1472-Texto do artigo-5828-1-10-20190528
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AS NUANCES SEMÂNTICAS,
PRAGMÁTICAS E CULTURAIS
DELINEADAS NO ANÚNCIO
PUBLICITÁRIO “ACREDITE NA BELEZA:
A LINDA EX”, DA MARCA O BOTICÁRIO
SCENOGRAPHY AND DISCURSIVE ETHOS: SEMANTIC,
PRAGMATIC AND CULTURAL NUANCES OUTLINED
IN THE ADVERTISEMENT “ACREDITE NA BELEZA: A
LINDA EX”, O BOTICÁRIO BRAND
RESUMO
Uma interpretação aprofundada de produções discursivas requer um desdobramento teórico que considere
não apenas aspectos relacionados aos conteúdos temáticos, mas também as condições de produção do
enunciado, o vínculo entre os interlocutores e a influência e a apropriação da cultura que emergem em
situações comunicativas. O presente estudo justifica-se, portanto, pela possibilidade de demonstrar a
presença de estratégias discursivas que agem sobre o processo de construção de sentido realizado pelo
enunciador e coenunciador na emissão e recepção do discurso, especialmente no âmbito midiático, cujas
intervenções influem culturalmente na vida em sociedade. Assim, o estudo dos conceitos cenografia e
ethos discursivo torna-se relevante, pois ambos estão circunscritos na cena enunciativa, atuando sobre o
processo de construção de sentido realizado pelos interlocutores. Mas de que modo o ethos e a cenografia
articulam-se nessa construção? A partir desse questionamento, busca-se analisar a cenografia e o ethos
discursivo presentes na construção semântica que se manifesta no comercial “Acredite na Beleza: A Linda
Ex”, promovido pela empresa O Boticário, articulando-os às formações discursivas, culturais e identitárias
que nele emergem. A pesquisa deu-se de forma exploratória e bibliográfica, sendo este trabalho
fundamentado nos estudos sobre linguagem e interação verbal (BAKHTIN, 1999), na construção identitária
e cultural (HALL, 2001) e na Análise do Discurso (MAINGUENEAU, 2002). Os resultados da análise realizada
revelam a utilização de estratégias discursivas pelo enunciador para condicionar e conduzir a produção de
sentido a ser construída pelo seu coenunciador, tendo em vista sua finalidade comunicativa.
Palavras-chave: Discurso. Anúncio publicitário. Cenografia. Ethos. Cultura.
ABSTRACT
A deep interpretation of discursive productions requires a theoretical unfolding that considers not only
aspects related to topics, but also the conditions of production of the utterance, the link between the
interlocutors and the cultural influence and appropriation which emerge in communicative situations.
Therefore, this study is justified by the possibility of demonstrating the presence of discursive strategies
that act on the process of meaning construction, realized by the enunciator and coenunciator in the emission
and reception of the discourse, especially in the media sphere, whose interventions culturally influence in
social life. Thus, the scenography and discursive ethos study becomes relevant, since both concepts are
circumscribed in the enunciative scene. They act on the process of meaning construction realized by the
interlocutors. But how do they relate in this construction? From this question, this study analyzes the
scenography and the discursive ethos present in the semantic construction manifested in the commercial
“Acredite na Beleza: A Linda Ex”, by O Boticário brand, articulating both concepts to the discursive,
cultural and identity formations which emerge in it. The research was carried out in an exploratory and
bibliographical way. This work was based on language and verbal interaction studies (BAKHTIN, 1999), on
the identity and cultural construction (HALL, 2001) and on Discourse Analysis (MAINGUENEAU, 2002). The
results of the analysis show the use of discursive strategies by the enunciator to condition and to lead the
production of meaning to be built by its coenunciator, in view of its communicative purpose.
Keywords: Speech. Advertisement. Scenography. Ethos. Culture.
1 INTRODUÇÃO
As análises realizadas neste trabalho são fundamentadas nos estudos sobre a construção identitária
e cultural (HALL, 2001), a linguagem e interação verbal (BAKHTIN, 1999) e na Análise do Discurso –
cenografia e ethos – (MAINGUENEAU, 2002), focando-se na subjetividade da linguagem, no processo
discursivo-comunicacional e na construção da identidade e formação cultural que permeiam as práticas
comunicativas.
A pesquisa deu-se de forma exploratória e bibliográfica, permitindo uma análise qualitativa que
está estruturada em quatro seções assim distribuídas: estudos sobre formação identitária e cultural;
interação verbal, gênero discursivo, comunicação e linguagem; instância discursiva e os conceitos de
cenografia e ethos; e, por último, a análise do anúncio publicitário.
Espera-se que a análise do anúncio, articulada às teorias estudadas, contribua com as reflexões
acerca da relevância da leitura, da interpretação (tanto textual como verbal), da comunicação e, finalmente,
do próprio ensino, o qual contempla, entre outras instâncias, todas as citadas anteriormente. Espera-se,
também, que contribua, efetivamente, para a reflexão sobre a construção de uma postura mais crítica em
relação aos diversos discursos que nos permeiam e dos quais somos, muitas vezes, alvos no dia a dia.
