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Direito ao Desenvolvimento e Fonte de Pagamento:


em Busca dos Fundamentos Jurídicos para a Divisão
Interestatal do Poder de tributar a Renda 1
Mauro Silva
Mestre em Direito pela Universidade Mackenzie. Auditor-Fiscal da Receita Federal.

Introdução
Pretendemos dar alguma contribuição aos debates sobre a divisão interesta-
tal do poder de tributar a renda com argumentos jurídicos estreitamente relacio-
nados com o aprimoramento do direito internacional, principalmente do direito
internacional público, e que podem contribuir para que o direito tributário inter-
nacional possa agregar às influências de noções mais destacadamente econômicas,
como neutralidade e eficiência, o conteúdo jurídico do direito ao desenvolvimen-
to como reflexo da eqüidade e da justiça interestatal.
Relacionamos o direito tributário internacional com o direito ao desenvolvi-
mento para expressar nossa convicção de que a questão do desenvolvimento dos
países não é uma questão que depende apenas da existência de condições inter-
nas favoráveis. É também uma questão relacionada ao cenário internacional, que
tem sido, de fato, absolutamente concentrador da riqueza mundial, afirmação cla-
ramente demonstrada por todas as estatísticas mundiais de desenvolvimento so-
cial.
Essa concentração da riqueza mundial pode ser ainda mais agravada com o
crescimento do comércio eletrônico internacional, pois este faz desaparecer as tra-
dicionais conexões com o território de onde provém o consumo - residência e fonte
de produção - exigindo que sejam “pesquisados novos critérios que permitam atin-
gir o equilíbrio necessário entre as exigências de salvaguarda das instituições de
caráter econômico-jurídico e a ampla gama de oportunidades tecnológicas às quais
podem recorrer aqueles que atuam no ciberespaço”.2
A aproximação do direito tributário internacional da discussão internacional
sobre os direitos humanos, particularmente sobre o direito ao desenvolvimento,
atende à preocupação de Norberto Bobbio: “O problema grave de nosso tempo,
com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de
protegê-los”,3 acrescentando que “o problema real que temos que enfrentar, con-
tudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses
direitos”.4

1
O presente artigo é uma síntese de parte da Dissertação de Mestrado de mesmo título que foi sub-
metida, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, à banca examinadora composta pelos professo-
res doutores Luís Eduardo Schoueri (orientador), Alcides Jorge Costa e Hermes Marcelo Huck. Essa
síntese acatou as críticas da banca.
2
Cf. Associação Latino-americana de Integração. Secretaria-Geral. Estudo sobre a Situação Tributária
do Comércio Eletrônico. ALADI/SEC/Estudio 150/Rev. 2. 25 jul. 2003. Disponível em:
<http://www.aladi.org/nsfaladi/estudios.nsf>. Acesso em: 21 set. 2005, p. 68.
3
Cf. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Cam-
pus, 1992, p. 24.
4
Cf. BOBBIO, op. cit. (nota 3), p. 37.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 165

Para o enfrentamento do tema tomamos como animadoras as palavras do


mesmo saudoso filósofo do direito: “Com relação às grandes aspirações dos ho-
mens de boa vontade, já estamos demasiadamente atrasados. Busquemos não au-
mentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso
ceticismo. Não temos muito tempo a perder.”5

1. A Relação do Direito Tributário Internacional com o Direito Internacional


Público
Na definição de Celso Duvivier de Albuquerque Mello, direito internacional
público é “o conjunto de normas que regula as relações externas dos atores que
compõem a sociedade internacional”.6 Sua relação com o direito tributário inter-
nacional refere-se ao que Gerd Willi Rothman chamou de natureza “eminentemen-
te pública” do direito tributário internacional, em função da presença de dois ou
mais Estados soberanos, delimitando suas soberanias fiscais.7
Para o desenvolvimento de nosso estudo, esse aspecto da relação do direito
tributário internacional com o direito internacional público será tomado como
importante premissa.

2. O Princípio da Soberania Fiscal: a Soberania como Valor Preservado pela


Comunidade Internacional
Quando falamos da existência de uma comunidade internacional estamos
reconhecendo que as relações sociais intersubjetivas transcendem os limites dos
Estados, ocorrendo também entre indivíduos nacionais de diferentes Estados e
mesmo entre os Estados, que, apesar das intensas e marcantes diferenças entre si,
envidam esforços para manter a harmonia e a união.8 Nesse cenário marcado pela
diversidade, a soberania é identificada como o elemento que permite um ponto
de partida para a convivência internacional, o que possibilitou o surgimento de um
consenso em torno de sua posição de valor universal no relacionamento interesta-
tal.
Confirmando a soberania como valor a ser preservado no concerto das na-
ções, encontramos o texto da Carta das Nações Unidas9 que, nas alíneas 1ª e 7ª do
art. 2º, prescreve:
“1. A Organização é baseada no princípio da igualdade soberana de todos
os seus membros
...
7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a in-
tervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qual-
quer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma
solução, nos termos da presente Carta”.10
5
Cf. BOBBIO, op. cit. (nota 3), p. 64.
6
Cf. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. v. 1, 14. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 71.
7
Cf ROTHMANN, Gerd Willi. Interpretação e Aplicação dos Acordos Internacionais contra a Bitributação.
1978. Tese de Doutoramento em Direito. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1979, p. 11.
8
Cf. PEREIRA, André Gonçalves. Curso de Direito Internacional Público. 2. ed. Lisboa: Ática, 1970, p.
24-5.
9
Para acesso ao texto desse documento ver: RANGEL, Vicente Marotta. Direito e Relações Internacio-
nais. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2002, p. 28-54.
10
Cf. RANGEL, op. cit. (nota 9), p. 29.
166 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

3. O Conteúdo do Princípio da Soberania Fiscal


Benvenuto Griziotti entende a soberania fiscal como atributo do Estado que
“pode dispor do poder de império com o fim de procurar os meios necessários aos
gastos públicos, apelando para a coação, para desenvolver sua atividade financei-
ra, quando entenda necessário”.11 No entanto, registra que tal atributo “encontra
seus limites nas regras morais e políticas da Justiça e do bem; na consciência jurí-
dica do povo; nos princípios gerais do direito e no próprio ordenamento jurídico,
e na natureza, objeto e fins da atividade do Estado”.12
Nesse contexto, não podemos deixar de considerar o pensamento de Alegria
Borrás em relação aos princípios de direito tributário internacional, quando a au-
tora argumenta que “não é admissível uma atitude, como a de Bühler, que formu-
la todo o direito internacional tributário em forma de princípios, pois considera
como tais os que em realidade não são, como o ‘princípio da nacionalidade’, ‘prin-
cípio do estabelecimento’, ‘princípio da imputação e da isenção’ etc, que podem
ser princípios de caráter instrumental, mas não princípios gerais de direito”.13
É a mesma Alegria Borrás que sentencia: “Podemos, pois, dizer em conclu-
são que o único princípio existente em direito tributário internacional é a sobera-
nia fiscal”,14 posição com a qual concorda Antônio de Moura Borges.15
Essa conclusão levar-nos-ia a uma visão parcial da disciplina. Equivaleria a
preocuparmo-nos somente com os interesses estatais, esquecendo os contribuin-
tes que realizaram os fatos conexos com mais de uma ordem jurídica nacional e
que podem ficar sujeitos a uma imposição tributária superior à sua capacidade
contributiva, a depender da solução adotada para contemplar a manutenção das
soberanias fiscais envolvidas. No entanto, como aqui nosso objeto de estudo não
envolve todos os princípios de direito tributário internacional, deixaremos de avan-
çar com tais considerações, mas ressalvamos que não entendemos ser a soberania
fiscal o único princípio da disciplina.

3.1 Nacionalidade e territorialidade como critérios e não como princípios


Consoante nosso entendimento sobre princípios,16 não é possível falarmos em
princípio da territorialidade, princípio da nacionalidade e princípio da residên-
cia, pois os conteúdos desses não possuem carga valorativa que os credencie a ser
entendidos como princípios. Preferimos entender nacionalidade, territorialidade
e residência como critérios escolhidos pelo ente estatal para expressar sua sobera-
nia fiscal, essa sim apta a ser considerada como princípio por carregar o consenso
internacional de seu valor como elemento de igualdade entre os Estados.17
11
Cf. GRIZIOTTI, Benvenuto. Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda. Trad. Enrique R.
Mata. Madrid: Reus, 1935, p. 16.
12
Cf. GRIZIOTTI, op. cit. (nota 11), p. 16.
13
Cf. BORRÁS, Alegría. La Doble Imposición: Problemas Jurídico-internacionales. Madrid: Instituto de Es-
tudios Fiscales, Ministerio de Hacienda, 1974, p. 166.
14
Cf. BORRÁS, op. cit. (nota 13), p. 168-9.
15
Cf. BORGES, Antônio de Moura. Convenções sobre Dupla Tributação Internacional. Teresina: Editora
da Universidade Federal do Piauí, 1992, p. 26.
16
Princípios são normas que possuem um conteúdo valorativo destacado, um fim juridicamente rele-
vante que permite a autenticação de sua natureza. Essa noção é extraída, entre outros, de: ÁVILA,
Humberto. Teoria dos Princípios - da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. São Paulo: Malhei-
ros, 2003.
17
Fazendo considerações sobre o conteúdo dos princípios e concluindo que territorialidade é um
princípio, encontramos em: CARVALHO, Paulo de Barros. “O Princípio da Territorialidade no
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 167

Também encontramos Carlos M. Giuliani Fonrouge tratando nacionalidade


e residência como critérios atributivos do poder fiscal com base em circunstâncias
de ordem pessoal ao lado da sede de negócios e da fonte em que se origina a ri-
queza tributável como circunstâncias de índole econômica.18
Nossa opção é por sistematizar os critérios atributivos da soberania fiscal em
critérios baseados na nacionalidade, ou de índole pessoal, e critérios baseados na
territorialidade. Essa opção encontra respaldo na própria concepção clássica de
Estado ensinada por Dalmo de Abreu Dallari para quem o Estado é a “ordem ju-
rídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determi-
nado território”,19 e também no magistério de Alberto Xavier.20
Sobre nossa opção de denominar nacionalidade e territorialidade como cri-
térios atributivos da soberania fiscal, podemos buscar amparo para tanto nas lições
de vários doutrinadores.
Alberto Xavier, ao tratar do que denomina “princípio da territorialidade”,
refere-se à territorialidade como critério. Vejamos o trecho em destaque:
“A invocação do princípio da territorialidade já não constitui, pois, critério
suficiente para a imputação de um fato tributário a um determinado terri-
tório: tornam-se indispensáveis critérios suplementares que determinem,
para cada tipo de situação, de modo positivo, a conexão relevante e que,
quanto às realidades imateriais ou incorpóreas, definam a sua localização
ou ‘sede’.”21 (grifos nossos)
Também Benvenuto Griziotti trata a territorialidade de modo similar e de-
fende a elaboração de critérios jurídicos e científicos racionais para servirem de
guia à atribuição internacional do poder tributário e obter a uniformidade das
regras tributárias.22
Francisco Neves Dornelles, comentando o Modelo ONU, afirma:
“Muito embora o Modelo das Nações Unidas não tenha consagrado com
exclusividade o princípio do domicílio, tendo feito concessões ao princí-
pio da fonte, o primeiro é o critério dominante na delimitação do poder
tributário. E aí reside a falha capital desse modelo.”23 (grifo nosso)
Paulo de Barros Carvalho, em artigo sobre o “princípio da universalidade”,
também trata o mesmo como critério.24

Regime de Tributação da Renda Mundial (Universalidade)”. Justiça Tributária - 1º Congresso Inter-


nacional de Direito Tributário - IBET. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 665-77 (p. 667-70).
18
Cf. FONROUGE. Carlos M. Giuliani. Derecho Financiero. v. I. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1977,
p. 331.
19
Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 118.
20
Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004,
p. 21.
21
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 28.
22
Cf. GRIZIOTTI, op.cit. (nota 11), p. 248.
23
Cf. DORNELLES, Francisco Neves. “O Modelo da ONU para eliminar a Dupla Tributação da Ren-
da, e os Países em Desenvolvimento”. In: TAVOLARO, Agostinho T.; MACHADO, Brandão; MAR-
TINS, Ives Gandra (Coords.). Princípios Tributários no Direito Brasileiro e Comparado - Estudos em Ho-
menagem a Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 195-232 (p. 203).
24
Cf. CARVALHO, op. cit. (nota 17), p. 672.
168 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

