As Memrias Alheias
As Memrias Alheias
As Memrias Alheias
Alheias
Gustavo Sobral
As Memórias
Alheias
57p. : il.
ISBN: 978-85-54358-02-0
CDU: 82(81)-32
a Manuela
Manias de Corbiniana
Cheia de fricotes. Se se dissesse assim, passe ai o arroz e se
passasse o prato de arroz por cima do prato de macarrão, ela
não comeria o macarrão porque o prato tinha passado por
cima. Quando ia cortar uma costura, a toalha para forrar a
mesa precisava ser lavada e esterilizada, era todo um processo.
Ai, as enteadas, que não suportavam tanto capricho e mania,
troçavam. Iaiá dizia deixe que eu corto isso, ai quando ia
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cortando a fazenda cortava o forro debaixo todinho, mas
menina, quem mandou você cortar o forro também! As
meninas só comiam carne de segunda, camarão e estas coisas
era para ela e o marido. Um dia Iaiá disse às irmãs, esperem
que hoje a gente vai comer camarão adoidado. Maria disse,
Iaiá o que é que você vai fazer. Pode deixar Maria, você vai ver
o que eu vou fazer. Começou a gritar, ai, ai, ai. Um escândalo
e sapateando e gritando. Um rato, um rato, um rato bem em
cima dos camarões. Como é que pode, um rato, ai meu deus.
Tudo invenção. Pois Corbiniana ouviu calada e o resultado foi
que a semana passou toda para as meninas no almoço a base dos
camarões. Quem servia o açúcar na mesa era ela Corbiniana,
saia colocando açúcar na xícara de cada uma delas, não havia
o próprio direito de se servir. Maria com raiva deste absurdo,
que não aceitava, passou a tomar amargo. Quando comprava
um chapéu novo, para evitar que, vindo sei lá de onde, e sabe-
se lá como guardado, e se estava asséptico, forrava com um
lenço, dava quatro nozinhos na ponta e cobria a cabeça antes
de colocar o chapéu. Era assim Corbiniana.
Pinotes de Basílio
Marcha, maxixe, gingados de capoeira, bastava soar na rua
o carnaval e Basílio saia para brincar. Apressados metais em
todo sopro desciam frevo que lavava o bairro de São José a
pulsar o coração no Recife, lá ia o moço Basílio, sem enfado,
todo prosa, na instiga, no estilo, desenhando passos. Cada
pinote, orquestrado e galante que só se vendo. O carnaval
que passava pela rua da Concórdia ele não perdia. A rua em
que moravam as sobrinhas, a rua em que seu coração batera
carnavais. Não custava nunca relembrar cada frevo, cada
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confete, cada passagem, a viva alegria de ser todo carnaval.
Quando via o Bacuri, não se acanhava, era marcar o passo e
dançava, era o sucesso. Todo mundo adorava o moço como
respeitava o velho que virou. Todos os meses saia de Duarte
Coelho, onde residia, próximo ao Convento da Caridade de
Santa Thereza, para apanhar os proventos a que tinha direito.
Viúvo, conversador e alegre, era funcionário aposentado da
delegacia fiscal. Já de idade, bigode bem aparrado, a cabeleira
bem penteada, lembranças no velho do rapaz que foi, aurora
da sua vida, tempo que não esquecia jamais.
.9.
Sinhazinha do bolo de São João
Noite e a festa de São João ao pé da fogueira com balões que
faziam o céu e o Recife. Na casa da Bela Vista preparava-se
o bolo. Belina, Lourdes, Abigail e as filhas de Sinhazinha,
Candinha e Ilda, cada uma, uma tigela. Sinhazinha colocava
manteiga, batabatabata, daqui a pouco o açúcar, batabatabata.
Já coloquei ovo ai, mamãe a senhora já botou, coloquei não,
e pá, botava mais ovo, e essas meninas não fazem nada que
preste, está uma porcaria, olhe só como é que é que isso ai está,
no fim os bolos não prestavam para nada.
