”,2906 assim se justificando a
licitude e premência de garantias não possessórias e rotativas.
Esta última posição, assenta na distinção entre objectos materiais e “oggetto
della garanzia con astrazione unitaria delle singole e concrete res”, considerando que o
objecto da garantia possui “un valore de sintesi, indipendentemente della specifica
identità delle singoli componenti, con una svalutazione del sostrato materiale”.2907
Como corolário destas perspectivas de análise do objecto do penhor, a sua
identificação e as condições em que poderá ter lugar a sua substituição alcançar-se-á,
sem necessidade de renovação das formalidades exigidas para o surgimento da
legalmente previstos, aceita que podem “mediante opportune tecniche contrattuali, incidere sul profilo
funzionale del negozio costitutivo”.
2904
Cfr. Joana Dias, ob. cit., págs. 115 a 120. Em termos análogos, Francesca Dall’Anna Misurale, ob.
cit., págs. 162 e 163, evidenciando que o bem empenhado “non essendo destinato all’uso del creditore,
ha assunto rilievo per quest’ultimo soltanto ai fini dello scambio che, nella specie, si realizza
coattivamente nell’eventualità dell’inadempimento”, pelo que a garantia “guarda all’oggetto del pegno,
non nella sua indivisualità, (…) ma considerandolo nella sua capacità di tradursi in un’utilità: in un
valore economicamente quantificabile”.
2905
A expressão é de Gabrielli, Il pegno cit., pág. 241 (vide também Sulle garanzie rotative cit., pág. 126).
Para este Autor, importa distinguir “tra gli oggetti materiali e l’oggetto della garanzia con astrazione
unitaria delle singole concrete res (…) l´’oggetto della garanzia acquista un valore di sintesi,
independente dalla specifica identità delle singolle componenti, con una svalutazione del sostrato
materiale”. Comungam deste ponto de vista Luciano Panzani, ob. cit., pág. 944 (concluindo que “i beni in
garanzia ben possono essere sostituiti da altri quando la componente di valore che essi esprimono no ne
risulti alterata”), Fransceco Magni, ob. cit., pág. 387 (escrevendo que “La cosa oggetto del pegno va,
dunque, considerata non nella sua consistenza materiale bensì quale valore economico, essendo il
conseguimento di quest’ultimo, e non la res in sé, l’interesse protetto dalla garanzia”, alegando a
existência de várias disposições legais – art.ºs 2742.º, 2803.º e 2825.º, n.º 3, do CCI – representando
hipóteses de substituição ou transferência do vínculo de um bem para outro, socorrendo-se do conceito de
valor do bem), Giuseppe Martino, ob. cit., pág. 36 e segs. e Dario Finardi, Efficacia reale cit., pág. 777 e
segs. (constatando que “è il valore economico l’oggetto della garanzia, piuttosto che il bene stesso”
relatando ter sido este entendimento acolhido em algumas das decisões jurisprudenciais que
reconheceram a licitude das convenções rotativas).
2906
Davide Messinetti, Le strutture formali della garanzia mobiliarie, in Rivista critica del diritto privatto,
1991, pág. 783 e segs., concluindo, em conformidade, que os concretos bens onerados apenas relevam do
ponto de vista da função jurídico-económica de garantia que desempenham.
2907
Davide Messinetti, ob. cit., págs. 814 e 815.
833
preferência, através da enumeração no contrato dos bens a onerar pelo penhor em
substituição dos originários ou, em alternativa, dos critérios para a sua posterior
identificação.2908
Esta concepção do objecto do penhor como referido primacialmente ao valor e
não tanto aos bens empenhados encontra, diga-se em abono da verdade, raízes bem
profundas, muito antes do aparecimento da rotatividade.2909
Todavia, este entendimento pode conflituar com aspectos basilares dos direitos
reais, especialmente com os princípios da tipicidade e da especialidade.2910
2908
Assim, Gabrielli, Il pegno anomalo, ob. cit., pág. 188 e segs..
2909
De facto, tal entendimento já foi defendido, entre outros, por Chironi (nos termos mais
detalhadamente expostos infra) e por Gino Magri, ob. cit., pág. 13 (considerando como objecto do penhor
o valor de uma coisa, o qual se pode entender como alienado a favor do credor pignoratício).
2910
De acordo com Stefano Delle Monache, ob. cit., pág. X e segs., o suposto interesse do credor sobre o
valor económico do bem deverá ser traduzido, do ponto de vista técnico, através da figura dos direitos
reais, pelo que importará verificar a compatibilidade do penhor rotativo com o esquema jurídico-formal
daqueles. Ora, na opinião do Autor, a rotatividade não passa no crivo, sobretudo tendo em conta o
princípio da tipicidade (na medida em que “assumendo che il diritto di pegno continui a sussistere
nonostante la sostituzione del vecchio bene con il nuovo, si introduce un’eccezione alla regola in base
alla qualle il ius prelationis risulta condizionato al permanere della cosa nella disponibilità materiale del
creditore (…) nel senso che la perdita del possesso (e così la restituzione della res) determini il venir
meno non della sola prelazione, bensì anche del diritto reale”) e, por outro lado, da especialidade (uma
vez que “l’idea che un diritto reale possa rimanere integro pur trasferindosi a mano a mano su beni
differenti appare come un non senso. Più in particolare, l’ipotesi di pegno ambulatorio, transitante sulle
cose di volta in volta immesse nella sfera di controllo del creditore pignoratizio, è altrettanto destituita di
fondamento quanto quella di una proprietà che soltanto in via provvisoria concerna un certo bene, per
poi traslare, eventualmente, su di un oggetto diverso (…) sicché il diritto reale, in quanto diritto su quella
determinata res, non può al tempo stesso foggiarsi come diritto eventualmente suscettibile di gravare su
un oggetto diverso”). Acerca desta teoria e de outras relativas ao âmago dos direitos reais, vide infra n.º
1.2 do Capítulo IV.
2911
Debate-se se a proibição do pacto comissório, embora contida na lei civil, será aplicável – a título
subsidiário – aos penhores mercantis ou a outros constantes de legislação especial (como o penhor
bancário e o penhor de participações sociais) – responde afirmativamente Catarina Monteiro Pires, ob.
cit., pág. 275, invocando a natureza subsidiária do direito civil, a imposição legal de na execução do
penhor mercantil intervir um intermediário financeiro e, ainda, por ser esta a solução que melhor se
coaduna com as práticas seguidas no nosso e noutros ordenamentos.
2912
Apesar de esta convenção ter sido admitida no Direito Romano até ao período clássico, foi ainda
durante este Império que primeiramente foi consagrada a proibição, através de um édito promulgado pelo
imperador Constantino (embora não haja certeza quanto à sua data, crê-se que terá sido promulgado entre
os anos 320d.C. e 326d.C – de acordo com Santos Justo, ob. cit., pág. 468, nota 2367, o móbil essencial
da proibição, constante do texto original, poderá ser traduzido do seguinte modo “Porquanto, entre outros
enganos, cresce principalmente a aspreza da lei comissória dos penhores, pareceu bem invalidá-la e
para o futuro seja abolida toda a sua recordação”) e mantida, porventura sob a influência dos princípios
ético-religiosos cristãos, impedindo o aproveitamento dos mais fortes sobre os mais fracos e a usura
(sobre o surgimento da proibição, vide Guillouard, ob. cit., pág. 180, Massimo Bianca, Patto cit., pág. 711
e segs. e Il divieto cit., págs. 85 a 95, Fulvio Gigliotti, Il divieto del patto comissorio, Milano, Giuffrè,
1999, pág. 19 e segs., Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 35 e segs. e Vincenzo Lojacono, Il patto comissorio
nei contratti di garanzia, Giuffrè, Milano, 1952, págs. 1 a 18). No entanto, o Digesto, apesar de manter a
834
Mesmo actualmente, uma análise de direito comparado permite-nos constatar
um claro predomínio dos ordenamentos estrangeiros nos quais tal proscrição
subsiste,2914 (pese embora as dúvidas que se suscitam em alguns deles, como o
proibição das convenções comissórias, atribuiu ao devedor a faculdade de recuperar a coisa pelo seu justo
valor, em caso de incumprimento da obrigação (poder este interpretado por Isabel Matos, ob. cit., pág. 39,
como constatação da licitude do pacto marciano). Segundo Santos Justo, ob. cit., pág. 469, mesmo após a
consagração da interdição comissória, eram frequentes, no direito romano, os pactos que autorizavam o
credor a alienar o bem, em caso de incumprimento por parte do devedor, cuja licitude dependia de três
interpelações ao devedor para cumprir (previamente à venda) e, se não houvesse comprador, o credor
teria que pedir autorização ao devedor para se tornar proprietário, gozando o garante da faculdade de o
resgatar nos dois anos seguintes. De acordo com Nicola Cipriani, ob. cit., págs. 35 a 44, a convenção
comissória funcionou, no direito romano, como a cláusula nos termos da qual o vendedor poderia
considerar o contrato como não firmado sempre que o comprador não tivesse pago o preço dentro do
prazo estipulado (sendo configurada, ora como condição suspensiva, ora como condição resolutiva), de
modo que “il creditore comprava il bene dato in garanzia ma, se il prezzo era restituito, il contratto si
risolveva” utilizando um esquema semelhante ao da venda com pacto de resgate (inicialmente, esta
cláusula era aposta ao contrato de compra e venda, sendo posteriormente incorporada nos contratos de
garantia real e, em particular, na fiducia cum creditore, contrato do qual começou por ser uma cláusula
natural e passou a ser eventual, até porque o seu efeito poder-se-ia produzir através de mecanismos
alternativos – como a datio in solutum - que asseguravam ao credor a satisfação directamente sobre um
dado bem).
2913
Em termos gerais, J.Ph. Lévy, ob. cit., pág. 252 e segs., relata que o surgimento e manutenção da
interdição comissório se insere na evolução histórica dos dois meios tradicionais de realização da garantia
– apropriação (seja através de dação em pagamento ou de pacto comissório) ou venda do bem empenhado
–, que assentou num abandono do primeiro em favor do segundo, tendo em conta os perigos para o
devedor a que tal apropriação poderia conduzir: para obviar a esse resultado, alguns ordenamentos
socorreram-se de dois mecanismos: ou colocar bem em compropriedade – proporcionalmente ao valor da
dívida e do valor do bem – ou forçando o credor a devolver ao devedor a diferença entre o valor do bem
empenhado e do crédito garantido, assim legitimando as convenções marcianas (deste modo, o direito do
credor vender a coisa empenhada – que no direito romano inicialmente não se encontrava contido no
penhor – passou a ser a forma típica de realização coerciva da garantia, embora oscilando entre os
sistemas em que, para tal alienação, exigiam ou não uma autorização judicial ou até impunham que a
venda fosse efectuada pelo próprio tribunal). Segundo Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 44 e segs., depois de
um período, na época medieval, em que se assistiu a uma difusão do recurso à fiducia e ao pacto
comissório, a partir da emissão de um decreto de Inocêncio II de 1198, a proibição generalizou-se até às
grandes codificações do Século XIX (no caso italiano até ao Código Civil de 1865, no qual se aceitava a
licitude do pacto marciano, enquanto se debatia a legitimidade do pacto comissório ex intervallo),
panorama este confirmado por Vincenzo Lojacono, ob. cit., págs. 18 e 19 (com amplas referências
normativas de direito comparado). No caso português, Isabel Matos, ob. cit., pág. 36 e segs., atesta que tal
proibição consta, ininterruptamente, da legislação nacional desde as Ordenações Afonsinas até hoje.
2914
Vide os art.ºs 2744.º do CCI, 2078.º do CCF, - antes da reforma de 2006 – e 1859.º do CCE. No
direito alemão, a formulação do preceito que consagra tal proibição diverge ligeiramente das restantes -
com efeito, o §1229, dispõe que, antes de adquirido o direito de venda da coisa, é nulo o acordo nos
termos do qual seja atribuída ou seja transferida para o credor pignoratício, em caso de não satisfação ou
não satisfação atempada, a propriedade da coisa empenhada – embora o seu sentido pareça análogo. No
entanto, no ordenamento germânico é possível inserir nos contratos de garantia uma cláusula
(“Verfallklausel”) que se traduz no direito do credor se apropriar do bem onerado em caso de
incumprimento (apesar de esta funcionar mais como um pacto marciano, uma vez que está prevista a
devolução do excedente ao devedor e de ser raramente utilizada, uma vez que os financiadores não
pretendem o bem, mas antes o seu valor económico), para além de a jurisprudência e doutrinas
dominantes acantonarem a proibição no âmbito das garantias típicas, deixando a salvo os pactos
autónomos (Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 249 e segs., realça que nem por isso o devedor ficará
desprotegido, mesmo nos casos em que as partes não acordem na restituição do excesso, uma vez que da
aplicação os princípios gerais das obrigações - nomeadamente o da boa fé -, decorre “il dovere del
creditore di vendere il bene ottenendone il giusto prezzo, oppure di appropriarsene restituendo la
differenza di valore (…) anche qualora le parti escludano espressamente la restituzione del esubero,
perché tale clausula (ma, si badi, solo la clausula) è considerata nulla”, ou seja, o pacto comissório vem,
ex lege, a ser transformado num pacto marciano: para além disso, quando exista uma desproporção
significativa entre o valor do bem onerado e do crédito, considera-se existir um excesso de garantia -
835
espanhol2915 e o brasileiro),2916 com a importante nuance do Código Napoleão2917 (na
sua nova redacção recentemente introduzida - cfr. art.º 2348.º),2918 residindo,
porventura, no direito inglês a excepção mais relevante.2919
836
serve para proteger o devedor – constata que a lei é omissa acerca da possibilidade de, por convenção, as
partes afastarem o regime legal: pese embora este silêncio, o Autor inclina-se para a inadmissibilidade da
convenção comissória, alegando que “ante el apuntado silencio del precepto, puede argumentarse en la
consideración del mismo, con carácter general, como contrario a la moral. Por otra parte, admitir la
validez del pacto para la prenda e hipoteca y prohibirlo para la anticresis, como hace expresamente el
articulo 1.884, sería una contradicción evidente al resolver de distinta forma un mismo problema para
instituciones de la misma naturaleza”, justificando o silêncio da lei com a pressa na aprovação da versão
final do Código e considerando que, embora esta solução seja discutível (por ser verdade que nem sempre
do mesmo resulta um prejuízo injustificado para o devedor), a admissibilidade de semelhantes pactos
“implica el riesgo de facilitar situaciones en las que, aprovechándose el acreedor de circunstancias
extramadamente adversas que pesan sobre el deudor, se beneficie a costa de éste, excediéndose la
finalidad de garantia, al apropriarse de las cosas gravadas por cantidades inferiores a su verdadero
valor” (ressalvando, todavia, a licitude da convenção segundo a qual, uma vez incumprida a obrigação
garantida, o credor se dá por pago ficando com o bem onerado: com efeito, “el deudor ha tenido la
posibilidad de no acceder al pacto en cuestión y soportar la realización de valor de la cosa a través de
los correspondientes procedimientos de ejecución”) – em termos praticamente coincidentes vide também
Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 703 a 706. Também Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de
derecho civil cit., pág. 300, nega a possibilidade de a proibição das convenções comissórias ser afastada
por acordo entre as partes, uma vez que “el valor del objeto gravado puede ser muy superior a lo
adeudado, de modo que si el acreedor se quedase con el bien en pago de lo debido perjudicaría tanto al
deudor (o tercero propietario del bien) como a otros acreedores concurrentes, que dispondrían de menos
patrimonio que atacar en caso de incumplimiento de sus obligaciones”. Considera igualmente o art.º
1859.º como uma norma imperativa, tornando nula qualquer convenção em contrário Cordero Lobato,
Comentarios cit., pág. 2139.
2916
Com efeito, o art.º 1428.º do CCB, depois de proclamar a nulidade da cláusula que autorize o credor
pignoratício a apropriar-se do bem empenhado em caso de não pagamento da dívida no momento do
respectivo vencimento, admite que “Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da
dívida” (já em face do anterior CCB, Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 61, considerava lícita a
convenção de acordo com a qual “o credor adquira a coisa empenhada pelo preço que realmente valer
por ocasião do vencimento da dívida”: será que, deste modo, apenas se legitima a dação em pagamento
ou, pelo contrário, este preceito encerra em si o reconhecimento da licitude do pacto comissório, desde
que acordado após o vencimento da obrigação garantida? A primeira alternativa concita a adesão de
doutrina maioritária – vide, por exemplo, Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., pág. 343 (escrevendo que
“Não caberá, porém, ao credor, em nenhuma hipótese, apropriar-se do penhor em pagamento do débito,
uma vez que nenhuma validade pode ter a estipulação de cláusula comissória”, acrescentando que,
mesmo em caso de pacto autorizante da venda amigável, “não pode comprá-la para si mesmo, pois que
uma tal operação envolverá o pacto comissório, vedado por lei”) e Washington de Barros Monteiro, ob.
cit., págs. 356 e 357 (salientando ser nula a cláusula comissória, apenas ressalvando que tal nulidade não
pode ser invocada por parte de um devedor que, mediante nova convenção, dá em pagamento do débito o
objecto da garantia).
2917
Mesmo quando a proibição se encontrava em vigor em França, Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 253 e
segs., alude a uma interpretação menos restritiva perfilhada por alguma jurisprudência e doutrina – face à
adoptada em Itália – excluindo do seu âmbito os pactos comissórios autónomos e as convenções
acordadas ex intervallo (argumentando que “una volta concluso il contratto e ottenuto il finanziamento, il
debitore non corre più il rischio di essere pregiudicato, mentre, al contrario, può ben avere anch’egli un
interesse ad evitare le lungaggini del procedimento esecutivo”, bem como com o facto de evitar que a
proibição se vire contra o devedor, impedindo-o de obter melhores condições de financiamento), bem
como, em geral, nas hipóteses em que não seja configurável um abuso sobre o devedor (nomeadamente o
pacto marciano, a cessão de créditos em garantia ou de garantias que tenham por objecto dinheiro – nestas
duas últimas situações, uma vez que o valor do bem é objectivamente determinável com base em critérios
objectivos).
2918
A redacção desta norma é equívoca, deixando pairar a dúvida se passaram a ser admitidas quaisquer
convenções comissórias (isto é, que produzam a transferência imediata da propriedade do bem onerado
para o credor, em caso de incumprimento da obrigação assegurada) ou, como parece mais plausível, as
denominadas convenções marcianas. Com efeito, o dito preceito, depois de estatuir que “Il peut être
convenue, lors de la constitution du gage ou postérieurement, qu’à défaut d’exécution de l’obligation
garantie le créancier deviendra propriétaire du bien”, acrescenta que, para validar tal convenção, será
exigível que o valor do bem seja determinado, no momento da transferência, por um perito designado
pelas partes - ou, na falta de acordo quanto a essa designação, judicialmente –, não sendo exigível tal
837
avaliação quando tenha sido onerado um bem com cotação oficial num mercado organizado: qualquer
cláusula que não respeite estas restrições é considerada não escrita). O eventual excesso de valor do bem
empenhado face ao da dívida assegurada deve ser entregue ao devedor ou, caso existam outros credores
pignoratícios, consignada em depósito (todavia, ao contrário do que sucede com a obrigação de avaliação
por um perito – cfr. n.º 2 -, o n.º 3 do art.º 2348.º não considera como não escrita uma eventual cláusula
que dispense o credor do dever de restituir o eventual excedente, razão pela qual Aynès e Crocq, Les
sûretés cit., 2009, pág. 241, admitem o afastamento deste aspecto do regime legal, considerando que “il
faut alors considérer l’attribution de cet excédent comme une forme de pénalité forfaitaire venant
sanctionner l’inexécution. Il s’agir alors d’une clause pénale qui, effectivement, doit être traitée comme
telle et donc être soumise au pouvoir de révision du juge si elle s’avère manifestement excessive”). Em
termos paralelos, o art.º 2365.º passou a dispor que, relativamente a bens incorpóreos, “en cas de
défaillance de son débiteur, le créancier nanti peut se faire attribuer, par le juge ou dans les conditions
prévues par la convention, la créance donnée en nantissement ansi que tous les droits qui s’y rattachent”.
A alteração legal pode ser explicada pelos inconvenientes da proibição do pacto comissório, ao privar o
credor de um modo simples e rápido de realização da garantia, podendo igualmente conduzir, ao forçar as
partes a recorrer à venda judicial, aumentar as despesas para o credor pignoratício, as quais se acabarão
por repercutir na esfera do devedor. Embora admitindo estas vantagens, a, reconhece-se o risco de o
devedor perder o bem dado em garantia para o pagamento um crédito de valor inferior, mas considera-se
que o mesmo é evitado impondo a avaliação prévia, por um perito, do valor do objecto dado em garantia
no momento da transferência (no mesmo sentido Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 368 e Carlos de Cores e
Enrico Gabrielli, Il pegno cit., pág. 297, salientando estes últimos que o perito pode ser designado pelas
próprias partes) e, por outro lado, estabelecendo a obrigação do credor devolver ao devedor a eventual
diferença entre o valor do bem empenhado e do crédito assegurado. Por último, saliente-se que a
proibição do pacto comissório continua a vigorar no âmbito dos processos de insolvência (Legeais,
Sûretés 2009 cit., pág. 368) e nos créditos ao consumo (Philippe Simler et Philippe Delebecque, Droit
civil 2009 cit., pág. 551 e Aynès e Crocq, Les sûretés cit., 2009, pág. 241). Um aspecto que a lei não
regula é o momento em que se produz a transferência da propriedade (momento este relevante,
designadamente, para efeitos de processo de falência), sustentando alguns que deve corresponder à data
em que se verifique o incumprimento (neste sentido, Aynès e Crocq, Les sûretés cit., 2009, págs. 240 e
241, opinando que será necessária uma interpelação ao devedor, excepto se as partes convencionarem a
sua dispensa), enquanto outros se inclinam para a data em que o credor escolha executar a garantia
através do recurso à convenção comissória (Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 735,
argumentando que tal escolha é irreversível, embora advoguem a necessidade de notificação dessa opção
ao devedor e ressalvando sempre a eventualidade de a transferência de propriedade ser impedida pelo
exercício de um direito de preferência anterior). Noutro plano, Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010
cit., pág. 735, colocam o dedo na ferida, ao sustentar que o pacto comissório não pode ser invocado senão
por um credor com preferência sobre os demais – seja porque a sua posse é anterior, seja porque a sua
garantia foi a primeira a ser inscrita no registo – por entenderem que “On conçoit mal, en effett, qu’un
créancier de rang inférieur impose ce mode de réalisation à un créancier de rang préférable, même si la
créance vient à l’échéance avant celle de ce dernier, le choix du mode de réalisation doit appartenir au
principal au principal intéressé” (para além disso, os Autores salientam que esta consagração legal do
fim da interdição das convenções comissórias “est moins révolutionnaire qu’il n’y parait au premier
abord”, em virtude da manutenção da proibição das cláusulas de voie parée, o que significa que, caso o
credor opte pela execução judicial, a vontade das partes é impotente para alterar as regras procedimentais
daquela). Em face destes dados normativos, em especial da necessidade de avaliação do bem onerado e de
devolução de um eventual excedente ao empenhante, somos de parecer que novo CCF veio reconhecer a
licitude das convenções marcianas, continuando a repudiar a validade das convenções comissórias
propriamente ditas.
2919
No mortgage do direito britânico, o credor, para além da possibilidade de alienar o bem onerado,
dispõe, caso tal tenha sido convencionado, do poder de se apropriar definitivamente do referido bem
(“agreement of foreclosure”), desse modo extinguindo a obrigação garantida, com efeitos em tudo
idênticos aos do pacto comissório. Todavia, para proteger o constituinte de um enriquecimento ilícito,
prevê-se que o credor, antes de exercer aquela faculdade, deva intentar uma acção judicial destinada a
obter uma “formosura morder”, com base na qual é atribuída ao devedor um prazo para cumprir e, se este
não o fizer, fica o credor habilitado a apropriar-se do objecto da garantia. Por outro lado, em alguns casos
os tribunais concedem, mesmo após o incumprimento definitivo, um ulterior prazo ao devedor, no
decurso do qual ainda poderá cumprir e recuperar o bem (é o chamado “reopening of foreclosure”), mas,
para tal, incumbirá ao devedor solicitá-lo judicialmente. Em suma, este regime “realizza, in concreto, un
assetto di interessi non dissimile da quello originato da un’alienazione a scopo di garanzia alla quale
838
Este quase unanimismo não deve, porém, obnubilar a diversa amplitude com
que, nos vários ordenamentos em que a interdição se acha consagrada, a mesma tem
vindo a ser aplicada,2920 embora subsistam alguns aspectos consensuais, como seja o
facto de a proibição constituir um limite inderrogável à faculdade concedida às partes de
convencionarem a alienação extrajudicial do bem empenhado (cfr. art.º 675.º, n.º 2).2921
Importa, por outro lado, salientar que a existência de ordenamentos nos quais a
proibição não vigora e de, mesmo naqueles em que ela se encontra plasmada, o seu
âmbito de aplicação ser divergente, designadamente dentro dos Estados membros da
União Europeia, origina distorções da concorrência podendo, no limite, conduzir à
violação de princípios de direito comunitário.2922
Não obstante a sua consagração legal, a manutenção desta interdição – ao menos
nos termos amplos em que se encontra prevista – dá azo a diversas críticas,2923 algumas
può essere collegato pattiziamente un meccanismo solutorio (che, nella specie, è l’”agreement for
foreclosure”)”, suportando o ordenamento inglês o risco da desproporção entre o valor do bem onerado e
do crédito garantido, embora consentindo ao constituinte a possibilidade de, querendo, recuperar o bem
empenhado, liquidando a dívida mesmo depois de verificado o incumprimento definitivo (caso o devedor,
de acordo com os seus interesses, entender ser esta a melhor solução, ao contrário da nulidade do pacto
comissório, que opera independentemente da vontade do devedor, sujeito protegido pela proibição), sem
que daí advenham prejuízos significativos para o credor (que não vê anulada toda a operação e, quando
muito, terá que suportar um cumprimento tardio da obrigação). Sobre este assunto, vide Nicola Cipriani,
ob. cit., pág. 229 e segs..
2920
Coloca em evidência este aspecto Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 18 e segs., assegurando que
alguns ordenamentos permanecem fiéis ao âmbito tradicional (mais lato) da interdição, enquanto outros
tendem a limitar o alcance da mesma.
2921
Sobre este assunto, vide supra n.º 8.1 do Capítulo I. Em face do direito italiano, Massimo Bianca, Il
divieto del patto comissorio, Giuffrè, 1957, pág. 187 e segs., sustenta que a proibição do pacto
comissório, enquanto interdição de apropriação do bem por parte do credor, não impede radicalmente o
recurso a formas de execução privada (como se comprova, no caso do penhor, pela expressa previsão do
art.º 2797.º do CCI), sendo a tutela do devedor assegurada através dos direitos que lhe assistem enquanto
mandante do credor, a quem incumbe comportar-se com a diligência de um bom pai de família
(acrescentando, ainda, que a execução judicial normalmente comporta outras desvantagens para o
devedor, como os seus maiores custos e a menor celeridade). Não será crível que sejam estabelecidos
requisitos mais rigorosos do que os previstos para a venda executiva, mas, quando tal suceda, serão de
considerar, em princípio, válidos tais pactos (no mesmo sentido, Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58,
pág. 285, excepcionando apenas aqueles que consagrarem requisitos insubstituíveis).
2922
Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 267 e segs., realça que a necessidade de uniformização do direito
comunitário se manifesta com maior acuidade naqueles sectores em que se torna fulcral evitar distorções
da concorrência: ora, é precisamente o que sucede com o instituto do pacto comissório, cujo diverso
alcance da proibição nos vários Estados Membros acarreta uma diferença ao nível das garantias do crédito
e, em última instância, no acesso ao crédito (em face desta panorama, o Autor conclui que “il sistema
giuridico che pone a disposizione delle parti strumenti di garanzia più sicuri e più stabili, consente ai
mutuanti di ridurre i rischi e ai mutuari di contenere i costi dei finanziamenti”, o que não sucede com o
ordenamento italiano, dado que “il sistema delle garanzie reali è strutturato in maniera tale da
assecondare e soddisfare solo in parte le esigenze degli operatori: costoro non hanno a disposizione
strumenti tipici validi e, se ricorrono a schemi atipici, rischiano di vedere sanzionate le operazioni con
una nullità che li priva totalmente di tutela”). Uma vez que tal uniformização ainda não se deu, o Autor,
atento o prejuízo que a actual disparidade de regimes comporta para os operadores económicos italianos,
duvida da legitimidade da proibição do pacto comissório (pelo menos nos termos amplos em que a
mesma é interpretada), por desrespeito do princípio comunitário da proporcionalidade, de modo que “le
interferenze sul regime della concorrenza, da ultimo rilevate, non possono non indurre un giudizio nel
senso della illegittimità comunitaria”.
2923
Entre outros, Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 292 (constatando que “il divieto del patto comissorio
esiste oggi solo perché é stato (tralatiziamente) recepito in una norma espressa del codice civile, la cui
dilatata interpretazione – tuttavia – rappresenta oggi un omaggio alla storia delle idee e non alle
esigenze del sistema giuridico”) e Reglero Campos, Ejecución cit., págs. 428 e 429 (sustentando que a
“prohibición puede ser contraproducente en aquellos casos en los que el valor de la cosa dada en
garantía es muy pequeño, puesto que su enajenación según los procedimientos legales acarrería más
839
das quais remontam a tempos longínquos2924 (muito embora também sejam detectáveis
arautos desta figura),2925 ao mesmo tempo que algumas decisões isoladas afastam a
ilegitimidade das convenções comissórias mediante o recurso ao carácter acessório das
garantias face à obrigação assegurada.2926
perjuicios que beneficios”, pelo que deve ser entendida nos seus justos termos e à luz da sua ratio –
impedir que o credor se aproveite da situação económica do devedor - de modo que só deverão ser
invalidados os negócios em que se verifique a possibilidade de o credor se apropriar automaticamente do
bem onerado em caso de incumprimento da obrigação garantida “y sin que entren en juego los remedios
pertinentes encaminados a la obtención de una justa valoración (…). De lograrse ésta, aunque el
acuerdo facilite la apropriación por el acreedor de la cosa gravada, no debe estimarse su nulidad”). Já
Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 18 e segs., considera que a nulidade do pacto comissório “appare
mertitevole di ripensamento critico, posto che si trata di regola sfornita di giustificazione razionale”.
Entre nós, Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição do pacto comissório, o pacto comissório autónomo e
o pacto marciano, in Cadernos de Direito Privado, n.º 8 (Out/Dez 2004), pág. 68, sustenta que tal
proibição carece de qualquer fundamento válido, não sendo mais que um resquício de uma interdição
antiga, não compaginável com a noção de garantia real e, sobretudo, com as transmissões de propriedade
com função de garantia.
2924
A título de exemplo Mirabelli, ob. cit., págs. 445 e 446, questionando, até por força do princípio da
liberdade contratual, “Per quale ragione mentre posso vendere incondizionalmente una cosa mobile per
quel prezzo che voglio, non mi sarà lecito di venderla sotto la condizione, che la vendita non s’intende
avvenuta tranne se non avrò soddisfatto il mio creditore nel termine convenuto?”, rejeitando que através
da proibição se alcance a protecção daquele que necessita de crédito, porquanto, não podendo recorrer à
convenção comissória, o financiador “si farà a pretendere un interesse più elevato, in vista del giudizio
che potrà poi sostenere per pagarsi sul pegno o si farà vender ela cosa offestagli in pegno a quelle
condizioni che gli piaccia imporre” (para além de considerar indemonstrada a ausência de liberdade de
celebração do contrato por parte do devedor financiado): em conclusão, o Autor sugere que a manutenção
da interdição de baseia em razões históricas, que levam a vedar uma convenção não juridicamente
censurável, mas apenas moralmente. Igualmente Pace, ob. cit., pág. 98 e segs., nota 105, depois de relatar
a ausência de unanimidade quanto aos fundamentos da proibição (que, no caso do penhor de créditos,
assume uma relevância suplementar, porquanto se a ratio da interdição reside na inadmissibilidade da
auto-tutela, tenderá a proibir-se a atribuição ao credor pignoratício da faculdade de cobrança do crédito
onerado), assume que “il divieto in eseme è del tutto ingiustificato e, in sede de riforma, na sarebbe
consigliabile l’abolizione”, tendo em conta a incoerência da lei “che, da un lato, ammette la possibilità di
clausole penali senza limitare l’eccedenza del contenuto delle medesime rispetto alla prestazione dovuta
(….) e dall’altro lato vieta il patto commissorio, che può ben sembrare analogo all’ipotesi della clausola
penale e a quella della vendita condizionata di cose mobili”: em suma, este Autor escreve que “io sarei
favorebole all’abolizione del divieto: in fondo se il creditore si appropria l’oggetto pignorato la colpa è
tutta del debitore che alla scadenza non compie il suo dovere; inoltre non è lecito rimproverare al
creditore un eccesso di garanzia dal momento che il patto commissorio può avere lo scopo di incitare il
debitore al pagamento spontaneo del debito ed evitare il ricorso all’esercizio del diritto pignoratizio e
con esso ottenere, per una più lunga via, la soddisfazione del credito”.
2925
Vincenzo Lojacono, ob. cit., págs. 26 e 27, nota 18, dá conta da posição de um Autor romano -
Riccius - que terá escrito uma apologia do pacto comissório, baseada em cinco considerandos. Em
primeiro lugar, se os devedores forem honestos, poderão facilmente obter crédito e, se o não forem, não
merecem protecção, sendo legítimo ao credor impor-lhes condições gravosas; em segundo lugar, porque
muitas vezes são os credores as vítimas de devedores desonestos; depois, porque mesmo o devedor em
estado de necessidade encontrará, provavelmente, quem lhe conceda crédito sem convenção comissória e,
por isso, se aceita esta deve sujeitar-se às consequências inerentes; em seguida, aceita como normal o
facto de o valor do bem onerado ser superior ao do crédito garantido, uma vez que este pode aumentar
substancialmente com o valor dos juros; por último, porque na venda em hasta pública muitas vezes o
preço obtido é muito inferior ao seu valor real do bem onerado e nem por isso se punem os compradores
que, desse modo, obtêm um enorme benefício.
2926
É o caso do Acórdão da Corte de Cassação Italiana de 12/6/1935 (in Giurisprudenza Comparata di
Diritto Civile, 1940, V. pág. 28), de acordo com a qual o pacto comissório inserido num contrato de
mútuo garantido por penhor é válido (ainda que dissimulado sob a forma de uma venda) com o argumento
que “il divieto del patto comissorio colpisce soltanto il pegno e l’anticresi, che dunque esso non può
estendersi al mutuo, che essendo il pegno un contratto accessorio esso non può modificare il regime del
contratto principale”.
840
No que especificamente respeita às convenções comissórias associadas ao
penhor, a amplitude desta proibição constitui um entrave ao desenvolvimento desta
garantia, não admirando, por isso, o surgimento de posições doutrinais insurgindo-se
contra a amplitude da interdição, exigindo, ao invés, uma contenção do seu âmbito de
aplicação.2927
Num outro plano e do ponto de vista do credor, as virtualidades do pacto
comissório parecem menores nos penhores sem desapossamento, porquanto a sua
estipulação não seria de molde a impedir a intervenção judicial, pelo menos para a
apreensão do bem em vista da sua execução.2928
Noutra ordem de considerações, poder-se-á indagar acerca da eventual
contradição entre a interdição das convenções comissórias e a tendencial validade da
dação em pagamento ou datio in solutum2929 (nos termos da qual se admite, após o
incumprimento, que o devedor, em alternativa ao pagamento, entregue ao seu credor o
um determinado bem, que pode ser o previamente onerado em favor desse mesmo
credor)2930 ou até, nos ordenamentos em que tal figura seja admissível, das
transferências da propriedade a título de garantia.2931
2927
Alertando, em especial, para a necessidade de aligeirar ou suprimir a aplicação da proibição quando
se trate de bens cuja avaliação não ofereça contestação, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 265 e Théry, ob.
cit., págs. 329 e 330.
2928
Théry, ob. cit., pág. 329, destacando que a interdição legal se pode compreender relativamente ao
penhor com desapossamento do devedor, mas carece de fundamento no que concerne aos penhores sem
desapossamento, pois nestes a oposição do devedor basta para impedir o funcionamento do mecanismo
comissório.
2929
Para não falar, por exemplo, da venda a retro, da cláusula penal ou mesmo das alienações em garantia.
2930
Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., págs. 65 e 66, justifica a licitude da datio in solutum
considerando que, neste caso, o devedor é confrontado com a perda definitiva do bem quando decide
efectuar a oferta (já Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 270 e 271, realça o contraste funcional entre
pacto comissório e dação em cumprimento, considerando que “o fim do pacto é a previsão de um
mecanismo de satisfação do credor em caso de incumprimento, e não a consagração de um programa
alternativo de cumprimento, actuante com independência das vicissitudes da obrigação garantida”),
enquanto Ugo Carnevali, Patto comissorio, in Enciclopedia del Diritto, Vol. XXXII, Giuffrè, Milano,
1982, pág. 505 e Massimo Bianca, Patto cit., pág. 716, acentuam o facto de não ser conferido qualquer
direito ao credor de receber a coisa, mas antes uma mera faculdade do devedor efectuar uma prestação
diversa da devida, enquanto Angelo Luminoso, Alla ricerca degli arcani confini del patto comissorio,
Rivista di Diritto Civile, ano 36, n.º 2 (Mar/Abr 1990), pág. 227 e segs., refere que o entendimento
dominante liga a admissibilidade da prestação em lugar do cumprimento ao facto de o devedor – ao
contrário do que sucede no pacto comissório - já ter obtido crédito e, por isso, estar menos sujeito a
pressões do seu credor (embora o Autor critique este entendimento, alegando que, a ser verdade, os pactos
comissórios ex intervallo seriam lícitos, o que não acontece, daqui retirando um argumento para afirmar
que a ratio da proibição das convenções comissórias não reside – ou não reside apenas – na tutela da
posição de inferioridade do devedor). Por seu lado Giuseppe Minniti, Patto marciano e irragionevolezza
del dispore in funzione di garanzia, in Rivista di diritto commerciale e del diritto generale delle
obbligazioni, Padova, a.95n.1-2(Janeio-Fevereiro 1997), Parte I, pág. 51 e segs., declara que a diferença
reside “nella diversa valutazione che il legislatore opera dell’idoneità delle diverse funzioni, di
adempimento e di garanzia, a costituire o meno la giusta causa del traferimento della proprietà di un
bene. E tale valutazione, evidentemente, non può che fondarsi sul giudizio di meritevolezza di tutela degli
interessi dei soggetti coinvolti nell’operazione, considerati in sè e nei reciproci rapporti e confliti” (mais
precisamente, no momento em que opera a datio in solutum o interesse do credor insatisfeito não passa
pela obtenção da prestação a que o devedor se comprometera, mas antes pela aquisição de um bem, pelo
que a transferência da propriedade se apresenta adequada a satisfazer tal interesse, constituindo a causa
desta atribuição patrimonial a extinção da dívida: em suma, na alienação em função do pagamento – datio
in solutum – o acordo solutório assinala “la trasformazione dell’operazione da rapporto creditizio a
vicenda traslativa”).
2931
Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 265 e Théry, ob. cit., págs. 329 e 330, notam que a aceitação de
transferências de propriedade a título de garantia não deixa de ser uma contra-senso face à proibição do
841
4.2 - A justificação da proibição
pacto comissório, pois ambos os mecanismos preconizam a apropriação do objecto da garantia pelo
credor, sem qualquer intervenção de um terceiro neutro ou de uma avaliação imparcial do bem.
2932
Para um elenco das principais justificações aventadas, vide Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição
cit., pág. 62 e segs., Patrícia Fonseca, ob. cit., págs. 31 a 33, Sofia Maltez, ob. cit., págs. 59 a 61, Pestana
de Vasconcelos, A cessão cit., págs. 625 a 627, Isabel Matos, ob. cit., págs. 58 a 75, Catarina Monteiro
Pires, ob. cit., pág. 258 e segs. e, no direito italiano, Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 130 e segs. e Massimo
Bianca, Il divieto cit., pág. 204 e segs..
2933
Não falta, por isso, quem sustente ser um paradoxo a expansão constante do âmbito de aplicação da
proibição do pacto comissório quando subsiste uma intensa polémica acerca dos fundamentos da mesma
(Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., pág. 65). Em termos idênticos, Angelo Luminoso, ob. cit.,
pág. 231 e segs., afirmando ser “paradossale, poichè, da un lato, lo si vuole estendere sempre di più
nonostante sussista ancora molta incertezza sulla sua ratio, e, dall’altro, esso si coloca nel sistema
accanto ad una serie d’ipotesi tipiche legeslativamente previste che, sotto un profilo o l’altro, invocata
l’una o l’altra delle varie rationes del divieto indicate dalla dottrina, potrebbero essere di dubbia
legittimità, ma che tuttavia, essendo ipotesi tipiche, legislativamente regolate, per definizione sono al
riparo dal divieto”.
2934
Por exemplo Chironi, ob. cit., pág. 534 e segs., entende que a admissão do pacto comissório seria uma
contradição técnica, porquanto o fim das garantias reais é o de conferir ao seu beneficiário um direito
sobre o valor da coisa empenhada e não à coisa em si mesma (posição esta criticada por Bustos Pueche -
por não explicar a inibição de satisfação do credor por um procedimento distinto do previsto na lei e por
não explicar a proibição do pacto comissório na anticrese, reduzindo a interdição a um mero princípio de
técnica jurídica, justificando a nulidade com uma mera concepção dogmática no mínimo discutível). Por
seu turno, Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 275, alude a uma posição de acordo com a qual a ratio do
pacto comissório reside unicamente no intuito de punir as transferências comissórias associadas à
constituição de garantias reais, pretendendo evitar que o credor beneficie de uma tutela exacerbada
(entendimento este que conduz à admissibilidade dos pactos comissórios autónomos). Já Salinas
Adelantado, El régimen cit., pág. 153 considera que a razão de ser da proibição reside numa manifestação
negativa do conceito de garantia real, entendida esta como direito de satisfação erga omnes sobre
determinados bens do devedor (daí a violação da interdição ter sempre como consequência a nulidade do
pacto). Finalmente, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 133, noticia a existência de uma justificação
técnica, que reside na ausência de preços de mercado facilmente controláveis.
2935
Apoiam esta argumentação Paulo Cunha, ob. cit., pág. 215 (para quem a proibição existe “a fim de
obstar a que o credor se locuplete por meio do penhor, auferindo interêsses superiores ao crédito que êle
garante, com prejuízo do devedor e dos outros credores, o que facilmente poderá suceder, visto que,
atentas as circunstâncias em que se encontra o devedor que contrai dívidas nessas condições e
esperança, que tem, de resgatar o penhor, o valor da coisa dada em penhor é ordinariamente muito
superior ao da dívida”), Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 217 (afirmando que “a sua razão de
ser está em que tal pacto pode representar um benefício injustificado para o credor (que adquire uma
coisa acaso muito mais valiosa do que o crédito), sobretudo quando obtido do devedor que, levado pela
842
Os seguidores desta tese invocam, em seu abono, o argumento histórico (na
medida em que terá sido esta a razão decisiva da consagração originária desta
proibição).2937
Constata-se, assim, que os devedores, apertados pelas dificuldades do momento
e na esperança, tantas vezes ilusória, de serem capazes de satisfazer o crédito contraído,
concedem em garantia bens de valor incomparavelmente superiores ao desse mesmo
crédito, correndo o risco de, em caso de incumprimento, deles serem privados.
Mesmo quem reconhece que a generalização da nulidade do pacto comissório
pode, em certos casos, ser discutível - porquanto nem sempre se verificará um prejuízo
para o credor -, entenda que a sua validade “implica el riesgo de facilitar situaciones en
las que, aprovechándose el acreedor de circunstancias extremamente adversas que
pesan sore el deudor, se beneficie a costa de éste, excediéndose la finalidad de
necessidade, facilmente consentiria nele”), Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 176,
Joaquim Bastos, ob. cit., págs. 66 e 67, Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., págs. 625 a 627
(argumentando que o âmago da proibição das convenções comissória reside em “evitar o dano a que o
devedor se sujeita se não cumprir em virtude da desproporção que se verificará na esmagadora maioria
dos casos em resultado das normais necessidades de segurança do credor (haverá sempre, pelo menos,
uma margem de segurança entre o valor da obrigação garantida e do objecto da garantia, para cobrir
eventuais riscos de diminuição do valor deste), entre a obrigação garantida e o objecto da garantia”) e,
ainda na vigência do anterior Código Civil, Coelho da Rocha, Guilherme Moreira, Mello Freire, José
Tavares e Dias Ferreira (apud Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 259 e 260). No direito francês,
Guillouard, ob. cit., pág. 180 (“un moyen ouvert de tirer un profit excessif des sommes d’argent qu’ils
prêteraint, en prêtant de l’argent sous des gases de veleur du double de la somme prêtée, à des personnes
qu’ils prévoyaient ne pas devoir être en état de rendre la somme au temps convenu”), Baudry-
Lacantinerie, ob. cit., pág. 117 (sublinhando que os bens dados em penhor são normalmente de um valor
superior ao montante da dívida), Weil, ob. cit., pág. 95, Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 264, Aynés e
Crocq, ob. cit., pág. 208, Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 74, Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 292 e, no direito espanhol, Diez-Picazo, ob. cit., pág. 483, Reglero Campos, Ejecución
cit., págs. 421 e segs. (falando da necessidade de “impedir que el deudor sufra un perjuicio patrimonial
desorbitado como consecuencia de encontrarse en una situación económica más o menos angustiosa de
la que pueda aprovacharse el acreedor cuyo crédito está protegido con una garantía real, lo que
sucederá cuando, como ocurre normalmente, exista una notable desproporción entre el valor de la
prestación y el de la cosa sujeta a la garantía del dereceho de crédito”) e Veiga Copo, La prenda de
acciones cit., pág. 406 e segs. (para quem “parece explícito que el motivo determinante del pacto
comisorio está en función de la desproporción que se genera entre el valor de lo debido y el valor de la
pérdida que sufre el deudor por el hecho de que el acreedor se aproprie de la cosa objeto de garantía”,
radicando, assim, a proibição na necessidade de protecção do contraente mais fraco). No direito italiano,
vide Nicola Cipriani, ob. cit., págs. 137 e 150 e segs. (“sembra dover concordare con l’idea che il divieto
del patto comissorio trova la sua giustificazione nell’esigenza di tutelarei l debitore dalle possibili
prevaricazioni del creditore e, dunque, di evitare che il debitore medesimo, pur di accedere al credito,
acconsenta a un contratto a condizioni inique”, justificação esta ancorada no princípio constitucional da
solidariedade, do qual resulta igualmente a cláusula geral de boa fé).
2936
Negam ser este o verdadeiro fundamento da interdição do pacto comissório Bustos Pueche, ob. cit.,
pág. 561 (argumentando que a presunção de coarctação da liberdade do empenhador não deverá operar -
porque, em princípio, a pessoa deve considerar-se livre e responsável - e, que, se esta fosse a verdadeira
razão, toda a relação jurídica, obrigacional e de garantia, deveria ser também invalidada, sendo a sanção
aplicável a anulabilidade e não a nulidade), Giuseppe Minniti, ob. cit., pág. 40 e segs. (alegando a
ausência de qualquer elemento no direito positivo do qual resulte ser a desproporção entre o valor do bem
empenhado e do crédito garantido a ratio da proibição) e Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 57 e segs.. Já para
Mauro Bussani, Il modello cit., pág. 188, não se pode cair numa abstracta, geral e absoluta salvaguarda do
devedor (visto necessária e aprioristicamente como contraente mais débil), sendo antes imperioso
compatibilizar a proibição do pacto comissório com o sistema geral no seio do qual se integra, de modo a
tutelar “da un lato, gli interessi del creditore a fronte dell’inadempimento della prestazione garantita, e,
dall’altro, la posizione del debitore (e dei suoi creditori), i cui interessi possono essere volti al riacquisto
del bene a seguito all’adempimento, ma che, in caso contrario, mirano essenzialmente alla salvaguardia
di un equilibrio fra valore del credito garantito e valore del bene oggetto della garanzia”.
2937
Nesta conformidade, Isabel Matos, ob. cit., pág. 58 e Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 130 e segs..
843
garantia, al apropriarse de las cosas gravadas por cantidades inferiores a su verdadero
valor”.2938
Contudo, poder-se-á duvidar da razão que conduz a que a cominação
normalmente consagrada no nosso ordenamento jurídico para os negócios celebrados
com aproveitamento do estado de necessidade de uma das partes seja a anulabilidade,
enquanto a violação do pacto comissório é sancionada com a nulidade,2939 parecendo
2938
Pérez García, ob. cit., pág. 602, nota 2.
2939
Salientam este aspecto, Isabel Matos, ob. cit., págs. 61, 73 e 75 (concluindo, por arrastamento, que “o
fundamento da protecção do devedor concorre para explicar a proibição do pacto comissório
consagrada na lei, a verdade é que, à semelhança do que sucede noutros países, o mesmo não se afigura
suficiente para explicar que o nosso Código Civil comine a sua nulidade”, ou seja, embora sendo este o
principal motivo justificativo da proibição, esta resulta também “do interesse social em evitar a
disseminação do pacto comissório”, ou seja, “o pacto comissório é um instituto de tal modo perigoso que
a simples possibilidade de ser utilizado em detrimento do devedor e dos seus credores impõe
absolutamente a sua proibição”) e Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., págs. 64 a 66. Assim
sendo, poder-se-á questionar por que razão o pacto comissório será nulo mesmo que, em face das
circunstâncias do caso concreto, não exista qualquer prejuízo para o credor, nem qualquer usura, podendo
até ser favorável para o devedor (por exemplo, quando o bem entregue seja de menor valor que o crédito
ou mesmo quando seja de igual valor – uma vez que, mesmo nesta segunda hipótese, sempre se
poupariam as despesas com a execução judicial e por ser frequente que nesta o bem seja alienado por um
valor inferior ao valor normal de mercado) - tal como nota Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 118, se
o valor de aquisição do bem empenhado for aferido com base em critérios objectivos, não existirá o
perigo que pretende conjurar com a proibição comissória (isto é, de o credor se apropriar de bens
recebidos em garantia de valor superior ao da dívida assegurada). Noutra ordem de considerações, é
igualmente questionável a legitimidade da proibição, tendo em conta a existência de outros institutos
admitidos pelo ordenamento (como a datio in solutum, a venda a retro ou a cláusula penal) que parecem
apresentar os mesmos perigos das convenções comissórias: do confronto destas últimas com aquelas,
Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., págs. 65 e 66, conclui que “a proibição não visa apenas
impedir que o credor se locuplete com a diferença de valor entre o valor do bem e do crédito. É antes
necessário que estejam simultaneamente reunidos três pressupostos: que o pacto tenha uma função ou
escopo de garantia ao vincular ou destinar um determinado bem à auto-satisfação do credor, que o
devedor se reserve uma faculdade de desvincular o bem desse escopo mediante o cumprimento da
obrigação e, finalmente, que não esteja assegurada, para a hipótese de incumprimento, o direito do
devedor reaver, recuperar um eventual excesso de valor do bem sobre o valor do crédito garantido. A
proibição do pacto comissório parece proteger o devedor, sobretudo de fórmulas ou mecanismos que,
não operando uma transmissão definitiva do bem, criam nele a esperança (…) de conseguir evitar a
perda definitiva do bem”. Em face do direito italiano, que comina a mesma sanção, Ugo Carnevali, ob.
cit., págs. 500 e 501 replica que “con siffatta ratio del divieto contrasta la sanzione della nullità,
manifestamente eccessiva rispetto allo scopo: se fosse solo questione di tutela, nel singolo e contingente
caso, del debitore, sarebbe sufficiente una mera annullabilità”, enquanto Mauro Bussani, Il modello cit.,
pág. 188, sustenta que a nulidade “si presta ad essere utilizzato in modo oppotunistico a seconda delle
contingenti valutazioni che il medesimo debitore compia della propria situazione economica – scegliendo
cosi di rimanere fedele al contratto, oppure di invocarne la nullità, in vista della mutevole convenienza”.
Valentina Balbo, Divieto del patto comissorio e alienazione a scopo di garanzia, in
www.diritto.it/materiali/civile/balbo.html, pág. 2, advoga que a circunstância de a nulidade atingir
também os pactos acordados posteriormente à constituição da garantia – após a concessão da garantia e a
do crédito - isto é, no momento em que o devedor se encontra mais vulnerável, permite duvidar da
pertinência deste fundamento, enquanto Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 66 e 67, aduz um argumento para
negar ser esta a razão de ser da interdição das convenções comissórias, qual seja o facto de o art.º 1450.º
do CCI admitir que a parte à qual é oposto o pedido de rescisão do contrato poder evitá-la, oferecendo
uma modificação do contrato suficiente para o recondução à equidade o que, na opinião do Autor, “rende
irrilevante, ex post, il vizio genetico dell’obbligo assunto; il che, sembra, rende difficile dar conto della
nullità di una alienazione comissoria al creditore (ad es.) di 100 di un bene oppegnorato che valga 90:
nullità che, invece, trova comunque giustificazione in altre motivazioni”. Já Massimo Bianca, Patto cit.,
pág. 717 e Il divieto cit., pág. 208 e segs., assegura que, se fosse este o verdadeiro fundamento da
proibição, seria ao devedor que caberia valer-se dela, pelo que a sanção deveria ser a da anulabilidade.
Por fim Giuseppe Minniti, ob. cit., pág. 40, assegura igualmente que o remédio usualmente previsto por
lei para os casos de enriquecimento indevido de alguém às custas do estado de necessidade de outrem é a
844
não colher a justificação que explica esta diferença de tratamento na função de garantia
que caracteriza o pacto comissório,2940 surgindo a nulidade, porventura, como um
resquício histórico que as mais recentes codificações não ousaram contrariar:2941
todavia, não falta quem relativize esta crítica, assegurando que não ser detectável um
princípio geral subsumível ao binómio interesse individual-anulabilidade, interesse
colectivo-nulidade.2942
De acordo com esta óptica, poderá parecer como excessiva a proibição do pacto
comissório – se explicada unicamente com a exigência de tutela do devedor – tendo em
conta a protecção mais limitada de que a parte mais débil goza, em geral, no sistema
jurídico.2943
anulabilidade e não a nulidade, a qual é reservada para situações em que está em causa a tutela de
interesses mais vastos que os do devedor.
2940
De acordo com esta justificação, a interdição comissória surgiria da peculiaridade da natureza
acessória da garantia e não tanto da necessidade de protecção do devedor face aos potenciais abusos do
credor, ou seja, a ratio da proibição residiria na função de garantia do pacto comissório e no perigo de
potenciais abusos do credor deste estado de necessidade do devedor. Contesta esta posição Fulvio
Gigliotti, ob. cit., pág. 58 e segs., assegurando que, se fosse esta a verdadeira ratio da proibição,
conduziria, quando muito, à codificação do pacto marciano ou à obrigação de restituição do excedente do
valor do bem relativamente ao valor do crédito garantido (para além disso, poder-se-ia, de jure condendo,
aceitar a validade das convenções comissórias, argumentando com a licitude da cláusula penal).
2941
Neste sentido, Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 139 e segs., assegurando, porém, que a proibição legal
não sairia enfraquecida se, em vez da nulidade, fosse cominada a anulabilidade, na medida em que esta
deixaria ao devedor a possibilidade de optar, em face do caso concreto e tendo em conta os seus
interesses, pela manutenção do pacto ou pela sua invalidação. O Autor, ob. cit., pág. 206 e segs., qualifica
a sanção da nulidade como excessiva, “in astratto non conforme al principio di proporzionalità, perché
dispone una sanzione potenzialmente troppo gravosa per il debitore, senza la certezza che ad essa
corrisponda un interesse meritevole di tutela del creditore”, pelo que a solução “sufficiente ad assicurare
l’interesse perseguito dall’ordinamento, quale quella che può garantire il patto marciano (noutras
palavras, o Autor escreve que “La sanzione della nullità, da questo punto di vista, si presenta
desisamente eccesiva, o, meglio, sproporzionata fino al punto di risultare potenzialmente sfavorevole
acnhe per lo stesso soggetto che vuole tutelare, che potrebbe anche avere interesse all’operare di un
meccanismo solutorio fundado sulla vicenda tralativa di un bene”, sugerindo, em alternativa, “per
l’operatività ex lege di un meccanismo solutori che, pur basandosi sulla medesima vicenda traslativa,
imponga la stima del bene e ne imputi il giusto valore al pagamento del debitore attraverso uno schema
che si identifica con quello del patto marciano”, com fundamento numa interpretação da proibição
comissória à luz do princípio constitucional da proporcionalidade). Em termos análogos, Vincenzo
Lojacono, ob. cit., págs. 25 e 26, contestando, porém, a manutenção da cominação da nulidade para a
violação do proibição do pacto comissório, constatando que, se a verdade que a razão de ser desta
residisse na necessidade de protecção do devedor, se deveria admitir que “nel caso in cui il debitore non
si volesse giovare del dispositivo della legge, e volesse rispettare l’obbligo, assunto col patto, dovrebbe
essere liberissimo di poterlo fare (…). L‘invalidità del patto verrebbe ad essere sanata dalla contraria
volontà della parte che la legge considera lesa (…). Ma se tale fosse stato il pensiero del legislatore, non
la nullità del patto agli avrebbe sancito, ma d’annullabilità di esso: avrebbe dato in tale modo al debitore
la facoltà di fare valere o meno la inefficacia della sua volontà coartata”.
2942
Destaca este aspecto Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 261 e 262, apontando exemplos de
negócios potencialmente usurários para os quais a lei comina a sanção da nulidade (cfr. art.ºs 560.º e
928.º, n.º 1).
2943
Salienta este aspecto Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 65 e segs., enumerando uma série de normas do
ordenamento italiano das quais emerge a menor protecção do devedor face à contida na proibição do
pacto comissório. De entre estas constam a possibilidade de o devedor novar a obrigação originária em
termos prejudiciais para si, o regime das (verdadeiras) obrigações alternativas com prestações de diverso
valor (pois não se prevê, para as hipóteses de incumprimento do devedor da obrigação alternativa, a
concentração sobre a prestação mais conveniente ao devedor, nem a intervenção do juiz, mas a atribuição
de tal faculdade ao credor – o qual, aliás, pode dispor dessa faculdade logo desde o momento da
contracção da obrigação -, concluindo o Autor que “una prestazione promessa (solo) sub condicione, per
l’eventualità del inadempimento, sembra essere, in presenza di un inadimpimento doloso, nient’altro che
l’equivalente di una obbligazione alternativa con scelta rimessa al debitore (…) e in presenza di un
845
Noutra ordem de considerações, cumprirá, ainda, questionar o porquê da
invalidade das convenções comissórias mesmo quando, em concreto, o pacto não seja
lesivo para o devedor, designadamente por não se verificar qualquer desproporção entre
o valor do bem onerado e do crédito garantido2944 ou por o negócio não ser,
efectivamente, desfavorável para o devedor.2945
Por último, a própria pressão psicológica sobre o devedor, traduzida na
esperança de recuperação do bem onerado, é colocada em dúvida por alguns
Autores.2946
846
Uma outra razão que, embora conexa (na medida em que, ao menos
indirectamente, contende com a necessidade de protecção do empenhante) com a
acabada de expor dela se autonomiza, reside na proibição dos negócios usurários, de
que a repressão do pacto comissório seria uma concretização.2947
Contudo, também esta possível justificação suscita algumas inquietações, não só
no que respeita à equiparação entre os negócios comissórios e usurários,2948 como
enquanto razão determinante para a consagração da proibição.2949
mentre la speranza di poterlo riscattare facilmente lo induce a scelte avventate. L’esistenza di una simile
molla psicologica è ovviamente tutta da dimostrare”. Com efeito, prossegue a mesma Autora, esta
coacção psicológica não se verificará sempre que o perigo de desproporção não subsista, seja por força
dos mecanismos acordados entre as próprias partes (como sucede nas convenções marcianas ou quando
seja cedido em garantia um crédito), seja em virtude de mecanismos externos à relação entre ambas.
Quanto a este último aspecto, entende que a tese criticada “racchiuda una aporia logica, in quanto per
poter affermare l’esistenza di una sproporzione si assume implicitamente che il bene oggetto della
garanzia abbia un prezzo certo il quale sia molto superiore alla quantità di denaro ottenuta”, esquecendo
que, desde logo e quando o bem não tenha um preço de mercado, se torna impossível comprovar da dita
desproporção e, quando exista esse preço, o próprio mercado elimina tal perigo (uma vez que “se il bene
oggetto del patto ha un prezzo certo, ciò implica che esiste un mercato sul quale tal valore può essere
facilmente realizzato (…) la differenza tra il valore del bene e l’ammontare del mutuo ricevuto determina
automaticamente il valore del diritto a riscattare il bene”, desde que se verifiquem duas condições: que o
direito de resgate do bem seja livremente disponível e, por outro lado, que o mutuário não actue
irracionalmente deixando passar o prazo para exercer o direito de resgate: se o devedor permanecer inerte,
“diviene difficile immaginare che il divieto di patto comissorio con il suo pesante carico di remore per il
traffico giuridico possa essere giustificato dalla necessità di proteggere personaggi tanto sventati” e,
mesmo verificando-se uma diferença entre o valor do bem empenhado e da quantia mutuada, essa
diferença será normalmente mínima e, embora o mutuante possa aproveitar-se dela quando os custos da
transacção do direito de resgate excedam tal diferença, tal não constituirá justificação para a proibição do
pacto comissório, pois “più è elevata la differenza tra il valore di mercato del bene (…) e l’ammontare
del mututo e maggiore diviene la probabilità che il riscatto venga effettivamente esercitato con denaro
proveniente da terzi, agli occhi dei quali l’acquisto del diritto al riscatto diviene tanto più appetibile
quanto più elevata è appunto tale differenza. Pertanto la verità controintuitiva è che il creditore
stipulante un patto comissorio sarà tanto più pericoloso quanto meno si dimostrerà ingordo”).
2947
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 718 (este último Autor reforça a sua posição no
seu Direito das Obrigações cit., pág. 555, ao afirmar que “o fundamento da proibição do pacto identifica-
se, não só com a ratio da norma que pune a usura (art.º 1146.º), mas ainda com o pensamento subjacente
à condenação dos negócios usurários), Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 118 (sublinhando que “o
legislador presume que a mesma será usurária, independentemente da indagação efectiva da sua
eventual existência e se o devedor merece ou não efectiva tutela por aproveitamento da sua situação”),
Guillouard, ob. cit., págs. 180 e 183, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., pág. 126, Weil, ob. cit., pág. 95,
Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 265, Aynés e Crocq, ob. cit., pág. 208, Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 292 e Gregorio Gitti, Divieto del patto comissorio, frode alla lege, “sale and lease back”,
in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, n.º 47 (1993), pág. 489.
2948
Como salientam Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., pág. 65 e Isabel Matos, ob. cit., pág.
64, a equiparação aos negócios usurários permite questionar o porquê da necessidade de autonomização
da proibição do pacto comissório e, sobretudo, da diversidade de consequências previstas pelo
ordenamento jurídico para a os negócios usurários (anulabilidade – v. art.º 282.º) e para as convenções
comissórias (art.º 694.º). No mesmo sentido em face do direito italiano, Massimo Bianca, Il divieto cit.,
pág. 210 e segs..
2949
Isabel Matos, ob. cit., pág. 63, recusa esta justificação com base num argumento de cariz histórico,
isto é, se a usura estivesse na base da proibição do pacto comissório, ambos os institutos teriam tido o
mesmo destino: ora, da proibição absoluta de cobrança de juros evolui-se para a permissão da sua
cobrança, enquanto a proibição das convenções comissórias se manteve. Massimo Bianca, Patto cit., pág.
717 e Il divieto cit., pág. 212 e segs., também recusa ser este o fundamento da proibição, alegando que o
pacto pode, em concreto, não ser desvantajoso para o devedor e, desse modo, não se compreender por que
razão a interdição possa prescindir de qualquer juízo entre a desproporção entre o valor do bem dado em
garantia e do crédito garantido (do mesmo modo Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág.113, constatando ser
irrelevante, para a invocação da proibição, a desproporção entre o valor do bem onerado e do crédito
garantido – podendo até o valor daquele ser inferior – concluindo que “una indiscriminata nullità del
847
Todavia, não é (ou não é apenas) a protecção do empenhante que tem sido
reclamada como justificação, radicando alguns a inibição legal das convenções
comissórias (unicamente ou em conjunto com outras causas) na necessidade de tutela
dos demais credores do constituinte da garantia, seja invocando a necessidade de
assegurar a consistência do princípio da par conditio creditorum,2950 seja realçando que
o pacto comissório, a ser lícito, traduzir-se-ia numa primazia não prevista na lei
(violando, assim, a tipicidade das causas legais de preferência e os direitos dos titulares
destas).2951
Este prejuízo para os demais credores traduzir-se-ia na perda do direito a cobrar
os seus créditos - com um eventual excesso resultante da diferença entre o produto da
venda do bem empenhado e o valor do crédito do credor pignoratício - e, mais grave
ainda, na subversão da escala de graduação de créditos delineada pelo legislador,
porquanto o beneficiário de uma convenção comissória, ainda que não ocupasse o lugar
cimeiro daquela hierarquia, seria o primeiro - e o único - a obter uma satisfação, total ou
parcial, do seu crédito.
Contudo, também este fundamento não se exime a diversos reparos.2952
patto comissorio, a fronte di una fattispecie solo potenzialmente usuraria non sembra pienamente
plausibile”. Alega, ainda, que mesmo quando exista semelhante desproporção, tal não será, por si só,
sinónimo da presença de um negócio usurário). Também Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 93,
descarta ser esta a justificação mais plausível, assegurando que a mesma “é susceptível de provocar
perplexidades por razões de ordem sistemática, já que, na lógica do sistema, a tutela de quem contrata
em estado de necessidade ou coagido não passa pela nulidade, para além de que não se furta à sanção
da nulidade um pacto que se mostre em concreto vantajoso para o devedor”.
2950
Dá conta da invocação deste fundamento, nomeadamente ao nível jurisprudencial, Valentina Balbo,
ob. cit., pág. 3, seja porque a atribuição definitiva e exclusiva do bem a um só credor – particularmente
quando o valor da res supere o valor da obrigação garantida – defraudará os demais credores do
empenhante (que nem sequer se podem satisfazer com o remanescente), seja porque o beneficiário de
uma convenção comissória (especialmente quando associada a uma garantia real) poderia, depois de se ter
apropriado do bem objecto daquele pacto, executar o restante património do devedor (todavia, a mesma
Autora realça que, por vezes, a jurisprudência descarta a invocação da proibição quando, no caso
concreto, não se verifique nenhum prejuízo para os demais credores). Também Fulvio Gigliotti, ob. cit.,
pág. 87 e segs., alude à existência de partidários deste entendimento (atribuindo especial importância à
posição de Lelio Barbiera, para quem o pacto comissório transforma o direito de crédito do beneficiário
num situação subjectiva em tudo similar à dos direitos reais, desse modo se subtraindo à par conditio
creditorum, perdendo o direito à garantia genérica traduzida no património do devedor), mas contesta a
pertinência do argumento invocado relativamente ao princípio da responsabilidade genérica do
património do devedor (alegando que, caso fosse esta a verdadeira ratio da interdição, a perda desta
garantia genérica deveria ser permitida mesmo ao beneficiário do pacto comissório – pelo menos quando
o bem onerado fosse de valor suficiente para cobrir a dívida garantida – e contrapondo que a proibição de
tal exclusão, por acordo, da garantia genérica é proibida por lei – cfr. art.º 2740.º, n.º 2, do CCI). Alude
igualmente a esta justificação Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 24 (indicando que os seus partidários se
fundamentam na fraude a estes outros credores que adviria da redução da parcela de bens disponíveis para
a satisfação dos seus créditos relativamente ao valor do próprio crédito do credor beneficiário do pacto
comissório), Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 408 e, entre nós, Catarina Monteiro Pires, ob.
cit., pág. 264 (apontando Carnelutti, Note sul patto comisorio, in Revista de diritto commerciale, 1916,
Vol. II,, pág. 887 e segs., como o seu mentor).
2951
Utilizam este argumento Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 74 (não sem reconhecer que este
fundamento é incerto, tendo em conta a admissão de garantias que concedem ao credor, desde o momento
da constituição do crédito, um direito de propriedade, em detrimento dos demais credores) e Diez-Picazo,
ob. cit., pág. 483.
2952
Criticam este entendimento Bustos Pueche, ob. cit., pág. 562 (advogando que o mesmo se
desvaneceria quando se tratasse de um devedor com património suficientemente amplo para satisfazer
todos os seus credores), Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 501 (contestando que nunca seria uma causa atípica
de preferência o pacto comissório conexo com um penhor e, mesmo quanto ao pacto comissório
autónomo, tal resultado seria duvidoso, pois, em virtude da retroactividade da alienação em garantia
suspensivamente condicionada não se poderá falar de um concurso sobre o património do devedor, mas
848
Se as concepções até agora apresentadas assentam primordialmente na
necessidade de protecção de interesses individuais – ora do empenhante, ora de terceiros
-, algumas opiniões, partindo da cominação legalmente estabelecida para a violação do
pacto (nulidade), ancoram a proibição das convenções comissórias num interesse geral,
levando em consideração que a tutela dos interesses do contraente mais fraco – neste
caso o devedor – ou dos terceiros credores é normalmente assegurada através de outro
tipo de sanções, respectivamente a anulabilidade e a ineficácia.2953
Todavia, não existe consenso quanto à identificação desse interesse público,
aludindo-se à contrariedade aos bons costumes ou à ordem pública (cfr. art.º 280.º)2954
ou à ordem pública económica,2955 ao interesse comum de evitar a disseminação de
antes de revogação de actos prejudiciais aos credores), Massimo Bianca, Patto cit., pág. 717 e Il divieto
cit., pág. 215 (assinalando que a sanção para os actos prejudiciais aos demais credores do devedor é a
ineficácia relativa e não a nulidade – no mesmo sentido Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 70 e Francesca
Fiorentini, ob. cit., pág. 273), Giuseppe Minniti, ob. cit. pág. 42 e segs. (constatando que a proibição
vigora prescindindo da existência de outros credores relativamente aos quais operaria a regra da par
conditio creditorum e, sobretudo, independentemente de haver ou não uma diminuição do património do
devedor capaz de o tornar insuficiente para a satisfação dos demais credores, para já não falar na
liberdade do devedor satisfazer um credor em detrimento dos demais sem respeito sequer pela prioridade
temporal de cada um deles) Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 60 e segs. (salientando não se perceber a
operatividade da proibição mesmo na ausência, em concreto, de outros credores - asseverando que
“sanzionare nella forma più grave un accordo privo di danno in confronto dei terzi creditori, solo in via,
per cosi dire, cautelare, appare davvero sproporzionato” -, para além do facto, quando esses outros
credores existam, o devedor poder privilegiar um dos credores – por exemplo, através de uma datio in
solutum) e Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 28 (alegando não poder ser esta a ratio da proibição pois, se
assim fosse, ela não se verificaria sempre que o património do devedor fosse suficiente para satisfazer
todos os seus credores quirografários, bem como quando tais credores nem sequer existissem). Já Júlio
Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., págs. 66 e 67, chama a atenção para a existência de mecanismos
a que os credores podem recorrer para impugnar actos que coloquem em risco a consistência do
património do devedor (os chamados meios conservatórios da garantia patrimonial), para além de a
proibição do pacto comissório operar ainda que o património do devedor, mesmo após a saída do bem,
seja mais do que suficiente para satisfazer os credores (para além disso, o mesmo Autor contesta a
vigência de um princípio geral de igualdade de tratamento entre os credores). Também Isabel Matos, ob.
cit., págs. 70 e 71, duvida ser esta a razão do disposto no art.º 694.º, em razão da existência de outros
mecanismos destinados à tutela dos credores em caso de esvaziamento do património do devedor, para
além do facto de, se fosse este o motivo da proibição, “todo e qualquer acto de disposição de bens do
devedor poderia importar uma diminuição da garantia patrimonial dos seus credores e,
consequentemente, deveria ser proibida” (em termos análogos, Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág.
264, aludindo igualmente aos meios de conservação da garantia patrimonial e, por outro lado, contra-
argumentando que esta justificação não colhe sempre que o património do devedor seja suficiente para
pagar aos diversos credores).
2953
Dá conta deste raciocínio, Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 107 e segs., salientando que o mesmo é
reforçado pela afirmação da nulidade mesmo quando o pacto não seja desvantajoso para o credor ou não
cause prejuízos aos demais credores. Contudo, o Autor entende ser mais sensato “non affidarsi
pregiudizialmente all’argomento della necessaria emergenza di un interesse generale in ragione del tipo
di sanzione legislativa predisposta (…) ma senza per questo escludere, naturalmente, che in concreto
possa ravvisarsi un interesse generale a fondamento del divieto”.
2954
Troplong, ob. cit., pág. 108, concretizando tratar-se de uma convenção através da qual uma das partes
tira partido da fragilidade do devedor, enriquecendo às suas custas, concluindo que o pacto é imoral por
se traduzir num “abus du fort sur le faible, une odieuse spéculation de celui qui a sur celui qui éprouve
une nécessité d’argent”e Diez-Picazo, ob. cit., pág. 483, considerando tais pactos imorais. Contra, Bustos
Pueche, ob. cit., pág. 563, argumentando que tantos outros negócios permitem que uma das partes lucre às
custas da outra, sem que a lei comine para todos esses casos a nulidade (eventualmente admite que tais
considerações relevem do ponto de vista moral, mas não jurídico).
2955
De acordo com Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 501, trata-se de evitar que a cláusula comissória se
vulgarize, pondo em causa a adequação entre a sujeição do património do devedor e a função de garantia
pressuposta pela ordem jurídica, falando, a este respeito, de um princípio de ordem pública económica
(posição contestada por Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 116 e 117, alegando que, no fundo, o pacto seria
849
semelhantes acordos,2956 à proibição de auto-tutela ou auto-satisfação do credor
(impedindo que a realização dos direitos deste último possa ter lugar sem recurso às
vias estaduais de tutela)2957, ao princípio da tipicidade das garantias reais,2958 à
inválido para evitar a atribuição ao credor de um direito potestativo de se apropriar de uma coisa sem
garantia de uma exacta correspondência económica entre o valor do crédito e do bem onerado, o que
significa “ancora una volta porre a base del divieto una esigenza di tutela del debitore che non sembra
sistematicamente idonea a fondare una sanzione di nulittà”).
2956
Troplong, ob. cit., pág. 108, concluindo, por isso, que as convenções comissórias devem ser proibidas
ainda que se prove não ser o valor do bem empenhado superior ao do crédito garantido (até porque o
preço dos bens é variável, podendo o bem empenhado aumentar de valor no tempo que medeia entre a
constituição da garantia e a sua execução) e Isabel Matos, ob. cit., págs. 72 a 75, salientando que a
divulgação desta cláusula tornaria-a usual em todos os contratos de concessão de crédito, por força da
posição de inferioridade típica de quem recorre ao crédito, contribuindo para um sistema de garantias em
que os bens onerados assumem uma proporção desadequada face à função de garantia. Um acérrimo
defensor (e, possivelmente, o seu mentor) desta posição é Massimo Bianca, Patto cit., pág. 717 e segs.,
para quem o interesse subjacente à proibição “non s’identifichi nelle singole situazioni di abuso (…) ma
che attenga al pregiudizio sociale del prevalere di una siffatta forma di garanzia e degli inconvenienti
che ad essa sono legati. Onde la necessitá di una sanzione che impedisca preliminarmente e in radice il
diffondersi del patto anziché operare successivamente attaverso il capillare controllo giudiziale degli
abusi di una forma di garanzia assunta a portata generale” (em termos semelhantes, in Il divieto cit.,
págs. 216 a 218, falando de um interesse geral na prevenção do dano ínsito na liberdade de estipulação do
pacto, impedindo que tal convenção se torne “di stile” e determine a criação de um “sistema di garanzia
inidoneo ad esprimere un assoggettamento del patrimonio del debitore esattamente adeguato alla
funzione di garanzia. Evidentemente, nella esclusione di tale sistema è realizzata la tutela degli interessi
particolari del debitore e degli altri creditori, ma una diversa considerazione di questi interessi può
giustificarsi, appunto, nel quadro di un fenomeno che assuma una portata di carattere generale”).