O sujeito social e político-cultural delineia seus movimentos, ações e posturas em contextos variados,
aos quais se submete por ser, intrinsecamente, um indivíduo de natureza social. Cada circunstância a
qual o indivíduo está circunscrito é peculiar, diferindo-se de situações anteriores ou futuras. Assim, cada
circunstância é única, sendo as dimensões temporal e espacial sempre particulares. Nessa conjuntura
caracterizada pela mudança, tem-se um indivíduo, também, em transformação. À medida que novos
contextos sociais se constroem, as sociedades se modificam, compreendendo a heterogeneidade
característica que as assolam, seja em termos de concepção, de valores, de ideias, de perspectivas, de
costumes, entre outros.
Nessa linha é que Stuart Hall (2001), teórico cultural e sociólogo jamaicano, desenvolve seu estudo
sobre o conceito de identidade cultural na pós-modernidade. Ele afirma que as transformações ocorridas
nas estruturas da sociedade, especialmente aquelas do final do século XX, estão inteiramente ligadas
às mudanças relacionadas às formações identitárias. Hall (2001) descreve que o conceito de “crise
de identidade”, em outras palavras, representa um deslocamento do sujeito, sua descentralização.
Dessa forma, o indivíduo constitui-se em um sujeito sem um eixo único e singular, mas, ao contrário, é
perpassado por uma pluralidade de características que o transformam constantemente. Este sujeito é
“conceptualizado não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente [...]” (HALL, 2001, p. 12-13). Mais adiante,
o estudioso ainda acrescenta: “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias [...]” (HALL, 2001, p. 13).
Este sujeito fragmentado, por sua vez, é constantemente perpassado pela identidade cultural que
o cerca. Ao mesmo tempo em que este sujeito é responsável pela formação, modificação e perpetuação
de traços culturais característicos de seu espaço social, ele é, também, influenciado por tais traços. As
comunidades, sociedades ou nações organizam-se de forma a considerar certos aspectos culturais, os
quais, consequentemente, terão impacto sobre a convivência social e constituição individual do sujeito.
A história, a memória, as concepções, as ideias, os costumes, todos contribuem para a construção de
símbolos dentro de uma sociedade, os quais, com o tempo, elaboram pontos de referência, ou seja, tornam-
se representantes de conceitos diversos. Hall (2001) exemplifica essa construção simbólica utilizando a
questão da nacionalidade: “Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou
indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso, estamos falando de forma metafórica”. (HALL, 2001,
p. 47). Os indivíduos acreditam que tal característica lhes pertence essencial e necessariamente, mas a
verdade é que sem um sentimento de identificação nacional, o sujeito vivenciaria uma sensação de perda
subjetiva (HALL, 2001).
Ao tratar sobre identidade e diferença, Hall (2000) explica que o processo de identificação está
diretamente relacionado à construção da identidade. Explana que aos olhos do senso comum, a
identificação é construída a partir do reconhecimento de uma ou mais características ou ideais que são
comuns a diferentes pessoas ou grupos. Nesse contexto é que se construiriam, então, o sentimento de
solidariedade e de fidelidade entre as partes que se identificam. Contudo, o teórico adverte que, para
além do senso comum, a abordagem discursiva compreenderá esse processo de identificação sempre
como algo incompleto, em constante formação. (HALL, 2000).
A seção seguinte, baseada em estudos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin (1999), trata sobre a
utilização da palavra como instância comunicativa e sobre a apropriação da linguagem de que esses
indivíduos, pertencentes a campos sociais e semânticos específicos, com suas respectivas formações
identitárias, fazem uso em suas relações diárias.
A palavra, para Mikhail Bakhtin (1999), possui um caráter ideológico, sobretudo, claro, quando
expressada. No instante em que ela é utilizada, inicia-se, imediatamente, um processo de enunciação.
Aquele que enuncia empodera-se dos significados que constrói por meio de sua fala para comunicar
uma mensagem e, neste processo, constitui-se como sujeito discursivo. O enunciador constrói-se no
e pelo ato enunciativo, pois aquilo que fala, escreve e comunica representa suas concepções e traços
ideológicos, os quais são, por sua vez, interpretados por outro sujeito – aquele para quem a enunciação é
direcionada. Este receptor, em certo momento, toma a fala e direciona uma resposta ao sujeito primeiro,
o qual passa a ocupar, então, o papel de destinatário e não mais de locutor. No momento em que esta
troca é realizada, a transformação e a reconstrução dos sujeitos são viabilizadas, afinal, ao menos parte
do que foi manifestado pelo outro é apreendido e incorporado às concepções, agora reformuladas, do
sujeito.