As considerações de Heleno Tôrres sobre a universalidade ora a tratam como


critério de conexão, ora a tratam como princípio de conexão, conforme podemos
observar abaixo:
“Na dinâmica deste princípio [da universalidade], o sistema de disposições
pertinentes ao tratamento interno de rendimentos tributáveis, localizados
tanto territorial como ultraterritorialmente, se perfaz na conjugação de
critérios de conexão (...).”25
“A escolha do princípio de conexão da universalidade, em alternativa ao
da territorialidade ‘pura’, depende de variáveis de política fiscal muito
complexas e responde aos interesses de oportunidade e conveniência à
estrutura administrativa, tributária e financeira do Estado, como funda-
mentação ao alcance de fatos constituídos no exterior.”26 (grifo nosso)
Referindo-se às lições de Spitaler sobre a bitributação, Luís Eduardo Schoueri
fala em critérios para a tributação:
“(...) difíceis são os casos em que a bitributação é evitada, posto que inexis-
te unanimidade sobre qual o critério mais ‘justo’ e ‘eficaz’ para a tributa-
ção. Tal eliminação [da bitributação] dar-se-ia, por certo, se todos os Esta-
dos aplicassem, uniformemente, um único critério para a conexão de pes-
soas e situações a seus territórios.”27 (grifo nosso)
Klaus Vogel registra a busca por um critério de divisão dos tributos inciden-
tes sobre a renda e o capital no trecho a seguir:
“Regarding the question as to what criteria should be applied when dividing
taxes on income and capital among two estates, views have been advanced
by economists and lawyers.”28 (grifo nosso)
Claudio Sachetto registra que há cerca de vinte anos, por influência da dou-
trina anglo-saxã, preocupada com o aspecto empírico e operacional do chamado
princípio da territorialidade -, até então visto como uma categoria essencial do
pensamento jurídico - observa-se uma tendência na transformação de seu enten-
dimento como princípio para critério de política econômica, com o objetivo de
repartir o poder de tributar entre diversos Estados, praticando a neutralidade fis-
cal e a eqüidade interestatal.29 Embora nossa posição não seja a de adotarmos um
“critério de política econômica”, mas sim um critério de realização ou concretiza-
ção do princípio da soberania fiscal, identificamos que nosso objetivo é coincidente
com tais posicionamentos doutrinários apontados pelo autor, salvo no que se re-
fere à neutralidade fiscal.

25
Cf. TÔRRES, Heleno. Pluritributação Internacional sobre as Rendas das Empresas. 2. ed. São Paulo: RT,
2001, p. 88.
26
Cf. TÔRRES, op. cit. (nota 25), p. 91.
27
Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Acordos de Bitributação e Lei Interna - Investimentos na Ilha da
Madeira - Efeitos da Lei nº 9.249/95”. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 17, p. 91-127, fev. 1997,
p. 94.
28
Cf. VOGEL, Klaus. Klaus Vogel on Double Taxation Conventions: a Commentary to the OECD. UN and
Us model conventions for the avoidance of double taxation of income and capital. Boston: Kluwer
Law and Taxation Publishers, 1991, p. 6. O trecho pode ser livremente traduzido como: “Com re-
lação à questão de qual critério poderia ser aplicado na divisão entre os Estados dos tributos sobre a
renda e o capital, economista e juristas têm manifestado seus pontos de vista.”
29
Cf. SACCHETTO, Claudio. “Territorialità”. Enciclopedia del Diritto. Itália: Dott. A. Giuffrè, 1992, p.
305.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 169

4. Critérios Atributivos do Princípio da Soberania Fiscal


4.1 Critério da nacionalidade
As tentativas de fundamentação do poder interestatal de tributar baseadas na
nacionalidade não conseguiram espaço relevante na doutrina ou na sua adoção no
cenário internacional. Uma das principais razões para isso foi anotada por Gilberto
de Castro Moreira Júnior como sendo resultado da “idéia de tratamento igualitá-
rio entre cidadãos nacionais e estrangeiros, fundada nos princípios da igualdade
e da capacidade contributiva, que apenas admitem um tratamento tributário dis-
tinto baseado na desigualdade da capacidade econômica”.30 Nos dias atuais, Esta-
dos Unidos e Filipinas ainda utilizam-na em matéria de impostos sobre o rendi-
mento, e Turquia e Estados Unidos em matéria de imposto sobre as sucessões e
doações, conforme a lição de Alberto Xavier.31

4.2 Critério da territorialidade


É Alberto Xavier que nos traz as lições sobre territorialidade, compreenden-
do-a em seus sentidos positivo ou negativo, material ou formal.
Negativamente, a territorialidade significa que as leis estrangeiras não se
aplicam ao território do país em causa, enquanto positivamente significa que as leis
tributárias internas se aplicam ao território nacional, inclusive aos que não são
nacionais do Estado.32
O critério da territorialidade, em seu sentido material, resulta em destacar
entre as situações tributárias internacionais aquelas que serão atingidas pelas leis
fiscais internas, a depender do elemento de conexão com o território do Estado.
Em sentido formal, implica reconhecer que as leis tributárias só podem ter execu-
ção coercitiva nos limites do território do Estado que as editou.33 Manlio Udina
registrou assim tal situação: “O Estado que pretender fazer atuar coercitivamente
o próprio comando tributário fora do limite territorial de seu poder de império,
em casos não expressamente consentidos, não só cometerá um ilícito internacio-
nal como não terá êxito na prática”.34
Em qualquer dos sentidos, entretanto, é forçoso identificarmos o elemento,
objetivo ou subjetivo, que será apto a estabelecer a conexão da situação tributária

30
Cf. MOREIRA JUNIOR, Gilberto de Castro. Bitributação Internacional e Elementos de Conexão no Mo-
delo de Convenção da OCDE em Matéria de Rendimento e Capital. Tese (Doutorado em Direito). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2002, p. 133.
31
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 239-40. Sobre o abandono do critério da nacionalidade e sua uti-
lização atualmente por Estados Unidos, México e Filipinas, ver: SCHOUERI, Luís Eduardo. “Di-
reito Tributário Internacional. Acordos de Bitributação. Imposto de Renda: Lucros Auferidos por
Controladas e Coligadas no Exterior. Disponibilidade. Efeitos do artigo 74 da Medida Provisória
nº 2.158-35 - Parecer”. In: COSTA, Alcides Jorge; SCHOUERI, Luís Eduardo (Coords.). Direito
Tributário Atual, v. 16. São Paulo: Dialética, 2001, p. 146-160 (p. 164). A inclusão do México entre
os países que ainda utilizam o critério da nacionalidade é corroborada por Carlos M. Giuliani Fon-
rouge em: FONROUGE, op. cit. (nota 18), p. 332. Manuel Pires acrescenta que em Portugal a naci-
onalidade é elemento relevante para a taxa militar, sendo esta um tributo substitutivo do serviço
militar, o que lhe forneceria razão suficiente para estar ligado à nacionalidade (cf. PIRES, Manuel.
Da Dupla Tributação Jurídica Internacional sobre o Rendimento. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1984,
p. 259). Na mesma obra do autor português, encontramos a apreciação dos argumentos a favor e
contra o critério da nacionalidade (p. 254-9).
32
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 23
33
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 25.
34
UDINA, Manlio. Il Diritto Internazionale Tributario. Padova: Cedam, 1949, p. 58.
170 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

internacional com o território de determinado Estado. O elemento objetivo está


ligado à materialidade do fato imponível, aos seus aspectos reais como local da
situação dos bens, local do exercício de uma atividade, local da fonte de produção
ou do pagamento de um rendimento. O elemento subjetivo está ligado a aspectos
que apontam para características do sujeito passivo diversas da nacionalidade como
sede e residência.35
Com o abandono do critério da nacionalidade, Luís Eduardo Schoueri con-
clui que “o conflito entre o ‘princípio da fonte’ e o ‘princípio da residência’ é a
forma mais moderna para se qualificar o que antes se entendia como o ‘princípio
da territorialidade da tributação’”,36 não representando uma superação da terri-
torialidade em favor da residência e da fonte, como parece ter concluído Alberto
Xavier quando afirmou que “o princípio da territorialidade, pela ambigüidade do
seu sentido, tem hoje pouca valia na construção dogmática do Direito Tributário
Internacional, o qual radica os seus alicerces nos princípios - estes de conteúdo
preceptivo mais denso - da residência e da fonte”.37
A partir desse ponto propomos entender a territorialidade como critério atri-
butivo da soberania fiscal, ao lado da nacionalidade, e, por seu turno, fonte e resi-
dência38 como subcritérios da territorialidade.

4.2.1 Subcritério da residência


A residência implica a presença física, permanente ou temporária, a dispo-
nibilidade de uma habitação, no caso das pessoas físicas. Para as pessoas jurídicas,
a residência está relacionada ao local de sua constituição, de sua sede ou da dire-
ção efetiva.39

4.2.2 Subcritério da fonte


Klaus Vogel aponta a ambigüidade da noção de fonte e conclui que esta só
não existe em relação ao que exclui, ou seja, a adoção do critério da fonte exclui o
critério da residência. Por outro lado, o sentido positivo de fonte refere-se ao Es-
tado, que, de alguma forma, está conectado com a produção da renda ou ao Esta-
do onde é adicionado valor ao bem. Porém, o tipo de conexão estabelecida não
pode ser definido claramente, a ponto de, tanto nas legislações atuais quanto nas
anteriores, domésticas ou internacionais, existirem várias maneiras de conceituar
fonte.40

35
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 24.
36
Cf. SCHOUERI, op. cit. (nota 27), p. 92.
37
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 29.
38
Não fazemos distinção, para este trabalho, entre residência e domicílio, pois, conforme alertou-nos
Heleno Tôrres, “a distinção entre residência e domicílio para o Direito Tributário Internacional é
desprovida de sentido”, tendo ocorrido pela prática internacional uma “uniformização terminoló-
gica, com a preferência pelo conceito de residência” (cf. TÔRRES, op. cit. (nota 25), p. 127). Nesse
sentido, Manuel Pires ressalta que nas modernas convenções fiscais ocorreu uma substituição da
utilização do termo domicílio pelo termo residência (cf. PIRES, op. cit. (nota 31), p. 222). Entendendo
haver relevância na distinção entre os dois conceitos, encontramos em: XAVIER, op. cit. (nota 20),
p. 252-5.
39
Cf. PIRES, op. cit. (nota 31), p. 220.
40
Cf. VOGEL, Klaus. “Worldwide vs. Source Taxation of Income - a Review and Reevaluation of Ar-
guments”. In: McLURE, Sinn, Musgrave et. al. Influence of Tax Diferencials on International Competiti-
veness, [S.l.]: Kluwer, [19—?], p. 117-166, (p. 127-8).
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 171

Sem aprofundarmos no conceito de fonte,41 mas procurando fixar nosso en-


tendimento, registramos a distinção entre fonte de produção e fonte do pagamen-
to.