Contra, Giuseppe Minniti, ob. cit., pág. 44 e segs, asseverando que uma sanção tão drástica como a
nulidade não pode basear-se na simples necessidade de evitar a difusão das convenções comissórias,
particularmente quando confrontado com o princípio geral da autonomia privada (nem tão pouco
aceitando que se possa ancorar a proibição num suposto princípio de ordem pública económica, sendo
forçoso individualizar os interesses cuja tutela possa justificar uma sanção tão radical como a nulidade) e,
sobretudo, Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 118 e segs., alegando que esta teoria consiste apenas
“nell’oggettivazione (al ceto debitorio de un lato, e a quello creditorio dell’altro) degli interessi
tradizionalmente addotti a giustificazione del divieto”, sendo, por outro lado, demasiado vaga e genérica
na sua formulação, para além de o perigo de difusão das convenções comissórias – nomeadamente nos
casos em que o devedor não o impugne com receio de não poder recorrer posteriormente àquele
financiador – “non è nel patto comissorio, più di quanto lo sia in altri casi cui l’ordinamento ricorre ad
una sanzione di rescissione o di annullabilità anziché di nullità: basti pensare alla possibilità che si
diffonda la pratica di approfittare dello stato di bisogno altrui o di usare violenza o di operare con dolo
ove i debitori sistematicamente non agiscono in rescissione o per l’annulamento del negozio viziato”,
deixando no ar duas interrogações: em primeiro lugar, o motivo pelo qual a proibição se encontra
legalmente restrita às garantias típicas (o que mal se concilia com a objectivação dos interesses
supostamente subjacentes à interdição) e, essencialmente, porque “resta inesplicabile la ragione della
necessità di una tutela cosi energica, quando invece sarebbe stato più consonso disporre la nullità
esclusivamente per l’(eventuale) eccedenza di valore, in aderenza al principio di conservazione del
contratto”, parecendo mais lógico o simples reconhecimento normativo do pacto marciano (no mesmo
sentido depondo a própria norma que, em matéria pignoratícia, permite que ao credor seja adjudicada a
coisa empenhada até ao limite do crédito garantido, de acordo com uma avaliação efectuada por peritos
ou de acordo com o preço de mercado, norma que “pressupone infatti il versamento di un conguaglio (…)
nel caso di eccedenza di valore del bene vincolato in garanzia”).
2957
Dão conta da invocação deste argumento por parte de alguns Autores, Júlio Gomes, Sobre o âmbito
da proibição cit., pág. 67, Isabel Matos, ob. cit., págs. 64 a 69 (argumentando ser esta a posição subscrita,
entre nós, por Lebre de Freitas) e Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 408 (que o contesta,
escrevendo que tal entendimento “no pude compartirse, pues implica el olvido de los supuestos de
satisfación al margen de los procedimientos judiciales, o la misma posibilidad de ejecución cuando en
garantía se constituyó una prenda irregular”). Acérrimo defensor deste entendimento é Bustos Pueche,
ob. cit., pág. 563, argumentando que a execução é matéria subtraída à autonomia privada, mas não sem
reconhecer, no plano do direito a constituir, ser mais benéfico, ao menos em certos casos, o recurso à
execução privada (ou, em alternativa, um juízo de cognição prévia para determinar se será ou não
850
reprovação das transmissões da propriedade com função de garantia,2959 a um suposto
limite legal à disciplina convencional da fase patológica da relação obrigacional,2960 ou
apropriado seguir o procedimento de execução ordinário). Já Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 501, manifesta
dúvidas, pois reconhece a ausência de uma demonstração convincente quanto à própria existência do
princípio do monopólio estatal da função executiva (negam a existência desse princípio Massimo Bianca,
Patto cit., pág. 717 e Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 115 – este último alegando que o mesmo é negado pela
possibilidade da cessão de bens ao credor e que a única diferença entre esta figura e o pacto comissório
reside no momento da renúncia à execução – no pacto comissório tal renúncia é preventiva e na cessão é
sucessiva – facto esse irrelevante, porquanto não é de excluir uma cessão contextual ao surgimento da
obrigação e subordinada ao incumprimento do devedor), embora assegure que “il potere di
autosoddisfacimento del creditore può essere ritenuto inammissibile laddove prospetti il rischio di un
approfittamento in danno del debitore”. As principais críticas prendem-se, designadamente, com o facto
de a proibição do pacto comissório decorrer de normas substantivas, como transparece da sua inserção em
normas desta índole e não de carácter processual e, ainda, porque o princípio da exclusividade do
exercício da função executiva por parte do Estado encontra inúmeras excepções (nomeadamente a cessão
de bens aos credores – cfr. art.ºs 831.º a 836.º – o direito de retenção e, em especial no que toca ao
penhor, a possibilidade de venda extraprocessual do bem empenhado – cfr. art.º 675.º – e o pacto
marciano previsto no diploma que regula o penhor financeiro, pelo que Catarina Monteiro Pires, ob. cit.,
pág. 266, rejeita ser este o fundamento do pacto comissório: a este respeito, no direito italiano, Francesca
Fiorentini, ob. cit., págs. 272 e 273, aponta outros exemplos de auto-tutela executiva convencional
reconhecidos por lei, como a compensação voluntária e a anticrese, assegurando que a doutrina, partindo
destes casos, faz uma interpretação extensiva das possibilidades de auto-tutela convencional), podendo a
validade do pacto comissório constituir mais uma (isto sem esquecer que a celebração de um pacto
comissório não coíbe as partes de recorrer aos tribunais). Particularmente incisivo nas críticas é Giuseppe
Minniti, ob. cit., pág. 44 e segs., atenta a faculdade das partes, ao abrigo da autonomia privada,
modificarem ou extinguirem relações jurídicas (mormente através da remissão do crédito não satisfeito) e,
especialmente, a liberdade do devedor dar em pagamento os próprios bens (para já não falar da
possibilidade de venda extrajudicial dos bens empenhados). Rejeita igualmente este entendimento no
âmbito do direito francês pré-reforma de 2006, Philippe Delebecque, L’atribution du bien cit., pág. 133,
alegando que, sendo certo que o pacto comissório permite ao credor dele beneficiário obter um
pagamento rápido e prioritário, não é menos certo que a consagração legal de figuras como a reserva de
propriedade e a alienação fiduciária em garantia permitem questionar a manutenção da interdição, ou seja,
“pourquoi le pacte comissoire resteriat prohibé, dans la mesure, du moins, où il ne procure aucune
avantage excessif au créancier sur son débiteur (…) puisque, spécialement dans le droit des procédures
collectives, on admet toutes les techniques permettant aux créanciers de se placer hors concours
(mécanismes fiduciaires, clauses de réserve de propriété, droit de rétention…), il n’y a plus de raison -
logique – pour condamner les pactes commissoires (raisonnables au regard de la situation du débiteur,
c’est-à-dire sans enrichissement abusif du créancier)”.
2958
Menciona a invocação deste fundamento Angelo Luminoso, ob. cit., pág. 224 e segs., enquanto a
convenção comissória teria eficácia real e efeitos retroactivos, não permitindo sequer ao juiz intervir em
função do devedor em caso de desproporção entre o valor do bem empenhado e o crédito garantido
(discordando, porém, destes argumentos, assegurando que, se assim fosse, os pactos comissórios de
natureza obrigatória seriam válidos, o que não corresponde à verdade).
2959
Partidário desta opinião é Giuseppe Minniti, ob. cit., pág. 46 e segs., para quem a questão do pacto
comissório traduz-se, ao fim e ao cabo, na “inadeguatezza della funzione di garanzia a fondare, sotto il
profilo causale, il trasferimento della proprietà di un bene” (ou, noutras palavras, no facto de este se
tratar de um interesse não merecedor de tutela aos olhos da lei, na medida em que “tutto ciò che il
legislatore richiede è la ragionevolezza del disporre che, radicandosi in un’attribuzione patrimoniale,
l’interesse individuale deve necessariamente esprimere – sotto forma di cause suffisante (interesse alla
controprestazione) o di cause raisonnable (interesse al soddisfamento di una specifica esigenza,
riconducibile alla personalità dell’autore) sia essa prossima o remota”), rematando, em consonância, que
resulta irrelevante o mecanismo utilizado para obter tal efeito, uma vez que “È al profilo causale dell’atto
dispositivo, in altri termini, che si deve guardare, al fine di valutarne la liceità, e non a quello effettule”
(por exemplo, no que especialmente respeita à venda com pacto de resgate, a sua nulidade será
incontestável, sempre que a mesma configure uma alienação em garantia, seja se sujeita à condição
suspensiva do incumprimento do devedor, seja sujeita à condição resolutiva do cumprimento, pois o
elemento temporal da operação não parece “idoneo ad alterare funzionalmente i termini dell’operazione,
che è e resta una alienazione a scopo di garanzia, a prescindire dal momento in cui tala alienazione
svolge i propri effetti”). Nesta conformidade, o ordenamento jurídico tutela, em geral, o interesse na
851
da manutenção da liberdade contratual do devedor,2961 ou, finalmente, na necessidade de
assegurar a coerência do sistema das garantias reais típicas.2962
aquisição de um determinado bem (através da sua imediata aquisição por mero consenso das partes) e do
credor de uma determinada prestação (compaginando-o com a necessidade de tutela de outros credores,
maxime outros credores do devedor), surgindo a proibição do pacto comissório como modo de “impedire
che si possa, per cosi dire, sconfinare da un sistema ad un altro, e tutelare un interesse creditizio
attraverso uno strumento, l’atribuzione di un diritto, qual è quello di proprietà, che il legislatore ha
configurato e trato in un certo modo al fine di garantire la soddisfazione di esigenze di tipo diverso,
nell’ambito di un conflitto di interessi affato alieno alla problematica del credito”. Este argumento,
segundo Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., págs. 67 e 68, é usado na convicção que a ordem
jurídica tutela de modo diverso as posições do proprietário e do credor, atribuindo a cada um deles um
complexo de direitos e deveres diversos, não sendo lícito à autonomia privada adulterar essa tutela (por
exemplo, concedendo a um simples credor determinados poderes reservados ao proprietário). Dá também
conta da invocação deste fundamento Angelo Luminoso, ob. cit., pág. 226 e segs., especialmente por
ausência de um pressuposto essencial dos contratos, qual seja a causa (tese esta rejeitada pelo Autor, por
não existir nenhuma demonstração persuasiva de tal princípio, existindo até normas que parecem indicar
o contrário, especialmente o art.º 1851.º do CCI que consagra a figura do penhor irregular).
2960
É a posição de Anelli (apud Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 122 e 123), de acordo com a qual a
proibição do pacto comissório constitui “l’espressione di un limite alla facoltà di disporre dei privati che
(…) lascia in secondo piano (…) la selezione degli interessi Protettí dalla norma, i quali non possono
essere assunti ad elementi idonei a fornire immediate indicazioni operative, e per l’altro individua un
principio ispiratore – costituito dal disfavore dell’ordinamento verso convenzioni volte a precostituire
forme di executio parata sui beni vincolati a garanzia del cerdito - suscettibile di essere concretizzato, e
sottoposto a verifica, soltanto nell’ambito di un’analisi circostanziata delle varie fattispecie idonee a
perseguire lo scopo di predisporre convenzionalmente un mezzo di attuazione coattiva del credito”,
indicando diversas normas que representariam expressão da impossibilidade de regulamentação
convencional das consequências do incumprimento da relação obrigacional). Para uma crítica desta
orientação, vide Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 123 e segs., para quem, embora reconhecendo a existência
de limites à liberdade contratual das partes na regulamentação das consequências do incumprimento, a
existência de tal princípio genérico é mais do que duvidosa, rebatendo as normas supostamente
concretizadoras de tal princípio (quanto ao art.º 1229.º do CCI – que, supostamente, apenas consentiria às
partes, após a verificação dos factos constitutivos da responsabilidade civil, regulamentar os direitos
relativos às consequências do incumprimento, mas não regular livremente o surgimento da obrigação de
indemnização antes do incumprimento – replica que tal preceito apenas impede “il snaturamento del
vincolo iuris, dato che un accordo di esonero dalla responsabilità privo di ogni limte finirebbe per
rendere solo formale la giuridicità del rapporto”; relativamente ao art.º 2937.º do mesmo Código – que,
em matéria de prescrição, impediria uma disposição ex ante das partes, pois estas não seriam aptas para
assegurar uma adequada ponderação e uma delas poderia ser alvo de abusos da contraparte – contrapondo
que tal norma pretende apenas evitar que “in difetto di un divieto di tal genere l’intero impianto
complessivo dell’istituto della prescrizione ne uscirebbe compromesso”) e enumerando outras que
desmentem a vigência do mesmo princípio (a possibilidade de determinação convencional dos juros
moratórios em momento anterior ao incumprimento da obrigação, a viabilidade de uma subordinação
gradual entre diversas prestações – em que o incumprimento de uma determina a obrigação de cumprir
outra – , a renúncia preventiva a invocar a compensação, a exclusão convencional da responsabilidade
pelos vícios da coisa, a própria cláusula penal e, especialmente, o regime legal do reporte – em particular
o art.º 1551.º que atribui ao credor o poder de apropriação em consequência do incumprimento), assim
concluindo que tal entendimento, ao considerar a existência de uma proibição de atribuição convencional
ao credor do poder de apropriação de um bem do devedor com carácter satisfatório, realiza uma
interpretação extensiva da proibição do pacto comissório.
2961
Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 267, dá conta desta posição, mas refuta-a, contrapondo
exemplos de limites à liberdade de actuação individual consentidos pelo ordenamento (como sucede com
o regime das cláusulas contratuais gerais, das cláusulas limitativas da responsabilidade civil e da própria
cláusula penal).
2962
Neste sentido, Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 132 e segs., afirmando que a função do penhor (e das
demais garantias reais) apenas assume relevo após o incumprimento da obrigação garantida, pois só nesse
momento se manifesta o carácter preferente do seu crédito e, se assim é e se “a seguito
dell’inadempimento, la cosa vincolata fosse già passata in sua proprietà, questi no avrebbe più alcun
interesse pratico a far valere la garanzia”, de modo que “il trasferimento di proprietà, infatti,
comporterebbe necessariamente l’estinzione della garanzia, col risultato di rendere impossibile
852
Relativamente a este último fundamento, há quem alerte para o reconhecimento
legal da validade de uma série de figuras que consagram, inequivocamente,
transferências de propriedade com fins de garantia, salientando que o ponto comum a
todas elas – e o pressuposto da sua licitude – reside na possibilidade de controlo do
eventual excedente entre o valor do bem dado em garantia e do crédito assegurado o
que, a contrario, significa que a proibição do pacto comissório se justifica para impedir
a obtenção de semelhante resultado.2963
Para além destas formulações que poderemos apelidar de monistas, por
reconduzirem a ratio da proibição a um único facto, existem outras segundo as quais a
justificação radica em mais do que uma causa,2964 designadamente em vários interesses
de carácter geral,2965 em diversos ângulos de protecção do devedor2966 ou na tutela deste
l’operatività della preferenza nella quale si sintettiza il suo contenuto caratteristico”. Nesta
conformidade, “l’incompatibilità logica tra garanzia tipica e patto comissorio, proprio la preocupazione
che una patto comissorio tipico potesse diventare di stile ha consigliato il legislatore nel senso di
sancirne la nullità: la stipulazione comissoria, accedendo ad una garanzia tipica ne farebbe venir meno
il proprium, rendendo inutile quest’ultima”, rematando que, quando os acordos negociais relativos às
garantias reais as desviem do seu intuito fundamental de satisfação preferencial em sede de execução –
como sucede com o pacto comissório – os mesmos terão que ser inválidos. Segundo Catarina Monteiro
Pires, ob. cit., pág. 265, esta posição encontra um antecedente histórico num escrito de Chironi de 1917
(intitulado Ipoteca e patto commisorio, in Revista di diritto commerciale, 1917, Vol. II, pág. 706 e segs.,),
no qual o Autor qualifica o pacto comissório como uma garantia real atípica, criadora de uma forma de
preferência imperfeita e indesejável nos quadros do sistema – ou seja, o pacto comissório seria uma
alienação em garantia ilícita -, com a consequência de a proibição dever ser aplicada a qualquer pacto
apropriativo e meramente obrigacional (a Autora refuta esta visão, assegurando que “estranhar-se-ia que
o legislador tivesse tido interesse em criar uma norma autónoma quanto ao pacto comissório real,
proibindo-o, quando a normal solução legislativa quanto à criação de direitos reais atípicos é a de que
os mesmos são dotados de eficácia meramente obrigacional, por via do artigo 1306.º n.º 1 do CC”).
2963
Nestes termos se exprime, Mauro Bussani, Il problema del patto comissorio, Giappichelli Editore,
Torino, 2000, pág. 119 e segs., aludindo à venda com pacto de resgate, à possibilidade de conversão do
penhor de créditos - que tenham por objecto dinheiro ou outros bens fungíveis - num penhor irregular, ao
próprio instituto do penhor irregular, ao reporte com funções de garantia e ao pacto marciano. De acordo
com este Autor, a interdição das convenções comissórias é o reflexo de um limite, mais amplo, imposto à
liberdade contratual em matéria de responsabilidade patrimonial, no sentido da necessidade de um
controlo sobre a medida em que o património do devedor se encontra sujeito à função de garantia. Neste
contexto, o Autor reconduz a problemática do pacto comissório à coordenação da proibição com o
sistema no seio do qual ele se integra, identificando os mecanismos idóneos a tutelar os interesses do
credor (confrontado com o incumprimento do devedor) e do devedor e dos seus credores (dirigidos à
reaquisição da propriedade do bem), salvaguardando sempre um equilíbrio entre o valor do crédito
garantido e do bem objecto do penhor e tendo sempre presente que “il patto comissorio vietato risulta
quello che ha per obiettivo un trasferimento di proprietà a garanzia di un credito, senza che sia previsto
un controllo sull’eventuale eccedenza del valore del bene rispetto a quello del credito garantito, con
l’eventuale e conseguente abbligo a carico del creditore di riversare la differenza allo alienante”,
concluindo pela licitude das alienações em garantia que se alicercem no funciomento do pacto marciano.
2964
Neste âmbito se insere também a posição de Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 271 e segs., para
quem três são as razões principais que motivam a consagração legal da proibição, desde logo, “a analogia
entre o negócio usurário e o acordo comissório. Depois, a difícil harmonização deste acordo com o
princípio de equilíbrio ou de controlo da medida de satisfação do credor nas garantias reais típicas, em
prejuízo do devedor e, também dos seus credores (comuns ou com garantia especial). Finalmente, a
danosidade social que o recurso sistemático ou ilimitado a um pacto apropriativo desequilibrado é capaz
de provocas”: com base nesta ratio, a Autora considera nulo todo o acordo que corresponda a “um
mecanismo de autosatisfação apropriativa incontrolada por parte do credor”, o que sucederá sempre que
se verifique “a ausência de mecanismos que assegurem, com efectividade e actualidade, que o valor do
bem apropriado não é superior ao valor da dívida garantida ou que, sendo este o caso, o credor não se
apropriará do valor em medida excedente à satisfação do seu crédito” PIRES 271
2965
É a posição de Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 501, ancorando a interdição legal nos interesses gerais de
evitar uma desproporção entre o património do devedor e a função de garantia e, ainda, de proibição – ao
menos tendencial – de auto-satisfação do credor. Neste contexto, a convenção comissória “in quanto
853
último e dos seus outros credores:2967 na nossa praça, a sustentação da existência de uma
causa plúrima para a proibição das convenções comissórias também possui adeptos.2968
854
O nosso juízo é o de que a interdição legal não pode apoiar-se (ou, ao menos,
não pode apoiar-se unicamente) na necessidade de tutela do devedor, uma vez que tal
justificação implicaria a anulabilidade (e não a nulidade) das convenções a ela
contrárias, não apenas por não ser essa a sanção tipicamente prevista para a protecção
do contraente mais débil, mas ainda porque a nulidade permite que o próprio
beneficiário de tal (suposto) aproveitamento a pudesse invocar em seu favor (o que seria
contraditório com o pretenso intuito protector da norma em exegese).
Advogamos, por isso, que o radicar a proibição – apelando, para o efeito, ao
elemento sistemático, particularmente relevante num ordenamento, como o nosso, que
desconhece, ao menos expressamente e no quadro do Código Civil, a licitude da
utilização da propriedade com funções de garantia – reside na necessidade de respeitar a
tipicidade dos direitos reais de garantia (e, em especial, de reprimir, por via indirecta, o
uso da propriedade com finalidades garantísticas) e das causas legais de preferência
(bem como a respectiva hierarquia), a qual poderia ser facilmente iludida mediante o
recurso àquele tipo de convenções.
Ainda que associada a uma garantia típica (é, diga-se, esse o único domínio em
que a proibição se encontra legalmente consagrada – cfr. art.ºs 678.º e 694.º), a
convenção comissória é susceptível de colidir com aqueles princípios basilares do
ordenamento, nomeadamente ao contribuir para a eliminação da tipicidade das causas
legais de preferência e, ainda, para a subversão da hierarquização destas definida por lei
(com efeito, o credor preferente que lograsse obter, associado à sua garantia, um pacto
comissório seria pago primeiramente, ainda que a sua causa de preferência não ocupasse
o lugar cimeiro na hierarquia legal).
Este último considerando concorre para que a proibição legal não possa
considerar-se totalmente alheia à tutela dos demais credores do empenhante, seja dos
diventare suo debitore, esige, per la concessione del credito il maggior vantaggio possibile, imponendo
l’aggiunzione del patto”, particularmente no caso do penhor, uma vez que “per l’oggetto costituito in
pegno per il quale non può accadere che più garanzie si costituiscono sopra di esso”), enquanto no
segundo radica na necessidade de tutela dos demais credores e no desvirtuamento das garantias reais
quando a elas esteja associada uma convenção comissória (pois “il pegno e l’ipoteca tendono a fare si che
il creditore recuperi il denaro prestato, e non altro che il suo denaro (…) sarebbe contrario alla esigenza
del contratto reale il patto per mezzo del quale il creditore si potesse appropriare del mobile o
dell’immobile che generalmente valgano molto di più”), entendimento este que encontra acolhimento, por
exemplo, no aresto do Tribunal de Trento de 18/2/1975, citado e parcialmente transcrito por Fulvio
Gigliotti, ob. cit., pág. 63, onde se pode ler que “il divieto è comminato in vista della finalità di
proteggere il debitore da indebite pressioni del creditore ed, in pari tempo, di tutelare gli altri creditori
rispetto alla garanzia patrimoniale costituita dai beni del debitore medesimo”. Esta posição é contestada
por Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 71 e segs., (realçando que “quando la legge si propone di tutelare
unicamente interessi individuali appresta degli strumenti la cui operatività è rimessa all’apprezzamento
del soggetto tutelato, che può decidere di non avvalersene. Non così, invece, ove l’interesse tutelato sia
superindividuale, ancorché la sua (concreta) lesione dipenda da comportamenti negoziali dei privati”),
por Massimo Bianca, Il divieto cit., págs. 216 e 217 e Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 274 (notando que
esta tese não explica o porquê da violação do pacto comissório ser sancionada com a nulidade, sanção
esta diversa daquelas – anulabilidade ou ineficácia - que a ordem jurídica comina para tutela dos
interesses particulares do contraente mais fraco ou de terceiros).
2968
É o caso de Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 94 e segs., para quem a ratio da proibição “é
plúrima e complexa, relevando, a um tempo, o propósito de proteger o devedor da (possível) extorsão do
credor e a necessidade que corresponde a um interesse geral do tráfego, de não serem falseadas as
regras do jogo, através da atribuição injustificada de privilégios a alguns credores, em objectivo (seja
ele efectivo ou potencial) prejuízo dos demais”, desembocando a generalização do pacto comissório “na
institucionalização de castas entre os credores, fora das vias transparentes e objectivas que justificam as
excepções ao princípio da par condicio creditorum” (Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 268, salienta
ainda como no Acórdão do STJ de 21 de Dezembro de 2005 foi invocada esta fundamentação da
proibição legal).
855
credores comuns (evitando a diminuição do património à sua disposição), seja dos
preferentes (cujas causas de preferência seriam ser suplantadas pelo beneficiário dos
pactos comissórios).
Aceitamos, por isso, que a inibição legal das convenções comissórias assenta em
interesses supra privados (nomeadamente de protecção de uma das partes na relação
contratual), isto é, na valoração negativa que as mesmas merecem ao ordenamento
jurídico vigente, em razão da contrariedade a alguns dos seus princípios fundamentais
(mais precisamente a tipicidade dos direitos reais e das causas legais de preferência e,
acessoriamente, a par conditio creditorum) e, reflexamente, na protecção do
empenhante e dos seus credores.
2969
Salienta a interligação entre o âmbito da proibição do pacto comissório e o fundamento daquela
interdição (“só a partir da compreensão das razões da interdição legal do pacto é que se pode
determinar se as normas que o proíbem são ou não o afloramento de um princípio geral e, no caso
afirmativo, qual o alcance deste”), Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., pág. 64. Que a posição
adoptada acerca da razão de ser da proibição condiciona a solução a dar relativamente ao âmbito de
aplicação da mesma é exemplarmente demonstrado por Mauro Bussani, Il problema cit., pág. 117 e segs.,
do seguinte modo: caso se entenda que o fundamento da interdição reside na inderrogabilidade do
procedimento executivo, aquela não alcança os acordos desvinculados da constituição de garantias reais
típicas, os chamados pactos comissórios autónomos; para quem retenha que a razão de ser da norma
repousa na necessidade de protecção do devedor ou dos seus outros credores, dela exorbitaram os pactos
economicamente equilibrados ou que prevejam a venda do bem a preço de mercado, assim como aqueles
nos quais o bem é alienado por um terceiro em garantia de um débito assumido por outrem; por último, se
o motivo determinante da proibição radica na circunstância de o devedor suportar o duplo risco de
desproporção entre o valor do bem dado em garantia e do crédito assegurado e, ainda, do perecimento do
bem, a ela escapam as convenções nas quais a transferência da propriedade do bem para o credor seja
contemporânea do nascimento da obrigação garantida ou nas quais se preveja a assunção do risco de
perecimento do bem por parte do adquirente. Em termos parcialmente discordantes, Catarina Monteiro
Pires, ob. cit., pág. 263, entende que “a discussão em torno da razão de ser da sanção é largamente
improfícua, desviando-nos do apuramento do fim da proibição”.
2970
Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 270, menciona que, por ser assim, algumas decisões judiciais
afirmam que a inibição legal não vigora quando se comprove que a obrigação já se tivesse extinto no
momento da alienação do bem.
2971
Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 271, considera, por isso, nulos os pactos comissórios associados a
um contrato de mútuo que não preveja um prazo para restituição da quantia mutuada, bem como daqueles
em que não se indique o montante devido.
856
tradicional ou real), mas um direito a obter a transmissão desse bem ou, noutros termos,
o devedor assume apenas a obrigação de transferir a propriedade do bem para o seu
credor em caso de inadimplemento.2972
A generalidade da doutrina nacional2973 e estrangeira pronuncia-se pela
invalidade deste tipo de convenções, especialmente tendo em conta a probabilidade de
causar os mesmos prejuízos do pacto com eficácia real.2974
2972
Enquadram-se no âmbito dos pactos comissórios obrigacionais os contratos promessa de compra e
venda com pacto de resgate, sempre que se demonstre que o mesmo dissimula um mútuo com pacto
comissório, de modo a que “il promittente venditore, in relazione ad un debito suo o di un terzo nei
confronti del promittente compratore, si obblighi a stipulare il contratto definitivo nel caso nel quale
l’obbligazione non venga estinta” – Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 157 e 158.
2973
A favor da invalidade do pacto comissório obrigacional pronunciam-se Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ
n.º 58, pág. 218, muito embora admita a validade do pacto de acordo com o qual se reconheça ao credor
um crédito à transmissão da propriedade, desde que esse efeito não se encontre relacionado com a não
satisfação do credor, ou seja, se aquele crédito compreender, não apenas a hipótese de incumprimento,
mas também a hipótese de o credor ser tempestivamente satisfeito (justificando a validade deste pacto
com o facto de não estar sujeito aos inconvenientes do pacto comissório, representando antes um mero
contrato-promessa, idêntico a tantos outros), Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 718,
Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 33, Sofia Maltez, ob. cit., pág. 58, nota 160, Isabel Matos, ob. cit., pág. 94
(por entender que a validade deste tipo de cláusulas constituiria uma forma demasiado fácil de contornar a
proibição legal), Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 272 e Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição
cit., págs. 70 e 71. Este último Autor aplaude uma decisão judicial que procedeu à qualificação de um
contrato-promessa como pacto comissório, por entender que “um resultado económico semelhante ao que
se pretende evitar é conseguido pela celebração de um contrato-promessa graças à possibilidade de
execução específica”, especialmente quando, como no caso em questão, “o contrato-promessa parece ter
tido apenas a função de garantir o cumprimento do mútuo anteriormente celebrado. Não só não houve
qualquer preço real e efectivamente recebido, como, segundo o protocolo de acordo, o credor e
promitente-comprador apenas poderia exigir a execução do contrato-promessa se a dívida não tivesse
sido paga num determinado prazo” (qualificando tal pacto como nulo e não como simples negócio
simulado).
2974
Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 505, relativiza o facto de o efeito real se produzir apenas após a
verificação do incumprimento e exigir uma ulterior manifestação de vontade e, por outro lado, de a
simples promessa de transferência expor o credor ao risco de alienação do bem a terceiro por parte do
devedor (risco evitado se a transferência estiver sujeita a uma condição suspensiva), contrapondo que “la
mancanza di un traferimento automatico è perfettamente supplita dall’amissibilità di una esecuzione in
forma specifica dell’obbligo di contrarre”, no mesmo sentido se pronunciando Massimo Bianca, Patto
cit., pág. 716 (distinguindo esta promessa de transferência para o caso de incumprimento do devedor da
cláusula penal, uma vez que naquela existe uma predeterminação da liquidação de uma parcela
individualizada do património do devedor em favor do credor). Já Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 158 e
159, embora se pronuncie pela invalidade de semelhantes convenções quando versem sobre um objecto já
onerado com uma garantia (com o argumento que estas evitam o recurso ao processo executivo e, assim, a
possibilidade de produção de efeitos das garantias reais típicas, considerando irrelevante a circunstância
de a atribuição do bem, em caso de incumprimento, não ser automática), não comunga da mesma opinião
relativamente aos casos em que o bem em causa não esteja abrangido por nenhuma garantia real. Também
Francesca Fiorentini, ob. cit., págs. 264 e 265 mostra-se igualmente contrária à admissibilidade do pacto
obrigacional, alegando que este produz os mesmos efeitos da convenção interdita por lei, conforme se
atesta pela possibilidade de o credor recorrer à execução específica em caso de incumprimento do acordo
por parte do devedor (não deixa, porém, de citar um Autor defensor da posição contrária, invocando que
no pacto obrigatório não se verifica qualquer transferência do direito e que esse é o pressuposto da
convenção comissória proibida por lei). Finalmente Massimo Bianca, Il divieto cit., pág. 178 (além de
noticiar a posição conforme da jurisprudência), escreve que “il patto commissorio presenta, sia nel caso
di un’efficacia reale che in quello di un’efficacia obbligatoria, l’identico contenuto, di attribuzione di un
determinato bene a diretto soddisfacimento del creditore per l’eventualità che l’obbligazione non sia
adempiuta”, recusando a objecção relacionada com a ausência de proibição legal expressa, contrapondo
que “la proibizione di un certo risultato, individuato attraverso il mezzo che lo realizza direttamente, non
esclude che il giudizio di illeceità, qualificandole come fraudolente, quelle combinazioni di negozi che
raggiungono ugualmente il risultato proibito” (quando muito, admite que a diferença entre os pactos reais
e obrigacionais resida na possibilidade de, neste segundo caso, o devedor, praticando um acto de
857
4.3.2 - O pacto comissório ex intervallo
disposição – acto esse ilícito - prejudicar o direito do credor a obter um determinado bem: todavia, este
mesmo acto de disposição poderá ser praticado pelo devedor vinculado por pacto com eficácia real antes
do vencimento da obrigação assegurada).
2975
Uma vez que lei não o diz expressamente, discute-se se o pacto comissório acordado em momento
anterior ao da constituição da garantia se deverá considerar nulo, parecendo que a resposta a dar seja a
mesma que se dê a respeito dos pactos autónomos – neste sentido, Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 166 e
167.
2976
Guillarte Zapatero, Comentario cit., págs. 461 e 462, alude a duas modalidades diversas, uma em que
o pacto é celebrado no momento da constituição da garantia, embora o crédito garantido fosse anterior; a
outra, é aquela em que o pacto comissório é estipulado após o surgimento da obrigação garantida e a
constituição da garantia: em qualquer dos casos e pese embora o risco de simulação (colocando no acordo
uma data posterior à da constituição da garantia e/ou da obrigação, quando na realidade todos os negócios
foram celebrados na mesma data), o Autor não o considera suficiente para, de modo geral, invalidar este
tipo de convenções (sem prejuízo de, quando tal simulação for provada, privar o acordo de qualquer
eficácia).
2977
Em termos análogos se exprime o art.º 2744.º do CCI. Propendem para esta solução Vaz Serra,
Penhor cit. in BMJ n.º 58, págs. 218 e 219, por entender que a necessidade de protecção do devedor face
às suas próprias necessidades económicas se faz sentir mesmo após a contratação da garantia e mesmo
após o vencimento do crédito garantido, pois ainda nesse momento poderá o empenhado obter alguma
vantagem em troco da celebração do pacto comissórios (por exemplo, uma dilação do prazo ou a
admissibilidade de pagamento em prestações), Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., pág. 69
(assegurando que os riscos de usura e de exploração da fragilidade do devedor não se manifestam apenas
no momento da concessão do crédito), Isabel Matos, ob. cit., págs. 89 a 91 (atendendo ao facto de o
devedor poder estar com dificuldades em cumprir as suas obrigações para com o credor, sujeitando-se,
por isso, à estipulação de um pacto comissório como condição de obtenção de uma dilação do prazo de
cumprimento da obrigação), Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 272, Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 33,
Sofia Maltez, ob. cit., pág. 60, nota 164, Faggella, ob. cit., pág. 145 (acrescentando ser indiferente estar
ou não vencido o crédito garantido, mas admitindo a possibilidade de o devedor vender o bem empenhado
ao credor), Chironi, ob. cit., págs. 535 e 536 (afirmando que “qualunque sia il tempo in cui è stipulato il
patto è colpito da invalidità”, alegando que a liberdade do empenhante está tolhida, por exemplo, se, para
obter uma dilação do prazo, aceita subscrever uma cláusula comissória), Guillouard, ob. cit., págs. 183 e
184 (fundamentando-se no facto de a lei francesa proibir em termos absolutos os pactos comissórios e por
entender que as razões da interdição estão igualmente presentes, eventualmente com menor intensidade,
neste tipo de convenções), Troplong, ob. cit., pág. 109, Piedlièvre, Les sûretés cit., págs. 186 e 187,
Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 75 (por entenderem que a pressão sobre o devedor apenas cessa
quando este liquide a dívida, mas reconhecendo ser a posição contrária a dominante na jurisprudência,
imaginando que tal posição se deve antes à necessidade de minorar os efeitos de uma proibição por
muitos considerada desactualizada), Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 294 (entendendo ser
indemonstrável que o argumento da maior liberdade do devedor após a constituição da garantia), Diez-
Picazo, ob. cit., pág. 484 (pois, concedendo que o empenhador já não se encontra sob pressão do credor,
tal estipulação não deixaria de representar um prejuízo para os demais credores, para além de representar
um risco de simulação quanto à data da efectiva celebração do pacto), Bustos Pueche, ob. cit., pág. 566 e,
com dúvidas, Simler e Delebecque, Droit civil cit., pág. 465, bem como o §1229 do BGB (que, ao
estabelecer a proibição do pacto comissório, veda este tipo de convenções até ao momento em que o
credor adquira o direito de venda do bem empenhado, ou seja, até à data do vencimento do crédito
garantido). Em especial Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 50 e segs., rebate o argumento da suposta
ausência de coação sobre o devedor, alegando que, pelo contrário, “chi il prestito ha già ottenuto è legato
858
o vencimento da obrigação garantida (a validade das convenções acordadas após este
momento pode fundamentar-se, por identidade de razão, no reconhecimento legal da
dação em pagamento).2978
Os defensores da legitimidade de tal convenção apoiam-se, sobretudo, na
ausência de pressão sobre o devedor no momento da sua celebração, ao invés do que
sucede nos pactos comissórios acordados ab initio.2979
mani e piedi al suo creditore che gli può molto più agevolmente imporre la aggiuzione del patto: la maior
ratio prohinitionis è evidente”, enquanto Philippe Delebecque, L’atribution du bien cit., pág. 127 e segs.,
apesar de notar a tendência jurisprudencial no sentido da admissibilidade dos pactos comissórios ex
intervallo, critica-a, advertindo que “le débiteur esta u contraire plus affaibli pendant cette période et
plus incité de transiger avec son créancier dans des conditions qui ne lui sont pas forcément favorables”.
2978
Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 718, Catarina Monteiro Pires, ob.
cit., pág. 272 e Isabel Matos, ob. cit., págs. 91 e 92, sempre que a celebração do pacto funcione como uma
contrapartida pelo facto de o credor conceder ao devedor determinadas vantagens (por exemplo, uma
dilação do prazo). Quando tal não suceda e como afirma a última Autora mencionada, “não exclui nem
prejudica a possibilidade e licitude da dação em pagamento mesmo que tenha por objecto exactamente a
mesmo coisa que tenha sido dada em garantia. O que se proíbe é o pacto que preveja a transmissão da
coisa para o credor no caso de o devedor não cumprir, seja esse pacto celebrado em simultâneo ou
posteriormente à constituição da garantia. Não está, pois, vedado que o credor e devedor acordem na
transmissão da coisa para o credor em pagamento, extinguindo-se a obrigação do devedor por dação em
pagamento”. Por outro lado e como salientam os dois primeiros Autores citados, o pacto comissório, por
sua própria natureza, só se compreende quando anterior ao vencimento do crédito (o próprio art.º 694.º
dispõe “no caso de o devedor não cumprir”). Conforme se referiu anteriormente, o CCB admite
expressamente esta possibilidade no seu art.º 1428.º, sendo a mesma defendida, no direito espanhol, por
Reglero Campos, Ejecución cit., págs. 435 e 436 (alegando não existir já uma pressão sobre o devedor,
uma vez que “El hecho de que el acreedor vaya a ejecutar el bien sujeto a la garantía no puede
considerarse, obviamente, como una circunstancia que implique el aprovechamiento de una situación
angustiosa del deudor. Lo único que hace el acreedor es ofrecer un medio solutorio distinto del pago
(dación en pago) que el deudor podrá aceptar o no” e constatando que efeitos análogos se produzirão se
o credor vier a adquirir o bem em sede de execução judicial), Veiga Copo, La prenda de acciones cit.,
págs. 415 e 416 (alegando que nada impede que a convenção comissória seja celebrada após o
vencimento do penhor – tal como sucede com a dação em pagamento – devendo, porém, exigir-se a
demonstração que a convenção é posterior ao vencimento da garantia: se assim for, “desaparecen las
causas que desaconsejan este pacto (…) nada constriñe al deudor a aceptar tal pretensión, y por otra
parte, este pacto es quizás más beneficioso para el deudor que la venta forzosa del bien”, ou seja, “una
vez vencida la obligación, el acreedor y el deudor son libres de convenir que el primero se quede con la
cosa en pago” - invocando este último Autor em abono da sua posição o exemplo do direito alemão) e
Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs. 1866 (admitindo a validade do acordo, celebrado após o vencimento
da obrigação garantida, nos termos do qual o credor se dá por pago através da entrega do bem
previamente onerado, embora ressalve a eventualidade de ocorrência de prejuízos para os outros credores
do devedor, cuja reparação pode ser exigida através do exercício dos mecanismos legalmente previstos
para impugnar as adjudicações fraudulentas). Pelo contrário, Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 50 e segs.,
advoga, mesmo que o pacto tenho sido celebrado após o vencimento da obrigação garantida, o credor
“rinuncia temporaneamente a fare valere giudizialmente il suo credito, concedendo una dilazione più o
meno longa col miraggio di locupletarsi di un oggetto do valore molto superiore al suo credito”, de modo
que, tal como quando o pacto é celebrado antes do vencimento da obrigação garantida, o devedor “ottiene
una dilazione non contando se questa sposti il termine originario oppure ne istituisca uno nuovo, dopo
che il primo è venuto infruttuosamente: entrambi i casi dunque esiste quella violenza della serena volontà
del debitore che la legge ha sempre voluto evitare” (o Autor admite que o entendimento contrário poderá
ser fruto da redução da ratio da proibição à necessidade de protecção do devedor, esquecendo o intuito de
reprimir a usura e de evitar o desvirtuar das garantias reais).
2979
Admitem a validade deste tipo de convenções, Baudry-Lacantinerie, ob. cit., págs. 132 e 133,
(argumentando que o devedor já não se encontra sob a pressão do credor, não podendo a lei presumir que,
neste caso, o consentimento do devedor não tenha sido livre, mas sem prejuízo de, quando esse
consentimento seja viciado, a convenção ser anulável nos termos gerais e da invalidade de negócios
fraudulentos, nomeadamente quando a cláusula seja acordada no momento da celebração do contrato de
penhor e redigida posteriormente), Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 120 (precisando que a convenção
será válida, quer tenha sido celebrada antes, quer tenha sido celebrada depois do vencimento do crédito
859
4.3.3 - O pacto marciano
assegurado, por entenderem não estar o empenhador na dependência do credor, podendo defender os seus
interesses e recusar cláusulas demasiado onerosas para si), Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 49 e Salvatore
Romano, Natura giuridica del pegno di crediti, Ist. Edit. Scientifico, Milano, 1928, pág. 42 (ambos
alegando que, após a celebração do contrato de penhor, o devedor deixa de estar na dependência e sob
pressão do credor), Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 155 (precisamente com base na ausência de pressão
sobre o devedor após a celebração do contrato), Mirabelli, ob. cit., pág. 447 (afirmando que “quando il
contratto ha avuto luogo, divenuto il debitore libero da ogni costringimento, ne potrebbe aver danno, se
gli si impedisce di cedere in pagamento al creditore la cosa pignorata a quel prezzo che reputa
conveniente ai suoi interessi o pure autorizzarlo a venderelo amichevolmente. Se egli può venderlo ad
altri, a suo talento, perchè toglierli la facoltà di fare il contratto col creditore? Una protezione eccessiva
si cangarebbe in causa di danno di colui che s’intende proteggere”), , Reglero Campos, Ejecución cit.,
págs. 434 e 435 (argumentando que “la peor situación del deudor se verifica en el momento en que tiene
la necessidad de obtener aquella prestación, y que una vez obtenida el riesgo se traslada al acreedor
(menor valor de venta de la cosa dada en garantía, insolvencia del deudor en caso de no obter una total
satisfación del derecho de crédito con la venta de aquélla, etc.), desaparecen las causas que aconsejan la
prohibición del pacto comissorio” e, ainda, que tais convenções não são directamente proibidas por lei,
devendo por isso ser enquadradas no âmbito do princípio geral da autonomia negocial, até porque muitas
vezes serão mais favoráveis para o devedor do que o recurso a uma venda judicial. Todavia, o Autor
assume o risco de possíveis simulações quanto à data da celebração das convenções comissórias, mas
propõe combater essas possíveis fraudes exigindo a comprovação em documento autêntico ou autenticado
– cfr. Reglero Campos, El pacto comisorio cit., pág. 267), Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág.
412 (invocando o argumento que o CCE, ao contrário do italiano e do português, não proíbe
expressamente as convenções celebradas posteriormente à constituição da garantia e, ainda, afirmando
que a generalização da proibição “resulta discutible en alguna medida, pues no siempre determinará un
perjuicio injustificado para el deudor”), Priego Fernández, ob. cit., págs. 526 (estabelecendo um
paralelismo com a dação em pagamento, figura perfeitamente lícita), Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs.
1866 (uma vez que “cuando se conviene en los momentos señalados, al no concurrir las adversas
circunstancias de las que deriva el riesgo de perjuicios para el deudor, éste no aparece constreñido
inevitablemente a su asunción”), Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 705 e 706 (reconhecendo,
porém, o risco de simulação, traduzida na pré-datação da convenção que, afinal, teria sido concluída na
mesma data da garantia; por outro lado, aceita que a própria letra da lei aponta no sentido da proibição
dos pactos ex intervallo – ao estabelecer uma interdição tout court -, mas entende que estes escapam ao
espírito da mesma, devendo antes ser enquadrados no âmbito do princípio geral da liberdade contratual),
Cordero Lobato, Comentario cit., pág. 2138 (pronunciando-se a favor da validade dos pactos “que, aun
entrañando una apropriación, se producen después de la concesión del credito”, sem prejuízo da
possibilidade de anulação por parte dos demais credores, em caso de fraude) e Lisanti-Kalczynsky, ob.
cit., pág. 208. Porém, a generalidade destes Autores asseguram que a convenção deverá ser anulada
quando, em fraude à lei, seja acordada no momento da celebração do contrato e a sua redacção seja
retardada alguns dias – vide, entre outros, Ancel, ob. cit., pág. 116, Weil, ob. cit., págs. 95 e 96, Legeais,
Sûretés 1999 cit., pág. 265 (citando decisões judiciais nesse sentido), Théry, ob. cit., pág. 328 e Puig
Brutau, ob. cit., pág. 45 (apenas se a convenção for posterior ao vencimento da dívida garantida), Reglero
Campos, Ejecución cit., págs. 434 e 435 e Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 208, nota 697 (assegurando
ambos que para evitar este risco bastará exigir a aposição de data certa a este tipo de convenções) e
Daniel Fasquelle, ob. cit., pág. 35 (noticiando ser esta a posição maioritária da jurisprudência, admitindo
assim que devedor e credor acordem que, em caso de incumprimento, este último adquira o bem onerado
ou que o possa alienar sem autorização judicial e sem observância de toda a tramitação legalmente ditada
para o efeito. Todavia, o Autor esclarece que se a convenção, embora constante de um documento
separado daquele em que se formalizou a constituição da garantia, for contemporânea deste, se encontrará
abrangido pela proibição). Já Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág. 734, realçam como a
jurisprudência francesa, mesmo anterior à reforma de 2006, admitia a mesmo a validade do pacto
comissório ex intervallo, com o argumento que, após a celebração do contrato, o devedor não se
encontraria em situação de debilidade (no mesmo sentido, Théry, ob. cit., pág. 328).
860
Uma outra hesitação prende-se com a validade do chamado pacto marciano,2980
podendo este ser definido como a convenção pela qual “em caso de incumprimento, o
bem dado em garantia transfere-se ao credor, mas este é obrigado a pagar ao devedor
uma quantia que corresponde à diferença entre o montante da dívida não paga e o
valor do bem”,2981 apresentando como uma alternativa crível à venda coactiva do bem,
tendo em conta que desta resulta normalmente um valor inferior ao seu valor
efectivo.2982
Este acordo apresenta inegáveis semelhanças com o pacto comissório, dele se
distinguindo pela circunstância de o credor se encontrar obrigado a entregar o excedente
do valor da coisa sobre o seu crédito e, ainda, de a avaliação do bem, para esse efeito,
caber a um terceiro imparcial2983 (parecendo não bastar que tal avaliação seja efectuada
por acordo das partes):2984 com efeito, se avaliação do bem não for rigorosa e objectiva,
2980
Esta designação parece resultar de a mesma constar de uma consulta ao jurisconsulto Marciano,
constante do Corpus Iuris Civilis, mais concretamente no Digesto 20,1,16,9 (cfr. Isabel Matos, ob. cit.,
pág. 82).
2981
Esta noção é de um Autor italiano citado por Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., pág. 70
(em termos análogos, Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 155, definindo-o como “il patto com cui si conviene
che, in caso di inadempimento, la cosa data in garanzia passi in proprietà al creditore, ma nei limiti
della corrispondenza di valore della cosa com l’ammontare del crediro, secondo una valutazione fatta da
un terzo, e, perciò con l’obbligo del creditore di versare al debitore un conguaglio per l’(eventuale)
eccedenza”).
2982
Salienta esta vantagem Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 505.
2983
A este respeito Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 505, sustenta que a avaliação da coisa deverá ser
atribuída a um terceiro designado de comum acordo entre as partes ou, em alternativa, de acordo com
critérios previamente fixados. Ao invés, não retém suficiente “una stima preventiva al futuro eventuale
inadempimento, tale da precludere la prova di una successivamente intervenuta sproporzione tra valore
del bene e ammontare del debito garantito”, nem tão pouco “una causale equivalenza tra valore del bene
e debito garantito, non derivando da ciòun diritto del debitore a un controllo dei poteri autosatisfattivi
del creditore” (em termos aproximados, Massimo Bianca, Patto cit., pág. 718).
2984
Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., pág. 70 e segs, entende não bastar para a qualificação
de uma convenção como pacto marciano o facto de existir uma referência ao valor real do bem e à
obrigação de restituir a diferença pelo credor, sendo antes imperativo “um mecanismo neutro e objectivo
de avaliação do valor do bem no momento do incumprimento, o qual consistirá na nomeação de um
terceiro como avaliador. Não pode, contudo, ser suficiente a avaliação preventiva do bem pelas partes
ou a mera referência, no pacto, a um valor real que nada garante ser verdadeiro e não ter sido antes
extorquido pelo credor ao devedor, abusando da posição de debilidade e vulnerabilidade económicas em
que este se encontra”. Já Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 430 e segs., depois de constatar que a
proibição do pacto comissório “no debe alcanzar a aquellos pactos de adquisición que invistan al
negocio de una evidente e indudable commutatividad. Ello ocurrirá cuando se pacte que, en caso de
impago por el deudor, el acreedor podrá adquirir la cosa, siempre que el precio (o la contraprestación)
no se identifique con el valor de la prestación debida, sino que se acuerde su fijación por mecanismos de
evaluación o tasación de carácter objetivo” (ou, noutros termos, “si para evaluar la cosa gravada existen
medios objetivos y seguros, de forma que su precio pueda efectivamente fijarse al incumplimiento de la
obligación, no existe razón para que deba rechazarse el pacto por el que se establezca que el acreedor, si
el deudor incumple, la haga suya por lo que valga realmente (con abono de la eventual diferencia en
más)”), não admite que entre tais mecanismos possa caber a fixação do preço por acordo das partes,
mesmo que este preço seja superior ao valor da prestação devida, porquanto tal previsão “puede esconder
con facilidad prácticas fraudulentas” (em termos aproximados, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs. 1865 e
1866, salienta como “existe riesgo idéntico al que se deriva del propiamente comisorio, pues, por las
mismas razones que fuerzan el deudor a admitir éste, puede verse constreñido a consentir que, aun
siendo muy superior, se fije una valoración de la cosa igual o menor al importe de la deuda”). Guillarte
Zapatero, Comentario cit., pág. 460, mostra uma maior abertura pois, apesar de considerar que a avaliação
pelos interessados no momento da constituição da garantia apresenta os mesmos riscos – apropriação, por
parte do credor, de um bem de valor notoriamente superior ao valor do seu crédito - de um pacto
comissório, acrescenta “generalizar sin más la ineficacia del expresado acuerdo, aunque se ponga de
manifiesto que la valoración fue ponderada y justa, puede resultar contrario a los propios y verdaderos
861
o mecanismo de extinção da obrigação tende a aproximar-se perigosamente das
convenções comissórias.
Alguns admitem a validade deste tipo de convenções, tendo em conta a
inexistência do risco de o credor se locupletar com a divergência entre o valor do bem e
o montante do seu crédito (porquanto essa eventual diferença terá que ser restituída ao
devedor)2985, o facto de o mesmo não ser expressamente mencionado na norma que
deseos de los interesados, cuya decisión aparece sustituida por una solución fundada en circunstancias
carentes de realidad”.
2985
A favor da validade da convenção marciana, argumentando que tal pacto impede o aproveitamento do
estado de necessidade do devedor, vide Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., pág. 71 (este Autor
considera que o acordo pode até ser vantajoso para o devedor, tendo em conta que da venda em processo
executivo normalmente resultará um valor inferior ao valor real desse mesmo bem), Romano Martinez, e
Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 176, Isabel Matos, ob. cit., págs. 84 e 88 (embora com a ressalva “que a
avaliação do bem seja feita apenas no momento do vencimento da obrigação, de forma imparcial e de
acordo com critérios objectivos”) Sofia Maltez, ob. cit., pág. 61, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 134 a
136 (asseverando que “só deve ser considerada como venda comissória aquela em que a função da
garantia se traduz numa vantagem injustificada para o credor, o que permite, a priori, considerar lícito o
pacto marciano”, uma vez que com “congruência entre o valor do bem onerado e o valor do crédito
garantido o pacto marciano será lícito. Dito de outro modo, o valor do bem e o montante da dívida
devem equivaler-se”), Faggella, ob. cit., pág. 145, Chironi, ob. cit., pág. 536 (argumentando que, neste
caso, “il creditore riceve non il valor della cosa, ma la cosa stessa in proporzione del valore garantito, e
deve il prezzo eccedente”), Troplong, ob. cit., pág. 110, Guillouard, ob. cit., pág. 186 (notando, todavia,
os dois derradeiros Autores que a avaliação deverá ter lugar no momento do vencimento da obrigação
garantida e não no momento da celebração do contrato, tendo em conta as oscilações de valor que o
mesmo possa vir a sofrer a menor liberdade do devedor nesse momento), Francesca Fiorentini, ob. cit.,
págs. 266 e 267 (acrescentando o argumento da ausência de qualquer predeterminação do preço da venda
em função do valor do crédito garantido), Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 72 e segs. (esclarecendo que
o credor que proponha uma cláusula destas “non si assicura che lo scrupoloso ammontare del suo credito
e non un soldo di più; dall’altro non esigendo una garanzia giugulatoria, non si può dire coarti la
volontà di colui che gli chiede denaro”, enquanto o devedor, por seu turno, “non perde nel caso di
applicazione della clausola, più di quanto in definitiva dovrebbe sempre dare al suo creditore”, para além
das vantagens que decorrem da não sujeição aos inconvenientes de uma venda judicial, da qual poderia
até resultar um montante inferior), Malo Concepción, ob. cit., pág. 839 (afirmando que “será válido el
pacto por el que se acuerde que, incumplida la obligación principal, el acreedor se adjudicará la cosa,
valorada a criterios objectivos, limitandóse a compensar el valor de aquélla con el de la deuda, en la
concurrencia de ambos y con abono de la eventual diferencia en más”, entendendo o Autor que esta
avaliação objectiva resulta, designadamente, da cotação oficial dos valores mobiliários transaccionados
em bolsa), Mejias Gomez, La prenda cit., pág. 239 (considerando “válida la figura del pacto comisorio en
la hipótesis en la que al acreedor se le ha concedido la facultad de hacer suya la cosa por un precio a
determinar por un tercero en la medida adecuada al valor de la cosa, si bein dicho tercero, a nuestro
juicio, debe ser un experto en su valoración”), Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 413 a 415
(afirmando que “Si las partes salvaguardan en todo momento las relaciones de proporcionalidad entre el
valor efectivo del objeto gravado y el montante del crédito, pero al mismo tempo velan por el destino que
se ha de conferir al sobrante – superfluum – del objeto garantizado respecto al crédito que garantiza, no
parece que existan razones para prohibir semejante pacto”), Priego Fernández, ob. cit., págs. 526 a 528
(considerando válidos os pactos em que, por um lado, não esteja comprometida a liberdade do devedor e,
por outro, o valor da garantia seja fixado com base em critérios objectivos ou de mercado, concluindo que
o pacto marciano preenche estas duas condições), Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1865 (sustentando
ser válido “el pacto en cuya virtud, vencida e impagada la obligación, se faculta al acreedor para
adjudicarse la cosa gravada en pago, estimada en su verdadero valor, fijado con arreglo a criterios
objetivos, de manera que la deuda se compense en la parte concurrente y el acreedor satisfaga al deudor
el exceso que, sobre el importe de ésta, represente la valoración establecida”) Guillarte Zapatero,
Comentario cit., págs. 460 e 461 (embora não aluda directamente à figura do pacto marciano, o Autor
proclama como critério de validade dos casos duvidosos “si, como consecuencia del mismo, se otorga o
no al acreedor la posibilidad de adueñarse de la cosa automáticamente, vencida la obligación, y sin que
entren en juego los remedios pertinentes encaminados a la obtención de una justa valoración de aquella.
De lograrse ésta, aunque el acuerdo facilite la apropiación por el acreedor de la cosa gravada, no debe
estimarse su nulidad. Si puede así generalizar que será válido el pacto por el que se acuerda que,
862
proíbe o pacto comissório2986 e, ainda, o reconhecimento legal expresso de figuras
produtoras de efeitos análogos.2987
Todavia, este entendimento está longe de ser unânime,2988 sendo a invalidade do
pacto marciano sustentada especialmente por quem advogue que o fundamento da
inibição das convenções comissórias não repousa na tutela do devedor.2989
incumplida la obligación, el acreedor se adjudicará la cosa, valorada con arreglo a criterios objetivos,
limitándose a compensar el valor de aquélla con el de la deuda, en la concurrencia de ambos, y (…) con
abono de la eventual diferencia en más” e, em termos ainda mais enfáticos, in Albaladejo, Derecho Civil
III cit., pág. 705, “de lo que no hay duda es de que si para evaluar la cosa gravada existen medios
objectivos y seguros, de forma que su precio pueda efectivamente fijarse al incumplimiento da la
obligación, no existe razón para que deba rechazarse el pacto por el que se establezca que le acreedor, si
el deudor incumple, la haga suya por lo que valga realimente (con abono de la eventual diferencia en
más)” – apontando como exemplo os bens com um preço de mercado – concluindo que “en tal caso no
existe pacto comisorio, o si se estima que sí, pensando que el que hay no es de los que según el espíritu
de la ley están prohibidos (que lo serían sólo aquellos en los que se pacte la apropiación de la cosa por
el acreedor, valga lo que valga)”). Finalmente e ainda no mesmo sentido, vide Cordero Lobato,
Comentarios cit., págs. 2138 e 2139 (admitindo a validade dos pactos de aquisição “donde el precio de
adquisición, por estar referido a un valor objetivo, no desiquilibra el sinalagma”, apontando como
exemplo os pactos relativos à aquisição de acções cotadas em bolsa ou de créditos).
2986
Quanto a este último argumento, vide Isabel Matos, ob. cit., págs. 84 e 88, acrescentando que a
validade do pacto marciano pode retirar-se da legitimidade das partes acordarem, em momento posterior
ao vencimento da obrigação garantida, na venda do bem dado em garantia por qualquer preço (no mesmo
sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 718).
2987
É o caso da datio in solutum (através da qual, após a constituição da garantia e o vencimento do
crédito assegurado, as partes acordam que o credor se aproprie da coisa onerada para pagamento da
dívida) e da venda convencionada entre o credor o devedor após a constituição da garantia (antes ou
depois do vencimento do crédito). Contudo, Vincenzo Lojacono, ob. cit., págs. 80 e 81, reconhece que
qualquer destes negócios se encontra sujeito a condições: no primeiro caso, apenas será admissível a datio
in solutum simples – em que o valor da coisa corresponde ao do crédito ou, sendo superior, o credor
deverá restituir a diferença ao devedor – mas não a datio in solutum pro debito (na qual o credor recebe a
coisa pelo montante do crédito); relativamente à venda, se o preço indiciar uma falta de correspondência
com o valor real do bem poderemos estar perante um pacto comissório encapotado.
2988
No rol dos que contestam a licitude do pacto marciano incluem-se Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º
58, pág. 219 (ainda que o bem empenhado tenha um valor fixo de mercado, por entender subsistir o
perigo de o credor se apropriar de um bem que o empenhador não desejava vender-lhe nessas condições,
não fora a sua dificuldade económica) e Bustos Pueche, ob. cit., pág. 566 (embora de forma não muito
clara). Especial referência merece a posição de Giuseppe Minniti, ob. cit., pág. 58 e segs., que – depois de
sustentar que o motivo subjacente à proibição do pacto comissório é a inidoneidade da função de garantia
para justificar a transferência da propriedade de um bem – realça que o mesmo se deverá dizer dos pactos
marcianos, porquanto o assegurar da correspondência entre o valor do bem alienado e do crédito
garantido “non si sembra possa incidere sul profilo causale dell’operazione, sì da supplire alla rilevata
insufficienza della causa di garanzia a fondare e giustificare l’attribuzione del bene in proprietà”
(recusando, por outro lado, que a validade das convenções marcianas possa ser deduzida a partir da norma
que consagra o penhor irregular – asseverando que o art.º 1851.º constitui um preceito específico, apenas
aplicável quando o penhor incida sobre bens fungíveis e consumíveis, sendo a garantia acessória de um
financiamento bancário e, por isso, não será admissível dele retirar um princípio geral de admissibilidade
do pacto marciano – e, mais genericamente, que a solução contrária só será admissível para quem
considere que o fundamento da interdição das convenções comissórias reside na necessidade de protecção
do devedor).
2989
Assim, Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 156 e 157, que, depois de apontar como ratio da proibição do
pacto comissório a necessidade de salvaguarda das garantias típicas, advoga que o pacto marciano não se
pode subtrair a tal interdição, considerando “irrilevante la circostanza che essa è comunque idonea ad
evitare pregiudizi economici al debitore: e ciò perché, appunto, il divieto non si prefigge di tutelare le
ragioni del debitore”, alegando ainda que o regime civilístico do penhor requer sempre um pedido
judicial prévio à apropriação da coisa empenhada. Também Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 432 e
segs., alude a posições que sustentam a invalidade das comissões marcianas alegando que a razão de ser
da interdição do pacto comissório – protecção dos demais credores do devedor – justifica a publicidade da
alienação executiva, de modo que aqueles credores possam adoptar as medidas mais adequadas à defesa
863
Em nosso entender, a validade do pacto marciano, nomeadamente quando
associado a uma garantia real típica como o penhor, encontra-se dependente da
verificação cumulativa de três pressupostos:2990 a obrigação do credor restituir ao
devedor a quantia relativa à (eventual) diferença entre o valor do bem e o montante da
dívida garantida; a avaliação do bem efectuada de forma objectiva e imparcial, o que
implica o recurso a avaliadores e métodos de avaliação isentos e independentes (não
necessariamente à via judicial)2991 ou, quando os bens possuam uma cotação oficial, o
uso de tal critério (pelo contrário, não parece de exigir a intervenção judicial como
condição de licitude destes pactos);2992 e, finalmente, a impossibilidade de o mesmo ser
invocado por um credor que, no seio do concurso de credores, não seja o detentor da
causa de preferência prioritária (sob pena de total subversão da hierarquia legal das
causas legais de prelação),2993 excepto se, eventualmente, se impuser ao beneficiário da
convenção marciana o dever de, como condição de exercício do seu direito, satisfazer
previamente os credores com prioridade sobre o mesmo bem.
Esta última exigência parece já aflorada no âmbito do penhor de créditos, na
medida em que, tendo o mesmo crédito sido onerado em benefício de credores distintos,
apenas o preferente goza do direito de proceder à respectiva cobrança (art.º 685.º, n.º 3).
Mesmo para quem aceite a validade das convenções marcianas, caberá
determinar qual o momento em que a avaliação do bem onerado deverá ser efectuada, se
na data da constituição da garantia ou no momento do vencimento da obrigação,
surgindo esta última solução como mais adequada.2994
dos seus interesses, designadamente participando nesse mesmo procedimento (todavia, o Autor contesta
esta posição, considerando ser discutível ser essa a finalidade dos procedimentos de execução e
constatando que, na execução extrajudicial, não é exigida a notificação aos demais credores; por outro
lado, destaca que o preço será fixado de acordo com critérios objectivos, ficando o eventual remanescente
ao dispor desses outros credores, rematando que a solução contrária, “llevaria a la consecuencia de que el
deudor nunca podría hacer convenios con un acreedor particular, lo que sería inamissible, teniendo en
cuenta (…) que a los restantes acreedores ya se les protege con las acciones rescisorias”), posição esta
não seguida pela jurisprudência espahola dominante, que reconhece a validade das convenções marcianas.
2990
Similarmente, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 135, destaca como o pacto marciano assenta em dois
pilares, a cláusula de avaliação do bem e a cláusula de restituição do excesso.
2991
Impedindo-se, assim, a escolha de um perito da confiança do credor susceptível de efectuar uma
avaliação à medida dos interesses daquele e que se deixe influenciar pelas respectivas instruções – em
casos como este, será legítima a anulação, por via judicial, dos pactos marcianos nos quais
“manifestamente la stima non era che una finzione diretta a nascondere quella debitoris suffocatio che la
legge vuole appunto evitare” - Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 73 e segs.. Em termos semelhantes,
Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 276 e segs. e Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 135 (este
admitindo, além da designação por um terceiro imparcial de comum acordo entre as partes, o recurso às
regras de mercado). No entanto, mesmo procedendo assim, existem ainda alguns riscos para o devedor –
como a escolha de um perito da confiança do credor susceptível de efectuar uma avaliação à medida dos
interesses daquele e que se deixe influenciar pelas respectivas instruções – os quais deverão ser
eliminados através da anulação, por via judicial, dos pactos marcianos nos quais “manifestamente la stima
non era che una finzione diretta a nascondere quella debitoris suffocatio che la legge vuole appunto
evitare”.
2992
Acerca da compatibilidade dos pactos marcianos com a imposição de avaliação judicial dos bens em
caso de atribuição em pagamento (cfr. n.º 2 do art.º 675.º), vide supra n.º 8.1 do Capítulo I.
2993
Até porque, ao invés do que sucede na atribuição judicial (vide supra n.º 8.1 do Capítulo I), não
haverá aqui lugar a citação e a abertura do concurso de credores.
2994
Opta por esta segunda alternativa Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 73 e segs., alegando que caso a
avaliação fosse realizada no momento da constituição da garantia ou antes do vencimento da obrigação
garantida, “lo stato di necessità del debitore potrebbe far sì che questi, sperando di pagare alla scadenza,
accetti una stima non imparziale fatta da compari del creditore, e per lui quanto mai svantaggiosa. La
convenzione altro allora non sarebbe che un patto comissorio vero e proprio”. Se, pelo contrário, a
avaliação for efectuada na data do vencimento da obrigação, “nulla allora vi sarà di pericloso. Il valore
dichiarato sarà allora corrispondente a quello che ha la cosa in quel punctum temporis; non solo, ma il
864
Finalmente, cabe realçar que se a validade das convenções marcianas é
imediatamente perceptível à luz do entendimento que ancora a proibição do pacto
comissório na necessidade de protecção do empenhante, não é menos verdade que a sua
admissibilidade pode ser invocada para quem, como nós, adopte uma fundamentação
diversa, seja reconhecendo que as convenções marcianas obtêm numa avaliação positiva
do seu conteúdo típico (independentemente do efeito que o memo produza para o
prestador da garantia),2995 seja concluindo que, uma vez verificados os requisitos
expostos, o pacto marciano em nada afecta os princípios legais – nomeadamente da
tipicidade e hierarquia legal das causas de preferência - erigidos por nós como móbil
primordial da interdição das convenções comissórias.
Noutra ordem de considerações, o pacto marciano, se admissível, poderá ser
posto em marcha em caso de simples incumprimento parcial da obrigação garantida,
respeitando, naturalmente, a proporção entre o valor do bem onerado e o da obrigação
exequenda (o que significa, tendencialmente, a obrigação de restituição ao empenhante
de uma quantia superior, por comparação com a hipótese de incumprimento total).2996
debitore, che più nulla ha da sperare sarà ben libero di aprire gli occhi e sorvegliare l’opera dei periti”.
Em termos concordantes se pronuncia Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 278, alegando que a
avaliação do bem se deve pautar por critérios de actualidade e correcção, reclamando que “a
determinação final dos valores seja realizada aquando do incumprimento da obrigação e não aquando
da convenção do pacto, ainda que os critérios possam estar pré-determinados”. Aderimos, também nós,
a este entendimento, porquanto uma avaliação realizada no momento da constituição da garantia,
atendendo às possíveis alterações de valor do bem entretanto verificadas, não será a mais consentânea
com a realidade (no mesmo sentido, vide os Autores citados em notas anteriores), precisando até que,
quando medeie algum tempo entre o vencimento da obrigação garantida e a sua execução, o momento
relevante será este último.
2995
É a posição de Massimo Bianca, Il divieto cit., pág. 218 e segs., para quem a sua licitude advém do
facto de, através dele, o devedor aceitar previamente a satisfação do crédito garantido de acordo com o
valor efectivo dos seus bens, em alternativa à comum execução judicial (com os inconvenientes
inerentes), o que exclui a aplicação de uma proibição que redundaria em prejuízo do próprio devedor
“impedendo a quest’ultimo il ricorso ad un atto di disposizione che gli assicuri, per l’eventualità
dell’inadempimento, una perdita del patrimonio effettivamente proporzionata al credito da soddisfare, e
in cui siano, quindi, salvaguardate le ragioni dei creditori concorrenti”. Pelo contrário, deverão ser
invalidados os pactos quando não seja assegurada a atribuição do valor efectivo aos bens do devedor,
designadamente em caso de prévia sub-avaliação inicial do bem ou em que o terceiro avaliador decida
com base em critérios inadequados, uma vez que “venendo meno nel patto il carattere di strumento inteso
ad assicurare il soddisfacimento secundario del creditore secondo l’effettivo valore dei beni del
debitore”. Em termos aproximados, Januário da Costa Gomes, ob. cit., págs. 95 e 96, reconhece a
validade do pacto marciano (transpondo os mesmos argumentos para reconhecer a legitimidade, nos
limites da admissibilidade das convenções marcianas, de figuras em que se opera a transferência da
propriedade com funções de garantia - venda a retro, a reserva de propriedade ou a locação financeira –
considerando que a norma que proíbe as convenções comissórias não é uma norma geral aplicável
indiscriminadamente e sem excepções a todos os casos em que as partes pretendam obter o mesmo
resultado, porquanto tal interpretação conflitua com o reconhecimento legal das figuras acima indicadas),
considerando que “o que a norma pretende evitar não é a aquisição pelo credor insatisfeito mas o
aproveitamento da debilidade do devedor, o que leva a conferir decisivo relevo à congruidade entre o
montante do débito e o valor do bem, só devendo, assim, ser tratada como venda comissória aquela em
que a função de garantia se traduz numa vantagem injustificada para o credor” (transpondo este
entendimento para as alienações em garantia, o Autor advoga que a sua licitude se encontra dependente
da circunstância de o devedor ficar “em condições de controlar ou dominar a eventual diferença entre o
valor do bem alienado e o quantum do débito”).
2996
Neste sentido, Vincenzo Lojacono, ob. cit., págs. 78 e 79, concretizando que o pacto marciano se
traduz numa venda sujeita a uma condição suspensiva e que, salvo convenção em contrário, o
incumprimento parcial constitui a verificação dessa condição (recusando a solução inversa – a
necessidade de existência de um incumprimento total – com a seguinte questão: “È logico pensare che il
debitore restituendo al terzo convenuto solo un centesimo o anche meno dal suo debito possa provocare
l’inesecuzione del patto marciano? E ciò sarebbe anche morale”).
865
Um exemplo recente de reconhecimento normativo do pacto marciano pode
buscar-se no art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio,2997 em matéria de
penhor financeiro, ao admitir que o credor pignoratício possa, em caso de cumprimento
da obrigação garantida, fazer seus os instrumentos financeiros recebidos em garantia,2998
desde que tal tenha sido convencionado pelas partes e se houver acordo relativamente à
avaliação dos bens empenhados,2999 ficando, no entanto, o credor obrigado a restituir ao
empenhador o montante correspondente à diferença entre o valor do objecto da garantia
e o montante das obrigações garantidas.
Ao contrário do sugerido pelo preâmbulo do diploma3000 e pela própria epígrafe
da norma, este preceito consagra, salvo melhor juízo, não uma excepção à proibição do
pacto comissório, mas sim o reconhecimento da validade das convenções marcianas - as
quais, aliás, eram já consideradas como lícitas pela maioria da doutrina em face da lei
civil.3001
2997
Em termos análogos, o art.º 4.º do diploma que transpôs para o ordenamento italiano a mesma
directiva (cfr. Lorenza Bullo e Claudia Sandei, ob. cit., págs. 146 e 147) e, no direito espanhol, Reglero
Campos, El pacto comisorio cit., págs. 264 a 266, assevera ser este um caso de reconhecimento legal das
cláusulas marcianas.
2998
Conforme bem nota Diogo Macedo Graça, ob. cit., pág. 62, esta norma apenas se aplica ao penhor
que recaia sobre instrumentos financeiros e não ao que incida sobre numerário, uma vez que, para este
último, “dada a sua natureza e o seu valor fixo e determinado, deixa de se justificar qualquer
procedimento de avaliação desse objecto. Mais, os objectivos de simplificação e celeridade da execução
sempre determinariam que a sua execução se fizesse por meio de compensação ou de utilização do seu
valor na liquidação das obrigações financeiras garantidas”.
2999
Estes critérios de avaliação deverão ser, sob pena de invalidade da convenção, objectivos e
equitativos, recorrendo, por exemplo, a preços de mercado ou à designação de um terceiro imparcial. Para
além disso, os ditos critérios também deverão definir os prazos e o modo como a execução decorrerá,
assim como a forma de restituição da eventual diferença ao empenhador. Com base nestes exigências,
Patrícia Fonseca, ob. cit., págs. 36 e 37, considera inválidas as convenções que estabeleçam critérios
irrazoáveis, discricionários ou pouco objectivos ou nos quais as partes fixem, no momento da constituição
do penhor, o valor dos bens empenhados (pois, tendo em conta a volatilidade dos mercados financeiros,
bem poderá suceder que, no momento da execução, o valor previamente fixado não corresponda ao valor
real do bem). Em termos análogos, Isabel Matos, ob. cit., págs. 155 e 156, não admite que a avaliação
ocorra antes do vencimento da obrigação garantida, em razão da ausência de protecção que tal cláusula
comportaria, designadamente porque “não se vislumbra, na verdade, como pode ficar devidamente
acautelada a restituição do superfulum ao prestador da garantia se a apropriação se fizer pura e
simplesmente pelo valor fixado na data da constituição dessa garantia”. Em todos estes casos, qualquer
das partes poderá recorrer às vias judiciais para contestar, quer a razoabilidade dos critérios de avaliação
dos bens empenhados, quer a sua aplicação (quanto a este último aspecto, vide Isabel Matos, ob. cit., pág.
157 e Calvão da Silva, ob. cit., pág. 210). Por outro lado e apesar de a lei poder inculcar o contrário –
porquanto apenas exige a existência de um acordo entre as partes quanto à avaliação dos bens onerados, o
que poderá não representar sempre uma avaliação objectiva e correcta - Catarina Monteiro Pires, ob. cit.,
págs. 278 e 279, conclui, tendo em conta a necessidade de garantir a restituição do eventual excedente ao
devedor, que este pacto marciano se encontra sujeito à verificação dos mesmos requisitos que, em geral,
condicionam a sua admissibilidade (apesar de reconhecer que “a própria natureza do objecto da garantia
poderá facilitar esse exercício, podendo mesmo daí resultar a possibilidade de aferir o respectivo valor
de forma quase automática, atento o elevado grau de liquidez do bem jurídico”).
3000
No qual se pode ler que “Outra das novidades mais significativas deste diploma respeita ainda ao
contrato de penhor financeiro e corresponde à aceitação do pacto comissório, em desvio da regra
consagrada no artigo 694.º do Código Civil. Com efeito, desde que as partes o convencionem e acordem
na forma de avaliação dos instrumentos financeiros dados em garantia, permite-se excepcionalmente que
o beneficiário execute a garantia por apropriação do objecto desta, ficando obrigado a restituir o
montante correspondente à diferença entre o valor do objecto da garantia e o montante da dívida. Este
«direito de apropriação» visa dar resposta à necessidade de existência de mecanismos de execução das
garantias sobre activos financeiros que, não pressupondo necessariamente a venda destes, permitam ver
reduzidos os riscos decorrentes da potencial desvalorização do bem”.