Chilique
Papai Luís! Papai Luís! A cena foi em pleno passeio público,
a moça bateu pé, as meninas entenderam nada e Luís ficou
contrariado. Luís tentou explicar, Belina, Lourdes e Abigail
eram suas irmãs e não suas filhas e aquele, um chamamento
carinhoso. O senhor não tem acanhamento não, um homem
com um rancho de filhas enganando a filha dos outros. Era
pretendente nova, orgulhosa, cheia de brios, levada pelos
olhos e elegância de Luís. No dia seguinte, a par da verdade,
lá foi ela desculpar-se pelo chilique, e ao que Luís retrucou,
não caso com quem desconfia de mim. Por muito menos
Luís desmanchou noivado. A moça era desleixada, aparecia
a alça da combinação. Falta de elegância total, comentaram
as mulheres da casa, onde já se viu andar toda mal amanhada
assim, e Luís tão elegante, caprichoso, bonito, com uma moça
daquelas. Também o povo já falava. Luís tentou resolver com
um presente, duas alças de prata. Ela nem usou e Luís foi
noivar com a sobrinha do padre.
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Ilda, Thereza, Candinha e Nísia
As filhas em idade de namorar e o pai de jeito e maneira
que não havia de permitir filha sua envolvida com qualquer
qualidade de rapaz, tinha que ter futuro, o que. Pois bem
que tudo havia é de correr a sua atenta supervisão logo após
aprovação devida do candidato. As credenciais, ser distinto e
de família e apresentar futuro em vista. As filhas não podiam
apitar ou eram as regras ou era nada. A mais velha acanhou-
se, suspirou, saltou um muxoxo, não teria vocação. A do
meio desesperou-se: e se só saísse casamento pela ordem de
nascença? Só a mais velha arranjada, poderiam elas, segunda
e terceira, tomar o caminho? Desconheciam regra a respeito.
O muro alto por fora – não se via por dentro uma pessoa se
ali estivesse escorada. E por dentro, baixinho, baixinho como
um parapeito de janela, e que dava para se encostar. Assim se
deu a história: a filha encostava no muro, olhava a rua passar
e o pai lá da casa sossegava vigilante e nada via que, por fora
do muro, na calçada, sem ser visto e nada, o rapaz conversava
animado fazendo namoro.
Seu Joca
O vale dividia distâncias que só ali se mediam. O verde da
cana imperava absoluto, confundia propriedades. Coisas de
herança, inventários, posses, limites, registros, carimbos e até
desavenças. Seu Joca tinha por herança. Do partido popular
do governador José Augusto, os jornais lia todos e preferia
A República. Paletó sem gravata, relógio na algibeira e uma
pistola de dois tiros, uma bengala e puxava uma perna. Barba
branca e comprida, escovada todo santo dia. Feito o imperador
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Pedro II, nunca aparou. Olhos bem azuis e miúdos, passados
para Manuel, Jacob e Adelaide. Do tipo calado atravessava
uma légua rumando do engenho a Ceará-Mirim. Não perdia
missa de domingo, o cavalo alazão baixeiro todo não concedia
atraso. Levantava quatro horas da madrugada para tratar do
canavial e do gado. Viajou ao Norte para resgatar a irmã, de
lá trouxe manga Mariti para plantar. Lia a Bíblia e aplicava
sermão invocando as parábolas lá escritas. O pai teve as terras
que vão de Ilha Bela a Timbó. Joca fez engenho e rua de casas
que pôs o nome Guarani. No começo, moagem da cana por
obra de umas bestas na almajarra, animais que criava lá por
Baixa Verde junto a um gadinho pouco. Começava a moer em
agosto o açúcar entregue a Tiburtino Bezerra que negociava
para a Inglaterra. O transporte em lombo de animal até Igapó,
ali de canoa pelo Potengi até os armazéns da Ribeira.
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centenas de mil reis. Ao aproximar-se o ilustre presidente
do governo municipal e distinto chefe do grande partido do
Ceará-Mirim, foi ele delirantemente recebido, sendo erguido
pelo cidadão José Januário Souza um viva ao inefável chefe e ao
muito digno e prestimoso auxiliar, tenente coronel Francisco
Xavier Pereira Sobral, o qual foi entusiasticamente aplaudido
tocando a Filarmônica o hino nacional ao mesmo tempo que
subia aos ares uma girandola de fogos.