4.2.2.1 Fonte de produção


Fonte de produção, também denominada fonte econômica ou fonte objetiva,
é a acepção clássica de fonte que entende estar esta localizada “no lugar em que é
exercida a atividade, em que são utilizados os fatores de produção ou em que se
situam os bens ou direitos de que provém”.42

4.2.2.2 Fonte do pagamento


Fonte do pagamento compreende o local do qual teve origem o pagamento
do rendimento, daí ser chamada de fonte financeira ou fonte subjetiva.43
Alberto Xavier critica a consideração de fonte de produção e fonte do paga-
mento como espécies de um gênero comum por entender não existir um nexo
causal entre fonte de pagamento e renda, estando fonte do pagamento ligada à
realização da renda. Tais críticas estão relacionadas à idéia do autor do que seja
renda, mas, no âmbito do direito tributário internacional, não podemos ignorar
que a fonte do pagamento é um dos elementos que permite estabelecer a conexão
de uma renda com uma soberania fiscal, principalmente num cenário que nos co-
loca “perante a desmaterialização dos principais fatos tributários e a interdepen-
dência econômica e jurídica que os liga”.44
Em sentido oposto, podemos encontrar nas lições de Francisco Neves Dor-
nelles justificativas para a utilização da fonte do pagamento ligadas ao próprio
conceito de renda:
“Sob o aspecto doutrinário, cabe ao Estado onde ocorreu o fato gerador o
direito primordial de tributar a renda. O imposto de renda não incide so-
bre as pessoas físicas ou jurídicas em si mesmas, mas sobre a renda por elas
auferida. Tal tributo é devido a partir da ocorrência de um fato eleito por
lei e ligado, direta ou indiretamente, à pessoa que auferiu a renda. Antes
da ocorrência desse fato, inexiste, do ponto de vista tributário, qualquer
vinculação entre o Estado e o contribuinte. É esse suporte fático que, sen-
do gerador da obrigação tributária, faz nascer as figuras de um devedor e
um credor. Tendo em vista que o fato gerador do imposto de renda é, em
regra, a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica do rendimen-
to e que este é, em princípio, posto à disposição do beneficiário no país em
que é gerado, não se pode ignorar, ao se definir o poder de tributar de um
Estado, o local onde esse fato ocorreu.”45

41
Para o aprofundamento da discussão sobre o sentido de fonte ver: PINTO, Dale. E-commerce and
Source-based Income Taxation. Doctoral Series, v. 6. Amsterdam: International Bureau of Fiscal Do-
cumentation, 2002, p. 47-56; VASCONCELOS, Roberto França. Tributação do Comércio Eletrônico
Internacional. Tese (Doutorado em Direito). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002, p. 145-7;
VOGEL, op. cit. (nota 40), p. 127-36.
42
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 269. Ver também PIRES, op. cit. (nota 31), p. 234-5; VASCONCE-
LOS, op. cit. (nota 41), p. 151.
43
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 270.
44
Cf. XAVIER, op. cit. (nota 20), p. 271.
45
Cf. DORNELLES, op. cit. (nota 23), p. 206.
172 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

Marco Aurélio Greco, ao tratar das alternativas a serem debatidas no contex-


to da crise do imposto sobre a renda na sua feição tradicional, não deixou escapar
esse fato:
“Quando os agentes, atividades e a renda têm mobilidade, quando o mun-
do vai a passos largos na direção do comércio de bens virtuais e do comér-
cio através de meios eletrônicos, um dos poucos elementos captáveis será
a movimentação financeira daí decorrente, pois, de algum modo e em al-
gum momento, os serviços, transações financeiras, acesso e obtenção de
intangíveis etc. serão remunerados.”46
Essa situação também foi apontada por Luís Eduardo Schoueri no trecho que
destacamos a seguir:
“A evolução, de fonte de produção a fonte de pagamento, também mostra
sua utilidade, quando se reflete acerca do tema do comércio eletrônico.
Afinal, a legislação baseada no conceito da fonte de produção impõe, como
condição prévia à tributação, que se afira em que local foi produzido o ren-
dimento. Em caso de transações eletrônicas, a tarefa se revela dificílima,
já que o próprio conceito de produção de rendimento (qualquer que seja
seu conteúdo) fica extremamente diluído. Não é difícil conceber o desafio
dos legisladores nacionais para descrever hipóteses de incidência que cap-
tem a realidade em todas as dimensões, sendo provável a existência, de um
lado, de lacunas legais e, de outro, de sobreposições que causem a bitribu-
tação. Tal sobreposição, se já era denunciada anteriormente ao fenômeno
do comércio eletrônico, diante da plurivalência do termo ‘fonte’, tem seu
potencial aumentado exponencialmente na realidade econômica. Decor-
re daí a importância da adoção do conceito de fonte de pagamento, que
tem a seu favor a maior simplicidade em sua determinação, já que não se
indaga onde se produziu o rendimento, mas quem foi que pagou.”47
De maneira similar, Roberto França Vasconcelos aponta que “a grande van-
tagem deste sistema (fonte de pagamento) é que ele não deve ser seriamente afe-
tado pelo comércio eletrônico, mantendo em certo sentido a sua simplicidade”.48
Em outro trecho, o mesmo autor realça que “a maior vantagem da determinação
da origem do rendimento pelo critério da fonte de pagamento é o aspecto prag-
mático, vale dizer, a facilidade em se estabelecer a sua localização. Afigura-se, por
isso mesmo (...), uma excelente alternativa para o comércio eletrônico, para fins
de permitir ao país da fonte a tributação desta atividade.”49
Muitas justificações para a utilização da fonte do pagamento têm sido feitas
baseando-se na teoria do benefício ou da utilidade. Essa teoria, inspirada na filo-
sofia iluminista, considera os tributos uma contrapartida para os benefícios con-
cedidos pelo Estado, em especial em razão da proteção do Estado à pessoa e à
propriedade.50 Claudio Sachetto faz tal associação e utiliza as críticas dirigidas à

46
Cf. GRECO, Marco Aurélio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética, 2000, p. 174.
47
Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Imposto de Renda e o Comércio Eletrônico”. In: COSTA, Alcides
Jorge; SCHOUERI, Luís Eduardo (Coords.). Direito Tributário Atual, v. 16. São Paulo: Dialética, 2001,
p. 146-160 (p. 156).
48
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 151-2.
49
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 202.
50
Cf. VOGEL, Klaus. “Tributação da Renda Mundial”. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públi-
cas, v. 2, n. 7, p. 133-143, abr.-jun. 1994, p. 134.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 173

teoria do benefício para a tributação baseada na fonte.51 Entre as diversas críticas,


Luís Eduardo Schoueri, apoiado em Allix, sentencia que “fosse verdadeira a teo-
ria do benefício, então justamente os menos capacitados economicamente, porque
dependem mais diretamente do Estado, ou porque gozam de mais benefícios ofe-
recidos pelo Estado, deveriam pagar impostos”.52
Entendemos ocorrer um equívoco quando se relaciona o critério da fonte com
a teoria do benefício. Tal raciocínio está seguindo uma lógica liberal, individual,
não solidária, na qual o Estado está a serviço do indivíduo e de sua propriedade.
Uma visão do Estado Social53 levar-nos-ia a compreender que a renda foi produ-
zida utilizando os meios providos pelo Estado por meio dos recursos arrecadados
da coletividade, sendo que esta mesma coletividade deve poder receber de volta a
atuação estatal financiada pelos tributos arrecadados também sobre aquela renda.
Faremos adiante a apresentação do direito ao desenvolvimento como um dos
fundamentos jurídicos para a utilização da fonte do pagamento como critério atri-
butivo da soberania fiscal. É uma alternativa para escapar dessa lógica individual
por meio de argumentos fundados na solidariedade e na busca internacional pelo
aprimoramento do trato das questões dos direitos humanos.

4.3 Universalidade e territorialidade


A tributação da renda mundial ou universalidade geralmente é tratada como
um “princípio” associado à territorialidade, seja para realizá-la,54 seja para posicio-
nar-se em oposição a esta.55 Tal associação a que nos referimos colocaria universa-
lidade e territorialidade com a mesma função para o direito tributário internacio-
nal: servir de critério atributivo da soberania fiscal.56 Entendemos que a universa-
lidade não é um critério atributivo da soberania fiscal, mas um modo de aplicar a
tributação sobre a renda ligado à incidência do imposto sobre todas os rendimen-
tos, independentemente de suas origens.57 Essa é a lição de Ottmar Bühler que vê
apenas territorialidade e nacionalidade como capazes de estabelecer limitações ao
poder tributário.58 No mesmo sentido, Luís Eduardo Schoueri adverte que mes-
mo Estados que aplicam o critério da fonte poderiam levar em consideração cir-

51
Cf. SACCHETTO, op. cit. (nota 29), p. 332.
52
Cf. SCHOUERI, op. cit. (nota 47), p. 155.
53
Entendemos Estado Social como “um Estado politicamente ativo, que desempenha funções distri-
butivas, que em última análise desconhece o dualismo entre estado e sociedade” (cf. FERRAZ JU-
NIOR, Tercio. “Guerra Fiscal, Fomento e Incentivo na Constituição Federal”. In: SCHOUERI, Luís
Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio (Coords.). Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Bran-
dão Machado. São Paulo: Dialética, 2001, p. 275-285 (p. 275)). Também se referindo ao Estado So-
cial ver: BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de tributar. Edição revista e amplia-
da, à luz da Constituição de 1988 até a Emenda Constitucional nº 10/1996 por Misabel Abreu Ma-
chado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 8; TIPKE, Klaus. “Fundamentos da Justiça Fiscal”.
In: TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Pau-
lo: Malheiros, 2002, p. 13-48, passim.
54
Cf. CARVALHO, op. cit. (nota 17), passim.
55
Cf. BÜHLER, Ottmar. Principios de Derecho Internacional Tributario. Trad. de Fernando Cervera
Torrejon. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1968, p. 220; SACCHETTO, op. cit. (nota 29),
p. 306.
56
Cf. TÔRRES, op. cit. (nota 25), p. 94.
57
Sobre a universalidade no imposto sobre a renda ver: QUEIROZ, Luís César Souza de. Imposto so-
bre a Renda: Requisitos para uma Tributação Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 99.
58
Cf. BÜHLER, op. cit. (nota 55), p. 220.
174 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

cunstâncias que ultrapassam os limites de seu território, por exemplo, se exigis-


sem que o contribuinte informasse o total de seu rendimento - aplicando, portan-
to, a universalidade - para estabelecer a alíquota aplicável e, conseqüentemente, o
montante do tributo devido. Por outro lado, ainda nos Estados que aplicam o cri-
tério da residência pode ocorrer de não ser levado em conta manifestações de ca-
pacidade contributiva ocorridas fora do território, o que revelaria uma não obe-
diência à universalidade.59

5. Critérios que marcam não a Exclusividade, mas o Compartilhamento do


Poder Interestatal de tributar
A incisiva afirmação de Klaus Vogel dando conta que “para a tributação jus-
ta, uma repartição da tributação entre vários Estados já não é uma blasfêmia”60
serve para marcar o início deste item no qual pretendemos mostrar os argumen-
tos que sustentam a idéia de repartição do poder interestatal de tributar a renda.
Manuel Pires rejeita quaisquer soluções que resultem em atribuir exclusivida-
de para a tributação no Estado da residência ou da fonte, concluindo que não existe
“razão científica para a tributação exclusiva em qualquer dos Estados respectivos”.61
Sugere que se reconheça o poder de tributação de ambos, de modo que “o Estado
da residência teria o poder de tributar a globalidade do rendimento, satisfazen-
do, pois, as exigências de um imposto pessoal e subjectivo, atingindo assim a ca-
pacidade contributiva”, enquanto “ao Estado da fonte é reconhecido o seu poder
tributário relativamente a todas as realidades que se encontram no seu território,
ao rendimento que com ele está intimamente conexionado, que dele provém”.62
Francisco Neves Dornelles, apoiando-se em Dino Jarach, também chama
nossa atenção para o fato de que a doutrina não é pacífica quanto à tributação
exclusiva pelo país da residência.63
A adoção do critério exclusivo da fonte, segundo Ramon Valdes Costa, signi-
fica que o país da fonte tem jurisdição sobre as riquezas existentes ou produzidas
em seu território e que não pode tributar este tipo de bens quando situados no
exterior. Adotando a fonte como critério prioritário, o país da fonte pode tributar
tais bens, sem prejuízo das limitações que podem advir dos tratados e pode tribu-
tar subsidiariamente as rendas de fonte estrangeira reconhecendo os créditos por
imposto pago no país da fonte deste bem. Seria, conforme as conclusões do autor,
mais adequado para evitar a fuga para paraísos fiscais64 ou para países com me-
nor tributação.65
Quando buscamos identificar fundamentos jurídicos para a divisão interes-
tatal do poder de tributar a renda, estamos, de alguma forma - sem fazer parte de
nosso principal objetivo -, refletindo a preocupação de Benvenuto Griziotti quan-

59
Cf. SCHOUERI, op. cit. (nota 27), p. 94.
60
Cf. VOGEL, op. cit. (nota 50), p. 135.
61
Cf. PIRES, op. cit. (nota 31), p. 315.
62
Cf. PIRES, op. cit. (nota 31), p. 309.
63
Cf. DORNELLES, op. cit. (nota 23), p. 205.
64
Sobre paraísos fiscais ver: HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e Elisão. Rotas Nacionais e Internacionais
do Planejamento Tributário. São Paulo: Saraiva, 1997.
65
Cf. COSTA, Ramon Valdes. Estudios de Derecho Tributario Internacional. Montevideo: [s.e], 1978, p.
197-8.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 175

to às formas de se evitar a bitributação internacional. Para o autor, “o que é verda-


deiramente essencial para obter a uniformidade das regras tributárias, é chegar a
uma elaboração de critérios jurídicos e científicos racionais que sirvam de guia à
atribuição internacional do imposto”.66
Essa aplicação racional dos critérios afastará a ocorrência da bitributação
quando adotamos o compartilhamento do poder de tributar a renda.