3001
Em termos concordantes, Patrícia Fonseca, ob. cit., pág. 34 (adicionando que a circunstância de o
penhor financeiro envolver, normalmente, sujeitos profissionais atenua significativamente a necessidade
866
Eventualmente, poderá sustentar-se o carácter inovador do preceito no que tange
à possibilidade de auto-satisfação do credor, desde que verificados os requisitos nele
previstos, sem necessidade de recurso à avaliação judicial do bem onerado (ao contrário
do que parece impor o n.º 2 do art.º 675.º).3002
de tutela contra eventuais abusos do credor pignoratício), Sofia Maltez, ob. cit., págs.63 e 64
(salvaguardando a necessidade de a avaliação do objecto ser efectuada de acordo com critérios imparciais,
objectivos e comercialmente razoáveis – cfr. art.º 11.º, n.º 3 – apontando como exemplos o valor de
mercado no vencimento da obrigação e a nomeação de um terceiro imparcial, mas já não, tendo em conta
a flutuação de preço a que os estes bens se encontram sujeitos, a fixação de um valor no momento da
constituição), Diogo Macedo Graça, ob. cit., págs. 62 a 64 (afirmando que “a convenção das partes deve
assegurar a equivalência entre o montante em dívida e o valor dos instrumentos financeiros dados em
penhor, o que se consubstancia na modalidade de pacto marciano e não na definição de pacto
comissório strictu sensu (…). Discordamos, portanto, da terminologia usada pelo legislador português,
uma vez que continua a ser nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da garantia, a
convenção, sem mais, pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir”),
Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 186 (para quem “a situação em análise não
corresponde verdadeiramente a um pacto comissório, mas antes a um pacto marciano”), Joana Dias, ob.
cit., págs. 172 e 173 (afirmando que o legislador confunde o pacto comissório com o pacto marciano, pelo
que conclui não existir qualquer antagonismo entre o art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 105/2004 e o art.º 694.º,
tendo em conta que no pacto marciano se afastam os inconvenientes da desproporção entre o valor do
crédito e do objecto da garantia), Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 281 e segs. (esclarecendo que a
licitude de tal convenção se encontra condicionada à identificação clara dos prazos e critérios da
avaliação, à objectividade destes últimos e à impossibilidade de o direito de apropriação exceder o
montante das obrigações em débito) e Pestana Vasconcelos, A cessão cit., pág. 634, nota 1224 (“Não
estamos perante um pacto comissório, mas face ao pacto marciano quando o credor pode fazer seu o
objecto da garantia (…) mas este tem de ser avaliado de forma independente, e o beneficiário da
garantia tem que restituir à outra parte o excedente entre o seu valor e o montante da dívida (…) Daí
que, ao contrário do que proclama no preâmbulo, não há aqui qualquer excepção à proibição do pacto
comissório, que se mantém intocada: consagrou-se a este propósito foi o pacto marciano”) e Direito das
garantias cit., págs. 278 e 279. Contra, Calvão da Silva, ob. cit., págs. 210 a 212, escrevendo que “Trata-
se de uma inovação relevantíssima, porquanto o regime geral é o da proibição do pacto comissório”,
Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 119, ao escrever que “no que diz respeito ao penhor financeiro,
que o DL 105/2004 procedeu expressamente a uma derrogação do regime previsto no Cód. Civil”
(pensamos que a posição deste último Autor repousa num equívoco, porquanto reconhece, mesmo antes
da entrada em vigor de “pactos comissórios em que forem estabelecidos critérios objectivos de avaliação
do bem empenhado”, pactos estes que constituem verdadeiros pactos marcianos, em tudo idênticos aos
permitidos pelo art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 105/2004 que, assim, não constitui, em matéria de proibição
do pacto comissório, uma inovação e muito menos uma revogação do regime civil do penhor), Menezes
Cordeiro, Direito bancário cit., págs. 745 e 746 (entendendo que o descartar da proibição, no domínio do
penhor financeiro, se baseia na existência de supervisão prudencial dos mercados financeiros, da maior
consciência e responsabilidade de credores e devedores, no valor objectivo e fungível dos bens onerados)
e Pedro António A. Ferreira, ob. cit., pág. 683 (escrevendo que “consagra-se neste diploma a aceitação
do pacto comissório, em desvio da regra constante do art.º 694.º”, desvio este que é justificado como
resposta “à necessidade de existência de mecanismo de execução das garantias sobre activos financeiros
que, não pressupondo necessariamente a venda destes, permitam ver reduzidos os riscos decorrentes da
potencial desvalorização do bem”). Mais enigmática é a posição de Almeida Costa, Direito das
obrigações cit., pág. 911, em nota, destacando a possibilidade de, no penhor financeiro, poder ser
convencionado “o pacto comissório – em aparente ou parcial oposição à regra do art.º 694.º do Cód.
Civ.”.
3002
Pronuncia-se neste sentido Diogo Macedo Graça, ob. cit., pág. 63, reforçando que a distinção entre os
pactos comissório e marciano repousa no facto de neste último, ao contrário do primeiro, o credor
garantido ter que devolver ao empenhante a eventual diferença entre o valor do bem onerado e o montante
do crédito garantido (circunstância essa que, aliás, justifica a necessidade de avaliação do bem
empenhado). Todavia e conforme salientado anteriormente, mesmo em face do regime civilístico é
possível defender a desnecessidade de avaliação judicial pelo n.º 2 do art.º 675.º (sobre este assunto, vide
supra n.º 8.1 do Capítulo I).
867
Quando muito, poderá dizer-se que as afirmações do legislador partiram da
convicção, a nosso ver errónea, que o pacto marciano se encontra abrangido pela
proibição do pacto comissório.3003
Esta norma, porém, ao consentir uma apropriação directa do bem por parte do
credor pignoratício, assim o beneficiando em prejuízo de outros credores igualmente
titulares de direitos reais de garantia, os quais, nas concretas circunstâncias existentes,
poderiam prevalecer sobre o dito penhor, podendo, no limite, violar o princípio
constitucional da igualdade (art.º 13.º da CRP):3004 assim não sucederá se, conforme
propusemos anteriormente, este tipo de pactos apenas puder ser invocado pelo credor
com a garantia preferente (ou, em alternativa, se, como condição da operatividade da
convenção, o seu beneficiário deva ressarcir previamente os credores munidos de uma
causa de preferência hierarquicamente superior).
Para além do âmbito do penhor financeiro, o reconhecimento da licitude dos
pactos marcianos contrasta, à primeira vista, com a amplitude com que a proibição se
encontra consagrada, abarcando todo o tipo de penhores, independentemente do
respectivo objecto (cfr. art.ºs 678.º e 694.º).
Todavia, uma vez verificados os requisitos anteriormente erigidos com condição
de validade das convenções marcianas, encontra-se aberta a porta para a admissibilidade
de convenções que prevejam a transmissão da propriedade do bem onerado para o
credor, em caso de incumprimento da obrigação garantida, quando a natureza do quid
empenhado consinta uma avaliação objectiva e incontestável, dispensando até qualquer
operação específica de avaliação dos mesmos.3005
3003
É esta a posição sustentada por Isabel Matos, ob. cit., págs. 156 e 157, concluindo que do preâmbulo e
do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, não se pode retirar a validação do pacto marciano (e muito
menos do pacto comissório) nas restantes garantias reais, nem tão pouco nas demais modalidades de
penhor.
3004
Neste sentido se pronunciou o Acórdão da Relação de Lisboa de 9/7/2009, in www.dgsi.pt
3005
Destaca esta perspectiva Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 273 e 274, concluindo, em
conformidade, que “será difícil que um pacto de apropriação do crédito ou do valor recebido com o seu
pagamento possa corresponder a um verdadeiro pacto comissório”, citando em abono desta posição
abundante doutrina, nomeadamente italiana (ordenamento no qual a Autora defende existirem dois
argumentos adicionais, como a possibilidade de o credor – no penhor de créditos pecuniários – se
apropriar do valor cobrado ao devedor cedido, uma vez vencido o crédito garantido; e, por outro lado, a
expressa consagração legal do penhor irregular) e francesa, mesmo anterior à reforma do Code Civil de
2006. Em Itália, Albina Candian, pág. 18 e segs., faz apelo a estas considerações para excluir a
aplicabilidade da interdição à cessão de créditos em garantia (alegando ser tal entendimento já pacífico),
mas igualmente “per identità di ratio non dovrebbe applicari ogniqualvolta il bene oggetto del patto
possa essere agevolmente ceduto sul mercato ad un prezzo noto”.
3006
Neste sentido, Caballol Angelats, ob. cit., pág. 299, destacando que, neste caso, existe uma fixação
objectiva do conteúdo, pelo que “la efectividad de la garantía es inmediata o realizable directamente por
el acreedor”. Mais enfático ainda é De la Santa Garcia, Prenda de valores cit., págs. 246 e 247, afirmando
que “se pueda saber el precio de los valores el día de la venta y, por tanto, en caso de ser suficiente y,
por ejemplo, no conllevar ningún remanente a favor del constituyente de la prenda (…) no parece que
exista, dentro del marco de la libre autonomía de la voluntad de las partes (art. 1.255 CC), obstáculo
alguno para que las partes puedan prever este supuesto”, mesmo para os valores mobiliários não cotados
num mercado oficial, caso em que “podrían las partes haber establecido otro sistema para la fijación del
precio de los mismos o, incluso, pueden haberles fijado a priori un precio por el que se deberían vender
en caso de que se ejecutara la prenda” (todavia, neste segundo caso o Autor não admite que o credor
868
somas de dinheiro, podendo esta maior abertura ancorar-se, quanto a estes últimos (e
mesmo quanto aos créditos pecuniários,3007 especialmente depósitos bancários,3008
venha a adquirir tais bens, mas apenas que os venda a terceiros, mesmo fora dos mercados
regulamentados, desde que o preço acordado e pelo qual os valores tenham sido vendidos coincida com o
montante da dívida – caso aquele seja superior a este, tal remanescente deverá ser entregue ao devedor - e
desde que os sistemas de avaliação do preço se reportassem ao momento da execução e não ao da
constituição da garantia). Daniel Fasquelle, ob. cit., págs. 35 e 36, antes da reforma do direito francês de
2006, advogava já uma alteração legislativa no sentido de excluir da órbita da proibição legal os valores
mobiliários cotados e, em geral, todos os bens cuja fixação do preço escape à influência do credor
pignoratício, considerando que os pactos comissórios “sont bénéfiques tant pour le débiteur que pour le
créancier dans la mesure où ils permettent d’alléger le formalisme legal, et par là diminuer des frais
parfois disproportionnés par rapport à la valeur du bien greve. D’autre part, l’esprit général de la loi
vise à protéger le débiteur de ses créanciers (…). Par conséquent, il n’y a aucune raison d’interdire les
pactes ou clauses dès lors que le prix sera fixé de forme objective. La chose est relativement aisée en ce
qui concerne l’ensemble des valeurs cotées, pour lesquelles le prix du marché constitue une référen.ce
exterieure aux parties. Le procédé peut d’ailleurs être renforcé si d’un commun accord, débiteur et
créancier confient un mandat à un professionnel habilité à négocier les titres nantis sur le marché
boursier” (relatando a existência de uma prática bancária que consistia em, no momento da constituição
da garantia, o credor receber uma ordem de venda amigável subscrita pelo devedor, a qual poderiaser
utilizada em caso de incumprimento por parte deste).
3007
Aynès e Crocq, Les sûretés 2009 cit., pág. 258, destacam como, mesmo antes da reforma do Código
de Napoleão operada em 2006, a jurisprudência não aplicava a proibição das convenções comissórias, por
falta de razão (in casu, o óbvio valor do quid onerado), no caso do penhor de um crédito pecuniário,
bastando que o credor pignoratício obtivesse um mandato para a cobrança do crédito empenhado, negócio
que não constituiria uma convenção comissória desde que aquele imputasse as quantias recebidas à
extinção da dívida garantida, devolvendo um eventual excesso ao seu devedor (em termos concordantes,
Théry, ob. cit., pág. 329, acrescentando a possibilidade de o credor titular de um penhor de crédito se
satisfazer por compensação – entre o que lhe é devido e o que deveria restituir ao devedor em nome do
qual cobrou o crédito empenhado – e de o titular de um crédito constante de um título de crédito o poder
cobrar directamente, afirmando até ser desejável que a proibição fosse igualmente afastada quando o bem
onerado dispusesse de uma cotação oficial).
3008
No que respeita aos penhores sobre depósitos bancários e admitindo tratar-se de verdadeiros penhores
de créditos, Finez Ratón, pág. 219 e segs., assegura que, tendo sido onerados uma conta corrente ou um
depósito à vista e uma vez vencido o crédito garantido, o credor pignoratício (normalmente o próprio
banco) poderá executar a garantia através de simples compensação. Ao invés, quando o penhor incida
sobre um depósito a prazo e caso este se vença antes da obrigação garantida, não se poderá produzir
aquela imputação (excepto quando se proceda a um novo depósito ou a uma renovação do anterior até ao
vencimento do crédito garantido), mas ocorrendo a hipótese contrária – vencimento do crédito garantido
antes do empenhado – parece necessário recorrer aos procedimentos comuns de execução do objecto
empenhado, os quais se afiguram pouco expeditos e desnecessariamente morosos tendo em conta a
natureza pecuniária dos depósitos bancários: para o evitar, normalmente os bancos recorrem a uma cessão
do crédito empenhado ao credor pignoratício, condicionada ao incumprimento da obrigação garantida
(expediente não violará, segundo o Autor, a proibição dos pactos comissórios, uma vez que esta não
vigora quando o pacto seja acordado em momento posterior ao da constituição da garantia e, por maioria
de razão, após vencimento da obrigação assegurada: mais, a circunstância de o credor pignoratício se
encontrar obrigado a devolver ao constituinte da garantia o eventual excedente entre o saldo bancário
empenhado e a dívida assegurada e o valor objectivamente determinável do dinheiro apontam no mesmo
sentido, sobretudo atendendo à reconhecida licitude do pacto marciano) ou, em alternativa, a cláusulas de
compensação convencional (assim iludindo a falta do requisito legal da compensação respeitante ao
mútuo vencimento dos créditos a compensar: todavia, este expediente só é legítimo quando o credor
pignoratício seja o banco depositário). Para Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 221 e segs, a execução da
garantia (atendendo à inadequação da alienação do bem empenhado) variará consoante o credor seja ou
não o gestor da conta: no primeiro caso, ocorrerá um fenómeno de compensação (sem que se possa
invocar a proibição das convenções comissórias, uma vez que o valor objectivo do dinheiro elimina
qualquer risco de conduta usurária por parte do credor em prejuízo do devedor), mais concretamente
debitando a quantia em dívida na conta do devedor, muito embora este mecanismo suscite muitas
reticências (desde logo quanto à sua origem legal ou convencional: a primeira hipótese, implica que as
dívidas a compensar sejam recíprocas, líquidas e exigíveis e a dívida de restituição do credor pignoratício
não é exigível, pois está sujeita a um termo suspensivo – o pagamento por parte do devedor -, embora tal
869
sobretudo, quanto a estes últimos, para quem qualifique a sua oneração pignoratícia
como um penhor de créditos),3009 na natureza presumivelmente irregular da garantia,3010
objecção possa ser contornada, pois “lors de l’exigibilité de la créance garantie, le gagiste peut
parfaitement renoncer au bénéfice du terme de sa dette de restitution, qui se traduit simplement par la
renonciation à son droit de rétention” - Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 222 – e, por outro lado, a
incontestável conexão entre as duas dívidas, por serem resultantes de uma mesma operação económica
global, permite ultrapassar a ausência de exigibilidade de um dos créditos); quando, ao invés, o gestor da
conta não seja o credor, a compensação não poderá funcionar (uma vez que os créditos não são
recíprocos, porquanto não existe nenhum crédito do constituinte sobre o credor pignoratício susceptível
de ser compensado com o crédito garantido, uma vez que é o gestor da conta o responsável pela obrigação
de restituição), restando ao credor optar pela venda ou, mais frequentemente, pela atribuição em
pagamento (tanto mais que a jurisprudência tem validado o mandato atribuído ao credor para receber a
propriedade das somas depositadas, assim escapando ao procedimento judicial de atribuição do bem e
sem que, contra esse mandato, possa ser invocada a proibição do pacto comissório, inoperante quando o
quid ornado sejam quantias monetárias). No nosso direito e a respeito do penhor de conta bancária,
Menezes Cordeiro, Direito bancário cit., pág. 728, esclarece que “O depósito bancário tem um valor
objectivo indiscutível, dado pelo seu montante. Logo, não há perigo de o credor garante enriquecer à
custa do dono do bem empenhado: este é usado para assegurar as dívidas garantidas, pelo seu preciso
valor nominal, sendo certo que não tem outro. Não faria sentido vir exigir que o tribunal fixasse… o
valor de uma conta bancária, universal e definitivamente expresso, como foi dito, pelo valor nominal do
seu montante”. No mesmo sentido, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., págs. 289 e 290,
salientando como “Atendendo à forma de satisfação do credor pignoratício em caso de incumprimento da
outra parte (e não antes), que consiste num débito em conta da quantia em dívida, não pode dizer-se que
se trate de um pacto comissório. A natureza do bem (dinheiro) e o facto de só se poder debitar a quantia
em dívida obstam a que se verifiquem quaisquer dos fundamentos que justificam a referida proibição”:
nesta conformidade, o Autor destaca como (sobretudo tendo em conta que, nos termos do art.º 675.º, a lei
nem sequer impõe que essa satisfação decorra necessariamente de uma acção executiva), considerando a
coincidência entre o valor de mercado do dinheiro e o seu nominal, será “irrelevante se a satisfação se faz
por débito em conta ou pela alienação do crédito que gerará esse valor. Por outro lado, se a intervenção
do tribunal é importante para se fixar de forma objectiva o valor da coisa empenhada para ser
adjudicada por esse valor ao credor pignoratício, aqui, atendendo à natureza do bem, essa avaliação
não seria necessária (…) mesmo que houvesse recurso à acção executiva (…) o pagamento não se faria
pela venda do crédito, mas através do dinheiro aí existente (art.º 874.º do CPC)”.
3009
Acerca da querela relativa à natureza jurídica do penhor de depósitos bancários, vide supra n.º 3 do
Capítulo I e n.º 1.1 do Capítulo IV.
3010
Tratando-se de um penhor sobre somas de dinheiro, o modus operandi desta garantia pode traduzir-se
numa derrogação da proibição do pacto comissório, uma vez que o credor obtém a propriedade
temporária dos bens recebidos em garantia no momento da constituição desta e, em caso de
incumprimento da obrigação garantida, essa propriedade torna-se definitiva, operando-se uma
compensação e extinguindo-se o dever de restituição do bem (Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 64, Aynés e
Crocq, ob. cit., pág. 209, Ancel, ob. cit., pág. 116, Weil, ob. cit., pág. 94, Théry, ob. cit., pág. 329 e
Legeais, Sûretés 1999 cit., pág. 268 – este último afiança mesmo que a proibição não se aplica neste caso,
por não existir qualquer problema de avaliação do bem e, havendo um penhor de conta bancária, a
realização se efectuará através de compensação ou da transformação da propriedade do credor de
provisória em definitiva – e, em face do direito espanhol, Barrada Orellana, ob. cit., págs. 428 e 429). Por
seu turno Jordano Fraga, ob. cit., pág. 308, no penhor regular sobre dinheiro – no qual se especificam os
concretos objectos da garantia – o credor, uma vez vencida a obrigação garantida, não carece de executar
o objecto da garantia, mas sim “se lo apropriará, si más, en la medida necesaria para cobrarse el crédito
garantizado”, uma vez que “no es de aplicación la prohibición del pacto comisorio (artículo 1.859 Cc),
puesto que la ratio de tal norma no rige respecto de la genuina prenda pecuniaria: el carácter del
objecto pignorado – el ser él mismo medida de valor – hace que, sin necesidad de subasta y a pesar de la
apropriación, estén siempre a salvo el interés del deudor (…) y de los acreedores del deudor”. Já para
Caballol Angelats, ob. cit., pág. 299, a excepção à proibição do pacto comissório justifica-se porque “la
propria cosa dada en garantía representa por ella misma el valor” e, de acordo com Lisanti-Kalczynsky,
ob. cit., págs. 208 e 209, a licitude destas convenções deve ser ancorada na ausência de risco de sub-
valorização deste tipo de bens, cujo valor se encontra determinado de modo inequívoco. Henri Mazeaud,
ob. cit., pág. 155, considera não existir violação do pacto comissório quando a garantia incide sobre
dinheiro (operando-se antes uma compensação de créditos em caso de incumprimento da obrigação
garantida), quando o credor indique previamente o preço pelo qual está disposto a adquirir o bem na
870
uma vez que a transferência da propriedade do objecto da garantia se produz ab initio e
não se encontra dependente do incumprimento por parte do devedor.3011
venda que se seguirá ou ainda em caso de promessa de venda do bem onerado para a eventualidade de
incumprimento do crédito assegurado (desde que, nesta última hipótese, tal promessa seja posterior à
entrega da quantia mutuada pelo credor ao devedor). Mais cauteloso é Jacques Ghestin e outros, Droit
spécial cit., pág. 297, considerando contra legem o reconhecimento da validade do pacto comissório
quando o objecto do penhor seja constituído por dinheiro, apesar de tal entendimento favorecer o
desenvolvimento desta modalidade de penhor e de ter a aceitação da jurisprudência. De acordo com
Aranda Rodréguez e Mondéjar Peña, ob. cit., págs. 566 e 567, a proibição do pacto comissório nunca foi
absoluta (como o demonstra a licitude do pacto marciano) e, por outro, consistindo em dinheiro o objecto
da garantia, a sua alienação não faz qualquer sentido (e, quando se trate de títulos representativos de
dinheiro, estes possuem um valor nominal, não podendo este ser subestimado em prejuízo do devedor
empenhante). Entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 217 e segs., considera que o penhor irregular
transcende a aplicação da proibição do pacto comissório, uma vez que “repousa sobre uma obrigação de
restituição do excesso relativamente ao valor do crédito no momento do seu vencimento”, assemelhando-
se, por isso, a uma convenção marciana (o que é comprovado pelo art.º 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
365/99, onde se estabelece que a diferença entre o preço de adjudicação e os valores em dívida pertence
ao devedor), na qual o perigo de desproporção entre o crédito garantido e o bem onerado será reduzido,
quer em razão da fungibilidade do objecto garantido, quer do seu valor objectivamente determinável,
normalmente avaliado por um terceiro imparcial (quanto tal não suceda, poderemos estar perante um
verdadeiro pacto comissório), quer ainda por a “imputação do dinheiro recebido como penhor equivaler
ao preço da alienação do objecto no penhor comum – i.e. ao valor que as partes lhe atribuem”, razão
pela qual admite que as partes estipulem a possibilidade de compensação convencional ou de imputação
de créditos (contudo, se o penhor irregular for constituído após o vencimento da obrigação garantida, a
proibição comissória vigorará plenamente) – considerando, todavia, que o credor garantido com um
penhor irregular não se poderá fazer pagar por ele dos créditos que detenha sobre o devedor, vide o
Acórdão do STJ de 3/10/1996, in www.dgsi.pt. Finalmente, Arturo Dalmartello, Pegno irregolare cit.,
pág. 803, descarta que o penhor irregular contenda com a proibição do pacto comissório, apelando à
circunstância de a transferência da propriedade se veritificar no momento da constituição da garantia e
não, conforme interdita a lei, no momento e por força do incumprimento da obrigação garantida (para
além de os bens objecto de semelhante garantia – atenta a sua avaliação objectiva – afastarem o perigo,
que a interdição visa conjurar, de apropriação, por parte do credor, de um bem superior ao do crédito
garantido).
3011
Salienta este aspecto Vincenzo Lojacono, ob. cit., págs. 56 e 57, constatando que, por ser assim, no
penhor irregular o credor adquire a propriedade do bem onerado muito antes do incumprimento do
devedor (o Autor salienta que tal conclusão é válida mesmo quando objecto da garantia sejam títulos,
pois, embora tais bens se encontrem sujeitos a flutuações de valor, “non si trata di passaggio di proprietà
del debitore al creditore per mancato pagamento, bensiè di una mancata stima o vendita dei titoli”).
Todavia, este argumento pode ser refutado, à imagem do que sucede nas alienações em garantia,
relativizando o momento da transferência, ou seja, a invalidade da convenção pode ser decretada quer se
trate de uma alienação suspensiva ou resolutivamente condicionada, respectivamente ao incumprimento
do devedor. Por seu turno Jordano Fraga, ob. cit., págs. 314 e 315, defende que a proibição do pacto
comissório se refere à apropriação de bens em momento posterior ao da execução da garantia e que, no
momento da constituição da mesma, lhe são alheios, enquanto no penhor irregular se dá uma transferência
imediata – antes mesmo do vencimento e posterior incumprimento por parte do devedor - da propriedade
dos bens entregues ao credor (o Autor afasta ainda a objecção de acordo com a qual a definitiva
apropriação se produz em sentido económico com o incumprimento, através da compensação de
restituição do credor com a obrigação garantida, replicando que bastará adoptar para o penhor irregular as
mesmas cautelas subjacentes à ratio da proibição – protecção do devedor contra a apropriação por parte
do credor do eventual excesso do valor do bem dado em garantia relativamente ao crédito garantido – o
que, tendo em conta a natureza fungível dos bens objecto de penhor irregular, se torna relativamente
simples – particularmente quando se trate de dinheiro -, assim se conjurando aquele perigo. Já Massimo
Bianca, Il divieto cit., pág. 163 e segs., partindo da qualificação da figura como um instituto com
finalidades de garantia (e não meramente solutórias) enquadrável na categoria das alienações em garantia,
pois “sembra presentarsi come una provvisoria attibuzione di beni fungibili, destinata a divenire
definitiva per il caso che non venga adempiuta l’obbligazione garantita” (embora sem sujeição aos
problemas normalmente conexos com os negócios fiduciários não se colocam “in un trasferimento dei
beni fungibili dove gli obblighi dell’alienatario si riducono a quello di una restituzione
dell’equivalente”), considera que o penhor irregular constitui, não tanto uma excepção à proibição do
871
Também no que toca ao penhor de créditos, quando o seu objecto seja avaliável
de modo irrefutável, será igualmente pertinente indagar da sua exclusão da órbita das
convenções comissórias, assumindo a questão, nesta sede, contornos mais
controversos.3012
Desde logo, será de averiguar se as partes poderão conceder um mandato ao
credor pignoratício para, isoladamente, proceder à cobrança dos créditos pecuniários ou
com objecto fungível (assim afastando o regime vertido no art.º 685.º, n.º 2) e mesmo
pacto comissório, mas antes expressão de um limite próprio deste, nos termos do qual “il vincolo di un
bene al diretto soddisfacimento del creditore, si sottrae alla sanzione di nullità dell’art. 2744 c.c., quando
sia accompagnato dall’obbligo del creditore di pagare al debitore la eccedenza, rispetto al credito
garantito, del valore della cosa accertato successivamente all’inadempimento”.
3012
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 99 e segs., alude à existência de opiniões a favor e
contra a manutenção da proibição do pacto comissório quando a garantia recaia sobre créditos (bem
como, por arrastamento, à necessidade de autorização judicial e de avaliação pericial). A não aplicação da
interdição pode justificar-se pela não verificação da ratio da mesma nesta hipótese (ao menos quando o
crédito possua um valor nominal bem conhecido, porquanto o devedor não corre o risco de
aproveitamento por parte do credor e, por outro lado, porque a exigência de autorização judicial e de
avaliação principal não se adequa quando sejam empenhados créditos de valor diminuto), bem como pelo
facto de a norma que estabelecia a proibição – art.º 2078.º do CCF - falar da impossibilidade de
apropriação, enquanto os créditos não são passíveis de direito de propriedade, mas apenas de titularidade
(para além do facto de a prática comercial consagrar frequentemente cláusulas a prever o pagamento
directo do credor pignoratício, sem necessidade de autorização judicial ou avaliação de terceiros). Já a
subsistência da proibição pode ancorar-se no âmbito de aplicação geral, a todas as modalidades de
penhor, da norma que consagra a interdição, assim como no eventual interesse da intervenção judicial
(“Le juge vérifie si le débiteur n’a pas exécuté son obligation comme le soutien le créancier. Il s’assure
également que le créancier ne perçoit pas du débiteur de la créance nantie une somme supérieure à celle
qui lui est due”) – porém, o mesmo Legeais, Sûretés 2009 cit., pág. 391, em face dos novos dados
normativos introduzidos pela reforma de 2006 (em especial os já mencionados art.ºs 2363.º - nos termos
do qual, após a notificação ao terceiro devedor do crédito empenhado, apenas o credor pignoratício
poderá receber a prestação – e, sobretudo, 2364.º, ao permitir que o credor pignoratício possa executar a
garantia, conservando as quantias cobradas em conta aberta em estabelecimento bancário, ainda que não
se encontre vencido o crédito garantido; na hipótese inversa, de vencimento do crédito garantido antes do
dado em garantia, o credor poderá requerer a atribuição do crédito em pagamento), considera que deles
resulta o final da proibição do pacto comissório no domínio do penhor de créditos (no mesmo sentido,
Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit., pág. 563, salientando que a atribuição convencional do crédito
onerado não significa outra coisa senão que “le créancier nanti peut librement convenir avec le
constituant un pacte commissoire”). Mais favorável à não aplicação da proibição no âmbito do penhor de
créditos se mostra Garcia Vicente, La prenda cit., pág. 139, na medida em que “Lo prohibido es la
causalización de la apropriación al impago del crédito garantizado (…) y se trata con ella de evitar que
el acreedor retenga un bien de valor notablemente superior al de la deuda, en perjuicio tanto del propio
deudor como del resto de sus acreedores, y en este punto no hay posibilidad alguna de minusvalorar el
crédito en perjuicio del pignorante o de sus acreedores (…) es un mecanismo de ejecución que no
permite la apropriación del sobrante; es una tarea relativamente sencilla la des establecer su existencia e
importe”, posição esta já confirmada por decisões do Supremo Tribunal, nas quais já se reconheceu que
“una vez cobrado por el acreedor pignoraticio el importe del crédito, el pacto de compensación con lo
debido por el deudor pignorante para extinguir la deuda no repugna a la prohibición del pacto
comisorio”. Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 71, consideram ser inútil e ilógico proceder à venda do
objecto do penhor, operando-se a realização do penhor através da dispensa do dever do credor
pignoratício restituir tal bem ao seu proprietário, enquanto Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 227 e segs,
sustenta que, no penhor de créditos, o recurso à venda não se justificará em determinados casos e, por
outro lado, a atribuição judicial do bem em pagamento ao credor (admissível e cujo efeito principal será o
de produzir uma cessão do crédito empenhado para o credor pignoratício, que, desse modo, se deparará
com um devedor presumivelmente mais solvente) dispensará uma avaliação pericial (pelo menos quando
o crédito dado em penhor seja certo, tendo em conta a ausência de risco de sub-avaliação do bem).
872
para que se possa apropriar das quantias cobradas,3013 compensando-as com o crédito
garantido.
A nosso ver, se o crédito garantido ainda não se encontrar vencido mas já o
estiver o onerado,3014 a atribuição de um mero direito de cobrança exclusivamente ao
3013
Como bem notam Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 292, 295 e 296, existe uma
grande diferença entre a convenção nos termos da qual o credor poderia apropriar-se do capital do crédito
recebido em garantia e outra que lhe permita somente cobrar esse crédito (naturalmente que, face à
proibição do pacto comissório, as dúvidas incidem sobre a primeira destas convenções, mas estes Autores
citam várias decisões judiciais aceitando a sua validade, tendo em conta a especificidade do objecto da
garantia, desde que o credor seja obrigado a restituir ao devedor o eventual excesso). Em termos
aproximados, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 233 e 234, noticia como a jurisprudência francesa
reconhece a validade de cláusulas contratuais atribuindo ao credor pignoratício o direito de cobrar - e de
se fazer pagar por compensação com o montante com o crédito garantido - o crédito empenhado (na
ausência deste tipo de estipulações, a Autora entende que o credor pignoratício poderá cobrar
directamente o crédito empenhado, mas deverá consignar o montante arrecadado numa conta especial e
bloqueada, transformando-se a garantia num penhor de dinheiro, não sujeito à proibição do pacto
comissório, razão pela qual será admissível a sua atribuição em pagamento sem necessidade de
intervenção judicial).
3014
Tem-se admitido, quanto ao penhor sobre um crédito que se vença antes do crédito garantido e após a
cobrança do crédito recebido em penhor (e cujo objecto seja uma prestação em dinheiro) por parte do
credor pignoratício, que a garantia se transforma num penhor sobre o dinheiro até ao vencimento do
crédito assegurado, sem que tal viole a proibição do pacto comissório (Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 64
e Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., págs. 75 e 76, ancorando estes últimos Autores a validade no facto de
o pagamento do crédito empenhado se fazer sem prejuízo dos direitos dos outros credores com uma
preferência superior em grau) ou até, em termos mais incisivos, simplesmente que as partes possam
convencionar que, no caso de incumprimento do crédito garantido, o crédito empenhado seja atribuído ao
credor (Weil, ob. cit., pág. 96 - argumentando que tal convenção não será usurária, uma vez que o crédito
tem um valor nominal não subestimável em prejuízo do devedor - Aynés e Crocq, ob. cit., pág. 218 -
apenas se o objecto do crédito empenhado consistir em dinheiro e sem prejuízo do dever do credor
devolver ao devedor o eventual excesso – Théry, ob. cit., págs. 323 e 329 e, com dúvidas, Ancel, ob. cit.,
pág. 116). Por seu turno Philippe Delebecque, L’atribution du bien. cit., pág. 127, noticia que a
jurisprudência tende a consentir que o credor pignoratício possa receber um mandato para encaixar o
pagamento das mãos do terceiro devedor do crédito empenhado e até, num ou outro aresto mais isolado,
que o credor possa adquirir o produto do crédito empenhado (solução esta repudiada pelo Autor, alegando
que “traduit une confusion entre le jeu de la compensation – mode normal de réalisation du gage sur
créance – avec la mise en oeuvre du pacte comissoire. Ce n’est pas parce que la compensation est
possible dans ce genre de gage, que pour autant le pacte comissoire est valable. Même si le résultat est
identique et se traduit par un transfert de propriété, la tecnhique pour y parvenir est différente”). Já
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 99 e segs., embora aponte para a aplicação da proibição
ao penhor de créditos, excepciona o caso em que o crédito empenhado se vença antes do crédito
garantido, hipótese na qual admite que as partes acordem que o pagamento por parte do devedor do
crédito onerado extinga o crédito garantido (verificando-se, então, uma cessão de créditos a título de
pagamento) ou, em alternativa, que o credor pignoratício deva receber o pagamento do seu devedor e este
não respeite tal pacto (neste caso, o credor que receba o pagamento do devedor do crédito garantido não
se poderá dele apropriar - devendo antes consigná-lo em depósito – transformando-se a garantia num
penhor de dinheiro e, assim sendo, poderá o credor, no momento do vencimento do seu crédito, dele se
apropriar, uma vez que o pacto comissório não alcança o chamado “gage espèces”). Contra, Piedlièvre,
Les sûretés cit., pág. 194, argumentando que a proibição contida no art.º 2078.º do CCF é de aplicação
genérica (no mesmo sentido, em face do direito italiano, Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 163 e 164,
escrevendo que “benché l’art. 2744 c.c. parli di “cosa” data in pegno, non si può seriamente ritenere che
se oggetto del pegno non è una cosa materiale (bensì un credito) l’accordo sia lecito (…) ricorrendo qui
identità di ratio con quella verosimilmente a base del patto relativo a cosa materiale”). No nosso
ordenmento e a propósito do penhor de aplicações financeiras, já foi validada a cláusula nos termos da
qual o credor pignoratício fique autorizado a “utilizar do saldo resgatado as importâncias necessárias
para o pagamento das responsabilidades asseguradas”(cfr. Acórdão da Relação do Porto de 4/5/2004, in
www.dgsi.pt, com o argumento que se trata antes de uma compensação, não se verificando os perigos –
nomeadamente a potencial aquisição do bem empenhado pelo credor em condições desfavoráveis para o
873
credor pignoratício não apresenta obstáculos de maior, não consubstanciando, por si só,
uma via alternativa de execução da garantia, sendo admitida pela nossa lei, mesmo na
ausência de pacto nesse sentido, para todos os créditos que não tenham por objecto
dinheiro ou outra coisa fungível (art.º 685.º, n.º 1), produzindo como efeito uma sub-
rogação do objecto da garantia, que se transfere do crédito para a prestação resultante da
sua cobrança.
Mas ainda que o objecto do crédito empenhado seja constituído por dinheiro ou
outra coisa fungível, não nos repugna, ao menos de iure condendo (de iure condito, o
n.º 2 do art.º 685.º parece opor-se inapelavelmente a esta solução), que ao credor
pignoratício seja atribuída idêntica faculdade, desde que a prestação não seja colocada
inteiramente à disposição do credor pignoratício (v.g., sendo o crédito garantido um
crédito pecuniário, colocando-se o dinheiro numa conta bloqueada) até ao momento do
vencimento do seu crédito: uma vez vencido este, o credor executará a garantia ou,
estando em causa dinheiro, invocará a compensação nos termos adiante explanados.
Pelo contrário, será de muito duvidosa legitimidade a convenção que atribua ao
credor pignoratício, antes do vencimento do seu crédito, o direito, não apenas de cobrar,
mas igualmente de se apropriar, do crédito onerado entretanto vencido, não tanto por se
traduzir numa violação da interdição do pacto comissório, mas pela razão, singela mas
decisiva, que estaríamos perante a execução de uma garantia acessória de obrigação
ainda não vencida (assim sendo, caberá ao credor pignoratício, ainda que lhe tenha sido
atribuída a faculdade de cobrança do crédito onerado, aguardar pelo vencimento da
obrigação garantida) – só assim não será se as partes acordarem, em determinadas
circunstâncias, o vencimento antecipado do crédito garantido, destarte permitindo a
cobrança por via de compensação.
Quando ambos os créditos, garantido e onerado, se encontrem vencidos, cumpre
avaliar se a execução deste tipo de garantia será praticável mediante simples
compensação (podendo mesmo invocar-se o regime legal da compensação), ou até se
essa forma de execução será utilizável em caso de vencimento do primeiro mas não do
segundo (nomeadamente estipulando uma cláusula de compensação convencional, por
não estar verificado um dos pressupostos da compensação legal, o vencimento recíproco
dos créditos a compensar).3015
empenhador - que com a proibição do pacto comissórios se pretendem evitar – em sentido análogo, Neves
de Oliveira, ob. cit., pág. 56, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 116).
3015
Se o crédito garantido se vencer antes do crédito empenhado, a alienação do crédito poder-se-á
questionar quando esteja em causa um crédito pecuniário, tendo em conta a eventual desnecessidade de
proceder à venda de um bem cujo valor é objectivamente determinável, surgindo então a dúvida sobre se
será possível ao credor pignoratício apropriar-se directamente do conteúdo da prestação creditícia,
surgindo as reticências à luz da nulidade das convenções comissórias. Admitem tal hipótese Rubino, Il
pegno cit., pág. 246 e Ruscello, ob. cit., págs. 171 e 172, justificando este último Autor a sua posição
“nell’economia degli atti ovvero nella compensazione”, sendo que este fundamento pressupõe que
também o crédito empenhado se encontre vencido, pois, caso contrário, faltaria o requisito da
exigibilidade recíproca. Tommaso Mancini, ob. cit., págs. 288 e 289, vai mesmo mais longe, afirmando
que a proibição só abrange o penhor de créditos quando a prestação objecto deste consistir num bem
infungível - ou, sendo fungível, seja diverso de dinheiro e do objecto do crédito garantido, sendo
inaplicável - , tendo em conta o disposto no art.º 2803.º do CCI, que autoriza o credor pignoratício a
cobrar e reter o valor da prestação decorrente do crédito recebido em penhor, ou seja, “attribuisce al
creditore, titolare di un diritto do pegno su crediti, quel potere che è invece vietato al titolare di un diritto
di pegno su res dal’art. 2744 c.c.”. Em face do direito francês, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 234 a
236, revela que as estipulações contratuais que atribuam ao credor pignoratício o crédito empenhado na
data do vencimento do crédito garantido podem ser consideradas válidas, seja em razão do valor objectivo
do bem onerado, seja por força da ausência de risco de aproveitamento do devedor por parte do credor
pignoratício (na medida em que o valor do crédito é perfeitamente conhecido), embora reconhecendo a
existência de posições contrárias (nomeadamente enraizadas no facto de o art.º 2078.º ter um alcance
874
A licitude destas convenções afigura-se-nos inequívoca, mesmo prescindindo de
uma tomada de posição acerca da natureza regular ou irregular da garantia, quando se
trate de créditos puramente pecuniários, atendendo ao valor inquestionável objectivo da
garantia (dispensando qualquer operação específica de avaliação), limitando o valor da
compensação ao montante do crédito garantido (assim evitando o locupletamento do
credor pignoratício a expensas do empenhante): deste modo, encontram-se preenchidos
os requisitos de que depende a licitude das convenções marcianas (a tudo isto
acrescendo a inidoneidade da alienação como modo de execução da garantia).3016
Quando, ao invés, o crédito onerado tenha como objecto outros bens, ainda que
fungíveis, diversos de dinheiro,3017 a licitude destas cláusulas de compensação encontra-
se dependente da verificação cumulativa dos requisitos atrás expostos que condicionam
a validade das convenções marcianas, designadamente uma a obrigação de devolução de
um eventual excesso de valor do crédito onerado face ao garantido e uma avaliação
objectiva daquele:3018 quando tais requisitos não sejam respeitados e ainda que o credor
pignoratício goze da faculdade de cobrar o crédito onerado, restar-lhe-á executar a
prestação ou o objecto resultantes daquela cobrança.3019
geral, não discriminando a interdição em função da natureza do objecto empenhado – neste sentido,
Legeais, Les garanties conventionelles cit., pág. 99 e segs., excepcionando do âmbito da proibição
unicamente a hipótese inversa, de vencimento do crédito empenhado antes do garantido), enquanto Aynès
e Crocq, Les sûretés cit., pág. 218, que, no penhor de créditos, “La raison d´être de la prohibition du
pacte comissoire ne se rencontre pas, losque la créance a pour object une somme d’argent: la valeur du
gage saute aux yeux. Il suffit, en l’état actuel du droit positif, qu’il reçoive un mandat ou une délégation,
qui ne constituent pas un pacte commissoire si le gagiste doit imputer les sommes percues sur la créance,
le reste appartenant à son débiteur”. Noticia a existência de várias decisões judiciais defendendo a
inaplicação da proibição dos pactos comissórios ao penhor de créditos, na medida em que se conhece à
partida o valor do crédito onerado e que, por isso, não subsiste o risco de sub-avaliação do bem
empenhado, Daniel Fasquelle, ob. cit., pág. 35.
3016
A este respeito Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 158 e segs., começa por destacar que a atribuição
deste ius exigendi ao credor pignoratício se destina à conservação do bem recebido em garantia e não
como um mecanismo de satisfação desse mesmo credor, para, em seguida (ob. cit., pág. 168 e segs.),
admitir a celebração de convenções entre as partes destinadas a permitir a compensação de créditos
(compensação convencional, a qual normalmente é facultativa, no sentido em que atribui às partes uma
mera faculdade – e não um dever – de a ele recorrerem), ainda que não se encontrem preenchidos todos
os requisitos da compensação legal, quer para créditos já existentes, quer estabelecendo as condições em
que poderá, no futuro, ocorrer a compensação de créditos (embora, neste último caso, a cláusula apenas
produza efeitos relativamente a terceiros a partir do momento em que se preencham os requisitos da
compensação e, especialmente, a partir da data de nascimento dos créditos objecto de compensação),
embora o Autor esclareça que a mera existência de uma cláusula de compensação não constitui um
penhor (o mesmo sucedendo com a criação de um cativo bancário, pois este, por si só, não confere ao
credor qualquer meio ao credor para executar a garantia e, por outro lado, a intenção das partes é
unicamente de bloquear uma determinada conta bancária). No direito brasileiro, o art.º 1455.º do CCB
(depois de determinar que o credor pignoratício deverá cobrar o crédito empenhado, logo que este se
vença – depositando a quantia cobrada, caso se trate de um crédito pecuniário, ou sub-rogando-se no
objecto prestado, nos demais casos), acrescenta que, na eventualidade de o crédito garantido por penhor
se encontrar vencido no momento da cobrança do crédito onerado (ou seja, quando ambos se encontrarem
vencidos), o credor pignoratício poderá, caso o crédito onerado seja pecuniário, reter a quantia que lhe é
devida.
3017
Para Ruscello, ob. cit., págs. 171 e 172, a compensação não será válida quando o objecto do crédito
dado em penhor seja uma coisa diversa de dinheiro, atenta a falta de homogeneidade entre as prestações.
3018
Em termos análogos, Neves de Oliveira, ob. cit., págs. 55 e 56, considerando que, no penhor de
crédito, “desvanecem-se as razões que obstariam à apropriação do objecto do penhor pela possibilidade
de exacta coincidência valorativa entre o objecto do penhor e a res debita”, desde que o credor
pignoratício seja obrigado a restituir o eventual excesso ao devedor).
3019
Assim dispõe o art.º 1455.º do CCB, determinando que, quando o crédito empenhado tenha como
objecto a entrega de uma coisa, esta sub-rogar-se-á enquanto objecto da garantia, podendo o credor
pignoratício executá-la nos termos gerais.
875
Porém e conforme já realçado, em termos gerais, todos estes pactos de
compensação apenas poderão ser invocados, havendo vários credores com penhor sobre
o mesmo crédito onerado, por aquele cuja garantia seja prioritária (exigência reforçada,
no penhor de créditos, pelo disposto no art.º 685.º, n.º 3).
Mas a exclusão de determinados bens da órbita da proibição do pacto comissório
pode abranger, por razões diversas, outros bens, designadamente os direitos reais
menores3020, os bens de escasso valor3021 ou o valor do resgate de uma apólice de um
seguro de vida.3022
Correndo o risco de nos repetirmos e na ausência de suporte legal expresso para
admitir esta (suposta) ressalva à proibição, condicionamos a validade de tais excepções
à verificação dos requisitos exigidos para a validade das convenções marcianas: ora, se
assim é, pelo menos na última hipótese aventada, não se verifica a avaliação
independente e objectiva do bem onerado e, no que diz respeito aos bens de escasso
valor, a ausência de um critério seguro a partir do qual tal (suposta) excepção devesse
operar, conduzem-nos a duvidar seriamente da sua invocação.
Mas as dúvidas quanto ao âmbito da proibição do pacto comissório não se
cingem ao objecto onerado, abrangendo igualmente o constituinte da garantia,
discutindo-se se aquela interdição alcança as garantias prestadas por um terceiro não
devedor,3023 a favor do fiador3024 ou, noutro plano, por parte de um não consumidor.3025
3020
Neste tipo de convenções, o credor insatisfeito adquiriria, não a propriedade, mas um direito real
menor sobre um determinado bem do devedor – sustenta a validade destes acordos, Fulvio Gigliotti, ob.
cit., págs. 162 e 163, porquanto “non possa avere lo stesso significato del trasferimento di proprietà, in
quanto non renderebbe inutile la fase finale della vendita, con diritto di prelazione, della cosa, vincolata
in garanzia”.
3021
Aponta este exemplo Reglero Campos, El pacto comisorio cit., pág. 260, enfatizando que a alienação
deste tipo de bens pelas vias comuns traria mais prejuízos do que benefícios.
3022
Mais concretamente, o caso é o de uma companhia de seguros conceder um empréstimo a um
segurado seu, garantido através da dação em penhor da apólice do seguro de vida, permitindo-se à
seguradora, em caso de incumprimento por parte do devedor, apropriar-se do valor do resgate da apólice,
restituindo um eventual excesso desta relativamente ao valor dívida. Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 81
e segs., entende que tal fattispecie se traduz num verdadeiro pacto comissório, operando através do
mecanismo da compensação, ou melhor, em caso de incumprimento o bem onerado transfere-se para o
credor e, apesar de este ter a obrigação de devolver a diferença ao devedor, tal constitui “una irrizione, in
quanto, o questa differenza non esisterà affatto, oppure essa consisterà in una somma molto picola e per
nulla corrispondente alla reale differenza tra il credito e il vero valore della polizza, la cui stima o
meglio il modo con cui essa vien fatta, costituisce il più valido argomento a favore dell’illiceità della
convenzione. Essa viene infatti compiuta (…) dallo stesso creditore, che cosi viene ad essere
contemporaneamente mutuante e stimatore”, pelo que o valor do resgate não corresponde àquele que a
apólice teria em caso de alienação a preço de mercado ou de acordo com uma perícia independente (sendo
irrelevante o facto de a apólice conter no seu verso, em momento anterior à concessão do empréstimo,
uma tabela contendo o seu preço).
3023
Realçam este aspecto, Jobard-Bachelier, ob. cit., pág. 63 e, especialmente, Júlio Gomes, Sobre o
âmbito da proibição cit., págs. 64 e 69. Este último Autor desconfia da legalidade destes pactos
celebrados entre o terceiro garante e o credor, por entender que “o credor poderia usar a sua ascendência
sobre o devedor e a vulnerabilidade económica deste para levar o devedor a encontrar um terceiro – o
cônjuge, um parente, uma sociedade que controlasse - que estivesse disposto a garantir o crédito (…).
Ainda mais grave seria o perigo de os credores pretenderem relações simuladas em que o devedor
principal surgiria ficticiamente indicado como terceiro, enquanto um terceiro apareceria
convenientemente indicado como devedor” (para além disso, o preceito que impede as convenções
comissórias não distingue se o bem dado em garantia pertence ao devedor ou a terceiro). Também para
Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 159 a 162, tais pactos serão nulos (pois também eles serão susceptíveis de
colocar em risco a subsistência das garantias típicas, por ele identificada como a ratio da interdição legal),
mas salientando que quem ancore a inibição das convenções comissórias na tutela do devedor deveria
admitir a validade das mesmas, “dato che, se a stipulare il patto è un terzo, non ricorrerebbe alcuna
esigenza di tutela (non essendo egli personalmente obbligato)”, o mesmo sucedendo com aquelas que
876
sustentam radicar a proibição legal na protecção da par conditio creditorum (alegando o Autor que tal
princípio é apenas vinculativo para o devedor). Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 266, dá conta de
decisões judiciais contraditórias (as favoráveis alegando não estarem presentes as exigências de tutela do
devedor ou da par conditio creditorum inspiradoras da inibição legal; as desfavoráveis sustentando que a
proibição legal tutela, não apenas o devedor, mas qualquer sujeito exposto a uma responsabilidade
patrimonial e, por isso, também o proprietário de um bem objecto de uma alienação com fins de garantia)
e do facto de a doutrina se inclinar, maioritariamente, para a invalidade destes acordos, com base no
argumento da jurisprudência que adopta esta posição. Finalmente, Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 40,
propende para a invalidade das convenções comissórias quando o objecto da garantia seja propriedade de
terceiro, não só porque a lei não distingue esta situação daquela, mais comum, em que devedor e
constituinte são a mesma pessoa, mas sobretudo porque subsiste neste caso a ratio da proibição que, na
óptica do Autor reside, ao menos parcialmente, na desvirtuação das garantias reais (ou seja, apesar de não
haver coacção directa sobre o devedor “si verrebbe però smpre a violare la legge se si permettesse a un
creditore di realizzare un profitto certamente superiore al suo diritto. In tal caso nulla importa se
l’oggetto della garanzia sia di proprietà del debitore o di un terzo”).
3024
Nesta hipótese, contemplada por Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 162, o devedor convenciona com o
fiador a transferência do bem para este último, no caso de este ser obrigado a cumprir a obrigação
principal em vez do devedor (o Autor considera que tal pacto é inválido, uma vez que “avvenuto
l’adempimento del fideiussore, questi sarebbe surrogato nei diritti del creditore, diventando perciò
creditore pignoratizio: anche rispetto ad esso, pertanto, oporerebbe la ratio del divieto come sopra
individuata, onde il patto dovrebbe comunque ritenersi nulla”, salvo tratando-se de um pacto autónomo,
caso em que a questão deverá ser resolvida nos mesmos termos destes e que será escalpelizada no texto).
Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 88 e segs., inclina-se para a invalidade de semelhante acordo quando o
credor acorde com um terceiro – futuro fiador – condicionar a concessão de crédito ao devedor à
existência de uma garantia pessoal e o fiador, por seu turno, impõe que, caso tenha de cumprir em vez do
devedor, se aproprie do objecto dado em garantia (pois, em tal caso, o devedor, em estado de necessidade,
é compelido a aceitar tal convenção, ficando o fiador com o direito de adquirir um bem de valor
potencialmente superior ao do montante por si dispendido: ora, tal comprova “il carattere usurario ed
immorale della convenzione”). Em termos mais gerais, o Autor entende ser necessário distinguir
consoante o valor do objecto da garantia real seja claramente superior ao da dívida (caso em que o pacto
será inválido, ao permitir ao fiador apropriar-se de um valor superior ao daquele por si desembolsado),
seja apenas ligeiramente superior (destinado a compensar o fiador pela prestação da garantia e pelo risco
que esta implica ou pelas flutuações do valor do bem: nesta hipótese, o Autor considere tal cláusula lícita
uma vez que “il margine può essere considerato irrilevante. L’intervento del fideiussore non sarà più
dovuto normalmente ad intese col creditore, ma sarà questo a richiedere (…) l’aggiunzione alla garanzia
reale, non troppo sicura, di una garanzia personale: mancando, in questo caso, l’ingiusto guadagno, la
convenzione (…) non può considerarsi immorale”) ou equivalente e até levemente inferior (caso em que a
intervenção do fiador se destina a compensar o défice de valor do bem – e, por isso, não se vislumbra
qualquer ilegalidade - mas de difícil verificação por não ser plausível que alguém se encontre disposto a
suportar, além dos riscos inerentes à fiança, o de se apropriar de uma coisa de valor inferior àquilo que
tenha desembolsado). Estas mesmas conclusões valerão para a fiança parcial, com a nuance da última
hipótese delineada que, além de mais frequente, é susceptível de permitir um ganho excessivo ao fiador –
designadamente quando a soma por ele paga seja notoriamente inferior ao valor do objecto onerado - e
que, por isso, deverá conduzir à ilegalidade da fattispecie. Por último, o Autor desvaloriza o facto de a
norma contendo a proibição do pacto comissório apenas mencionar um aproveitamento do devedor por
parte do credor, alegando que o legislador “ha voluto evitare al debitore una sopraffazione da parte di
qualcuno da cui egli dovesse dipendere per la concessione di un pó di denaro (…) l’esservi un fideiussore
al posto del creditore nulla toglie alla sostanza del patto per il quale il debitore è destinato a perderei n
favore del fideiussore la cosa costituita in garanzia in corrispettivo dell’ammontare del debito. E una
volta soddisfatto il creditore, il fifeiussore subentra nei diritti di questo”. Entendendo que, quando o
devedor encontre um fiador e acorde que, no caso de este último pagar a dívida, adquirirá a propriedade
de um bem do devedor que se encontra empenhado a favor do credor, a proibição não opera, por não ter
sido o beneficiário da atribuição do bem quem emprestou dinheiro ao devedor, vide Troplong, ob. cit.,
pág. 111.
3025
Neste contexto, Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 18 e segs., defende que só deverá aplicar-se a
proibição “ se nel caso specifico si riscontrino gli elementi costitutivi della soggiogazione”, assegurando
ainda que “a contrario, proprio il carattere eccessivo della sanzione della nullità comminata ad una
fattispecie in cui la restituzione dell’indebito sembrerebbe essere il remedio più proporzionato potrebbe
877
Em nosso entender, a resposta a (mais) esta interrogação se encontra
umbilicalmente ligada à posição adoptada quanto ao fundamento da interdição das
convenções comissórias, porquanto o radicar desta exclusivamente na necessidade de
protecção do devedor conduzirá, tendencialmente, a tomar como lícitos os pactos
comissórios subscritos pelo terceiro garante (ao menos quando este não possua
nenhuma outra relação debitória para com o credor); ao invés, o ancorar daquela
proibição em considerações de índole geral ou de defesa de terceiros (nomeadamente
dos demais credores do prestador da garantia), conduz a alargar o domínio de aplicação
da interdição também às hipóteses em que a garantia seja prestada por terceiro.
Conforme salientámos anteriormente, ao fazer coincidir a ratio da inibição em
razões suplementares às de tutela do devedor, somos de parecer que a aquela alcança
igualmente os casos em que os pactos sejam subscritos por terceiros não devedores, por
também eles afastarem os princípios da tipicidade das garantias reais e da sua graduação
recíproca (excepto, naturalmente, quando configurem um pacto marciano e preencham
os respectivos pressupostos).
indicare la necessita di restringerne l’applicazione a quei casi in cui l’elemento della coartazione del
debitore appare concretamente”.
3026
Bustos Pueche, ob. cit., págs. 567 e 568, distingue estes dois conceitos, definindo o pacto impróprio
como aquele que funciona como uma garantia autónoma, independentemente de um contrato de garantia
típico; por seu turno o pacto oculto ou autónomo seria aquele em que as partes obtêm o mesmo resultado
da convenção comissória mas utilizando, ao menos aparentemente, outras figuras lícitas, atribuindo-lhes
outras funções.
3027
Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 9 e 10, enquadra na categoria dos pactos comissórios autónomos as
convenções que, em consequência do incumprimento por parte do devedor, a propriedade de um
determinado bem se transfere para o credor (acordos suspensivamente condicionados), bem como aqueles
em que a propriedade da coisa se consolide em caso de incumprimento ou a aquisição se resolva em caso
de cumprimento (acordo resolutivamente condicionado), residindo a autonomia destas fattispecie face às
relativamente às tipificadas na lei na ausência de qualquer direito real sobre o bem prometido, isto é,
“l’accordo si riferisce infatti ad un bene libero, la cui disposizione in funzione di garanzia avviene
unicamente a mezzo della descritta pattuizione, diretta alla attribuzione della proprietà del bene a
vantaggio del creditore rimasto insoddisfatto”. Inclui nesta categoria a venda com pacto de resgate, a
venda sujeita à condição suspensiva do incumprimento, o sale and lease back, a procuração irrevogável
para vender atribuída ao mutuante e a venda com reserva de propriedade.
3028
Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., págs. 229 a 231, salienta que o essencial é que se opere a
transferência do direito ou do bem, pois “Independentemente do momento em que se opere a
transferência do direito, o que é certo é que o resultado a que se chega, e a que a lei pretende obstar, é
sempre o mesmo: a diferença de valor entre o objecto da garantia que passa nesse momento (ou que se
consolida, no caso de transmissão fiduciária) para a esfera do credor e a obrigação garantida” ou,
noutros termos, “É assim indiferente que, como na previsão do art.º 694.º, a transferência da propriedade
fique sujeita à condição suspensiva do incumprimento ou que, como pode ocorrer na venda em garantia,
878
A questão surge porque a lei apenas proíbe expressamente as convenções
comissórias quando estas tenham como objecto um bem onerado com um penhor ou
uma hipoteca (cfr. art.ºs 678.º e 694.º),3029 nada dizendo acerca das hipóteses em que a
transferência da propriedade conduza a resultados análogos à constituição de uma
garantia típica munida de pacto comissório,
Conquanto a questão extravase, em certa medida, o âmbito desta dissertação, a
invalidade deste tipo de pactos pode assim ancorar-se, essencialmente, na identidade de
efeitos com os dos pactos comissórios típicos3030 ou, de modo distinto, na
a transferência da propriedade fique consolidada com o incumprimento, não tendo então o credor de
fazer regressar a coisa ao seio patrimonial do devedor”, enquanto Januário da Costa Gomes, ob. cit.,
págs. 91 e 92, sustenta que o momento temporal diverso em que se produz a transferência da propriedade
(no pacto comissório típico e nas alienações fiduciárias) não pode “justificar a abissal disparidade de
regime, tanto mais que o pacto comissório corresponde também a uma alienação, só que condicionada
ao incumprimento do devedor, incumprimento esse que funciona como condição suspensiva da aquisição
pelo credor”, concluindo que a justificação deve ser buscada na própria ratio da interdição legal dos
pactos comissórios. Em termos análogos, Massimo Bianca, Patto cit., págs. 715 e 719 a 721 e
especialmente in Il divieto cit., pág. 145 e segs., desvaloriza a circunstância de a transferência da
propriedade ser imediata ou diferida, evidenciando que excluir do âmbito da proibição as primeiras (ainda
que com fundamento na licitude da venda com pacto de resgate, aspecto este a que o Autor replica com a
natureza de venda do próprio pacto comissório com efeitos suspensivos) significaria colocar o limite da
aplicação da interdição unicamente no momento da passagem da propriedade para o credor: nesta
conformidade, a ilicitude de ambos deve buscar-se no facto de em qualquer dos casos se dar a definitiva
apropriação do bem em resultado do incumprimento do devedor (acrescentando que é precisamente por
tenderem a substituir as garantias típicas que os pactos autónomos deverão ser invalidados).
3029
No caso, porventura académico, de um pacto comissório recair sobre um bem onerado com um
privilégio creditório especial, Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 164 a 166, qualifica-o como nulo, pois, à
semelhança do que sucede com as demais garantias reais, o seu efeito principal é o direito de preferência
e, deste modo, a ratio da proibição também alcança esta fattispecie.
3030
Neste sentido, Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 94 e segs., assegurando que, apesar de não apresentar
todos os elementos do pacto comissório ordinário, “la legge deve egualmente vietare perchè anche esso
immorale e dannoso agli interessi degli altri creditori”, relativizando a circunstância de o legislador
apenas interditar expressamente as convenções comissórias quando o bem objecto de transferência
formasse objecto de uma garantia real, tendo em conta que os mesmos inconvenientes estão presentes nos
pactos impróprios e, se estes não fossem sancionados, se concederia ao credor um óptimo expediente para
ilidir a proibição legal (até porque, acrescenta o Autor, o credor terá maior facilidade em convencer o
devedor a celebrar um pacto comissório impróprio, uma vez que neste, ao contrário das convenções
típicas, “il debitore conserva perfettamente intatta la sua sfera patrimoniale e sarà quindi più propenso
ad acconsentire alla convenzione”): apenas escapariam à invalidade os pactos em que o objecto fosse de
valor igual ao total em dívida ou em que se imponha a avaliação do bem por um terceiro (neste último
caso estaremos, aliás, perante um pacto marciano). Similarmente, entre nós, vide Pestana de Vasconcelos,
Direito das garantias cit., págs. 206 e 207, considerando que a proibição pretendeu inviabilizar um
resultado potencialmente prejudicial para o devedor, pelo que deverá estender-se àquelas figuras com
uma estrutura diversa daquela prevista na lei em que tal resultado se produza ou possa produzir, ou seja, a
proibição “pretende evitar é um determinado resultado que não se limita às figuras para as quais foi
directamente prevista e que consiste em evitar o prejuízo que o devedor sofreria em resultado do
desequilíbrio entre o valor da coisa dada em garantia e a obrigação garantida se se permitisse ao credor
ficar com ela sem avaliação ou com uma avaliação realizada pelo por ele próprio no caso de
incumprimento da obrigação garantida”. Em termos parcialmente divergentes, Pièrre Crocq, ob. cit., pág.
168 e segs., admite que a execução daquelas garantias se pode compaginar com a interdição comissória,
pois o não enriquecimento injustificado do credor que subjaz a tal interdição pode respeitar-se na
execução das garantias fiduciárias, desde que, possuindo o bem onerado um valor superior ao do crédito
garantido, o credor conserve a propriedade unicamente se restituir ao empenhante a diferença
(considerando-se nula qualquer cláusula em contrário), ou seja, desde que a determinação do valor do
bem onerado impeça uma exploração do devedor, o que sucederá na reserva de propriedade (uma vez que
o valor do bem se encontra definido no contrato de compra e venda e, se o valor da dívida for inferior a
este, o credor conservará o bem, mas terá que devolver a diferença ao devedor) e nas garantias fiduciárias
que incidam sobre bens objectivamente avaliáveis, como dinheiro, créditos pecuniários ou valores
mobiliários, mas poderá não ocorrer com outros bens, caso em que será necessário aplicar às garantias
879
particularidade dos efeitos deste tipo de convenções face aos produzidos pelas garantias
reais.3031
Um dos negócios mais frequentes, neste âmbito, é a venda com pacto de resgate
ou pacto obrigacional de venda a retro, caso em que, não raras vezes, o preço representa
o papel de um mútuo e o seu pagamento só se deverá efectuar na data da restituição da
quantia mutuada,3032 podendo a invalidade fundamentar-se na violação directa das
fiduciárias as regras do penhor que impõem a alienação judicial ou a avaliação do bem por um perito
independente. Posição diversa é a de Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 138 e segs., que, depois de identificar
como ratio da proibição a necessidade de salvaguardar as garantias reais típicas, sustenta a normal
licitude dos pactos comissórios autónomos, por não violarem aquela ratio, pois “la garanzia típica e la
pattuizione comissoria autonoma sembrano costituire due forme di (usiamo l’espressione in senso non
rigoroso) garanzia distinte, ciascuna con specifici vantaggi e rischi connessi”, concluindo até que os
pacto autónomos são mais arriscados para o seu beneficiário, nomeadamente em caso de deterioração do
bem – caso em que o titular de uma garantia real pode pedir a substituição do objecto garantia e, na sua
falta, o pagamento imediato do crédito, enquanto o beneficiário de um pacto autónomo apenas pode
praticar actos de conservação, uma vez que o seu direito sobre o bem é condicional, suspensiva ou
resolutivamente - , da possibilidade de excussão de outros bens do devedor – apenas admissível no caso
das garantias reais - , e de indemnização dos danos provocados pelo incumprimento, os quais não poderão
ser exigidos pelo titular do pacto autónomo, pois a alienação condicional pretende exactamente substituir
as consequências do incumprimento). Nesta conformidade, não levanta dúvidas a existência de um pacto
comissório sobre um bem e de uma garantia típica sobre outro, em garantia do mesmo crédito (tratando-se
apenas de um problema de cumulação de garantias), mas sim quando as duas garantias recaiam sobre o
mesmo bem, pois, neste caso, o funcionamento da garantia real típica seria excluída no seu núcleo
essencial (porquanto tornaria impossível, uma vez verificado o incumprimento, “ricorrere al contenuto
tipico delle garanzie (reali o personali), le quali servirebbero solo come protezione formale, medio
tempore, sino all’(eventuale) inadempimento”), assim se impondo a ilicitude do pacto autónomo.
3031
De acordo com Massimo Bianca, Il divieto cit., pág. 63 e segs. a circunstância de o pacto comissório
se traduzir numa alienação condicional, com efeitos distintos das garantias reais, conforme melhor se
exporá no texto, “esclude che il divieto di legge possa essere riferito e limitato ad un patto comissorio
quale mezzo di realizzazione di tali garanzie”, considerando censurável uma interpretação segundo a qual
“il divieto possa ritenersi applicabile solo nel caso in cui il creditore, oltre ad acquistare il bene sotto
condizione mediante patto comissorio, abbia inoltre ulteriormente provveduto ad assicurare il credito
mediante un pegno” (até porque a solução contrária redundaria em colocar no arbítrio do credor a licitude
ou não do pacto, “il quale potrebbe rimuoverla rinunziando a costituire uno di tali diritti, senza in tal
modo alterare assolutamente gli effetti della alienazione e, in particolare, senza pregiudicare la
possibilità di conseguire il bene a danno del debitore inadempiente”), entendendo a referência da
proibição aos pactos associados a garantias típicas como consequência de uma perspectiva de imposição
de um limite negativo a este tipo de garantias.
3032
Este contrato pode ser definido como um contrato de compra e venda em que se atribui ao vendedor a
faculdade de resolução, faculdade esta que se não for exercida dentro do prazo fixado para o efeito
transforma em definitiva a aquisição da propriedade por parte do comprador. Para Isabel Matos, ob. cit.,
págs. 174 a 176, a diferença entre a venda a retro e o pacto comissório prende-se com o momento da
transmissão da propriedade: na primeira, a transferência é imediata e consolida-se com o cumprimento da
obrigação, enquanto no pacto comissório a transferência fica suspensa até ao momento em que se
verifique o incumprimento do devedor. Deste modo, a venda a retro “não se encontra abrangida pela
proibição do pacto comissório sempre que os outorgantes tenham efectivamente pretendido celebrar tal
modalidade do contrato de compra e venda. Mas também somos de opinião que a venda a retro deve ser
considerada inválida, sempre que seja utilizada de forma, indirecta, ilícita e fraudatória para contornar
a proibição do pacto comissório e atingir os fins que se pretendem proteger”. Em Itália, Ugo Carnevali,
ob. cit., pág. 502 e segs., alegava que a jurisprudência dominante apenas invalidava as alienações
suspensivamente condicionadas ao incumprimento do devedor, aceitando, pelo contrário, as
transferências imediatamente eficazes e subordinadas à condição de resolutiva do pagamento do débito ou
acompanhadas de um pacto obrigatório de retrovenda, com base, essencialmente, em quatro argumentos
(o facto de o risco de perecimento do bem ser suportado pelo credor, enquanto nas transferências
suspensivamente condicionadas tal risco corre por conta do devedor; a circunstância de o carácter
imediato do efeito translativo colocar logo o devedor de sobreaviso, impondo-lhe um maior sentido de
responsabilidade; que a transferência da propriedade se produzia com base no acordo das partes e não no
exercício de um poder de apropriação por parte do credor insatisfeito; e, por último, no facto de o efeito
880
translativo se produzir imediatamente), todos eles, em seu entender, rebatíveis (o primeiro porque o risco
de perecimento do bem não assume relevância jurídica, uma vez que o crédito garantido continua e
usufrui da garantia genérica sobre o restante património do devedor; o segundo argumento será reversível,
pois o devedor, ao consentir numa transferência imediata da propriedade, denota um particular estado de
necessidade de concessão de crédito, assim se comprovando uma ainda maior vulnerabilidade; relativiza
o terceiro porque, em qualquer caso, a consolidação na propriedade no credor se encontra sempre
dependente do incumprimento do devedor; finalmente no que concerne ao último fundamento, “il
momento in cui avviene il trasferimento della proprietà del bene-garanzia non può fungere, di per sé, da
convincente criterio per distinguire il patto commissorio da una valida alienazione in garanzia”,
considerando irrelevante a distinção para determinação dos prejuízos causados aos interesses tutelados
pela proibição), dando, por isso, conta da sua discordância face a tal orientação e sublinhando que a
imediata transferência da propriedade é apenas provisória ou cautelar, pois “ha pur sempre titolo
nell’inadempimento del debitore, è cioè subordinata alla condizione che si verifichi tale inadempimento.
Se dunque il titolo di (definitiva) appropriazione del bene da parte del creditore resta il medesimo, è
lecito affermare che la figura in esame non costituisce una convenzione analoga al patto comissorio, ma
dà luogo invece alla medesima situazione vietata” (em termos aproximados, Massimo Bianca, Patto cit.,
pág. 716). Dando conta de uma alteração jurisprudencial, Carlo Rimini, ob. cit., pág. 192 e segs. (na
medida em que, inicialmente, os tribunais apenas consideravam incluídos no âmbito da proibição os casos
em que existisse uma alienação do bem suspensivamente condicionada ao incumprimento do devedor,
evoluindo depois para um entendimento mais amplo da interdição, de acordo com o qual “Il dato formale
relativo al trasferimento della proprietà del bene al creditore già al momento del sorgere del credito non
há più alcuna rilevanza”, relevando apenas o intuito das partes em alcançar os objectivos previstos e
punidos por lei), Angelo Luminoso, ob. cit., pág. 219, nota 2 e pág. 240 (constatando terem os juízes
aceite a posição doutrinal maioritária que considera nulas as alienações com pacto de resgate ou de
revenda – ou, mais genericamente, resolutivamente condicionadas – sempre que, não obstante a
transferência imediata da propriedade, se demonstre que o intuito das partes era o de “garantire (con il
bene alienato) l’adempimento di un debito dall’alienante”, posição esta que merece o aplauso do Autor,
que acrescenta ainda os casos em que o devedor assuma a obrigação de transferir um bem seu ao credor
em caso de incumprimento, uma vez que, em todos esses casos, “l’assoggettamento di un bene del
debitore al potere di appropriazione satisfativa del creditore, lasciando al primo la possibilità di
svincolare il bene mediante il pagamento del debito entro la scadenza e non prevedendo alcun congegno
inteso ad assicurare al debitore stesso il recupero dell’eventuale eccedenza del bene rispetto
all’ammontare del credito”, pelo que “i pericoli che il debitore correbbe appaiono del tutto identici a
quelli (…) che il legislatore ha tenuti presenti quando ha negato validità al patto comissorio”) e Gregorio
Gitti, ob. cit., págs. 458 e segs. (qualificando de formalista a posição que atende unicamente ao momento
da produção dos efeitos reais, e assegurando que, desde 1989, a Corte de Cassação optou por um
entendimento mais substantivo, nos termos do qual a venda com pacto de resgate será inválida sempre
que se demonstre que o intuito das partes foi o de constituir uma garantia, com a atribuição irrevogável do
bem ao credor apenas em caso de incumprimento do devedor. Por último e mais recentemente Fulvio
Gigliotti, ob. cit., pág. 28 e segs., concretiza que esta cambalhota jurisprudencial se iniciou com o
Acórdão da Corte de Cassação de 3/6/1983, n.º 3800, embora com decisões contrárias (vide a decisão da
Corte de Cassação de 12/12/1986, n.º 7385, in Foro Italiano, 1987, Vol. I, pág. 799), o que motivou a
emissão de um Acórdão das Secções Unidas da Corte de Cassação de 3/4/1989, n.º 1611, in Foro Italiano,
1989, Vol. I, pág.1427, na qual se pode ler que entre as alienações em garantia e as convenções
comissórias têm uma “comune identica causa e se siano strutturate in modo da produrre gli stessi effetti,
dato che in ogni caso il trasferimento della proprietà viene nella realtà condizionato all’inadempienza
del debitore (…) rende irrilevante l’immediato trasferimento del bene, avendo le parti il reale intento di
costituire una garanzia ed attribuire irrevocabilmente il bene al creditore soltanto in caso di
inadempienza del mutuário”(em termos aproximados, Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 262 e segs. e
Nicola Cipriani, ob. cit., págs. 50 a 55 – este último realça que, deste modo, os magistrados reconhecem a
irrelevância do momento translativo para efeitos de descoberta de um pacto comissório). Em face do
direito espanhol, Bercovitz Rodríguez-Cano, Manual de derecho civil cit., pág. 301, entende que este
negócio de compra e venda será nulo por violação da proibição do pacto comissório, embora saliente que
a jurisprudência nele vislumbre um negócio fiduciário válido de transmissão de um bem em garantia, de
modo que, em caso de incumprimento da obrigação garantida, o credor garantido apenas poderá executar
o objecto da garantia nos mesmos termos em que o possam fazer os demais credores (todavia, existe o
inegável risco para o devedor proprietário do bem, decorrente da transmissão da propriedade para o
credor, uma vez que este último pode dispor do bem a favor de um terceiro que, se boa fé, poderá opor o
seu direito ao devedor verdadeiro proprietário de tal objecto). Para um panorama geral do direito italiano,
881
norma que interdita as convenções comissórias3033 (ou na aplicação analógica do dito
preceito)3034 na existência de uma simulação relativa,3035 através do recurso à figura do
vide ainda Ira Bugani, Il divieto del patto comissorio e la vendita con patto di riscatto (o con patto di
retrovendita), in La giurisprudenza civile comentata, ano 2, n.º 1 (Jan/Fev 1986), II, págs. 31 a 42,
Corrado Chessa, Sale and lease back: qualificazione dell’operazione e interferenze con il divieto di patto
comissorio, in Giurisprudenza Commerciale, n.º 21 (1994), págs. 669 a 676 e Aldo Angelo Dolmetta,
Lease-back e patto comissorio: un rapporto complesso, in Giurisprudenza Commerciale, n.º 29 (2002), I,
págs. 306 a 317.