Esse processo, em que intensas trocas comunicativas se dão entre sujeitos participantes da
enunciação, constitui o que Bakhtin denomina interação verbal. Para o teórico, “a enunciação é o produto
da interação de dois indivíduos socialmente organizados [...]” (BAKHTIN, 1999, p. 112), e a enunciação
(fala ou escrita) por eles produzida ganha sentido no instante exato em que é construída. Em outras
palavras, isso quer dizer que o contexto, envolto pelas circunstâncias espacial e temporal do momento
enunciativo, contribui necessariamente para a construção do próprio enunciado. Como afirma Bakhtin, “o
sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis
quanto contextos possíveis” (BAKHTIN, 1999, p. 106).
Na interação verbal, cada sujeito direciona sua fala a um interlocutor específico. Não há, segundo
Bakhtin (1999), receptores abstratos: todos nós construímos laços comunicativos partindo do
pressuposto de que alguém ou um grupo de pessoas, os quais a priori já sabemos quem são, receberá
nossa mensagem. “Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito
grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces” (BAKHTIN, 1999, p. 113), já que, na palavra
expressa, há dois lados opostos: o lado daquele de quem provém a palavra (face um) e o lado daquele
para quem ela é dirigida (face dois). Nesse processo interacional, a palavra é percebida como uma ponte
entre o eu e o outro, um espaço comum aos participantes do processo enunciativo.
Quando participamos de um ato comunicativo, tem-se a impressão de que a emissão de qualquer
mensagem se orienta de dentro para fora, isto é, vem de dentro do sujeito e é externada, no momento de
sua formulação, em direção a um receptor determinado. Entretanto, o eixo da enunciação é, na realidade,
externo, e não interno, pois ele situa-se no meio social que abrange o indivíduo. Em outras palavras, “a
estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração estilística
da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a
realidade da língua, é social”. (BAKHTIN, 1999, p. 122).
Dentro dessa perspectiva social conduzida por Bakhtin (1999), é interessante observar que todos
os enunciados demandam respostas, espécies de retornos em relação àquilo que afirmam ou negam.
Um enunciado, essencialmente dialógico, irá sempre exigir, na cadeia comunicativa, outro enunciado
que o confirme, negue ou o questione, por exemplo. Bakhtin (2011) denomina esta exigência de
atitude responsiva; e o enunciado responsável por esta resposta, compreensão responsiva ativa. Esta
característica dos enunciados permite identificar quando um enunciado termina e outro inicia, já que não
é o tamanho, por exemplo, que define quando temos um enunciado completo. Na verdade, no momento
em que a atitude responsiva torna-se possível, isto é, tem espaço discursivo para se dar, significa que o
enunciado que estava sendo produzido foi concluído, passando a carecer de uma resposta. Em relação
ao enunciado, Fiorin (2008, p. 21), estudioso de Bakhtin, afirma: “O que delimita, pois, sua dimensão é a
alternância dos falantes. Um enunciado está acabado quando permite uma resposta de outro. Portanto,
o que é constitutivo do enunciado é que ele não existe fora das relações dialógicas”. Beth Brait (2012,
p. 156), outra estudiosa dos conceitos de Bakhtin, recupera, em outras palavras, a mesma ideia: “No
contexto de sua abordagem, toda compreensão só pode ser uma atividade; uma compreensão ‘passiva’
é uma contradição em termos, mesmo que não seja vocalizada. Todo discurso só pode ser pensado, por
conseguinte, como resposta”.
Enveredando por este caminho de cunho dialógico, percebe-se que as situações comunicativas
são essencialmente complexas, uma vez que se constroem mediante a existência já concebida de
outras situações comunicativas, ou seja, em um ato comunicativo estão envolvidos sujeitos cujas
experiências anteriores e formação social refletem no modo como estes sujeitos conduzirão suas falas,
posturas e reflexões. Ora, um indivíduo não pode simplesmente desconsiderar sua história de vida, seus
conhecimentos, seus valores e suas crenças e participar de uma relação comunicativa como se fosse uma
tábula rasa. Ao contrário, todas as experiências discursivas que teve participarão, em maior ou menor
grau, das novas experiências, uma vez que estarão dissolvidas na própria construção do sujeito.
Bakhtin (2011) denomina essa espécie de cadeia discursiva de dialogismo. Para ele, a língua
seria dialógica, pois é viva e real, e os discursos por ela viabilizados encontram-se uns com os outros,
independentemente de quem os proferiu ou de quando foram produzidos. Esta interação é corriqueira e,
portanto, desencadeia a formação e reformulação de novos enunciados, confirmando a propriedade viva
da língua. Ele afirma que “[...] o enunciado não é determinado por sua relação apenas com o objeto e com
o sujeito-autor falante [...], mas imediatamente [...] com outros enunciados no âmbito de um dado campo
da comunicação” (BAKHTIN, 2011, p. 328).