5.1 A pertinência econômica nos primórdios da idéia de compartilhamento do poder de


tributar
A noção de pertinência econômica tem origem nas idéias de Georg von
Schanz em artigo publicado em 1892. Nesse artigo o autor alemão descarta a resi-
dência, a presença física no território e a nacionalidade como critérios básicos para
estabelecer uma conexão da renda com o ente tributante, afirmando que somente
a pertinência econômica seria capaz de determinar uma justa e eqüitativa distri-
buição do poder de tributar. A pertinência econômica, então, estaria relacionada
à participação do indivíduo na vida econômica e social do Estado, seja pelo con-
sumo, pela atividade empresarial ou pelo investimento, obrigando uma pessoa a
pagar tributo sobre a renda não somente no Estado de sua residência, mas tam-
bém no Estado onde suas atividades são exercidas ou sua renda surge. Com essa
premissa, Georg von Schanz propõe uma divisão do poder de tributar a renda,
consistindo numa fórmula na qual o Estado da fonte ficaria com três quartos do
tributo e o Estado de residência ficaria com um quarto da arrecadação.67
Quando trata da proporção das respectivas tributações, Manuel Pires afasta
a possibilidade de fixar aprioristicamente e com caráter geral uma tal proporção,
observando que circunstâncias como a categoria do rendimento e o montante da
matéria coletável devem ser considerados de modo a não afetar a eqüidade nas
relações entre os Estados. Não deixa de registrar, porém, que a parcela mais sig-
nificativa do montante do tributo sobre o rendimento deve ser atribuída ao país
da fonte por força da pertinência econômica.68
Tomando o direito ao desenvolvimento, e não a pertinência econômica, como
fundamento, chegaremos a essa mesma conclusão de Manuel Pires, particularmen-
te, quando o país da fonte for um país em desenvolvimento.

5.2 Inadequação do estabelecimento permanente69 como critério exclusivo na atribuição da


soberania fiscal, especialmente para a tributação da renda do comércio eletrônico
internacional
As facilidades do comércio eletrônico internacional estão mudando os para-
digmas que foram tomados, antes de seu surgimento e crescimento, como premis-

66
Cf. GRIZIOTTI, op. cit. (nota 11), p. 248.
67
Cf. SCHANZ, Georg von. “Zur Frage der Steuerpflicht”. 9 II Finanzarchiv 1, 4, 1982. Apud VOGEL,
op. cit. (nota 40), p. 122. Georg von Schanz referiu-se à pertinência econômica (wirstschaftliche Zu-
gehörigkeit em alemão e economic allegiance em inglês) como um princípio.
68
Cf. PIRES, op. cit. (nota 31), p. 315.
69
O conceito mais difundido de estabelecimento permanente é o contido no art. 5º do Modelo de
Convenção da OCDE: um lugar fixo de negócios, mediante o qual uma empresa realiza toda ou
parte de sua atividade.
176 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

sas pelos estudiosos do direito tributário internacional nas discussões sobre a divi-
são interestatal do poder de tributar a renda.
Antes de prosseguirmos, exporemos nossa compreensão sobre comércio ele-
trônico.

5.2.1 Características do comércio eletrônico


O comércio eletrônico compreende tanto a intermediação comercial de bens
corpóreos que serão entregues por meios tradicionais, o chamado comércio ele-
trônico indireto, como o comércio de bens não-corpóreos - por exemplo, softwares
e utilidades virtuais -, chamado comércio eletrônico direto. Esta última modalida-
de pode confundir-se com a prestação de serviços, mas, na esteira de Marco Auré-
lio Greco, entendemos que o elemento preponderante para nosso estudo é o uso
do meio eletrônico e não o fato de estarmos diante de comércio ou de prestação
de serviços.70
Sobre as características do comércio eletrônico, Roberto França Vasconcelos
destaca a desnecessidade de presença física para a consecução das operações, a
celebração de transações ininterruptamente, a maior interação entre as partes,
dispensando-se a figura do intermediário e a maior dificuldade de controle, por
parte dos órgão oficiais, dos negócios celebrados na rede.71
Tratando da eliminação da figura do intermediário, Luiz Olavo Baptista faz
interessante analogia do comércio eletrônico com a figura do “mascate”. Como em
muitos casos no comércio eletrônico, o mascate - comerciante que visitava as pes-
soas na zona rural ou nos bairros afastados, levando mercadorias de pequeno porte
e imagens ou amostras de outras que entregaria se encomendadas - não tinha es-
tabelecimento próprio e não mantinha estoques significativos, somente adquirin-
do as mercadorias que entregaria. Era um personagem que se deslocava até o con-
sumidor final, eliminando a necessidade de este ir à procura das mercadorias que
desejava adquirir, celebrando contratos, via de regra, orais. É certo, no entanto, que
o comércio eletrônico acaba por dar as transações comerciais novas formas e pos-
sibilidades, indo além daquilo que Luiz Olavo Baptista considerou quando afirmou
que “a informática simplesmente permite fazer mais depressa e eficientemente
aquilo que antes se alcançava por outras maneiras”.72

5.2.1.1 O comércio eletrônico alterando as premissas da doutrina


Em obra publicada em 1966, Fernando Sainz de Bujanda, que à época era
catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Madri, verificava a exis-
tência de apenas duas situações que interessavam ao direito tributário internacio-
nal: a situação fiscal das empresas que operam diretamente, isto é, sem entidades
interpostas, em diversos territórios nacionais, e a situação fiscal das empresas que
operam em diversos Estados criando e financiando em cada um deles sociedades

70
Cf. GRECO, op. cit. (nota 46), p. 78. Consultar também: PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Comér-
cio Electrónico na Sociedade da Informação: da Segurança Técnica à Confiança Jurídica. Coimbra: Alme-
dina, 1999, p. 14-5.
71
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 9.
72
Cf. BAPTISTA, Luiz Olavo. “Comércio Eletrônico: uma Visão do Direito Brasileiro”. Revista da Fa-
culdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 94, 1999, p. 83-100 (p. 84-5).
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 177

dotadas formalmente de autonomia, mas submetidas jurídica e economicamente


à empresa matriz.73
Mesmo para essas duas situações, o critério da residência já era objeto de crí-
ticas por parte da doutrina, a ponto de Carlos M. Giuliani Fonrouge afirmar, em
1977, que “ainda que quando o critério da ‘sede de negócios’ tenha resultado em
progresso sobre os de índole pessoal, deixa subsistentes muitos problemas e não
enfoca o assunto em sua integridade, nem se amolda às características da organi-
zação econômica moderna”.74
Com o surgimento do comércio eletrônico, essa inadequação do critério da
“sede dos negócios” torna-se mais evidente, pois uma nova situação passa a afetar
a soberania fiscal dos Estados: o caso das empresas que sem operar diretamente,
sem constituir formalmente sociedades instaladas no território ou mesmo sem
qualquer vínculo territorial com determinado Estado obtêm renda oriunda daquele
país. Com isso, altera-se com tal profundidade uma das premissas tomadas pelos
doutrinadores que reclama uma nova consideração sobre os critérios usados para
a atribuição da soberania fiscal, uma vez que, nas palavras de Luís Eduardo Schoueri,
“o comércio eletrônico potencializa a questão básica do Direito Tributário Inter-
nacional: quem deve tributar”.75
Atualmente, cada vez mais doutrinadores compreendem que “o estabeleci-
mento permanente não é um princípio sacrossanto”,76 uma vez que a “caracterís-
tica peculiar do comércio eletrônico é aquela de consentir o desenvolvimento de
operações comerciais prescindindo daqueles elementos físicos (bem cedido e sede
da atividade) que permitem, nas formas do comércio tradicional, relacionar uma
transação a um determinado território”.77
Também Ramon Valdes Costa já alertava que “nos parecem mais convincen-
tes as objeções dos países em desenvolvimento relativas às perdas de receitas, es-
pecialmente derivadas dos grandes progressos das comunicações e dos métodos
mercantis que permitem, cada vez com maior facilidade, obter renda de fontes si-
tuadas em países em desenvolvimento sem necessidade de ter que ser considera-
da formalmente como um estabelecimento permanente”.78
O foco das preocupações de Ramon Valdes Costa era uma política fiscal de
estímulo às transferências de capitais e de tecnologia, imprescindíveis para acele-
rar o desenvolvimento.79 Quando trazemos o caso do comércio eletrônico estamos
acrescentando a essas preocupações do autor a preocupação com o alcance do
poder tributário em situações que não haverá qualquer inversão de capital ou trans-

73
Cf. BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda y Derecho. v. I, Madrid: Instituto de Estudios Políticos,
1966, p. 476.
74
Cf. FONROUGE, op. cit. (nota 18), p. 334.
75
Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Tributação e Cooperação Internacional”. Revista Fórum de Direito
Tributário, v. 2, n. 7, Belo Horizonte, jan.-fev. 2004, p. 25-54, p. 51.
76
Cf. LEE, Chang Hee. Impact of Electronic Commerce on Allocation of Tax Revenue between Developed and
Developing Countries. Organização das Nações Unidas. Secretariat. Ad hoc group of experts on in-
ternational cooperation in tax matters. ST/SG/AC.8/2003/L.9. 17. jun. 2003, parág. 43.
77
Cf. UCKMAR, Victor. “A Relevância Tributária do Comércio Eletrônico”. In: SCHOUERI, Luís
Eduardo (Coord.). Direito Tributário: Homenagem a Alcides Jorge Costa. v. II, São Paulo: Quartier La-
tin, 2003, p. 1.215-1.231 (p. 1.220-1).
78
Cf. COSTA, op. cit. (nota 65), p. 204.
79
Cf. COSTA, op. cit. (nota 65), p. 89.
178 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