3033
Considerando que a proibição abrange, ainda que por força de uma interpretação extensiva, também
estas hipóteses. Para Gregorio Gitti, ob. cit., pág. 458, a directa violação do norma apenas cobre as
hipóteses em que seja convencionada a manutenção da obrigação de restituição da quantia mutuada ao
adquirente do bem transferido em garantia (em todos os demais casos, a sua anulação pressuporá o
recurso ao instituto da fraude à lei). Já Massimo Bianca, ob. cit., pág.719 e segs., depois de considerar a
alienação em garantia inapta para garantir o pagamento de um crédito (considerando a ausência de um
preço), sendo antes destinada a assegurar uma atribuição, a favor do credor, com carácter de satisfação de
um bem para o caso de incumprimento do devedor, entende estaremos perante “un’alienazione in
garanzia a tipo comissorio con anticipato trasferimento della proprietà: ricadente direttamente e
imediatamente nell’ambito del divieto legislativo”, ou seja, a venda com pacto de resgate celebrada com
função de garantia é, efectivamente, “un’alinazione in garanzia e che, indipendentemnte
dall’anticipazione del momento tralativo, essa ricade sotto il divieto del patto comissorio”, salientando
“l’idoneità di tale vendita a sostituirsi facilmente al patto vietato, e ad assorbire quindi in uno schema
ugualmente pronto ad abusi”. Fulvio Gigliotti, pág. 23 e segs., afirma que a norma em questão possui
“una capacità espansiva tale da non circoscriverne l’applicazione al solo strumento impiegato per
raggiungere il risultato, ma al risultato stesso”, interpretando-a como “pur sanzionando espressmente
una determinata forma giuridica vieta in realtà un più ampio risultato economico”, entendimento este
consagrado em algumas decisões judiciais citadas pelo Autor (como, por exemplo, no Acórdão da Corte
de Cassação de 1/2/1974, n.º 282, in Foro Italiano, 1974, Vol. I, pág. 1388, no qual se pode ler que “non
può non attribuirsi natura materiale alla norma dell’art. 2744. Se la legge si preocupa di evitare, con il
divieto, che il debitore, subendo la coazione morale del creditore, si assoggetti a perdere la proprietá del
bene costituito in garanzia, nel caso di indimplemento (…) non è dubbio che sia inifluente lo strumento
negoziale adottato per il raggiungimento di quell’intento: interesse esclusivamente il risultato economico
voluto dalle parti”).
3034
Na medida em que tais negócios, apesar de não caírem directamente sob a alçada da proibição legal,
conduzem ao mesmo resultando prático visado pela norma em questão, ou seja, à aquisição, por parte do
credor, da propriedade de um bem do devedor, em resultado do incumprimento de uma obrigação por este
assumida para com aquele.
3035
Isto é, considerando que a alienação constituiria apenas uma dissimulação de um mútuo com pacto
comissório. Perfilha este entendimento Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 106 e segs., concluindo que,
anulada a venda, permanecerá válido o mútuo, mas sem a convenção comissória adjacente. Mais
detalhadamente, o Autor sustenta não se tratar de uma venda comum, mas antes de uma venda com
função de garantia, na medida em que “il prezzo altro non è che l’oggetto del prestito, di conseguenza la
somma pagata debba essere molto inferiore al valore della cosa venduta (…). Se infatti il debitore-
venditore non restituisce alla scadenza la somma, esercitando contemporaneamente il riscatto, la cosa
venduta passerà definitivamente in proprietà del creditore-compratore, per un prezzo molto inferiore al
suo reale valore. Viene cosi a verificarsi la stessa situazione, che abbia visto sussistere nel caso del patto
comissorio” (de modo que, ao contrário do que sucede na compra e venda comum – em que os créditos
recíprocos se extinguem por compensação -, no negócio em garantia as partes não pretendem a extinção o
crédito para cujo cumprimento acordaram a venda, o qual se extinguirá apenas se, no momento do
vencimento da soma mutuada, o devedor não cumprir). O Autor aceita, quando muito, que estejamos
perante um negócio indirecto, mas, ainda que assim seja, a consequência será igualmente a nulidade da
venda, ainda que realmente pretendida, em razão da sua utilização como ferramenta para contornar a
proibição legal do pacto comissório. Por último, o Autor advoga que as mesmas conclusões são
transponíveis para a venda com pacto de retrovendendo ou de reaquisição (no primeiro caso o vendedor
tem o direito, no segundo a obrigação de readquirir o bem alienado), uma vez que “incombendo al
venditore il diritto o l’obbligo di restituire il prezzo di vendita si verificano in caso di mancata
restituzione nè più nè meno, gli effetti del patto comissorio, per il quale la cosa resterà acquistata dal
compratore per una somma molto inferiore all’effettivo valore della cosa (…) in entrambi i casi il
debitore avrà interesse a restituire il prezzo e a impedire in tal modo che il creditore si appropri della
cosa già venduta a noto prezzo”: ou seja, mais uma vez, as partes se socorrem de um instituto em si lícito,
882
“ma idoneo nei suoi pratici risultati a produrre gli effetti propri del commissorio”. O mesmo Autor (ob.
cit., pág. 125), conclui que a venda com função de garantia ou pacto de resgate “è da considerarsi come
contratto fraudolento solamente nel caso in cui nasconde un patto comissorio; nel caso contrario non si
avrà fraudolenza bensì semplice simulazione per cui la vendita sarà lecita, ma nulla, perchè non voluta
dalle parti; il contratto dissimulato, anch’esso lecito, avrà efficacia”. Segundo Massimo Bianca, Il
divieto cit., pág. 265 e segs., esta posição assenta na identificação da vontade das partes e da função
económica do negócios, para cuja determinação cumpre recorrer a um método presuntivo, isto é, retirando
a eventual existência de um intuito simulatório da presença de um conjunto de indícios, uns relativos aos
sujeitos (a prática usual de negócios usurários ou o estipulação frequente de vendas com pacto de resgate
por parte de um sujeito), outros à modalidade do contrato (a natureza desproporcionada do preço, o facto
de o bem vendido permanecer em poder do alienante a título de locação, a circunstância de o devedor não
poder resgatar o bem durante determinado período de tempo ou deva restituir um montante superior ao do
preço ou, finalmente, quando o vendedor assuma o riscos inerentes à coisa e aos seus frutos) e outros
ainda a outras circunstâncias que rodeiem a celebração do negócio (o seu carácter secreto, a redacção num
documento separado ou o facto de o comprador não se ter informado acerca das caractarísticas do bem),
embora o Autor alerte para a ausência de unanimidade relativamente ao peso relativo de cada um destes
indícios (aludem também a estes indícios, Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 121 e Weil, ob. cit., pág.
96, mencionando o preço vil, a relocação imediata do bem ao suposto vendedor contra o pagamento de
um aluguer elevado, a frequência das aquisições por parte do mesmo sujeito ou a desproporção entre o
preço de venda e o preço de restituição; Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 26, por seu turno, adverte que só a
verificação cumulativa de alguns destes indícios poderá assumir algum relevo presuntivo). Em termos
semelhantes, Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 437 e segs., entende que a verdadeira causa do
negócio de venda com pacto de retro variará consoante se demonstre ou não a existência de um
verdadeiro preço: em caso afirmativo (ou seja, quando a prestação do vendedor consiste verdadeiramente
na devolução do preço), estaremos perante uma autêntica venda com pacto de retrovenda; pelo contrário,
quando tal prestação seja apenas uma devolução ao comprador de uma quantidade mutuada, o negócio
deverá qualificar-se como venda em garantia (ora, segundo o Autor e por força da proibição do pacto
comissório, o negócio fiduciário não constitui causa suficiente para justificar a transmissão do domínio
dos bens, pelo que sempre que aquele tipo de negócios esconda um pacto comissório será nulo, por causa
ilícita - nos mesmos termos em que este o pacto comissório o é – ou inexistente por falta de causa
translativa: nesta conformidade, o Autor conclui que “La causa fiduciae es admissible y perfectamente
legítima, pero en si carece de efectos translativos, a no ser que detrás exista una verdadera voluntad
translativa del dominus y siempre que no constituya un rodeo de la prohibición del pacto comissorio”,
aceitando a validade destes negócios fiduciários sempre “que se asegure un mínimo de conmutatividad en
las recíprocas prestaciones”, em termos análogos ao exigido pela lei que proíbe as convenções usurárias).
Aliás, a invocação da figura da simulação para justificar a nulidade da “vente à réméré”, quando se
comprove que este negócio constitui uma fraude à proibição do pacto comissório, tem já raízes muito
profundas no ordenamento francês – cfr. Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 49. Entre nós, esta posição é, ao
menos aparentemente, subscrita por Vaz Serra, Penhor cit. in BMJ n.º 58, pág. 219 e 220, afirmando que,
quando haja simulação, haverá que atender ao negócio dissimulado – constituição de garantia real com
pacto comissório – e a esse será aplicável a proibição legal; não havendo simulação (como normalmente
acontecerá, segundo o Autor, pois as partes pretendem a transferência imediata da propriedade e não
apenas aquando do incumprimento), caberá apurar se a proibição do pacto comissório será aplicável, o
que dependerá da delimitação do âmbito de aplicação da proibição. Relativamente aos efeitos do contrato
simulado, Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 121 e segs., alerta para o facto de o terceiro sub-adquirente de
uma coisa de um sujeito que, por sua vez, a houvesse adquirido através de uma compra e venda
simulatória de um pacto comissório, uma vez declara nula esta venda, não pode ver-lhe oposta esta
nulidade, desde que se encontre de boa fé; quanto aos credores do alienante simulado, estes podem arguir
a simulação que prejudica os seus direitos, pedindo a nulidade da alienação e, consequentemente, que o
bem ainda pertence ao património do pseudo vendedor, seu devedor (no que concerne à prova da
simulação, o mesmo Autor admite que os terceiros credores e outros interessados podem socorrer-se de
qualquer meio legalmente admitido, o mesmo acontecendo com as próprias partes na convenção). Por seu
turno Mirabelli, ob. cit., pág. 448 e segs., reconhece ao devedor e aos diversos credores o direito de arguir
a simulação (quanto às partes, porque também elas se encontram legitimadas para descobrir os negócios
fraudulentos e, quantos aos terceiros credores, porque a demonstração da simulação redundará na
qualificação do bem como propriedade do seu devedor), admitindo ainda que, uma vez desmascarada a
simulação, o negócio querido possa valer como penhor, desde que não concedido em fraude aos demais
credores do devedor e preencha os requisitos legais de constituição desta garantia (em especial, constar de
documento escrito contendo uma suficiente identificação do crédito garantido e do bem onerado).
883
negócio indirecto3036 ou do instituo da fraude à lei,3037 na ausência de um interesse
digno de tutela jurídica3038 ou, finalmente, desconfiando da idoneidade deste negócio
para garantir o pagamento de um crédito.3039
3036
Fazendo apelo à noção de negócio indirecto, enquanto utilização de um negócio lícito para alcançar
uma finalidade vedada por lei ou, noutros termos, a adaptação de um negócio típico para atingir
objectivos extra-típicos e contrários à lei - Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 26 e 27 Massimo Bianca, Il
divieto cit., pág. 266 e segs., depois de recusar a tese da simulação (considerando-a inadequada,
porquanto “una volontà di simulare poteva, infatti, ritenersi normalmente esclusa. Se il debitore e
creditore ricorrevano alla vendita con patto di riscatto, ciò sembrava spiegarsi proprio col fatto che tale
vendita poteva in sè stessa, senza quindi la necessità di simulare l’esistenza do una diversa situazione
giuridica, prestarsi alla realizzazione delle finalità di un mutuo garantito”, até porque o pretenso intuito
simulatório deverá partir de uma análise objectiva da fattispecie – e não de uma análise simplista da
suposta e muitas vezes indemonstrável vontades das partes, baseada numa presunção simulatória
arbitrária, porquanto normalmente não haverá divergência entre as declarações aparentes e efectivas das
partes – e da sua função económica, a qual conduzirá à exclusão da simulação sempre que “la vendita con
riscatto venga adattata ad una diversa funzione economica, senza che questa contrasti con la disciplina
prevista per questo negozio”), aceitaria a tese do negócio indirecto (entendido como aquele em que “il
rapporto di garanzia si è individuato come un fine ulteriore della vendita, tale da non modificare la
disciplina e la causa della vendita stessa”ou, noutros termos, “un negozio volto al conseguimento di un
risultato ulteriore che non è normale (o tipico) del negozio stesso”), desde que se demonstrasse que o fim
ulterior pretendido não implicava uma modificação da disciplina jurídica do negócio (ou seja,
preservando a compatibilidade entre o fim ulterior e a causa do negócio, “nel senso che la utilizzazione
del negozio non può superare quel limite al di là del quale verrebbe contradetta la causa del negozio”) o
que, no caso das alienações em garantia significaria que “il perseguimento di un scopo di garanzia non
contraddice la causa della vendita”: ora, tal não acontece, pois, na opinião do Autor, a venda em garantia
é estruturalmente inidónea para garantir o cumprimento de uma obrigação, conforme se dará conta numa
das notas seguintes.
3037
Esta posição tende a confundir-se com a anterior, na medida em que alguns Autores (vide, por todos,
Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 102 e segs., identificando a simulação como uma das formas utilizadas
para defraudar a lei). Parece ser esta a posição dominante da jurisprudência italiana, conforme de alcança
da leitura do Acórdão das Secções Unidas da Corte de Cassação de 3/4/1989, n.º 1611, in Foro Italiano,
1989, Vol. I, pág.1427de 1989, na qual se pode ler que “le parti, in quanto adottano uno schema
negoziale astrattamente lecito per conseguire un risultato vietato dalla legge, pongono in essere una
causa illecita (…). La vendita, in sé lecita e non puramente formale, costituisce un negozio mezzo, perché
tende ad eludere il contenuto di una norma ed assume la figura di contratto in frode alla legge” – ora,
como salienta Gregorio Gitti, ob. cit., pág. 458, de tal aresto resulta que, na opinião dos magistrados,
apesar de a utilização da figura em questão não redundar numa violação directa da proibição do pacto
comissório, “configura mezzo per eludere tale norma imperativa e, quindi, esprime una causa illecita”,
ou seja, constitui um negócio em fraude à lei. Tomando posição, este Autor entende que quando o débito
resultante do contrato de mútuo se compense com o débito do preço do adquirente, o escopo das partes
será de natureza solutória, faltando um crédito a assegurar, pelo que o negócio não poderá ser invalidado
numa violação directa da proibição das convenções comissórias, mas apenas com fundamento em fraude
à lei (e caso se demonstre a inteção das partes em alcançar um resultado análogo ao das convenções
comissórias, designadamente quando se comprove uma desproporção entre o valor do bem transferido e
do mútuo compensado), o mesmo sucedendo quando não haja uma relação obrigacional entre as partes
prévia ou contemporânea da venda com pacto de resgate (caso em que o negócio não poderá ser anulado
com fundamento na violação do pacto comissório, na medida em que não existe um crédito a garantir). O
Autor salienta, porém, que o instituto da fraude à lei tem contornos algo imprecisos, exigindo a opinião
dominante a verificação de dois requisitos, um de natureza objectiva – o resultado prático a que conduz o
negócio delineado pelas partes - e outro de natureza subjectiva – a intenção das partes em ilidir uma
norma legal (a jurisprudência, por seu turno, entende que, para a comprovação da existência de uma
efectiva fraude à lei, é forçosa a concorrência destes dois aspectos, assegurando que o primeiro se
verificará sempre que exista uma “surrogabilità in senso economico del procedimento posto in essere
dalle parti rispetto a quello espressamente vietato dalla norma elusa (…) valutando se il concreto
risultato conseguito dalle parti sai tale da porre gli stessi contraenti in una situazione sostanzialmente
non dissimile da quella chr avrebbero conseguito ponendo in essere il negozio vietato”, para o que se
serve dois parâmetros de avaliação, quais sejam a existência de uma relação de confiança entre as partes
e, sobretudo, a frequência do procedimento simulatório; ao passo que, para demonstrar a verificação do
requisito subjectivo, se socorre de um conjunto de indícios, embora o Autor chame a atenção para o facto
884
Alguns operam uma distinção consoante à venda com pacto de resgate não pré-
exista algum débito do vendedor para com o adquirente a título de mútuo ou, pelo
contrário, no momento daquela venda subsista algum débito decorrente de um mútuo,
para apenas considerar lícita a primeira fattispecie.3040
Mas não é este o único negócio de transferência de direitos ou bens em garantia
cuja adequação face à proibição do pacto comissório é debatida, pois idênticas
interrogações se erguem a propósito da concessão, por parte do empenhante, de um
de este elemento “non può consistere nella coscienza di porre in essere un atto di frode ad una norma
imperativa, anche perché si giungerebbe ad anticipare una valutazione che solo l’interprete in sede
giurisprudenziale può operare, compiendo così un errore di logica giuridica”). Entre nós, Isabel Matos,
ob. cit., págs. 193 e 194, inclina-se para este entendimento, ao afirmar que a tendencial licitude das
alienações em garantia (em geral) se encontra condicionada à correspondência entre o valor do bem
alienado e do débito, pois, se assim não for, a operação será inválida quando “se vise através da
celebração da mesma contornar a proibição constante de normas legais imperativas, designadamente a
que consagra a proibição do pacto comissório, caso em que haverá fraude à lei”.
3038
Na medida em que as convenções em questão são atípicas, enquadráveis na liberdade contratual das
partes: contudo, este princípio sofre algumas limitações, uma das quais reside precisamente na
necessidade de existência de um interesse merecedor de tutela jurídica - Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs. 28
e 29.
3039
É a posição de Massimo Bianca, Patto cit., pág. 719 e segs., afirmando que “la vendita con patto di
riscatto è strutturalmente inidonea a garantire un credito”, pois a compra e venda requer um preço como
contrapartida da transferência do bem (enquanto a cláusula de resgate pressupõe que o pagamento do
preço seja anterior ao termo do resgate): ora, numa alienação com fins de garantia falta o preço (em
termos mais pormenorizados, “Se infatti l’alienazione riceve un’attribuzione pecuniaria che importa a
suo carico un obbligo di restituzione, questo obbligo esclude sicuramente che l’alienante abbia ricevuto
quell’attribuzione come soddisfacimento del diritto che gli deriverebbe dalla vendita”, reforçando que de
tal contrapartida poderá falar-se, quando muito, no momento do incumprimento, na liberação do alienante
da obrigação garantida, mas então estaríamos perante a qualificação como venda da própria figura do
pacto comissório). Para determinar a existência da dita função de garantia o Autor sugere, na esteira da
jurisprudência, o recurso a um conjunto de indícios (como sejam o facto de o suposto vendedor
permanecer em poder do bem e de suportar as despesas de alienação e o risco de perecimento do bem, o
preço vil, a linguagem usada e a circunstância de as partes declararem que cedem o bem a título de
garantia), particularmente quando não for facilmente detectável uma obrigação a que tal operação sirva de
garantia. O mesmo Autor já havia sido exposta in Il divieto cit., pág. 299 e segs., distinguindo entre a
venda suspensivamente condicionada ao incumprimento do devedor (hipótese que o Autor entende ser
coincidente com a do pacto comissório, sendo, por isso, liminarmente inválida), e aquela outra com pacto
de resgate ou resolutivamente condicionada ao cumprimento do devedor (cuja tendencial admissibilidade
legal radica em considerações de ordem histórica e, principalmente, na circunstância de essa
admissibilidade se justificar enquanto “figura autonoma rispetto alle alienazioni in garanzia e si sottrae
alle norme dettate per queste ultime solo in quanto la sua stipulazione non sia fundata sull’intento di
costituire una garanzia”), repisando que, mesmo nestas últimas, “l’intento di garanzia altera lo stesso
schema della vendita con riscatto, risolvendo il trasferimento nei termini di un’alienazione in garanzia” e
constatando até que se deverá admitir uma presunção da existência de uma finalidade de garantia “dal
fatto stesso che le parti modifichino la disciplina della vendita per conformarla ad una disciplina che è
propria del vincolo di garanzia”, tanto mais que “il fatto che il trasferimento della proprietà sia
predisposto come sicurezza dell’alienatario (…) ponde altresì la ragionevole presunzione che la somma
stessa non sia adeguata al valore del bene ceduto in garanzia (…) non sia economicamente valutato alla
medesima stregua di un corrispettivo del bene alienato”).
3040
Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 504, salientando que, no primeiro caso, faltando um crédito garantido,
não será correcto falar de função de garantia em sentido estrito (até porque o risco de perecimento do bem
impende sobre o adquirente-mutuante, pelo que em tal caso fica privado de qualquer acção contra o seu
devedor para obter a restituição da soma mutuada). Ao invés, na segunda hipótese “l’acquirente rimane
creditore della somma che figura qualle prezzo, non si veda quale sia il corrispettivo e i dubbi avanzati in
merito alla validità della vendita sono più che legittimi: manca la funzione di scambio tra l’alienazione di
un diritto e un corrispetttivo pecuniario, perciò o si tratta si simulazione (che nasconde un patto
comissorio) o vi è nullità per difetto di un elemento essenziale”.
885
mandato irrevogável ao credor pignoratício para alienar o bem recebido em garantia3041,
da cessão de créditos3042 ou da alienação fiduciária em garantia3043, da venda com
3041
No Acórdão da Relação do Porto de 7/6/2004, in CJ 2004, III, pág. 186 e segs., (embora relativo à
hipoteca, mas com aplicação ao penhor) qualificou-se como pacto comissório “a outorga de uma
procuração irrevogável com plenos poderes para vender ou prometer vender a quem entender, incluindo
a mandatária, pelo preço e demais condições que entender, os identificados prédios sobre os quais foi
constituída uma hipoteca pelo mandante a favor dessa mesma mandatária” (no mesmo sentido, vide o
Acórdão do STJ de 21/12/2005, in www.dgsi.pt). Mais cautelosa é Isabel Matos, ob. cit., pág. 120, nota
228, para quem é possível “que sejam concedidos poderes ao credor para celebrar negócios consigo
mesmo ou vender o bem a terceiro mediante procuração irrevogável, desde que se assegure a justeza do
preço pelo qual o bem é transmitido (pacto marciano).” Para Valentina Balbo, ob. cit., pág. 5, esta
convenção consiste uma forma de contornar a proibição do pacto comissórios (especialmente quando ao
credor não seja imposta qualquer obrigação de prestação de contas), mas sem que tal impeça a
jurisprudência de legitimar tal operação sempre que o mandato tenha como finalidade específica a
satisfação dos credores em geral com o produto de venda.
3042
Relativamente a este negócio em particular, Pestana de Vasconcelos, A cessão cit., págs. 628 e 632 a
634, apesar de assegurar que a proibição vigora “tanto no caso de o instrumento jurídico a que se recorre
ser um penhor ou uma hipoteca, como se se tratar de uma garantia atípica pela qual o mesmo resultado
seja alcançado”, entende que o resultado produzido pela cessão de créditos em garantia não viola tal
proibição, porquanto o modus operandi desta figura impede (só assim não será quando decorrer da
interpretação do negócio que o que se pretendeu foi efectivamente que o credor pudesse fazer seus os
créditos sem mais, caindo-se então, mas só então, no âmbito do pacto comissório) que o
credor/cessionário fique com o crédito de modo a extinguir a obrigação do cedente, assemelhando-se
antes ao chamado marciano (assim, se o credor já tiver cobrado o crédito recebido em garantia, terá que
aplicar a quantia recebida à liquidação da obrigação em dívida, devendo devolver imediatamente à
contraparte o eventual remanescente; se, pelo contrário, na data do vencimento da obrigação garantida, o
crédito dado em garantia ainda não se tiver vencido, o credor fiduciário poderá aguardar pelo vencimento
deste último ou, em alternativa, alienar o crédito a um terceiro, empregando a quantia recebida à
liquidação da dívida e devendo restituir o eventual remanescente: mais precisamente, da relação fiduciária
entre as partes decorrem “os deveres de avaliação do bem e restituição do remanescente ou da sua
alienação a terceiro, nas melhores condições de mercado, e a restituição do que sobejar ao garante
depois de extinta a obrigação garantida. Estamos aqui face a um (…) pacto marciano”). Por seu turno
Januário da Costa Gomes, ob. cit., pág. 97 e segs., afastando-se de um entendimento mais liberal
(sustentado, por exemplo por Vaz Serra, Cessão de créditos e outros direitos, in BFDUC n.º XXX, págs.
383 e 384, segundo o qual a transmissão “não encerra, em princípio os perigos do pacto comissório, visto
que o fiduciante pode, pagando a dívida garantida, recuperar a coisa ou o crédito, devendo realizar o
seu valor como um credor pignoratício, isto é, não fica o fiduciário com essa coisa ou crédito logo que o
fiduciante deixe de pagar a dívida garantida no prazo fixado, como sucederia com o pacto comissório”,
apenas exceptuando o caso em que se estipulasse que, não sendo paga a dívida no prazo estabelecido, o
fiduciário poderia ficar com o crédito transmitido pelo fiduciante), considera que na cessão de créditos em
garantia a transferência do crédito para o fiduciário-transmissário se dá mesmo antes e
independentemente de qualquer incumprimento por parte do devedor (pelo que estamos perante uma
situação equiparável – ou até, de um certo prima mais lesiva do devedor – à que a proibição do pacto
comissório pretende conjurar), mas conclui pela licitude na figura nos termos em que se aceita a validade
do pacto marciano, isto é, “a cessão em garantia não será válida quando não sejam estabelecidos
mecanismos tendentes à congruidade entre o valor do crédito cedido e o montante do crédito garantido e,
mais genericamente, quando não sejam adoptadas as cautelas exigidas para a validade do pacto
marciano”. Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 298 a 292, apesar de noticiar a subsistência das
mesmas posições vigentes para a alienação de bens em garantia, dá conta de uma tendência no sentido
“da imunidade da cessão de créditos em garantia ou, pelo menos, da menor susceptibilidade de a
garantia constituída por este negócio poder ser invalidada à luz da proibição do pacto comissório”
(neste mesmo sentido, Menezes Leitão, Cessão cit., pág. 447, salientando que, uma vez efectuada a
cobrança pelo cessionário, este se obriga a devolver um eventual excesso ao cedente, podendo reter para
si o que lhe for devido e afirmando que se o cessionário se apropriar de um valor superior à satisfação do
seu crédito incorre em responsabilidade civil e que o mecanismo de condição resolutiva ínsito neste
negócio implica a reversão automática do crédito para o cedente em caso de cumprimento da obrigação
garantida), mas embora a natureza dos créditos facilite uma avaliação correcta e isenta do bem –
garantindo, desse modo, a devolução ao cedente de um eventual excesso – se, em caso de incumprimento
da obrigação garantida, o beneficiário da garantia cobrar o crédito recebido em garantia, “deve respeitar
886
as exigências do pacto marciano, maxime restituição do superfluum ao cedente” (o mesmo sucedendo
quando o cessionário se aproprie do montante pecuniário resultante da cobrança do crédito recebido em
garantia, sempre que este se vença antes da obrigação garantida): analogamente, caso o beneficiário da
garantia pretenda alienar o crédito recebido em garantia após o incumprimento da obrigação garantida,
“não renuncia à devolução do valor excedente entre o montante da dívida insatisfeita e o valor do bem
alienado em garantia. O incumprimento da obrigação garantida precipita a consolidação definitiva da
titularidade do bem ou do direito na esfera jurídica do beneficiário (…), mas também determina o
aparecimento do direito de crédito do devedor, prestador da garantia, à devolução do superfluum”,
exigência esta que não tem um fundamento fiduciário, decorrendo antes “do regime do pacto comissório
e do pacto marciano, enquanto disciplina aplicável à generalidade das garantias, por aflorar um
princípio geral de proporcionalidade, tutelador da posição do devedor e dos respectivos credores”. Em
Itália, Lelio Barbiera, ob. cit., pág. 747 – embora dê conta que a jurisprudência dominante admite a cessão
em garantia de créditos, inclusivamente futuros (constata o mesmo cenário Mauro Bussani, Il modello
cit., pág. 185 e também in Patto comissorio, proprietà e mercato (appunti per una ricerca), in Rivista
Critica di Diritto Privato, n.º 15 (1997), págs. 114 e 115, embora neste último escrito saliente que a
generalidade da doutrina se mostra a favor da licitude deste negócio, mesmo que celebrado com fins de
garantia) – pronuncia-se pela invalidade deste tipo de negócios, em razão da violação da proibição do
pacto comissório (desvalorizando os dois argumentos normalmente invocados – a validade do pacto
marciano e o art.º 2803.º que autoriza o credor a satisfazer o seu crédito com o montante obtido pela
cobrança do crédito recebido em garantia - : relativamente ao primeiro, “non ricorrono i pressuposti
volitivi tesi a permettere la vendita del bene, a giusto prezzo, al creditore pignoratizio”; quanto ao
segundo, a norma em questão “attiene a un fenomeno solutorio e non di garanzia e si applica inoltre solo
al pegno avente ad oggetto crediti pecuniari”). Embora concordando com este entendimento no que
respeita à cessão de créditos, Carlo Rimini, ob. cit., pág. 192 e segs., entende merecer uma referência
autónoma as cessões em garantia de títulos de crédito – em particular a cessão, através de um endosso
pleno, de títulos à ordem – as quais serão inválidas, na medida em que transferem para o endossatário a
legitimação para o exercício de todos os direitos inerentes ao título, incluindo o direito de o ceder a
terceiros (acrescentando que, ao invés do que sucede com os créditos, o título de crédito circula como um
bem móvel e possui um valor de mercado que raramente coincide com o valor do crédito nele
incorporado), surgindo o escopo de garantia como a causa do contrato, desse modo criando “un contrasto
insanabile fra il contratto di garanzia e il divieto del patto comissorio” (em termos análogos para a
cessão, através de endosso pleno, de títulos nominativos, Gaspare Spatazza, ob. cit., págs. 676 e 677,
entendendo que, com essa tal operação, as partes “simularono un trasferimento della proprietà delle
azioni per mascherare un patto comissorio, vietato ex art. 2744 c.c., patto che vienne stipulato per
l’ipotesi di mancata restituzione della somma mutuata alla scadenza”, mas que a ressalva que certas
decisões judiciais, apesar de reconhecerem a invalidade da transferência, admitem a válida constituição
do penhor inter partes, alegando que para tal basta o simples desapossamento). Também Francesca
Fiorentini, ob. cit., pág. 278 e segs., dá conta da tendencial aprovação desta fattispecie por parte da
doutrina e jurisprudências italianas (enumerando inclusivamente diplomas legais onde tal figura é
reconhecida, uma vez que a transferência do crédito não tem uma função solutória, destinando-se antes a
assegurar ao cessionário a satisfação do seu direito contra o cedente, caos este última não cumpra a
obrigação garantida), retirando tal conclusão da causa (na medida em que a cessão é um negócio com
causa variável ou incompleta, “non si vede perché gli accordi integrativi della fattispecie standard non
possano esse finalizzati alla garanzia di un’obbligazione, visto che anche le pattuzioni atipiche possono
rientrare nello schema della cessione, naturalmente tenendo ben fermo il limite del controllo di
meritevolezza degli interessi perseguiti”) e da estrutura do negócio (diversa da do pacto comissório,
porquanto a cessão se traduz numa transferência imediata resolutivamente condicionada, ao passo que a
norma contendo a proibição daquele pacto apenas visa as transferências suspensivamente condicionadas
ao incumprimento da obrigação; para além disso, a norma relativa ao penhor de créditos – igualmente
aplicável à cessão – que consente ao credor pignoratício cobrar-se do crédito empenhado a seu favor
paralisa a aplicação da interdição das convenções comissórias), mas não sem que faça alusão a posições
contrárias (ancoradas na inadmissibilidade da causa de garantia para justificar a transferência da
titularidade de um direito e na analogia da estrutura da cessão com a do pacto comissório). Partindo desta
admissibilidade, o Autor deixa no ar a questão do porquê do tratamento mais restritivo reservado às
transferências da propriedade com função de garantia, especialmente porque as mesmas, no seu entender,
não violam os princípios da boa fé e da proibição de enriquecimento ilícito, nem tão pouco da tipicidade
dos direitos reais (pois tal princípio não impõe uma taxatividade dos contratos que transfiram tais
direitos), tendo o seu (aparente) choque com a interdição das convenções comissórias sido superada
noutros ordenamentos como o francês e, sobretudo, o alemão. Finalmente Massimo Bianca, Il divieto cit.,
887
pág. 157 e segs., distingue consoante se trate de uma cessão com efeitos suspensivos (destinada a operar
em caso de incumprimento do devedor) ou com eficácia imediata (embora resolutivamente condicionada
ao cumprimento do devedor), admitindo a validade das primeiras, mas recusando a admissibilidade das
segundas pelas mesmas razões que justificam a invalidade dos pactos comissórios com efeitos translativos
imediatos (em particular no que respeita à cessio pro solvendo, duvida do seu intuito de garantia –
traduzido na perda, por parte do cedente, da disponibilidade do crédito – uma vez que a oponibilidade a
terceiros da cessão, admitindo que a mesma apenas se traduz numa forma de pagamento).
3043
No caso das alienações em garantia, antes ainda de indagar da validade destes negócios à luz da
proibição do pacto comissório, é a própria licitude deste tipo de convenções que se coloca (salvo no caso
expressamente previsto no Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio). A favor da admissibilidade deste
tipo de negócios, Isabel Matos, ob. cit., págs. 193 e 194 (para esta Autora, a licitude das alienações em
garantia repousa, sobretudo, no diverso momento da transmissão do bem neste tipo de contratos -
imediatamente após a celebração do negócio - e nas convenções comissórias - apenas quando e se existir
incumprimento da obrigação por parte do alienante), Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit.,
pág. 505 e segs. (quer quando o objecto transmitido em garantia seja um crédito ou uma coisa corpórea,
não apenas por não se detectar qualquer violação da proibição do pacto comissório – por não lograr os
objectivos que esta visa combater, pois “o credor/garantido/fiduciário não poderá, face ao
incumprimento da outra parte, considerar que desapareceram os limites de natureza fiduciária que
marcavam a titularidade desse bem”, isto é, não pode simplesmente ficar o bem onerado como forma de
extinguir a obrigação garantida, configurando antes um pacto marciano, do qual decorre a obrigação de
devolução ao onerante do eventual excesso de valor do bem onerado face à dívida assegurada -, mas
ainda por não se infringir o princípio da tipicidade dos direitos reais – não só porque o direito é
transmitido intocado no seu conteúdo, mas ainda por não existir qualquer tipicidade relativamente aos
negócios que originam a transmissão dos direitos reais) e, na jurisprudência, o Acórdão da Relação do
Porto de 10/5/2011, in www.dgsi.pt (no qual se pode ler que “Como verdadeiro negócio indirecto, não
pode afirmar-se, à partida, lícito ou ilícito, o contrato de alienação fiduciária em garantia, ou a sua
simples promessa, antes havendo de sujeitar-se ao casuístico juízo de mérito que recuse a validade a um
acto fiduciário que colida com a Lei, a Moral ou a Natureza (art° 280° C.Civ.) — não pode extrair-se de
um meio inadequado ao tipo uma ilicitude geral do negócio; é a ilicitude concreta do fim que
descaracteriza a licitude do negócio-meio. Neste sentido, em termos genéricos, concebe-se a figura da
alienação em garantia, com base no princípio da liberdade contratual — art° 405° C.Civ. — ou com
apoio no facto de a lei prever expressamente a hipótese de restrições obrigacionais ao direito de
propriedade — art° 1306° n°1 C.Civ.”). Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 281 e segs., dá conta de
uma divisão na doutrina nacional entre os que propendem para uma imunidade deste tipo de negócios
face à interdição legal das convenções comissórias (excepto quando se estipular que, em caso de
incumprimento da obrigação garantida, o fiduciário com o bem transmitido fiduciariamente, pois, neste
caso, a fattispecie acaba por se identificar com o pacto comissório) e, ao invés, aqueles que sustentam a
aplicabilidade da proibição à alienação fiduciária em garantia (concluindo, por isso, pela invalidade
daquele negócio, ao menos quando o devedor não fique em condições de controlar a eventual diferença
entre o valor do bem alienado e o quantum da dívida), relatando que a posição da jurisprudência não é
elucidativa (limitando-se a prever a invalidade do pacto comissório obrigacional). A posição da Autora é,
resumidamente, a seguinte: recusando embora que a proibição do pacto comissório possa ser acantonada
ao domínio das garantias reais típicas expressamente previstas na letra da lei e admitindo, doutra parte, a
diferença estrutural entre o pacto comissório e alienação fiduciária em garantia (sendo o primeiro um
acordo que prevê a transmissão em caso de incumprimento da obrigação garantida, enquanto na segunda
o beneficiário adquire o bem em garantia ab initio, a qual se consolidará em caso de incumprimento
definitivo do devedor), as duas figuras possuem uma afinidade funcional de garantia, pelo que
“dificilmente se compreenderá que a norma do artigo 694.º possa considerar-se alheia ao regime
jurídico de garantias atípicas susceptíveis de prosseguir um resultado materialmente semelhante ao do
penhor com pacto comissório. Pelo contrário, as razões da norma impõem a sua extensão teleológica a
estes casos de garantia análogos”, embora esta extensão não impeça que o beneficiário da alienação em
garantia faça seu o bem em caso de incumprimento do devedor, sem necessidade de recurso à via judicial,
“o que não lhe é permitido, enquanto beneficiário da garantia é apropriar-se de um valor superior ao
necessário para satisfazer a obrigação garantida”. Em face do direito italiano, Lelio Barbiera, ob. cit.,
pág. 746 e segs., adverte para o facto de a generalidade da doutrina e da jurisprudência se pronunciar pela
invalidade deste tipo de negócios (tendo em conta a violação da proibição do pacto comissório, quer a
transferência da propriedade seja suspensivamente condicionada ao incumprimento do devedor, quer tal
transferência apenas se produza apenas seja resolutivamente condicionado ao cumprimento). Também
Mauro Bussani, Il modello cit., pág. 186 e segs. e Patto comissório cit., pág. 115, confirma este panorama
888
(com base na constatação que tais convenções “si caratterizzano tutte per la produzione di un effetto
traslativo, che ha come contropartita non il pagamento di un prezzo ma un’erogazione ex mutuo, e la cui
stabilità è subordinata al mancato adempimento dell’obbligo restitutorio che grava sull’alienante: uno
schema, insomma, che si conformerebbe senza residui al paradigma tradizionale del patto vietato”),
embora demonstre perplexidade relativamente à maior abertura face à cessão de créditos em garantia
(diversidade de tratamento esta justificada, pelos seus partidários, com base em argumentos tão díspares
como a “diversa natura del bene traferio e l’appartenenza della cessione all’ambito presidiato dal
principio di autonomia privata, oppure l’intangibilità del numerus clausus dei diriti reali,
l’inammissibilità di una causa traslativa di garanzia, l’esigenza di proteggere il debitore e di non
daneggiare gli altri creditori”, mas contestada pelo Autor, pois “sono tutti argomenti che possono
contare molto o poco, a seconda del punto che l’interprete sceglie di privilegiare sulla traiettoria
cognitiva che il sistema gli consente”). Este Autor – depois de aludir à circunstância de o art.º 2744.º
apenas proibir expressamente os pactos comissórios anexos ao penhor e à hipoteca “nonostante che al
codificadore del 1942 fosse ben presente la diffusione dei patti commissori autonomi, ossia svincolati
dalla costituzione di garanzie reali tipiche” – assegura existirem no ordenamento italiano (para lá dos
casos controversos da venda com pacto de resgate ou da conversão do penhor de créditos num penhor
irregular sobre dinheiro) diversos exemplos de transferência da propriedade com fins de garantia, como
sejam o penhor irregular, o reporte com fins de garantia e o pacto marciano, os quais têm em comum
“l’agevole possibilita di controllo sull’eventuale eccedenza di valore, fra il bene oggetto della garanzia e
il credito garantito”. Esta tradicional aversão às alienações fiduciárias é bem patente em Ferrara, ob. cit.,
pág. 130 e segs., não só por atribuir ao credor mais do que aquilo que economicamente lhe compete,
como também por retirar ao devedor a possibilidade de onerar novamente o mesmo bem e, sobretudo,
provocar uma antinomia entre o património real e aparente do devedor susceptível de lesar terceiros (“i
quali, fidandosi dei beni di cui il debitore si trova materialmente in possesso, concedono facilmente un
credito a lui per quella apparenza esteriore che non corrisponde alla realtà”): para cúmulo, este tipo de
negócios presta-se “a speculazioni odiose ed usurarie, perchè il debitore che non paga, finisce per
perdere tutto il valore della cosa, che supera di gran lunga l’ammontare del suo debito”. Já em Espanha,
Reglero Campos, Il patto comisorio cit., pág. 271 e segs., relata a existência de decisões judiciais
contraditórias, embora pareça que a tendência mais recente (apoiada pelo Autor) aponte para a negação de
um efeito real aos negócios fiduciários – nos quais não existe uma venda propriamente dita, mas apenas
uma garantia -, os quais produzem apenas efeitos inter partes, podendo o credor exigir apenas o montante
em dívida, sem que possa pretender a consolidação do direito de propriedade do bem onerado, concluindo
pela ineficácia relativa do negócio celebrado entre as partes, uma vez que “la voluntad de transmitir y la
de adquirir no son suficientes para producir el efecto traslativo intentado o perseguido, toda vez que la
validez e eficacia del contrato exige la existencia de una causa eficiente justificadora del fin que las
partes han pretendido o buscado, finalidad que en casos como el presente, consiste para el prestatario en
obtener el capital que necesita, y para el prestamista garantizarle la devolución de lo prestado” (por ser
assim e por não se encontrarem proibidos liminarmente os direitos de garantia atípicos, o Autor advoga
que o direito do credor deverá ser reconduzido a um direito real de garantia – por ser esta a verdadeira
causa do negócio -, dispondo das faculdades típicas deste tipo de direitos, como sejam o direito de
retenção – excepto quando o penhor esteja sujeito a registo, pois neste caso não será possível a conversão
do negócio fiduciário em penhor – e o direito de preferência). Já Cordero Lobato, Comentarios cit., pág.
2139, noticia que a jurisprudência espanhola se inclina para a invalidade das alienações em garantia, com
fundamento na circunstância de “el acreedor se apropria de los bienes unilateralmente el procedimiento
de realización forzosa de su crédito sin atenerse a las normas procedimentales estabelecidas para la
ejecución de garantías reales, pues la venta realizada con finalidad de garantía no es causa suficiente
para la transmisión definitiva del dominio”, alargando tal juízo de recusa à opção de compra concedida
ao credor pelo montante do débito e à venda suspensivamente condicionada ao não pagamento da dívida;
pelo contrário, mostra maior abertura face à reserva de propriedade em que o transmitente mantém a
titularidade do bem alienado e a garantia se cinge ao bem alienado, “pues la equivalencia entre el precio
de compra y la deuda de financiación impide que se pueda dar la posibilidad de un descompensación
entre el valor de la cosa recuperada y el nominal de la deuda” (excepto quando se convencione que o
vendedor se poderá apropriar das quantias entretanto pagas pelo adquirente – por faltar aquela
equivalência - ou quando a venda seja uma mera retransmissão de uma coisa que previamente pertencia
ao devedor, uma vez que, neste último caso, a causa de ambos os negócios é a concessão de crédito). Por
seu turno Salinas Adelantado, El regímen cit.,pág. 145 e segs., refuta os argumentos dos adeptos da
restrição desta interdição às garantias típicas (nomeadamente o carácter excepcional da norma e por se
tratar de uma proibição), considerando tratar-se de um princípio de índole geral que impede ao credor
apropriar-se do objecto da garantia sem prévia avaliação deste e sem confronto com o montante do
889
reserva de propriedade em que o efeito real seja diferido para o momento da verificação
do cumprimento,3044 do sale and lease-back3045 ou, finalmente, do mandato à cobrança
com fins de garantia.3046
crédito garantido: se assim é, a venda em garantia não pode deixar de estar abrangida por esta proibição,
não tanto no momento da sua constituição (“Si el pacto comisorio lo que prohibe es que el acreedor, una
vez haya incumplido el deudor, adquiera el objeto de la garantía sin valorar si coincide con el crédito
garantizado, la simples constitución de una venta en garantía no infringe el pacto comisorio, a pesar de
que se sostenga que el acreedor ha adquirido el objecto de la garantía”), mas sobretudo no momento da
sua execução (pois, em caso de incumprimento do devedor, a alienação por parte do credor se torna
irrevogável, “sin valoración ni devolución de sobrante alguno al constituyente de la garantía”), excepto
se acompanhada de um pacto marciano (ou seja, devolvendo ao devedor um eventual excedente
relativamente ao valor do crédito garantido). No direito francês anterior à reforma, a jurisprudência tendia
a, na presença de determinados indícios (como a existência de uma faculdade de resgate, a relocação dos
bens ou o carácter vil do preço), constatar a vontade das partes em dissimular, sob a forma de venda, uma
operação de mútuo, invalidando o negócio em questão com fundamento na violação da proibição do pacto
comissório, porquanto consentem ao credor reter definitivamente a propriedade em caso de
incumprimento da obrigação garantida, cominando, para o efeito, a sanção da nulidade (ou ainda por
força da interdição de criação de garantias mobiliárias não possessórias), a que acrescia a não
consagração legal expressa até 2006 – neste sentido, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 82 e segs..
3044
A favor da invalidade deste tipo de convenções, Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 505 e Ferrara, ob. cit.,
pág.133 e segs. (este último considera que este negócio, embora admitido por lei, é injustificável em
termos económicos – pois permite que o comprador que não tenha pago apenas a última parcela do
pagamento esteja sujeito a uma acção de reivindicação por parte do vendedor – e, principalmente, “se
attua una garanzia per il venditore, è sfornita di ognio forma di pubblicità per i terzi. E pertanto se è
vero che essa adempie, come è stato detto, alle funzioni di un’ipoteca mobiliare, si tratterebbe in ogni
caso di un’ipoteca mobiliare occulta”, pugnando, por isso, pela sua abolição por proprocionar ao credor
“una garanzia infinitamente maggiore di quella che sostanzialmente dovrebbe spettargli”).
3045
Encontramo-nos perante um contrato deste género – também designado locação financeira restitutiva
- quando um sujeito, proprietário de determinados bens, os vende a uma instituição financeira, para que
esta os ceda imediatamente a título de locação ao mesmo sujeito, contra o pagamento de uma prestação
periódica. Afirmam a licitude deste tipo de negócios, face à proibição do pacto comissório, Isabel Matos,
ob. cit., págs. 206 a 210 (ressalvando, porém, a possibilidade de este esquema contratual ser usado para
ocultar um pacto comissório, caso em que o dito negócio ficará sob a alçada da proibição contida no art.º
694.º) e Remédio Marques, Locação financeira restitutiva (sale and lease back) e a proibição dos pactos
comissórios – negócio fiduciário, mútuo e acção executiva, in BFDUC, Vol. LXXVII, 2001, pág. 595 e
segs.. Os principais argumentos que sustentam esta tomada de posição prendem-se com o escopo não
necessariamente de garantia deste negócio, com o facto de a transferência do bem ser imediata e anterior
a qualquer eventual incumprimento do devedor (embora se possa contestar tal constatação, contrapondo
que a transferência é efectuada sob condição resolutiva do cumprimento do contrato de locação por parte
do locatário), com a circunstância de, em caso de pagamento integral por parte do locatário, a compra e
venda não se resolver (devendo o locatário, para readquirir a propriedade do bem, exercer o a opção de
compra e pagar o preço residual, o que demonstra que a alienação do futuro locatário ao futuro locador
tinha sido uma venda pura e simples e não sujeita a condição resolutiva) e, finalmente, com a
possibilidade de o credor locador alienar o bem a qualquer terceiro (ao contrário do que sucede no pacto
comissório, onde o credor tem obrigação de devolver o bem dado em garantia ao devedor caso este
cumpra a obrigação principal, pelo que não o poderá alienar a terceiros antes de verificado o
incumprimento definitivo daquela obrigação). Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág.
448, a locação financeira restitutiva apenas produzirá os efeitos vedados por tal proibição sempre que “o
locador possa fazer (definitivamente) sua a coisa em caso de incumprimento por parte do locatário
financeiro sem uma avaliação ou com uma avaliação por ele realizada”, mas já não “quando o bem
tenha nessa altura que ser avaliado por terceiro independente, e um eventual excesso relativamente ao
montante indemnizatório deva ser restituído ao locatário”: nesta conformidade, o Autor entende ser de
concluir – por força do carácter fiduciário do contrato, da especial idoneidade das entidades locadoras e
do dever lateral de conduta que impõe ao devedor vender o bem ou ficar com ele após avaliação
efectuada por um terceiro independente (e de, caso após tal operação ficar numa situação mais favorável
do que aquela em que estaria se o contrato tivesse sido cumprida, devolver essa diferença ao devedor) –
que “só quando decorrer da interpretação do contrato que as partes quiseram mesmo que, no caso de
incumprimento do locatário financeiro/fiduciante ficasse com o bem (de valor superior), sem ter que o
alienar a terceiro ou o fazer avaliar por um ente independente , assim domo de restituir o excedente,
890
Contudo, o panorama não se afigura, também a este propósito, linear, uma vez
que mesmo nos ordenamentos menos rígidos a tendência oscila entre a constatação da
estaremos perante um pacto comissório, atingido pela proibição” (sendo, por isso, de presumir que o
contrato em questão não viola essa proibição). No direito italiano, Angelo Luminoso, ob. cit., pág. 224 e
segs., considera tal contrato como ilícito, por violação da proibição comissória, sempre que o mesmo seja
usado com fins de garantia, embora assegure que, quando tal suceda, exorbitará da categoria dos contratos
de troca e passam a integrar os de garantia, desse modo assumindo uma causa incompatível com o
esquema legal do tipo contratual (aplicando o mesmo entendimento ao contrato de reporte). Por seu turno,
Gregorio Gitti, ob. cit., pág. 484 e segs., defende a licitude do contrato, excepto quando “da una parte c’é
la disperazione e dall’altra la volontà di speculare, cioè a dire, in termini giuridici, quando a snaturare il
contratto interviene il motivo usurario dei contraenti”, isto é, normalmente quando o vendedor e
utilizador do bem já se encontra em graves dificuldades financeiras e, para evitar o pior, tenta dispor do
pouco que ainda lhe resta (com a agravante de, muito frequentemente, os juros deste tipo de contratos ser
superior ao normal e de a soma paga pela sociedade de leasing a título de preço de aquisição do bem ser
de imediato reduzida – no momento do pagamento da primeira prestação por parte do vendedor-utilizador
– de uma tranche maior que o habitual) e, para determinar quando tal sucede, dever-se-á recorrer a um
conjunto de indícios (a saber, os bens vendidos não serem destinados à actividade profissional do
alienante-utilizador; as dificuldades financeiras deste último; a existência de uma desproporção
assinalável entre as prestações deduzidas nos contratos de compra e venda e de leasing; e a intenção
simulatória, traduzida no desejo de “coprire un rapporto di debito cui la vendita accederebbe con scopo
di garanzia, configurando, più lineramente, una violazione del divieto del patto comissorio, e non
un’ipotesi di frode”). Por fim, Gregorio Gitti, ob. cit., pág. 491 e segs., assegura que o contrato de sale
and lease back inválido, por violação da interdição do pacto comissório, pode ser convertido de modo a
salvar, consoante os casos, ou a venda (se efectuada a preços de mercado) ou o financiamento (se as taxas
de juros praticadas fossem as correntes), entendendo que, na dúvida, tal convenção deverá operar (até
porque funcionará como um sucedâneo do pacto marciano). Francesca Fiorentini, ob. cit., pág. 282 e
segs., noticia que a jurisprudência tem oscilado entre a aceitação e o repúdio deste negócio, mas,
ultimamente, tem decidido prevalentemente no primeiro sentido, excepto quando o mesmo seja utilizado
com fins de garantia, caso em que a sua ilicitude decorrerá do desrespeito da proibição do pacto
comissório (para determinar quando tal acontece, os juízes socorrem-se dos indícios acima apontados –
acerca do recurso a estes mesmos indícios, vide Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 117 e segs.,
distinguindo entre os de natureza subjectiva (a notória desonestidade do pseudo comprador e as
dificuldades financeiras do devedor) e os de carácter objectivo (o carácter vil do preço, a desproporção
entre a soma paga pelo comprador e o efectivo valor do bem, a não correspondência entre as rendas da
locação e a sua não correspondência com os proveitos produzidos pelo bem, o facto de o vendedor
continuar a pagar os impostos e outros ónus que impendam sobre a coisa, a não inscrição da alienação no
registo e as expressões utilizadas pelas partes). No direito espanhol, Reglero Campos, Il pato comisorio
cit., pág. 281 e segs., dá conta de decisões judiciais contraditórias, umas aceitando o efeito translativo da
propriedade ínsito neste negócio, outras fulminando-o com base na proibição do pacto comissório
(enquanto negócio fraudulento).
3046
Segundo Lelio Barbiera, ob. cit., pág. 748, esta figura caracteriza-se pelo facto de o devedor conferir
ao credor o poder de cobrar um seu crédito face a terceiros, assim se obtendo a satisfação do direito do
credor, por via de compensação, merecendo o beneplácito da jurisprudência italiana. Considerando que
este tipo de convenções viola a proibição do pacto comissório, quando o mandato irrevogável a vender
não seja acompanhado de uma obrigação de prestação de contas por parte do credor referido ao bem-
garantia, Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 505, ao passo que Francesca Fiorentini, ob. cit., págs. 265 e 266,
reconhece subsistirem posições diversas ao nível da doutrina e da jurisprudência, mas prefere por em
relevo as que admitem este negócio (seja invocando uma diversidade estrutural face ao pacto comissório,
pois o bem “non passarebbe al creditore in conseguenza dell’inadempimento, ma verrebbe alienato a
terzi nell’esecuzione di un mandato da compiersi con la diligenza del buon padre di famiglia. Inoltre, il
prezzo dell’alienazione eventualmente eseguitasi non sarebbe predeterminato ex tunc, in relazione alla
somma mutuata, bensì ex nunc, in base al valore di mercato del bene al momento della compravendita
stessa”; seja considerando tratar-se de uma derrogação admissível dos procedimentos executivos
previstos por lei, com a vantagem de evitar a desproporção entre o valor da garantia e do crédito e sem
prejudicar a regra da par conditio creditorum, na medida em que o credor tem o dever de restituir a
diferença ao devedor).
891
não contrariedade de algumas destas figuras face à interdição comissória3047 e a
afirmação de tal isenção relativamente a apenas certas de entre elas.3048
3047
Realçam este aspecto Anna Veneziano, ob. cit., pág. 21 e Gabrielli, Spossessamento cit., pág. 934 e
também in Garanzie rotative, garanzie futtuanti e trust: problemi generali, in www.il-trust-in-italia.it, pág.
1. Este último Autor, em especial neste último escrito – depois de alegar que também a suposta violação
da par conditio creditorum é invocada para recusar a admissibilidade destas figuras - critica esta aversão,
não só porque “l’esercizio dell’autonomia negoziale in tema di garanzia reale non celi necessariamente
un intento abusivo e predatorio del creditore ai danni del debitore o dei creditori concorrenti”, como
sobretudo porque o acolhimento destas figuras permitiria renovar o desadequado elenco das garantias
reais. Particularmente enfática na demonstração da não contrariedade das transferências em garantia com
a proibição do pacto comissório se mostra Albina Candian, Le garanzie cit., pág. 367 e segs., sustentando
que nenhuma das justificações normalmente invocadas como sustentação da interdição (interesse geral
em evitar a disseminação destes acordos – e, assim, a auto-satisfação do credor, uma erosão do par
conditio creditorum e o aproveitamento do estado de necessidade do devedor e, por outro, razões de
política legislativa) colhem relativamente àquele tipo de negócios. Quanto ao interesse geral subjacente à
proibição, o perigo de difusão deste tipo de cláusulas só pode verificar-se através de uma estandardização
dos contratos, ou seja, quando exista assimetria de informação entre os contraentes (nomeadamente
porque um deles nem sequer leu o conteúdo contratual antes de o subscrever) ou uma posição de
monopólio do predisponente: ora, nada disto acontece nos negócios translativos da propriedade com
função de garantia. No que concerne às razões de política legislativa e à imanente necessidade de
protecção do devedor contra a ilusão de recuperação do bem onerado (e, ainda, contra a desproporção
entre esse bem e o crédito garantido), a Autora sugere que tal ilusão ou coacção psicológica nem sempre
se verificará e, quando se produza, será facilmente controlada através do pacto marciano. Carlos de Cores
e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 269 a 271, aceitam que a proibição do pacto comissório constitui o
principal obstáculo à admissibilidade das alienações fiduciárias, concordando que tal interdição radica na
necessidade de protecção do devedor contra a apropriação, por parte do credor, de um bem de valor
superior ao da dívida assegurada (concluindo, por isso, que essa invalidade se justifica tendo em conta
que “La percepción de un valor superior al de la deuda carece de causa justa”, mas recusam que o facto
de os negócios fiduciários terem um efeito de transferência definitiva e não de garantia possa ter alguma
influência a este respeito (assegurando que, se assim fosse, não se compreenderia a admissibilidade
garantias fiduciárias sobre valores mobiliários, as quais se explicam pelo facto de o valor de liquidação
dos mesmos não depender do credor, mas sim de critérios objectivos).
3048
De acordo com Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 65 e segs., o panorama italiano afigura-se, a este
respeito, extremamente complexo, desde logo atenta a admissibilidade de figuras de transferência em
garantia de situações jurídicas subjectivas patrimoniais, como a cessão de créditos e o penhor irregular.
Partindo da admissibilidade da cessão de créditos em garantia, o Autor retira a admissibilidade genérica
de um negócio translativo com função de garantia, a possibilidade de atribuir à função de garantia com
efeitos translativos uma causa independente da causa fiduciae (“essendo piuttosto possibile riconoscere
una indipendenza della causa di garanzia dalla causa fiduciae. La cessione in garanzia, infatti, si
ricollega per molti aspetti agli schemi negoziali del pegno sul credito (…) e della cessione pro solvendo”,
ou melhor, conjuga o elemento funcional do penhor com a estrutura da cessio pro solvendo) e, por último,
a não incidência de um negócio translativo com função de garantia sobre o conteúdo da situação jurídica
subjectiva transferida (com efeito, apesar de o titular do direito poder encontrar-se inibido do exercício de
determinadas faculdades a ele inerentes, tal não implica uma modificação substancial da situação, uma
vez que o cessionário “ha la titolarità della situazione di credito, ma può porre in essere soltanto le
attività che (…) non pregiudichino la posizione del debitore-cedente e quella dei terzi”, do mesmo modo
que o cedente, apesar da cessão, mantém uma titularidade potencial), tendo em conta o carácter
condicional da cessão (isto é, a figura é enquadrável na categoria dos negócios condicionais, uma vez que
“Come l’adempimento fa venir meno la titolarità temporanea del cessionario in garanzia, il definitivo
adempimento fará sí che alla titolarità temporanea della situazione di credito se ne sostituisca una a
tempo indefinito”): se assim é, “nel produrre l’effetto traslativo, la funzione di garanzia non ha
un’incidenza tale da provocare una modifica della situazione trasferita, fa considerare superato, o
meglio aggirato, il conflitto con il pur discutibile principio della tipicità dei diritti reali”. No que
concerne ao penhor irregular, negócio tipificado legalmente, o Autor advoga que estaremos perante uma
alienação com funções de garantia (reforçando os poderes do credor em caso de incumprimento da
obrigação assegurada) com carácter solutório (traduzido no direito de reter uma quantidade de bens
equivalente ao avolumar do crédito): em suma, perante este quadro, o Autor conclui, não existirem
motivos para negar admissibilidade das alienações em garantia. Constata igualmente esta disparidade de
tratamento, verberando-a (nomeadamente aludindo à falta de motivos válidos para justificar a maior
892
Uma posição merece uma referência especial, porquanto propende para a
admissibilidade dos chamados pactos comissórios autónomos, não sem reconhecer a
existência de obstáculos comuns a muitas dessas figuras,3049 argumentando que a
proibição legal visa impedir um iníquo aproveitamento do credor em prejuízo do
devedor, mas não, em si mesma, a programação da transferência da propriedade no
seguimento do incumprimento por parte deste.3050
Tomando posição, a validade de tais negócios translativos da propriedade
(prescindindo, nesta sede, de considerações respeitantes à própria licitude de alguns
deles, nomeadamente os de base fiduciária ou, quanto a outros, à legitimidade da sua
utilização do direito de propriedade com fins de garantia) pressupõe a demonstração que
tal transferência não é condicionada ou programada para o incumprimento de uma
determinada obrigação, pois, se assim não for, a convenção não pode não estar sob a
alçada da proibição do pacto comissório.
Com efeito, os perigos que esta interdição visa conjurar – em especial, a
tipicidade das garantias reais e, reflexamente, a protecção do devedor e dos seus
credores – seriam facilmente iludidos por este tipo de negócios, quando utilizados com
fins de garantia, justificando-se a não previsão expressa da proibição relativamente a
tais negócios pelo facto de os mesmos serem atípicos ou, sendo típicos, o seu intuito
primordial (e que presidiu à sua consagração legal) não ser o de operarem como
garantias.
abertura face à cessão de créditos em garantia, por contraponto com uma maior relutância relativamente à
alienação de bens com o mesmo fim), Mauro Bussani, Il problema cit., pág. 115.
3049
De acordo com Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 65 e segs., os dois obstáculos à própria admissibilidade
deste tipo de negócios são a inidoneidade da função de garantia para justificar causalmente uma figura
com efeitos translativos (“la funzione di garanzia può ben essere realizzata attraverso la costituzione di
un diritto reale di garanzia: il trasferimento di un bene a tale scopo utilizza, pertanto, uno strumento
eccessivo rispetto al fine perseguito, sì che l’effetto traslativo o andrebbe ricondotto a un negozio
astratto, improponibile nel nostro ordinamento, ovvero dovrebbe fondarsi su una causae fiduciae che
sarebbe comunque non tollerabile dal sistema. Conseguenza sarebbe la nullità dell’alienazione in
garanzia per mancanza di causa”) e o princípio da tipicidade e do numerus clausus dos direitos reais (ao
consentir a transferência, não de um direito de propriedade pleno, mas antes de “una situazione soggettiva
instabile, avente natura fiduciaria”), óbices estes que o Autor entende serem suplantáveis: relativamente
ao primeiro, contrapõe ser pouco convincente a recondução da causa de garantia à categoria, de contornos
indefinidos, dos negócios fiduciários (para além de, na sua óptica, a aversão às transferências com função
de garantia resultar de uma mera posição apriorística); no que respeita ao numerus clausus e à tipicidade
(para além da dificuldade da distinção entre os dois conceitos, parecendo o primeiro atinente ao conteúdo
das situações subjectivas, o segundo à exclusividade das fontes de determinação de tal conteúdo: se assim
é, poder-se-á falar uma tipicidade sem numerus clausus, mas não o inverso), o Autor considera que o
ancorar da inadmissibilidade da alienação em garantia neste princípio constitui um equívoco, uma vez que
o numerus clausus respeita ao conteúdo de uma situação jurídica subjectiva, enquanto as transferências
em garantia são respeitantes às vicissitudes da própria situação (pelo que “Affermare che l’alienazione a
scopo di garanzia di una situazione reale produce una fattispecie incompatibile con il principio del
numero chiuso, in realtà equivale ad affermare che la vicenda trasferimento a socpo di garanzia
comporta una modifica della situazione trasferita”, o que não corresponde à verdade).
3050
Neste sentido, Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 157 e segs., considerando que, nestes casos, não existe
uma convenção comissória expressa, mas antes a utilização de um tipo contratual com finalidades de
garantia, operando-se a constituição da garantia através da alienação de um bem, deste modo criando um
mecanismo solutório alternativo em caso de incumprimento. Se assim é, “sembra possibile fare salva
l’intera fattispecie contrattuale e, allo stesso tempo, ristabilirvi l’equilibrio economico” através do
funcionamento “ex lege di un meccanismo di verifica dell’assetto concreto degli interessi realizzato degli
parti e, quando ocorra, di riequilibrio: in altre parole, um meccanismo solutorio che corrisponda non
allo schema del patto comissorio, bensí a quello del patto marciano”, ao mesmo tempo que se respeita a
vontade das partes no sentido de colocarem em marcha uma transferência definitiva da propriedade com
funções solutórias.
893
Por outro lado, o recurso ao elemento sistemático elucida-nos como seria de todo
incompreensível que uma convenção do tipo comissório fosse inexoravelmente inválida
quando associada a uma garantia típica e, ao invés, permanecesse incólume quando
associada a uma garantia atípica ou a um instituto (ainda que típico, mas consagrado
com outro propósito) utilizado com essa finalidade.3051
Dir-se-á, até, que quanto a estes últimos, a sua invalidade à luz dos princípios
que inspiram a consagração legal das interdições comissórias – em especial, da
tipicidade das causas legais de preferência e da sua graduação – se impõe por maioria de
razão, não sendo curial que uma preferência legalmente reconhecida seja invalidada em
razão de um pacto acessório e o mesmo não acontecesse com o instituto que nem sequer
é considerado pelo ordenamento jurídico como motivo de prelação.
Tudo pesado, advogamos uma interpretação extensiva (ou, porventura,
analógica)3052 do art.º 694.º, em homenagem ao seu espírito, por forma a que a repressão
nela contida alcance igualmente outros negócios utilizados com fins de garantia.3053
3051
Mais enfático ainda é Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 502 e segs., salientando que o pacto comissório
autónomo desempenha a mesma função jurídico-económica e conduz ao mesmo resultado de um pacto
típico, pelo que “Sarebbe inoltre assurdo rimettere all’arbitrio del creditore la liceità del patto, la quale
verrebbe a dipendere dalla circostanza che costui pretenda o meno la costituzione di una garanzia
tipica”, acrescentando que a transferência da propriedade não constitui sequer um modo – nem tão pouco
um modo proibido – de realização de uma garantia, pois não se vislumbra qualquer exercício da faculdade
de preferência (pois o credor fará valer no confronto com os demais a propriedade do bem e não qualquer
preferência) ou de sequela (uma vez que o credor invocará antes a prioridade da sua aquisição): assim
sendo, se a convenção comissória vedada por lei “rappresenta un negozio estraneo agli effetti delle
garanzie nominate, nel senso che esso non configura una possibile realizzazione in astratto del pegno o
dell’ipoteca ed anzi pressuppone proprio che dalla garanzia non si avvalga, é evidente che il divieto non
può dipendere da una connessione meramente estrinseca e giustificata da ragioni storiche, tra
stipulazione del patto comissorio e costituzione di una garanzia típica, ma colpisce una convenzione la
quale è in realtà autonoma rispetto alle garanzie tipiche cui eventualmente abbia ad accedere”. Todavia,
a questão pode ser colocada em termos inversos, ou seja e como afirma Mauro Bussani, Il problema cit.,
pág. 119 e segs., a afirmação de uma inelutável contrariedade das alienações em garantia face à violação
do pacto comissório deixa no ar uma questão: “come mai trasferimenti (non in garanzia) conclusi dal
dante causa in istato di bisogno, situazione di cui controparte si è approfittata al punto da strappare un
prezzo inferiore alla meta del valore del bene, sono possibili solo di rescissione (….) mentre alienazioni
in garanzia per ipotesi neutre, o anche vantaggiose per il patrimonio del debitore, vengono proscritte, e
colpite da nullità sulla base di una norma la cui lettera è rivolta al pegno e all’ipoteca”.
3052
A interpretação analógica enfrenta, nesta sede, o obstáculo decorrente da natureza eventualmente
excepcional da proibição (face, por exemplo, ao princípio da autonomia negocial) seriam excepcionais e,
por isso, insusceptíveis de aplicação analógica – rebate este argumento Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 502 e
segs., por não descortinar qual a regra derrogada pela proibição, não sendo a autonomia privada, pois esta
não pode servir de móbil para perseguir objectivos não merecedores de tutela jurídica –
3053
Em termos coincidente, Vaz Serra, Pegno cit. in BMJ n.º 58, págs. 219 e 220, salienta como a
interdição legal não veda apenas um resultado prático apenas quando este seja obtido através de dada
forma jurídica, mas, ao invés, o faz independentemente do meio adoptado para alcançar o resultado
proibido por lei (no mesmo sentido, Bustos Pueche, ob. cit., págs. 570; contra, Diez-Picazo, ob. cit., pág.
484, por entender que tal significaria proibir liminarmente as convenções entre credor e devedor e que os
demais credores se encontram protegidos através dos meios de conservação da garantia geral dos seus
devedores). Partindo de uma perspectiva diversa, mas alcançando resultados não dissonantes, Já Júlio
Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit., págs. 68 a 70, constata que a generalidade da doutrina –
sobretudo aquela que encontra na necessidade de tutela do devedor o fundamento da interdição - se
pronuncia no sentido do alargamento da proibição do pacto comissório aos pactos autónomos, porquanto
o que se pretende evitar é a produção de um determinado resultado económico, alegando ainda que o
próprio elemento histórico contribui para esta interpretação, concluindo, também ele, que “é indiferente o
instrumento jurídico empregue pelas partes, que tanto pode consistir na transmissão da propriedade
sujeita à condição suspensiva do incumprimento, como na mesma transmissão sujeita à condução
resolutiva do cumprimento, bem como em um mero contrato-promessa” (no mesmo sentido, Patrícia
Fonseca, ob. cit., pág. 30 e Sofia Maltez, ob. cit., pág. 59 e Isabel Matos, ob. cit., págs. 80 e 81, embora
894
Deste modo, quando se conclua ter sido algum destes institutos usado com
finalidades de garantia e, adicionalmente, encontrando-se a transferência da propriedade
(independentemente do momento do iter negocial em que se produza) do bem
directamente relacionada com o incumprimento de uma obrigação, a validade de tais
negócios encontra-se dependente da comprovação do preenchimento dos predicados do
pacto marciano.3054
Contudo e à semelhança do anteriormente exposto – pelas mesmas razões e nos
mesmos termos -, este entendimento deve ser flexibilizado quando a garantia consiste
em dinheiro ou em créditos pecuniários.
esta última Autora coloque o acento tónico no interesse social subjacente à não difusão deste tipo de
convenções). Analogamente, Mauro Bussani, Il problema cit., para quem a razão de ser do diverso
tratamento dado a estas figuras e aos pactos comissórios propriamente ditos prende-se com a fácil
comprovação do perigo de desproporção entre as prestações em prejuízo do empenhante, concluindo que
qualquer fattispecie negocial cairá sob o jugo da proibição sempre que se demonstre serem as mesmas
portadoras dos mesmos pressupostos conducentes à invalidade do pacto comissório, pois “ai fini del
giudizio di illiceità negoziale non rileva infatti il tipo di strumento impiegato dai contraenti o il contenuto
degli effetti giuridico-formali dagli stessi voluti ma solo il risultato pratico-economico in concreto
perseguito”).
3054
Em termos análogos, a respeito da cessão de créditos em garantia, vide Januário da Costa Gomes, ob.
cit., pág. 97 e segs.. Já Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 505, declara a validade das
cessões de créditos e das alienações de bens em garantia, precisamente por, na sua óptica, respeitarem os
pressupostos do pacto marciano.
3055
Assim, Vaz Serra, Pegno cit. in BMJ n.º 58, pág. 218, Júlio Gomes, Sobre o âmbito da proibição cit.,
pág. 72 e Catarina Monteiro Pires, ob. cit., págs. 274 e 275. Afirmam também que a nulidade do pacto
comissório não afecta a validade do contrato de penhor Planiol, Ripert, Becqué, ob. cit., pág. 119,
Troplong, ob. cit., pág. 111, Weil, ob. cit. pág. 95, Afonso Dionysio Gama, ob. cit., pág. 25, Diez-Picazo,
ob. cit., pág. 484 Reglero Campos, Ejecución cit., pág. 426. Já Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 74,
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 298, Daniel Fasquelle, ob. cit., pág. 34, nota 172 e
Bustos Pueche, ob. cit., pág. 571, excepcionam o caso de se provar que as partes não teriam concluído o
contrato sem essa cláusula, do mesmo modo que Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 41 (duvidando que
possa estabelecer-se uma presunção absoluta de essencialidade da convenção comissória) e Reglero
Campos, Ejecución cit., pág. 257. Pelo contrário J. Ph. Lévy, ob. cit., pág. 253, nota 156, dá conta que no
antigo direito francês a sanção era a nulidade de todo o contrato.
3056
Assim, Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 506. Menos assertivo é Vincenzo Lojacono, ob. cit., págs. 41 e
42, argumentando que, no direito italiano, quando a cláusula nula é substituída ipso iure por uma norma
imperativa, mesmo que seja essencial para todo o contrato, nunca implicando a nulidade total deste
(embora conclua que, no caso das convenções comissórias, não é identificável uma norma neste sentido,
não podendo considerar-se como tal a necessidade de recurso às vias judiciais para realização dos
interesses do credor ou a proibição da usura).
3057
Assinala esta consequência Ugo Carnevali, ob. cit., pág. 506. Contra, Fulvio Gigliotti, ob. cit., págs.
170 a 172, alegando que a nulidade não atinge a garantia típica, cuja preservação é erigida pelo Autor
895
Menos líquido é saber se o contrato de mútuo (ou outro) a que o penhor, munido
de pacto comissório, se encontra associado (garantindo o respectivo cumprimento) fica
a salvo da invalidade da cláusula interdita por lei: apesar de a solução mais óbvia
apontar nesse sentido (tendo em conta a autonomia, pelo menos formal entre os dois
negócios)3058 não nos repugna aceitar a hipótese inversa, quando se demonstre a
essencialidade da convenção comissória, não apenas para o negócio de garantia, mas
mesmo para a obrigação que aquela garantia visava tutelar.
Uma vez declarada a nulidade do pacto, essa declaração produz efeitos
retroactivos, fazendo nascer um dever de restituição de tudo aquilo que tiver sido
prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, do valor correspondente (art.º
289.º, n.º 1): em termos mais concretos, implica a obrigação de o credor, caso já tenha
exercido da faculdade de apropriação, restituir ao devedor o bem em causa.3059
Quanto à legitimidade para arguir a invalidade do pacto e tendo em conta a
sanção de nulidade cominada por lei, não restam dúvidas que a mesma assiste ao
devedor,3060 aos credores quirografários, oficiosamente ao juiz e, embora com dúvidas,
até ao credor beneficiário da convenção3061 (salvos os limites decorrentes dos princípios
gerais do ordenamento, colmo a boa fé e o abuso do direito), podendo qualquer dos
sujeitos invocar tal invalidade a qualquer momento.
Para terminar, importa fazer uma breve alusão à natureza jurídica das
convenções comissórias, qualificadas pela posição dominante como uma compra e
venda suspensivamente condicionada (através da qual o devedor aliena sob condição o
bem ao credor o bem empenhado, por um preço predeterminado e equivalente ao valor
do crédito),3062 embora esta solução seja passível de críticas,3063 facto que determinou o
como ratio da interdição do pacto comissório, rematando que “non ha senso indagare se il patto fosse in
continenti o ex intervallo, perché la sua nullità, comunque, non potrebbe estendersi alla garanzia tipica”.
3058
Nesta conformidade, Fulvio Gigliotti, ob. cit., pág. 167 e segs.. Assume uma posição mais nuancé
Cordero Lobato, Comentarios cit., pág. 2139, pois, embora declare que, nas garantias típicas, a nulidade
do pacto de apropriação não importa a nulidade do negócio de garantia, advoga que “si el pacto está
incluido en un negocio o complejo negocial utilizado con finalidad de garantía, la nulidad afectará a
todo el negocio complejo – incluida la concesión de crédito – si las cláusulas subsistentes determinasen
una posición no equitativa de las partes (…) por ejemplo, si el concedente de crédito si quedase sin
garantía alguna”.
3059
Ou, se tal restituição não for possível – por exemplo, porque o bem se deteriorou, pereceu ou foi
alienado a terceiro – deverá ser restituída uma quantia equivalente ao valor daquele bem: ora, nesta
segunda hipótese e como bem salienta Catarina Monteiro Pires, ob. cit., pág. 274, nota 756, “devem
aplicar as exigências do pacto marciano. A avaliação do bem deve ser realizada no momento da
declaração de nulidade por um terceiro independente”.
3060
Porém, Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 356, entende que a nulidade não poderá ser
invocada por um devedor que, através de uma nova convenção, dá em pagamento da dívida o objecto da
garantia.
3061
Relativamente a este último, Vincenzo Lojacono, ob. cit., págs. 43 e 44, destaca que, por um lado, não
ter sido ele o único a dar lugar à celebração do mesmo e, principalmente, que o regime da nulidade
consente a sua invocação por qualquer sujeito (para além de a solução contrária poder conduzir, em caso
de inacção por parte do devedor e dos demais credores, à consolidação do pacto, parecendo, por isso, que
ao credor deve ser dada a possibilidade de arguir a invalidade de um negócio, ainda que para ele tenha
contribuído e do qual seja, porventura, o principal beneficiário)
3062
Dá conta deste quadro, Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 55 e segs.. Aceita expressamente esta
qualificação Vincenzo Lojacono, ob. cit., pág. 22, sublinhando que “Il creditore diviene proprietario di
una cosa, da lui precedentemente avuta soltanto in garanzia: il semplice e temporaneo possesso si
tramuta in piena e definitiva proprietà. Il patto verrebbe cosi ad assumere se fosse valido la veste di una
vendita con condizione sospensiva, poiché della vendita esistono i requisiti essenciali: res, pretium,
consensus; il prezzo sarebbe costituito dall’ammontare del debito”.