Apesar desta propriedade, em certa medida coletiva, das produções discursivas, o enunciado é,
segundo Bakhtin (2011), particular e individual, refletindo a personalidade daquele que o enuncia. Os
enunciados podem ser tanto orais quanto escritos e são compostos por alguns elementos: pelo tema,
pela construção composicional e pelo estilo de linguagem. O tema ou conteúdo temático refere-se não
apenas ao assunto tratado em um texto, mas, em uma escala maior, envolve o domínio de sentido
apresentado. Já a construção composicional está ligada à forma como se organizará cada tipo de texto:
e-mails, por exemplo, carecem das especificações de dia e hora; poemas, por outro lado, apelam a outros
recursos, como rimas, musicalidade ou figuras de linguagem; em anúncios publicitários utilizados em
outdoors, identificam-se outras composições características que envolverão, geralmente, frases curtas,
afirmações, questionamentos ou interpelações e utilização de imagens e cores para chamar a atenção.
E, por fim, tem-se o estilo. Este conceito, para Bakhtin (2011), estaria associado à caracterização do
enunciado que dá a ele certo tom de individualidade. Em outras palavras, o estilo é composto pelas
escolhas que o enunciador faz ao construir seu enunciado. Entre elas, opta por traços fônicos, morfológicos,
sintáticos e semânticos, todos empregados de forma a tornar o enunciado prenhe de sentido diante de
seu destinatário. Assim, percebe-se que a construção do estilo é concomitante ao desenvolvimento da
enunciação, já que os sujeitos envolvidos nesse processo participam de sua formação, porquanto suas
próprias características influenciam nas escolhas que tomam ao assumirem um estilo A ou B. Pode-se
dizer, pois, que o estilo de um enunciado está vinculado estreitamente à dimensão discursiva, social e
ideológica dos participantes do discurso.
Assim, os responsáveis pelas instâncias discursivas, isto é, os sujeitos produtores dos enunciados,
constroem estes adotando os três recursos acima mencionados – tema, estrutura e estilo – e
contribuem, dessa forma, para a formatação de modelos relativamente estáveis, nos quais encaixam,
ao mesmo tempo, as suas próprias falas. Estes modelos são conhecidos como gêneros do discurso.
Bakhtin (2011) separa os gêneros do discurso em primário (mais simples, como a fala cotidiana, por
exemplo) e secundário (mais complexos, como romances, dramas ou pesquisas). Assim, ao analisar um
enunciado, o tipo de gênero a que ele pertence deve ser considerado, já que os gêneros são responsáveis
por moldar os enunciados, de forma que eles estejam adequados às condições em que se projeta o ato
comunicativo. Essa adequação ocorre uma vez que os indivíduos estão, constantemente, atuando em
diferentes campos discursivos: ora estão em casa, com a família, conversando sobre os planos das férias;
ora estão no trabalho, refletindo sobre as metas ou sobre as próximas atividades; e assim em outros
tantos momentos, em diversas outras situações. É interessante perceber que a cada nova circunstância
e a cada novo parceiro de comunicação que o sujeito tem, há uma reformulação do modo como ele se
comunica. Tal reformulação é determinada pelas finalidades e pelas condições da esfera comunicativa,
nas quais os sujeitos se encontram inseridos no momento da enunciação. Nesse contexto, então, é que
surgem os gêneros discursivos, engendrados pelos enunciados produzidos em situações comunicativas
diversas.
A seguir, apresentam-se os estudos de Maingueneau (2002) sobre a construção do discurso e,
principalmente, sobre os conceitos que emergem dele: cenografia e ethos discursivo, compreendendo-
os dentro dos gêneros diversos em que se produzem e pelos quais são, também, responsáveis.
enunciado que, por sua vez, deve validá-la, estabelecendo que essa cenografia que produziu a fala é
precisa e necessariamente a cenografia exigida para enunciar como convém (MAINGUENEAU, 2002).
Em relação a esta fala que se enuncia, há a presença de uma importante figura: o enunciador. É
este que promove a enunciação por meio de uma voz característica e é ele que adéqua sua fala em
conformidade com seu público alvo. Tal adequação é permeada pela própria personalidade daquele que
enuncia, cujas características e traços de caráter são expostos ao coenunciador no ato comunicativo. Em
outras palavras, são os ares que o enunciador assume ao se apresentar. Esta imagem que se constrói
pela atuação do enunciador é denominada de ethos discursivo. De acordo com Maingueneau, no capítulo
A propósito do Ethos, do livro Ethos Discursivo, o ethos “não se trata de uma representação estática e bem
delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário através do movimento da
própria fala do locutor” (MAINGUENEAU, 2008, p. 14). Em relação a essa fala, é relevante apontar aqui
a existência do que Maingueneau (2002) denomina de fiador, que seria o responsável pela projeção do
“eu” que enuncia; é ele que permite a construção de um sujeito que fala, que assume uma voz. Conforme
Maingueneau (2008, p. 17-18), “todo texto escrito, mesmo que o negue, tem uma ‘vocalidade’ que pode
se manifestar numa multiplicidade de ‘tons’, estando eles, por sua vez, associados a uma caracterização
do corpo do enunciador [...], a um ‘fiador’, construído pelo destinatário [...]”. Assim, em produções textuais,
por exemplo, fiador é aquele que narra a história, e o leitor, à medida que lê, constrói esta figura do fiador.