ferência de tecnologia, mas que representará, no futuro, importante fatia do po-


der de imposição sobre a renda.
O mesmo autor uruguaio fala em “atividades tipicamente internacionais”, nas
quais é praticamente impossível determinar a parte da renda que corresponde a
cada país, citando como exemplo típico o caso das companhias de navegação e das
companhias aéreas, demonstrando que a solução prática para o caso é a renda ser
atribuída ao país da bandeira do navio ou aeronave, com a ressalva que os países
em desenvolvimento não poderiam aceitar tal solução, uma vez que as companhias
obtêm seus ganhos com as exportações dos produtos desses países.80 Parece-nos,
no tocante à caracterização como atividade tipicamente internacional, uma situa-
ção análoga à das empresas que promovem o comércio eletrônico internacional,
concordando com Victor Uckmar quando este destacou que “a internacionalida-
de intrínseca das operações realizadas através dos canais telemáticos tem, na rea-
lidade, a capacidade de tornar evanescentes os pressupostos de tributação”.81 Não
seria possível, entretanto, adotar a mesma solução “prática”, pois permaneceria o
problema de saber qual a “bandeira” da empresa envolvida na operação.
Conforme atentamente observado por Victor Uckmar, antes do surgimento
do comércio eletrônico, onde não existisse um estabelecimento permanente, o
Estado destinatário da exportação de bens ou serviços presumivelmente obteria um
ingresso pela tributação da renda derivada da atividade, por exemplo, da interme-
diação desenvolvida por empresas locais. Ocorre que o comércio eletrônico, des-
taca o autor, elimina os intermediários, colocando produtores e consumidores em
contato direto, esfumaçando a mencionada renda e a respectiva tributação.82
A inadequação do critério do estabelecimento permanente especialmente
para o caso do comércio eletrônico, com a adoção do critério da fonte do paga-
mento é o que destacamos do trecho a seguir de Luís Eduardo Schoueri:
“Nota-se que o estudo das transações de comércio eletrônico mostra que
já não mais se revela adequado tomar a presença física como critério limi-
tador da hipótese de incidência tributária, revelando-se muito mais perti-
nente investigar o local da residência do proponente, in casu, daquele que
acessa o site, pouco interessando onde reside o criador do último. Nessa
perspectiva, outrossim, percebe-se que o local da produção do rendimen-
to, sendo aquele onde o contrato se considera celebrado, acaba se confun-
dindo com o lugar onde reside o adquirente. Convergem, nessas circuns-
tâncias, fonte de produção e fonte de pagamento. Conclui-se, daí, que é o
país onde reside aquele que acessa o site aquele que deve tributar o rendi-
mento produzido no comércio eletrônico. Esta solução traz a seu favor, de
um lado, atender aos reclamos dos defensores da teoria da fonte de pro-
dução e da fonte de pagamento e, de outro, reduzir os riscos da bitributa-
ção ou de não tributação, que poderiam decorrer de uma tributação pelo
Estado da residência.”83
Nesse diapasão, entre as sugestões apresentadas por Reuven Avi-Yonah para
mudanças suscitadas pelo comércio eletrônico está a possibilidade de ser admiti-
80
Cf. COSTA, op. cit. (nota 65), p. 42.
81
Cf. UCKMAR, op. cit. (nota 77), p. 1221.
82
Cf. UCKMAR, Victor. “Tributação do Comércio Eletrônico, Atualidades e Perspectivas”. In: GRE-
CO, Marco Aurélio e MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coords.). Direito e Internet. São Paulo: RT,
2001, p. 249-257 (p. 251).
83
Cf. SCHOUERI, op. cit. (nota 47), p. 159-60.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 179

da a tributação quando houver um mínimo de renda auferida em determinada


jurisdição.84
Um outro argumento contrário à tributação baseada no estabelecimento per-
manente é suscitado por Luís Eduardo Schoueri: a fuga para paraísos fiscais. Se-
gundo o professor titular da Universidade de São Paulo, o aperfeiçoamento de
rotas internacionais de planejamento tributário seria fortalecido com a aplicação
da noção de estabelecimento permanente para a tributação da renda do comércio
eletrônico, pois em “uma transação instantânea, que se aperfeiçoa por meios ele-
trônicos, muito maior dificuldade se terá para se constatar qualquer simulação, ou
para concretizar uma análise funcional no âmbito dos preços de transferência, sem
que o contribuinte tenha argumentos para sustentar que o rendimento pertence
ao estabelecimento situado no paraíso fiscal”.85 Afinal, empresas ligadas ao comér-
cio eletrônico não “vivem” em determinado lugar, e, se vivem, não vivem em “lu-
gar” conforme entendido normalmente.86 Seria, conforme entendeu Victor Uckmar,
possível imaginar que “seja possível colocar uma sociedade desenvolvendo uma
atividade de comércio eletrônico em um paraíso fiscal, fazendo-a operativa sem
necessidade de transferir in loco o pessoal correspondente, e efetuando um con-
trole a distância”.87 É o que Marco Aurélio Greco chamou de “mobilidade dos agen-
tes econômicos” que juntamente com a “mobilidade do consumo” seriam as novi-
dades introduzidas pelo comércio eletrônico, agregando-se à conhecida mobilidade
da renda no contexto internacional.88
Também Victor Uckmar preocupou-se com tal inadequação quando afirmou:
“Se a aplicação dos princípios tradicionais, ancorados ao lugar da residên-
cia do sujeito passivo ou àquele da fonte do rendimento, mostra-se relati-
vamente simples quando os rendimentos são produzidos mediante moda-
lidades materialmente prevalecentes, numerosos problemas surgem quan-
do as atividades produtivas se desenvolvem na Internet, uma vez que qual-
quer usuário dotado de um computador pode trocar informações e dados,
efetuar transações, fornecer e receber prestações de serviços, sem deixar,
na maior parte dos casos, qualquer pista de si mesmo.”89
Nesse sentido, Roberto França Vasconcelos registra que “a grande questão
suscitada pelo advento do comércio eletrônico é se as atuais regras de tributação
internacional são consistentes o suficiente para serem aplicadas a esta nova ativi-
dade mercantil e, ainda, como preservar o já questionável equilíbrio da distribui-
ção da competência tributária entre os países”.90 Em outro trecho, o mesmo autor
observa que “o grande desafio, em última instância, é estabelecer uma repartição
justa da competência tributária entre o país da fonte e o país da residência envol-

84
Cf. AVI-YONAH, Reuven. International Taxation of Electronic Commerce. Ad Hoc Group of Experts on
International Cooperation in Tax Matters. Eleventh meeting. United Nations. ST/SG/AC.8/2003/CRP.9.
15-19 nov. 2003, p. 3.
85
Cf. SCHOUERI, op. cit. (nota 47), p. 154-5.
86
Cf. LEE, op. cit. (nota 76), parág. 44.
87
Cf. UCKMAR, op. cit. (nota 77), p. 1.221.
88
Cf. GRECO, op. cit. (nota 46), p. 48-51. Ver SCHOUERI, op. cit. (nota 75), p. 51-2, com interessan-
te exemplo fornecido por Reuven Avi-Yonah que ilustra a multiplicidade de jurisdições que podem
estar envolvidas no comércio eletrônico.
89
Cf. UCKMAR, op. cit. (nota 77), p. 1.221.
90
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 18.
180 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

vidos no comércio eletrônico”, considerando que “na transação digital, embora


quase todo o processo produtivo ocorra no país da residência, como a produção
da mercadoria e a programação da web page que irá facilitar o marketing, as vendas
e as funções de pagamento, o país da fonte contribui para a operação através do
seu mercado consumidor”.91
Conforme já apontou Ramon Valdes Costa, os países desenvolvidos que se-
guem o Modelo OCDE sustentam um critério bastante estreito de estabelecimen-
to permanente, e como conseqüência, muitas atividades das empresas estrangei-
ras exercidas em países em desenvolvimento ficam livres de imposto, pois não se
encaixam nas condições para que se considere que existe um estabelecimento es-
tável,92 o que seria bastante agravado com o comércio eletrônico.
Ao tratar do modelo OCDE, Luís Eduardo Schoueri já nos apontou que “na
redação atual do artigo 5° do modelo [da OCDE], dificilmente se poderá consta-
tar a existência de um estabelecimento permanente no país de onde provém os
rendimentos. As discussões giram em torno da questão se a existência de uma
máquina, no local, seria suficiente para configurar um estabelecimento permanen-
te. Deixa-se de lado, assim, a constatação de que fortunas circulam sem a existên-
cia de qualquer máquina, cuja localização física é irrelevante para a concretização
da operação comercial. O resultado, como seria de se esperar, é pela negação, em
regra geral, da existência de um estabelecimento permanente, reservando-se toda
a tributação para o Estado onde reside o contribuinte.”93 Victor Uckmar expressa
compreensão similar quando diz entender “ser difícil considerar o comércio ele-
trônico de per si abrangido pelas previsões do art. 5º do Modelo OCDE”.94
Essa preocupação tem levado a tentativas de adaptar o instituto do estabele-
cimento permanente à realidade do comércio eletrônico. Tais iniciativas foram
tomadas por Roberto França Vasconcelos como parte do “receio em se alterar re-
gras de tributação internacional concebidas há cerca de oitenta anos, em torno das
quais atingiu-se um improvável, embora não ileso às críticas, consenso internacio-
nal de repartição de competência tributária entre os países, regras que contam com
a vantagem da familiaridade”.95
Essas razões de “familiaridade” com as regras atuais são criticadas por Klaus
Vogel quando diz que
“o fato de que estejamos acostumados com uma tributação da renda mun-
dial pelo Estado de residência, e não a conheçamos no caso do Estado da
fonte, faz com que sintamos que ‘de algum modo’ a tributação com que
estamos acostumados nos pareça mais legitimada que a outra, com a qual
estamos desacostumados. Se, entretanto, livrarmos nosso pensamento de
tais costumes, não encontraremos qualquer fundamento racional para dar-
mos maior valor à conexão com a residência que à conexão baseada na
atividade empresarial.”96
Não deve passar sem registro o comentário de Roberto França Vasconcelos
alertando que “até o momento, todavia, não há sinais de qualquer articulação dos
países em desenvolvimento no sentido de buscar um sistema que lhes garanta o
91
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 123-4.
92
Cf. COSTA, op. cit. (nota 65), p. 34.
93
Cf. SCHOUERI, op. cit. (nota 47), p. 154.
94
Cf. UCKMAR, op. cit. (nota 85), p. 253.
95
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 19.
96
Cf. VOGEL, op. cit. (nota 50), p. 140.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 181

direito de tributar a renda proveniente das operações internacionais de comércio


eletrônico. Em contraposição à passividade desses países, têm os especialistas nor-
te-americanos pleiteado abertamente a tributação exclusiva na residência.”97
Concordando com tal afirmação, notamos apenas que já foi recomendado
pela Aladi que “deveriam ser pesquisados novos critérios que permitam atingir o
equilíbrio necessário entre as exigências de salvaguarda das instituições de cará-
ter econômico-jurídico e a ampla gama de oportunidades tecnológicas às quais
podem recorrer aqueles que atuam no ciberespaço”.98
Importante destacar que mesmo a OCDE já tem reconhecido que as regras
atuais sobre a divisão interestatal do poder de tributar a renda possuem deficiên-
cias,99 o que reforça nossa convicção sobre a necessidade das atuais regras de tri-
butação de rendimentos transnacionais sofrerem adaptações para que possam ser
aplicadas ao comércio eletrônico, principalmente - acrescentamos - para evitar
erosões na arrecadação tributária que contribuirão para dificultar os esforços dos
países em desenvolvimento para promover o desenvolvimento como um processo
de ampliação das liberdades, civis, sociais e econômicas.
Os argumentos jurídicos que apresentaremos permitir-nos-ão discordar da
afirmação de Roberto França Vasconcelos quando este diz que “embora histórica
e economicamente a autoridade tributária sobre a renda deva recair ao país da
residência, por motivos políticos e financeiros, os Estados que se situam na condi-
ção de países da fonte pagadora nas relações do comércio eletrônico certamente
se insurgirão contra tal situação temendo pela perda da capacidade de tributar esta
renda”.100 Ainda que com sérias dúvidas sobre a premissa adotada pelo autor so-
bre se “histórica e economicamente a autoridade tributária sobre a renda deva re-
cair ao país da residência”, nossa discordância mais relevante no momento con-
centra-se na justificação apenas política e financeira para a tributação no país da
fonte pagadora. Toda nossa argumentação procurará demonstrar que são justa-
mente os argumentos jurídicos voltados ao direito ao desenvolvimento que mais
são relevantes na discussão da divisão interestatal do poder de tributar a renda.
Seriam esses, em nossa visão, alguns dos “sólidos fundamentos a justificar a tribu-
tação pelo país da fonte nas operações envolvendo o comércio eletrônico”.101

6. O Fundamento na Justiça Interestatal para a Utilização da Fonte do


Pagamento como Critério Prioritário de Aplicação do Princípio da Soberania
Fiscal
A consideração da justiça interestatal quando se discutem os critérios atribu-
tivos da soberania fiscal, territorialidade e residência, foi defendida por Fernan-
do Sainz de Bujanda que assinalou que “a missão do direito tributário internacio-
nal deve consistir em harmonizar ambos os princípios, inspirando-se em critérios