A raposa e a mordida
Manuel, alta noite já ia, correu à casinha e certo que não viu
a raposa que ali acuada foi e tacou-lhe uma mordida bem nas
nádegas. Ah, Manuel! Armou-se a quizomba, os ais de Manuel
acordaram João e José, seu Joca e acenderam a casa. Como
andava aparecendo raposa doida, tiveram de rumar para o
Recife, necessário seria tomar vacina. Nem amanhecia no vale,
tomaram os cavalos para Ceará-Mirim em busca do primeiro
trem. No Recife, seu Joca se hospedou na casa da cunhada
Maria Fernandes, na rua da Concórdia. Um retrato antigo põe
todos juntos na sala de visitas. Joca todo enfatiotado, terno
escuro de viagem, relógio na algibeira e corrente pendente
e chapéu as tias solenes de braços cruzados todos sentados e
Manuel vacinado longe de qualquer perigo.
.13.
A bordo do Bahia
Bem não saíra da escola secundária, e já o cérebro de adolescente
precoce fervilhou, espontâneas umas, e cultivadas outras, as
tendências aventureiras de etnia que assentou o seu habitat
na potiguarânia e que teriam, mais cedo do que esperava,
produzido seus frutos, não fora o espírito severo e disciplinado
do pai, que se opusera, apesar de suas insinuações e de rogo
dos amigos. Mas, logo que se afrouxou o freio paterno, com a
maioridade natural reforçada por um título de escola superior,
Francisco enfrentou a miragem das viagens mais extensas do
que as que andou pelo litoral nordestino, e saiu para conhecer
o Rio dos romances de Aluísio de Azevedo e Machado de
Assis. Ser jornalista e escritor, respeitado e reconhecido
pensava e, mais tarde, quem sabe?, membro de uma Academia
de Letras, ou de alguma outra instituição assim notável, tal
qual ocorreu a Perrette, com seu pontinho de leite, do conto
de La Fontaine. E numa esplêndida manhã de junho de 1925,
a bordo do Bahia, do Lóide brasileiro, abraçando com o olhar
as dunas, os coqueirais, as jangadas, e a cidade, lá Francisco
desceu o Potengi, cruzou o forte dos três Reis Magos e, pelo
estirão do Atlântico, foi parar na plácida Guanabara, onde,
deslumbrado pelo inédito do espetáculo da fosforescente baia,
entrou as dez horas da noite de onze de junho do mesmo mês
e ano apôs nove dias de torturante enjoo.
.14.
Professora do grupo escolar
Sua irmã Maria Anita casou e morreu jovem e sem filhos, sua
irmã Marie casou com Enéas Paulino e adotaram Raimunda
que casou com Almir Varela. Adelle foi solteira e professora
do Grupo Escolar Ângelo Varela. Ideia e propriedade dela e
Nestorina. O grupo na rua Grande em Ceará-Mirim, casa de
esquina com a prefeitura. Ali se estudava português, aritmética,
geografia e história e não se aplicava o método da palmatória.
Sofrida, ela menina o pai resolveu tentar a vida no Norte.
Adelle menina viu padecer, adoecer, agonizar e morrer o pai
doente na viagem de navio. O corpo jogado ao mar, trauma,
saudade e orfandade. Fez versos para o pai morto. Era poeta.
Acidente na caldeira
Dez horas do dia de sábado. A moenda encheu o paiol de
garapa, amontoados trabalhadores na casa da caldeira para
filar melado. O engenho suspirava o vale a doce tarefa de fazer
açúcar. O rio cumpria caminho risco de água azul no verde
atravessando a terra. O mais era o resto, céu e nuvens. Um dos
camaradas berrou para fazer susto: lá vem seu Joca! Os cabras
correndo no medo. Um, coitado, apressado para subir no
batente, agarrou no cano quente de escapamento da moenda,
desequilibrou e caiu no taxo fervendo de mel.