Contudo, o ethos não está associado somente à voz que se pronuncia, mas a questões físicas
e psíquicas ligadas à personalidade do enunciador. O caráter (traços psicológicos) e a corporalidade
(maneira de se vestir e de se movimentar no espaço social) são características atribuídas ao fiador. A
enunciação proveniente dele, cujo caráter e corporalidade lhe servem de apoio, confirma ou modifica
representações sociais. Estas, quando já cristalizadas socialmente, originam os chamados estereótipos
culturais, os quais circulam em domínios diversos: literatura, fotos, cinema, publicidade. Tem-se, aqui, o
que Maingueneau (2008) chama de ethos prévio.
O conceito de ethos prévio está intimamente ligado ao conceito de cenas validadas (MAINGUENEAU,
2002). Estas são espécies de cenas em que uma determinada cenografia se apoia, sendo consideradas
validadas por já estarem instaladas na memória coletiva, tais como se fossem modelos ou formas de
agir e de se comportar já consolidadas no meio social. Um exemplo seria a cena “reunião de trabalho”,
que suscita, em geral, uma imagem característica: diversos colaboradores sentados à mesma mesa,
preferencialmente uma mesa retangular e comprida, compartilhando ideias, problemas e soluções
referentes à pauta da reunião. Pode-se imaginar, ainda, a roupa destes colaboradores, geralmente
pensados usando roupas formais, tais como ternos, e tendo, na ponta da mesa, o líder ou o chefe da
equipe conduzindo o encontro.
É relevante, ainda, mencionar a complexidade do conceito de ethos, o qual, devido à sua natureza
e forma de manifestação, pode ser considerado “ethos dito” ou “ethos mostrado”. No primeiro caso, o
ethos se manifesta diretamente, isto é, o enunciador apresenta suas características, dizendo como ele
é ou não é. Já no segundo caso, não há uma relação de características apresentada diretamente, mas
alguns traços podem ser apreendidos analisando-se a forma como o enunciador se expressa e atua na
situação de enunciação, captando-se, então, detalhes que revelem quem o enunciador é ou não é. Mas
Maingueneau (2008, p. 18) adverte: “A distinção entre ethos dito e mostrado se inscreve nos extremos
de uma linha contínua, uma vez que é impossível definir uma fronteira nítida entre o ‘dito’ sugerido e o
puramente ‘mostrado’ pela enunciação”. A união destes dois tipos de ethos implica a formação do ethos
discursivo, que, desta forma, revela-se como uma representação, por vezes, ambígua e complexa, já
que mescla informações dadas e informações não dadas, mas nem por isso menos importantes para
a apreensão global do sentido do enunciado e para a influência exercida pelo ethos discursivo sobre o
destinatário. “Dizer que os participantes interagem é supor que a imagem de si construída no e pelo
discurso participa da influência que exercem um sobre o outro” (AMOSSY, 2013, p. 12), pontua Ruth
Amossy, estudiosa de Maingueneau, reafirmando a relevância da manifestação do ethos nos processos
comunicacionais.
Considerando as bases teóricas até agora apresentadas, a seção seguinte tratará sobre a
metodologia utilizada no presente estudo e a análise qualitativa realizada.
Neste trabalho, optou-se por focar em um gênero discursivo específico: o anúncio publicitário.
1
Assim, o corpus de análise escolhido é o comercial “Acredite na Beleza: A Linda Ex”, promovido pela
franquia brasileira de cosméticos e perfumes O Boticário. O anúncio veiculado outrora em canais de mídia
diversos segue atualmente disponível para acesso na plataforma de vídeos YouTube. A metodologia
de pesquisa utilizada neste trabalho deu-se de forma exploratória e bibliográfica, com abordagem
qualitativa. A análise do anúncio considerou aspectos pontuais tratados na base teórica deste estudo,
contemplando, assim, as transformações identitárias associadas à cultura, abordadas por Hall (2001);
a subjetividade da linguagem e a interação verbal abordadas por Bakhtin (1999, 2011); e os conceitos
de cenografia e ethos discursivo, apontados por Maingueneau (2002), confirmando, no corpus midiático
1
Em razão da natureza do presente trabalho, não será possível representar, de forma efetiva, o corpus escolhido para análise.