97
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 17-8.
98
Cf. Associação Latino-americana de Integração, op. cit. (nota 2), p. 68.
99
Cf. Organização para o Desenvolvimento e a Cooperação Econômica. Technical Advisory Group on
Monitoring the Application of Existing Treaty Norms for Taxing Business Profits. Are the current
treaty rules for taxing business profits appropriate for e-commerce?. 26 nov. 2003. Disponível em:
<http://www.oecd.org/dataoecd/2/38/20655083.pdf>. Acesso em: 21 set. 2005, parág. 349.
100
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 141-2.
101
Cf. VASCONCELOS, op. cit. (nota 41), p. 144.
182 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

de justiça internacional”. Esse posicionamento do autor espanhol é precedido de


uma constatação de que “os problemas modernos de tributação internacional não
têm uma simples dimensão técnica ou jurídica (...) senão são essencialmente polí-
ticos”, e de que, conseqüentemente, a batalha entre territorialidade e residência
não é “uma batalha puramente teórica, senão a expressão de uma dramática luta
entre o capitalismo internacional, que busca expansão e domínio, e a soberania dos
chamados Estados fracos ou atrasados”.102
Ramon Valdes Costa já alertava que seria indispensável abandonar a neutra-
lidade, reconhecendo a desigualdade econômica entre países desenvolvidos e paí-
ses em desenvolvimento, assumindo decididamente a solidariedade e a integração
internacionais.103
O que ousaremos concluir é que atualmente podemos discordar de Ramon
Valdes Costa quanto à sua afirmação de que no Modelo OCDE há fundamento de
justiça ou eqüidade fiscal, enquanto considerações quanto ao desenvolvimento te-
riam um fundamento político, inspirado na imperiosa necessidade da sociedade
ocidental contemporânea de encontrar soluções urgentes para o atraso econômi-
co e social dos países em desenvolvimento.104
Assumiremos, ao final, que considerações jurídicas a partir do direito ao de-
senvolvimento, cuja natureza jurídica está fundada na justiça interestatal e na eqüi-
dade, justificam a adoção de uma distribuição do poder de tributar a renda que
favoreça o desenvolvimento.
Dessa forma, parece-nos que estamos próximos da posição de Carlos Palao
Taboada que, tratando dos objetivos dos convênios celebrados entre países desen-
volvidos e países em desenvolvimento, afirmou que “o problema principal não
consiste aqui simplesmente na eliminação da bitributação internacional, senão, em
primeiro lugar, na eleição de critérios de sujeição ao poder tributário, por meio
dos quais seja adequadamente levado em conta o desenvolvimento dos países
menos avançados, logrando-se assim uma maior justiça na distribuição internacio-
nal da riqueza”. O mesmo autor espanhol entende que na atividade internacional
de celebração de convênios, estes devem ser considerados como peças de um sis-
tema em escala internacional, no qual a justiça tributária é ampliada e a solidarie-
dade internacional em matéria fiscal é intensificada.105

6.1 Direito ao desenvolvimento


Cláudia Perrone-Moisés observou que “o esforço dos países em desenvolvi-
mento para criar uma ordem econômica mais justa levou à elaboração de alguns
conceitos e princípios novos, notadamente o princípio da soberania permanente
sobre os recursos naturais e a noção de desenvolvimento como expectativa legíti-
ma de nações e povos (...)”.106 No bojo desse esforço está a constatação de que “a
102
Cf. BUJANDA, op. cit. (nota 73), p. 472. Como já visto, não entendemos territorialidade e residên-
cia como princípios. Ademais, não adotamos a expressão “país em desenvolvimento” como sinôni-
mo de “país fraco” ou de “país atrasado”.
103
Cf. COSTA, op. cit. (nota 65), p. 54.
104
Cf. COSTA, op. cit. (nota 65), p. 54.
105
Cf. TABOADA, Carlos Palao. “Notas”. In: Ministerio da Hacienda. Doble Imposición Internacional.
Madrid: Institutto de Estudios Fiscales, 1972, p. 625-633 (p. 627-8).
106
Cf. PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direito ao Desenvolvimento e Investimentos Estrangeiros. São Paulo:
Oliveira Mendes, 1998, p. 66.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 183

desigualdade econômica, que caracteriza as relações internacionais, não pode ser


tratada isoladamente no âmbito das relações internacionais globais”, pois “a inde-
pendência política constitui uma preliminar à independência econômica e, por-
tanto, a soberania será imperfeita se permanecer apenas no âmbito político”.107
Posição idêntica a de Mohammed Bedjaoui à medida que este afirma que “quan-
do as bases elementares da independência nacional sobre o ponto de vista econô-
mico são inexistentes, pois foram tomadas pelos poderes estrangeiros mais ou
menos ocultos, é impossível falar-se em igualdade soberana do Estados, sem cair
em uma ficção”.108 O autor acrescenta, então, que “juridicamente falando, o pro-
blema do desenvolvimento constitui um desafio à comunidade internacional, pois
a Carta das Nações Unidas trata o desenvolvimento como um fenômeno interna-
cional por excelência”.109 Ademais, o termo “desenvolvimento”, que até os anos 60
era considerado sinônimo de “crescimento econômico”, ganha uma conotação que
pressupõe uma aproximação integrada - econômica e social - e uma ação global,110
exigindo do cenário internacional uma preparação para enxergar as relações in-
ternacionais - políticas, econômicas e jurídicas - sob a perspectiva de realização do
direito ao desenvolvimento, conforme veremos a seguir.

6.1.1 Do surgimento da idéia ao conceito


O surgimento da expressão direito ao desenvolvimento é assinalado por Cláu-
dia Perrone-Moisés como tendo ocorrido pela primeira vez por ocasião da confe-
rência do Instituto de Direitos Humanos de Estrasburgo, em 1971, por meio da
manifestação de Keba M’Baye.111
Arjun Sengupta,112 perito internacional sobre direito ao desenvolvimento da
Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, com mandato desde 1998, e
professor da School of International Studies, do Jawaharlal Nehru University em
Nova Delhi, afirma que foi Eleanor Roosevelt, líder da delegação americana du-
rante os trabalhos da declaração universal, que primeiro identificou e lutou por
aquilo que hoje é reconhecido como direito ao desenvolvimento. O mesmo expert
entende que mesmo na Declaração Universal dos Direitos Humanos113 é possível
encontrar a preocupação internacional em direção ao direito ao desenvolvimen-
to, à medida que os direitos políticos e econômicos estavam inter-relacionados com
os direitos humanos e havia a compreensão de que a verdadeira liberdade indivi-
dual não podia existir sem segurança econômica e independência.

107
Cf. PEREIRA, Antonio Celso Alves. “O Direito ao Desenvolvimento no Contexto dos Direitos Hu-
manos”. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, n. 77-8, p. 27-41, jan.-mar. 1992, p. 38.
108
Cf. BEDJAOUI, Mohammed. “Le Droit au Développement”. In: BEDJAOUI, Mohammed (Org.).
Droit International: Bilan et Perspectives. Paris: Éditions A. Pedone [1991?], p. 1.247-73 (p. 1.251).
109
Cf. BEDJAOUI, op. cit. (nota 108), p. 1.251.
110
Cf. PERRONE-MOISÉS, Cláudia. “Direitos Humanos e Desenvolvimento: a Contribuição das Na-
ções Unidas”. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (Orgs.). O Cinqüente-
nário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1999, p. 180-1.
111
Cf. PERRONE-MOISÉS, op. cit. (nota 106), p. 50.
112
Cf. SENGUPTA, Arjun. “O Direito ao Desenvolvimento como um Direito Humano”. Revista da So-
cial Democracia Brasileira, mar. 2002, p. 64-84 (p. 64-5).
113
Para acesso ao texto desse documento consultar: Organização das Nações Unidas. Assembléia Ge-
ral. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 dez. 1948. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/declaracao/declaracao_univ.html>. Acesso em: 14 set.
2005. Ver também RANGEL, op. cit. (nota 9), p. 321-45.
184 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

O consenso em torno do direito ao desenvolvimento ganhou reforço com as


idéias de Amartya Sen114 que, entendendo que a liberdade envolve tanto proces-
sos que permitem a liberdade de ações e decisões como as oportunidades reais que
as pessoas têm, dadas as suas circunstâncias pessoais e sociais,115 relaciona o desen-
volvimento com a liberdade no trecho que destacamos:
“O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de priva-
ção de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômi-
cas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e in-
tolerância ou interferência excessiva dos Estados repressivos. A despeito de
aumentos sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega liber-
dades elementares a um grande número de pessoas - talvez até mesmo à
maioria. Às vezes a ausência de liberdades substantivas relaciona-se dire-
tamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de
saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doen-
ças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado,
de ter acesso a água tratada ou saneamento básico. Em outros casos, a pri-
vação de liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públi-
cos e assistência social, como, por exemplo a ausência de programas epi-
demiológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e edu-
cação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem
locais. Em outros casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma
negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e de restri-
ções impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômi-
ca da comunidade”.116
O premiado autor defende que o desenvolvimento é um processo de expan-
são das liberdades substantivas das pessoas que deve ser marcado por ser “um com-
promisso muito sério com as possibilidades de liberdade”.117
A definição de direito ao desenvolvimento que adotamos é a dada pelo expert
internacional da Organização das Nações Unidas, Arjun Sengupta, como “um pro-
cesso particular de desenvolvimento em que podem realizar-se todos os direitos
humanos e as liberdades fundamentais”.118

6.1.2 Direito ao desenvolvimento como direito humano de terceira dimensão


Cláudia Perrone-Moisés assinala, concordando com Celso Lafer, que o direi-
to ao desenvolvimento é um dos direitos humanos de terceira “geração”,119 junta-
114
Amartya Sen é cidadão indiano, concluiu o doutorado em Cambridge em 1959, foi professor de fi-
losofia e economia em Harvard até 1998, desde então é mestre em Cambridge. Foi ganhador do
Prêmio Nobel de Economia em 1998 por seus estudos sobre a pobreza, a fome e sobre desenvolvi-
mento econômico dos países em desenvolvimento.
115
Cf. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2000, p. 31.
116
Cf. SEN, op. cit. (nota 115), p. 18.
117
Cf. SEN, op. cit. (nota 115), p. 336-7.
118
Cf. Organização das Nações Unidas. Conselho Econômico e Social. Comissão de Direitos Humanos. Estu-
dio Preliminar del Experto Independiente en el Derecho al Desarrollo. Sr. Arjun Sengupta, sobre la incidencia de las
cuestiones económicas y financieras internacionales en el ejercicio de los derechos humanos, presentado de conformidad
con las resoluciones 2001/9 y 2002/69 de la Comisión. E/CN.4/2003/WG.18/2. 9 dez. 2002. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(Symbol)/E.CN.4.2003.wg.18.2.Sp?Opendocument>.
Acesso em: 21 set. 2005, parág. 3.
119
As aspas referem-se ao uso da palavra geração pela autora. Conforme nosso entendimento, seria mais
adequado falarmos em dimensão de direitos.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 185

mente com o direito à autodeterminação dos povos, o direito ao meio ambiente e


o direito à paz.120
Conforme ressaltou Arjun Sengupta em seu segundo informe sobre direito ao
desenvolvimento, o reconhecimento de um direito como direito humano eleva a
condição desse direito à de aplicabilidade universal e estabelece uma norma de
atuação para a pessoa, o Estado e a comunidade internacional. O reconhecimen-
to confere um caráter prioritário à realização desse direito com relação aos recur-
sos e capacidade nacionais e internacionais, criando obrigações para os Estados e
a comunidade internacional, assim como para os agentes da sociedade, incluindo
também os particulares.121