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Retrato do Papa
Dia de festa. Primeira comunhão comandada por Maria
Isabel, esposa de Joaquim, que ensinava catecismo. Católica
fervorosa, vidente, conversava com os espíritos. A casa grande
pegada ao engenho repleta de gente pelo terraço grande.
Manuel tocava sanfona, Paulo fazia retratos. Ali a família de
dezenove filhos, noras, genros, netos, primos, tios, sobrinhos
e agregados. A mesa de refeições tinha para mais de vinte
metros e nela almoçaram todos acomodados nos dois bancos
compridos. Numa cabeceira seu Joca, noutra dona Iaiá, na
parede, o retrato do Papa. O banho tomaram no banheiro
novo de alvenaria que fizeram lá por trás da balança, no rio
Azul, onde nadavam e picavam piabas, alvoroço foi quando
mataram uma jararaca. À noite, acenderam os candeeiros.
Serafina, Adelaide e Isabel aprumaram discos no gramofone,
bastava dar a corda para funcionar, e todos dançaram. A
dormida das moças foi nos quartos, os homens arranjaram-se
nas redes espalhadas por todo canto. Manhã cedo bateu visita
na porta. Antônio Potengi e um pessoal. Vinham arrecadar
donativos para a festa da igreja. Pois Antônio Potengi olhou
para o retrato do Papa e, procurando ser simpático, para
garantir uma gorda contribuição, disse para dona Iaiá mesmo
assim: o retrato da senhora ai na parede está muito bem tirado.
.17.
Mexeriqueiro
Tião na beira da várzea, chegou um cambiteiro, primo de
Joazinho Inácio, Zé Inácio. Tinhoso, montado em uma
bestinha melada viu aquilo ali meio errado e mesmo assim
foi dizendo a Tião para encher a cave. Tião colocou umas três
de uma vez só, satisfeito, sem dizer nada, para impressionar.
Zé Inácio calado estava, calado mesmo ficou e partiu para
o engenho, bem onde estava seu Joca, por ali observando a
lida de tudo, e foi se chegando como quem não quer, dando
a volta mesminho em frente ao patrão, até que seu Joca viu
aquilo ali e disse para Zé Inácio, quem tirou essa cana assim
miúda?, miúda não presta, como é que você me traz uma cana
dessa, ora!, foi Sebastião Oleiro, seu Joca. Diga a ele que corte
a cana maior viu. Zé Inácio voltou para completar o mexerico,
seu Joca disse pra você cortar essa cana maior, viu, seu Tião.
Acontece que Tião tinha deixado muita cana cortada miúda...
Dois cocos
No engenho tinha um sitio e no sitio um pé de coco. Seu
Joca disse que não era para ninguém bulir ali sem sua ordem.
Passou um cabra chamado Chico Isidoro e atreveu-se a pegar
dois cocos sem permissão ou ordem. Seu Joca quando soube
do ocorrido mandou logo chamar Chico Isidoro. Venha cá
seu Chico, vá levar este papel ao delegado, viu, e vá ligeiro.
No papel ia dizendo assim, prenda este cidadão que tirou
dois coco até eu mandar soltar. O delegado leu o bilhete e
cumpriu o pedido. No outro dia seu Joca foi lá mandar
soltar. Andando pelo alagadiço, era de seu costume, seu Joca
apanhou o rapaz pescando. Está pescando aqui seu Chico,
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quero ninguém pescando aqui não, cadê o peixe? está aqui
seu Joca. E apresentou também uns camarões graúdos. Rum,
rum, seu Joca tinha um grunhido na goela, vá lá em casa, e vá
por aqui pelo aterro, e diga a Iaiá que tire um bocado destes
camarões para nos almoçarmos, sim senhor, seu Joca. Quando
chegou à casa grande o rapaz procurou dona Iaiá e disse, está
aqui uns camarões que seu Joca mandou, e olhe, ele ainda
mandou dizer à senhora que também me desse dois cocos.