3063
Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 56, argumenta que, se assim fosse, o preço da compra e venda era
representado pela extinção da obrigação garantida, solução esta que extravasa do esquema causal da
compra e venda. Massimo Bianca, Il divieto cit., pág. 105 e segs., realça a inexistência de um preço na
896
surgimento de posições diversas, como sejam a recondução à figura da datio in
solutum,3064 das obrigações alternativas3065 ou da cláusula penal.3066
Mesmo entre aqueles que aceitam, tendo em conta o seu carácter translativo, o
enquadramento do pacto comissório no âmbito das alienações, assiste-se a uma
discussão relativamente ao plano funcional, opondo os que atribuem à fattispecie uma
função de garantia e aqueles que nela vislumbram uma função solutória.3067
relação negocial emergente de um mútuo com pacto comissório associado (“In effetti, il vantaggio che il
debitore riceve per la perdita del bene è costituito dall’estinzione del debito), conluindo, por isso, que
“Non appare, così, che la figura della compravendita sia idónea ad esprimere la funzione di (eventuale)
soddisfacimento del rapporto obbligatorio che deve indubbiamente riconoscersi al patto comissorio”,
particularmente tendo em conta que a alienação a favor do credor se encontra condicionada ao
incumprimento por parte do devedor e que o respectivo valor pecuniário estava previamente fixado (ou
seja, a alienação funciona como meio de satisfação da relação obrigacional). Por outro lado, uma outra
diferença advém da circunstância de, nas alienações em garantia, existir uma transferência do direito,
enquanto o pacto comissório prescinde dessa transferência imediata.
3064
Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 56, alega que também esta tese deve ser rechaçada, tendo em conta que,
na datio in solutum, “la scelta di liberarsi con una prestazione diversa da quella dovuta spetta al debitore
e il consenso del creditore serve solo a conferire ad essa efficacia. Né, nella datio in solutum, il creditore
ha a disposizione strumenti coercitivi”. Por seu turno Massimo Bianca, Il divieto cit., pág. 107 e segs.,
alerta para o facto de o condicionamento da dação ao incumprimento do devedor se afigurar erróneo e
incompatível com a sua função única de extinção do crédito, uma vez que, ao contrário do pacto
comissório, não assegura ao credor nenhum direito sobre um determinado bem (na dação, pelo contrário,
o credor não dispõe de nenhum direito análogo, podendo o devedor cumprir oferecendo uma prestação
diversa da inicialmente contratada, embora mediante o consenso do credor).
3065
Para uma crítica desta tese, vide Massimo Bianca, Il divieto cit., pág. 108, salientando que no pacto
comissório o devedor tem a obrigação de cumprir a obrigação acordada para evitar a perda da propriedade
do seu bem (para além disso, “Se vi fosse una obbligazione alternativa a favore del debitore, oltre che a
venir meno il carattere principale dell’obbligazione garantita e il carattere accessorio del diritto
nascente dal patto comissorio, una possibile pretesa sul bene del debitore sarebbe in realtà rimessa al
debitore stesso, che potrebbe escluderla con un semplice atto di volontà”). O Autor acrescenta que
melhor sorte não logrará a qualificação como obrigação alternativa com a escolha a pertencer ao credor,
na qual não seria possível configurar uma prestação que o devedor tivesse que efectuar para evitar a perda
do bem).
3066
Partindo da existência, comum a ambas as figuras, de um efeito pernicioso para o devedor e favorável
ao credor associado ao incumprimento daquele. No entanto, Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 57 e segs. –
depois de alertar para a circunstância de alguma doutrina recusar esta equiparação com base na
impossibilidade de a cláusula penal poder ter como objecto a transferência de um bem, precisamente em
razão da proibição do pacto comissório – sustenta que a resposta a esta questão deve procurar-se numa
análise funcional, concluindo que, concordando com a diversidade entre o pacto comissório e a cláusula
penal, “in determinati casi (quelli nei quali la funzione e l’oggetto della penale siano gli stessi che
caratterizano il patto) tal diversità possa effetivamente attenuarsi”, nomeadamente “se oggetto della
penale è il trasferimento di un diritto, il riequilibrio economico della fattispecie sarebbe facilmente
perseguibile anche attraverso un’obbligazione restitutoria a carico del creditore, che consenta di
eliminare la manifesta eccessività della prestazione imposta al debitore inadimplente, salvaguardando
l’efficacia della clausula”. Mais radical é Massimo Bianca, Il divieto cit., pág. 110 e segs., recusando o
enquadramento do pacto comissório na órbita das cláusulas penais pois, apesar de ambas as figuras
constituírem efeitos do inadimplemento do devedor, no pacto comissório “La attibuzione di un
determinato bene al creditore per il caso di inadempimento dell’obbligazione, importa la specificazione
delle conseguenze di cui il debitore deve rispondere per il suo inadempimento ma, a differenza della
clausola penale, questa specificazione si caratterizza in un vincolo su determinati beni, che assume i
caratteri di un vero e proprio rapporto di garanzia”.
3067
Nicola Cipriani, ob. cit., pág. 109 e segs., começa por definir a função solutória como aquela em que
se dá a “soddisfazione dell’interesse finale sottostante il lato attivo del rapporo obbligatorio,
indipendentemente dalla compresenza nel fatto solutorio di un atto di adempimento del obbligo”),
distinguindo-a da função de garantia (uma vez que nesta os mecanismos solutórios são meramente
eventuais, podendo o interesse do credor ser satisfeito de outras formas, isto é, “il meccanismo solutorio è
momento meramente eventuale della fattispecie credito assistito di garanzia: come detto, infatti, la
garanzia assolve interamente la sua funzione indipendentemente dal fatto che poi il debitore adempia
897
De entre os primeiros, ressalta a posição de BIANCA que, depois de apartar os
efeitos do pacto comissório dos produzidos pelas garantias reais,3068 conclui que o pacto
comissório constitui uma alienação em garantia condicional.3069
898
Capítulo III - As modificações, contratuais e legais, ao regime tradicional e
do penhor e a sua conformidade com o tipo legal desta garantia
Depois deste percurso, avaliada que foi a evolução dos diversos ordenamentos,
constatamos que alguns aspectos normalmente associados ao regime geral do penhor
foram suavizados (v.g., a imutabilidade do objecto onerado ao longo do período de vida
da garantia ou o princípio da especialidade dos direitos reais, ao impor que estes devam
incidir sobre coisa certa e determinada),3070 enquanto outros foram mesmo suprimidos
(v.g., a necessidade de entrega material do bem onerado ao credor ou a terceiro),
respectivamente através da inserção de cláusulas rotativas nos contratos de penhor e de
criação daquilo a que se convencionou chamar “penhores sem desapossamento”.
Já relativamente à aposição de cláusulas comissórias (rectius, marcianas), a sua
compatibilidade com o regime do penhor (ou de outras garantias, ao menos as típicas)
parece retirar-se já da regulamentação civilística, não assumindo, por isso, a convenção
das partes carácter verdadeiramente inovador.
Ora e colocando entre parêntesis a admissibilidade dos contornos que esta
evolução veio a assumir, uma outra questão, não menos pertinente, se coloca e que se
prende com a compatibilidade desses modelos alternativos com o esquema legal da
garantia pignoratícia.
Ou seja, concedendo que a autonomia negocial consinta às partes moldar o
regime normativo das garantias – e do penhor em particular -, importa examinar se,
desse modo, os contraentes não estarão a criar uma figura atípica, não enquadrável nos
cânones legais vigentes do penhor: é a esta interrogação que procuraremos responder
em seguida, começando pelo estudo da rotatividade, passando pela dissecação do
fenómeno das garantias mobiliárias não possessórias e terminando, em termos mais
genéricos, com uma averiguação da potencial harmonização entre a noção de tipicidade
das garantias e a modelação do seu regime por via convencional.
899
A este respeito, duas teses se confrontam, a primeira delas sustentando
invocando a figura das garantias anómalas, de modo que “sia la funzione ad individuare
il tipo, la riscontrata mancanza – pur in presenza del patto di rotatività nel pegno – di
alterazioni della fuzione (típica) di garanzia non modifica (…) la struttura formale e
quindi la tipicità legale del pegno, ma si inserisce sistematicamente al suo interno,
quale fattispecie anomala e non “atípica””,3071 (não faltando até quem as considere
como socialmente típicas, tendo em conta a sua frequente utilização prática e a sua
aceitação doutrinal e – pelo menos nalguns ordenamentos – jurisprudencial).3072
Pelo contrário, não falta quem sustente que o pacto de rotatividade não pode
configurar-se senão como uma convenção atípica,3073 válida entre as partes, mas não
3071
Gabrielli, Il pegno cit., págs. 243 e 244, acrescentando que o uso do termo “anomalo”, em vez de
atípico, não pretende ser um simples jogo de palavras, nem tão pouco sugerir a existência de uma terceira
via entre a tipicidade e a atipicidade, mas apenas sublinhar que “determinate fattispecie di pegno (di fonte
legale o convenzionale), pur presentandosi con una veste esteriore, apparentemente diversa da quella
propria del tipo legale, debbano in ogni caso, per le ragioni anzidette, essere ricondotte proprio
all’interno sia della schema legalmente tipico, sia della disciplina, del pegno”. Este entendimento é
seguido por Luciano Panzani, ob. cit., pág. 945, ao afirmar que “la funzione di garanzia è realizzata con
tecniche diverse da quella del mero spossessamento considerata dal legislatore, ma ciò che si consegue è
pur sempre la realizzazione della causa del contratto, valutata, secondo l’impostazione tradizionale, nel
suo profilo funzionale”, concluindo igualmente que “non si è al di fuori del tipo, della disciplina legale
del contratto costitutivo del pegno, e che pertanto non si può parlare di contratto atipico, quanto
piuttosto di fome anomale di realizzazione della funzione propria del tipo” (aludindo ainda ao facto de a
Corte de Cassação, na sua decisão n.º 5246/98, ter perfilhado expressamente esta posição) e por Carmine
Stingone, Sulla validità cit., págs. 105 e 106 (assegurando que a sentença do Tribunal de Milão de
17/11/1997 decidiu nestes mesmos termos). Entre nós, responde afirmativamente Joana Dias, ob. cit.,
págs. 237 a 243, salientando que a estrutura do penhor rotativo se assemelha, em alguns aspectos, à do
penhor de créditos (pois em ambas as hipóteses não tem que existir a venda do objecto da garantia para
pagamento da quantia em dívida) e afirmando que “o penhor rotativo é um verdadeiro penhor, tendo o
credor sobre ele todos os direitos que ao credor pignoratício atribui a lei em relação ao objecto do
penhor, e que são destinados a assegurar a preferência”, nomeadamente as acções de reivindicação e de
defesa da posse (ainda que admita que estas últimas não façam grande sentido quando sejam empenhadas
coisas fungíveis, porquanto o credor, nestes casos, não detém uma coisa determinadas que deva devolver:
todavia, conclui que o mesmo se passa no penhor de créditos e no penhor financeiro, expressamente
admitidos pelo legislador), constituindo “um pignus nominis com a especificidade do objecto imediato e
as suas vicissitudes, mas que comunga de uma técnica de afectação semelhante à que se verifica nos
direitos reais – a sub-rogação real na “coisa equivalente” que constitui a prestação devida, a
oponibilidade erga omnes, o ius distrahendi e o ius prelationis”.
3072
Assim, Joana Dias, ob. cit., págs. 109 a 111, nota 276 e 114 a 115, advogando que o problema
principal é o de identificar os limites da rotatividade convencional, nomeadamente analisando até que
ponto a própria lei admite o funcionamento da rotatividade.
3073
Gazzoni, Il vestitto dell’imperatore (replica ossessiva sul pegno rotativo), in Rivista del Notariato,
2002, Tomo I, pág. 563 e segs. e, igualmente, in Qualche dubbio cit., pág. 1464 e segs.). Para este Autor,
o Código Civil Italiano (cfr. art.º 2785.º do CCI, idêntico ao art.º 668.º do nosso Código Civil) estabelece
um princípio de tipicidade das modalidades conformativas do penhor, que apenas poderá ser afastado por
leis especiais e, noutra ordem de considerações, as hipóteses de sub-rogação real não novatória são
excepcionais e, por isso, não extensíveis analogicamente para lá dos casos expressamente consagrados
pelo legislador (pelo que a convenção rotativa poder-se-á admitir apenas para o penhor de títulos, quando
este se vençam ou quando sejam reembolsados antecipadamente pelo emitente e desde que o montante
recebido sirva para adquirir novos títulos, também eles sujeitos ao penhor): nesta conformidade, o pacto
de rotatividade não poderia produzir efeitos face a terceiros, pois não pode incidir sobre modelos
normativos típicos. A estas críticas respondeu Gabrielli (Il pegno cit., págs. 243 e 244, nota 61 e também
in “Pinocchio”, il “Grilo Parlante” e il problema del pegno rotativo: spiegazioni… a richiesta (fra il serio
e il faceto), Rivista del Notariato, 2002, Tomo II, pág. 547 e segs.), assegurando que aquilo que o art.º
2785.º do CCI estabelece é uma regra de inderrogabilidade das formas de direito comum de constituição
do penhor, mas não relativamente às técnicas funcionais da actuação em concreto das formas de
constituição da garantia real e muito menos de realização em concreto do efeito de privação da
disponibilidade jurídica da coisa objecto do penhor (por outras palavras, esta norma “consenta di
900
oponível a terceiros, nomeadamente aos credores quirografários, os quais serão lesados
a partir do momento em que a equivalência de valor entre o bem originariamente
empenhado e o seu substituto fosse avaliado no momento da abertura da execução (e
não no momento da substituição).3074
Esta segunda óptica pode mesmo conduzir à invalidade (ou, pelo menos, à
inoponibilidade) das convenções rotativas (e de outras que extravasem o tipo legal), em
razão de uma suposta violação da tipicidade legal das causas de preferência (cfr. art.º
604.º).3075
Adoptando uma visão ligeiramente distinta, há quem, sempre a respeito das
cláusulas rotativas, recuse a autonomização da figura do penhor anómalo, negando
igualmente a existência de um contrato típico constitutivo do penhor, de modo que ou a
disciplina geral do penhor considera o bem como um valor económico (e, então, o
penhor rotativo nada tem de anómalo, na medida em que apenas se altera o substrato
mas não o objecto da garantia); ou, pelo contrário, se conclui que o regime tradicional
do penhor consagra como objecto da garantia o próprio bem (e, a ser assim, o penhor
rotativo, ao fazer referência a bens diversos dos inicialmente empenhados, é
necessariamente atípico e não simplesmente anómalo).3076
Um argumento que pode depor a favor da compatibilidade das cláusulas
rotativas com o esquema legal do penhor advém da expressa previsão normativa da
rotatividade (embora geralmente dependentes de aposição pelas partes de uma cláusula
expressa nesse sentido), comum a vários alguns ordenamentos (embora limitada a
determinados tipos de bens especificados), destarte contribuindo para que, ao menos no
distinguere tra forme – e tecniche – di costituzione del vincolo, e quindi, anche al di fuori delle forme
cc.dd. «spiritualizzate» di consegna, consente, anche per il pegno di diritto comune, di attuare la
funzione di garanzia mediante tecniche alternative – ma funzionalmente equivalenti – allo
spossessamento effectivo del costituente, purché egli sia privato »dell’esclusiva disponibilità della cosa«
e quindi »sia nell’impossibilità di disporne senza la cooperazione del creditore«”, ou seja, a tipicidade da
função de garantia real consente que a autonomia negocial introduza variações e integrações estruturais
dentro da elasticidade do tipo, sem alterar o tipo legal, uma vez que se trata de meras variações de
estrutura e não de modificações do esquema legal de modo a torná-lo atípico).
3074
Gazzoni, ob. e loc. cit.. No que especificamente respeita à pretensa lesão dos interesses dos credores
quirografários, Luca Ruggeri, ob. cit., pág. 712 e segs., alega que “la rotatività non lede le ragioni dei
creditori chirografari; questi ultimi, in assenza della sostituzione dei beni dati in garanzia, non
avrebbero comunque potuto sperare di ottenere alcunché dai oggetti del pegno, sempre che la
sostituzione operi nel limite del valore originariamente posto a garanzia” (embora admitindo subsistir o
risco de os credores, maxime os bancos, alienarem os bens empenhados e, com o seu valor, diminuir o
valor em dívida mantendo invariada a garantia – sempre que os recursos necessários para aquisição de
novos títulos a sujeitar ao penhor sejam dispendidos pelo devedor -, rematando que “Tale rischio in sé
non appare di entità tale da costringere il giurista a propendere per il rifiuto del pegno rotativo, ciò
anche in considerazione del fatto che il debitore (…) può disporre del proprio patrimonio e nulla vieta
che egli utilizzi i propri mezzi economici per la riduzione del suo debito nei confronti della banca”).
3075
A este propósito, Joana Dias, ob. cit., págs. 231 e 232, o art.º 604.º “reporta-se apenas às “causas
legítimas de preferência” que impendem sobre os bens que integram o património do devedor e não,
como sucede no caso do penhor rotativo, sobre bens que deixaram de se encontrar na disponibilidade do
devedor ou do credor pignoratício sendo substituídos por outros que realizem a mesmo função atenta a
irrelevância individualizadora da res em si mesmo considerada (…) o art.º 604.º dirige-se
especificamente às situações de satisfação do credor com bens alheios que no momento da satisfação são
bens próprios daquele devedor, e não com bens que no momento da mesma satisfação já não são bens do
devedor porque anteriormente transformados ou subtraídos à titularidade do devedor e, por isso, fora do
núcleo em que se movem os demais credores comuns ou quirografários”. Como fundamento desta
posição, a Autora sugere que o art.º 604.º opera apenas no momento posterior ao não cumprimento
voluntário da obrigação, ao passo que as cláusulas de rotatividade possuem uma função preventiva,
permitindo ao credor ou ao devedor substituir, modificar ou renovar o objecto da garantia, por razões
inerentes à conservação dessa mesma garantia e/ou de gestão racional desses bens.
3076
Assim, Chiara Mancini, ob. cit., pág. 682.
901
domínio de aplicação de tais normas, a rotatividade não possa deixar de ser considerada
como conforme ao tipo legal de penhor.
Todavia, tal consagração não só não resolve o problema relativamente às
cláusulas de rotatividade que abarquem outros bens que não aqueles a propósito dos
quais tal fenómeno logrou reconhecimento normativo, como coloca ainda a dúvida (em
razão da mutação do quid onerado) de saber se as garantias rotativas legalmente
consagradas constituem ou não verdadeiros penhores.
A resposta a esta última interrogação pressupõe, a nosso ver, o esclarecimento
da dúvida acerca do erigir da imutabilidade do objecto da garantia como elemento do
tipo legal do penhor, à qual entendemos dever ser dada uma resposta negativa,
atendendo à viabilidade desta garantia pode incidir sobre bens fungíveis e/ou
universalidades, bens estes cuja especial configuração os torna, inevitavelmente,
sujeitos a modificações do seu conteúdo.
Ora, se assim é, mesmos as cláusulas rotativas que tenham por objecto outros
bens que não aqueles a respeito dos quais a rotatividade se encontra legalmente prevista,
não podem deixar de ser consideradas como integráveis no tipo legal do penhor, uma
vez que deste não consta qualquer imposição de invariabilidade absoluta do objecto
desta garantia.
Dito de outro modo e repisando uma ideia previamente defendida, quando o
penhor incida sobre bens fungíveis ou sobre uma universalidade, a faculdade de
substituição dos concretos bens onerados surge como inerente à própria natureza do
quid onerado, sem que tal conflitue com a essência pignoratícia da garantia.
3077
Em face da lei francesa de 1909, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 177 e segs., noticia uma
predominância da qualificação como hipoteca mobiliária “sous l’influence de l’organisation donnée à la
publicité du nantissement et qui rappelle celle de la publicité de hypothécaire”, associado ao facto de a
distinção entre penhor e hipoteca radica na ausência de desapossamento desta e de “le prétendu
902
Nesta hipótese, parece inegável uma aproximação ao regime dos bens imóveis,
deixando a posse do bem de ter um efeito de presunção de titularidade do bem ou de um
direito de garantia sobre esse bem (devendo eliminar-se a possibilidade de constituição
de direitos através da protecção da posse de boa fé por parte dos terceiros adquirentes, a
denominada regra da posse vale título), o que conduz alguns a optar pela inclusão de
semelhantes garantias na órbita das hipotecas mobiliárias.3078
Pelo contrário, quando para a constituição da garantia não se imponha o registo,
designadamente quando o credor adquira a posse do bem empenhado ainda que este não
saia da detenção material do empenhante (como sucede quando se faz apelo à figura do
constituto possessório, como por exemplo no penhor constituído em garantia de
estabelecimentos bancários), as dúvidas parecem mais suavizadas, atendendo ao facto
de o credor obter a posse, ainda que mediata, do bem onerado.3079
Como já resulta da leitura de direito comparado efectuada no Capítulo II, o
panorama nos diversos ordenamentos é heterogéneo e pouco claro, levando a procura de
alternativas ao tradicional penhor com desapossamento à criação de figuras
heterogéneas, muitas das quais dificilmente recondutíveis sequer ao penhor ou à
hipoteca mobiliária,3080 como sucede, por exemplo, com os warrants.3081
nantissement des fonds de commerce, se fait sans dessaisissement” (todavia, o Autor reconhece a
existência de posições contrárias, associadas à jurisprudência dominante, colocando o enfoque na
circunstância de “La publication joue un rôle analogue, au dessaisissement dans le gage, elle confère au
créancier gagiste vis-a-vis des tiers la possession du fonds”, permitindo ao devedor continuar a usufruir
do bem empenhado, não sendo os terceiros prejudicados – por não poderem conhecer o carácter precário
da posse do empenhante – em razão da existência de um sistema de publicidade organizada) – em termos
análogos, Hardel, ob. cit., pág. 182 e segs., baseando a sua posição no facto de a jurisprudência atribuir
natureza de bem móvel incorpóreo ao estabelecimento). Qualificam, já de acordo com a legislação
actualmente em vigor, esta garantia como hipoteca mobiliária, Simler e Delebecque, Droit civil 2009 cit.,
pág. 625, por entenderem que deve ser inscrita no registo (produzindo efeitos apenas a partir dessa
inscrição), que o devedor não é desapossado do bem e conserva o direito de dele dispor e, finalmente, por
conceder ao credor um direito de preferência e de sequela, mas não de retenção.
3078
Neste sentido, Ferrara, ob. cit., pág. 143 e segs., salienta que, historicamente, a publicidade mobiliária
com base registal existiu desde o antigo direito germânico, mas acabou por ser substituída, por força do
renascimento do direito romano, pela publicidade de facto conferida pela posse: todavia, a necessidade
recente de constituir uma garantia real não possessória fez renascer as garantias mobiliárias registadas
que, em seu entender, constituem verdadeiras hipotecas, uma vez “Quando infatti una cosa mobile
individualizzata, pur rimanendo in possesso del debitore, resta vincolata in forma pubblica con efficacia
verso i terzi, contro i quali si può esercitare il ius distrahendi, è uno scrupolo dai puritani, per non dire
un pregiudizio, seguitare a parlare di privilegio o di pegno, invece di usare il nome adatto che a tale
figura si conviene, cioò quello di ipoteca” e “si continua a parlare in questi casi di pegno o privilegio
(…) e si teme di usare la parola ipoteca (…) noi siamo troppo abituati all’idea che l’ipoteca si rifesrisca
ai soli beni immobili”. Segundo este Autor, a diferença entre o penhor e a hipoteca corresponde à
distinção entre garantias possessórias e não possessórias, considerando que “Gli scrittori che richiedono
come requisito dell’ipoteca la qualità immobiliare dell’oggetto, cadono nell’errore di far dipendere la
natura del diritto dalla qualità dell’oggetto su cui grava. Ora ciò è falso. Altrimenti per ogni categoria di
beni dovrebbero aversi istituti diversi da quelli esistenti im un’altra categoria, pure essendo nella loro
sostanza identici” (o Autor, no entanto, chama a atenção para as universalidades de bens, porquanto nesse
caso será mais difícil assegurar a protecção de terceiros contra ónus ocultos: todavia, sustenta tratar-se
apenas de um problema de técnica legislativa, não de uma questão de inadmissibilidade de uma hipoteca
sobre estes conjuntos de bens).
3079
Relativamente a esta hipótese, Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 65 e segs., salienta que a qualificação
da garantia como hipoteca mobiliária deve ser rejeitada, porquanto o credor obtém a posse do bem
recebido em garantia de modo a que “non impedisce tuttavia al possessore di esercitare il suo diritto
attraverso e mediante la persona del detentore”.
3080
Por exemplo, no direito francês desde o início do Século XX que o caminho seguido oscilou entre a
criação de hipotecas mobiliárias (para os barcos, navios e aeronaves), de warrants (agrícola, petrolífero,
industrial, hoteleiro, etc.) e de figuras apelidadas de penhor, mas que não implicavam o desapossamento
do devedor (como o que recaía sobre o estabelecimento comercial). De acordo com Hardel, ob. cit., pág.
903
Esta polémica, aliás, também se faz sentir intra muros desde tempos longínquos,
como se pode constatar pela querela em torno da natureza jurídica do penhor agrícola,
para cuja constituição a lei desde cedo deixou de exigir o desapossamento do
devedor.3082
À multiplicidade de garantias mobiliárias não possessórias não é alheia a
dificuldade, a que já se fez alusão, de identificação de um único mecanismo de
constituição de garantia aplicável à generalidade das coisas móveis, importando antes
diferenciar os diversos bens móveis a onerar para efeitos de determinação da
possibilidade de sobre eles ser constituída alguma das garantias.3083
Perante esta panóplia de modalidades que as garantias mobiliárias, possessórias
e não possessórias, podem assumir, importa agrupá-las de acordo com algum critério,
surgindo várias classificações como possíveis.
Desde logo, uma perspectiva mais linear agrupa as garantias mobiliárias em
quatro grandes categorias, quais sejam o penhor clássico (com desapossamento do
devedor e direito de retenção do credor), a hipoteca mobiliária (em que o
desapossamento é substituído pela publicidade registal, assim se assegurando a
existência de um direito de sequela na sua plenitude), o penhor sem desapossamento
simples (quando o credor tenha a posse jurídica do objecto da garantia, enquanto o
devedor mantém a detenção material, sendo o desapossamento assegurado por outra
forma de publicidade - alternativa ao registo – e/ou pela proibição de alienação por parte
do devedor, eventualmente acompanhada da imposição de sanções penais) e o penhor
sem desapossamento com possibilidade de substituição dos bens onerados
(normalmente associado à oneração de bens fungíveis, com a condição de à alienação
182 e segs., o desejável seria um alargamento da definição de bens imóveis, de modo a abranger aqueles
bens imobilizados “par immatriculation administrative oblligatoire sur des registres publics”, bens esses
susceptíveis de “être grevés d’une véritable hypothèque, en comportant tous ses attributs, droit de suite et
droit de préférence”.
3081
Relativamente aos warrants, a legislação não confere, normalmente, ao credor o direito de sequela,
uma vez que o registo da garantia, segundo a jurisprudência, não é suficiente para fundar a má fé dos
terceiros (sobre este assunto, vide, em especial, supra n.º 1.2.2 do Capítulo II), assim contribuindo para a
sua qualificação como penhor: contudo, alguns Autores enquadrem esta garantia nas hipotecas
mobiliárias, com o argumento que o registo procede à imobilização do bem sobre o qual recai o warrant –
sobre este assunto, Hardel, ob. cit., pág. 182 e segs..
3082
Confrontando-se as opiniões daqueles que olham para esta garantia como uma hipoteca (Guilherme
Moreira, ob. cit., págs. 325 e 326, alegando que o penhor se encontra indissoluvelmente ligado à entrega
do bem ao credor e, por isso, nos casos “em que o credor não fica tendo o direito de detenção sôbre a
cousa dada em garantia, não pode dizer-se que haja um penhor; há, pelo direito de preferência que o
credor fica tendo, uma hipoteca mobiliária”, embora conteste a ausência de publicidade, registal ou
possessória, deste tipo de garantia) às daqueles que preferem manter esta garantia no domínio pignoratício
(Luís Pinto Coelho, ob. cit., págs. 106 e 107, invocando que “A posse não exige a detenção. A posse,
como é sabido, pode obter-se pelos constitutos possessórios, e, portanto, basta o contrato de penhor para
que o credor seja constituído possuidor da coisa e, assim, nada a obstar que ela continue na mão do
devedor. Quem fica sendo o possuidor é o credor, e o devedor, embora continue com a coisa em seu
poder, passa a ser um fiel depositário da coisa”).
3083
A título meramente exemplificativo, Giuseppe Trapani, ob. cit., pág. 112 e segs., dissocia os quase
imóveis, que consentem uma perfeita individualização através do registo (onde se incluiriam os navios,
barcos, aeronaves, estabelecimentos comerciais, automóveis, filmes, rádios e televisões), os bens
individualizáveis de facto, isto é, através da aposição de um sinal nos bens onerados (admitindo haver
bens sobre os quais tal sinal não pode ser colocado – por exemplo, um diamante – de outros em que tal é
possível, mas sublinhando que tal colocação não deve excluir – sendo antes complementar – o registo) e
os bens fungíveis, cuja especificação poderá resultar da simples indicação do valor. Ora, parece que a
hipoteca mobiliária apenas poderia recair sobre o primeiro tipo de bens, enquanto o penhor sem
desapossamento seria apto para onerar os bens integrados na segunda e terceira categorias mencionadas.
904
dos bens originariamente onerados se seguir a substituição por outras da mesma
natureza, qualidade, quantidade e valor).3084
Outra proposta, mais complexa, assinala três modelos distintos, recorrendo, para
o efeito, a um conjunto aprofundado de critérios.3085
Numa primeira categoria, situar-se-iam aquelas garantias que conferem ao seu
titular um verdadeiro e próprio direito de sequela na sua plenitude, seja através da
instituição de um regime organizado de propriedade3086 ou, naqueles sistemas onde
vigora o princípio da posse vale título, pela via da inversão da presunção de boa fé que
permita ao credor garantido opor o seu direito ao terceiro possuidor.3087
3084
Assim, Giuseppe Trapani, ob. cit., págs. 110 e 111, deixando no ar a dúvida acerca da maior
proximidade do penhor sem desapossamento à hipoteca (quando ao credor seja concedido o direito de
sequela) ou ao penhor clássico (quando falte aquele direito) ou se, pelo contrário, não constituirá uma
nova forma de garantia intermédia entre as duas tradicionais.
3085
É este o esquema em que assenta toda a obra de Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 23 e segs.. Por seu
turno, Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 415, afirma que a intenção do Autor foi a de superar a
insuficiência do dualismo dogmático “hipoteca-inmuebles-inscripción y prenda-muebles-desposesión” e,
dada a ausência de desapossamento em quase todas as figuras analisadas, inclina-se para a sua
qualificação como hipotecas.
3086
De acordo com Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 25 e segs., este sistema apenas se adequa aos bens com
uma determinada importância económica (caso contrário, os custos inerentes não o justificarão), cuja
utilização seja notória ou ostensiva (caso contrário, quando o bem é passível de um uso oculto, “son
individualisation, si elle resulte du classement, risquera de ne pas être respectée; les mutations et
constitutions de droit réel retourneront fatalement à la règle del’apprehension matérielle. Les intéressés
seront, en effet, três tentes de ne pas se plier à des formalités de publicite, peut-être compliquées et
coûteuses, si une simple tradition suffit à leur assurer la possession du meuble et les utilités que leur
fournit le meuble ne révèlent pas au grand jour”), que possuam uma localização fixa (nomeadamente
porque, de forma administrativa, lhes é atribuído um ponto de contacto, o que permite a potenciais
interessados consultar a situação do bem) e que sejam susceptíveis de identificação (senão de forma
natural, ao menos por força de uma classificação administrativa), embora o Autor não atribua a todas
estas caracterísiticas a mesma importância (“c’est dans la notoriété de l’usage ou de la possession, outre
l’aptitude à l’individualisation, que se trouvait la clef de voûte d’un tel système”).
3087
Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 29 e segs., destaca que este mecanismo só será eficaz quando o credor
possa encontrar os bens na disponibilidade material de terceiros, o que pressupõe que tais bens possuam
uma determinada natureza e importância que permitam que o desapossamento não passe despercebido ao
credor. A referida inversão da presunção de boa fé do terceiro possuidor não decorrerá, segundo o Autor,
da mera sujeição a registo da garantia (pois tal suporia que qualquer adquirente de um bem móvel
susceptível de garantia sem desapossamento teria de informar-se acerca dos ónus que sobre o mesmo
recaíssem – em desconformidade com o princípio que rege os bens móveis e que postula a inexistência de
outros direitos para além dos que se manifestam através da posse; por outro lado e na ausência de uma
classificação administrativa dos bens, é impossível estabelecer uma publicidade capaz de alertar os
futuros adquirentes, pois terá que assentar numa base pessoal – e não real – originando assim que
“L’inscription de la sûreté réele será faite au nom du débiteur: seul, le premier acquéreur sera à même
de connaître l’existence de cette sûreté. Les acquéreurs postérieurs, eux, n’auront absolument aucun
moyen de la connaître piusque par définition ils ignoreront le nom du débiteur avec lequel ils n’ont eu
aucun rapport”), pelo que aventa duas hipóteses para alcançar tal desiderato: ou estabelecendo uma
formalidade administrativa obrigatória (sob as mais diversas formas, autorização para o uso do bem ou
cumprimento de determinadas formalidades aquando da transferência) de modo a que o adquirente do
bem não possa ignorar a garantia (isto é, “Le tiers acquéreur du meuble qui se conformera à l’obligation
administrative connaîtra ipso facto le droit dont son meuble est grevé, par consequent il ne pourra pas se
parer de la présomption de bonne foi”) ou através da estigmatização do bem (ou seja, da aposição de uma
marca visível manifestando a existência da garantia), hipótese esta que acaba por ser descartada pelo
Autor (nomeadamente pela facilidade em remover tais marcas, assim permitindo ao devedor alienar o
bem a um terceiro que terá que ser considerado de boa fé, destarte anulando o direito de sequela do credor
garantido), concluindo por isso que “dans le domaine de la règle en fait de meubles, la possession vaut
titre, seul l’établissement de certaines obligations administratives peuvent permettre une publicité
suffisante et par là même un droit de suite vraiment efficace”.
905
Aqui se inseririam as hipotecas mobiliárias, categoria na qual podemos incluir,
não apenas as garantias assim expressamente apelidadas pelo legislador,3088 como
também, eventualmente, outras que consintam a sua plena oponibilidade a terceiros,
nomeadamente por conferirem ao seu titular um direito de sequela pleno, ainda que não
denominadas explicitamente como garantias hipotecárias.3089
O direito real, em todos estes casos, acaba por assegurar a protecção da garantia
contra os actos que afectem a consistência material3090 ou jurídica3091 do quid onerado.
3088
Hardel, ob. cit., pág. 35 e segs., destaca como as hipotecas naval, fluvial e aérea – as únicas
consagradas na época – ao estabelecerem uma publicidade completa, consentem a oponibilidade do
direito a qualquer terceiro.
3089
Hardel, ob. cit., pág. 43 e segs., inclui nesta categoria a garantia sobre o estabelecimento comercial,
sobre automóveis e sobre películas cinematográficas, radicando a sua qualificação hipotecária na
atribuição de um direito de sequela e na ausência de desapossamento que todas elas consagram. No
primeiro caso e apesar da natureza jurídica controvertida do bem onerado (questão a que o Autor
responde inclinando-se para a qualificação como bem móvel incorpóreo, de modo que “bien que le fonds
de commerce ne soit pas susceptible de possession, on peut admettre qu’il est possible d’avoir sur cette
universalité un pouvoir de fait (…) est c’est ce pouvoir de fait dont le débiteur ne peut pas se dessaisir en
faveur de son créancier”), o Autor salienta a analogia das formalidades de inscrição e anulação do registo
da garantia relativamente às hipotecas mobiliárias previstas por lei, o que permite ao credor “poursuivre
en quelques mains qu’il passe le fonds de commerce qu’il retrouvera toujours grâce à stabilité (…) le
pouvoir de fait du débiteur sur le fonds ne met théoriquement pas le créancier en danger” (embora alerte
para o risco de separação de alguns elementos que compõem o estabelecimento, os quais escaparão à
garantia). Relativamente ao veículo automóvel, a publicidade resultante da menção da constituição da
garantia num registo cronológico existente na entidade que entrega um documento indispensável à
circulação do veículo (“carte grise”) será suficiente para conferir ao credor o direito de sequela,
porquanto “par la délivrance du reçu, le créancier gagiste sera réputé avoir conservé la marchandise en
sa possession” e, através desta ficção, “comme possesseur du véhicule dês l’inscription, pourra toujours
l’appréhender où qu’il se trouve (…) réputé possesseur par la délivrance du reçu de l’inscription, il
pourra mécnonnaître tout autre situation et revendiquer sa voiture envers et contre tous”, deste modo
prevalecendo mesmo sobre a regra da posse vale título (também aqui o Autor não desconhece as
insuficiências desta publicidade, nomeadamente em razão a mesma pressupor a matrícula do automóvel e
a entrega, pelo devedor ao credor, da carte grise, a fim de este registar a garantia). Finalmente, quanto ao
“nantissement des films cinematographiques”, a garantia pode incidir sobre três elementos (o filme
enquanto bem móvel corpóreo, o direito de exploração do filme e as receitas provenientes dessa mesma
exploração), sendo a publicidade decorrente da inscrição no registo no Centro Nacional da
Cinematografia através da indicação do nome do filme, pelo que o credor “pourra reprendre les éléments
corporels de l’oeuvre cinématographique entre les mains de tout possesseur et de tout détenteur” (assim
postergando a protecção de eventuais terceiros de boa fé concedida pelo princípio da posse vale título) e,
no que respeita às receitas, “L’inscription suffira à donner (…) une opposabilité absolue et déterminera le
rang (…). Grâce à la publicite, il n’est plus besoin de signification aux débiteurs cédés”.
3090
Principalmente através da atribuição do direito de satisfação preferencial, que assiste ao credor
pignoratício, sobre a indemnização devida por uma seguradora ou por um qualquer terceiro em caso de
danos provocados no objecto da garantia. Relativamente à primeira hipótese, Cabrillac, ob. cit., pág. 105
e segs., (depois de aludir à controvérsia relativamente ao enquadramento dogmático da questão –
entendendo ser discutível a chamada, na ausência de texto legal expresso, à colação da figura da sub-
rogação real – considerando que o direito do credor tem como objecto o valor do bem onerado, pelo que
“Ce n’est lorsque la veleur apparaît, et normalement c’est le créancier qui s’efforce de la faire
apparaître par la saisie, que le droit peut s’exercer. Or, il est indéniable qu’en cas de sinistre, la valeur
de l’objet apparaît dans l’indemnité d’assurance”), realça que o direito do credor poderá ser anulado em
caso de pagamento de boa fé por parte da seguradora (consistindo a boa fé no desconhecimento da
constituição da garantia), bem como pela possibilidade de esta poder opor ao credor as excepções de que
disponha contra o segurado. Quanto à indemnização devida por terceiros, o mesmo Autor sustenta, de
iure condendo, a consagração, em termos genéricos, dessa solução (embora reconheça, de iure condito, a
mesma apenas se encontra consagrada a propósito da hipoteca fluvial).
3091
Um dos potenciais ataques prende-se com o desmembramento de um bem corpóreo (v.g. a separação
de algumas peças que compõem o automóvel), caso em que o credor poderá reagir exigindo um reforço
da garantia. Uma hipótese particularmente relevante é a do desmembramento do estabelecimento
comercial, para a qual Cabrillac, ob. cit., pág. 119 e segs., distingue a protecção do credor em função do
906
Uma segunda categoria seria constituída por aquelas em que a garantia do credor
é assegurada através da conjugação do direito real de garantia e de uma obrigação
pessoal do devedor, especialmente naqueles ordenamentos nos quais vigore a regra da
posse vale título (pois desta resulta, amiúde, uma limitação do direito de sequela).3092
Nesta conformidade, a protecção do credor garantido, sofrendo a sequela uma
limitação severa,3093 advém essencialmente da preferência proporcionada pelo direito
real3094 (bem como da atribuição da faculdade de obtenção de indemnizações
tipo de bens que seja alienado: tratando-se de direitos incorpóreos – como os direitos de propriedade
industrial – o direito do credor com garantia sobre o estabelecimento prevalecerá (desde que registado no
serviço competente da propriedade industrial); quando se trate de bens corpóreos, a lei francesa recusa-lhe
o direito de sequela (sendo a posição do credor tutelada através da criminalização da conduta do
constituinte da garantia), permitindo-lhe apenas, em caso de penhora desses bens por parte de outro
credor, requerer a alienação do próprio estabelecimento; finalmente, quando haja rescisão do contrato de
arrendamento do imóvel no qual o estabelecimento se situe, o Autor admite que o credor se possa
defender alegando que tal circunstância dissimula uma verdadeira alienação do estabelecimento (para,
desse modo, poder exercer o seu direito de sequela). Ainda no que respeita ao estabelecimento, o Autor
destaca ainda a possibilidade de deslocalização do mesmo, pelo que o credor, nessa eventualidade, deverá
transferir o registo da garantia para o novo local e, depois disso, poderá exercer o seu direito de sequela
(mesmo antes dessa transferência, o Autor admite a prevalência do direito do credor sobre os direitos de
terceiros, quando o credor não tenha tido conhecimento da deslocalização do estabelecimento) -
naturalmente que em caso de transferência para um país estrangeiro, as soluções dependerão do disposto
nas normas de direito internacional privado e nas convenções internacionais sobre a matéria.
3092
Com efeito e conforme realça Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 161 e segs., esta regra restringe em
termos decisivos o direito de sequela do credor, pelo que a sua protecção será assegurada através da
imposição ao devedor de um dever de conservar o bem (dever esta cuja inobservância poderá até conduzir
à imposição de sanções penais), embora esta dupla protecção pressuponha que a garantia recaia sobre um
bem certo e determinado (ou seja, sendo necessária “une description détaillé et le fait que le bien
envisagé est celui qui se trouve entre les mains du débiteur”). Em face do direito vigente à época, o Autor
enquadra nesta categoria o warrant agrícola (mas apenas desde que incida sobre bens certos e
determinados, determinado a lei a impossibilidade de o devedor efectuar a tradição dos bens onerados
sem prévia liquidação do crédito do portador do warrant), o warrant hoteleiro (destacando a
impossibilidade, que decorre do regime legal, de substituição dos bens onerados, bem como de tradição
dos mesmos) e o nantissement de ferramentas e material de uso profissional (a propósito do qual se
encontram previstas sanções de natureza penal para o caso de alienação do bem por parte do constituinte
da garantia e, inclusive, um direito de sequela condicionado à aposição nos bens onerados de um símbolo
material: todavia e quanto a este último aspecto, o Autor reconhece tratar-se de um mecanismo demasiado
frágil – dada a possibilidade de o devedor retirar a marca - que não justifica a integração desta garantia no
âmbito daquelas que conferem um direito de sequela pleno).
3093
Sempre na esteira de Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 201 e segs., o direito de sequela encontra-se
paralisado pela presunção de boa fé do terceiro possuidor, entendendo o Autor que a publicidade
decorrente destas garantias não é suficiente para afastar tal presunção (excepto, por determinação legal,
no caso de aposição de uma placa sobre os bens objecto de um nantissement sobre o material ou
equipamento profissional): neste contexto, a garantia será unicamente oponível a terceiros de má fé, o que
a torna ilusória, “non pas tant à cause de la règle “En fait de meubles, possession vaut titre”, que de la
présomption de bonne foi dont bénéficie tout possesseur”.
3094
Segundo Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 181 e segs, apesar de a publicidade para este tipo de garantias
não possessórias, organizada segundo o critério pessoal, não abarcar todas as transferências de
propriedade e de outros direitos, será, porém, “suffisante pour faire connaître, et donc rendre opposable,
l’existence de la sûreté auz tiers qui sont en relations directes avec le constituant, c’est-à-dire
essentiellement ses créanciers” (isto é, “Certains peuvent connaître ces charges parce qu’ils sont
forcément en relation directe avec le constituant du droit au nom duquel est réalisée la publicité; ce sont,
d’une façon générale, tous ses créanciers”). Por força desta preferência, o direito do credor garantido
prevalecerá sobre o dos credores quirografários (entendendo o Autor que estes deverão notificar aquele de
todas as penhoras realizadas sobre o bem previamente onerado), sendo mais difícil de dirimir o conflito
com o senhorio do imóvel onde o devedor exerce a sua actividade (porquanto nalguns casos a lei
privilegia o credor garantido, enquanto noutros, partindo da ideia que o senhorio dispõe de um penhor
tácito sobre o recheio do imóvel, concede preferência a esta último, impondo ao credor o dever de o
avisar da constituição da garantia e permitindo a oposição em caso de existência de rendas não pagas: em
907
compensatórias em caso de perda ou deterioração do bem ou, noutro plano, de
protecção em caso de deslocação do bem3095), conjuntamente com a imposição ao
devedor de obrigações específicas atinentes ao bem onerado3096 (cujo incumprimento
pode originar a perda do benefício do prazo ou até a aplicação de sanções penais).3097
caso de oposição, a garantia poderá não ser constituída ou, quando muito, cederá perante o direito de
senhorio), com os credores titulares de uma hipoteca ou privilégio imobiliário sobre o mesmo bem
(designadamente quando o bem se encontre ao serviço de um bem imóvel, assim constituindo um imóvel
por destinação. À partida, este conflito deverá ser solucionado em detrimento dos credores hipotecário ou
privilegiado – “Parce que le bien d’équipement est frappé du nantissement en même temps qu’il est
immobilisé par son entrée dans l’immeuble de l’acheteur-débiteur – sinon avant”: todavia, este bem pode
vir substituir um outro integrado na órbita da hipoteca ou do privilégio, pelo que a lei impõe ao credor
com garantia mobiliária o dever de os notificar do surgimento do seu direito e, caso não o faça, permite
que aqueles credores possam invocar o seu direito sobre os bens entretanto transformados – pelo
contrário, ocorrendo a notificação, estes credores poderão exigir o cumprimento imediato da obrigação,
invocando a diminuição da garantia. Outra hipótese, mais simples, de resolver este conflito será
recorrendo ao critério da prioridade da inscrição de qualquer das garantias em disputa, eventualmente
acrescido da necessidade de o constituinte declarar, aquando da constituição da garantia mais recente, a
prévia existência de um ónus sobre o mesmos bem) e com outras garantias mobiliárias não possessórias
(em caso de multiplicidade de diversas garantias da mesma índole – v.g. warrants - sobre o mesmo bem,
prevalecerá o critério da prioridade temporal da inscrição; tratando-se de conflito entre duas garantias
diversas – v.g. uma sobre o estabelecimento comercial e outra sobre o equipamento – esta última
prevalecerá se já tivesse sido constituída na data do surgimento da segunda e, mesmo na hipótese inversa,
a solução será a mesma, desde que o credor com garantia sobre os bens de equipamento notifique o credor
com garantia sobre o estabelecimento da constituição da garantia: esta última solução é criticada pelo
Autor por paralisar a sub-rogação da garantia relativamente aos bens que integram o estabelecimento).
3095
Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 231 e segs., entende que, em tese, esta transferência de local deverá ser
previamente notificada ao credor, designadamente para que este possa, se for caso disso, transferir, sem
efeitos novatórios, a inscrição da garantia para o competente registo existente no novo local de situação
do bem, concedendo-se para tal um período de tempo não muito alargado (ou seja, o conflito entre os
interesses do credor garantido na manutenção da consistência do seu direito e, por outro lado, dos
terceiros a que não lhes sejam opostas garantias das quais não pudesse ter tido conhecimento, deverá ser
solucionado, em princípio, em benefício do primeiro).
3096
O conteúdo normal desta obrigação, inerente a qualquer possuidor, assume duas componentes, uma
positiva (assegurar a consistência material do objecto) e outra negativa (não transmitir o mesmo bem a
terceiros que pudessem desconhecer outros direitos pré-existentes sobre o mesmo bem, assim permitindo
ao credor a apreensão do bem empenhado no momento do incumprimento pois, tendo conta a limitação
ao direito de sequela, o credor não poderá alienar o quid onerado se este não se encontrar em poder do
devedor: com fundamento neste dever, o devedor não poderá alienar o bem a terceiro, nem tão pouco
entregá-lo a um terceiro, uma vez que a regra da posse de boa fé privilegiará, normalmente, este último no
confronto com o credor garantido). Todavia, Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 241 e segs., salienta que este
dever de conservação que impende sobre o devedor nas garantias não possessórias não é totalmente
equivalente ao que recai sobre o credor pignoratício no penhor tradicional, pois no primeiro caso a perda
ou deterioração do bem não causa necessariamente um prejuízo ao credor, porquanto a garantia deste
recai sobre o valor da coisa e não tanto sobre a coisa em si (pelo que tal prejuízo não existirá se a
deterioração “n’atteint pas la valeur ou tout au moins la portion de valeur sur laquelle est assis le droit
du créancier”). Como bem se compreende, esta indisponibilidade do bem onerado pode originar grandes
prejuízos para o devedor, pelo que, por vezes, a legislação permite que este cumpra antecipadamente a
obrigação garantida e, desse modo, recupere a disponibilidade dos seus objectos (noutros casos, permite-
se a alienação, embora se limite a tradição do bem para o adquirente à condição de prévio reembolso do
credor garantido).
3097
Segundo Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 251 e segs., o direito civil oferece como principal sanção para
o incumprimento das obrigações do devedor a perda do benefício do prazo (apesar de reconhecer a
interesse restrito que a mesma apresenta, uma vez que “Il ne vise guère que l’hypothèse le créancier
apprend le détournement, alors qu’il n’est encore que partiellement réalisé. En agissant avec célérité, il
peut, grâce à la décheance du terme, appréhender ce qui reste de l’assiete de son gage entre les mains du
débiteur. Il y a là un concurs de circonstances fort rares”), sem prejuízo de as partes poderem
estabelecer, ao abrigo da liberdade contratual, formas de controlo da actividade do devedor por parte de
um terceiro ou do próprio credor (as quais, porém, enfrentarão normalmente a oposição do controlado).
908
É a respeito destas garantias que a discussão acerca da respectiva natureza
pignoratícia ou hipotecária se torna mais acesa, impondo-se esta última qualificação
para aqueles que considerem o desapossamento do devedor (ou a falta dele) como
elemento diferenciador das duas figuras,3098 mesmo que, por vezes, a lei opte pela
primeira alternativa através do recurso a uma ficção possessória.3099
Finalmente, casos há em que o direito real assumiria carácter meramente
condicional, nomeadamente quando a garantia recaia sobre uma certa quantidade de
bens fungíveis ou não concretamente identificados3100 (permitindo-se, normalmente,
Em face desta insuficiência, não admira o recurso ao direito penal para sancionar a conduta do devedor,
incorrendo este no crime de abuso de confiança (em caso de subtracção ou destruição do bem onerado em
prejuízo do credor garantido) que o credor depositou no devedor, ao confiar-lhe a manutenção da posse
do objecto dado em garantia.
3098
É este o entendimento de Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 211 e segs., concluindo que “la possession
marque une distintion très nette entre le gage et les sûretés que l’on peut constituer sans qu’il soit
nécessaire de la déplacer. La dépossession est indéniablement de l’essence du gage. La preuve la plus
éclatente nous est fournie par l’obligation dans laquelle on s’est pour créer des gages sans dépossession,
de recourir à une fiction de possession dont bénéficie le gagiste“.
3099
Todavia, Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 125 e segs., assegura que tal ficção não logra a manutenção
destas garantias no arco do penhor, porquanto não desempenha a principal função atribuída ao
desapossamento efectivo – retirar, para protecção do credor, o bem da disposição do credor – pelo que
remata afirmando que “La fiction est par conséquent impuissante à combler ce fosse profond qui separe
les sûretés nécessitent le transfert de la possession de celles qui ne le nécessitent pas. Il faut donc
préciser que c’est la dépossession effective qui est la caractéristique du gage” (contudo, o Autor não
deixa de reconhecer que a paralisação do direito de sequela, em matéria mobiliária, resultante da regra da
posse vale título, acaba por originar uma diferença face ao regime das hipotecas imobiliárias, mas
assevera que “ce n’est pas le signe d’une nature juridique différente, mais simplement la conséquence des
règles divergentes auxquelles sont soumis, du moins d’une façon générale, la propriété et les droits réels
immobiliers d’une part, et la propriété et les droits réels mobiliers d’autre part”). Todavia, o próprio
legislador é responsável pelas dúvidas quanto à classificação jurídica de certas garantias, induzindo até à
sua qualificação como penhores (ou até, mais raramente, afirmando expressamente a sua natureza
pignoratícia), como sucede com os warrants (ao consagrarem uma espécie de traditio brevi manu dos
bens onerados, de forma que o proprietário passará a detê-los por conta do credor garantido a título de
depositário) ou com os “nantessiments” do estabelecimento comercial e do material e equipamento
profissional: simplesmente, replica o Autor, a lei não consegue introduzir uma integral coincidência entre
estas garantias e o penhor, nomeadamente no que atine à resolução do conflito entre algumas delas que
recaiam sobre bens imóveis por destinação e as hipotecas (com base no critério da prioridade temporal da
inscrição de cada uma delas), o que, na óptica do Autor, constitui flagrante exemplo da natureza
hipotecária destas garantias. Perante esta incerteza legislativa, também a jurisprudência se mostra
oscilante, sendo a natureza pignoratícia sustentada com base na vontade do legislador (isto é, no caso do
warrant, “conférer au porteur une possession equivalente à la possession réelle, qu’en conséquence le
porteur de bonne foi est (…) fondé a opposer son tire à l’acquéreur qui ne peut exciper une mise en
possession antérieure”), enquanto o carácter hipotecário se funda na necessidade de assegurar ao credor o
direito de se pagar pelo produto da venda do bem onerado (uma vez que, estando perante um penhor e em
caso de disposição do bem onerado por parte do empenhante, o credor não se poderia pagar pelo produto
das respectiva alienação executiva, atendendo à mais que provável ausência de sequela).
3100
Por força do princípio da especialidade, o direito real deverá incidir sobre uma coisa certa,
determinada e identificada, pelo que “Ce n’est donc pas le contrat constitutif de la sûreté qui fait naître le
droit réel, mais bien cette opération par laquelle le créancier obtient que l’object de son droit soit fixe et
distingué des autres”, ou seja, através de uma operação de entrega, medida, pesagem ou separação de
outros de idêntica natureza: nesta conformidade, o direito real encontra-se sujeito à condição da
especificação dos bens abarcados pela garantia, a qual produz efeitos retroactivos à data da celebração do
contrato, ficção esta benéfica para o credor e não prejudicial para os terceiros na medida em que o acto
constitutivo seja objecto de publicidade adequada, maxime através de inscrição num registo (Michel
Cabrillac, ob. cit., pág. 261 e segs.). Enquadram-se nesta categoria os warrants agrícolas sobre bens
fungíveis (mais concretamente aqueles em que o quid onerado é depositado em cooperativas ou armazéns
gerais e misturadas com outras da mesma natureza), petrolífero (que recai sobre uma quantidade de bens
determinados unicamente com base no respectivo género, admitindo-se que o devedor possa deles dispor,
desde que mantenha uma determinada quantidade daqueles bens: se não o fizer, o credor pode exigir a
909
uma substituição dos concretos bens inicialmente onerados por outros da mesma
espécie).
Também neste domínio, a natureza condicional do direito real até à
especificação do quid onerado3101 (conferindo, não obstante, ao seu titular um direito de
preferência,3102 mas não de sequela),3103 implica a associação de uma obrigação pessoal
do devedor de manter constante a quantidade de bens dada em garantia,3104 obrigação
essa cujo incumprimento gera diversas consequências para o infractor.3105
reposição da quantidade estipulada ou o cumprimento imediato da obrigação; por outro lado, quando o
valor dos stocks onerados sofrer uma desvalorização de, pelo menos, 10% o credor pode exigir um
reforço da garantia ou o pagamento proporcional à diminuição do valor), de stocks de guerra (cujo
objecto é igualmente fungível – sem necessidade sequer de separação dos demais bens do devedor - e
cujo regime legal consente igualmente a disposição do quid onerado por parte do devedor, com a
condição de substituir imediatamente os bens alienados) e industrial (com a nuance de não consentir
sequer a tradição do bem, em caso de alienação por parte do devedor, a terceiro, sem prévio pagamento
do credor garantido).
3101
Como salienta Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 295 e segs., a especificação (acto através do qual se
isola uma coisa das demais semelhantes detidas pelo devedor, atribuindo-lhe a qualidade de coisa certa e
determinada), produzir-se-á no momento da execução da garantia e só nessa data o credor disporá de um
verdadeiro direito real (embora o mesmo retroaja ao momento da constituição da garantia, ou seja, através
de uma ficção “tout se passe comme si le droit réel sur les marchandises déterminées, non plus in genere,
mais in specie, avait été transféré au moment de la conclusion du contrat, de sorte que son opposabilité
remonte au jour où le warrant a été vivifié par la publicite. Le privilège du créancier (…) prend rang, en
effet, à la date de la transcription”).
3102
Segundo Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 315 e segs., este direito de preferência – e, em particular, o
seu efeito retroactivo à data da constituição da garantia – enfrentam dificuldades do ponto de vista da sua
justificação dogmática, contestando o Autor que se trate de uma hipótese de sub-rogação real (ou, como
alguns preferem designar, de revolving-warrant), embora reconheça ser esta a posição seguida pela
jurisprudência dominante (para a qual o direito de preferência “portant sur certains biens remonte à une
date (celle de la mise en gage initiale), qui est antérieure au transfert du droit réel (lequel n’est opere
qu’au moment où le débiteur a remis la marchandise de remplacement)”). Para além do direito de
preferência, a natureza real do direito do credor assegura-lhe ainda a faculdade de se satisfazer sobre as
quantias pagas a título de indemnização em caso de perda ou deterioração do bem onerado e em caso de
transferência do mesmo (apesar de, nesta última hipótese, o Autor alertar para o facto de a publicidade da
garantia se dever realizar sob uma base pessoal – e não real – pois, caso contrário, bastaria ao credor
transferir os bens do local onde se encontrassem inscritos para outro, uma vez que o primeiro credor, por
força da natureza fungível do quid onerado, não teria possibilidade de demonstrar que os bens dados em
garantia ao segundo credor seriam os mesmos que compunham a sua própria garantia).
3103
Por duas razões distintas: em primeiro lugar, porque quando surge o direito real (no momento da
execução da garantia) o direito de sequela já é desnecessário (“Le droit réel n’est transfere au créancier
que s’il peut saisir ou faire mattre à part les choses warrantés, ce qui suppose qu’elles sont encore entre
les mains du débiteur. En revanche, lorsque les marchandises ne sont plus en possession de ce dernier, le
créancier ne pourra plus faire naître le droit réel qui lui aurait permis de revendiquer. Le détournement
par le débiteur, paralysant le transfert du droit réel, supprime par là même toute possibilité de
revendication”) e, em segundo, porque a reivindicação em momento anterior à especificação é
impossível, por o credor não poder assegurar que “la chose qu’il entend suivre est bien celle sur laquelle
porte sa garantie. Avant la spécialisation, le créancier n’a de droit que sur une quantité abstraite qu’il ne
saurait revendiquer” – Michel Cabrillac, ob. cit., págs. 328 a 331.
3104
Mais concretamente, de possuir uma determinada quantidade de bens no momento da constituição da
garantia e de a manter enquanto não for extinta a obrigação garantida. Desta obrigação de conservação
decorre, na óptica de Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 340 e segs., e tendo em conta a natureza fungível dos
bens, a faculdade de substituição dos bens onerados, a qual, segundo o Autor, decorre directamente da lei,
uma vez que “du moment que le warrant n’intéresse pas telle ou telle marchandise précise, on ne peut
priver le débiteur de cette faculté de remplacement, laquelle apparaît comme une prérrogative d’origine
légale, dont le bénéfice lui appartient automatiquement” e, portanto, sem necessidade de cláusula
expressa nesse sentido. Naturalmente que o tradicional dever de conservação dos bens assume aqui
contornos particulares, sendo essa obrigação violada pelo simples facto de as quantidades acordadas não
serem mantidas, ainda que tal resultado não seja da responsabilidade do devedor, embora por vezes a lei
lhe conceda um prazo para repor o valor em falta (pelo contrário, noutros casos este dever é ainda mais
910
Ainda assim, a integração destas garantias no domínio das hipotecas pode ser
defensável,3106 sobretudo com base na identificação do objecto da garantia com o valor
do bem onerado (e não tanto o bem em si mesmo considerado).3107
Em nosso entender e procurando tomar posição, a solução a dar a esta
problemática da qualificação das garantias mobiliárias, em especial das não
possessórias, pressupõe o esclarecimento prévio de outras duas interrogações, uma que
se prende com o critério de distinção entre o penhor e a hipoteca e outra, paralela, da
inclusão dos penhores em que o desapossamento do credor se opere de modo alternativo
à entrega material (v.g., tradição ficta, simbólica, brevi manu ou constituto possessório),
pesado, obrigando-se o devedor a manter, não apenas uma dada quantidade de bens, mas mesmo um valor
dos mesmos previamente acordado).
3105
Essas sanções encontram-se consagradas no direito civil, como o pagamento de indemnização pelos
prejuízos causados, a perda do benefício do prazo (logo que se constate que a quantidade de bens
existentes num dado momento é inferior ao estipulado) ou a possibilidade de exercer um controlo sobre
os bens onerados (particularmente importante porque, tendo em conta a natureza fungível destes, o
devedor tem toda a legitimidade para os alienar e entregar a terceiros, cabendo ao credor atestar a
manutenção do nível convencionado) e, noutro plano, também ao nível penal (punindo com a pena
prevista para o crime de abuso de confiança a conduta do devedor que disponha ou danifique a garantia
do credor) e mesmo do direito administrativo (estabelecendo formas de controlo sobre os stocks dados em
garantia, deste modo reforçando os poderes de supervisão que o próprio credor pode exercer). Não
obstante, o Autor sugere a introdução de melhorias, como a transferência do direito de preferência do
credor para o produto da venda efectuada pelo devedor e impondo que o pagamento fosse efectuado no
domicílio do banqueiro domiciliário do warrant (deste modo tornando os actos de descaminho dos bens
onerados mais difíceis, pois passariam a necessitar da cumplicidade de um adquirente que esteja disposto
a efectuar um pagamento inválido) ou a instituição de uma forma de desapossamento aligeirado (seja
através da remessa das chaves dos local onde se encontram depositados os bens onerados, seja através da
celebração de um contrato de locação, nos termos do qual o credor ou um terceiro se tornariam
arrendatários daqueles mesmos locais, sendo este contrato acompanhado da colocação de uma
publicidade material nos mesmos locais destinada a advertir os terceiros).
3106
É a posição de Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 302 e segs., alegando que o facto de o direito real se
encontrar sujeito a uma condição em nada afecta a natureza do direito (e, por outro lado, que o critério de
distinção entre penhor e hipoteca assenta na presença ou ausência de desapossamento do constituinte, de
modo que “le droit réel n’apparaît qu’avec la spécialisation provoqué par une procédure de réalisation,
alors que son opposabilité rétroagit jusqu’au jour de l’inscription (…). Comment concilier ce mécanisme
avec celui du gage classique, puisque le privilège du créancier gagiste ne naît pas et ne demeure que
dans la mesure où ce dernier entre et demeure en possession? (…) Considérer le créancier comme
possesseur dès la formation du warrant (…) nous paraît tout à fait impossible), sendo a oponibilidade da
garantia assegurada pelo carácter imaterial (e não possessório, como no penhor) da afectação hipotecária
e da respectiva publicidade (o Autor recusa ainda que a interdição de disposição – e até, em caso de
alienação, de entrega aos terceiros adquirentes – dos bens onerados aproxime estas garantias do penhor –
garantia na qual tal obrigação é comum – e as distancie da hipoteca, onde tal proibição não vigora: ora,
“cette interdition est extérieure au droit réel et constitue le terme principal de l’obligation personelle qui
lui est adjointe (…). C’est donc une protection supplémentaire ajoutée à l’affectation réele et qui
s’explique, non par la nature de cette affectation, mais par celle de l’object affecté qui, selon qu’il est
immobilier ou mobilier, se prête plus ou moins à l’exercise d’un droit de suite”).
3107
Segundo Michel Cabrillac, ob. cit., pág. 306 e segs., “Le droit de préference s’exerce donc sur un
élément du patrimoine du débiteur qui, lors de la formation du contrat, n’a pas été déterminé dans son
existence concrète mais en fonction d’une grandeur donné. Ce n’est pas tant sur un bien tangible que sur
une valeur quelque peu désincarnée que le créancier se reserve un privilège. Dans une certaine mesure,
l’affectation en valeur se substitue à l’affectation en nature” (conforme se comprova pelo facto de o
legislador determinar a obrigação de manutenção do valor da garantia acima de um determinado valor e
até de autorizar a substituição dos bens originariamente empenhados por outros da mesma espécie),
embora o Autor alerte que esta classificação do valor enquanto objecto da garantia não tem significado
técnico “impuissante à definir la nature juridique d’une institution (…) notion de gage, qui est unique, et
non deux notions, celle d’un gage en nature et celle d’un gage en valeur. Dire d’une sûreté qu’elle est un
gage en valeur, c’est peut-être la décrire, mais ce n’est pas la classer dans une catégorie préexistante”.
911
no âmbito do penhor clássico ou com desapossamento (o que, por sua vez, pressupõe a
enumeração das funções prosseguidas por aquele desapossamento).
Começando pelo critério de separação entre o penhor e a hipoteca, este assentou
tradicionalmente e durante muito tempo, na natureza mobiliária ou imobiliária,
respectivamente, do respectivo objecto.3108
Porém, este critério foi-se revelando paulatinamente insuficiente,3109 conduzindo
mesmo à sua superação, porquanto os ordenamentos jurídicos foram admitindo a
susceptibilidade de as coisas móveis equiparáveis às imóveis (ou seja, as coisas móveis
sujeitas a registo) serem hipotecadas3110 e, por outro lado, nalguns ordenamentos
surgiram penhores sobre bens imóveis por acessão física ou intelectual.3111
Outro possível critério de distinção entre o penhor e a hipoteca reside, já não na
natureza do bem onerado, na modalidade de constituição da garantia, mais
concretamente na necessidade de desapossamento do empenhante e de empossamento
do credor ou de terceiro (existente no primeiro, ausente no segundo).
Este critério radica, assim, no carácter real quoad constitutionem do penhor
(surgindo o empossamento condição sine qua non do nascimento da garantia), por
contraposição à natureza não possessória da hipoteca, garantia para cuja constituição
seria forçosa (e bastaria) a inscrição no registo.3112
Todavia, o surgimento de inúmeros penhores sem desapossamento do devedor
(rectius, sem entrega material do bem) colocou em dúvida a pertinência deste outro
3108
Segundo Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 236 e segs., tal distinção foi cristalizada com o Código de
Napoleão (e em todas as codificações neste inspiradas), embora nesse mesmo diploma se acrescentasse
que o outro traço distintivo entre as duas garantias residia no diverso modo de constituição de cada uma
delas (de modo que o direito de sequela se encontra condicionado à obtenção e manutenção da posse do
bem por parte do credor – no caso do penhor – e à inscrição no registo, tratando-se da hipoteca). Em
termos concordantes, Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 90 e segs., salientando que a superação
dessa dicotomia, motivada pelos inconvenientes do desapossamento e pela possibilidade de identificação
registal de alguns móveis, conduziu ao aparecimento de hipotecas mobiliárias e de penhores sem
desapossamento.
3109
Vide, por todos, Ismael Acevedo y Criado, ob. cit., pág. 19, assegurando que “El carácter mobiliario
que a la prenda se atribuía por la doctrina clássica, no puede sostenerse en la actualidad, por poder
quedar sujetos a la misma bienes de distinta naturaleza”, sobretudo a partir da consagração legal de
hipotecas mobiliárias.
3110
Acerca desta evolução, vide Menéres de Campos, ob. cit., pág. 25, considerando que, em face deste
percurso, ao penhor cabe apenas um papel residual, de aplicação restrita aos bens não hipotecáveis.
3111
Sílvio Rodrigues, ob. cit., pág. 352, aponta como exemplos, no direito brasileiro, o penhor rural (que
o Autor considera mais próximo da hipoteca que do penhor, em razão da ausência de desapossamento e
da natureza imóvel por destinação do quid onerado) e o penhor industrial. Em termos análogos,
Washington de Barros Monteiro, ob. cit., págs. 366 e 367, propende para a qualificação do penhor rural
como uma verdadeira hipoteca, não só porque a garantia prescinde do desapossamento do seu
constituinte, mas também em razão da natureza imobiliária (enquanto dependentes do imóvel em cuja
dependência se encontram – cfr. art.º 79.º do CCB) dos bens sobre os quais recai. Desvaloriza esta
questão Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., págs. 347 e 348, rematando que as objecções relativas ao
desvirtuar da garantia pignoratícia – por abrangerem imóveis e/ou não implicarem o desapossamento do
devedor – devem ser suplantadas em nome da satisfação das necessidades do comércio jurídico
(especialmente no caso do penhor agrícola, em que o abrir mão dos instrumentos de produção – muitas
vezes os únicos bens de valor que o agricultor possui – significaria a impossibilidade de continuação da
sua actividade produtiva).
3112
Adopta este critério Stéphane Piedelièvre, ob. cit., pág. 202, salientando que o desapossamento é da
essência do penhor, na medida em que este é um contrato real, pelo que as garantias que prescindam deste
mecanismo deverão ser qualificadas como hipotecas (a tal não se opondo a tradicional oposição às
hipotecas mobiliárias, nem tão pouco a regra da posse vale título, a partir do momento em que seja
possível instituir um verdadeiro sistema publicitário que consinta informar terceiros da existência destas
garantias).
912
critério,3113 sendo disso exemplo as garantias mobiliárias constituídas por meio de
inscrição num registo (como o penhor de valores mobiliários escriturais).3114
De facto, perante o advento de penhores sem desapossamento gerou-se um
dilema: ou admitir que o penhor tem sempre como objecto um bem móvel (e a hipoteca
um imóvel), sendo qualificáveis como tal todas as garantias mobiliárias, mesmo as que
prescindam do desapossamento do constituinte; ou, em alternativa, constatar que o
penhor impõe sempre o desapossamento do constituinte e, por isso, concluir que as
garantias que incidam sobre bens móveis e não imponham aquele desapossamento serão
classificáveis como hipotecas (mobiliárias).3115
3113
Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág. 237 e segs., salienta como, no Século XIX, “los autores centran
principalmente la distinción entre la prenda e la hipoteca, en la entrega o no de le possessión al
acreedor. En cambio, aceptan que indistintamente una y otra puedan recaer en muebles o inmuebles, si
bien se acentúa la preferencia por la hipoteca para gravar éstos y por la prenda para gravar aquéllos”.
Esta distinção fundada na natureza móvel ou imóvel do objecto onerado apenas obteve consagração legal
no CCE (tendo esta mantido a diferença relativa ao modo de constituição de cada uma das garantias),
posição essa criticada pelo Autor, qualificando-a como “fruto de una visión limitada a un determinado
momento histórico”, considerando um conceito vazio fazer repousar a diferença entre as garantias na
natureza móvel ou imóvel do bem onerado, contrapondo que “La cualidad inmobiliaria del objeto es
irrelevante para la naturaleza del derecho constituido”, como se comprova pelo posterior surgimento de
hipotecas sobre bens móveis (navios e aeronaves) que atestam a possibilidade de criação de uma
verdadeira publicidade mobiliária. De acordo com De la Santa García, ob. cit., pág. 69 e segs., a
constatação da necessidade de manutenção de determinados bens em poder do constituinte – maxime os
que sejam utilizados como instrumentos de trabalho – motivou a criação de penhores sem
desapossamento, os quais, não obstante, não deixam de ser um direito real de garantia análogo ao seu
congénere com desapossamento (baseando esta conclusão no facto de o art.º 59.º da LHMPSD determinar
que o devedor possui o bem na qualidade de depositário, “lo cual equivale a decir que el acreedor
también posee, por lo que podríamos pensar que la denominación “prenda sin desplazamiento
posesorio” puede resultar un poco engañosa, quizás hubiera resultado más corretcto, haberla
denominado “prenda sin desplazamiento de la posesión inmediata””, concluindo que “es posible hablar
de derecho real de prenda sin desplazamiento, la cual es oponible a terceros de mala fe, e incluso de
buena fe, si se mantiene el status loci, es decir, que la cosa se encuentre localizada en el lugar donde se
entiende depositada, porque esta situación permite que de despliegue plenamente la eficacia posesoria,
pudiendo el acreedor pignoraticio ejercitar todas las posibilidades que el Código Civil reconoce a todos
los poseedores”), embora subsistam diferença assinaláveis face a este (traduzidas, não apenas na ausência
de desapossamento do constituinte ou com elas relacionadas – como sucede com o direito do credor
inspeccionar os bens onerados, com a transferência do dever de conservação para o devedor, com a
responsabilidade civil e criminal deste enquanto depositário, nos termos dos art.ºs 57.º e 59.º da LHMPSD
-, mas também a possibilidade de o credor, em caso de mau uso por parte do devedor, exigir o pagamento
antecipado da quantia garantida ou a venda imediata do bem onerado ou o direito de preferência do credor
em caso de disposição do bem através de dação em pagamento – art.ºs 62.º e 65º da LHMPSD). Entre
nós, Meneres Campos, ob. cit., pág. 25, destaca como “o requisito da entrega da coisa adaptou-se,
também, às novas circunstâncias. De facto, já não é a entrega material da coisa que caracteriza o penhor
(…) a lei admite a entrega simbólica da coisa, também designada por desapossamento, traduzida na
simples entrega de um documento”.
3114
A este respeito, Diaz Moreno, ob. cit., págs. 393 e 394, embora discuta a pertinência actual da
categoria dos contratos reais quanto à constituição, ao considerar o registo como um sucedâneo da entrega
– no sentido em que ambas procuram lograr a indisponibilidade do bem onerado – acaba por integrar este
penhor nessa mesma categoria, afirmando que um penhor de valores escriturais não registado constitui
um mero contrato-promessa, cuja execução consistirá precisamente na inscrição da garantia, “antes de la
cual no surgiría derecho o afección alguna sobre los valores; el único efecto del contrato consensual
consistiría (…) en el nascimiento, para quién prometió constituir la prenda, de hacer inscribir la
garantía sobre los valores cuya afección se hubiera pactado”.
3115
Noticia a existência deste dilema Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 498 e 499, retomando-o Lisanti-
Kalczynsky, ob. cit., pág. 292 e segs. (concluindo no sentido da qualificação das garantias mobiliárias
sem desapossamento como hipotecas mobiliárias). Esta última Autora, depois de reconhecer que o critério
tradicional de distinção assentava na natureza móvel ou imóvel do bem onerado, conclui ser a existência
ou ausência de desapossamento que, actualmente, permite apartar o penhor da hipoteca, concluindo, em
913
Um afloramento desta distinção pode encontrar-se configuração do penhor como
uma garantia que implica a perda de algumas das prerrogativas (ao menos das materiais,
uma vez que nenhuma destas garantias implica a perda da propriedade) respeitantes ao
bem onerado, conduzindo, em especial no que concerne aos bens incorpóreos, à sua
qualificação como penhores, uma vez que a sua constituição não implica a perda de
nenhuma prerrogativa material – designadamente o direito de uso - por parte do
constituinte.3116
A diversidade de efeitos destas duas garantia teria ainda outros corolários,
nomeadamente em sede de execução da garantia, na medida em que apenas o penhor
consentiria ao seu titular requerer a atribuição do bem em pagamento.