Figura 1 – Frame que representa o depoimento inicial dado pelas mulheres no anúncio
Figura 2 – Frame que representa o depoimento inicial dado pelos homens (ex-maridos) no anúncio
de quem (percebido pelo uso do termo “né”) se espera uma resposta, uma compreensão ativa e
responsiva (BAKHTIN, 2011).
b. Conteúdo explorado (o assunto tratado pressupõe um ritmo e um tom na fala que são construídos
paulatinamente): o tema tratado no anúncio – o divórcio – é um tema comum à sociedade atual,
porém, sua propagação não torna o processo de separação menos complicado em termos afetivos
e é justamente a partir desta problemática que o anúncio se desenvolve. A descrição dos problemas
vivenciados, relatados pelos homens e pelas mulheres, ganha um tom especial: de pesar, de reflexão.
O ritmo, sobretudo da fala das mulheres, é lento, devido, provavelmente, à face delicada que o
assunto tem. Tanto o tom como o ritmo, ambos em conformidade com o tema central, contribuem
para um processo de sensibilização o qual o público-alvo é conduzido a assumir. Essas características
relacionadas ao ritmo e ao tom, ambos sustentados pelo tema-foco, constituem a vocalidade do
enunciador, diretamente vinculada ao corpo deste (MAINGUENEAU, 2008).
d. Exploração visual: o apelo à produção física – maquiagem, cabelo e vestimenta – mostra-se essencial
no processo de superação da situação-problema. Por meio dessa produção, as mulheres sentem-se
renovadas, prontas para afrontar novos desafios, amparadas pela autoestima e autoconfiança às
quais restituíram valor. Além disso, outro fator relacionado à exploração visual seria a escolha de três
diferentes perfis: uma loira, uma morena e uma ruiva, evidenciando a utilização de uma estratégia
discursiva que garante maior alcance em relação ao público-alvo, já que o processo de aproximação
entre o enunciador e o coenunciador se viabiliza, entre outros, pela identificação que emerge a partir
das semelhanças percebidas entre este e aquele. A seguir, por meio da Figura 3, pode ser observada
a produção física a qual as mulheres são submetidas.
Figura 3 – Frame que representa a produção visual realizada nas mulheres no anúncio
É interessante perceber que a transformação física pela qual essas mulheres passam reflete uma
transformação interna, configurando um novo “eu”. Além disso, tal modificação, apesar de se amparar em
uma situação passada (a do término do casamento), projeta-se para o futuro: a formação de uma nova
postura, mais resistente e segura. Essa relação de projeção relaciona-se com o que Hall (2000, p. 109)
afirma a respeito das identidades: “Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos
da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual
nos tornamos”. E acrescenta que as identidades têm muito mais a ver “[...] com as questões ‘quem nós
podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma
como nós podemos representar a nós próprios’”. (HALL, 2000, p. 109).
inspirador e renovador assumiria mais valor se promulgado em pé. Observa-se, porém, que essa
colocação espacial é configurada a partir das relações entre o “eu” e o “outro”, ou seja, a partir de um
processo de identificação que pressupõe a incompletude, necessitando do “outro” para que a postura
adotada pelo “eu” no espaço comunicativo tenha sentido. Assim, “a identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que
é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos
por outros”. (HALL, 2001, p. 39).
Figura 4 – Frame que representa o depoimento final dado pelas mulheres no anúncio
Como afirma Maingueneau (2002, p. 88), “o discurso publicitário é, com efeito, daqueles tipos de
discurso que não deixam prever antecipadamente qual cenografia será mobilizada”, entretanto, por meio
de uma atenta análise do corpus midiático selecionado neste trabalho, percebeu-se que a cenografia
utilizada nele é construída de forma a apoiar, sustentar o discurso veiculado, contribuindo para delinear
a percepção e apreensão do receptor frente ao que se enuncia. A cenografia não é, assim, determinada
ao acaso. “O que diz o texto deve permitir validar a própria cena por intermédio da qual os conteúdos
se manifestam. Por isso, a cenografia deve ser adaptada ao produto [...]” (MAINGUENEAU, 2002, p. 88).
Considerando essas proposições e demais estudos feitos sobre cenografia, a análise sobre o corpus
revelou a utilização dos seguintes recursos:
a. Uso do discurso publicitário em si – cena englobante (MAINGUENEAU, 2002): este tipo de discurso,
sendo heterogêneo em termos de abordagem, tem a possibilidade de interpelar o receptor sem,
diretamente, oferecer-lhe determinado produto, mas, por caminho inverso, mostrar-lhe as vantagens
do mesmo ou os benefícios em adquiri-lo. No anúncio analisado não há, em momento nenhum, uma
apelação direta à comercialização dos produtos da marca; ao contrário, a promoção da empresa se dá
apenas no final, através de uma mensagem que se constrói em torno da ideia de que, com o auxílio
dos produtos O Boticário – cuja aplicação permite a valorização dos traços da beleza feminina – a
mulher pode recuperar ou manter sua autoestima e autoconfiança elevadas.
b. O gênero comercial tem a possibilidade de apelar tanto a recursos visuais como sonoros, a fim de
chamar a atenção do público para as cenas que se apresentam. Além disso, no anúncio analisado
são utilizadas pequenas interpelações textuais: frases curtas aparecem, principalmente no início,
introduzindo o assunto: 3 casais de verdade. As mulheres sabiam de tudo. Os maridos, de quase tudo.