6.1.3 A obrigação de cooperação internacional


Arjun Sengupta sustenta que uma análise da Declaração do Direito ao Desen-
volvimento, suplementada pelas discussões realizadas em diferentes fóruns naquela
época, claramente sugerem que entre as quatro propostas principais da declara-
ção está a que conclui que o direito ao desenvolvimento confere inequívoca obri-
gação a indivíduos na comunidade, Estados no contexto nacional e Estados no
contexto internacional. Estados nacionais têm a responsabilidade de ajudar a rea-
lização do processo de desenvolvimento mediante políticas de desenvolvimento
apropriadas. Outros Estados e agências internacionais têm a obrigação de coope-
rar com os estados nacionais para facilitar a realização do processo de desenvolvi-
mento.122
A cooperação internacional, questão de importância fulcral para nossas con-
clusões, é bastante realçada na Declaração de 1986, colocando para a comunida-
de internacional uma obrigação de trabalhar nessa direção.123 A cooperação inter-
nacional, conforme expressou Arjun Sengupta em seu quinto informe, converteu-
se em “algo mais que mera obrigação moral”,124 devendo estar “fundada no con-
ceito de solidariedade e justiça econômica distributiva”.125 Segundo o parágrafo
terceiro do art. 3º, “os Estados têm o dever de cooperar mutuamente para alcan-
çar o desenvolvimento e eliminar obstáculos ao desenvolvimento”, devendo cum-
prir seus deveres de modo a promover uma nova ordem econômica internacional
baseada na igualdade soberana, na interdependência e no interesse comum. Des-
taca-se a determinação do art. 4º que enfatiza que os Estados têm o dever de ado-

120
Cf. PERRONE-MOISÉS, op. cit. (nota 106), p. 52.
121
Cf. Organização das Nações Unidas. Assembléia Geral. Qüinqüagésimo quinto período de sessões.
Derecho al Desarollo: Nota del Secretario General. A/55/306. 17 ago. 2000. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(Symbol)/A.55.306.Sp?Opendocument>. Acesso
em: 21 set. 2005, parág. 10.
122
Cf. SENGUPTA, op. cit. (nota 112), p. 69.
123
Cf. Organização das Nações Unidas. Conselho Econômico e Social. Comissão de Direitos Humanos.
Tercer Informe del Experto Indepebdiente sobre el Derecho al Desarrollo, Sr. Arjun Sengupta, presentado de con-
formidad con la resolución 200/5 de la Comissión. E/CN.4/2001/WG.18/2. 2 jan. 2001. Disponível em:
http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(Symbol)/E.CN.4.2001.wg.18.2.Sp?Opendocument>.
Acesso em: 21 set. 2005, parág. 33.
124
Cf. Organização das Nações Unidas. Conselho Econômico e Social. Comissão de Direitos Humanos.
Quinto informe del experto independiente en el derecho as desarrollo, Sr. Arjun Sengupta, presentado de conformi-
dad con la resolución 2002/69 de la Comisión. E/CN.4/2002/WG.18/6/Add.1. 31 dez. 2002. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(Symbol)/E.CN.4.2002.wg.18.6.Add.1.Sp?Opendocument>.
Acesso em: 21 set. 2005, parág. 14.
125
Cf. PERRONE-MOISÉS, op. cit. (nota 110), p.182.
186 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

tar, individual e coletivamente, medidas para formular políticas adequadas de de-


senvolvimento internacional a fim de facilitar a plena realização do direito ao de-
senvolvimento.
Arjun Sengupta aponta em seu terceiro informe que, no contexto da realiza-
ção do direito ao desenvolvimento, os fatores que formariam as obrigações da co-
munidade internacional são os seguintes: cooperação internacional quanto à tec-
nologia, a abertura dos mercados, a adaptação das regras que regem o funciona-
mento das instituições comerciais e financeiras já existentes, a proteção da proprie-
dade intelectual e a criação de novos mecanismos internacionais que satisfaçam as
necessidades específicas dos países em desenvolvimento.126 A adoção do critério da
fonte de pagamento pode, sem dúvida, ser justificada dentro desse último aspec-
to da obrigação da comunidade internacional.
No mesmo trabalho, a importância da cooperação internacional é vista sob
o aspecto multilateral e sob o aspecto bilateral. De maneira multilateral, os países
desenvolvidos, os organismos multilaterais e os organismos internacionais pode-
riam fazer concessões que seriam oferecidas a países em desenvolvimento que atin-
gissem certas condições. No aspecto bilateral, a cooperação internacional dar-se-ia
com as concessões e com os acordos bilaterais com determinado país em particu-
lar.127 Em ambos os aspectos da cooperação internacional caberia a consideração
da fonte de pagamento como critério na divisão do poder de tributar a renda.

6.1.4 O conteúdo jurídico do direito ao desenvolvimento: eqüidade e justiça


Como não ignoramos a importância das discussões internacionais na confor-
mação das fontes do direito tributário internacional, temos de destacar que a afir-
mação do direito ao desenvolvimento como direito humano universal e inaliená-
vel vem exigindo que o direito tributário internacional esteja fundado em valores
que vão além da perspectiva econômica adotada por alguns organismos interna-
cionais que se ocupam de temas que envolvem a tributação internacional - OCDE
e OMC, por exemplo -, e requerendo uma visão humanista e solidária do desen-
volvimento global que nos conduza para uma melhor distribuição internacional da
renda. A adoção de uma tal visão passa pela consideração do conteúdo jurídico do
direito ao desenvolvimento.
Quando falamos no conteúdo jurídico de um direito, temos de pensar na
existência de um ou alguns obrigados a alguma prestação ou a alguma conduta que
vise a outorgar ou facilitar esse direito. Nesse aspecto os estudos do expert da ONU
apontam que seriam muitos os obrigados. O obrigado principal pelo direito ao
desenvolvimento seria o Estado-nação, que também deve zelar para que os demais
obrigados cumpram seus deveres. Entre os demais obrigados estão as empresas
multinacionais, os organismos multilaterais e a comunidade internacional. Tratan-
do especificamente da comunidade internacional, o mesmo texto revela que cabe
à comunidade internacional cooperar em todas as formas de intercâmbio interna-
cional e não somente com ajuda financeira,128 o que, certamente, inclui as discus-
sões sobre a consideração da fonte de pagamento como critério prioritário na di-
visão interestatal do poder de tributar a renda.

126
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 123), parág. 34.
127
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 123), parág. 35.
128
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 124), parág. 17.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 187

O conteúdo jurídico do direito ao desenvolvimento fica em destaque na afir-


mação de Arjun Sengupta: “O direito ao desenvolvimento está propondo uma
abordagem qualitativa diferenciada, na qual considerações de igualdade e justiça
são as primeiras determinantes do desenvolvimento”.129 Essa afirmação decorre da
consideração do direito ao desenvolvimento como direito humano, pois a aspira-
ção de eqüidade e justiça social sempre foi a “motivação fundamental de todas as
reivindicações de direitos humanos”.130
Claramente, o direito ao desenvolvimento foi elaborado a partir de um con-
ceito que não negava a importância do crescimento da renda e da produção, que
propiciava a expansão dos recursos básicos e das oportunidades para o desenvol-
vimento. Mas deveria ser realizado de forma a assegurar uma justa distribuição e
igualdade de acesso aos recursos e expandir as liberdades fundamentais dos indi-
víduos.131
Uma vantagem disso seria situar esses direitos humanos firmemente em uma
teoria de justiça que demonstraria as implicações lógicas do conceito de igualda-
de. Isso possivelmente melhoraria nossa habilidade de operacionalizar a noção de
igualdade e justiça embutida no direito ao desenvolvimento.132
Em seu segundo informe, o expert da ONU propôs um programa para reali-
zação do direito ao desenvolvimento que sugeria, entre outros pontos, a definição
de políticas que os Estados-partes, a comunidade internacional, incluindo os or-
ganismos internacionais, e as empresas multinacionais devem aplicar para propi-
ciar o exercício do direito ao desenvolvimento.133 A ampliação da discussão sobre
o poder de tributar a renda em contato com mais de uma jurisdição estatal deve
fazer parte dessas políticas, ajudando a configurar o desejado novo “marco para a
cooperação internacional que permita aos Estados, com ajuda da sociedade civil,
realizar o direito ao desenvolvimento de toda a população dos países em desen-
volvimento”.134
Entendemos que a adoção da noção de estabelecimento permanente no con-
texto de um mundo globalizado é um daqueles acontecimentos que, conforme
apontado pelo expert da Organização das Nações Unidas, “afetam a capacidade dos
países em desenvolvimento para formular e aplicar políticas direcionadas a reali-
zar o direito ao desenvolvimento”.135
Ademais, como “todo o movimento de defesa dos direitos humanos está ba-
seado na igualdade de tratamento de todo ser humano, e na igualdade de opor-
tunidades, bem como na exigência de justiça”,136 e nossa metodologia para estu-
do do fenômeno jurídico está voltada para os valores que o Direito deve preservar
- liberdade, democracia, solidariedade, justiça como igualdade -, a caracterização

129
Cf. SENGUPTA, op. cit. (nota 112), p. 83.
130
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 121), parág. 35.
131
Cf. SENGUPTA, op. cit. (nota 112), p. 82.
132
Cf. SENGUPTA, op. cit. (nota 112), p. 82.
133
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 121), parág. 26.
134
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 121), parág. 34.
135
Cf. Organização das Nações Unidas. Conselho Econômico e Social. Comissão de Direitos Humanos. Estu-
dio Preliminar del Experto Independiente en el Derecho al Desarrollo. Sr. Arjun Sengupta, sobre la incidencia de las
cuestiones económicas y financieras internacionales en el ejercicio de los derechos humanos, presentado de conformidad
con las resoluciones 2001/9 y 2002/69 de la Comisión. E/CN.4/2003/WG.18/2. 9 dez. 2002. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(Symbol)/E.CN.4.2003.wg.18.2.Sp?Opendocument>.
Acesso em: 21 set. 2005, parág. 5.
136
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 121), parág. 17.
188 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

do direito ao desenvolvimento como direito humano de terceira dimensão habili-


ta tal conceito a ser usado como fundamento jurídico na definição do critério a ser
utilizado para definir o alcance do poder estatal de tributar a renda.
A eqüidade, essencial em toda noção de direitos que se fundem no princípio
da igualdade de todos os seres humanos, está evidentemente vinculada com a im-
parcialidade ou com os princípios de uma sociedade justa. Em outras palavras, a
realização do direito humano ao desenvolvimento deve favorecer o desenvolvimen-
to humano mediante um enfoque baseado nos direitos e dessa forma melhorar a
eqüidade e a justiça.137
O que podemos concluir é que, seguindo as lições de Chaïm Perelman sobre
justiça,138 o direito ao desenvolvimento é a categoria essencial que nos leva da jus-
tiça interestatal formal para a justiça interestatal concreta. Estaríamos aplicando a
justiça concreta interestatal com a fórmula “a cada um segundo suas necessidades”,
significando dizer: “Na divisão interestatal do poder de tributar a renda, a cada
Estado deve caber parcela do tributo segundo suas necessidades para realizar o
direito ao desenvolvimento.”
Conclusão similar parece ter chegado Manuel Pires ao enfrentar o debate
sobre a tributação na fonte ou na residência. O doutrinador português afirmou que
“no caso de colisão de interesses [país da fonte e país da residência] - nomeada-
mente quando se pretende determinação o grau de limitação daquele poder [de
tributar] -, os Estados exportadores de capitais devem ceder os seus interesses, ten-
do em atenção as respectivas posições”.139
A estreita ligação entre o direito ao desenvolvimento e as noções de eqüida-
de e justiça leva-nos ao encontro das considerações de Klaus Vogel sobre a tributa-
ção da renda utilizando o princípio da fonte conforme trataremos a seguir.