A distinção poderia assentar, ainda, na obrigatoriedade de inscrição do registo da
garantia hipotecária e na circunstância de a constituição de penhor dispensar tal
formalidade3117 ou, em termos aproximados, na diferença entre bens registáveis (e, por
isso, susceptíveis de hipoteca) e não registáveis (passíveis de ser empenhados), sendo
que apenas os bens móveis que reunissem determinadas condições poderiam integrar a
primeira categoria:3118 contudo, aí está a existência de penhores sujeitos a registo
demonstrar a falibilidade de mais este critério.3119
Finalmente, há quem faça repousar a distinção na atribuição ao credor
hipotecário de um direito de sequela pleno e sem restrições, enquanto o credor
pignoratício disporá unicamente da protecção decorrente da posse (aspecto este
conformidade, que as garantias não possessórias sobre bens móveis têm natureza hipotecária (mesmo
considerando a proibição, constante do Code Civil, de hipotecas mobiliárias, cujo fundamento reside no
papel preponderante atribuído à aparência e à posse no domínio dos bens móveis: ora, “A partir du
momento ù le bien meuble est soustraît à ce régime de principe pour être soumis à un régime de publicité
comparable a celui de la publicité foncière, apparence et possession n’ont plus leur place, et
corrélativement, l’exclusion de l’hypothèque mobilière n’est plus fondée”, mesmo quando se trate de
garantias sobre bens móveis incorpóreos, como o estabelecimento comercial, ou os direitos de
propriedade intelectual) – todavia, desse reconhecimento não retira a Autora a conclusão da necessidade
de recorrer ao regime da hipoteca para colmatar as eventuais lacunas do regime jurídico destas garantias,
importando, pelo contrário, “prendre en compte d’une part, la nature hypothécaire de la sûreté et d’autre
part, le caractère mobilier de son objet. Dès lors, parmi les règles du droit hypothécaire, seules celles
résultant de la nature hypothécaire de la sûreté et non du caractère immobilier de l’assiette pourront
s’appliquer. De la même manière, l’application des solutions de droit commun du gage doivent être
exclues si elles sont fondées sur la dépossession mais maintenues lorsqu’elles sont seulement inspirées
par la nature mobilière de l’objet du gage”.
3116
Neste sentido, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 308 e 309, apontando como exemplo
o caso do estabelecimento comercial, procurando explicar esta situação invocando o facto de este tipo de
bens se originar num monopólio de exploração, incompatível com a proibição de uso do bem empenhado
consagrada no regime do penhor.
3117
Neste sentido, Meneres Campos, ob. cit., pág. 25.
3118
Neste sentido, Vallet de Goystisolo, ob. cit., pág.244 e segs., um bem móvel apenas poderá ser
hipotecado se for perfeitamente identificável (de forma que possa ser permanentemente distinguida das
demais coisas do mesmo género ou, melhor ainda, esse mesmo género conste de um cadastro numerado
de cada um dos exemplares) e, ainda, que a imposição de um registo não prejudique desmesuradamente
os negócios jurídicos sobre tal bem (o que exclui deste âmbito os bens de menor valor): em face deste
critério, o Autor enumera como bens sobre os quais pode recair uma hipoteca mobiliária (dotada de
preferência e de sequela) o estabelecimento comercial, as máquinas ao serviço deste, os automóveis e
outros veículos a motor, as aeronaves, os navios e os direitos de propriedade industrial e intelectual.
3119
Nestes casos, a distinção não se pode ancorar no facto de, na hipoteca, o registo ter carácter
constitutivo (art.º 687.º), enquanto no penhor, mesmo quando excepcionalmente se encontre sujeito a
registo, a sua falta apenas condicionaria a eficácia da garantia perante terceiros. Com efeito, na medida
em que o registo do penhor assume uma natureza sucedânea e substitutiva da entrega do bem ao credor ou
a terceiro e esta possui, inegavelmente, natureza constitutiva (no sentido em que o direito real de penhor
não nasce sem tal entrega), o mesmo se deverá afirmar relativamente à inscrição no registo, não sem que
se reconheça a possibilidade de a lei especial dispor em sentido diverso.
914
particularmente notório nos ordenamentos em que vigore a regra da posse vale título,
cuja invocação paralisa a sequela relativamente aos bens móveis, pelo menos os
corpóreos)3120 ou, noutros termos, no confronto entre os poderes atribuídos pela posse
do bem ao credor pignoratício e pela inscrição ao credor hipotecário.3121
Com base neste critério e naqueles países em que a proibição de hipotecas sobre
bens móveis obteve consagração legal – e a consequente neutralização do direito de
sequela, em razão da regra da posse vale título, das garantias mobiliárias (reflectida no
adágio “meubles n’ont pas de suite par hipothèque”) – aquelas garantias tendem a ser
qualificadas como penhor (embora se reconheça, presentemente, que tais postulados se
justificaram na ausência de um sistema geral de publicidade das hipotecas mobiliárias,
carecendo de fundamento a partir do momento em que esta possa ser assegurada,
cessando, por arrastamento a razão de ser da interdição da figura:3122 não obstante, o
peso da tradição parece bastante arreigado na doutrina e jurisprudências tradicionais, as
quais persistem na integração destas garantias mobiliárias não possessórias no âmbito
do penhor).3123
3120
Neste sentido, Cabrillac, ob. cit., pág. 61 e segs., defende que “la possession n’est pas tellement
inhérente à la notion de gage qu’on ne puisse pas concevoir en son absence l’existence d’un véritable
gage” (embora reconhecendo que, normalmente, a ausência ou presença do elemento possessório
consente a distinção entre as duas garantias), concluindo que “Sûrerés sans dépossession, sûretés munies
du droit de suite, elles constituent indubitablement des hypothèques mobilières”.
3121
Nesta conformidade, Simler e Delebecque, Droit civil cit., págs. 601 a 604. Estes Autores, depois de
recusarem que o desapossamento seja da essência do penhor (contrapondo que “rien n’interdit de
considérer la dépossession comme un élément naturel du gage, sans qu’il soit essentiel. On peut voir la
dans la dépossession une simple mesure de publicité (…). Or, le législateur peut parfaitement aménager
autrement cette publicité, en organizant des systèmes d’inscription sur tel ou tel registre. C’est du reste
ce qui a été fait à l’occasion de la réforme des sûretés (…) la proteccion du créancier peut être renforcée
par des dispositions pénales incriminant les actes de disposition du débiteur”) e que seja uma heresia
falar de hipotecas sobre bens móveis (porquanto, apesar de o art.º 2397 proclamar que apeans os bens
móveis são susceptíveis de hipoteca, “Dès l’instant qu’un meuble a de la valeur et qu’il est possible de lui
donner un point d’attache fixe, il n’y a pas de motif pour qu’il ne puisse former l’object d’une
hypothèque” até porque “la notion même d’hypothèque n’est pas liée à la nature du bien sur lequel elle
porte. L’objet de l’hypothèque n’est pas un meuble ou un immeuble, c’est un droit sur la valeur d’un
bien. L’hypothèque ne se définit pas par à partir de son assiette, seules comptent les prérogatives qui sont
attribuées au créancier”), concluem que a questão se deve colocar, para as garantias mobiliárias sem
desapossamento, é a de saber se os poderes que ela confere ao credor são equivalentes aos decorrentes da
posse do credor pignoratício tradicional (sobretudo o direito de retenção que lhe permite opor-se à venda
do bem onerado e requerer a atribuição judicial do bem empenhado) ou antes se assemelham mais aos
outorgados ao credor hipotecário (essencialmente um direito de preferência e um direito de sequela não
limitado pela regra da posse vale título), embora o Autor alerte para a relatividade da distinção resultante
da introdução em França de garantias de índole fiduciária, não enquadráveis nem na hipoteca, nem no
penhor.
3122
Destaca este aspecto Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 460 e segs., apontando como
exemplos de sistemas de publicidade sobre bens móveis com sucesso o mortgage inglês (outorgando um
verdadeiro direito de sequela ao seu titular), outras garantias em que a mobilidade do objecto da garantia
é atenuada física ou juridicamente (como no caso dos navios e das aeronaves) ou que podem ser objecto
de uma localização fictícia (como as mercadorias em viagem ou dos automóveis relativamente ao local de
matrícula)
3123
Philippe Théry, ob. cit., págs. 301 e 302, dá conta deste panorama, alegando que a protecção do
credor pignoratício é posta em causa pela regra da posse vale título (que consente a qualquer terceiro
possuidor opor o seu direito ao do credor), mas não quando se trate de bens incorpóreos (não sujeitos à
aplicação daquela regra) ou a bens para os quais seja possível organizar uma verdadeira publicidade (pois,
desse modo, é afastada a boa fé de eventuais terceiros titulares de direitos sobre o mesmo), como sucede
com os aviões e navios, por vezes usando determinadas características dos bens (a carta verde dos
automóveis) ou utilizando uma mera publicidade pessoal (normalmente no tribunal da residência do
constituinte): quando não seja possível organizar tal publicidade, restará a imposição de sanções penais ao
constituinte que disponha dos bens onerados em prejuízo do credor. Em qualquer dos casos, o Autor
915
Em termos não significativamente diversos, alguns opinam que, comportando
todas as garantias não possessórias uma publicidade diversa do mero desapossamento
do constituinte, as mesmas poderão ser divididas consoante tal publicidade seja efectiva
e eficaz (conferindo, por isso, um direito de preferência e de sequela) ou, ao invés, seja
imperfeita (atribuindo apenas um direito de preferência, sendo a sequela substituída pela
interdição de venda do bem por parte do constituinte, penalmente sancionada).3124
Tendo em conta este panorama, não surpreende que alguns façam apelo a outros
critérios3125 ou a uma conjugação de alguns deles para explicar esta distinção,3126
enquanto outros vão ainda mais longe e relativizem a distinção entre penhor e hipoteca,
considerando-a como fruto de artificialismo histórico do legislador, actualmente sem
qualquer fundamento.3127
noticia que a tendência dominante aponta no sentido da qualificação destas garantias como penhores
(ainda que nem todos concordem ser essa uma consequência do carácter não essencial do desapossamento
para a constituição do penhor).
3124
Assim, Aynès e Crocq, Les sûretés 2004 cit., pág. 223 e segs..
3125
Operando, por exemplo, a distinção entre bens nómadas (susceptíveis de ocultação ou
desaparecimento e difíceis de identificar) e bens sedentários (com um ponto de referência fixo), sendo os
primeiros objecto de penhor com desapossamento e os segundos de hipoteca não possessória - relata a
existência de partidários desta distinção Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 499.
3126
Neste sentido, Simon Quincarlet, ob. cit., págs. 500 a 505, ancora a distinção nas condições de
existência (a tendencial necessidade de desapossamento no penhor, embora a impossibilidade de o
constituinte continuar a deter o bem não decorrer tanto da natureza do penhor, mas sobretudo da
necessidade de proteger terceiros e assegurar a consistência da garantia: por ser assim, quando tal for
observado – como sucede com o regime dos warrants - nada obsta à criação de penhores sem
desapossamento), no campo de aplicação (reservando a hipoteca para bens susceptíveis de perfeita
individualização e com uma localização fixa) e nos efeitos (a preferência – comum ao penhor e à
hipoteca, embora haja mais excepções no caso desta última garantia, especialmente por força dos
privilégios imobiliários - e a sequela – unicamente plena no que toca à hipoteca, mas limitada no penhor
por força da regra da posse vale título) de cada uma destas garantias. Do mesmo modo, Manuel
Albaladejo, Derecho Civil III cit., págs. 420 e 421, escrevendo que “para distinguir la hipoteca de la
prenda, hay que combinar los criterios de la clase del bien y de desplazamiento o no de la posesión, de
modo que hay hipoteca cuando ésta no se desplaza y se trata de inmueble (hipoteca inmobiliaria) o de
ciertas clases de mueble (vehículos, maquinaria industrial y otros que la ley fija) (hipoteca mobiliaria); y
hay prenda si la posesión se desplaza y el bien es mueble (prenda normal o con desplazamiento
posesorio), o cuando, aun no desplazándose la posesión (prenda sin desplazamiento), se trata de muebles
simplemente de otras ciertas clases (máquinas y otros identificables por características propias,
mercaderías y materias primas almacenadas, etc.), o, además, pertenecientes a ciertas personas (frutos,
animales, productos, aperos, correspondientes al titular de exploraciones agrícolas, forestales, o
pecuarias en que están englobadas)” (em termos praticamente iguais, Manuel Albaladejo, Derecho Civil
III cit., págs. 708 e 709).
3127
Assim se exprime Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 91 e segs., considerando que ambas as
garantias possuem inúmeras “zonas híbridas comunes” (apesar disso, o Autor não descarta a necessidade
de operar uma distinção entre elas, a qual se deve baseia num duplo critério assente, por um lado, no
objecto (que explica a maior rigidez tendencial das normas hipotecárias) e, por outro, na publicidade
(embora ressalvando não ser sequer obrigatório que a todas as garantias seja conferida publicidade). Em
termos parcialmente coincidentes, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 461 e segs., sustentam
que a controvérsia acerca da natureza hipotecária ou pignoratícia de algumas garantias mobiliárias
assenta, normalmente, em dois excessos: um, consiste em considerar todas as garantias sem
desapossamento como hipotecas (em nome da inevitabilidade do desapossamento no penhor); outro,
reside na desnecessidade de distinguir os diversos bens móveis entre si (quando, na opinião do Autor,
apenas os detentores de um certo valor e passíveis de fixação, real ou fictícia, serão hipotecáveis),
concluindo que “la qualification d’hypothèque pour des sûretés également considerées comme des gages
est généralement inutile, et parfois même nuisible. Dans plusiers cas, la jurisprudence l’a d’ailleurs
explicitement refusée” e atribuindo natureza hipotecária apenas às garantias assim apelidadas pelo próprio
legislador, ou seja, as que incidem sobre navios, embarcações e aeronaves (e, mesmo de lege ferenda,
realça como o direito de sequela pleno característico da hipoteca apenas poderá existir quando estejamos
perante móveis de fácil localização e passíveis de uma determinada fixação, real ou fictícia e, noutro
916
Traçado o panorama geral das várias posições, estamos agora em condições de
explanar qual a posição a que aderimos.
Antes de mais, cumpre salientar que a posição que ancora a distinção nos efeitos
diversos do penhor e da hipoteca (nomeadamente a presença da sequela nesta e a sua
ausência ou paralisação naquele; a possibilidade de o credor pignoratício requerer a
atribuição judicial do bem onerado, ao invés do que sucede com o credor hipotecário)
carece de apoio legal, não apenas em razão da não consagração da regra da posse vale
título (com a inerente atribuição de um direito de sequela pleno ao credor), mas também
em virtude da faculdade de a atribuição judicial do bem poder ser requerida igualmente
pelo credor hipotecário ou até por qualquer credor comum (art.º 875.º, n.º 1, do CPC):
quando muito, poder-se-á admitir que a especificidade do conteúdo do direito
pignoratício reside na possibilidade de realização extrajudicial do bem, nos termos do
cfr. art.º 675.º, ao invés do que sucede com a hipoteca.
Relativamente ao critério que atende unicamente ao objecto da garantia, a
consagração de garantias legalmente qualificadas como hipotecas incidindo
inequivocamente sobre bens móveis (v.g., navios e aeronaves), força-nos a descartá-lo.
Parece, deste modo, que a distinção entre as duas garantias reside, em termos
aproximados, no diverso modo de constituição de cada uma delas, isto é, a exigência de
desapossamento do devedor para o penhor e a inscrição do registo para a hipoteca.3128
Porém e esta é a pedra de toque, a adesão a esta perspectiva encontra-se
condicionada pela posição que se tome na acenada discussão acerca do carácter
essencial ou não desapossamento efectivo (ou tradição material) enquanto modo de
constituição do penhor.
Para quem entenda ser o desapossamento uma condição indispensável para o
nascimento do penhor, não poderão existir penhores sem desapossamento, pelo que uma
plano, que a hipoteca mobiliária não poderá ofuscar o penhor, porquanto este, ao invés daquela, confere
ao seu titular o direito de requerer a atribuição judicial do bem onerado - ob. cit., págs. 479 e 480). Mais
incisivos ainda se mostram Marty, Raynaud e Jestaz, ob. cit., pág. 292, para quem a querela que opõe os
partidários da qualificação das garantias mobiliárias sem desapossamento como hipotecas mobiliárias
(considerando o desapossamento como inerente à noção de penhor), aos que optam pela manutenção das
mesmas na órbita do penhor (entendendo, ao invés, que o desapossamento constitui uma simples
modalidade deste tipo de garantia), “présente un caractère largement académique. En vérité le législateur
a créé ces sûretés sans préocupation théorique et afin que des instruments de travail (…) puisse
constituer aussi des instruments de crédit” (todavia, o Autor inclina-se para a natureza pignoratícia, não
só pela terminologia utilizada pelo legislador, como também pelo facto de a regulamentação destas
garantias, salvo um ou outro aspecto, coincidir com a do penhor).
3128
Maiorca, ob. cit., pág. 44 e segs., embora assegure que os efeitos do desapossamento no penhor e do
registo na hipoteca são similares - consistindo na vinculação de um bem à satisfação preferencial de um
crédito, eliminando o risco de subtracção do bem -, advoga que o desapossamento do devedor realiza este
desiderato de modo mais evidente, não sendo necessário para os bens imóveis, uma vez que estes são
mais facilmente identificáveis e menos susceptíveis de eliminação ou deterioração: em conclusão, admite,
pelo menos teoricamente, “che un egual regime delle garanzie reali riguardi tutte le cose che sono in
commercio: cosi i fondi come i mobili”, apontando o desapossamento do devedor, ou melhor, o
empossamento do devedor o método preferível (com efeito, não se lhe afigura imperiosa a subtracção do
bem ao devedor, mas sim a existência de um controlo privado – ou, em alternativa, de órgãos públicos,
como sejam os encarregues do registo – exercitável precisamente através do empossamento do credor).
Em termos aproximados, Medina de Lemus, ob. cit., págs. 137 e 138, aludindo ao desapossamento
possessório para o penhor e ao registo para a hipoteca (embora salientando os inconvenientes deste
critério, uma vez que os trabalhadores não poderiam perder a posse dos seus instrumentos de trabalho
para os dar em garantia de financiamentos e, por outro lado, que alguns bens móveis, em razão da sua
perfeita identificabilidade, poderiam facilmente ser inscritos num registo, o que veio a suceder em
Espanha com a criação da hipoteca naval e, mais tarde, da hipoteca mobiliária e do penhor sem
desapossamento).
917
garantia constituída nestes termos não pode senão ser uma hipoteca mobiliária ou,
eventualmente, uma garantia atípica.
Já para aqueles que admitem mecanismos sucedâneos, face à entrega do bem ao
credor pignoratício (ou a terceiro ou à atribuição da composse), de constituição do
penhor, tais casos configurarão verdadeiros penhores (eventualmente anómalos, por
força dessa distorção face ao regime geral desta garantia), ao menos desde que se adopte
uma perspectiva funcional.3129
De acordo com esta posição, o traço definidor do penhor seria o desapossamento
do empenhante (traduzido na impossibilidade de dispor autonomamente do bem
onerado), independentemente do modo com este se processe, ou seja, quer se opere
mediante tradição material ou, pelo contrário, tradição ficta, simbólica ou por via de
constituto possessório (as quais são consideradas, no nosso ordenamento, como formas
idóneas de operar a tradição de uma coisa).
A nosso ver, a aceitação desta concepção tão ampla de desapossamento
pressupõe o desvendar de quais as verdadeiras funções atribuídas ao desapossamento
(ou à entrega) enquanto condição de nascimento do penhor, para, em seguida, avaliar
até que ponto elas são cumpridas por estas formas alternativas de desapossamento.
Desta análise decorre, conforme exposto no CAPÍTULO I, N.º 5, que para além
dessa privação da disponibilidade do bem (desse modo se assegurando a protecção do
credor contra actos de disposição por parte do empenhante), o desapossamento assume
outras funções, de entre as quais ressalta a publicitação da garantia.
Nesta conformidade, não basta considerar que o fito essencial do
desapossamento é o gerar de uma situação de indisponibilidade do bem, por parte do
empenhante, para, automaticamente, qualificar uma garantia mobiliária em que tal
indisponibilidade se verifique como penhor.
Com efeito, há que retirar do inegável intuito publicitário (seja ele rudimentar,
imperfeito e incompleto) associado ao desapossamento do constituinte da garantia, as
devidas consequências, inclinando-nos, por isso, para a recusa da integração no seio do
penhor de todas aquelas garantias mobiliárias que não prevejam um mecanismo,
alternativo à entrega ao credor ou a terceiro, de cognoscibilidade da garantia.
Em suma, advogamos que o objectivo que preside à necessidade de
desapossamento do constituinte do penhor é a privação da disponibilidade do bem
onerado, conjugada com a publicidade da garantia que lhe é inerente, pelo que apenas
3129
Posição defendida com particular acutilância por Gabrielli (vide, por exemplo, in Garanzia rotativa,
vincoli su titoli di stato e disciplina del pegno cit., pág. 271 e segs.), para quem, na medida em que o
desapossamento é apenas uma das técnicas possíveis para alcançar um objectivo – privar o constituinte da
exclusiva disponibilidade do bem dado em garantia – esse desiderato pode realizar-se através de outros
mecanismos. Assim, a função que caracteriza o penhor é a de criar um vínculo de indisponibilidade do
bem empenhado, destinada a satisfazer o interesse do credor pignoratício à obtenção das utilidades
decorrentes do bem empenhado (sendo a tutela desse interesse atingida no âmbito externo – subtraindo a
coisa empenhada da giro comercial e eliminando potenciais conflitos com outros credores do empenhante
- e interno – eliminando os potenciais conflitos entre sucessivos adquirentes do mesmo bem), pelo que
conclui “non si tratta di una garanzia atipica, ma di un attegiamento anomalo della garanzia
pignoratizia. La disciplina applicable è dunque sempre quella propria del pegno con la conseguente
validità della garazia” (o mesmo Autor, in Spossessamento cit., pág. 935, afirma que “La funzione di
garanzia, infatti, in alcune fattispecie anomale di pegno si manifesta mediante tecniche diverse o
alternative, a quella che si serve dello spossessamento del costituente, ma ugualmente idonee allo scopo”,
pelo que “in quanto la funzione di garanzia, pur attuandosi mediante particolari strumenti (…) o tecniche
contrattuali, diversi dello spossessamento, si realizza in concreto con gli effetti propri del tipo legale,
dato che tali tecniche sono comunque rivolte a operar ela sottrazione al costituente della disponibilità
giuridica della res oggetto della garanzia. Il che consente di operare una coerente assimilazione di tali
fattispecie entro la struttura formale e la disciplina propria del tipo legale del pegno”).
918
quando um formalismo alternativo à entrega do bem ao credor cumpra tais desideratos
fará situar a garantia assim criada no âmbito do penhor: é o que sucede, a nosso ver,
quando a constituição do penhor se encontre sujeita a registo (ao menos quando este
seja de acesso livre, no sentido de a sua consulta ser permitida a qualquer interessado),
mas já não com outros mecanismos (v.g. mera entrega das chaves ou constituto
possessório) desprovidos de efeitos publicitários.
Como suporte desta posição, podemos até sustentar que o n.º 1 do art.º 669.º, ao
aludir à entrega do bem onerado ao credor ou de documento que confira a sua exclusiva
disponibilidade menciona as duas formas mais comuns de lograr aqueles objectivos
(admitindo explicitamente até outras, conforme se alcança da licitude da entrega a
terceiro ou da criação de uma situação de composse), não excluindo liminarmente
outras ainda que cumpram os mesmos desideratos.
É, ainda, este duplo efeito que, em nosso entender, consente apartar o penhor da
hipoteca, porquanto embora também a constituição desta seja dotada de desígnios
publicitários (de modo até mais eficaz do que sucede com o penhor), o concedente da
hipoteca não fica privado, por esse facto, da disponibilidade fáctica e jurídica do bem,
ao invés o que acontece com o empenhante, que perderá a primeira sempre que o penhor
se constitua mediante entrega material, e a segunda em qualquer caso (isto é, mesmo
que o desapossamento assuma modalidades alternativas – v.g., tradição ficta ou
simbólica - , sempre restará, por exemplo, a impossibilidade de disposição sem
consentimento do credor pignoratício, sujeitando-se, inclusive, a sanções penais a
violação de tal proibição).
Quando assim não for (isto é, quando a garantia não prive o empenhante da
disponibilidade do bem onerado e/ou não surta efeitos publicitários) ou a garantia é
criada por lei (v.g., o penhor em garantia de créditos de estabelecimentos bancários) e a
sua exclusão redundará na qualificação como um novo tipo legal de garantia ou na sua
inclusão no âmbito de outra garantia legalmente previsto (maxime a hipoteca, sempre
que preencha os respectivos elementos do tipo) ou, sendo obra de meras convenções
entre as partes (v.g., recurso ao constituto possessório), implicará a sua classificação
como atípica e, por isso, desprovida de efeitos face a terceiros (cfr. art.º 1306.º, n.º 1).
Quando, porém, a garantia se encontre sujeita a registo, o inegável efeito
publicitário deste não permitirá, por si só, integrar a garantia da órbita do penhor, uma
vez que também a hipoteca não prescinde dessa formalidade para a sua constituição,
pelo que a distinção passará pela delimitação dos poderes atribuídos ao constituinte, ou
seja, se a este forem atribuídas as faculdades de uso e fruição do bem, à partida
estaremos perante uma hipoteca; caso contrário, a garantia será qualificável como
penhor.
Admitimos, porém, que no âmbito do penhor de créditos e atento o mais que
duvidoso intento publicitário da notificação do terceiro devedor do crédito
empenhado,3130 a exigência de cognoscibilidade de um eventual mecanismo alternativo
3130
O que conduz à rejeição da necessidade de entrega ao credor do título comprovativo do crédito
empenhado (seja considerando que no penhor de créditos não existe desapossamento do devedor, seja
admitindo que a notificação do terceiro devedor do crédito empenhado é o modo de desapossamento
consagrado para o penhor de créditos), exigência esta que tem sido paulatinamente abandonada pela
própria jurisprudência (uma vez que o título funciona como mero meio de prova do crédito – e, por isso
“Le créancier détient le titre, mais ne possède pas pour autant la créance” – até porque “la remise du
titre n’informe nullement les tiers de la constitution du gage”, para além de não eliminar o risco de
fraude, na medida em que “n’impêche pas le constituant de disposer du droit car, lorsque il plusiers
titres, il peut parfaitement consentir plusiers gages sur la même créance” - Lisanti-Kalczynsky, ob. cit.,
pág. 77). Em contraponto, esta análise assenta numa perspectiva desmaterializada do desapossamento e,
partindo do pressuposto que o penhor se traduz num direito ao valor e numa ausência de direitos sobre as
919
a tal notificação seja atenuada ou até excluída (embora, em face dos dados vigentes, não
sejam frequentes tais convenções), podendo esta constatação ser extensível ao penhor de
outros bens incorpóreos - cuja constituição se dá através de outros mecanismos diversos
da notificação do terceiro devedor do crédito onerado, seja por determinação legal (art.º
681.º, n.º 1),3131 seja até nos termos acordados pelas partes - 3132 ficando, ainda assim, a
utilidades proporcionadas por esse valor, constata que “la remise matérielle de l’objet du gage n’apparaît
pas comme un fin mais seulement comme un moyen de parvenir à la dessaisine du constituant. Recentrée
sur la perte des prérogatives du constituant sur le bien gagé, la déposession peut se réaliser selon les
formes dématérialisées, dont le droit commun en matière de gage sur biens incorporels est la
signification” - Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 79. Com efeito, a notificação ao devedor produz efeitos
entre as partes (originando a perda, por parte do constituinte, das prerrogativas associadas ao crédito
empenhado, uma vez que o devedor deste não poderá mais pagar ao seu credor, mas sim ao credor
pignoratício) e relativamente a terceiros (publicitando a constituição da garantia, porquanto o terceiro
devedor do crédito empenhado passa a estar em condições de informar todos os terceiros da existência do
ónus). Todavia, poderá fundadamente duvidar-se, quer da natureza constitutiva da notificação, enquanto
sucedâneo do desapossamento (considerando alguns ser esta uma mera condição de oponibilidade da
garantia), quer do seu intuito publicitário (sobretudo porque os terceiros, através da informação prestada
pelo terceiro devedor do crédito empenhado, não se asseguram que o mesmo crédito não tenha sido
previamente empenhado). Sobre estes assuntos, vide supra n.º 5.2 do Capítulo I.
3131
Vide o que ficou dito supra (n.º 1.2.8 do Capítulo II) acerca da constituição de penhor sobre alguns
destes bens, como o conteúdo patrimonial do direito de autor e os direitos de propriedade industrial e
intelectual. Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 89 e 90, aponta como exemplos a inscrição num registo
(como sucede com o penhor de partes de sociedades civis, embora, destaque como a notificação à
sociedade emitente é que verdadeiramente consubstancia o desapossamento, uma vez que a inscrição no
registo apenas constitui condição de oponibilidade nos penhores sem desapossamento) ou a entrega do
título (por exemplo, no penhor de créditos de mercados público, representados por um único exemplar e,
por isso, insusceptível de fraude quanto à existência de diversas entregas de cópias distintas). Par além
disso, a Autora admite mesmo a simples declaração (embora, admita igualmente a constituição do penhor
sobre estes bens de acordo com as formalidades do direito comum) assinada pelo titular da conta, datada
(contudo, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 121, atesta que a data de constituição da garantia, para todos
os efeitos, será a aposta pelo gestor da conta no momento da recepção da declaração: a solução contrária –
entender como relevante, para este efeito, a data indicada pelo constituinte - conduziria à existência de um
período oculto, entre a data aposta pelo constituinte e a sua recepção efectiva pelo gestor da conta -
durante o qual a garantia já seria oponível a terceiros) e contendo uma série de menções (a denominação –
penhor de conta de instrumentos financeiros -, a identificação das partes, o montante ou os elementos de
determinação do crédito garantido, a identificação da conta onde se encontram os instrumentos a
empenhar e o número e natureza dos activos financeiros que constituem o objecto inicial do penhor), no
caso de penhor sobre instrumentos financeiros desmaterializados (o que, na opinião de Lisanti-
Kalczynsky, ob. cit., pág. 84, mais não é do que a notificação da constituição da garantia ao detentor da
conta, que poderá ser desempenhar as funções de credor ou de terceiro detentor), garantindo esta
declaração os efeitos pretendidos pelo desapossamento, na medida em que priva o constituinte do direito
de disposição dos valores onerados (não podendo, a partir dessa data, movimentá-los, porquanto a conta
fica bloqueada), permitindo ao detentor da conta alertar os terceiros para a existência da garantia (todavia,
a mesma Autora entende que esta declaração implica a notificação ao gestor da conta do próprio contrato
de penhor, não bastando uma simples declaração por parte do constituinte da garantia, uma vez que esta
última se prestaria a fraudes, consentindo ao devedor empenhante apor unilateralmente uma data ao
contrato). Já no que concerne ao penhor sobre o saldo de depósitos bancários, o desapossamento é
assegurado através de uma simples operação escritural – “virement” – através da qual se efectua uma
transferência de valores não material, mediante a inscrição de um crédito a favor de uma conta e de um
correlativo débito a favor de outra (entre as partes, o principal efeito é impedir que o devedor possa retirar
quantias da conta empenhada; relativamente a terceiros, cabe ao detentor da conta – seja ou não o credor
– informar os terceiros da existência do encargo). Finalmente quanto ao penhor de apólices de seguros de
vida à ordem, a garantia pode constituir-se por endosso datado, com indicação do credor pignoratício e,
quando a apólice tenha sido aceite pelo beneficiário, obtido o consentimento deste último (quando seja
nominativa a apólice, poderá o penhor nascer através da notificação ao devedor do crédito empenhado ou,
em alternativa, mediante um “avenant” – acto de modificação de uma apólice de seguro -, mas apenas
desde que o subscritor da apólice for o constituinte da garantia, uma vez que aquela figura pressupõe uma
relação contratual prévia entre as partes)
920
manutenção da garantia na órbita do penhor dependente da circunstância de o
constituinte da garantia ser espoliado das faculdades de gozo do bem dado em
garantia.3133
Uma vez identificado o cerne do tipo legal de penhor na retirada do poder de
disposição (e de uso) do bem onerado ao empenhante (associado aos mencionados
efeitos publicitários), somos de parecer que serão de excluir do arco do penhor aquelas
garantias em que o constituinte preserve a legitimidade para continuar a poder usar e
desfrutar das utilidades do bem onerado (sob pena de redução ou até perda total do
respectivo valor), como sucede com as garantias sobre o estabelecimento comercial (ao
menos nos ordenamentos em que semelhante garantia goze de um regime legal, do qual
normalmente decorre a possibilidade de o empenhante prosseguir a sua actividade),
sobre os direitos de propriedade intelectual (cuja oneração não impede, antes reclama, a
continuidade da sua exploração económica)3134 e até sobre as participações sociais (na
medida em que, por força do regime legal e salvo estipulação em contrário, continuará a
caber ao sócio o exercício dos deveres sociais),3135 bem como sobre bens alvo de um
processo de transformação.3136
3132
Esses pactos, frequentes no caso de penhor sobre contas de instrumentos financeiros, dirão respeito,
por exemplo, à gestão da conta onerada, podendo esta ser atribuída directamente ao constituinte, ao
credor ou a um gestor (na ausência de pactos a este respeito, a conta permanecerá bloqueada desde a
constituição da garantia): neste último caso, o gestor terá que ser informado das condições acordadas pelo
credor e pelo devedor quanto à movimentação da conta onerada, podendo recusar o mandato (o que não
influirá na validade do penhor, mas implicará a comunicação da tal decisão às partes, a fim de estas
transferirem os instrumentos financeiros para outra instituição).
3133
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 148 e segs., realça como esta perda das utilidades decorre, no
penhor de créditos, de o constituinte perder o direito de receber o pagamento do crédito onerado e, no
penhor de contas bancárias ou de instrumentos financeiros, da gestão da conta empenhada. Contudo, a
particularidade de alguns destes bens impõem soluções diversas, como a possibilidade de o constituinte
conservar a titularidade do direito de voto no penhor de participações sociais (podendo, desse modo,
influenciar negativamente o valor dos títulos empenhados) ou de, por convenção, manter a gestão das
contas empenhadas: em qualquer dos casos, o constituinte não poderá ceder os bens onerados, ou seja,
mesmo que o aliene a terceiro, não poderá entregá-lo, na medida em que assiste ao credor pignoratício um
direito de retenção que poderá ser oposto a essa entrega (excepto se, no penhor de contas bancárias ou de
instrumentos financeiros, o credor expressamente tenha atribuído ao devedor a faculdade de dispor dos
bens integrados nessas contas).
3134
A respeito do estabelecimento comercial, escreve Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 257, que o
constitunte da garantia “doit pouvoir l’exploiter afin de maintenir la valeur de l’assiette, les sûretés qui
s’y rapportent sont nécessairement soustraites ou modèle du gage avec dépossession”.
3135
É a posição defendida por Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 401 e segs., para quem a
circunstância de estas garantias não implicarem a perda de qualquer utilidade (maxime do uso) do bem
onerado por parte do constituinte da garantia, nem impedirem a liberdade de disposição da coisa por parte
do mesmo, implica a exclusão da sua natureza pignoratícia. Os Autores contornam a objecção de acordo
com a qual a natureza pignoratícia destas garantias poderia ancorar-se na existência, a cargo do
constituinte, de um dever de conservação (que vedaria, ao obrigar à manutenção do valor do bem
onerado, a destruição deste, privando assim o onerante de uma das faculdades inerentes ao direito de
propriedade, qual seja o abusus), retorquindo que esta limitação não impede o constituinte de alienar o
bem onerado e de proceder à respectiva entrega a terceiro (daí a necessidade de outorga de um direito de
sequela ao credor garantido) e, por outro lado, porque a obrigação de conservação não retira o bem do
património livre do devedor, não prejudicando os demais credores, sendo estes até beneficiados pela
manutenção da solvabilidade do devedor que acarreta. Depois, que as coisas incorpóreas são susceptíveis
de figurar como objecto de direitos reais, por conferirem um monopólio de exploração aos seus titulares,
os Autores sustentam que tão pouco a sua qualificação como hipoteca parece razoável, porquanto o
legislador apelida estas garantias como verdadeiros penhores (apesar da inegáveis semelhanças com as
hipotecas, quer ao nível da ausência de desapossamento, quer no que concerne à publicidade registal a
que se encontram sujeitas), optando pela designação de “gages par détermination de la loi”.
3136
Como sucede com o penhor de presuntos no direito italiano – sobre esta garantia, vide supra n.º 1.2.1.
do Capítulo II.
921
Nestas garantias a sua constituição prescinde do desapossamento do devedor,
embora não se encontre ausente o desiderato publicitário e a necessidade de protecção
do credor – asseguradas, no penhor, pelo desapossamento -, cumpridas, em regra, pela
sujeição da constituição da garantia a inscrição num registo3137 (ou, por vezes, num dos
vários registos previstos na lei para as diversas figuras)3138, cuja inobservância gera,
normalmente, a inoponibilidade da garantia face a terceiros,3139 e que é determinante
para estabelecer a graduação entre os diversos credores com garantia sobre os mesmos
bens.3140
3137
Como bem nota Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 286 e segs., a exclusão do desapossamento – em
razão da necessidade de continuação da utilização e exploração do bem onerado por parte do credor –
obriga à busca de uma alternativa capaz de assegurar a cognoscibilidade da garantia face a terceiros
(tornando a garantia oponível a estes) e, simultaneamente, de cumprir a função de protecção do credor
(embora atenuada face ao desapossamento, uma vez que o devedor conserva o direito de uso da coisa
empenhada). Ora, essa alternativa será normalmente o registo, especialmente quando os bens em questão
se encontram sujeitos a essa publicitação (é que sucede, no direito francês, com o estabelecimento
comercial, os filmes e os direitos de propriedade industrial: este facto torna possível o desenvolvimento
contratual de certas garantias sobre este tipo de bens, mesmo que o legislador tenha consagrado regras
específicas a este respeito, dado que, por um lado, “la dépossession est par la nature des choses
économiquement inconcevable sur ces biens qui sopposent une exploitation et d’autre part qu’une
inscription peut matériellement s’y substituer en raison de l’existence d’un système de publicité”), mas
também quando tal não suceda (embora, neste caso e na ausência de previsão legal expressa, as garantias
em questão devam estar sujeitas ao regime geral do penhor com desapossamento.
3138
Tomado como exemplo o direito francês, No caso dos direitos de propriedade intelectual, o INPI
organiza um registo para cada um deles (brevets, marcas, desenhos e modelos); para os filmes, o registo é
gerido pelo Centro Nacional da Cinematografia; e o penhor sobre o estabelecimento comercial deve ser
inscrito na secretaria do tribunal de comércio da sede desse mesmo estabelecimento (embora sejam
necessárias inscrições complementares no caso de a garantia abarcar também as sucursais – no local da
situação de cada uma destas – e direitos de propriedade intelectual, caso em que se requererá uma
inscrição adicional no INPI: nesta última hipótese, a inscrição no INPI destina-se a proteger o credor com
penhor sobre o estabelecimento contra o eventual risco de alienação isolada dos direitos de propriedade
intelectual e, no caso de não ser efectuado este registo no INPI, o penhor de estabelecimento permanece
válido, mas não será oponível a terceiros no que toca aos direitos de propriedade intelectual nele
incluídos). Critica a existência de todos estes registos Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs.
407 e 408, para além do facto de a lei apenas regular as formalidades requeridas para a inscrição do
penhor sobre o estabelecimento comercial (impondo a remessa do contrato de penhor e de outros
documentos que identifiquem as partes, o montante do crédito garantido e o objecto onerado) e sobre o
logiciel (em termos análogos aos previstos para o estabelecimento comercial – cfr. art.ºs R. 132-8 a R.
132-17 do Code de la Propriété Industrielle), descurando os demais bens (opinando Lisanti-Kalczynsky,
ob. cit., pág. 321, que será necessária, pelo menos, a apresentação de um exemplar do contrato de penhor,
embora nenhum controlo da regularidade da inscrição resulte da lei), não estabelecendo sequer um prazo
para a inscrição da garantia (excepto no que toca ao penhor de estabelecimento comercial, que terá de ser
registado no prazo de 15 dias a contar da data da sua constituição).
3139
Apesar de a inoponibilidade constituir a sanção mais comum, por vezes a lei comina a sanção da
nulidade, como sucede no penhor de estabelecimento comercial, quando não inscrito no registo no prazo
de 15 dias a contar da celebração do contrato de penhor (solução criticada por Lisanti-Kalczynsky, ob.
cit., págs. 328 e 329, por entender que, deste modo, se procura assimilar desapossamento e publicidade,
fazendo desta última uma condição de validade do contrato de garantia), e no penhor de filmes (Jacques
Ghestin e outros, Droit spécial cit., pág. 408 e segs., defende, de lege ferenda, a generalização desta
solução, alegando que, sendo o registo um sucedâneo da entrega do bem ao credor e sendo esta condição
de validade do penhor, o mesmo deveria suceder com a inscrição registal)..
3140
O critério base para dirimir esses conflitos é, naturalmente, o da anterioridade do registo, embora com
excepções, como sucede, no direito francês, no caso de um penhor sobre estabelecimento comercial que
inclua direitos de propriedade intelectual (caso em que a garantia se perfecciona no momento da inscrição
da garantia sobre o estabelecimento, desde que a inscrição no INPI se faça nos 15 dias posteriores,
retroagindo assim à data daquela inscrição inicial) e, ainda, quando se verifique a celebração de acordos
de cessão do grau da garantia - Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 412 a 414.
922
Por outro lado, nestas garantias não possessórias não integráveis no âmbito
pignoratício não se ignora também a protecção do credor, a qual é assegurada, não
obstante a permanência do bem em poder e gozo do constituinte, pela imposição a este
sujeito de um dever de conservação do valor do bem onerado (protegendo aquele contra
a circulação do bem, normalmente mediante a concessão de um direito de sequela
pleno,3141 e, ainda, contra o possível desaparecimento do mesmo),3142 cuja
inobservância, designadamente no que toca à manutenção do valor dos bens
onerados,3143 redundará na aplicação de sanções civis3144 e até criminais.3145
3141
Esta necessidade de protecção, acrescida em virtude da conservação do bem em poder do devedor, é
assegurada, essencialmente, através da concessão ao credor de um direito de sequela (tanto mais que,
quanto aos bens incorpóreos não se aplica a regra da posse vale título e, por outro lado, porque a
generalidade destas garantias se encontra sujeita a registo, razão pela qual não poderão terceiros invocar o
desconhecimento da garantia para se opor ao exercício do direito de reivindicação por parte do credor
pignoratício), expressamente reconhecido nalguns casos (como, por exemplo, para o penhor de
estabelecimento comercial – abrangendo, inclusivamente, a venda isolada de algum ou alguns dos
elementos que o compõem e que sejam determinantes para a configuração do estabelecimento e, mesmo,
de acordo com Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 347, a venda de elemento isolados não determinantes
relativamente aos quais exista um sistema de publicidade registal, como sucede com os direitos de
propriedade industrial - e de filmes) e defensável face aos demais, ao menos quando exista um sistema
publicitário adequado a tornar cognoscíveis a terceiros as garantias sobre os bens em questão
(pronunciando-se neste sentido, depois de notar que tal direito de sequela não resulta imediatamente do
simples afastamento da regra “posse vale título”, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 348 a 350,
concluindo, em conformidade, que tal será o caso dos direitos de propriedade industrial, mas não dos de
propriedade literária ou artística – porém, a Autora mostra mais reticências quanto aos bens não sujeitos a
publicidade, mas cujas garantias sobre os mesmos tenham que ser registados). Como contraponto do
direito de sequela, o terceiro adquirente do bem onerado pode expurgar a garantia, pagando aos titulares
desta o valor dos seus créditos, não apenas após o exercício do direito de sequela por parte do credor
pignoratício, como também a título preventivo (existe um procedimento de expurgação previsto na lei –
para o penhor de estabelecimento comercial e de filmes -, nos termos do qual se os credores aceitarem a
oferta do adquirente o direito de sequela se extingue e passa a incidir sobre essa quantia e, caso não
aceitem, o bem será vendido, podendo os próprios credores garantidos tornar-se adquirentes; para além
disso, existe uma espécie de expurgação amigável, perante o notário e prévio à venda de um bem
onerado, de acordo com a qual este informa os credores garantidos do preço da venda e, se estes o
aceitarem, serão pagos por esse mesmo preço e as garantias canceladas). Reconhece igualmente este
direito de sequela Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 420 e 421.
3142
Tomando por base o regime do penhor de estabelecimento comercial, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit.,
pág. 358 e segs., distingue as medidas preventivas (como sejam o direito do credor a ser notificado da
apreensão de qualquer elemento que componha o estabelecimento e da faculdade de requerer, em resposta
a essa apreensão, a alienação do próprio estabelecimento, ainda que o seu crédito não se encontre
vencido) das que operam em momento posterior a esse desaparecimento (admitindo, no seguimento de
algumas decisões judiciais e mesmo na ausência de previsão legal, a substituição, como objecto da
garantia, dos bens originariamente integrantes do estabelecimento comercial – indemnização por evicção
devida pelo proprietário do local ou preço da cessão do direito de arrendamento ou do material - pelo
contravalor em dinheiro que a saída dos mesmos do estabelecimento originou.
3143
Neste tipo de garantias, a obrigação de conservação comum (cuja violação pode resultar, não apenas
de um comportamento activo do devedor, como igualmente de uma omissão censurável, isto é, que afecte
o valor do bem onerado), é complementada por um dever específico de exploração do bem onerado (ou
seja, nestas garantias sem desapossamento a utilização do bem por parte do devedor não constitui uma
verdadeira obrigação, de modo que “la conservation de l’assiette implique-t-elle nécessairement son
exploitation par le constituant (…) car à défaut d’exploitation, il y aurait inéxecution de l’obligation de
conservation” - Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 367), que pode assumir diversas modalidades
(normalmente assegurada através de uma obrigação de facere – explorar o estabelecimento comercial,
proporcionar uma utilização comercial aos direitos de propriedade industrial patenteados -, que não terá
que ser realizada directamente pelo constituinte da garantia, podendo este, por isso, ceder a exploração do
estabelecimento comercial ou conceder licenças de exploração sobre direitos de propriedade industrial
patenteados), nomeadamente em função do objecto onerado (no caso particular do estabelecimento
comercial, o devedor terá que informar o credor em caso de deslocalização do bem – e, caso o não faça, o
crédito garantido vencer-se-á imediatamente -, assim permitindo ao credor renovar a publicidade da
923
garantia no novo local para o qual for deslocado o fundo e, por outro lado, obter o consentimento do
credor, que, se for recusado, legitimará este a requerer judicialmente o imediato vencimento do crédito
garantido; e de notificar o credor na hipótese de mudança total de actividade do estabelecimento. Já
quantos aos direitos de propriedade industrial, a obrigação de conservação pode consistir no dever de
propor acções destinadas a punir práticas de contrafacção – embora, como salienta Jacques Ghestin e
outros, Droit spécial cit., págs. 417 e 418, alguma jurisprudência recuse ao credor tal faculdade, com o
argumento que os direitos de propriedade intelectual possuem uma dimensão moral e predominantemente
pessoal, pelo que a sanção para a inacção do devedor seria o imediato vencimento da obrigação garantida
- , a pagar taxas inerentes aos direitos patenteados e a não renunciar aos esses direitos sem o
consentimento do credor: em qualquer dos casos, a violação destas obrigações importará o imediato
vencimento do crédito garantido). Em termos análogos, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs.
415 a 417, aludindo a uma obrigação positiva, de facere (uma vez que a inacção será susceptível de
diminuir o valor do objecto onerado, apontando a existência de um suporte legal para tal dever, ao menos
no caso das marcas – cfr. art.º 714-5, do Code de la Propriété Industrielle), embora apenas deva
considerar-se existir incumprimento de tal dever quando a ausência de exploração seja imputável ao
empenhante (por exemplo, quando um brevet se torne obsoleto: neste caso, o devedor terá de prestar outra
garantia alternativa, sob pena de, não o fazendo, se produzir o vencimento imediato da obrigação
garantida).
3144
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 377 e segs., destaca que a principal sanção consiste no vencimento
imediato do crédito garantido, a chamada perda do benefício do prazo, sempre e quando coloque em
causa o valor dos bens empenhados, são de natureza civil, desde que aquela perda de valor decorra de
facto imputável ao devedor, mas não de causa de força maior ou imputável ao credor – cfr. art.º 1118.º do
CCF), a que acresce a possibilidade de o credor lançar mão da impugnação pauliana (no caso específico
do penhor sobre direitos de propriedade intelectual, a ausência de exploração do bem onerado por parte
do devedor pode determinar que o credor solicite a nomeação de um terceiro para proceder a essa mesma
exploração e, em caso de não pagamento de taxas, poderá o devedor liquidar tais importâncias) No nosso
direito e conforme analisado no Capítulo I, n.º 9, a principal consequência será o direito do credor exigir o
reforço ou a substituição dos bens empenhados, sendo que tal faculdade lhe é concedida pelo regime do
penhor e da hipoteca, nos mesmos termos (cfr. art.ºs 670.º, alínea c) e 701.º).
3145
A ausência de desapossamento do constituinte, nestas garantias, gera a inaplicabilidade in casu do
delito de abuso de confiança, uma vez que este pressupõe a entrega do bem por parte do proprietário a
outrem e um prejuízo sofrido por este, o que não acontece nas garantias sem desapossamento, nas quais o
proprietário mantém a posse do bem onerado (apesar disso, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 392, relata
que a mesma será de aplicação mesmo aos bens incorpóreos, desde que se assimilem à entrega material as
formas de desapossamento próprias do penhor deste tipo de bens e, ainda, que algumas disposições legais
em matéria de warrants reconhecem a aplicabilidade deste crime às garantais sem desapossamento; já a
letra da norma parece não abranger os abusos cometidos por um terceiro detentor em prejuízo do credor –
v.g., quando o gestor de uma conta empenhada efectua operações não autorizadas pelo contrato de penhor
por ele aceite -, embora a Autora entenda que a norma deve ser interpretada extensivamente de modo a
contemplar igualmente esta hipótese, não só porque a tipificação do crime também salvaguarda os
interesses do credor nos penhores sem desapossamento, com ainda porque a lei fala de “causar prejuízo a
alguém” e esse alguém, embora normalmente seja o devedor, pode ser o credor), sendo, por isso,
necessária uma incriminação específica para a conduta do empenhante, como sucede, por exemplo, com o
disposto no regime do penhor em garantia de estabelecimentos bancários ou o previsto no art.º 314-5 do
Code Pénal – definindo como aquele em que incorre o constituinte ou um terceiro empenhante que
destrua ou desencaminhe o objecto do penhor, preceito este que pune igualmente a tentativa e com as
mesmas penas, que podem chegar aos 3 anos de prisão - de acordo com Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs.
393 e 394, esta norma é de aplicação da todas as garantias sem desapossamento, mesmo que incidam
sobre bens incorpóreos, uma vez que do seu conteúdo genérico não é legítimo fazer uma interpretação
restritiva, desde que verificados o elemento material (comportamento, activo ou passivo, do constituinte
que diminuam o valor do bem onerado, assim causando um prejuízo ao credor em resultado do não
cumprimento do dever de conservação por parte do constituinte, ou seja, integram esta infracção a não
exploração de um direito de propriedade intelectual, o não pagamento das taxas a eles relativos ou a
renúncia a tais direitos, a venda isolada de um elemento do estabelecimento comercial relevante que
diminua o valor deste) e o elemento moral (o conhecimento dos direitos do credor pignoratício e a
consciência que o acto praticado os lesa), embora a Autora ressalve que nem todos os actos de disposição
– que, normalmente e em razão da ausência de direito de sequela do credor pignoratício, preenchem o tipo
legal – aí se integram, uma vez que a natureza fungível de alguns deles – v.g., o penhor de conta de
924
Do mesmo modo, em sede de execução deste tipo de garantias as duas
faculdades normalmente conferidas ao credor garantido – venda3146 e adjudicação em
pagamento3147 – sofrem alguns desvios face ao regime geral das garantias, desvios esses
motivados pela especial natureza do quid onerado.
Finalmente, refira-se que a integração de uma garantia no âmbito do penhor ou
da hipoteca (ou até de nenhum dos dois) será importante para, ao menos em termos
indicativos, remeter para o respectivo regime jurídico na tarefa de integrar as potenciais
lacunas do seu regime legal específico, maxime em sede de forma do contrato3148 e de
sanção para a constituição de garantia por parte de um não proprietário.3149
instrumentos financeiros – determina que a sua disposição possa não afectar o valor da garantia do
credor).
3146
Desde logo e porque o bem não se encontra, em razão da ausência de desapossamento, em poder do
credor, será necessária uma prévia apreensão do bem e, quanto à venda em si, deverá seguir as normas
gerais sobre processo executivo (sob pena de violação da proibição de voie parée, até porque, tratando-se
de bens incorpóreos, o adjudicatário não poderá opor ao credor a regra da posse vale título), excepto
quando existam normas específicas para determinados bens (existentes para os filmes – venda essa que
exige uma prévia autorização judicial e terá obrigatoriamente que ser realizada pelo tribunal do comércio
de Paris - e para o estabelecimento comercial, para o qual se prevê uma intimação prévia à venda, a qual
pode ser requerida mesmo em caso de apreensão por terceiros de um elemento isolado e relevante do
estabelecimento). No que concerne ao concurso com outros credores, o conflito entre dois ou mais
titulares de uma destas garantias será normalmente resolvido de acordo com a prioridade do registo de
cada uma delas (com a nuance de um penhor sobre um brevet ser oponível a terceiros, mesmo antes da
sua inscrição, desde que esses terceiros tivessem conhecimento do penhor na data da aquisição do
respectivo direito), podendo ainda produzir-se conflitos particulares (como um penhor constituído sobre
um bem que integra um estabelecimento anteriormente empenhado: neste caso e apesar de o credor sobre
o bem isolado não poder invocar em seu benefício - por força da sua má fé decorrente da publicitação do
penhor de estabelecimento - a regra da posse vale título, poderá valer-se do direito de retenção para
impedir a reintegração do bem no estabelecimento ou a sua entrega ao credor com garantia sobre aquele)
ou com outras garantias diversas igualmente não possessórias (por exemplo, entre um penhor sobre o
estabelecimento comercial abrangendo direitos de propriedade intelectual e um outro incidindo apenas
sobre estes últimos: na falta de disposição legal, prevalecerá o critério do prioridade do registo), com
garantias legais (como privilégios creditórios gerais – que cederão, excepto o por despesas de justiça,
perante as garantias convencionais – ou especiais, que preferirão a estas) ou com garantias-propriedade
(com uma venda com reserva de propriedade, nomeadamente quando o penhor seja constituído por um
adquirente do bem cuja propriedade tenha permanecido no vendedor: de acordo com Lisanti-Kalczynsky,
ob. cit., págs. 413 a 415, tal conflito deve ser solucionado em favor do vendedor, não só porque o penhor
foi constituído a non domino, mas também porque a inscrição do penhor não poderá ser aceite pela
entidade gestora do registo e, se o for, tal inscrição será nula).
3147
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 434 e segs., começa por atestar que este direito é independente da
concessão de um direito de retenção sobre o bem onerado (sendo apenas excluída em caso de normas
expressa nesse sentido), destacando, em seguida, como a lei exclui esta modalidade de execução para o
penhor de estabelecimento comercial (posição criticada pela Autora, uma vez que os dois argumentos
normalmente invocados em defesa da solução legal, a sua natureza hipotecária e a dificuldade de
avaliação, não a convencem: o primeiro, porque a atribuição judicial é uma faculdade inerente à
generalidade das garantias mobiliárias; o segundo, por não ser um obstáculo insuperável, até porque a
atribuição judicial é normalmente precedida de uma avaliação pericial), mesmo no que toca a apenas
alguns dos elementos que o compõem (excepto se estes forem objecto de uma garantia autónoma, como
poderá suceder com os direitos de propriedade intelectual), mas admite-a, ao menos implicitamente (o
reconhecimento legal é expresso quanto aos filmes e ao logiciel) e por aplicação do regime geral, quanto
aos demais bens – concordantemente quanto a este último aspecto, Jacques Ghestin e outros, Droit spécial
cit., págs. 419 e 420.
3148
A este respeito Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 314 e segs., sustenta a necessidade de redução a
escrito particular do contrato de penhor, como condição de validade deste e sob pena de nulidade (vide
art.º L. 142-3 do Code de Commerce – para o estabelecimento comercial –, art.ºs L. 132-34, L. 714-1 e L.
613-8 do Code de la Propriété Intelectuelle - para os direitos de propriedade industrial -, e art.º 33.º do
Code de l’industrie cinématographique para os filmes). Segundo a Autora, esta imposição formal vem
confirmar a natureza hipotecária destas garantias e justifica-se, na ausência de entrega material ou de
925
1.3 - A noção de tipicidade e a possibilidade modelação do regime legal das
garantias reais por via convencional sem extravasar o tipo legal
outra forma de desapossamento, como modo de operar a determinação do objecto e do âmbito do penhor
(tarefa facilitada pelo facto de a generalidade destes objectos se encontrar sujeita a depósito prévio ou
publicidade, para os quais se poderá remeter – salienta igualmente este papel do documento escrito
Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 405 e 406) e, por outro, como condição de inscrição da
garantia no registo. Todavia, a lei não enumera, nem quais as consequências para a falta de tal documento
(advogando Jacques Ghestin e outros, Droit spécial cit., págs. 406 e 407, que o escrito é condição de
validade da garantia, apesar de esta apenas se constituir definitivamente com o registo), nem quais os
elementos que deverão constar desse acto escrito, entendendo a Autora que deverão ser todos os que
concorram para a determinação do objecto do penhor ou, mais concretamente, todas as menções
requeridas para a inscrição da garantia no registo, embora a falta de alguma delas não gere a nulidade do
documento escrito, mas tão só a inoponibilidade da garantia a terceiros (um regime específico vigora para
o logiciel, cuja identificação se fará através de indicação dos códigos de acesso e dos documentos de
funcionamento, os quais devem constar do contrato de penhor: ainda assim e por força da especial
complexidade deste tipo de bens, as dificuldades de identificação persistem, sendo apenas ultrapassadas
através do depósito – facultativo - dos códigos do logiciel na agência de protecção dos programas).
3149
Desde logo, cumpre notar que apenas o proprietário destes bens os poderá empenhar ou hipotecar (o
que exclui a oneração por parte do gerente de um estabelecimento comercial, do titular de uma licença
relativa a um direito de propriedade industrial – embora possam constituir um penhor de créditos sobre o
resultado da exploração do estabelecimento ou da propriedade industrial ou ceder tais créditos em
garantia -, do usufrutuário, do titular de uma promessa unilateral de cessão ou do adquirente de um bem
com reserva de propriedade, mas já não o adquirente de uma venda com condição suspensiva, atento o
efeito retroactivo desta), sendo considerado como tal aquele que conste do registo desses bens (ou
presumivelmente, no caso da propriedade industrial, o depositante do brevet, da marca ou dos desenhos e
modelos e, no caso dos filmes, apenas o produtor) ou o cessionário dos direitos de exploração do direito
de propriedade intelectual ou industrial.
3150
Em Itália, Alessandro Natucci, La tipicità dei diritti reali, 2.ª Edição, Cedam, 1988, pág. 171 e segs.,
admite que o art.º 42.º da Constituição, ao determinar que as compete à lei definir os modos de aquisição
de gozo e os limites da propriedade comporta um sentido mais evidente (garantir a propriedade privada
contra os abusos das autoridades públicas), mas também significa “non permettere ai privati limitazioni
del diritto di proprietà con effetti verso terzi (in particolare verso i terzi acquirenti). E costituire diritti
reali limitati significa, in definitiva, limitare la proprietà. Ai privati è vietato, in altre parole, stabilire la
conformazione oggettiva del diritto di proprietà, essendo invece tale funzione riservata al legislatore (…)
ossia la riserva di legge stabilita riguardo alle limitazioni e al contenuto della proprietà privata”.
3151
É esta a posição de Gabrielli, Pegno cit., pág. 687 e segs., para quem, não obstante a existência de
diversos aspectos divergentes (como sejam a ausência de desapossamento – designadamente através da
criação de registos em substituição da necessidade de a posse do bem, a adopção de mecanismos
alternativos para realização da função de garantia ou para a atribuição da preferência – nomeadamente no
que concerne à identificação do crédito garantido e/ou do bem empenhado - , a possibilidade de
substituição do objecto da garantia sem necessidade de renovação das formalidades necessárias para o
surgimento da preferência – como sucede no penhor rotativo – e, finalmente, a viabilidade de um penhor
desvinculado de uma única obrigação, assim permitindo o uso da garantia para assegurar um conjunto de
926
Para responder cabalmente a esta questão, importa determinar qual o conceito do
tipo legal e, em seguida, em que medida tal tipo permitirá agregar no seu seio
determinados sub-tipos que, embora contendo alguns elementos extra-típicos, ainda
caibam naquela tipologia mais genérica.3152
Todavia, para esse efeito, é necessário, previamente, identificar o tipo legal (e
enumerar os elementos essenciais para a sua definição), para o que se deverá recorrer ao
critério da causa subjacente ao tipo.
Deste modo, quando as variações do tipo legal (enquanto reflexos da
modificação da função deste) não produzam uma verdadeira alteração, mas apenas uma
variação, da causa serão compatíveis com o esquema típico traçado (não constituindo,
por isso, qualquer derrogação à disciplina deste); pelo contrário, quando estejamos
perante uma verdadeira alteração, extravasaremos o tipo legal.3153
Desde logo, importa salientar que a tipologia legal não tem imperativamente de
se traduzir num numerus clausus ou numa tipologia taxativa,3154 embora seja essa a
modalidade que reveste, segundo a doutrina dominante, a tipificação legal dos direitos
reais.3155
operações contratadas com o mesmo sujeito), tais figuras devem ser configuradas como penhores, embora
anómalos.
3152
De acordo com Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 77 e segs., o tipo legal corresponde a fattispecie
e situações de índole mais genérica, as quais se prestam a uma progressiva especificação através da
junção aos elementos típicos de requisitos e efeitos extra-típicos, assim surgindo sub-tipos. Estes sub-
tipos poderão, deste modo, resultar “in alcuni casi dalla circostanza che tutti gli elementi essenziali del
tipo sono presenti, ma taluno di essi è qualificato; in altri dalla stessa sistemazione data alla materia dal
codice, benché al sotto-tipo sia attribuita una appellatio diversa da quella attribuita al tipo; da ultimo, la
qualifica di sotto-tipo, da attribuirsi ad un dato contratto nominato, dovrebbe desumersi dall’interprete
sulla base di un attento esame sistemático”. Em conclusão, a relação entre o tipo legal e os diversos sub-
tipos caracteriza-se pela maior elasticidade do primeiro, de modo que “Da un tipo, quindi, in misura
proporzionale al suo grado di elasticità, possono discendere altrettanti sotto-tipi, quante siano le
possibilita di aggiungere, a quello schema, note individuatrici ulteriori – non contemplabili come
essenziali per la definizione del tipo – rispetto a quelle proprie del tipo”.
3153
Assim, Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 79 e segs.. Segundo este Autor, a simples falta de
coincidência do regulamento negocial com o quadro legal não é, por si só, suficiente para excluir o
contrato do tipo legal (para tal será forçoso “accertare la compatibilità della funzione concreta con quella
astratttamente disegnata dal tipo”). Daqui decorre a necessidade de uma exacta delimitação dos limites
da elasticidade de cada tipo – de modo a determinar uma eventual ultrapassagem e, por consequência, a
necessidade de aplicação de uma disciplina diversa – especialmente quando a figura em questão não se
enquadra totalmente no esquema legal típico e seja imperioso avaliar se este último pode ser alargado por
forma a abarcar essa mesma figura. Sempre segundo o mesmo Autor, a determinação da elasticidade do
tipo deverá efectuar-se com base na função concreta do contrato, ou seja, indagando até que ponto as
disposições contratuais incidem, adulterando-a, sobre a função caracterizadora do tipo (naturalmente que
nem todas as cláusulas do regulamento contratual são susceptíveis de alterar a função do tipo legal,
apenas as que afastem elementos essenciais da abstracta configuração do tipo, ou seja, “ogni elemento in
assenza del quale il perseguito assetto di interessi non potrebbe realizarsi nelle sue linee fondamentali”).
3154
Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., pág. 50 e segs., coloca em evidência como, ao lado das tipologias
taxativas, encontramos tipologias exemplificativas (que não excluem a criação de novas figuras além das
previstas por lei, como sucede no domínio dos contratos, alguns tipificados na lei, mas sem que isso
impeça, por força do princípio da liberdade contratual, o surgimento de contratos atípicos) e delimitativas
(que, ao contrário da tipificação taxativa, permitem a elaboração de novas figuras, mas apenas se
semelhantes a algum dos tipos normativamente consagrados).
3155
Embora defensor, de jure constituendo, do sistema do numerus apertus, Oliveira Ascensão, A
tipicidade cit., pág. 76 e segs., reconhece ser o sistema do numerus clausus (entendido como aquele em
que “nem todas as figuras que cabem no conceito de direito real são admitidas, mas tão-sòmente as que
forem previstas como tal”) o consagrado, ao menos implicitamente, no art.º 1306.º, solução esta ancorada
em três argumentos fundamentais: a exclusão da constituição de situações inconvenientes sob o ponto de
vista económico-social, o evitar a criação de ónus ou vínculos ocultos e a clarificação do sistema por via
do mais fácil funcionamento do registo predial (embora, segundo o Autor, o numerus clausus não
927
Todavia, ainda que assim seja, nem por isso se encontra excluído qualquer poder
criativo da iniciativa privada neste domínio - especialmente fazendo apelo aos conceitos
de tipos abertos3156 e de subtipos3157 - do mesmo passo que convém salientar que
tipificação normativa não terá forçosamente que ser legal.3158
A resultados análogos pode chegar-se através da distinção entre o conteúdo
essencial e inderrogável, por um lado, e os aspectos marginais do tipo legal.3159
signifique que direitos reais sejam unicamente os definidos como tal por lei, pois a tarefa de qualificação
dos direitos não cabe à lei, havendo, por isso, direitos, como o arrendamento, cuja natureza real é
controvertida). Pelo contrário, Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 78 e 79, aplaude a opção do legislador,
sobretudo “atendendo a que a tipificação normativa dos direitos reais comporta, no sistema jurídico
português, uma certa atipicidade no conteúdo, em mais de um caso”.
3156
Para Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., pág. 61 e segs., “o legislador tem de encerrar na descrição
típica todos os elementos relevantes para a produção do efeito prático que se prossegue com a
tipificação, mas não precisa de encerrar nela tudo o que é necessário para a produção do efeito jurídico.
Quando assim acontecer, o tipo representará um quadro ou descrição fundamental, que não exclui
outros elementos juridicamente relevantes que lhe sejam exteriores. O facto ou a situação em causa pode
ter pois um conteúdo extra-típico, e por isso dizemos que o tipo é aberto”, elegendo como tipos abertos
aqueles em que a descrição do tipo é completada com regras supletivas, as quais, ao serem susceptíveis de
ser afastadas pelas partes, admitem a existência de elementos juridicamente relevantes não pertencentes
ao tipo (nesta conformidade, os tipos abertos não são incompatíveis com o numerus clausus, uma vez que
“este exige que se respeitem as formas (…) estabelecidas na lei, mas não exclui que, nos quadros de uma
forma legal, se estabeleçam afastamentos das regras supletivas”). O Autor (ult. ob. cit., págs. 331 e 332)
conclui que, no âmbito dos direitos reais, os tipos são abertos, porquanto “a respectiva tipologia satisfaz-
se com a descrição fundamental das situações com natureza real, mas não exclui que nelas se encontre
ainda um conteúdo acessório, que pode ser obra das partes” e, em conformidade, “a tipologia taxativa
não impede que se admitam modificações dos direitos reais. Efectivamente, o direito real tem todo um
conteúdo acessório, que é vastamente moldável pelas partes, mediante a substituição das disposições
supletivas” (tanto mais que, prossegue o mesmo Autor, para prosseguir as finalidades visadas pelo
numerus clausus, “a lei estabeleceu em cada caso normas injuntivas, que proscrevem as situações
consideradas nocivas”).
3157
De acordo com Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., págs. 55 a 57, será legítimo falar se subtipos
“quando houver um tipo que esse subtipo venha por sua vez especificar, e não um mero conceito. Quer
dizer, é indispensável que a figura de que os pretensos subtipos derivam também possa ser por sua vez
utilizada na criação de figuras jurídicas”, para depois acrescentar que “Os subtipos necessitam formar
entre si uma tipologia, também: mas essa tipologia só pode ser exemplificativa, não pode ser taxativa ou
delimitativa (…). Só na tipicidade exemplificativa é possível o recurso paralelo à figura-base e a cada um
dos seus subtipos previstos” (aponta o Autor como subtipos os crimes qualificados ou privilegiados
relativamente ao delito base ou o contrato de compra e venda comercial em relação à figura geral da
compra e venda).
3158
Circunstância esta que implica duas consequências: em primeiro lugar, não impede o legislador de,
noutros diplomas, criar novos direitos reais que acresçam aos previstos no Livro III do Código Civil; em
segundo lugar, consentindo que o próprio costume possa ser fonte de direitos reais (neste sentido,
Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 79 e 80 e Oliveira Ascensão, Direitos reais cit., pág. 161 e segs.).
3159
Assim, Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 228 e segs., considerando estarmos perante um negócio
atípico quando “la deviazione del tipo legale è tale da ledere l’interesse dei terzi, e la loro libertà da ogni
interferenza estranea”, recusando um exame simplista que consinta alterações, não ao conteúdo, mas ao
modo de exercício do direito (pelo menos quando estas últimas sejam ditadas pelo legislador) e propondo
antes serem lícitas as alterações ao esquema legal “secondo un esame sistematico delle norme e alla luce
della ratio del principio (…) che non alterno la sostanza economica e giuridica della cosa e non rendono
più gravi l’esercizio del diritto; piú specificamente quelle modalità che non rendono piú grave la
situazione del proprietario (e dei futuri acquirenti), o la situazione del titolare del diritto limitato (e dei
futuri acquirenti). Sono da riteneri possibili, invece, modificazioni della cosa atte a renderne piú comodo
o reditizio il godimento”. Em particular, o Autor reforça que o princípio da tipicidade se encontra
confinado “al contenuto essenziale dei diritti reali, agli aspetti che non possono essere derogati senza che
sia alterata l’identità del tipo, o senza che il diritto costituito venga ridotto a semplice diritto
obbligatorio. Gli aspetti marginali (derrogabili con effetto reale) non individuano il tipo. Ma la libertà
dei privati vale in questi casi solo in quanto autorizzata ad esprimersi relativamente a punti specifici, già
928
Deste modo, poder-se-á concluir que a tipicidade respeita, antes de mais, ao
número e não necessariamente ao conteúdo3160 dos direitos reais,3161 apesar do disposto,
entre nós, no art.º 1306.º, n.º 1.3162
Aplicando este entendimento genérico ao instituto (leia-se tipo legal) do penhor,
dever-se-á avaliar se as hipóteses anómalas de penhor são compatíveis com o tipo legal
desta garantia, analisando em detalhe os aspectos que as afastam daquele esquema geral,
nomeadamente no que respeita às diversas formas de constituição do vínculo (ausência
de desapossamento do devedor), ao seu funcionamento (rotatividade e possibilidade de
substituição do bem empenhado) ou à sua execução (admissibilidade do pacto
comissório).3163
No que à constituição da garantia diz respeito e ao menos na opinião de alguns,
o efeito essencial visado pelo penhor – a criação de uma situação de indisponibilidade
dos bens empenhados por parte do seu proprietário – é alcançado, em alguns casos,
disciplinati dal legislatore con norme dispositive (tipiche solo nel senso contrattuale). Si ha quindi
un’autonomia secundum legem”.
3160
A propósito da distinção entre conteúdo e efeitos do contrato, Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 183 e
segs., considera que “si è stabilita una relazione di identità (…): gli effetti costituiscono la traduzione
nella realtà dell’ordinamento di un determinato contenuto contrattuale”, apenas falhando essa
identificação quando o negócio em questão é ilícito (por violação de normas cogentes do ordenamento
jurídico) ou porque o conteúdo exorbita da esfera de efeitos consentida (pretendendo produzir efeitos
relativamente a terceiros fora dos casos em que a lei o consente, destarte violando, por exemplo, o
princípio da tipicidade dos direitos reais) ou porque os efeitos se produzem sem que correspondam a
qualquer conteúdo (é o caso das disposições legais integradoras da vontade das partes).
3161
Neste sentido, Dias Marques, Direitos reais - Lições feitas aos cursos de 1958-59 e 1959-60 da
Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1960, pág. 22, complementando que “embora se não possa
variar o elenco legal daqueles direitos é, no entanto, lícito, quanto a alguns deles, introduzir no
respectivo conteúdo uma certa variabilidade”, posição esta aplaudida por Oliveira Ascensão, A tipicidade
cit., pág. 307, considerando que a mesma “marca dois progressos em relação à doutrina corrente. Por
um lado, expressamente relaciona a tipicidade e a fixação do conteúdo dos direitos reais, concluindo
pela dissociação dos dois aspectos, o que nos parece inteiramente de aplaudir; por outro, o seu tom é
menos restritivo no que respeita à intervenção da autonomia privada” e, em menor grau, por Carvalho
Fernandes, ob. cit., págs. 80 e 81 (escrevendo que “Não é contrária ao princípio da tipicidade a admissão
de tipos abertos, ficando assim na disponibilidade dos particulares interessados alguma liberdade na
fixação do conteúdo do tipo, diversificando, alargando ou restringindo as faculdades reconhecidas ao
titular do correspondente direito. Como bem se compreende, esta liberdade, que, na sua extensão, pode
variar, em função de cada tipo, tem um limite natural: ela não pode ir ao ponto de romper os traços
essenciais, específicos, do tipo, sob pena de o subverter” e reconhecendo a existência de alguns tipos
abertos no ordenamento pátrio).
3162
Partindo desta norma (nos termos da qual não é permitida a constituição, com carácter real, de
restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito, excepto nos casos previstos na
lei), alguns extraem a proibição da introdução de qualquer alteração ao conteúdo dos direitos reais,
entendimento este contestado por Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., pág. 323 e segs., contrapondo que
tal preceito “só abrange a criação de direitos reais, e não quaisquer outras realidades”, pelo que
“nenhum indício se retira da nossa lei, em abono do pretenso carácter injuntivo geral das normas que
disciplinam os direitos reais”.
3163
Só depois da análise destes diversos aspectos dissonantes será possível concluir estarmos perante um
sub-tipo de penhor ou um novo modelo típico de garantia (no caso de se demonstrar que essas notas
particulares da fattispecie “rappresentino delle ulteriori caratterizzazioni in senso funzionale dello
schema, cosi da incidire rispetto allo stesso”) ou, ao invés, face a uma simples técnica diversa de
realização da função do penhor (quando se demonstre que os traços específicos dos penhores anómalos
“non attendendo alla funzione di garanzia come tale, ma unicamente ai modi della sua realizzazione (…)
non assumano un ruolo ed un compito ad essa meramente strumentale”) – Gabrielli, Il pegno anomalo
cit., pág. 83 e segs.. Relativamente aos dois primeiros aspectos, Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 84,
o Autor considera que a divergência face ao regime geral do penhor não assume proporções que permitam
concluir pela existência de um novo tipo legal ou sequer de um sub-tipo, contrapondo tratar-se apenas de
modalidades anómalas de penhor, reentrantes no esquema legal da figura.