Este trecho é o primeiro a aparecer no anúncio, sendo interessante observar que as frases aparecem
aos poucos, chamando a atenção gradativamente do destinatário. Além disso, as sentenças são
curtas, embora sejam intensas em termos semânticos. Ao mesmo tempo, fotos pessoais dos casais
são apresentadas e pode-se escutar a típica música utilizada em cerimônias de casamento, quando
as noivas entram na igreja – recurso sonoro que procura chamar a atenção para o assunto que será
tratado – e, em seguida, esta música é interrompida por outra, melancólica e triste, acompanhada da
frase: “Quando elas se separaram”. É interessante observar que a combinação, no início do anúncio,
entre a utilização das fotos dos casais e a música matrimonial ao fundo, corrobora para a construção
de um contexto específico, no qual a enunciação (neste caso escrita) recebe uma expressão ainda
romântica, feliz. Em outras palavras, o sentido das primeiras interpelações textuais é, na verdade,
determinado pelo contexto de produção do próprio enunciado (BAKHTIN, 1999). Assim, todos esses
traços característicos da parte inicial do anúncio servem para, com efeito, preparar o destinatário
para a cenografia específica que está por vir: a da separação matrimonial.
c. Os espaços em que as mulheres estão acomodadas quando depõem são, aparentemente, os de suas
respectivas casas, favorecendo a aproximação das mesmas com o receptor: é como se ele estivesse
tendo uma conversa informal com estas mulheres. Além disso, estes espaços intensificam o sentimento
de rompimento familiar, considerando que os ex-maridos, em contrapartida, são entrevistados em
outras salas, pouco familiares ou pessoais, servindo, apenas, à coleta dos depoimentos. O resultado
alcançado pela composição espacial das cenas é, assim, o de distanciamento entre o receptor e os ex-
maridos e de aproximação entre o primeiro e as mulheres. Percebe-se, a partir disso, que os espaços
onde são coletados os enunciados são coniventes com os discursos produzidos em cada ambiente
por cada sujeito. O conteúdo assume um valor semântico que se sustenta nessa composição espacial.
“Como se vê, enunciar não é somente expressar ideias, é também tentar construir e legitimar o quadro
de sua enunciação”. (MAINGUENEAU, 2002, p. 93).
d. Há, no anúncio publicitário, a utilização de cenas validadas (MAINGUENEAU, 2002): os espaços onde
são assinados os divórcios abrigam os casais de forma que eles fiquem frente a frente, amparados
pelos seus respectivos advogados, construindo cenas favoráveis ao discurso de separação. Sentados
a uma mesa retangular, em um ambiente aparentemente formal, os envolvidos estão diante de
papeis os quais, em seguida, assinarão. Percebe-se, assim, que não é necessária a utilização de
diálogos, já que a construção semântica se dá na validação da cena (Figura 5). Em outras palavras, o
destinatário sabe que, naquele momento, está sendo finalizado o processo de divórcio e a imagem
construída para representar tal situação é aquela já internalizada e cristalizada social e culturalmente
pelas pessoas.
Neste momento final, em que os casais se encontram para formalizar o divórcio, percebe-se a surpresa
causada nos homens pela produção, postura e desenvoltura que caracterizam suas ex-mulheres. Elas,
ao notarem esse olhar atento e admirado, têm sua autoestima e autoconfiança reforçadas, consolidando
o movimento de mudança ao qual elas foram desafiadas pela empresa O Boticário. Em outras palavras,
experimentam, ainda que não percebam, um processo de reformulação de suas identidades a partir de
suas relações, agora também modificadas, com os seus ex-maridos. “Assim, a identidade é realmente
algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato [...]” (HALL, 2001,
p. 38). Sem a materialização da figura do “outro” (no anúncio, representado pelos ex-maridos), o “eu”
(no anúncio, representado pelas mulheres) tem seu processo de identificação comprometido, ainda que
não seja capaz de reconhecer isso e, ao contrário, pense na identidade como uma constituição sólida e
individual. “Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ‘identidade’ e construindo biografias que
tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse
prazer fantasiado da plenitude” (HALL, 2001, p. 39). Acredita-se, assim, que a mudança que caracteriza
a postura das mulheres se concretiza, porque é, entre outras razões, motivada pela possibilidade de ser,
ela própria, apresentada aos ex-maridos. A modificação do “eu” se dá, assim, na relação de contraste com
o “outro”.