6.2 A consideração da eqüidade no debate sobre a distribuição interestatal do poder de


tributar a renda
A relação da eqüidade com as normas jurídicas pode ser observada em vários
graus: infra legem, praeter legem e contra legem.
Quando a eqüidade é considerada na interpretação de uma norma jurídica,
permanecendo, no entanto, adstrita ao conteúdo da norma, temos aequitas infra
legem. Se preenche as lacunas e evita os casos de non liquet, temos aequitas praeter
legem. Finalmente, se a aplicação da eqüidade resulta em afastamento de uma nor-
ma positivada, temos aequitas contra legem.
A despeito de não existir nenhuma definição de “eqüidade” nos instrumen-
tos de direitos humanos aprovados pelas Nações Unidas,140 a Corte Internacional
de Justiça já se manifestou no sentido de entender o sentido jurídico de eqüidade
como uma emanação direta da idéia de justiça. Seria aplicável ao caso concreto para
obter um resultado justo e eqüitativo, mas derivado das normas aplicáveis, numa
clara opção pela eqüidade infra legem. O mesmo organismo internacional entende

137
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 123), parág. 21.
138
Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
1996, passim.
139
Cf. PIRES, op. cit. (nota 31), p. 290.
140
Cf. Organização das Nações Unidas. Conselho Econômico e Social. Comissão de Direitos Huma-
nos. El derecho al desarrollo: la importancia y la aplicación del principio de la equidad, tanto a nivel nacional
como internacional. E/CN.4/2003/25. 30 dez. 2002. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridoc-
da/huridoca.nsf/(Symbol)/E.CN.4.2003.25.Sp?Opendocument>. Acesso em: 21 set. 2005, parág. 51.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 189

que eqüidade não deve ser interpretada em abstrato, mas associada à busca por um
resultado eqüitativo.141
Klaus Vogel usa eqüidade como sinônimo de justiça, assinalando que faz a
ponte entre o mundo da moral e o mundo do direito e advertindo que não é pos-
sível demonstrar, como se faz com fatos empíricos, que algo é eqüitativo.142
Ainda que não seja encontrada uma definição de eqüidade adotada pelas
Nações Unidas, é possível observarmos em vários instrumentos, observações e re-
comendações daquele organismo internacional referências à eqüidade. Também
nas decisões dos principais órgãos das Nações Unidas, nos informes dos peritos
internacionais designados pela Comissão de Direitos Humanos e na Declaração do
Milênio há referências à eqüidade. Particularmente nessa declaração é reconheci-
da a responsabilidade coletiva de manter os princípios da dignidade humana, a
igualdade e a eqüidade em escala mundial.143
Conforme Klaus Vogel apontou, foi o economista Richard A. Musgrave o pri-
meiro a distinguir os dois principais aspectos da discussão sobre a tributação in-
ternacional da renda: a neutralidade e a eqüidade. Ocorre que neutralidade é mais
destacadamente um aspecto econômico, enquanto eqüidade tem sido estudada há
mais de dois séculos por juristas que adquiriram conhecimento de como é estru-
turada e funciona tal idéia.144 Ocorre também que, como apontado por John Due,
todos os impostos têm alguns efeitos contrários à neutralidade.145 Ademais, não
podemos desconhecer a função retórica e ideológica do termo neutralidade, cons-
tituindo-se muitas vezes, conforme aponta o professor da Faculdade de Direito da
Universidade Nacional de Seul, Chang Hee Lee, num pacote retórico utilizado
pelos países desenvolvidos para justificar a tributação pela residência e aumentar
sua parcela na divisão do poder de tributar a renda.146

6.3 O Consenso de Monterrey


Movidos pelo objetivo de erradicar a pobreza, alcançar um crescimento eco-
nômico e promover o desenvolvimento sustentável no tempo, os chefes de Estado
e de governo que assinaram o Consenso de Monterrey147 decidiram avançar para

141
Cf. Corte Internacional de Justiça. Continental Shelf (Tunisia/Libyan Arab Jamahiriya). 24 fev. 1982.
Disponível em : http://www.icj-cij.org/icjwww/idecisions.htm>, Acesso em 21 set. 2005, par. 70-1.
142
Cf. VOGEL, op. cit. (nota 40), p. 152.
143
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 118), parág. 51. O texto da Declaração do Milê-
nio é expresso em afirmar que “[Nós, Chefes de Estado e de Governo] reconhecemos que, além das
responsabilidades que temos em relação às nossas sociedades, incumbe-nos a responsabilidade co-
letiva de respeitar e defender os princípios da dignidade humana, da igualdade e da eqüidade em
plano mundial.” (Cf. Organização das Nações Unidas. Assemblea General. Declaración del Milênio.
A/RES/55/2. 13 set. 2000. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/development/group-02.html>.
Acesso em: 29 jan. 2004, parág. 2)
144
Cf. VOGEL, op. cit. (nota 40), p. 117-8. Também Dale Pinto, professor australiano, assume tal en-
tendimento em: PINTO, op. cit. (nota 41), p. 32.
145
Cf. DUE, John F. Análisis Económico de los Impuestos en el Cuadro General de las Finanzas Públicas. Bue-
nos Aires: El Ateneo, 1968, p. 79. É o mesmo autor que nos fornece uma noção de neutralidade como
um dos “princípios essenciais de todo sistema impositivo” que estabelece que a estrutura impositi-
va deve ser concebida de tal forma que elimine toda a interferência no objetivo de uma ótima dis-
tribuição e uso dos recursos e, se possível, contribua para esse objetivo sem alterar a preferência dos
indivíduos (p. 77).
146
Cf. LEE, op. cit. (nota 76), parág. 42 e 57.
147
Consenso de Monterrey é o nome dado ao acordo da Conferência Internacional sobre o Financia-
mento do Desenvolvimento (CIFD), realizada na cidade mexicana de Monterrey de 18 a 22 de março
de 2002.
190 DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19

um sistema econômico mundial baseado na eqüidade e que inclua o conjunto da


humanidade. Na mesma oportunidade, demonstraram preocupação com a dimi-
nuição do volume de recursos disponíveis para alcançar as metas de desenvolvi-
mento estabelecidas por consenso internacional, inclusive aquelas da Declaração
do Milênio. Diante disso, entenderam que uma nova aliança entre os países desen-
volvidos e em desenvolvimento é requerida para que sejam formuladas e aplica-
das novas políticas e medidas nos planos nacional e internacional para contribuir
na superação dos problemas surgidos com a globalização, problemas estes mais
sensíveis nas economias em transição.148
Entre os principais compromissos assumidos pelo Consenso de Monterrey
estão a mobilização de recursos financeiros nacionais, a mobilização de recursos
internacionais por meio de investimentos externos, o estímulo ao comércio inter-
nacional, o aumento da cooperação financeira - a chamada Ajuda Oficial ao De-
senvolvimento (AOD) e técnica internacional, a adoção de medidas para alívio da
dívida externa e o aumento da coerência e coesão dos sistemas monetários, finan-
ceiros e comerciais internacionais.149
Interessa-nos, especialmente, a mobilização de recursos nacionais, pois, con-
forme reconhecido em documento da ONU, países em desenvolvimento ou em
transição não conseguirão erradicar a pobreza e adquirir crescimento sustentável
se não tiverem sucesso na mobilização de recursos domésticos para o desenvolvi-
mento:150
“Em nossa busca comum pelo crescimento, pela erradicação da pobreza e
pelo desenvolvimento sustentável, deparamo-nos com a imperiosa neces-
sidade de criar as condições internas necessárias para mobilizar a poupança
interna, pública ou privada, manter um nível adequado de investimentos
produtivos e melhorar o capital humano (...) Um ambiente nacional pro-
pício é fundamental para mobilizar os recursos internos, aumentar a produ-
tividade, reduzir a fuga de capitais, estimular o setor privado e atrair e utili-
zar produtivamente os investimentos e a assistência internacionais. A comu-
nidade internacional deve apoiar os esforços para criar esse ambiente”.151
Esses recursos domésticos advêm, primordialmente, do exercício da sobera-
nia fiscal,152 sendo que esta é objeto de intensa disputa internacional, a denomi-
nada tax competition.
Nesse cenário de disputa internacional pelo poder de tributar, a adoção do
critério da fonte do pagamento como prioritário na divisão interestatal do poder
de tributar a renda, principalmente numa época marcada cada vez mais pela des-
materialização dos fatos geradores, constitui uma concretização dos compromis-
sos estampados na Declaração do Milênio e no Consenso de Monterrey. Tal con-
cretização ocorrerá à medida que, mediante uma postura voltada para uma boa

148
Cf. Organização das Nações Unidas. Informe de la Conferencia Internacional sobre la Financiación
para el Desarrollo. Monterrey (México), mar. 2002. A/CONF.198/11. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/development/group-02.html>. Acesso em: 29 jan. 2004, parág. 01-04.
149
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 148), parág. 04.
150
Cf. Organização das Nações Unidas. Secretariat. Ad hoc group of experts on international coope-
ration in tax matters. Eleventh meeting. Institucional Framework for International Tax Cooperation.
ST/SG/AC.8/2003/L.6. 19 ago. 2003, parág. 22.
151
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 148), parág. 10.
152
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 150), parág. 22.
DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL nº 19 191

gestão dos assuntos públicos internacionais e utilizando-se fundamentos jurídicos


como justiça e eqüidade nos debates sobre a distribuição do poder de imposição,
possibilite aos países em desenvolvimento maior disponibilidade de recursos a
serem alocados em dispêndios voltados para a promoção do desenvolvimento.
Como desejável conseqüência teremos a afirmação da solidariedade como valor
essencial nas relações internacionais e no fortalecimento dos esforços de erradi-
cação da pobreza.153
As discussões internacionais que se seguem depois do encontro de Monter-
rey têm sido marcadas pela compreensão de que o progresso duradouro necessá-
rio à realização do direito ao desenvolvimento exige políticas eficazes de desenvol-
vimento em nível nacional, bem como relações econômicas eqüitativas e um am-
biente econômico favorável em nível internacional.
Na décima primeira reunião do grupo ad hoc de peritos na cooperação inter-
nacional em problemas tributários, o Professor Ghislain T. J. Joseph apresentou
suas conclusões sobre a questão do comércio eletrônico e os países em desenvolvi-
mento, concluindo que, baseado no Consenso de Monterrey, a questão da divisão
do poder de tributar entre país da residência e país da fonte deve ser dirigida para
dar especial atenção às necessidades dos países em desenvolvimento, cogitando,
inclusive, permitir a tributação pela fonte do pagamento com relação a algumas
formas de comércio eletrônico.154

7. Considerações Finais
A adoção do critério da fonte do pagamento, com fundamento no direito ao
desenvolvimento, pode ser vista como um instrumento a ser utilizado no caminho
que deve tomar a comunidade internacional para resolver o “problema de forne-
cer garantias válidas para aqueles direitos [humanos], mas também de aperfeiçoar
o conteúdo da Declaração [Universal dos Direitos Humanos], articulando-o, espe-
cificando-o, atualizando-o, de modo a não deixá-lo cristalizar-se e enrijecer-se em
fórmulas tanto mais solenes quanto mais vazias”.155 Cientes de que “a efetivação
de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento
global da civilização humana”,156 também observamos que a adoção prioritária do
critério da fonte do pagamento pode servir para que o direito ao desenvolvimen-
to escape das críticas que já foram feitas à outra dimensão de direitos, a dos direi-
tos sociais, quanto à sua inexeqüibilidade.157
Encerramos com a expectativa de que a visão que oferecemos do tema tenha
colaborado para suscitar o surgimento de novas pesquisas que possam investigar
a validade de nossa proposição de que o direito ao desenvolvimento, seja pela obri-
gação de cooperação internacional surgida com a sua afirmação como direito hu-
mano de terceira dimensão, seja pelo seu conteúdo jurídico ligado à eqüidade e à
justiça, está apto a ser considerado como fundamento da adoção da fonte do pa-
gamento como critério prioritário na divisão interestatal do poder de tributar a
renda.
153
Cf. Organização das Nações Unidas, op. cit. (nota 143), parág. 06 e 13.
154
Cf. JOSEPH, Ghislain T.J. Electronic Commerce and Developing Countries. 16 dez. 2003.
ST/SG/AC.8/2003/CRP. 9/Add.1. Genebra: Organização das Nações Unidas, 2003, parág. 56-8.
155
Cf. BOBBIO, op. cit. (nota 3), p. 34.
156
Cf. BOBBIO, op. cit. (nota 3), p. 45.
157
Cf. BOBBIO, op. cit. (nota 3), p. 24.

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