929
através de mecanismos alternativos ao desapossamento: ainda assim, tais mecanismos
podem caber na órbita da garantia pignoratícia, por não implicarem alteração da função,
mas, mais modestamente, consagrarem unicamente formas anómalas da sua concreta
explicitação.3164
Se assim é, poder-se-á confinar um penhor com estas características no âmbito
das garantias típicas, embora adaptando-o às exigências actuais, demonstrando que essa
adaptação pode prescindir da criação de figuras atípicas.3165
Quando se considere, pelo contrário, que as variações introduzidas no tipo legal
são de tal ordem que desvirtuam a essência do direito real de penhor, a regra parece ser,
não a radical invalidade da figura (há até quem entenda que a tipicidade não constitui,
por isso, um limite, em sentido estrito, à autonomia negocial das partes),3166 mas tão
somente a impossibilidade de os mesmos gozarem de eficácia erga omnes, isto é, de
serem oponíveis a terceiros, embora não seja líquido que a figura assim criada seja um
direito obrigacional.3167
3164
É o que sucede, no ordenamento italiano, com os penhores omnibus (antecipada sujeição do bem ou
crédito empenhado à disponibilidade do credor relativamente ao momento em que tais bens surjam ou
sejam individualizados), de presuntos (aposição de uma marca no bem e inscrição no registo, associados à
impossibilidade de alienação dos bens empenhados sem consentimento do credor ou sem que este se ache
integralmente satisfeito), de valores mobiliários (inscrição num registo específico) e de títulos não
emitidos (onde nem sequer existe desapossamento, em razão da ausência de suporte material, daí
decorrendo a necessidade de recorrer ao regime do penhor de créditos), pois, em todos eles, aquela
indisponibilidade do devedor é alcançada “senza alterare lo schema tipico, da tecniche alternative che
rispetto alla funzione propria del tipo, non costituiscono requisiti, né danno luogo ad effetti extra-tipici”
e, assim, “non possono essere qualificati alla stregua di sotto-tipi del pegno e, di conseguenza, alle
stesse, in assenza di peculiari riscontri di disciplina appositamente previsti dal legislatore o dalle parti,
deve applicarsi la disciplina del pegno stabilita dal codice” - Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 84 e
segs.. Nesta conformidade, o Autor rejeita, que estejamos perante negócios atípicos de garantia ou
negócios mistos com função de garantia (pois a função de garantia realiza-se com recurso ao efeito do
tipo do penhor – privação da disponibilidade do bem por parte do empenhante - , para além de o próprio
legislador ter optado por manter a qualificação de penhor para todas estas figuras anómalas).
3165
Neste sentido, Giorgio de Nova, ob. cit., pág. 410.
3166
Neste sentido, Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 163 e segs., em face do disposto no art.º 1372.º do
CCI (nos termos do qual o conteúdo e os efeitos do contrato apenas se projectam relativamente a terceiros
nos casos expressamente previstos na lei) e no art.º 1322.º do mesmo Código (que estabelece o princípio
da liberdade contratual), advertindo que “i privati sono dunque liberi di stabilire il contenuto che credano
alle loro contrattazioni; e tale contenuto potrà anche essere corrispondente a quello di un diritto reale
(…). Ma gli effetti della regolamentazione delle parti sono, nel caso di diritti su cose aventi un contenuto
atipico, limitati alle parti”. Nesta conformidade, o Autor distingue entre a validade e a eficácia das
convenções atípicas, afirmando que “Il giudizio di validità attiene alle esigenze dell’ordinamento,
obiettivamente considerate, che si impongono anche nei confronti delle parti (…). Il giudizio
sull’efficacia reale del diritto riguarda essenzialmente l’interesse dei terzi, in particolare dei terzi
acquirenti a titolo particolare” (mais concretamente, neste último caso entra em cena a tipicidade e para
que a pactuição passe o crivo deste princípio “è necessario, infatti, stabilire se la deviazione dal tipo
(previsto dal legislatore) (…) sia tale da produrre effetti (non previsti) a carico dei terzi”, concluindo que
este juízo requer uma avaliação a efectuar tendo em conta a ratio da tipicidade, ou seja, a tutela de
terceiros).
3167
A parte final do n.º 1 do art.º 1306.º estabelece uma conversão ope legis das restrições do direito de
propriedade ou a figuras parcelares deste, fora dos casos previstos na lei, em negócios com eficácia
meramente obrigacional. Todavia, discute-se se tal norma é aplicável a restrições ao direito de
propriedade (como defende Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 84 a 86 e que nos casos de direitos reais
menores “a conversão legal dependerá de o legislador indicar os termos concretos em que esta se pode
verificar” e, se assim não for, é ainda discutível se será plausível o recurso ao regime geral da conversão
vertido no art.º 293.º – responde negativamente o ult. Aut. e ob. cit., alegando que a conversão só se
poderia fazer para outra figura de direito real tipificada e não numa figura de cariz meramente
obrigacional, sob pena de violação do princípio do numerus clausus) ou, pelo contrário, deve abarcar as
restrições a quaisquer direitos reais (posição subscrita por Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., pág. 74 e
930
O nosso juízo, relativamente a esta matéria, é o de que se torna, antes de mais,
imperioso enumerar quais os elementos identificadores do tipo legal do penhor, para,
em seguida, avaliar até que ponto as modificações legais e/ou contratuais conflituam ou
não inapelavelmente com eles.
Parece-nos que, em termos aproximados, que tais elementos tendem a coincidir
com os três momentos de vida da garantia, ou seja, constituição (com a inerente
impossibilidade de o empenhante usar e dispor do bem onerado), operatividade
(momento no qual relevam os direitos e deveres das partes no decurso da relação
pignoratícia, bem como a eventual modificação dos objectos onerados) e extinção, mais
especificamente através da sua execução (avultando, nesta sede, a possibilidade de
execução extra-judicial e inadmissibilidade das convenções comissórias).
Relativamente aos penhores que prescindem da entrega material do bem ao
credor (ou a terceiro), limitamo-nos, neste lugar, a remeter para as considerações tecidas
anteriormente, das quais resulta a não incompatibilidade entre tais formas atenuadas de
desapossamento e o modo de constituição legalmente previsto, desde que asseguradas,
por meios alternativos à entrega ao credor, as funções desempenhadas pelo
desapossamento material do empenhante.
No que toca à execução, a leitura da proibição do pacto comissório (com a
consequente licitude das convenções marcianas), por um lado, e as limitações à
liberdade de modelação dos termos em que as partes podem modelar a alienação extra-
judicial do bem empenhado (com o limite principal decorrente, precisamente, da
ilicitude do pacto comissório), conduzem-nos a aceitar a licitude de formas alternativas
de execução do penhor, desde que cumpridos os requisitos elencados como condição de
validade do pacto comissório (rectius, marciano).
Finalmente, no que concerne ao funcionamento da garantia, a compatibilidade
de alteração do objecto imediato da mesma (em especial no âmbito de um penhor
rotativo), também já foi escalpelizada antecedentemente, pelo que, com as limitações
então enumeradas, também aqui não se nos afigura erguerem-se obstáculos
intransponíveis à sua harmonização com o regime legal do penhor (embora, em especial
nos penhores que não implicam o desapossamento material do constituinte, não se
ignore que alguns dos deveres assumem contornos específicos, particularmente no caso
do dever de conservação, que, nesses casos, ficará predominantemente a cargo do
empenhante e não do credor pignoratício).
Em suma, não obstante a introdução de tais adaptações, tendemos a considerar
que os penhores sem desapossamento material do empenhante (desde que este fique
privado da possibilidade de, autonomamente, dispor do objecto onerado e seja
assegurado um mínimo de cognoscibilidade da garantia), a modificação do seu objecto
imediato (desde que observados os pressupostos de validade das convenções rotativas e
quando não se verifique uma subversão significativa dos direitos e deveres recíprocos
das partes) ou a sua execução particular (cumpridos que sejam os requisitos do pacto
marciano), não conduzem à exclusão de tais figuras do domínio do instituto do penhor.
Importa, porém, esclarecer que a existência de uma regulamentação específica
não implica, por si só, o afastamento da qualificação de uma garantia como
segs. embora alertando para a circunstância de esta norma ter se sofrer uma interpretação restritiva, uma
vez que apenas terá natureza obrigacional “aquela que contenha os requisitos essenciais de substância e
de forma para tal exigidos” e criticando a circunstância da conversão legal prescindir da demonstração
das partes que o fim por elas perseguido seria, caso tivessem previsto a nulidade, o ínsito no negócio
convertido). Ambas as posições concordam, porém, com a cominação da nulidade para as restrições não
legalmente previstas a qualquer direito real (cfr. art.º 294.º).
931
pignoratícia,3168 podendo tal exclusão advir apenas da existência de aspectos que
contradigam o regime geral do penhor.3169
Esta necessidade de adaptação do regime tradicional do penhor é bem patente
quando a garantia incida sobre bens incorpóreos - como sejam o penhor de créditos,3170
de participações sociais e de bens escriturais, como a moeda e os instrumentos
financeiros - reclamando a natureza imaterial destes uma adaptação das normas do
instituto, designadamente no que concerne à sua constituição,3171 ao contrato de penhor
3168
Assim, Briolini, ob. cit., pág. 195, nota 35, afirmando que, não obstante as especificidades de regime
ditadas pelo quid específico sobre o qual recai a garantia (que, aliás, não excluem a aplicação, ao menos
analógica do regime geral do penhor), o titular de um penhor cujo objecto seja constituído por acções é
titular “di un dirittto reale tipico, sui cui connotati peraltro reagisce, ex art. 2352 c.c., l’ogetto del diritto
stesso, vale a dire la partecipazione sociale”.
3169
Maria Costanza, Valori mobiliari cit., pág. 1045 e segs., aponta como exemplo o penhor de valores
mobiliários, quando o contrato seja celebrado por uma sociedade de gestão desses valores
(devedor/empenhante) e um aforrador/financiador (credor), acordando-se que a este último, no termo do
prazo contratual, sejam restituídos aqueles mesmos valores, outros equivalentes ou o montante global da
soma emprestada, reservando-se aquela sociedade a faculdade de usar tais valores como garantia de
futuras operações - de acordo com a Autora, tal operação não atribui ao credor titular da garantia os
poderes próprios do penhor, uma vez que o devedor não vincula os títulos sobre os quais se reserva a
faculdade de disposição, para além de lhe assistir o direito de continuar a gerir os mesmos títulos no seu
próprio interesse, para a prossecução de interesses próprios e não do credor pignoratício: em suma, trata-
se de uma garantia atípica (pelo contrário, na hipótese mais comum de o penhor sobre idênticos títulos ser
constituído a favor de uma instituição de crédito onde os títulos serão depositados e em garantia de um
financiamento a um seu cliente, já estaremos perante uma garantia pignoratícia, pois aquela instituição
exerce funções de gestão do objecto da garantia, não no seu próprio interesse, mas sim no do seu
devedor): em alternativa, a Autora pondera considerar a prestação do mutuário como uma obrigação
alternativa, nos termos da qual se compromete a restituir ao mutuante o dinheiro recebido ou o
correspondente valor representado pelos títulos, admitindo que os títulos permanecem na propriedade da
sociedade mutuária, o que permite afastar a qualificação da fattispecie como penhor de coisa alheia.
3170
Excepto, eventualmente, os incorporados em títulos, nomeadamente à ordem e ao portador, porquanto
nestes a constituição da garantia discute-se se a constituição do penhor não obedecerá antes às regras
ditadas para o penhor de coisas corpóreas.
3171
O que implica afastar aquela perspectiva segundo a qual a imaterialidade, ao impedir qualquer
desapossamento efectuado com base na entrega material do bem, excluiria a natureza pignoratícia destas
garantias e, ao invés, adoptar uma outra de acordo com a qual o desapossamento não pode reduzir-se à
entrega material (sendo esta apenas um dos modos possíveis de realizar aquele), uma vez que “il n’est pas
de l’essence du gage avec dépossession de conférer au créancier un droit direct sur la chose. Celui-ci
dispose uniquement d’un droit sur la valeur (…). Quant au constituant, la remise matérielle lui fait
perdre les utilités de l’object du gage, sans pour autant opérer un transfert de ces utilités au créancier” -
Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., pág. 69 e segs.. Para mais desenvolvimentos, vide n.º 1.2.8 do Capítulo II.
932
(nomeadamente no que concerne à capacidade das partes,3172 ao objecto,3173 à sua
forma3174) e aos efeitos da garantia.
Relativamente a este último aspecto, o afastamento das regras ditadas para o
penhor evidencia-se com especial notoriedade no penhor de créditos, na fase anterior ao
vencimento do crédito garantido, pela imposição de obrigações ao credor3175 (cujo
incumprimento é civil e penalmente sancionado)3176 e, no momento em que esse
vencimento se venha a verificar, através da outorga de um direito de retenção (não
obstante a natureza não corpórea do quid onerado, a qual implica algumas
adaptações)3177 e do ius distrahendi (cuja implementação prática poderá ser
notavelmente simplificada, não apenas porque a venda executiva se apresenta muitas
vezes como inapropriada, como também na medida em que a proibição do pacto
comissório deverá ser relativizada).3178
Quando se conclua, então, que as alterações introduzidas numa determinada
garantia, ainda que formalmente apelidada de penhor, colidem com o tipo legal, cumpre
determinar quais as consequências que daí advêm, as quais variam consoante a alteração
do tipo legal tenha origem normativa ou, pelo contrário, fundamento convencional.
Desde logo, no primeiro caso estará afastada a (suposta) violação do princípio da
tipicidade dos direitos reais de garantia (ou, se se preferir, das causas legais de
preferência), pelo que a conclusão no sentido da não conformidade com o tipo legal do
penhor não implica a privação da oponibilidade do instituto a terceiros (cfr. art.º 1306.º,
n.º 1), uma vez que foi a própria lei a instituir uma (nova) causa legal de preferência.
Todavia, ainda que o legislador denomine a garantia especial criada como
penhor, quando se deva concluir (em face da inobservância dos traços cardeais do
penhor acabados de expor) pela incompatibilidade entre o regime legal especial e os
3172
A regra geral, segundo a qual qualquer sujeito que disponha da capacidade de disposição pode
empenhar um bem, mantém-se, embora necessite de ser adaptada ao penhor de apólices de seguro de vida
e de participações sociais. No primeiro caso e uma vez que o beneficiário adquire, desde a data da
celebração do contrato de seguro, um direito directo contra o segurador, que se consolida com a aceitação,
deve distinguir-se consoante o beneficiário tenha aceite (o que impede o subscritor de constituir um
penhor de créditos sobre a apólice, uma vez que esse direito entrou definitivamente no património do
beneficiário) ou não (caso em que o penhor de créditos será válido, mas implica a revogação do
beneficiário sob condição resolutiva do pagamento do credor: em caso de morte do subscritor, o credor
pignoratício poderá exercer os seus direitos sobre tal quantia, dado que tal capital fará parte do património
do subscritor e, depois de pago o credor, o remanescente será atribuído ao beneficiário da apólice) a
apólice.
3173
Nomeadamente no que concerne à maior abertura face à dação em penhor de bens incorpóreos
futuros, atenta a desnecessidade de existência e entrega material do bem a onerar e, por outro lado, a
relativa facilidade em preencher o requisito da determinabilidade destes bens incorpóreos futuros (vide n.º
5.2 do Capítulo II).
3174
Este desvio é particularmente importante naqueles ordenamentos que impõem, como condição para a
outorga da preferência pignoratícia, a redução a escrito do contrato de penhor (contendo uma suficiente
indicação do crédito garantido e do bem empenhado), a qual, é, por vezes, descartada ou aligeirada em
alguns penhores de bens incorpóreos, como acontece, no direito francês, com o penhor de créditos
profissionais (Loi Dailly), no penhor de créditos de mercados públicos e do penhor de contas de
instrumentos financeiros - Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 115 e 116. Curiosamente, no direito
português a regra tende a ser a oposta, ou seja, a não sujeição a forma escrita do penhor comum de coisas
corpóreas e, pelo contrário, a necessidade de redução a escrito de (pelo menos) alguns penhores que
incidam sobre bens incorpóreos – cfr., em especial, n.º 1.2.8 do Capítulo II.
3175
Acerca da especial configuração do dever de conservação, que impende sobre o credor pignoratício,
vide supra n.º 9.2.3 do Capítulo I.
3176
Conforme se fez referência anteriormente no texto e no n.º 5.1 do Capítulo I.
3177
Sobre o direito de retenção do credor pignoratício, vide supra n.º 9.2.1 do Capítulo I.
3178
Acerca das modalidades de execução do penhor de créditos e da sua relação com a proibição do pacto
comissório, vide supra n.º 8.3 do Capítulo I e n.º 4.3.4 do Capítulo II.
933
traços cardinais do penhor, tal significará, a nosso ver, a sua exclusão do âmbito do
penhor, mas sem que isso prejudique o direito de preferência do credor (ou outras
prerrogativas legalmente consagradas nesse regime especial), sendo a garantia
enquadrável no seio de outra com cujo tipo legal não conflitue insuperavelmente (v.g., a
hipoteca mobiliária) ou qualificável como penhor anómalo.
Relativamente às modificações contratuais, o panorama apresenta-se diverso,
porquanto a não observância dos elementos essenciais do tipo implicará, não apenas a
sua qualificação como atípica, mas, principalmente, a amputação da oponibilidade da
garantia criada (art.º 1306.º, n.º 1, parte final) e, desse modo, a perda do intuito
primordial que presidiu à sua criação (a sua invocação no âmbito do concurso de
credores).
Uma última questão, conexa com a anterior, prende-se com a circunstância de as
configurações que, embora se afastando de alguns aspectos laterais do tipo legal,
reentram naquele instituto o farão qua tale ou, ao invés e atendendo a tais
especificidades, deverem ser qualificados como penhores anómalos.
Em nosso juízo, as garantias que, não coincidindo integralmente com todas as
características do tipo legal do penhor, ainda são nele enquadráveis (nos termos
expostos), deverão ser apelidadas de penhor “tout court”, tanto mais que a recondução
destas figuras à órbita pignoratícia implica, como regra e sem prejuízo da existência de
regimes específicos, a respectiva sujeição ao regime geral do penhor (ao menos como
direito subsidiário).
A nosso ver, as garantias que extravasem o tipo legal do penhor serão
qualificáveis como atípicas, se criadas por convenção das partes (atendendo à ausência
de regulamentação legal), ou anómalas, se criadas por lei (ainda que, em qualquer dos
casos, sejam denominadas de “penhor”), pelo que para aquelas outras que, embora não
inteiramente coincidentes com o tipo legal do penhor, ainda sejam nele enquadráveis,
não merecerão qualquer qualificativo especial.
934
Capítulo IV – Natureza jurídica do penhor
3179
Neste sentido, Montel, Garanzia cit., pág. 744, acrescentando que “La garanzia reale nulla aggiunge
al contenuto del rapporto obbligatorio riguardo al quale assicura l’esecuzione: il creditore (…) non ha,
riguardo alla prestazione dovutagli, maggiore o diversi diritti di un qualunque creditore chirografario”.
3180
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 13 e segs., distingue, a este propósito, a garantia em sentido lato (a
qual pode ser definida como “o conjunto de meios sancionatórios a adoptar pelo estado, por intermédio
dos seus tribunais, contra o sujeito do dever jurídico, quando ele não cumpre espontaneamente na
observância do comportamento devido”) e as garantias das obrigações (traduzida na concessão ao credor
dos meios necessários para atingir os valores patrimoniais necessários ao cumprimento da obrigação),
podendo estas últimas ser subdivididas na garantia geral (o património do devedor) e nas garantias
especiais, englobando as reais e as pessoais.
3181
Como salienta Veiga Copo, La prenda de acciones cit., pág. 42, a um conceito mais amplo de garantia
(abrangendo “mecanismos que en puridad se tratan más bien, ya de nuevas obligaciones que se añaden a
las especificas y naturales de un contrato, ya de consecuencias que se derivan de la falta de realización
de la prestación”), contrapõe-se um outro mais restrito (nos termos do qual “el sistema general de
responsabilidad patrimonial se modifica en el sentido de aumentar la seguridad de que un acreedor verá
satisfecho su interés (…) cuando al acreedor se le concede un derecho prelatorio sobre determinados
bienes del deudor o eventualmente sobre bienes de un tercero”).
3182
Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 117 e segs., salienta “a univocità funzionale nel risultato pratico
perseguito tra pegno senza spossessamento e patto di riservatto dominio” e, em termos mais amplos,
afiança que “se, alle garanzie reali si vuole assegnare ancora oggi un ruolo preciso e qualificante come
categoria dogmática e concettuale, ocorre ricomprendere e rappresentarle secondo un concetto più
935
Contudo, este alargamento, porventura desmesurado, pode chocar com o
princípio da tipicidade das causas legais de preferência – ou, pelo menos, dos direitos
reais de garantia – conduzindo ao surgimento de garantias atípicas ou inominadas.3183
No seguimento do exposto anteriormente e da adopção de um entendimento
mais lato, poder-se-á distinguir entre as garantias reais propriamente ditas (as tipificadas
como tal) e aqueles outros institutos que, em vista da sua função, possam ser aqui
enquadráveis (a que poderemos chamar garantias impróprias).3184
Por outro lado, importa salientar que os efeitos produzidos pelas garantias se
manifestam em momento anterior à fase executiva (o mais relevante dos quais se
projecta face ao proprietário do bem empenhado ou face a terceiros, tendo por objecto a
abstenção de qualquer ingerência que possa comprometer a consistência da
garantia),3185 pelo que já antes desta data o crédito assistido de garantia tem um maior
valor face a outro quirografário e, paralelamente, o valor do bem sobre o qual incide a
garantia diminui em função do avolumar do crédito assegurado.3186
À dúvida inerente à própria noção de garantia real (e de direito real, conforme se
analisará em seguida), associa-se outra respeitante à eventual distinção entre essa figura
e a dos direitos reais de garantia, embora tais interrogações tendam a esbater-se
relativamente ao penhor (e à hipoteca), tradicionalmente incluídos na órbita das
garantias reais e, simultaneamente, dos direitos reais de garantia.3187
ampio (…) arrichito con quelli strumenti e quelle tecniche contrattuali che, pur operando nel contesto
degli schemi tradizionali, sappiano privilegiare, di questo tipo di garanzia, il profilo della funzione in
concreto perseguita”. Carlos De Cores e Enrico Gabrielli, Il pegno cit., págs. 42 e 43, contestam o
entendimento daqueles que excluem da órbita das garantias reais as “propriedades-garantia” (com o
argumento que, por permitirem ao seu beneficiário escapar ao concurso de credores – existindo uma
incompatibilidade entre a exclusão do concurso e a noção de direito de preferência - não beneficiam do
atributo da preferência), contrapondo este tipo de garantias desempenha a mesma função – assegurar o
cumprimento de uma obrigação - das tradicionais.
3183
Vide, a este respeito e por todos, Gabrielli, Il pegno anomalo cit., pág. 124, mostra-se favorável à
criação convencional de outras garantias reais além das previstas na lei, desde que não conflituem com
princípios de ordem pública, enraizando tal conclusão no “ampio potere creativo che l’ordinamento
riconosce ai privati nel porre in essere regolamenti di interessi meritevoli di tutela”.
3184
Aflora esta questão, Lisanti-Kalczynsky, ob. cit., págs. 12 e 13, destacando como, no direito francês,
se aceita, de um modo geral, que figuras como o direito de retenção, a propriedade fiduciária e o direito
de retenção constituam “garanties”, embora se duvide que as mesmas integrem o conceito mais restrito
de “sûreté”, sendo que mesmo esta última noção é controvertida, opondo-se os partidários de uma
perspectiva mais restrita (de acordo com a qual “les sûretés sont des mécanismes qui ne peuvent être
utilisées à d’autres fins”), aos apoiantes de uma concepção funcional (que atende, primordialmente, à
finalidade de garantia perseguida pelos diversos institutos), passando pela posição intermédia de alguns
outros (sugerindo que a qualificação – ou não – como “sûreté” não será automática, devendo ser analisada
caso a caso).
3185
Segundo Montel, Garanzia cit., págs. 744, haverá que distinguir uma fase substancial do penhor – que
vai desde o seu surgimento até à eventual execução da garantia – e uma fase processual, que se traduz
precisamente nessa execução. Ora, a obrigação de abstenção de terceiros existe desde a fase substancial e
constitui “il necessario e logico pressuposto per il conseguimento degli effetti processuali che si
ricollegano al rapporto di garanzia”, até porque “La dazione della cosa al creditore per sicurezza fa sì
che su tale cosa il creditore abbia una sicurezza garantita, cioè un diritto che egli possa difendere erga
omnes. E questo diritto egli l’ha nel periodo in cui la sicurezza ha raggione d’essere; una volta estinto il
cerdito, si estingue anche il diritto di garanzia e la cosa deve essere restituita”.
3186
Assim, Montel, Garanzia cit., págs. 744 e 745, concluindo que o penhor e a hipoteca “implicano
anzitutto un rapporto di diritto sostanziale; e che soltanto in un secondo momento alla posizione di
soggetto attivo di siffatto rapporto si ricollegano i noti effetti processuali”.
3187
Por exemplo, para o direito espanhol, Candido Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., págs. 1858 e 1859, a
respeito dos art.ºs 1857.º a 1862.º do CCE – comuns ao penhor e à hipoteca -, realça o reconhecimento
unânime, doutrinal e jurisprudencialmente, destas figuras como garantias reais (entendidas estas como a
sujeição de um bem concreto para assegurar o cumprimento de uma obrigação) e a inclusão de todas estas
936
A este respeito, advogamos que os conceitos de garantia real e direito real de
garantia não são equipolentes, não sendo as expressões necessariamente sinónimas, uma
vez que, embora ambas produzam como efeito o reforço da posição do seu titular (no
sentido de lhe conferirem uma direito preferencial de satisfação sobre um determinado
bem) – ou, caso se prefira, atribuam um direito de preferência - nalguns casos
encontram-se ausentes alguns elementos que concorrem para a qualificação como
direito real: quando assim for, restará a sua integração na noção, mais ampla, de
garantia real.3188
De entre esses elementos, destacam-se a ausência de sequela e a especialidade
do objecto do direito, normalmente ausentes nas garantias que recaem sobre bens
fungíveis ou sobre um conjunto mais ou menos indeterminado de bens (como sucede
com as garantias que incidam sobre universalidades ou com os privilégios creditórios
gerais).3189
no âmbito dos direitos reais, manifestando-se a realidade pela inerência e consequente oponibilidade
(independentemente do património em que o bem se encontre), pela concessão do ius distrahendi (mesmo
contra a vontade do proprietário do bem onerado), pela preferência (entendida como excepção ao
princípio da igualdade entre os credores) e pelas faculdades de que dispõe o seu titular para defender a
integridade do seu direito na fase de segurança – prévia à execução – da garantia.
3188
Salienta esta não identificação entre os dois conceitos Maiorca, ob. cit., págs. 206 e 207, (a respeito da
hipoteca, mas com inteira aplicação ao penhor), clarificando que, tanto as garantias reais como os direitos
reais, concedem aos seus titulares um direito de execução preferencial sobre determinados bens, mas
apenas os segundos atribuem a salvaguardam a possibilidade de, em qualquer caso, a execução incidir
sobre os precisos bens objecto da garantia. Por seu turno Cruz Moreno, ob. cit., pág. 1271, escreve que é
“mucho más aclaratorio hablar de garantías reales en sentido amplio para poder comprender dentro de
ellas a las garantías que no constituyendo derechos reales no son garantías personales”, apontando
como exemplo o penhor de créditos.
3189
Vide o nosso Dos privilégios cit., pág. 431 e segs. (no qual salientámos que, ao não incidirem sobre
bens certos e determinados, os privilégios gerais não se conformam com o princípio da tipicidade dos
direitos reais, não obstante a inequívoca preferência que conferem aos respectivos titulares, pelo que
pertencerão às causas legais de preferência (garantias reais), mas não são integráveis no âmbito dos
direitos reais de garantia), Orlando de Carvalho, ob. cit., págs. 220, 221 e 370, Penha Gonçalves, ob. cit.,
págs. 200 e 201 (argumentando que tal facto é confirmado pela inoponibilidade a terceiros adquirentes
dos bens sobre os quais recaiam – cfr. art.º 749.º – e acrescentando que mesmo se passa com o penhor de
créditos), Mota Pinto, ob. cit., pág. 76, Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 159 (fundando a sua posição na
ausência da característica da inerência, uma vez que recaem sobre o património do devedor em geral e
não, como os direitos reais, sobre bens certos e determinados) e Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, ob.
cit., pág. 209. Particularmente enfático, a este respeito, se mostra Maiorca, ob. cit., págs. 206 e 207,
apontando como exemplo de garantias reais que não são direitos reais os privilégios creditórios (uma vez
que “il diritto preferenziale privilegiato non porta con sè la certezza di trovare tra i beni del debitore
quello su cui può esercitarsi l’esecuzione a preferenza di ogni altro creditore”- enquanto o titular de um
direito real “non deve preocuparsi si questa cosa sia o non sia al momento dell’esecuzione tra i beni del
debitore o, in genere, nelle condizioni pressuposte dalla legge per l’esercizio di ogni data esecuzione
preferenziale. Il diritto reale (…) assicura la cosa all’eventuale diritto di esecuzione preferenziale del
creditore che si è procurato tale diritto reale”, considerações estas válidas para os privilégios gerais e, de
acordo com o Autor, mesmo para os privilégios especiais para os quais a lei exija a existência ou
manutenção de um determinadas situação – nomalmente a posse pelo credor – porquanto aqui “Non
oggetti che si trovano in casa o in genere in possesso del creditore al momento dell’indampimento
vengono colpiti dal diritto di esecuzione pignoratizia, ma quegli oggetti che siano stati dati in garanzia e
a questo titolo si trovano presso il creditore. Viceversa, nei privilegi vengono colpiti dal diritto di
esecuzione non oggetti qualsiasi in quanto dati in garanzia, ma proprio alcuni speciali oggetti indicati
dalla legge se ed in quanto si trovino in determinata collocazione, che può essere nella sfera del
creditore, ma anche in quella del debitore o di un terzo”: em suma, “Nei diritti reali di garanzia v’è una
previa situazione giuridica che nei privilegi manca. Sino al momento della esecuzione possono essere di
fatto mutate le condizioni dell’esecuzione privilegiata”) e o direito de retenção (no qual “potrebbe
rilevarsi una relazione con la cosa; ma da ciò a parlare di diritto reale, il passo non è breve, salvo ad
ammettere che ogni rapporto tra un soggetto e una cosa sia un diritto reale, il che nessuno può
ammettere (…) Poichè nei casi della c.d. ritenzione manca in línea di massima al possessore il diritto di
937
Nesta conformidade, haverá institutos integráveis no âmbito mais lato das
garantias reais (e que, por isso, atribuem ao respectivo titular uma posição de primazia
no confronto com os demais credores do devedor) que não se enquadrem no conceito
mais restrito de direitos reais de garantia, nomeadamente por não se traduzirem num
poder directo e imediato sobre uma coisa e/ou por não incidirem sobre coisa certa e
determinada, isto é, por não respeitarem o princípio da especialidade dos direitos reais
(é o que sucede, pelo menos na opinião de alguns, com os privilégios creditórios
gerais).3190
1.1 - O penhor como garantia real e direito real de garantia: a regra e os casos
duvidosos
esecuzione sulla cosa, è perfettamente chiaro che nessuna situazione giuridica specialmente qualificata
dal lato del possessore. In particolare, non sussiste quella difesa reale”). No direito italiano, vide
Leonardo Coviello, Delle ipoteche nel diritto civile italiano, 2,ª Edição, Società Editrice del Foro Italiano,
Roma, 1936, pág. 4 e segs., realçando como, uma vez que todos os credores – mesmo os quirografários –
dispõem do poder de executar os bens que pertençam ao património do devedor, os traços distintivos dos
direitos reais de garantia residem nos atributos de sequela e de preferência. Todavia, não se poderá
identificar os direitos reais de garantia com os direitos que atribuem uma preferência, isto é, “I diritti reali
di prelazione possono essere conseguenza del diritto reale di garanzia, ma possono esistere
indipendentemente da esso: possiamo cioè avere diritti di prelazione che non siano nello stesso tempo
diritti reali di garanzia”).
3190
No caso daqueles institutos que podem ser utilizados com funções de garantia – maxime os que
recorram ao uso do direito de propriedade com esse intuito – a exclusão dos direitos reais de garantia
poderá assentar, desde logo, na circunstância de o modus operandi de tais figuras prescindir da atribuição
da própria preferência – à qual é inerente um potencial concurso como outros credores, quirografários ou
munidos de outras garantias, sobre os mesmos bens -, porquanto permitem ao seu titular furtar-se ao
concurso de credores.
3191
Mesmo aqueles Autores (como Luís Pinto Coelho, ob. cit., pág. 51 e segs.) que recusam ser o atributo
da preferência uma nota característica dos direitos reais (alegando que a preferência pressupõe
concorrência e conflito e há inúmeras figuras de coincidência de direitos sobre a mesma coisa que não
originam qualquer conflito e, ademais, que em caso de constituição de vários direitos incompatíveis entre
si sobre o mesmo bem – v.g. a venda do mesmo bem a dois sujeitos – “não há uma preferência
constituída a favor de um direito; o que há é a resolução de um conflito entre duas situações diversas, um
direito e um não direito (…). Ora, a primeira venda tirou logo eficácia a uma possível segunda venda,
pois (…) a transmissão da propriedade da coisa se dá no próprio momento da celebração do contrato”),
reconhecem que o é nos direitos reais de garantia, conforme se alcança, em termos inequívocos, em caso
de constituição de várias garantias sobre o mesmo bem a favor de sujeitos diversos.
3192
Mesmo nestes ordenamentos, como o espanhol, Veiga Copo, La prenda de acciones cit., págs. 54 e 62
a 64, destaca como a presença dos atributos da preferência (embora recusando a identificação entre
garantia e preferência, alegando o carácter instrumental e reforçante desta em relação àquela, sublinhando
que a garantia assume relevância interna – na relação entre as partes no negócio de constituição da
garantia - , enquanto a prelação se projecta externamente, no que concerne ao “regimén de la circulación
de los derechos: oponibilidad del título, solución de los conflictos de intereses entre constituyente,
acreedor y terceros”) e da sequela contribuem para a inclusão do penhor na categoria das garantias reais.
Todavia, o Autor salienta que para a qualificação como direito real importa ainda atender ao princípio da
938
Concorrentemente, a limitação (ou exclusão) do direito de sequela sobre bens
móveis (ao menos sobre os corpóreos) decorrente do princípio da posse vale título – que
origina, no direito francês, o adágio “meubles n’ont pas de suite par hypothèque”3193 –
não vale igualmente para o nosso direito, atento o não acolhimento de tal princípio entre
nós.
Mesmo quanto à chamada imediação (entendida como relação directa entre o
titular do seu direito e o respectivo objecto, sem intermediação de nenhum outro
sujeito), dir-se-á que, de todas as garantias, o penhor é aquela em que a imediação
melhor se manifesta, pois o credor, em regra e por força da necessidade de
desapossamento do empenhante, encontra-se em contacto directo com o objecto do seu
direito.
Com efeito, se à existência daqueles elementos associarmos o facto de, ao
constituir uma afectação de determinados bens do devedor ou de terceiro ao pagamento
preferencial de certos créditos,3194 o penhor será enquadrável na categoria das garantias
reais, e dos direitos reais de garantia.
Se, no decurso das considerações anteriores, à partida o penhor será integrável
nas noções de direito real e de garantia real, cabe avaliar se, nomeadamente em razão da
especificidade de alguns dos objectos da garantia, esta dupla qualificação não carecerá
de ser reavaliada.
Assim, somos de parecer que os penhores sobre universalidades3195 e sobre bens
fungíveis, por força da ausência de identificação concreta dos bens sobre que incidem -
e, pela mesma razão, da sequela sobre os concretos bens que, em cada momento,
especialidade, o qual limita os poderes do credor a certos e determinados bens. No mesmo sentido para o
direito francês, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 413 e segs., explicando que preferência e sequela são
consequência da alienação do valor económico do bem empenhado operada aquando da constituição da
garantia.
3193
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 420 e segs., dá conta da incerteza da qualificação do penhor como
direito real, precisamente em razão desta mesma regra, relatando que a doutrina clássica apelida o penhor
de “direito real imperfeito”, uma vez que o direito de sequela apenas poderá ser exercido contra um
possuidor de má fé ou em caso de perda ou furto do bem empenhado. O Autor critica tal definição –
desde lodo contrapondo que o adágio citado no texto significa apenas a impossibilidade de as hipotecas
recaírem sobre bens móveis – procurando demonstrar que, em caso de dissipação jurídica, a posição do
credor pignoratício é equiparável à do hipotecário (podendo exercer o seu direito contra o terceiro
adquirente, salvo em caso de venda executiva promovida por outros credores do devedor, caso em que o
credor não terá outro remédio senão o de se fazer pagar, com preferência, pelo preço obtido) e, ainda, que
em caso de dissipação física estará na mesma situação do proprietário de bens móveis, isto é, se a posse
do bem houver passado para um terceiro, não poderá o credor promover a venda do bem, nem tão pouco
reclamar a devolução da posse: pelo contrário, poderá exercer o direito de seguimento contra um
possuidor de má fé (ou seja, que tivesse conhecimento do penhor no momento da aquisição do seu
direito) e contra um de boa fé em caso de furto ou perda do bem e contra um simples detentor. Já Luís
Pinto Coelho, ob. cit., pág. 39, relata que, nas ditas ordens jurídicas onde vigore o princípio da posse vale
título, se discute se o titular do direito preterido conserva o seu direito mas não dispõe de uma acção para
o fazer valer ou se, pelo contrário, o tal direito se terá extinto)
3194
E que correspondem, pelo menos, às causas de preferência legalmente enumeradas no n.º 2 do art.º
604.º, a saber, consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.
3195
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 390 e segs., admite que as universalidades de facto compostas
unicamente por coisas corpóreas possam ser objecto de direitos reais (caso contrário, a resposta será
idêntica à dada a respeito da susceptibilidade de direitos reais sobre bens incorpóreos). Já relativamente às
universalidades de direito – entendidas como patrimónios autónomos – e apesar de noticiar a existência
de diversas vozes no mesmo sentido (seja concebendo uma relação de propriedade entre a pessoa e o
património - embora, por vezes, sustentando que o único direito real que possa incidir sobre o património
seja a propriedade -, seja sufragando a existência de direitos reais gerais sobre um conjunto de coisas e
sobre conjuntos de direitos), o Autor mostra-se desfavorável à sua inclusão na órbita dos direitos reais,
pelas mesmas razões que levam ao repúdio da tese dos direitos sobre direitos.
939
compõem a garantia3196 -, se enquadrarão no seio das garantias reais, mas já não na
categoria dos direitos reais de garantia3197 (inversamente e não merecendo tal posição o
nosso assentimento, não falta quem, precisamente a respeito do penhor, sustente o
contrário, ou seja, o qualifique como direito real de garantia, mas negue a sua integração
na órbita dos direitos reais).3198
Aliás, não é de excluir liminarmente o direito de sequela sobre as próprias
universalidades, faculdade esta atribuída expressamente em alguns diplomas
estrangeiros que regulamentam as garantias sobre o estabelecimento comercial
(admitindo, o que se nos afigura muito discutível, conforme se explanou anteriormente,
que estas garantias configurem verdadeiros penhores).3199
Ou seja, o tipo legal de penhor carece, por força da grande amplitude de objectos
que podem ser onerados, de uma conformação em razão das particularidades do quid
empenhado, de modo que normalmente a figura se enquadrará no âmbito dos direitos
reais (por recair sobre coisas certas e determinadas e, ademais, atribuir ao seu titular as
faculdades, maxime a sequela e a preferência, a estes inerentes), mas, excepcionalmente
e quando aquelas especificidades não o consintam, ficará o penhor privado daqueles
elementos incompatíveis com a natureza do objecto onerado.
Diga-se, aliás, que a integração ou exclusão de uma garantia da categoria dos
direitos reais (de garantia) em função da natureza dos objectos onerados nem sequer é
privativa do penhor, verificando-se igualmente, por exemplo, no âmbito dos privilégios
creditórios, uma vez que a generalidade da doutrina reserva a qualificação de ius in re
para os privilégios creditórios (mobiliários ou imobiliários) especiais, com exclusão dos
gerais.3200
3196
Realça este aspecto, Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 62, considerando serem estas garantias
frágeis para o credor, por força da ausência do direito de sequela, ausente em razão de o quid onerado ser
constituído por uma quantidade abstracta e flutuante de bens. Também Cabrillac e Mouly, Droit des
sûretés 2010 cit., pág. 560, negam a atribuição de um direito de sequela (admitindo apenas a
reivindicação contra terceiros cuja posse tivesse sido adquirida de má fé), pois, no que respeita ao penhor
de universalidades, a possibilidade – ínsita neste tipo de garantia - de o constituinte alienar e substituir os
bens que as compõem “exclut un droit de suite sur chaque élément de l’universalité” (embora não
excluam o direito de reivindicação sobre a própria universalidade) e, no que concerne ao penhor de bens
fungíveis, o direito do credor incide sobre “une quantité abstraite de biens d’une qualité donnée”, factor
este que exclui igualmente qualquer direito de seguimento.
3197
Quando muito, poderemos falar, parafraseando Cabrillac e Mouly, Droit des sûretés 2010 cit., pág.
560, de um direito real (não em sentido estrito, uma vez que este postula um objecto determinado, por
força do princípio da especialidade) sob condição suspensiva (sendo a especificação do objecto da
garantia o evento futuro e incerto), isto é, subordinado à execução da garantia (momento em que a
especificação do objecto onerado se torna imperiosa, em virtude da necessidade de separar os elementos a
alienar dos demais do mesmo género propriedade do executado), mas cuja oponibilidade retroage à data
da constituição da garantia.
3198
É o caso de Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 365 e segs. (a respeito da hipoteca, mas como o próprio
reconhece, com considerandos extensíveis às demais garantias reais), para quem tal garantia não confere
um verdadeiro poder sobre a coisa, apoiando-se nos seguintes argumentos: que o credor pignoratício não
dispõe de nenhum direito sobre a coisa (apenas sobre o seu valor); que a alienação do bem onerado – em
proporção do quantia garantida - em caso de incumprimento é inconciliável com o conceito de garantia
(porque este último envolve a intenção de o devedor não querer alienar a coisa onerada); que a
possibilidade de excutir um que bem se encontre em poder de terceiro se deve ao poder de sequela (e que
este é o complemento natural do direito de preferência); finalmente, que a circunstância de o credor não
poder penhorar outros bens enquanto não sejam excutidos os onerados se deve à proibição de o credor
prejudicar o devedor e os outros credores (onerando bens desnecessários ao seu pagamento).
3199
O que conduz até alguns a admitir que a natureza de coisa (composta) do estabelecimento comercial e
a considerá-lo passível de qualquer direito real, incluindo de garantia – para mais desenvolvimentos, vide
supra n.º 3.5 do Capítulo I.
3200
Vide, por todos, o nosso Dos privilégios cit., pág. 431 e segs..
940
Em qualquer dos casos, mesmo quando o penhor incida sobre bens fungíveis ou
universalidades, fica sempre a salvo a preferência atribuída ao credor pignoratício, a
qual retroage à data da constituição da garantia, embora condicionada (salvo pacto de
rotatividade ou outra convenção análoga) à manutenção de tais bens ou de outros
análogos na disponibilidade do empenhante no momento da execução da garantia.3201
Aliás, como forma de compensar esta amputação do direito de sequela, a
garantia passa a incidir sobre os bens que, entretanto, passem a fazer parte da
universalidade (até mesmo na ausência de qualquer estipulação nesse sentido),
revestindo-se a garantia de uma conotação predominantemente flutuante.3202
Analogamente, quanto aos bens fungíveis a sua substituibilidade decorre da
própria noção de fungibilidade, uma vez que o interesse das partes se dirige, não a um
determinado bem, mas antes a uma determinada quantidade de um dado género de
coisas, destarte consentindo que um bem seja comutado por outro sem prejuízo para os
envolvidos no negócio (conquanto as partes possam, nomeadamente para segurança do
credor, estipular a obrigatoriedade de manutenção de uma determinada quantidade
destes bens).3203
As principais consequências práticas que decorrem desta diferenças são, por um
lado, o facto de, nestes penhores, o credor não se poder opor aos actos de disposição (ou
aos direitos de terceiros decorrentes desses actos), podendo apenas agir contra o
empenhante, imputando-lhe responsabilidades pelos prejuízos causados (sobretudo
quando a lei interdite a alienação sem o consentimento do credor); por outro lado e
consequentemente, nestes penhores e em caso de execução, a garantia incidirá sobre os
bens que, de dentre aqueles compreendidos no âmbito do penhor, se encontrarem no
património do empenhante nessa data (não podendo, por isso, abarcar aqueles entretanto
objecto de disposição, mas, ao invés, incidindo sobre outros entretanto reentrantes
naquele património).
A menor relevância que os concretos bens onerados assumem, no âmbito das
garantias sobre bens fungíveis, conduzem à sua qualificação como penhores irregulares,
podendo a sua exclusão do âmbito dos direitos reais advir, sobretudo de uma
perspectiva externa,3204 da aproximação desta garantia aos negócios fiduciários e até a
outros contratos,3205 muito embora tal equiparação suscite algumas reticências.3206
3201
Este é um aspecto em que o penhor, mesmo quando incida sobre universalidades e bens fungíveis (e,
por isso, não seja qualificável como direito real, mas tão somente como garantia real), se afasta dos
privilégios creditórios gerais, porquanto estes, nos termos do art.º 749.º, cedem perante qualquer causa
legal de preferência constituída em momento anterior àquele em que o privilégio é invocado (o que
significa, na prática, a cedência perante qualquer garantia real, com a eventual excepção da penhora). Ao
invés, a preferência pignoratícia opera, conforme exposto no texto, com efeitos retroactivos sobre os bens
onerados (ou sobre outros da mesma quantidade e espécie – no caso de bens fungíveis - ou aqueles que
integrarem a actual configuração da universalidade empenhada, tratando-se de um penhor de
universalidades). Esta diversidade de regimes pode explicar-se, em nosso entender, pela circunstância de
o privilégio geral abarcar uma quantidade indeterminada (e indeterminável) de bens, enquanto o penhor,
mesmo quando incida sobre bens fungíveis ou universalidades, possui um mínimo de determinabilidade
quanto ao objecto onerado, destarte escapando ao rótulo de garantia genérica e que, por isso, deveria ser
postergada por todas aquelas com um objecto ao menos determinável (acessoriamente, a diferença de
regime também se pode ancorar na natureza totalmente oculta dos privilégios creditórios face à
publicidade, imperfeita é certo, inerente à constituição do penhor).
3202
Sobre este assunto, vide n.º 3.1 do Capítulo II.
3203
Jean-François Riffard, ob. cit., pág. 62, relata mesmo que alguns regimes legais de garantias sobre
bens fungíveis (como o warrant petrolífero) impõem essa necessidade de manutenção de um nível
mínimo de bens onerados igual à quantidade acordada, sancionando o não cumprimento desta obrigação
com a consumação do crime de descaminho de bens.
3204
De acordo com Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 326 e segs., esta perspectiva externa é igualmente
visível no penhor comum, no qual “estamos perante uma situação em tudo análoga àquela que
941
Esta posição parece sair reforçada pela expressa concessão ao credor
pignoratício do direito de dispor, sob determinadas condições, dos bens onerados, como
sucede no âmbito do regime do penhor financeiro,3207 apesar de, mesmo nesse domínio,
a doutrina não ser unânime quanto à qualificação a atribuir a semelhante garantia.3208
encontramos no negócio fiduciário, já que se verifica, por via de regra, a entrega do bem empenhado ao
credor pignoratício, o qual, perante terceiros, terá uma posição similar à do proprietário do bem, já que
não existe forma indirecta de controlar a titularidade do bem, em virtude de não existir um sistema de
publicidade capaz de informar sobre a situação do bem. Tal situação fica igualmente facilitada pelo
facto de o regime legal do penhor, por via de regra, dispensar a redução a escrito do contrato, o que
permite afirmar que, em algumas circunstâncias, o penhor surgirá como uma garantia oculta, em função
de os restantes credores não poderem controlar as onerações a que o bem está sujeito”.
3205
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 338 e segs., recusa a identificação do penhor irregular com o mútuo
(embora aceite que ambos partilham a transferência da propriedade, a função de garantia do penhor
permite autonomizá-lo) e com o depósito irregular (dele se distinguindo pelo facto de neste apenas se
pretender assegurar a custódia do bem, sem qualquer função de garantia). Todavia, frequentemente
acontece que o depósito irregular bancário pré-existe relativamente à constituição do penhor irregular e,
nestes casos, a função de custódia típica do depósito é suplantada pela função de garantia inerente ao
penhor, de modo que o credor pignoratício poder-se-á satisfazer, em caso de incumprimento, através do
mecanismo da compensação (ou seja, estaremos em presença de dois contratos justapostos – depósito e
penhor irregulares – ligação esta que “fica obnubilada pela função de garantia perseguida pelo penhor
irregular, na medida em que a transferência da propriedade das coisas dadas em garantia ocorre para
possibilitar a realização da garantia, que fica sobremaneira facilitada pela legitimação para operar a
dedução das quantias devidas, não estando obrigado a recorrer ao processo executivo de cariz
judicial”).
3206
Nega que o penhor irregular seja um negócio fiduciário Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 328,
considerando que, no esquema contratual daquela figura, “a faculdade de apropriação – tendencialmente
cristalizada e efectivada através da previsão de mecanismos de compensação – não passará de uma
faculdade conferida ao credor, situação que, julgamos, impedirá a qualificação deste contrato como
negócio fiduciário” (neste contexto, o Autor conclui que o penhor – e o penhor irregular também - é uma
verdadeira garantia real, apresentando apenas uma analogia material com os negócios fiduciários).
3207
Sobre este assunto, vide supra n.º 1.2.8.4 do Capítulo II.
3208
Para Calvão da Silva, ob. cit., pág. 208, “a novel legislação considera regular o chamado penhor
irregular, não raramente praticado: entrega em penhor de objectos fungíveis (dinheiro ou títulos de
crédito), com o credor a adquirir a disponibilidade e tornar-se devedor da restituição do tantundem”.
Pelo contrário Diogo Macedo Graça, ob. cit., págs. 48 e 49, considera estarmos “na presença de um
penhor irregular (…) que se consubstancia na entrega em penhor de dinheiro ou títulos de crédito e
através do qual o credor adquire a disponibilidade e o poder de se tornar devedor de restituição do
tantundem. O titular da garantia pode alienar ou onerar o objecto dado em garantia, não obstante
inexistir ainda uma qualquer situação de incumprimento”. Margarida Costa Andrade, ob. cit., pág. 20 e
segs., questiona se, uma vez conferido ao credor pignoratício o direito de disposição dos bens onerados,
não se estará, na realidade, a transferir a própria propriedade dos mesmos, respondendo negativamente,
tendo em conta “a contraposição entre a alienação fiduciária em garantia e o penhor financeiro ser feita
pelo legislador em função de haver ou não transferência da propriedade com função de garantia: é
característica do primeiro, mas não do segundo” (pelo que, se as partes pretenderem tal transferência,
recorrerão à alienação em garantia e não ao penhor) e, por outro lado, porque “quando o legislador se
refere ao poder de disposição do credor recorre à expressão “como se fosse proprietário”: ora, quem
actua como se fosse não é proprietário” e, por último, “não há transferência da propriedade com a
concessão do direito de disposição, logo porque, se o credor nunca o exercer, também o devedor se
mantém proprietário ao longo de toda a vigência do contrato”. Todavia, em caso de exercício efectivo do
direito de disposição, por parte do credor pignoratício, o panorama altera-se significativamente, podendo
o devedor exigir do credor bens equivalentes aos alienados até ao momento do cumprimento da obrigação
garantida, sendo entendido como proprietário dos valores mobiliários equivalentes desde o momento da
constituição da garantia (art.º 10.º, n.º 3): em termos mais claros, uma vez exercido o direito de
disposição, “o devedor pignoratício perde a propriedade e torna-se titular de um direito de crédito, só
regressando à posição de proprietário com o cumprimento da obrigação do tantundem (portanto, sobre
bens diferentes daqueles que entregou ao credor (…) o devedor perde a propriedade e, por isso, o poder
de reivindicar junto do terceiro que tenha adquirido o bem empenhado ou que seja detentor por força de
constituição de uma garantia pelo credor pignoratício financeiro, estando apenas habilitado a exigir do
942
As dúvidas acerca da natureza pignoratícia do penhor irregular advêm,
precisamente, do direito de propriedade pretensamente adquirido pelo credor
pignoratício relativamente aos bens empenhados, podendo utilizá-los como bem
entenda, em claro contraste com as normas que regulam o penhor, as quais postulam a
manutenção da propriedade dos bens empenhados no autor do penhor, embora a sua
qualificação como garantia fiduciária não obste, inelutavelmente, à sua inclusão no
âmbito das garantias reais, ao menos se a este conceito for atribuído um significado
funcional, de maior amplitude.
Daí o surgimento de posições distintas,3209 uma delas enquadrando o penhor
irregular na órbita do instituto pignoratício, como um sub-tipo deste;3210 uma outra,
credor o cumprimento da obrigação de restituição do equivalente, sem poder, portanto, actuar junto de
terceiro (…) de proprietário pleno e desonerado passa a proprietário não detentor onerado com um
penhor, para depois passar (eventualmente, embora) a titular de um direito de crédito, junto do seu
próprio credor e (ainda eventualmente) terminará como proprietário de pleno de instrumentos
equivalentes como se do seu património nunca tivessem saído”. Em suma, esta Autora (pág. 26 e segs.),
depois de negar que o penhor financeiro possa ser qualificado como um negócio em que o credor actua
como representante do devedor (uma vez que, quando o credor pignoratício aliena ou onera o bem
empenhado, fá-lo em nome próprio e por conta própria, isto é, “aliena ou onera, porque é titular de um
direito de disposição sobre os instrumentos financeiros empenhados – o poder que exerce é seu, é
exercido em seu próprio nome, para benefício próprio, nas condições que considerar mais indicadas
para a sua actividade negocial”) ou como um vendedor numa relação de consignação (pois “enquanto no
penhor financeiro o devedor pignoratício recebe capital logo no primeiro momento, na consignação o
fornecedor só o recebe no momento final; e este capital é em forma de dinheiro, ao passo que o devedor
pignoratício tem direito de exigir bens equivalentes aos onerados e só em caso de cumprimento da
obrigação garantida”), ou ainda que estejamos perante um sub-penhor (uma vez que o credor
pignoratício não é proprietário do bem empenhado) ou um penhor de bens perecíveis (não apenas porque
os instrumentos financeiros não integram tal categoria, mas também tendo em conta que o regime ditado
em alguns ordenamentos para a alienação deste tipo de bens não se coaduna com as especificidades dos
instrumentos financeiros), esclarece que, apesar das similitudes (por serem ambos contratos reais quanto à
constituição e quanto aos efeitos; por terem como objecto bens fungíveis, facilmente avaliáveis em
dinheiro e passíveis de substituição por equivalente; e em razão de o garante se tornar titular de um direito
de crédito à restituição de um objecto análogo ao originariamente empenhado), também não deverá ser
qualificado com um penhor irregular (uma vez que, no penhor financeiro, se não produz a transferência
da propriedade para o credor pignoratício, para além de esta garantia implicar a identificação do quid
onerado – art.º 7.º, n.ºs 2 e 3 – “pelo que não pode haver qualquer confusão entre os bens que são
empenhados e entregues ao credor pignoratício e os que no património deste já existissem
eventualmente. Aliás, se assim não fosse, deitar-se-ia logo por terra a qualificação do penhor financeiro
como direito real de garantia por violação do princípio da especificação (os direitos reais incidem
sempre sobre coisas certas e determinadas, ainda que fungíveis). São, pois, perfeitamente identificados
no património do beneficiário da garantia os valores mobiliários que são propriedade do devedor, não
havendo, por isto, transmissão da propriedade por confusão”), sendo antes mais um penhor dotado de
um regime especial (uma vez que, mesmo sendo pactada a concessão ao credor pignoratício do direito de
disposição, “o devedor é proprietário de um bem certo e determinado (desde o momento da celebração
do contrato de garantia financeira) e o credor é titular do direito de executar esse bem para ressarcir-se
do incumprimento da obrigação garantida (desde a data da celebração do acordo de garantia financeira
e mesmo que a coisa empenhada desde tal momento não tenha mais parado na detenção do devedor)
(…). O facto de, antes do momento do vencimento, ter tido o poder de disposição em nada altera a
natureza jurídica do direito – o que até é confirmado pela obrigação de restituição. E tal conclusão não
mudará se houver pacto comissório, pois este é apenas um modo contratualmente previsto pelas partes
para a execução – extrajudicial – da garantia”).
3209
Para uma resenha das diversas posições existentes, a este respeito, no direito francês, vide, por todos,
Stéphane Piedelièvre, ob. cit., págs. 190 a 192. Em face do direito italiano, Realmonte, Il pegno cit., pág.
645 e segs. e Gabrielli, Il pegno cit., págs. 169 e 170, dão conta de posições que vão desde a qualificação
do penhor irregular como uma garantia atípica, até ao seu enquadramento no âmbito dos negócios
fiduciários, passando pela sua integração no penhor de créditos ou das alienações em garantia (mais
concretamente, produzindo o mesmo resultado da execução forçada e dispensando o credor do recurso a
esta, uma vez que o próprio modus operandi do penhor irregular propicia a obtenção do mesmo resultado,
943
argumentando tratar-se de uma figura distinta, que extravasa do âmbito do penhor e que
reentrará, ora na órbita daqueles institutos que recorrem ao direito de propriedade com
função de garantia,3211 ora na das garantias atípicas.3212
com inegáveis vantagens em termos de custos e de tempo), por último, não sem que alguns neguem
mesmo a produção do efeito translativo da propriedade.
3210
Inclina-se para esta alternativa Gabrielli, Il pegno cit., pág. 175 (tendo, sobretudo, em conta a causa
comum de garantia), assegurando ainda que a posição da jurisprudência dominante vai no sentido de
configurar o contrato de penhor irregular como “schema negoziale di portata generale ed assimilabile al
pegno regolare, sia per il profilo strutturale della natura reale, sostenuta dalla attrazione della consegna
nel suo momento perfezionativo, sia per il profilo funzionale della causa di garanzia che condivide con il
tipo regolare” (quanto ao diferente modo de manifestação do efeito real, este traduz-se, no penhor regular
na criação de um ius in re aliena, oponível universalmente, enquanto no penhor irregular se concretiza na
transferência da propriedade do objecto da garantia, obtendo o credor a satisfação do seu direito através
do mecanismo da compensação – apenas surgindo dúvidas quando as obrigações a compensar decorram
de um único negócio e estejam entre si ligadas por um vínculo de correspectividade que lhes exclua a
autonomia, pois tal significaria afectar a própria eficácia do negócio, paralisando os seus efeitos). Por seu
turno, Realmonte, Il pegno cit., pág. 649, alega ser a causa do penhor irregular a mesma do penhor regular
(realçando que o “per spiegare il meccanismo dell’incameramento delle cose date in pegno e la regola
dei conguagli non è necessario riferirsi alla compensazione derivando essi dai principi generali che
regolano il pegno ordinario”). No mesmo sentido, entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 231 e
segs., considerando que os tipos legais correspondem “à normalidade das coisas”, de modo que “desde
que seja mantida a imagem global de um determinado tipo, a especificação ou complexificação de alguns
dos seus elementos identificativos não confrontará o intérprete com um tipo a se, dado que operará um
fenómeno de recondução ao tipo global, pois existe apenas uma variabilidade de efeito – a transferência
da propriedade – já que, no caso dos negócios irregulares, estamos perante situações em que os negócios
têm por objecto coisas consumíveis ou fungíveis”: partindo destes pressupostos, remata que “o penhor
irregular é um subtipo do contrato de penhor, pois consideramos que os negócios irregulares satisfazem
as mesmas necessidades sociais dos respectivos negócios regulares”.
3211
Assim, Rubino, Il pegno cit., pág. 214, afirmando que o contrato de penhor irregular é un negócio
fiduciário e “rimane un tipo contratuale a sè stante” face ao penhor. No direito espanhol, vide Jordano
Fraga, ob. cit., págs. 308 e 309, destacando como o penhor irregular tem uma natureza transmissiva, uma
vez que “el acreedor garantizado se convierte en propietario del dinero o cosas fungibles que se le
entregan, desde ese mismo momento de la recepción, pero, al mismo tiempo, asume la obligación
(eventual) de restituir el tantundem eiusdem generis de lo recibido, para el caso de que el deudor
satisfaga, a su vencimiento, el crédito garantizado. En caso de incumplimiento de tal crédito, por el
contrario, el acreedor garantizado imputará a su cobro el valor del dinero o de las cosas fungibles
recibidas y apropriadas”: nesta conformidade, conclui que o instituto “es incompatible con un derecho
real de garantia sobre cosa ajena a favor de éste: ni hay contrato de prenda, ni derecho real de prenda,
ni preferencia creditícia que derive de éste”, até porque a circunstância de o penhor irregular deter uma
função de garantia não basta para o incluir na órbita dos direitos reais de garantia. Em termos
coincidentes, Paz-Ares Rodriguez, ob. cit., pág. 1877, para quem a passagem da propriedade dos bens
empenhados para o credor e a possibilidade de, em caso de incumprimento, o credor se apropriar dos bens
recebidos em garantia, impede a integração desta figura no âmbito do penhor, concluindo, em
conformidade, que “malamente puede continuar llamándose prenda, al medio de garantía que no
participa de dos de los elementos esenciales de tal derecho, pues el deudor pierde la propiedad de la
suma de dinero que ha entregado en garantía y solo adquiere el derecho a reclamar la devolución de
otro tanto de la suma entregada, mientras que el acreedor adquiere la propiedad de la suma entregada y
se convierte en deudor de la devolución de otro tanto en caso de cumplimiento; estructura de garantía
que en nada participa del derecho de prenda” (para além disso, o Autor tem o cuidado de destacar a
vantagem desta garantia face ao penhor, traduzida no evitar da alienação do bem onerado em caso de
incumprimento da obrigação principal), também Medina de Lemus, ob. cit., pág. 147 (escrevendo que “en
la prenda irregular no hay derecho real de prenda porque el acreedor adquiere no un derecho real
limitado sino la propiedad misma. Y a su vez el constituyente o deudor adquiere frente al acreedor
garantizado un contracrédito para la devolución de otro tanto igual a lo entregado”), López, Montés e
Roca, ob. cit., pág. 446 (“Realmente no se trata de una modalidad de prenda, sino de un contrato de
aseguramiento distinto, pues se transfiere al acreedor la propiedad del dinero o de otro objeto fungible,
para que pueda satisfacer con ello su interés en el caso de incumplimiento de la obligación
garantizada”), Guillarte Zapatero, Comentario cit., pág. 508 (argumentando que o instituto não pode ser
qualificado como uma modalidade do penhor, uma vez que apenas apresenta em comum com este uma
944
Mesmo para quem defenda o enquadramento do penhor irregular no seio das
garantias pignoratícia, não é pacífico se constituirá um penhor de coisas ou de
créditos,3213 sugerindo até alguns uma dupla classificação em função do momento da
função de garantia, embora essa função seja alcançada de um modo radicalmente diverso – “a través de
un procedimiento más tosco: se alteran las respectivas situaciones de acreedor y deudor, atribuyéndose a
éste la condición de aquél y viceversa” -, não se criando nenhum direito real limitado, “manteniendóse,
por tanto, las relaciones entre los interesados en el ámbito de las puramente personales y sin eficacia
frente a los terceros (…) como se pone de manifesto, por ejemplo, por la falta de preferencia del presunto
pignorante para recuperar las cantidades entregadas al acreedor, que si hicieron proprias de éste,
satisfecha la obligación asegurada”), Albaladejo, Derecho civil III cit., pág. 723 (assegurando que “Lo
que constituye, pues, no un derecho real (del acreedor pignoraticio) en cosa ajena (del pignorante), sino
un derecho de propiedad de aquél (que hizo suya la cosa al recibirla), con el simultáneo nacimiento de
un derecho de crédito (del pignorante) a la devolución de otro tanto de lo mismo. Así pues, no se puede
decir que jurídicamente haya prenda, si el llamado titular de este derecho, lo que recibe es realmente la
propiedad de la cosa entregada, convertiéndose en deudor de una obligación genérica, hacia el
pignorante. Habrá si se quiere una prenda en sentido económico. Pero en sentido rigurosamente jurídico
no hay prenda (derecho real en cosa ajena), sino una situación que en la práctica satisface también, a
veces, los fines de aquélla, pues tratándose de asegurar el cumplimiento de una deuda, el aseguramiento
se consigue, asimismo, si el acreedor recibe algo que hace suyo y que no se verá obligado a devolver en
la cuantía en que el deudor incumpla la obligación asegurada”) e Serrano Alonso, ob. cit., pág. 264
(escrevendo que “no es una verdadera prenda porque en realidad el acreedor adquiere la propiedad del
dinero recibido y se compromete a devolver en su día una cantidad igual que la que recibió”,
acrescentando ainda que nem sequer existe retenção sobre o bem onerado, nem tão pouco devolução
deste, concluindo que o regime aplicável a esta garantia será o que for delineado pelas partes). No direito
francês, Henri Mazeaud, ob. cit., pág. 172, embora com dúvidas, inclina-se também neste sentido, ao
escrever que “le créancier en devient propriétaire à charge de restitution. Le propriétaire dispose alors
d’un droit exclusif sur lesdits biens: on se rapproche davantage de la cession fiduciaire que du gage à
proprement parler”. Qualificando o penhor irregular como uma cessão fiduciária, Aynés e Crocq, ob. cit.,
pág. 202, por entenderem que se produz uma transmissão da propriedade do bem empenhado Opta
também por esta posição Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 301 e segs., alegando
que a tal qualificação não obsta o facto de o objecto da garantia passar a integrar o património do credor,
sendo o penhor uma garantia que incide sobre bens alheios, concluindo que “O negócio é funcionalmente
semelhante ao penhor, mas é estruturalmente, como se vê, diverso: tem por base uma transmissão em
garantia (…) consiste num negócio fiduciário em garantia, que tem a particularidade de ter por objecto
bens fungíveis” (porém, o Autor ressalva aqueles casos em que o devedor já tenha depositado a quantia
junto do credor – normalmente um banco – e a garantia passa a incidir sobre o crédito à restituição dessa
quantia de que o devedor depositante é credor – ou seja, “o banco torna-se dessa forma titular de um
direito de penhor sobre um crédito a uma prestação de que é ele próprio devedor” - figura, esta que não
configura um verdadeiro penhor irregular).
3212
Negando que o penhor irregular possa ser considerado como uma modalidade do contrato de penhor,
considerando antes tratar-se de um contrato atípico, vide Barrada Orellana, ob. cit., págs. 218 e 219
(quando muito admite poder falar-se de penhor em sentido económico – devido à idêntica finalidade de
garantia prosseguida pelos penhores regular e irregular – mas não jurídico, tendo em conta o diverso
modo de funcionamento de cada um deles).
3213
Neste sentido, já Salinas Adelantado, El régimen cit., pág. 257 e segs., para quem “la prenda
irregular es la prenda del crédito a la restitución del tantundem contra el acreedor pignoraticio o en
tercero depositario. Es decir, la prenda del crédito que tiene el sujeto que entregó el dinero para pedir la
devolución de una cantidad equivalente a la persona que la recibió”. A particularidade deste penhor face
aos demais penhores de créditos reside no seu objecto, dado que “al ser éste un crédito a la restitución de
una cantidad de una cosa fungible, que es dinero o tiene un precio de mercado, la valoración del crédito
en el momento de la ejecución de la garantía será mucho más fácil”. Mais concretamente, como estamos
perante um depósito irregular, o depositante pode pedir a restituição a qualquer momento: simplesmente,
com a constituição do penhor essa faculdade passa a competir ao credor pignoratício que, contudo, apenas
a poderá exercer em caso de incumprimento do devedor e se, como normalmente acontece, o credor
pignoratício for também o devedor do crédito de restituição pode dar-se a compensação (embora o Autor
alerte que se trata de uma compensação muito especial, porquanto “la possibilidad que se concede al
acreedor pignoraticio de cobrar el crédito objeto de la garantía no le convierte en acreedor de dicho
crédito, como en el caso de que el objeto de la prenda fuesen bienes muebles la facultad que tiene de
vender la cosa no le transforme en titular de ésta”). De entre as figuras mais comuns de penhor irregular,
945
transmissão da propriedade do bem onerado,3214 ou consoante o bem onerado seja
entregue ao credor ou a terceiro.3215
946
Em nosso entender, afigura-se inquestionável que o credor pignoratício, nas
chamadas garantias irregulares, adquire (salvo convenção em contrário, caso em que o
objecto da garantia deixa de ser fungível) a possibilidade de disposição do bem onerado,
mas tal não será bastante para incluir a garantia em questão na categoria das garantias
fiduciárias, pois tal possibilidade é uma mera consequência natural da fungibilidade do
objecto da garantia, à qual é inerente a faculdade de substituição (nomeadamente em
razão da disposição dos inicialmente onerados) do quid originário.
Advogamos, por isso, que a garantia pignoratícia pode abraçar mesmo os
apelidados penhores irregulares, nos quais a faculdade de disposição dos bens onerados
decorre da especificidade do objecto onerado, sobretudo atendendo ao equivalente
desígnio funcional entre esta modalidade de penhor e aquela outra em que a garantia
verse sobre bens não fungíveis.
De uma determinada perspectiva e em confronto com outras garantias cuja
natureza pignoratícia é discutida, o penhor irregular assume um carácter ainda mais
marcadamente pignoratício, porquanto, ao contrário de outras (por exemplo, as
garantias sobre o estabelecimento comercial), retira inegavelmente ao empenhante o
poder de disposição sobre os (concretos) objectos originariamente empenhados, destarte
preenchendo um dos elementos do tipo legal desta garantia.
É esta mesma particularidade do objecto da garantia (encarado como parte de
um género e não como bem em si) e não tanto uma aparente transferência da
propriedade, que justifica a relativização da proibição do credor usar ou dispor do bem
onerado (art.º 671.º, alínea b)).
Embora seja corrente que também o penhor irregular pressupõe a entrega do
bem ao credor,3216 é hipoteticamente concebível uma garantia mobiliária não
possessória sobre bens fungíveis e, nessa hipótese, o empenhante não ficaria privado da
faculdade de dispor, ao menos em sentido material, do bem empenhado (sendo até
legítimo indagar em que medida uma garantia sobre uma universalidade homogénea não
se encaixa nesta categoria).3217
Pelo contrário, não se nos afigura existirem obstáculos insuperáveis à inclusão
na categoria dos direitos reais do penhor que incida sobre coisas incorpóreas,3218 apesar
das dúvidas, desde logo, decorrentes da ausência de um suporte físico relativamente ao
qual o titular do direito possa exercer o seu direito e, depois, do facto de o próprio
alegando a existência de uma verdadeira tradição do bem para o terceiro) – sobre este assunto, Stéphane
Piedelièvre, ob. cit., págs. 190 a 192.
3216
Jordano Fraga, ob. cit., pág. 310, incluindo, por isso, o penhor irregular no seio dos contratos reais
quoad constitutionem (vide também supra n.º 3.2 do Capítulo I).
3217
Simplesmente neste caso - e à imagem do que vimos para as outras garantias que não pressupõem a
privação do poder de disposição do constituinte da garantia – poderá duvidar-se de inclusão da garantia
no âmbito do penhor.
3218
A própria noção de “bem” é controvertida, oscilando entre uma acepção mais estrita (como coisas
materialmente úteis ao Homem, susceptíveis de ser apropriadas e objecto de direitos reais) e outra mais
ampla (abarcando todas as coisas que possuam um valor económico). Ora, segundo Simon Quincarlet, ob.
cit., pág. 109 e segs., na primeira acepção, todos os bens são corpóreos, o mesmo não sucedendo de
acordo com a segunda, na qual reentram bens incorpóreos sobre os quais a lei admite a constituição de
penhor: ora, segundo o Autor, não se tratará de um autêntico direito real, uma vez que a qualificação de
tais bens como móveis representa apenas uma ficção (além de a distinção entre bens móveis e imóveis
“ne peut se comprendre que des choses matérielles et des droits dont elles font l’object (…) sans
application rationelle aux obligations de faire, aux droits intellectuels, etc…”).
947
Código Civil estabelecer que o regime por si delineado para o direito de propriedade só
é aplicável às coisas corpóreas (art.º 1302.º).3219
A adensar as reticências, deparamo-nos com a estrutura complexa destes
direitos, nomeadamente da propriedade industrial e dos direitos de autor, que incluem,
não apenas o direito à patente ou à obra em si mesmo, mas igualmente outros direitos
derivados destes, como sejam as licenças,3220 complicando ainda mais a resposta a dar à
interrogação respeitante à natureza jurídica de um penhor com este objecto mesmo.3221
Por outro lado, importa ainda determinar se o beneficiário de um penhor com
semelhante objecto fica ou não investido de um direito absoluto, no sentido de o poder
3219
Pese embora o art.º 1303.º acrescentar que os direitos de autor e de propriedade industrial se
encontram sujeitos a legislação especial (n.º 1), embora lhes seja subsidiariamente aplicável o regime do
Código, desde que compatível com a natureza daqueles direitos e se for contrário ao dito regime especial.
3220
Sobre este assunto vide Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., pág. 260 e segs..
3221
Relativamente a este último aspecto Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., pág. 274 e segs., elenca as
principais teorias que se perfilam, começando pela teoria do monopólio (inicialmente sustentada a
propósito dos privilégios de impressão atribuídos aos editores), passando pela da propriedade
(configurando este direito como um poder exclusivo, da mesma natureza que o direito de propriedade,
constituindo uma subespécie desta) e pela do direito de personalidade (centrando a análise deste direito
como forma de defesa da personalidade do autor e reputando como secundárias as faculdades de carácter
patrimonial que eventualmente se consagrem) e terminando naquela que o configura como um direito sui
generis (tendo em conta a especificidade do objecto deste direito). Tomando partido e depois de criticar
as restantes posições (particularmente a do direito de propriedade – uma vez que as restantes parecem ter
sido abandonadas – considerando que “desconhece a essência do bem a que o direito de autor se refere –
a obra intelectual. Esta, uma vez divulgada, comunica-se por natureza a todos os que dela participarem.
Não pode estar submetida ao domínio exclusivo de um só. Quem recita um poema ou fixa numa folha de
papel os contornos de uma obra de artes plásticas, está a fazer as utilizações a que a obra por natureza
se destina”), o Autor adere à primeira delas, afirmando que estes direitos não são recondutíveis aos
direitos subjectivos pessoais, reais ou obrigacionais (considerando esta solução válida igualmente para os
direitos de propriedade intelectual, até por maioria de razão, uma vez que tais direitos estão sujeitos à
prática de um acto administrativo de concessão de licença, relegando para segundo plano a invenção e
tornando mais difícil ainda aludir a uma propriedade com estes contornos). Todavia, importa não
esquecer que da conjugação dos art.ºs 1302.º (ao estabelecer que apenas as coisas corpóreas podem ser
objecto do direito de propriedade regulado no Código, implicitamente parece abrir a porta o outros
direitos de propriedade sobre bens incorpóreos) e 1303.º, n.ºs 1 e 2 (ao determinar que os direitos de autor
e de propriedade intelectual são regulados em lei especial e, por outro lado, ao mandar aplicar
subsidiariamente a estes últimos o regime da lei civil geral), parece decorrer um argumento a favor da
tese do direito de propriedade. Em termos análogos e em face do direito francês, Lisanti–Kalczynsky, ob.
cit., págs. 264 a 269, depois de refutar as reticências à aceitação de um direito de propriedade sobre este
tipo de bens - quer no que toca ao seu carácter temporário (sublinhando a existência de diversas
propriedades temporárias, mesmo sobre coisas corpóreas, até porque o direito sobre estes bens
incorpóreos dura enquanto durar o seu objecto, isto é, enquanto existir o monopólio de exploração
atribuído ao seu titular: em suma, perpetuidade significa “durée maximale de la chose, telle qu’elle r´sulte
de sa nature particulière (…) pas une éternité du droit, mais plutôt toute permanence possible”), quer
relativamente à existência de um direito moral que o excluiria da órbita patrimonial (contrapondo a Autor
que o direito moral está directamente ligado à outorga de um monopólio de exploração, sendo
“secondaire par rapport au droit de propriété et ne fait que contrarier le régime habituel du droit de
propriété”) e que leva ao surgimento de uma nova categoria de direitos patrimoniais -, opta pela
qualificação como direito de propriedade (alegando que as especificidades deste direito não justificam a
criação de uma categoria autónoma de propriedade), não só porque estabelecem uma ligação directa entre
o titular do direito e o seu objecto (sem intromissão de qualquer outro sujeito), mas também porque os
poderes atribuídos ao seu titular se aproximam dos conferidos ao titular de um direito de propriedade
comum (como sejam a exclusividade – podendo impedir outrem de perturbar o seu direito e conferindo ao
seu titular o direito de uso e disposição do bem - e a natureza absoluta, que lhe permite usufruir, de forma
ilimitada, das faculdades conferidas pelo monopólio de exploração exclusivo).