Além disso, o desafio proposto pela empresa O Boticário, que em princípio estaria relacionado
a uma mudança comportamental que se propunha a recuperar a autoconfiança e autoestima dessas
mulheres, comporta em sua essência outros aspectos de relevância semântica e pragmática e que estão
relacionados, por sua vez, a aspectos culturais diversos, tais como: concepção de beleza: o que é ser bela
hoje? Como ser bela e atraente? Quais as vantagens em ser bela?; construção arquetípica da “mulher
divorciada” que remete a uma imagem desqualificada e vulnerável; e concepção da ideia que se tem
da “mulher contemporânea”, capaz de superar seus problemas e resolvê-los de forma independente.
Todas essas construções discursivas perpassam, de uma forma ou outra, pelo processo de reformulação
identitária vivenciado pelas mulheres cujas novas posturas frente ao futuro não deixam de ser uma
resposta a discursos já materializados na esfera social. Assim, o dialogismo de que trata Bakhtin (2011)
também se manifesta na forma como interagimos com o contexto que nos cerca e com as colocações
enunciativas que fazemos em relação a enunciados anteriores.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio de uma pesquisa de caráter exploratório e qualitativo, pôde-se reconhecer a presença
de estratégias discursivas difundidas no anúncio publicitário estudado. Essas estratégias revelaram-se
enquanto meios pelos quais o enunciador buscou condicionar e conduzir a produção de sentido a ser
construída pelo coenunciador. Os estudos dos conceitos cenografia e ethos discursivo e suas nuances
delineadas no corpus midiático analisado foram essenciais nesse processo de percepção acerca do
direcionamento pragmático que um discurso publicitário pode engendrar, tendo em vista sua finalidade
comunicativa.
Confirmou-se, assim, a presença implícita de recursos no anúncio que influenciaram a construção
semântica, evidenciando a existência de uma cenografia que propõe a estética da beleza, instaurando,
necessária e consequentemente, um ethos discursivo específico – ser bela e atraente, mediante o qual o
público-alvo é conduzido a se apropriar. Esse processo de apropriação do ethos (MAINGUENEAU, 2002) é
também viabilizado pela estreita relação que se constrói entre os interlocutores, calcada na produção de
enunciados envolventes e na própria identificação que se estabelece dentro dessa relação.
Apropriando-se de concepções culturais e sociais que permeiam o contexto dos interlocutores, a
enunciação, aos poucos, promove um sentimento de aproximação entre o destinatário e seu emissor,
fazendo com que o primeiro se conceba como parte da realidade apresentada pelo segundo, apoiados,
ambos, em semelhanças de cunho identitário. Percebe-se, assim, que, enquanto sujeitos socioculturais,
estamos cercados de concepções intangíveis às quais recorremos de forma a encontrar e atribuir sentido
tanto à nossa existência como à existência do meio em que vivemos. Como sujeitos cujas identidades
estão sempre em processo de construção, sofremos constantemente influências externas e alteramos o
nosso modo de estar no mundo em resposta às diferenças que nos cercam e que percebemos no outro.
Por meio de produções discursivas, das quais o sujeito faz parte e sobre as quais também exerce
influência, ele legitima conceitos e é legitimado por eles. Sua formação identitária é, a todo momento,
reformulada e representada pelas suas posturas e ações nas diversas posições de sujeitos que ocupa ora
conscientemente ora inconscientemente. Precisamente em discurso publicitário, dentro do qual o corpus
estudado neste trabalho se insere, o coenunciador ocupa uma posição sobre a qual, por vezes, não tem
plena consciência. Através da análise realizada, constatou-se que o emprego das estratégias discursivas
no anúncio procura conduzir o destinatário à formação de uma ideia positiva sobre a marca, tendo em
vista a promoção dela perante seu público-alvo. Entretanto, essa condução é permeada de discretas
nuances – já apontadas na seção referente à análise do enunciado – que abordam o coenunciador
sutilmente, de forma que ele, inconscientemente, compactue com a finalidade pragmático-comunicativa
do discurso veiculado.
O estudo realizado evidenciou o poder da linguagem contextualizada e com fins pragmáticos,
demonstrando que as relações comunicativas são mais complexas do que costumeiramente se considera.
As interações verbais são perpassadas não somente pelas vozes captadas em um primeiro plano, mas
abarcam ideias, símbolos, concepções cristalizadas e memórias coletivas provenientes de discursos
anteriores, os quais, por sua vez, participam ativamente da formação do sujeito que é o responsável, ao
mesmo tempo, pela constituição dos enunciados.
Espera-se que este trabalho, tendo em vista seu objetivo inicial, possa promover reflexões acerca
da relevância da leitura, da interpretação (tanto textual como verbal), da comunicação em si e, finalmente,
do próprio ensino, o qual contempla, entre outras instâncias, todas as citadas anteriormente, já que
aprender envolve, por sua vez, as ações ler e interpretar, perpassadas pelo ato de se comunicar. E espera-
se que contribua, efetivamente, com a construção de uma postura mais crítica em relação aos diversos
discursos que nos permeiam e dos quais somos, muitas vezes, alvos no dia a dia.
REFERÊNCIAS
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