948
opor a todo e qualquer sujeito que perturbe, especialmente quando se trate de um direito
derivado.3222
Não surpreende, por isso, que tradicionalmente enfrente grande resistência a
admissibilidade de direitos reais sobre direitos de propriedade intelectual3223 (sendo a
teoria dos direitos sobre direitos uma das vias seguidas para enfrentar tais
obstáculos),3224 acantonando os direitos reais ao domínio das coisas corpóreas3225
Em nosso entender, o reconhecimento normativo da admissibilidade de
propriedade e de outros direitos reais sobre bens incorpóreos (maxime propriedade
intelectual, industrial e/ou direitos de autor) é bastante para a inclusão de um garantia
3222
Oliveira Ascensão, A tipicidade cit., pág. 266 e segs., entende ser necessário distinguir, em face da
legislação vigente à época, entre os direitos de propriedade intelectual (os quais, mesmo que derivados,
gozam de carácter absoluto) e os direitos de autor (caso em que apenas os negócios de transmissão, mas já
não os de autorização, possuem tal característica).
3223
A doutrina clássica ou tradicional dos direitos reais – que configura estes como conferindo ao seu
titular um poder directo e imediato sobre um determinado bem – pressupõe como objecto destes direitos
bens corpóreos, considerando que os bens imateriais – e, particularmente, os direitos de natureza
intelectual – não são destinados a apropriação, não podendo as ideias ser objecto de um direito de
propriedade (ou de outro direito real), pois esta pressupõe uma posse exclusiva (Simon Quincarlet, ob.
cit., pág. 385). Posteriormente, alguns Autores vieram admitir a constituição de direitos reais sobre coisas
incorpóreas de natureza intelectual, ora distinguindo entre o direito de personalide e o direito real (sendo
este último passível de cessão, alienação e oneração), ora afirmando que o direito de propriedade
industrial também impõe um dever geral de abstenção (e, por isso, apenas diferindo da propriedade sobre
bens materiais pela natureza do respectivo objecto).
3224
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 386 e segs., alegando que, segundo esta teoria, os direitos reais sobre
outros direitos resultam da atribuição a um determinado sujeito de um direito pertencente a outrem,
assemelhando-se aos direitos sobre coisas materiais no que respeita à sua construção dogmática, mas
destes se distinguindo quanto ao seu conteúdo, quanto às prerrogativas que concedem ao seu titular
(alguns Autores chegam mesmo a distinguir entre uma propriedade material – tendo como objectivo
proteger o direito de usar e consumir os bens, garantindo a respectiva posse - e uma propriedade jurídica –
conferindo ao seu titular direitos de disposição e de administração e recaindo sobre a propriedade material
– sendo um direito sobre outro direito, conferindo ao seu titular o gozo jurídico do bem e surgindo os
chamados direitos reais menores como desmembramentos desta propriedade jurídica). Contudo, o Autor
refuta tal concepção, alegando que os direitos reais “ne peuvent être considérés comme des biens
incorporels parce que la notion de bien supose nécessairement la prise en considération de l’objet du
droit: envisagés en tant que biens, unis à leur objet, tous les droits réels sans distintion constituent des
biens parce qu’ils ont pour objet des choses matérielles et les utilités de celles-ci” (para além disso, se o
direito real consiste na retirada das utilidades do bem, “si cette chose peut être un autre droit, comme tout
droit procure à son titulaire certains avantages, ce seront ces avantages qui feront l’object du droit
supérieur, et on aboutit alors à la confusion du droit supérieur et du droit inférieur”).
3225
Vide, por todos, Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 407 e segs., escrevendo, a propósito dos direitos
intelectuais, que, apesar de a ideia se materializar em determinados bens corpóreos e ser susceptível de
utilização privativa, o facto de a ideia apenas poder ser economicamente explorada se concretizada num
símbolo exterior demonstra a impossibilidade da sua assimilação aos bens corpóreos (e, a fortiori, a sua
inclusão no âmbito dos direitos reais). Com efeito e segundo o mesmo Autor (ob. cit., pág. 437 e segs.),
não estaremos perante uma afectação directa e especial de um bem em benefício do credor, uma vez que
os direitos intelectuais “ne constituent pas par eux-mêmes des richesses et n’ont pas pour objet des
richesses mais des services ou des oeuvres intellectuelles, c’est-à-dire idées ayant une valeur soit
esthétique ou litéraire, soit industrielle ou commerciale et susceptible d’explotation parce que
concrétisées dans un symbole extérieur”: ainda assim, o Autor admite que tais bens possam ser objecto de
avaliação e afectos ao pagamento de um crédito, qualificando os direitos que recaiam sobre tais bens
como direitos de segundo grau “ayant pour objet la valeur pécuniaire de l’objet (…) du droit
intellectuele” (ou seja, estaremos perante um desmembramento do direito intelectual - do mesmo modo
que o penhor de bens corpóreos constitui um desmembramento do direito de propriedade – de forma que
“en transférant à son propre créancier le droit de faire vendre (…) l’oeuvre intellectuelle pour se faire
payer sur le prix, le titulaire du droit (…) démembre son droit, en ne conservant sur le service ou l’oeuvre
qui fait objet du gage, qu’un droit qui n’envisage plus ce bien que dans son individualité, et non en tant
qu’il représente une certaine valeur pécuniaire”).
949
com objecto similar no âmbito dos direitos reais de garantia, tanto mais que o credor
pignoratício goza de prerrogativas (preferência e sequela) em tudo análogas às
outorgadas ao titular de um direito desta natureza.
A questão que, no nosso juízo, se deve colocar é a de saber se essas garantias (ou
esses direitos reais de garantia), serão incluíveis na órbita do penhor ou, ao invés, da
hipoteca: ora, atendendo a que uma das características essenciais e distintivas do penhor
é a perda, por parte do constituinte, do poder de disposição do bem onerado, não
poderão ser consideradas como penhor todas as garantias mobiliárias sobre bens
incorpóreos em que o constituinte não perca as utilidades decorrentes do bem
empenhado, como acontece quando o quid onerado seja um “bem de exploração”,
relativamente ao qual e não obstante a constituição de um ónus, o devedor mantém o
direito de uso – é o que sucede com a generalidade dos direitos de propriedade
intelectual e industrial e com o estabelecimento comercial.3226
De entre os bens incorpóreos, merece especial referência o penhor de créditos,
cuja natureza jurídica é amplamente discutida, contrapondo-se várias teorias,3227 mas,
3226
Para mais desenvolvimentos sobre estas garantias e os poderes de que o credor pignoratício dispõe,
vide supra n.º 3.5 do Capítulo I e n.º 1.2.8 do Capítulo II.
3227
Atendendo às proporções que esta discussão atingiu, limitamo-nos, nesta sede, a reenviar, acerca esta
matéria, para alguns Autores que traçam um panorama geral a este respeito, como sejam Lisanti-
Kalczynsky, ob. cit., pág. 92 e segs., Cano Martínez de Velasco, ob. cit., págs. 85 a 87 e, em termos mais
abrangentes, Pace, ob. cit., pág. 60 e segs.. Este último Autor, distingue quatro teorias essenciais, uma
primeira que qualifica o penhor de créditos, tal qual o penhor em geral, como um direito real (tendo como
objecto o próprio crédito empenhado, pois se a noção de coisa – entendida como tudo aquilo que pode ser
objecto de direitos - engloba os direitos, nenhum obstáculo se ergue a que estes últimos sejam objecto de
direitos –, destarte configurando a figura dos chamados direitos sobre direitos; para além disso, socorrem-
se os partidários deste entendimento da regulamentação legal conjunta do penhor de coisas e do penhor de
créditos); uma outra que o analisa como um mero direito de natureza obrigacional; uma terceira
perspectiva que separa claramente o penhor de coisas do penhor de créditos, vislumbrando neste último
uma cessão de créditos condicionada (de modo a precaver um eventual incumprimento da obrigação
garantida); e um último entendimento, com diversas versões, que afirma a identidade de conteúdo
económico, mas a diversidade de estrutura jurídica entre o penhor de coisas e o penhor de créditos. Numa
perspectiva diversa, podemos distinguir as teorias respeitantes à natureza do penhor de créditos analisado
separadamente a da sucessão constitutiva (para a qual o direito do credor pignoratício é o resultado do
desmembramento das faculdades que compõem o direito de crédito, tendo um conteúdo mais restrito que
este, mas comungando da mesma natureza de direito de crédito, ou seja, tendo carácter pessoal e não
real); da cessão com fins de garantia (tendo em conta a identidade de requisitos formais para a cessão e o
penhor de créditos, assumindo a finalidade diversa relevância unicamente para a diversidade de alguns
efeitos produzidos pelos dois negócios) ou de uma cessão limitada à finalidade de garantia (de acordo
com a qual o credor pignoratício só é cessionário do crédito empenhado na medida necessária para a
garantia do seu crédito, nomeadamente conferindo-lhe legitimidade exclusiva para cobrar o crédito
empenhado, negando ao constituinte da garantia o direito de dispor novamente do crédito onerado); ou do
penhor antecipado da coisa objecto do crédito (que concebe como objecto desta garantia, não o crédito em
si, mas o objecto de tal crédito e, com este ainda não se encontra no património do empenhante, apenas se
poderá constituir um direito eventual de penhor, que se perfeccionará apenas no momento em aquele se
torne proprietário, atribuindo-se ao credor pignoratício o direito de cobrança de tal crédito). Também
Salvatore Romano, ob. cit., pág. 19 e segs., procede a um exame detalhado das várias teorias que negam a
natureza real do penhor de créditos, quase todas elas enquadrando-o no âmbito da cessão de créditos, ora
condicionada ao não cumprimento da obrigação garantida, ora limitada a determinados poderes
relativamente ao crédito cedido, ora cooptativa (segundo a qual coexistem a titularidade do empenhante e
do credor pignoratício, os quais e transformam em credores solidários do terceiro devedor do crédito
empenhado), ora constitutiva (em que o direito do cedente se mantém, mas nascendo um direito menor
que é transmitido), ora translativa (em que o direito passa, totalmente ou numa das suas quotas, para o
outro sujeito): o Autor que as limitações aos efeitos naturais da cessão, nomeadamente à trasmissão plena
da titularidade do crédito, apenas servem para justificar a diversidade de efeitos e a impossibilidade de
recondução do penhor à cessão de créditos.
950
essencialmente, os que incluem3228 e os que excluem3229 semelhante garantia do
domínio dos direitos reais,3230 não faltando, porém, quem relativize a importância desta
querela.3231
3228
Vide, por todos, Cruz Moreno, ob. cit., pág. 1279, qualificando o penhor de créditos como um
verdadeiro penhor e, por isso, como um autêntico direito real (entendido este como “la sujección directa e
inmediata de una cosa determinada al poder del titular de aquél, sujeción que tiene eficacia erga omnes
y que se ha de entender referida a los fines perseguidos por el derecho real”, até porque não há razão
para limitar tal categoria apenas aos direitos que conferem uma faculdade de uso de um bem e, pelo
contrário, “la facultad de instar su ejecución, cualquiera que sea el patrimonio donde se encuentre, y el
derecho de cobro preferente sobre el producto obtenido suponen una sujeción directa de esta al
cumplimiento de una obligación (…) sujeción real, de manera que pueda crearse una situación en la que
se garantice plenamente al acreedor pignoraticio la efectividad de su derecho, sin privar al titular del
objeto dado en garantía del suyo”), partindo da unidade conceptual do penhor e configurando o seu
objecto como o “valor patrimonial del bien en cuestión” (até porque o conceito de coisas – como tudo o
que pode ser objecto de direitos, pelo menos de carácter patrimonial – não se restringe às coisas corpóreas
e o direito de crédito “además de tener un valor en el patrimonio de su titular tiene un valor en cambio,
permitiéndose su coisficaión”), concluindo pela aplicação do regime legal do penhor (“La falta de
regulación de la figura no impide considerarla como tal, arguyendo que en nuestro Derecho rige la regla
del numerus clausus respecto a los derecho reales de garantía, pues considero que se trata de la misma
figura que está en nuestro Código Civil, cuyas normas deben, simplemente, ser objeto de una
interpretación adaptadora”), embora com especificidades ditadas pela natureza do quid onerado
(nomeadamente ao nível da constituição e da execução da garantia).
3229
Neste sentido, vide, por todos, Pace, ob. cit., pág. 60 e segs., rejeitando a qualificação do penhor de
créditos como direito real, especialmente se fundada na tese dos direitos sobre direitos (alegando que uma
coisa tem existência independente, enquanto um direito “è una posizione rispetto alla cosa e non è
concepibile senza riferimento all’individuo, come oggetto isolato nem mondo esterno”, o que, no caso do
penhor de créditos, “non significa che il credito è oggetto di un diritto, ma che il credito deve subire la
concorrenza di un diritto, da esso derivato, sullo stesso oggetto. Non di diritti su diritti, quindi, si
dovrebbe parlare, ma di diritti da diritti”: nesta conformidade, não compreende como o titular de um
direito obrigacional possa criar um direito de natureza real – pois ninguém pode transmitir mais direitos
do que aqueles que possui – e, para mais, quando a execução desse pretenso direito real requer o concurso
do devedor principal. Mesmo alguns ajustamentos feitos a este teoria dos direito sobre direitos –
nomeadamente distinguindo o aspecto subjectivo do direito, como um poder inerente ao seu titular e
respeitante às relações entre as partes na relação de garantia, do aspecto objectivo, traduzido na sua
objectivação ou codificação nas relações com terceiros – não alteram a posição do Autor, porquanto “se
nu diritto deriva da un altro, non può che dirigersi nella stessa direzione del diritto progenitore e, se ha
come fonte quest’ultimo, non può averlo contemporaneamente ad oggetto”), contestando igualmente a
tese da cessão condicionada (uma vez que “La cessione implica trasferimento della titolarità del credito
dal cedente al cessionário; il pegno, invece, implica garanzia, cioè destinazione del diritto ad uno scopo,
pur rimanendo nel patrimonio del debitore” e, por outro lado, que a aquisição da propriedade, embora sob
condição, por parte do credor pignoratício significaria que este poderia dispor do crédito recebido em
garantia, o que a lei proíbe), a da cessão pro solvendo (ao equiparar este negócio ao penhor de créditos,
esquece a natureza translativa da propriedade daquele), da cessão concorrente, que apresenta a
especificidade de, face às duas anteriores, de realçar que o empenhante não perde a titularidade do crédito
empenhado, de maneira que “Il creditore pignoratizio rimane titolare del credito, ma subisce una
limitazione nell’esercizio del suo diritto dal diritto dal creditore pignoratizio, che ha uguale natura e
contenuto dal suo: ambedue sono contitolari solidali del credito di fronte al terzo debitore” (pois a
solidariedade entre o empenhante e o credor pignoratício contrasta com a impossibilidade de o terceiro
devedor do crédito empenhado pagar ao primeiro), da cessão limitada (que concebe o penhor como uma
particular espécie de cessão, em que os poderes do cessionário são limitados à finalidade do penhor,
antecipando o penhor a aquisição do objecto da prestação do crédito onerado: esta posição é criticada,
desde logo, por não se poder falar da atribuição ao credor pignoratício do direito de exigir o crédito
empenhado como um direito próprio deste – pois não dispõe de nenhum direito relativamente ao devedor
do crédito cedido – e, por outro lado, por resultar vazio de conteúdo um crédito desprovido do direito de
exigir o seu cumprimento e, finalmente, porque não explica como, uma vez extinta a garantia, a
titularidade do crédito regresse ao empenhante sem que ocorra um posterior acto de retransferência de tal
direito), da sucessão constitutiva (teoria de âmbito mais geral, comum aos diversos direitos reais -
entendidos como um direito que supõe um outro mais extenso, funcionando aqueles como um ónus deste,
limitando as faculdades de exercício deste último, comungando ambos da mesma natureza – embora com
951
adaptações específicas ao penhor de créditos, ora concebendo este como o direito do credor a uma
prestação positiva por parte do terceiro devedor do crédito onerado; ora, um dever negativo de não pagar
ao empenhante, mas, em qualquer caso, negando a natureza real deste. O Autor, apesar de reconhecer ao
credor pignoratício a faculdade de conservar o crédito empenhado – podendo até proceder à respectiva
cobrança, quando o crédito empenhado se vença antes do garantido ou, vencendo-se depois, tenha por
objecto uma coisa diversa do dinheiro, pois neste último caso, deverá aguardar pelo vencimento do
crédito onerado – advoga não ser verdade, ao contrário do sustentado pelos partidários desta doutrina, que
nas relações entre o credor pignoratício e o empenhante, à limitação do direito deste último corresponda o
surgimento de um direito por parte do primeiro e tão pouco que, nas relações entre o credor pignoratício e
o terceiro devedor do crédito empenhado, aquele tenha um direito à prestação e este um dever de nada
fazer que pudesse prejudicar o penhor: com efeito, não explica como o terceiro devedor pode ficar
obrigado para com o credor pignoratício se este não foi parte no contrato de garantia; por outro lado, se a
atribuição a um sujeito do direito de exigir um determinado crédito equivale a atribuir-lhe o próprio
crédito, não faz sentido falar de titularidade quando o direito de cobrar foi atribuído a outrem; finalmente,
porque se o terceiro deve pagar ao credor pignoratício, isso não altera a circunstância de o seu devedor ser
o empenhante, sendo esta relação obrigacional que aquele pretende extinguir, mesmo quando paga ao
credor pignoratício), do exercício de um direito alheio (na medida em que o credor pignoratício, quando
cobra o crédito onerado, apenas faz valer indirectamente a sua garantia, mas actua sobretudo no exercício
dos poderes conferidos ao empenhante: este tese é criticada por não explicar como um sujeito possa
exercer contemporaneamente um direito próprio e um direito alheio relativamente ao um mesmo
destinatário e, ainda, por não permitir compreender como o exercício de um direito não implica
directamente o exercício do direito principal), concluindo que o penhor de créditos não é um direito real,
nem a sua constituição origina uma cessão de créditos, embora do ponto de vista funcional (escopo de
garantia), possa ser equiparado ao penhor de coisas. Já Chironi, ob. cit., pág. 487 e segs., qualifica o
penhor de créditos como uma cessão em garantia – não podendo ser considerado um direito de garantia
por incidir sobre um crédito – com a especificidade, face à cessão comum, de o fim de garantia não
implicar a transferência da titularidade do crédito para o cessionário (assim consentindo ao empenhante
constituir plúrimas garantias sobre o mesmo crédito, até porque o especial modo de constituição do
penhor de créditos, dispensando a entrega do bem ao credor, não requer a posse efectiva do bem). Garcia
Vicente, La prenda cit., pág. 25 e segs., partindo da inadmissibilidade de cessões fiduciárias plenas de
créditos (ou, pelo menos, da impossibilidade de as mesmas poderem operar uma transferência plena dos
créditos cedidos, o que impõe a requalificação da garantia de modo a sujeitá-la às regras próprias destas
últimas), qualifica o penhor de créditos como uma cessão limitada ou parcial de créditos, com o
consequente desmembramento das faculdades inerentes ao quid onerado entre cedente e cessionário, mas
sem que tal impeça a aplicação de diversas normas do regime geral do penhor (como a da acessoriedade e
da exigência de titularidade do bem a onerar por parte do constituinte da garantia), porventura com
algumas adaptações (por exemplo, admitindo a constituição do penhor por acto unilateral de um dos
vários devedores solidários – de acordo com o art.º 1141.º do CCE, nos termos do qual “Cada uno de los
acreedores solidarios puede hacer lo que sea útil a los demás, pero no lo que les sea perjudicial. Las
acciones ejercitadas contra cualquiera de los deudores solidarios perjudicarán a todos éstos” e com o
art.º 1143.º, que dispõe que “La novación, compensación, confusión o remisión de la deuda, hechas por
cualquiera de los acreedores solidarios o con cualquiera de los deudores de la misma clase, extinguen la
obligación (…). El acreedor que haya ejecutado cualquiera de estos actos, así como el que cobre la
deuda, responderá a los demás de la parte que les corresponde en la obligación”. Por seu turno Aranda
Rodríguez, ob. cit., pág. 67 e segs, baseando-se na rejeição da existência de posse sobre um crédito e na
impossibilidade de conceber o direito de crédito como objecto do direito real de penhor (considerando
que os direitos não são coisas – sendo a sua inclusão no âmbito das coisas incorpóreas uma ficção legal,
destinada a aplicar aos direitos o regime dos bens móveis ou imóveis, até porque “Si los bienes son
muebles o inmuebles por el criterio de su movilidad, basado en la naturaleza física de las cosas
corporales, es una contradicción incluir en ella los derechos que de por sí no tienen consistencia física”
e, por outro lado, “Los derechos reales se consideran bienes inmuebles en atención a las cosas sobre las
que recaen. Por contra, todos los derechos de crédito son considerados bienes muebles. En ellos no se
atiende al objeto sobre el que recaen (conducta), ni al objeto de la prestación (cosa mueble, inmueble,
servicio, conducta omissiva)”, pelo que a sua integração na noção de coisa radica no facto de os direitos
de crédito fortalecerem o património do respectivo titular – e que mesmo o alargamento do significado de
“coisa” de modo a abranger tudo o que pode ser objecto de relações jurídicas não permite concluir que
“todos los derechos pueden ser objeto de outro derecho, ni que el derecho de crédito es una cosa mueble
incorporal que tiene un valor económico y puede ser objeto de las mismas relaciones que las cosas
corporales”, repudiando assim a teoria dos direitos sobre direitos e constatando que o objecto dos direitos
952
de crédito é a conduta do devedor, a qual pertence ao lado passivo do património deste e, por isso, “La
satisfación del acreedor depende totalmente de la realización de dicha conducta. Hasta el término
pactado para el cumplimiento, el acreedor no tiene más que una serie de facultades para evitar el
incumplimiento del deudor”), traduz-se na qualificação do direito do titular de um penhor de créditos
como um mero direito pessoal, entendendo tratar-se de um negócio jurídico de cessão (definido este como
uma categoria de contratos com diferentes causas, tendo como pano de fundo comum a circunstância de
incidirem sobre um crédito) com causa de garantia, mas limitada (uma vez que a causa de garantia
impede a transmissão plena do crédito), gerando uma situação de titularidade concorrente (porquanto “el
pignorante-cedente no quiere transmitir la titularidad del derecho al acreedor pignoratício-cesionario,
sino únicamente, como ocurre en los casos de prenda, transmitirle una serie de facultades que le
permitan actuar sobre el tercero-deudor, como lo haría el pignorante-cedente en determinados supuestos
en que podría peligrar la garantía”), negando natureza real ao direito do credor pignoratício em razão da
ausência da característica da imediação (uma vez que o credor “no tiene un poder directo e inmediato
sobre el crédito, sino que necesita la colaboración tanto del pignorante como del mismo deudor cedido”)
e qualificando-o antes como um direito obrigacional com efeitos reais (obrigacional no que concerne à
relação entre o credor pignoratício e o devedor do crédito cedido e real nas relações com o seu devedor e
com terceiros – especialmente os credores daquele -, ou seja, “un derecho sobre la situación jurídica que
ostenta el pignorante derivada de la titularidad del derecho de crédito. Esse derecho consiste respecto
del deudor del crédito afectado en garantía en el poder del acreedor pignoratício de exigir y cobrar el
crédito; respecto del pignorante, en la limitación de sus facultades de administración y conservación del
derecho, así como de su libré disposición; y respecto a los terceros (sucesivos adquirientes o acreedores
del pignorante), porque han de suportar la carga que sobre el crédito implica el derecho del acreedor
pignoraticio”). A amplitude das faculdades outorgadas a cada um dos contitulares do crédito empenhado -
e, em particular, ao credor pignoratício - depende das vicissitudes do objecto do respectivo direito,
variando consoante ainda não se tenham vencido os créditos empenhado e garantido (embora o
empenhante mantenha o poder de disposição sobre o crédito empenhado, tal faculdade encontra-se
restringida por força da garantia e, caso a disposição ocorra antes do vencimento do crédito onerado,
deverá o empenhante dar conhecimento da projectada cessão ao credor pignoratício, informando-o
igualmente da identidade do cessionário; para além disso, assiste ao credor pignoratício o direito de
cobrar os juros do crédito empenhado, devendo, para o efeito, notificar antecipadamente o devedor do
crédito onerado; pelo contrário, ao empenhante cabe realizar todos os actos convenientes para evitar a
extinção do crédito onerado ou, no limite, informar o credor pignoratício da necessidade de realização de
tais actos – v.g., interromper a prescrição), se tenha vencido apenas o primeiro, mas não o segundo (sendo
a principal dúvida, a este respeito, a relativa à legitimidade para exigir o cumprimento do crédito onerado:
o Autor sustenta ser ao credor pignoratício que compete tal acto – por sobre ele recair o dever de
conservação e administração do quid onerado e tal exigência de cumprimento traduz-se na conservação
da sua garantia -, embora advirta que para receber a dita prestação apenas assiste legitimidade a ambos,
conjuntamente: uma vez efectuada a cobrança, se a prestação correspondente ao crédito onerado era
dinheiro, a garantia transforma-se num penhor irregular, adquirindo o credor pignoratício a sua
propriedade, mas com a obrigação (eventual) de a restituir em caso de cumprimento da obrigação
garantida, no momento do vencimento desta; pelo contrário, se o objecto for a prestação de um coisa
diversa, modifica-se o objecto da garantia, passando esta a incidir sobre tal bem) ou se dê a situação
inversa (nesta hipótese - ou seja, vencido o crédito garantido mas não o onerado -, o Autor distingue
consoante o crédito onerado tenha por objecto dinheiro – caso em que atribui ao credor pignoratício o
poder de cobrar e imputar, por via de compensação, o valor cobrado à satisfação do seu crédito, sem que
tal viole a proibição do pacto comissório, uma vez que o quid empenhado “tiene un valor nominal y no
puede subestimarse en detrimento del pignorante”e, por isso, se enquadra nas convenções marcianas - ou
outro bem diverso, caso em que o credor pignoratício deverá proceder à respectiva alienação, atenta a
vigência da proibição do pacto comissório).
3230
Entre nós, Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 55, nota 146, traçando um panorama da doutrina
nacional, distinguindo entre os que excluem o penhor de créditos da órbita dos direitos reais de garantia
(invocando ser o seu objecto uma prestação), os que o incluem nessa categoria (seja defendendo a figura
dos direitos sobre direitos, seja aludindo à identidade de função com o penhor de coisas e à consagração
legal de um modelo unitário do penhor aplicável independentemente do objecto, seja concluindo tratar-se
de uma afectação, embora sui generis, com o mesmo objectivo do penhor de assegurar o pagamento
preferencial de um crédito).
3231
Desvaloriza a questão respeitante à natureza jurídica do penhor de créditos Finez Ratón, ob. cit., págs.
154 e 155, entendendo que as discussões à volta desta questão redundam num mero ciclo vicioso, uma
vez que “Se parte de una supuesta naturaleza jurídica para atribuirle un régimen y consecuencias
953
A esta questão não é alheia a delimitação do objecto de semelhante garantia,
debatendo-se se será o próprio crédito ou, pelo contrário, a prestação que dele
resulta.3232
À primeira vista, poder-se-ia pensar que, à imagem do defendido a respeito das
universalidades e dos bens fungíveis, o penhor de créditos constituiria uma garantia real
das obrigações e não um direito real, porquanto apesar de conferir ao seu titular um
direito de preferência, não lhe atribui o poder de sequela (não tanto por não incidir sobre
um bem certo e determinado, mas antes por recair sobre um direito de crédito).3233
jurídicas aplicabes”, sustentando um método diametralmente oposto que passa por “observar en concreto
las intenciones de las partes y los específicos efectos del negocio”: partindo desta premissa, o Autor
alvitra que o penhor de créditos, ao implicar uma transmissão parcial do crédito onerado (ou uma
contitularidade do mesmo entre o credor pignoratício e constituinte da garantia), deverá reger-se,
essencialmente, pelas normas respeitantes ao penhor e à cessão de créditos, mas sem identificar o negócio
com esta última (uma vez que na cessão, ao contrário do penhor, o credor garantido adquire a titularidade
plena do crédito recebido em garantia). Também Harry Westermann, Harm Peter Westmemann, Karl-
Heinz Gursky, Dieter Eickmann, ob. cit., pág. 1569 e segs., aderem a esta perspectiva de relativização do
interesse da discussão acerca da natureza jurídica do penhor de direitos em geral (incluindo os créditos),
entendendo ser pacífico que no penhor de créditos há um direitos que é objecto de outro (desde que se
dissocie as competências atribuídas pelo direito onerado ao seu titular e ao credor pignoratício, em
necessidade de “indagar en el objeto y naturaleza del derecho gravado para explicar el derecho de
prenda que nace. Esa adscripción o atribución de competencias realizada por medio del derecho de
prenda tiene eficacia absoluta, como toda adscripción. Que él derecho cuyas facultades se disocian actúe
a veces sólo frente al deudor, y otras frente a cualquiera es algo que dependerá de que el derecho sea
real o de crédito, pero no del derecho de prenda”), sendo apenas discutida a natureza real ou obrigacional
de tal direito: a este respeito, os Autores entendem que o penhor, como os demais direitos limitados, terá a
natureza do direito do qual se desmembram, pelo que o penhor de créditos terá forçosamente carácter
obrigacional, sem efeitos relativamente a terceiros (porém, os próprios admitem que o BGB depõe em
sentido contrário, ao qualificar o penhor de créditos como direito real limitado, produzindo efeitos, tanto
contra o titular do crédito onerado, como frente aos credores deste, de forma que não é afectado por
concurso de credores do titular do crédito empenhado, bem por um terceiro que execute o crédito
onerado).
3232
Limitando-nos à doutrina nacional, podemos citar, no primeiro sentido, Pires de Lima e Antunes
Varela, ob. cit., Vol. I, pág. 703 e, sobretudo, Vaz Serra, Pegno cit. in BMJ n.º 59, págs. 178, nota 1 e
212. O entendimento oposto é defendido por Colaço Canário, ob. cit., pág. 61, para quem “Quando se
refere penhor de créditos, créditos não é objecto sobre que incide o penhor, mas sim a fonte donde o
penhor deriva (…) A prestação é o objecto próprio dos direitos de crédito, logo o objecto do penhor de
crédito terá de ser a prestação”, Neves de Oliveira, ob. cit., pág. 12 (“o objecto imediato do penhor de
créditos consiste no direito de crédito, maxime, no direito a uma prestação”). Em termos mesclados,
Hugo Ramos Alves, ob. cit., págs. 144 e 145, sustenta que o penhor de créditos “refere-se ao direito de
crédito, e, assim, incide indirectamente sobre a prestação objecto do direito de crédito”.
3233
Hugo Ramos Alves, ob. cit., pág. 335 e segs., qualifica o penhor de créditos como uma garantia
(cumprindo uma função análoga à do penhor de coisas – “dado que o credor pignoratício adquire um
poder directo e imediato sobre o direito de crédito, destinado a permitir a actuação da preferência e,
posteriormente à do crédito, a satisfação sobre o objecto do mesmo em termos em tudo análogos aos do
penhor de coisas” – ob. cit., pág. 335), mas descartando a sua natureza real (embora com reticências, pois
começa por declarar que “o penhor de créditos é dotado de eficácia real, dado que é conferida ao credor
pignoratício a faculdade de opor a terceiros o seu direito de penhor, mesmo nos casos em que tenha
ocorrido a transmissão do crédito por parte do empenhador” – ob. cit., pág. 335 - , para depois concluir
que “a sua natureza creditícia impede a sua qualificação como direito real, mas não impede que seja
considerado como realidade funcionalmente análoga em relação ao penhor de coisas” – ob. cit., pág.
336): em nosso entender, o que o Autor pretendeu dizer é que, na sua óptica, o penhor de créditos
constitui uma garantia real das obrigações, mas não um direito real de garantia. Romano Martinez e
Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 181, nota 439, parecem inclinar-se no mesmo sentido, ao declararem,
depois de excluírem a sua qualificação como direito real, que o penhor de créditos “confere uma situação
preferencial ao credor, na medida em que lhe são transferidos parte dos poderes que o credor (autor do
penhor) tem sobre terceiros”. Ainda que socorrendo-se de diversa terminologia, parece chegar a
conclusões análogas Menezes Leitão, Garantias cit., pág. 283, ao excluir o penhor de créditos da órbita
dos direitos reais, afirmando “não existir no penhor de créditos qualquer garantia real, pelo que a figura
954
Todavia, do regime legal – de cuja análise deverá partir qualquer tentativa de
enquadramento dogmático da figura - do penhor de créditos retira-se a outorga ao
credor pignoratício de um direito de sequela, no sentido em que, após a notificação ao
terceiro devedor do crédito empenhado (formalidade requerida para o surgimento da
garantia – cfr. art.º 681.º, n.º 2),3234 este apenas poderá efectuar o seu pagamento ao
credor pignoratício - e, se o não fizer, sujeita-se a ter que pagar novamente ao credor
pignoratício (art.ºs 681.º, n.º 3 e 583.º, n.º 2).3235
Adicionalmente, o cumprimento daquela formalidade torna o direito do credor
pignoratício oponível a terceiros adquirentes (ou credores pignoratícios) do crédito
previamente empenhado a seu favor, desde que, naturalmente, estes terceiros, não
houvessem notificado anteriormente a constituição do seu direito.
Conclui-se, por isso, que a sequela opera de modo distinto no penhor de coisas e
de créditos, mas tal resulta da especificidade do objecto desta última garantia, traduzida,
principalmente, no seu específico modo de constituição e de oponibilidade.
Ora, a atribuição dos direitos de preferência e sequela basta, a nosso ver e
abstraindo de considerações de natureza meramente teórica ou conceptual, para
qualificar o penhor de créditos como verdadeiro direito real,3236 sobretudo atendendo à
idêntica finalidade garantística do instituto pignoratício, à qual é alheia a natureza
corpórea, incorpórea ou creditícia do quid onerado.
deverá ser incluída entre as garantias especiais sobre direitos”. Parece ser esta a posição igualmente
defendida, no direito espanhol, por Gil Rodríguez, ob. cit., págs. 339 a 345, notando que o penhor de
créditos não é uma garantia pessoal (por não envolver a responsabilidade pessoal de um terceiro),
traduzindo-se antes na colocação ao dispor do credor pignoratício “de un específico valor patrimonial,
que se sujeta directa, individualizada y especialmente al cumplimiento de la obigación”, mas recusando a
sua natureza real, concluindo que “la prenda de derechos será real, cuando su derecho progenitor
también lo sea; y derecho obligacional , cuando tenga esta naturaleza el derecho de que el gravamen
deriva”.
3234
Se, em alternativa, o penhor se encontrar sujeito a registo (art.º 681.º, n.º 2, 2.ª parte), o direito de
sequela torna-se ainda mais notório, porquanto a publicidade conferida por este torna a garantia do
conhecimento e oponível a todos os interessados.
3235
Como bem nota Salvatore Romano, ob. cit., pág. 88 e segs., quando se dá em penhor um crédito, o
seu titular perde a plena capacidade de dele dispor (o Autor explica este fenómeno sugerindo que “Il
credito che, nei rapporti fra creditore e debitore, si risolve nella pretese dell’uno verso l’altro, quando è
pignorato, diventa un bene, un oggetto, una cosa, su cui il creditore pignoratizio ha un potere immediato,
che si fa valres cosi verso il debitore originario, como verso il creditore pignorante, come anche verso i
terzi: un potere quindi assoluto e reale”.
3236
Comunga desta opinião, entre nós, Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., pág. 249, nota
700, afirmando que “o penhor de direitos goza das características da preferência e de sequela que estão
ligadas aos direitos reais”, assegurando ainda que as disposições legais (que merecem o aplauso do
Autor) que excluem os privilégios gerais daquela noção “não fazem no seio das garantias reais qualquer
distinção entre as garantias sobre coisas e sobre direitos” (exemplificando com o art.º 47.º, n.º 4, alínea
a), do CIRE). Admite igualmente a existência de direitos reais sobre direitos (apontando exemplos de
consagração legal como o usufruto de créditos e a hipoteca de usufruto) e sobre créditos em especial,
Paulo Cunha, ob., cit., pág. 228 e segs., realçando que o direito de crédito se torna o verdadeiro objecto do
direito real (em harmonia com a noção legal de coisa, que abarca os direitos, mobiliários ou imobiliários),
de modo que a notificação ao terceiro devedor do crédito onerado produz o desapossamento do crédito
relativamente ao seu titular, ou seja, quando o titular de um crédito o empenha constitui a favor do credor
um penhor sobre esse crédito, desapossa-se desse mesmo crédito, passando a posse do direito real
pignoratício para o credor (razão pela qual, após tal notificação, o empenhante não pode exigir o
pagamento do seu crédito ao seu devedor) – assim sendo, conclui o Autor, é possível manter a unidade
conceptual do instituto do penhor, pois “uma vez que se aceita a tese de que sôbre direitos, embora de
crédito, de podem constituir direitos reais, nós estamos aptos a poder explicar o fenómeno do penhor em
créditos e a encontrar uma explicação que o põe em pé de homogeneidade com todo o regime normal do
penhor constituído sôbre cousas, encontrando nêle do mesmo modo como um traço característico, a idéa
do desapossamento da cousa”.
955
No que especialmente respeita à preferência e de um ponto de vista estrutural, a
função de garantia (adjunção de uma preferência sobre um bem específico à
responsabilidade geral do devedor) encontra-se igualmente presente no penhor de
créditos.3237
1.2 - Noção de direito real e inclusão dos direitos reais de garantia no seu âmbito
3237
A este respeito, são elucidativas as palavras de Salvatore Romano, ob. cit., págs. 98 e 99, antes da
constituição do penhor de créditos, coexistem dois créditos (e, por isso, duas responsabilidades pessoais):
ora, com o nascimento desta garantia, surge uma responsabilidade objectiva – do crédito onerado – e
modifica-se a responsabilidade do devedor do crédito empenhado, a qual deixa de ser para com o seu
credor e passa a ser para com o credor pignoratício (embora não se trate propriamente do surgimento de
uma nova responsabilidade, mas apenas de uma modificação do seu titular activo), pelo que “Ciò che
dunque caratterizza anche il rapporto di pegno di crediti e gli imprime il carttere reale che ha il pegno di
cose materiale, è la responsabilità di cosa, cioè del credito”.
3238
Luís Pinto Coelho, ob. cit., pág. 11 e segs., destaca como, na versão inicial do Código de Seabra, nem
sequer existia qualquer secção dedicada aos direitos reais, nem tal expressão era utilizada uma única vez
(no plano de direito comparado, este Autor atribui a Savigny o mérito de ter celebrizado as relações
jurídicas dos direitos reais, no seu trabalho “Sistema de Direito Romano”).
3239
Oliveira Ascensão, Direitos Reais, ob. cit., pág. 186, porém, dá conta de uma posição que nega o
carácter real dos direitos reais de garantia com base no seu carácter acessório relativamente à obrigação
cujo cumprimento visam assegurar (posição esta que o Autor rebate, escrevendo que “O direito real de
garantia está subordinado ao direito de crédito, de modo a permitir o resultado útil que com este se
pretende obter. Esta subordinação funcional não impede porém que o direito de garantia tenha todas as
características de um verdadeiro direito real”).
3240
Maiorca, ob. cit., pág. 151 e segs., recusa que a distinção possa assentar na suposta ausência de gozo
do bem por parte do titular de um direito real de garantia, não retirando daí qualquer utilidade (nem tão
pouco na diferenciação entre valor de uso – para os direitos de gozo - e valor de troca – para os direitos de
garantia), contrapondo que “in ogni caso l’attribuzione ha a suo fondamento (economico) una utilità della
cosa o, più precisamente, del regime giuridico stabilito relativamente a una cosa” e, em termos jurídicos,
“Il rapporto di un soggetto con un dato oggetto materiale può essere per un vantaggio (o utilità che dir si
voglia) consistente in quello che la legge chiama godimento; oppure in un vantaggio (utilità) consistente
nella garanzia o sicurezza”. Mais concretamente, nos direitos de garantia “la vendita non realizza affatto,
per il creditore, il valore di scambio della cosa vincolata, bensì il valore d’uso del denaro ricavabile
della vendita forzata (…). La garanzia presenta una utilità per il titolare in quanto la cosa vincolata ha
un valore di mercato; in quanto, cioè, ci sia possibilità di venderla ricavando una data somma (…).
L’utilità del vincolamento (cioè del diritto reale di garanzia) consiste nella circostanza che la cosa possa
avere – ove sia il caso – compratori: sia, cioè, bene apprezzato in mercato. Ciò non significa che oggetto
dell’ipoteca sia il valore di mercato della cosa! Oggetto è il vincolamento a scopo di sicurezza”.
3241
Pasquale di Pace, ob. cit., pág. 6 e segs., a natureza real dos direitos de garantia apenas é apreensível
analisando separadamente o lado passivo e o lado activo da relação criada com a respectiva constituição.
Quanto ao primeiro aspecto, o constituinte da garantia, apesar de permanecer proprietário do bem onerado
(e de poder dele dispor, caso em que o novo adquirente se torna proprietário do bem, mas com o ónus do
penhor: todavia, no caso do penhor de créditos, o Autor entende que o empenhante, podendo embora
dispor do bem onerado através de cessão, não poderá realizar actos de renúncia ao crédito empenhado –
como a remissão ou a renúncia – sob pena de “porre il creditore alla mercè del próprio debitore, che
956
Com efeito, como já resulta da exposição anterior e melhor se verá em seguida,
os direitos reais de garantia comungam das prerrogativas normalmente enumeradas
potrebbe, con atto unilaterale, distruggere la garanzia”), fica privado da prática de actos que possam
lesar os direitos do credor pignoratício (o que, no caso específico do penhor, é mais improvável por força
do desapossamento do constituinte, mas ou até por esse facto, “non basti la indisponibilità della cosa, ma
ocorra che il debitore si spossessi materialmente ed effetivamente della cosa, perchè questa sia
assoggettata al potere imediato del creditore pignoratizio. In altri termini, dei due aspetti nei quali si
presenta il rapporto di pegno – aspetto negativo, pratica indisponibilità materiale; aspetto positivo,
effetivo potere del creditore sulla cosa, - é quest’ultimo che ha la prevalenza, in modo che il primo
aspetto è elemento necesario, ma non suficiente a costituire il rapporto (…). Il che significa che la
funzione della consegna e della trasmissione del possesso consiste nell’assoggettare la cosa al potere del
creditore. La pratica indisponibilità del diritto del debitore pignorante è una conseguenza, ma non è lo
scopo, essendo invalida una costituzione di pegno nella quale sia raggiunta la indisponibilità senza
l’attribuzione del possesso al creditore”). Relativamente ao lado activo, o credor adquire um direito que
assume relevância substantiva (“nel rapporto che sorge, per effetto della costituzione della garanzia, fra
il titolare di essa e tutti gli altri terzi, i quali sono tenuti a non compiere alcun atto di ingerenza sulla
cosa data in pegno; il che costituisce il contenuto del diritto reale del creditore pignoratizio (pretesa erga
omnes alla non ingerenza)”) e processual (que lhe permite “chiedere la vendita forzata e perseguir ela
cosa anche nelle mani dei terzi acquirenti (c.d. diritto de seguito)” e também “nel privilegio che el
creditore ha, in sede di graduazione, che gli consente di soddisfarsi sul ricavato della vendita
dell’oggetto del pegno con preferenza su ogni altro creditore in grado posteriore o chirografario”: ou
seja, “Il diritto di far vendere e il potere di escludere i terzi creditori dal concorso non sono che fenomeni
processuali; essi costituiscono el lato più appariscente della garanzia, senza peró esaurirne el contenuto,
qualora il debito non sia stato voluntariamente soddisfatto, ed ocorra realizzare il diritto di credito
attraverso l’esecuzione forzata”), embora esclarecendo que o vínculo existe e perdura antes e
independentemente da acção executiva, por força, precisamente, da vertente substantiva do direito (da
qual decorrem uma profusão de faculdades e deveres para as partes, como sejam os de conservação do
bem onerado, da possibilidade de requerer a venda antecipada ou o direito de retenção do credor
pignoratício sobre o bem onerado), até porque em caso de cumprimento da obrigação garantida não será
necessário invocar a acção executiva (isto é, o aspecto processual do penhor) “nessuno, credo, si
sentirebbe di affermare che, in tal caso, il pegno non abbia esplicato egualmente la sua funzione di
garanzia”, podendo até existir casos em que o credor seja titular de um direito real de penhor, mas não o
possa executar, por exemplo por carência de objecto (é o que sucede no penhor de créditos, quando “el
credito dato in pegno ha per oggetto delle cose diverse dal denaro e il credito garantito non sia stato
soddisfattto, il creditore non ha ancora l’azione esecutiva sul credito, ma dovrà attendere la scadenza di
esso per procedere successivamente a l’esecuzione sulla cosa prestata”). Ainda relativamente à dimensão
substantiva do direito do credor pignoratício, o Autor realça que a posição do credor importa um
enfraquecimento do direito de propriedade do constituinte, sobretudo por via da limitação do direito de
uso, em razão do seu desapossamento (no entanto, quando seja constituído um segundo penhor sobre o
mesmo bem, o credor pignoratício posterior, mantendo embora o direito de exigir a abstenção de
comportamentos de terceiros que possam lesar o seu direito, não o pode fazer relativamente àqueles que
lesem unicamente a posse, pois esta pertence ao primeiro credor pignoratício). Para Henrique Mesquita,
Obrigações reais e ónus reais, Almedina, 1990, pág. 54 e segs., a soberania do seu titular traduz-se, nos
direitos reais de garantia, na faculdade de, mediante um acto de disposição da coisa onerada e sem
necessidade de cooperação do proprietário da mesma, realizar o valor do crédito garantido pela res (por
último, o Autor esclarece que nem mesmo nos direitos reais limitados se estabelece uma relação inter
subjectiva, nem entre os titulares desses direitos e os proprietários dos respectivos bens, nem em caso de
concurso entre os diversos titulares de direitos limitados pois, neste último caso, “Cada um desses
titulares encontra-se, perante os demais, na mesma situação em que se encontra qualquer terceiro: tem
de respeitar a esfera jurídica dos outros, não por virtude de uma relação jurídica especial que entre eles
se estabeleça (relação intersubjectiva), mas, pura e simplesmente, em obediência ao dever genérico que a
todos veda a interferência ou intromissão na esfera protegida por um direito real”).
3242
Luís Pinto Coelho, ob. cit., pág. 50 e segs., nota como o penhor e os direitos reais de garantia em
particular, possuem uma característica específica face aos demais, uma vez que se extinguem pelo
exercício, isto é, “enquanto não se exercem têm uma mera potencialidade, mas logo que se exerçam
extingue-se o direito. O direito do credor pignoratício de se fazer pagar pelo preço da coisa, logo que se
exerce, extingue esse seu direito”.
957
como definidoras da categoria dos direitos reais, quais sejam a preferência e a
sequela.3243
Nem se pretenda que a exclusão dos direitos de garantia do âmbito dos direitos
reais possa advir da concepção deste como um mero desmembramento do direito de
propriedade (considerando que os iure in res aliena como uma faculdade destacada da
propriedade), alegando que a constituição de uma garantia em nada limitaria as
faculdades do proprietário do bem onerado:3244 com efeito, parece mais curial conceber
os direitos reais sobre bens alheios como simples limitações do direito de propriedade.
Quanto à noção de direito real propriamente dita,3245 a doutrina tradicional ou
clássica,3246 com raízes no direito romano,3247 configura-os como aqueles que atribuem
3243
Como bem nota Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 61e 62, a propósito da inerência, esta “não
significa também o mesmo que poder directo (…). Poder directo, sobretudo se entendido em sentido
material, envolve a ideia de uma actuação sobre a própria coisa e, em certo sentido, até a detenção da
mesma. A inerência não exige nada disso (…). A afectação jurídica da coisa, em termos de assegurar a
satisfação do interesse do sujeito do direito real à sua custa, pode assumir várias feições, sendo a do
poder directo apenas uma delas. Assim, nos direitos reais de garantia, o que mais interessa ao credor é
que o valor da coisa seja primariamente afectado ao pagamento do seu crédito”. Por outro lado, a
inerência não se confunde com a imediação (entendida esta como o possibilidade de o titular do direito
realizar o seu interesse às custas das utilidades da coisa, sem depender de qualquer conduta de outrem),
uma vez que “o direito real não deixaria de ser inerente se, hoc sensu, for mediato”, razão pela qual “não
perdem, só por isso, a natureza de direitos reais situações jurídicas em que a satisfação do interesse do
seu titular exija uma intervenção ou colaboração de terceiros, como ocorre nos direitos reais de
garantia”.
3244
A este propósito Francesca Dell’Anna Misurale, ob. cit., pág. 18, nota 16, nota que tal concepção
(ancorada na ideia dos direitos reais menores como desmembramentos do direito de propriedade – como
uma faculdade compreendida neste último e que dele é destacada – desmembramento este que não se
verificaria nos direitos de garantia, uma vez que este não corresponde a nenhuma faculdade de que o
proprietário gozasse antes da constituição da garantia, continuando o proprietário a gozar do bem como
antes: esta fundamentação é especialmente utilizada a respeito da hipoteca – garantia não possessória - e,
relativamente ao penhor, depara-se com o obstáculo de o proprietário empenhante perder, após a
constituição da garantia e por força do desapossamento, algumas faculdades inerentes ao seu direito de
propriedade), deve ser rejeitada tendo em conta “l’impossibilità di costruirsi il diritto reale minore come
il prodotto dello smembramento del diritto di proprietà (…) la proprietà non è una somma di diritti, ma
un diritto unitario e semplice che non si può in alcuno modo smembrare, rimanendo tale anche quando
sulla cosa vi siano oneri o pesi, sí che i singoli diritti reali su cosa altrui non sono facoltà staccate del
diritto di proprietà, ma limitazioni del potere piú esteso che si conosca, quale il diritto del proprietário”.
Por seu turno Rubino, Il pegno cit., pág. 187, destaca que “I diritti reali di garanzia limitano anch’essi la
facoltà di godimento del proprietario (…) ma si tratta di limitazioni secondarie, perchè non derivano da
quello che è il contenuto principale del diritto di garanzia e possono anche mancare, mentre altre sono
semplici effetti reflessi della esigenza di conservare il diritto reale (come avviene per il possesso della
cosa da parte del creditore pignoratizio, che necessariamente impedisce o limita l’uso e il godimento
della cosa da parte del proprietario). La principale limitazione (…) consiste nella possibilità do perdere
il diritto se il creditore procede all’espropriazione”.
3245
Limitamo-nos, sobre este assunto e uma vez que a vastidão do tema não se compadece com o objecto
principal do presente trabalho, a enumerar, quase exclusivamente, os principais contributos da doutrina
nacional.
3246
Luís Pinto Coelho, ob. cit., pág. 14 e segs., alude a uma outra teoria, percursora em termos temporais
da teoria clássica, que tem como principal arauto Ziebarth, de acordo com a qual “são direitos reais todos
os direitos subjectivos que atribuem ao seu titular o poder ou a faculdade de, mediante a coacção ou a
execução real, lançar mão da coisa objecto do direito”, tomando assim como característica
diferenciadora desta categoria a coercibilidade. Ora, segundo o Autor, esta posição enferma de dois vícios
decisivos, porquanto, por um lado, desconhece que “há relações do direito privado que são nitidamente
de carácter obrigacional” (nomeadamente as obrigações para prestação de coisa) e, por outro, que “o
momento da execução do direito é uma fase patológica, anormal, e, sendo assim, é errado ir buscar para
caracterizar um grupo de direitos um momento excepcional, quando é o próprio conteúdo normal do
direito que deve servir de característica para o direito”.
958
ao seu titular um poder directo e imediato sobre uma coisa certa e determinada,3248
atendendo “à relação homem-coisa”:3249 esta posição encontrou grande acolhimento
3247
Mota Pinto, ob. cit., pág. 28 e segs., assegura que distinção entre direitos de crédito e direitos reais e,
indirectamente, a noção destes últimos era moldada na oposição, que remonta ao direito romano, entre
acito in rem (dirigida contra todos e, por isso mesmo, a fórmula em que era concedida não mencionava o
nome do réu) e actio in personam (dirigida contra pessoa certa, a qual era identificada no procedimento).
Realça igualmente as raízes romanas desta concepção Henrique Mesquita, Obrigações reais cit.,
Almedina, Coimbra, 1990, pág. 42 e segs., escrevendo que na acito in rem “o demandante reclamava de
um terceiro o respeito do seu direito sobre uma coisa (…). Mas o terceiro não estava ligado ao autor da
acção por nenhuma espécie de obrigação (…). A actio in rem destinava-se, pois, pelo menos no comum
dos casos, a fazer valer direitos que incidam directa e imediatamente sobre as coisas, independentemente
de toda a ideia de obrigação”. Contudo, Menezes Leitão, Direitos reais cit., págs. 34 a 36, relata como o
papel a atribuir ao tipo de acção ao dispor do seu titular para a delimitação da noção de direito real
originou uma acesa polémica no Século XIX entre os que aceitavam tal perspectiva (como Thibaut, para
quem “o direito real seria aquele que era tutelado por uma actio in rem (…). O que caraceterizaria
assim o direito real seria apenas o facto de ser tutelado pela acção de reivindicação”, assim concedendo
o direito real como direito absoluto, por ser tutelado por uma acção absoluta) e aqueles que a ela se
opunham (como Feuerbach, segundo o qual “o direito real seria um direito sobre determinado objecto,
que teria validade contra todas as pessoas, mediante o qual o seu titular poderia ser considerado em
relação como todos os outros seres humanos. O direito real estabeleceria assim exigências jurídicas em
relação a sujeitos indeterminados: qualquer pessoa teria o dever de reconhecer esse direito, não
perturbar o seu titular”, sendo esta a razão da existência de uma acção para tutela dos direitos reais
diversa da outorgada aos titulares de direitos meramente obrigacionais). Todavia, a noção de direito real,
com os contornos que hoje conhecemos, deve-se aos Glosadores (atribuem aos Glosadores o mérito de
terem formulado uma primeira noção de direito real Henrique Mesquita, ult. ob. e loc. cit. e Alessandro
Natucci, ob. cit., pág. 3 e segs.), porquanto a distinção romana assentava em bases adjectivas (o meio
processual para defender as pretensões reais) e não substantivas (o conteúdo dos direitos reais), até
porque “attraverso le actiones in rem venivano protette situazioni varie, non tutte riconducibili a figure di
diritti reali” – Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 5 (embora este Autor reconheça que os romanos faziam
repousar a distinção entre os direitos reais e obrigacionais na oponibilidade dos primeiros e não dos
segundos, conforme emerge da noção de direito real fornecida por Gaio).
3248
Mota Pinto, ob. cit., pág. 28 e segs., salienta como esta concepção assentava na distinção entre os
direitos reais e os direitos de crédito (entendidos estes como poder de exigir de outrem uma determinada
prestação), podendo ser resumida na leitura no direito real como “uma relação entre uma pessoa e uma
coisa, um poder directo que liga a pessoa a uma coisa”. Por seu turno Penha Gonçalves, ob. cit., pág. 40
e segs., salienta que o carácter directo e imediato significa “que ninguém se interpõe entre o titular do
poder e a coisa que é dele objecto”, embora esclareça que “O conteúdo do poder em que o direito real se
traduz pode ser pleno ou limitado, actuando por isso, em toda a extensão das utilidades proporcionadas
pela coisa sobre que recai, ou limitado a uma parte maior ou menor dessas utilidades”, enquanto
Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 38 e 39, destaca como “nesta concepção realça-se a particular
posição da coisa como objecto do direito, chegando por vezes este ponto a ser formulado em termos que
sugerem uma relação entre o titular do direito e a coisa” (alertando, porém, para a discussão acerca da
natureza material ou jurídica do poder que o titular do direito exerce sobre os bens objecto desse mesmo
direito) e Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 6 (aludindo a “un poter diretto e immediato su una cosa, a
differenza dall’obbligazione, che nel diritto romano, e anche successivamente verrà comcepita come un
potere verso una persona”). De acordo com Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 360 e segs., para a doutrina
clássica o direito real é aquele que “porte directement et immédiatement sur une chose individuellement
déterminée dont il permet de retirer sans emprunter l’intermédiaire d’une personne obligée, l’utilité
légale, totale ou partielle, et exigeant de tous un respect égal mais purement passif”.
3249
A expressão é de Orlando Carvalho, ob. cit., pág. 110, para quem os principais defensores desta teoria
(citados na nota 17) caracterizam o direito real de acordo com uma perspectiva simples ou linear e não
inter-subjectiva (por contraponto com os direitos das obrigações, que obedeceriam a uma estrutura
complexa ou triangular e inter-subjectiva), correspondendo “à intuição mais ostensiva ou mais empírica
do fenómeno: à sensação que a dominialidade imediatamente nos dá e que é da fruição, sem
intermediários, de um objecto”. Caracterizam igualmente esta teoria em termos similares, Menezes
Leitão, Direitos reais cit., págs. 31 e 32 (apontando com seu expoente máximo Grotius, para o qual “o
direito real estruturava-se na relação entre a pessoa e a coisa, através da qual esta era afectada ao
sujeito, o que implicava que a mesma fosse tutelada pela actio in rem, a qual poderia ser dirigida contra
qualquer pessoa, bastando que se encontrasse na posse da coisa”), Menezes Cordeiro, Direitos reais cit.,
959
internacional e mesmo entre muros,3250 podendo até detectar-se um fenómeno recente de
retorno à tese clássica.3251
pág. 224 e segs. (esclarecendo que a existência de um poder directo e imediato sobre uma coisa é
apontada “como derivando directamente do conhecimento empírico que as pessoas têm da matéria.
Verifica-se que o sujeito beneficiário de um direito real tem, pura e simplesmente, o senhorio de uma
coisa: é a lição da experiência. De facto, o que há de mais característico no direito real é a existência de
apenas dois elementos: o titular e a coisa. Para que esta possa ser aproveitada não é necessária
qualquer colaboração de terceiros, ao contrário do que sucede nos direitos pessoais ou de crédito”).
3250
De acordo com Menezes Leitão, Direitos reais cit., pág. 36 e segs., esta posição encontrou especial
acolhimento na pandectísitca alemã (especialmente Wätscher e Dernburg), sendo mesmo expressamente
mencionada nos trabalhos preparatórios do BGB, nos quais se pode ler que “Das Wessen der Dinglichkeit
liegt in der unmittelbaren Macht der Person über die Sache”. Entre nós, o Autor indica como aderentes a
esta posição Guilherme Moreira, José Tavares, José Gabriel Pinto Coelho, Luís Pinto Coelho e Fernando
Pessoa Jorge.
3251
Aludem a este fenómeno Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 11 e Menezes Cordeiro, Direitos reais cit.,
pág. 225 e segs. (apontando como justificações para este retorno “O fracasso da formulação moderna, o
falhanço das teses mistas, o cepticismo cada vez mais generalizado quanto à possibilidade de construção
científica do direito real, conduzem os autores à utilização didáctica do bom senso: direitos reais são
direitos sobre coisas”, embora o Autor saliente que, por vezes, a invocação da teoria clássica é mesclada
de elementos mistos), sendo o mesmo confirmado pelas posições, muito similares aliás, de Luís Pinto
Coelho, ob. cit., pág. 24 e segs. e Guilherme Moreira, ob. cit., pág. 2 e segs.: qualquer deles nega que os
clássicos ignorassem que o direito real implicasse uma relação entre pessoas e que a alusão ao poder
directo e imediato sobre a coisa é figurativa e que aquilo que verdadeiramente distingue o direito real dos
demais direitos é o seu conteúdo e esse não é senão o poder sobre a coisa objecto do direito e a forma
como esse poder se exerce, para além de ressalvarem que a obrigação que impende sobre os demais
sujeitos está implícita na noção clássica do direito real, porquanto as faculdades de que as pessoas
dispõem relativamente às coisas são reconhecidas por lei e devem ser respeitadas por todos (o primeiro
dos Autores citados socorre-se ainda de diversos preceitos legais para reforçar a posição que “tanto se
pode encontrar o lado externo como o lado interno do direito, mas é mais frequente e mais evidente o
lado interno, ou seja, o poder sobre as coisas, justamente porque é esse o mais importante sob o ponto de
vista prático (…). E, assim, podemos aceitar o conceito de direitos reais que nos dá a doutrina clássica”:
de entre esses preceitos, o Autor menciona expressamente as normas relativas ao penhor, para delas
concluir que “o direito que o credor pignoratício exerce sobre a coisa não só é um poder imediato e
directo, mas é também um poder que se exerce contra todos – até contra o próprio dono”). Também
Penha Gonçalves, ob. cit., pág. 64 e segs., afina pelo mesmo diapasão, afirmando que o poder jurídico do
titular do direito real é directo e imediato significa que “como não há, entre o titular daquele direito e a
coisa qualquer intermediário (…) a realização do concreto interesse substancial tutela do pelo direito
real, é alcançada de modo autónomo pelo respectivo titular, sem mediação de vontade alheia”,
constatando ainda que esta concepção “contém virtualidades para dela se concluir que o direito real, é,
por sua natureza, um direito necessariamente absoluto, isto é oponível a todos”, uma vez que, ao
considerar como direitos reais os que criam uma relação directa e imediata entre uma coisa e o titular
desse direito “são por isso mesmo susceptíveis de ser exercidos não só contra certa pessoa determinada
mas para com e contra todos” (definindo, a final, direito real como “situação activa de vantagem que,
tendo por seu núcleo um poder jurídico inerente a certa coisa, faculta ao respectivo titular o
aproveitamento, directo e exclusivo, das suas utilidades”, embora fornecendo quatro indicações
adicionais: o conteúdo do direito real pode ser complexo, apresentando, além do núcleo essencial, outras
realidades, como direitos potestativos, ónus, etc.; funcionalmente, o direito real assegura ao seu titular o
aproveitamento das utilidades, totais ou parciais, proporcionadas pela coisa em termos directos e
exclusivos - directos, porquanto o interesse subjacente ao direito real pode ser alcançado sem
intermediação de qualquer outro sujeito, e exclusivos porquanto a situação de privilégio pode ser oposta
aos demais sujeitos). Finalmente, Henrique Mesquita, Obrigações reais cit., pág. 54 e segs., depois de
criticar a tese personalista - argumentando que a mesma esquece os deveres de conteúdo positivo que, não
raras vezes, impendem sobre o titular de um direito real e, por outro lado, não compreender que a
resolução dos conflitos entre os Homens não tem necessariamente que ser alcançada através de relações
inter-subjectivas (podendo fazer-se, em alternativa e como sucede nos direitos reais, “pela via da
ordenação directa dos bens – da sua imediata subordinação aos sujeitos a quem a ordem jurídica
reconhece, verificados certos pressupostos, legitimidade para deles tirar proveito ou para praticar certos
actos que os tenham por objecto” (…) através de uma relação jurídica estabelecida, recta via, entre o
sujeito do direito e o objecto sobre que este incide”) - conclui que o cerne de qualquer relação real é o
960
Segundo esta perspectiva, o direito real comportaria três prerrogativas que o
caracterizam, quais sejam a imediação (entendida como a possibilidade de o credor
pignoratício obter a satisfação do seu direito sem necessidade de cooperação do
devedor), a “assoluteza” (traduzido, nomeadamente, no direito de preferência) e a
inerência (da qual decorre o poder de sequela) ou até, mais simplesmente, os traços
diferenciadores do direito real seriam o facto de ter como objecto uma coisa certa e
determinada e de ser absoluto, no sentido em que conferem ao seu titular o direito de
preferência e de sequela.3252
Porém, não existe unanimidade quanto à natureza desse poder directo e imediato
sobre a coisa objecto do direito, sendo vários os ensaios levados a cabo para o efeito.3253
Esta posição, todavia, está longe de ser unânime, erguendo-se várias vozes
contestando o acerto do entendimento clássico, embora os argumentos invocados e os
resultados obtidos por cada uma delas não sejam uniformes.3254
domínio ou soberania de uma pessoa sobre uma coisa (nas suas palavras, “Na expressão vulgar isto é meu
(res mea est) está compreendida, pelo menos no plano fenomenológico, toda a essência do domínio”),
domínio esse que implica um dever de não ingerência a todos os demais sujeitos, isto é, a soberania
implícita nos direitos reais possui uma dimensão positiva (sujeição de uma coisa ao domínio do titular do
direito) e outra negativa (a exclusão de terceiros relativamente a essa esfera de soberania), de modo que
“O dever geral de abstenção surge, reflexamente, como um efeito da atribuição ou reconhecimento da
soberania (…) não visa relacionar o titular do direito real com as demais pessoas. Visa precisamente o
contrário: criar uma situação de total separação ou afastamento” (considerando que o calcanhar de
Aquiles da teoria clássica, na sua pureza, residia na ausência de fundamentação jurídica para o poder
directo e imediato sobre a coisa que assiste ao titular do direito real, fundamento esse que radica na
relação de domínio ou de soberania entre o titular do direito e o objecto do mesmo, surgindo aquele poder
“como consequência ou corolário desta relação, revestindo a natureza de um poder autónomo ou
independente, isto é, de um poder que tem a sua fonte ou matriz na própria relação de soberania e que,
por conseguinte, não pressupõe a cooperação de quem quer que seja, não depende de ninguém”).
3252
Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 361 e segs., alertando para o facto de o objecto do direito real, para a
teoria clássica, tender a identificar-se com coisas corpóreas, muito embora alguns dos seus partidários
admitam que também os bens incorpóreos – como os direitos - podem ser objecto de um direito real
(posição da qual o Autor se mostra crítico, repudiando a teoria dos direitos sobre direitos).
3253
De acordo com Menezes Cordeiro, Direitos reais cit., pág. 226 e segs., a definição do direito real
como um direito sobre uma coisa redundaria numa noção demasiado genérica (abarcando direitos cuja
natureza pessoal tem sido aceite, pese embora sejam, de algum modo, direitos sobre coisas, como os
direitos do depositário e do comodatário), pelo que se delimitou o direito real a um poder directo e
imediato sobre uma coisa: contudo, não existe unanimidade relativamente à natureza desse poder (uns
aludindo a um poder material; outros preferindo falar de um poder jurídico): o Autor sustenta que o poder
directo e imediato é aquele que “atinge a coisa pela simples vontade do seu titular, independentemente de
qualquer colaboração de terceiros”, alegando que “a designação directo e imediato atribuída ao poder
em que consiste o direito real é una: os dois atributos apenas visam reforçar a mesma realidade. Quando
muito, podemos subtilmente dizer que o poder é directo porquanto atinge a coisa e imediato na medida
em que prescinde, para isso, da colaboração de terceiros”. Também Oliveira Ascensão, ob. cit., págs.
602 a 605, alude a esta indefinição do conteúdo do poder que assiste ao titular do direito real, qualificado
por uns como um poder material, traduzido em actos materiais ou de gozo sobre a coisa detida pelo titular
do direito real (posição criticada pelo Autor por não ser suficiente – por haver direitos não reais cujo
poder se exterioriza através da posse, como o comodato e o depósito - nem tão pouco necessária,
porquanto quase todos os direitos reais de garantia não proporcionam a posse do bem a que respeitam),
outra apontando para um poder imediato, traduzido na ”possibilidade de o titular exercer o direito e
alcançar o seu efeito útil, sem a intervenção de outrem” (embora reconhecendo alguma pertinência nesta
constatação, o Autor nota que alguns direitos reais exigem, para a produção do seu efeito útil, uma
colaboração de outrem – v.g. alguns ónus reais -, pelo que apenas aceita que a imediação seja
característica dos direitos reais em termos negativos, isto é, no sentido de “ausência de um sujeito em
relação”) e uma última referindo-se a um poder jurídico (que enfrenta a crítica de não conseguir explicar
“como pode uma realidade normativa atingir directamente uma entidade fáctica”, uma vez demonstrado
que não há poder sem relação).
3254
A este respeito, seguimos de perto Montel, Garanzia cit., pág. 745 e segs. e, entre nós, Henrique
Mesquita, Direitos reais Coimbra, 1967, pág. 47 e segs.. Também Simon Quincarlet, ob. cit., pág. 393 e
961
Desde logo, a concepção clássica dos direitos reais, ao configurar uma relação
directa entre uma pessoa e uma coisa, não se furta à crítica que todo o direito pressupõe
uma relação entre dois ou mais sujeitos.3255
Para além da ser por muitos considerada como essencialmente descritiva, a tese
clássica pode também ser censurada por não atender à circunstância de nem todos os
direitos reais implicarem a existência de poderes materiais sobre o bem objecto do
direito, como sucede com alguns direitos reais de garantia e, em especial, com a
hipoteca.3256
segs., embora salientando a correcção da distinção entre direitos reais e direitos de crédito, censura a
teoria clássica por esta se alhear dos dados económicos e sociais (sendo puramente técnica), por não
indicar em termos precisos qual o objecto dos direitos reais (como se comprova pelas discussões acerca
da idoneidade dos bens imateriais para fazer parte dessa categoria), por não atender ao facto de alguns
direitos de crédito poderem ser oponíveis a terceiros (apontando como exemplo o direito de retenção) e,
finalmente, por não estabelecer em termos esclarecedores a distinção entre as várias categorias de direitos
reais.
3255
Como salienta Mota Pinto, ob. cit., pág. 31 e segs., “O poder directo e imediato sobre uma coisa não
é uma realidade originária ou primária, mas uma consequência jurídica do poder de impor aos outros
uma abstenção e uma não ingerência na coisa que é objecto do direito. É porque existe, do lado
contrário àquele em que se situa o titular activo do direito real, um dever geral de abstenção, que fica
reservado para aquele o monopólio do uso exclusivo da coisa e surge o tal poder directo e imediato
sobre ela”: neste contexto, o Autor conclui ser impensável falar de relações entre uma pessoa e uma coisa
(fazendo desta o sujeito passivo da relação). Em termos análogos Orlando Carvalho, ob. cit., pág. 112 e
segs., nota que “Todo o direito pressupõe alteridade ou intersubjectividade, só em sentido figurado ou
analógico se podendo falar de uma relação homem-res. Esta tem sempre que ser uma relação homem-
homem, e o que, quando muito, poderá acontecer é, como no direito das coisas, um desconhecimento (ou
uma obnubilação) do sujeito passivo, desconhecimento que leva então a pensar numa relação pura e
simples com o homem” e, do mesmo modo, Menezes Leitão, Direitos reais cit., págs. 32 a 34, salientando
que, de acordo com Puffendorf, um dos seus principais mentores, “quer as relações jurídicas, quer
mesmo os direitos subjectivos, não se poderiam estabelecer pessoas e coisas, antes se estabelecendo
necessariamente entre pessoas” e, em termos análogos, o próprio Kant escreveu que “embora nos direitos
reais parecesse existir uma relação da pessoa com a coisa, na verdade o que existia efectivamente era
uma vinculação dos outros para com o proprietário da coisa, na medida que este, através da vindicatio,
poderia exigir a qualquer possuidor dela que procedesse à entrega”. Também Luís Pinto Coelho, ob. cit.,
pág. 18 (reforçando ter sido Windscheid a, pela primeira vez, levantar esta objecção - concluindo que “O
direito representa o poder de uma vontade sobre outra vontade”), Penha Gonçalves, ob. cit., pág. 41
(salientando como esta crítica denuncia que “se entre uma pessoa e uma coisa pode haver uma relação
material ou de facto, a relação jurídica só se pode estabelecer entre pessoas”), Carvalho Fernandes, ob.
cit., pág. 39 (alertando que “Não faz sentido pensar em termos de direito de propriedade o uso que
alguém inteiramente isolado, à semelhança de Robinson Crusoé na sua ilha, faça das coisas. Os direitos
reais, como todos os direitos subjectivos, envolvem uma relação entre pessoas, não com uma coisa”) e
Henrique Mesquita, Obrigações reais cit., pág. 47 e segs. (dando conta que esta objecção foi inicialmente
inspirada pelo pensamento kantiano e pela ideia que “a intersubjectividade é um elemento essencial a
toda a relação jurídica e, por conseguinte, o direito real não pode deixar de traduzir-se num vínculo
entre pessoas. O núcleo do direito subjectivo seria sempre uma pretensão (Anspruch) necessariamente
dirigida a um comportamento humano”) aludem a esta crítica.
3256
Alude a estas duas críticas Menezes Cordeiro, Direitos reais cit., pág. 228 e segs. e, no que se refere à
última, reforça como “mesmo nos direitos reais de gozo em que o exercício de poderes materiais parece
ser o traço dominante, pode suceder que, concretamente, não haja hipótese de actuação prática. Assim, a
nua-propriedade, onerada por usufruto” (o Autor relativiza outra crítica dirigida à tese tradicional, de
acordo com a qual não seria possível explicar de que forma um poder, uma entidade normativa, se
relaciona directamente com uma coisa, uma entidade fáctica – contrapondo que “Se concluirmos que a
realidade normativa não pode tocar a realidade fáctica, então teremos de desistir do direito para regular
relações sociais”), objecção esta retomada por Penha Gonçalves, ob. cit., pág. 44 e segs., (assinalando
que a sua formulação se ficou a dever a Giorgianni, o qual identificou situações como exemplos de direito
real sem que se constate um poder directo e material e, inversamente, por haver situações não qualificadas
por esta doutrina como direitos reais e nas quais se revela a presença de um poder directo do titular sobre
a coisa, como sucede com o locatário e o comodatário) e por Henrique Mesquita, Obrigações reais cit.,
pág. 48, nota 17 (afirmando que o poder directo e imediato – pelo menos no sentido de poder material –
962
Uma objecção, especialmente dirigida ao penhor, realça como, mesmo nos casos
em que o poder directo e imediato sobre uma coisa seja detectável, nem sempre
constitui o instrumento através do qual o titular do direito real obtém a satisfação do seu
interesse.3257
Noutra ordem de considerações, também se poderá duvidar que, nos direitos
reais limitados, exista um poder directo e imediato sobre uma coisa que postula a
exclusão de todos os demais sujeitos, tendo em conta a relação específica que existe
entre o titular do direito real limitado e o proprietário.3258
Pelo contrário, não merecem grande acolhimento os reparos daqueles que
procuram equiparar os direitos reais e os direitos de crédito (exagerando a analogia
entre a garantia e a obrigação garantida), de modo a incluir ambas na mesma categoria,
porquanto, ao raciocinar assim, esquece-se a impossibilidade de falar em obrigação de
coisa (porque só as pessoas podem ser sujeitos de uma relação jurídica) e, por outro
lado, a pretensão a um valor específico em que o direito real se traduz, ao passo que o
direito obrigacional apenas tem como conteúdo a faculdade de exigir um valor
genérico.3259
não pode ser considerado como o traço distintivo da realidade, precisamente por haver direitos reais que
não conferem esse tipo de poderes ao seu titular, assinalando ainda que, inversamente, direitos não reais
há – como os direitos pessoais de gozo - que atribuem “o poder de agir directa e autonomamente sobre
uma coisa, possibilitando em tudo uma actuação jurídica em tudo idêntica à que ocorre nos direitos
reais”).
3257
Neste sentido, Henrique Mesquita, Obrigações reais cit., pág. 48, nota 17, alegando que, quando
assim é, o poder directo e imediato desempenha apenas uma função acessória ou instrumental
relativamente à finalidade do direito real, apontando como exemplo o penhor “que implica, em regra, a
entrega da coisa ao credor, mas tão-somente para dar publicidade à garantia e tornar mais segura a
posição do respectivo titular” (em termos análogos, Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 29, entendendo
que, no penhor, o desapossamento do devedor tem um valor instrumental, não final como nos direitos
reais de gozo).
3258
Alessandro Natucci, ob. cit., pág. 8.
3259
As teorias que propõem uma equiparação entre os direitos reais e os direitos de crédito baseiam-se,
segundo Mota Pinto, ob. cit., págs. 35 e 36, na identificação, também nestes últimos, de uma obrigação
passiva universal, defendendo Demogue, um dos seus principais arautos, que “também nos direitos de
crédito, envolvendo uma espécie de casca exterior, o poder que o credor tem de exigir a prestação do
devedor, existe uma obrigação – a que todos se encontram adstritos – de respeitar o direito de crédito, de
tal forma que qualquer consociado pode ser re