Boneco enfeitado
O engenho moendo, a garapa era franca. Nos caminhos de
passagem quem por ali andava chegava, e pedia licença, passava
para falar qualquer coisa, pedir, oferecer, tratar, só pousava ali
quem era bem-vindo, conhecido e do trato da casa, forasteiro
não encostava nas terras de quem não conhecia, sem antes de
se identificar e provar a intenção. E que não fosse atrevido.
Tião Oleiro e uns camaradas iam no rumo de casa, passando
pelo engenho resolverem ir beber uma garapinha. Seu Joca
já no fim, doente. Bom dia seu Joca! Bom dia, você é um
calunga? Não senhor, é a roupa da brincadeira. Dos Congos
que tem na Guanabara? É sim, senhor. Eu vim a pedir ao
senhor para a gente beber uma garapa ali pode? A vontade!
Beberam. É muito boneco enfeitado para danado ai, é muito
seu Joca, respondeu Tião, e vieram embora, foi a última vez
que Tião viu seu Joca na vida.
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Dona Bela
Tonho Sobral morto, dona Bela, viúva. Agora era certo que
daria o troco ao falecido. Ele tinha as suas amantes, e dona
Bela, distinta filha flor do vale do Açu, viveu com ele sem
tirar aquela afronta. Pois chegou o dia que viria a forra. Era
dele o Engenho Grande e uma parte de terra acima, onde
resolveu montar outro engenho, lugar que percorria o dia
montado no seu animal, de nome Fulô do rio. Pois mandou
vir ferragens novas da Europa empregando alta quantia, dizia
que ia fazer o engenho dele e não precisava tomar ferro velho
de seu ninguém, queria tudo novo. E tinha mais, ficaria ainda
com uma pataca na mala depois de correr as despesas, enfado
nenhum era a gastança. Correu dinheiro. Fizeram o prédio da
morada, assentamento, tudo, só faltava mesmo a ferragem. Foi
no tempo em que adoeceu, mudou para a rua e lá morreu no
ano de vinte. Dona Bela não esperou nem passar a primeira
missa, disse logo que não queria engenho que nem viessem
as ferragens e a cana que ele tinha deixado plantada vendeu
todinha para o Engenho Guanabara.
Voluntário da pátria
Foi com o cavalo que tinha, a muda de roupa que tinha e um
farnel. Childerico usava bigode de ponta, terno com colete e
relógio na algibeira. Calçava botas, era cidadão e podia votar.
Se despediu de quem queria, pediu a benção a quem devia,
e foi-se embora para o Norte ganhar a vida, trabalhar com
borracha e fazer fortuna. Contavam que sabia segredos dos
Incas, padeceu de epidemias, e parece que foi até vítima para
mais de uma maldição. Virou guerreiro do Yaco e mandava
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cartas contando cada coisa por aqui recriadas e aumentadas
por um e outro que as ouvia de quem lia, também fantasiadas
no falatório de quem as repassava. Miudezas, coisa de boca
a boca, pé de ouvido e até fofoca. Índio muito, fortuna
grande, lenda aprumada, aventura arrepiante, tudo navegado
nos rios e afluentes sediado ele no Purus. Voltou velho, já no
fim, quando já era lenda e rei do Oriente com o título de
coronel da guarda nacional que o governo lhe deu, voluntário
da pátria na questão do Acre. A fortuna já mais não tinha.
Quem viu disse que ele voltou assim, mesminho como foi, a
trouxa de roupa, o chapéu de massa, o terno, e teve gente que
desconfiou que até o cavalo era o mesmo.
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Gostosura
Todos os blocos passavam pela rua da Concórdia e vinha
gente de Olinda, de Casa Amarela, vinha gente de Dois
Irmãos, onde tinha parente o destino era a casa na Concórdia.
Cesário aparecia com as filhas e sem Sinhazinha, que quando
emburrava não ia de jeito nenhum, Luís se achegava, era uma
festa. Nina preparava fatia dourada, pastel, filhós, que servia
numa travessa branca, e beijo que cobria com papéis de seda
nas cores de cada bloco. Verde e branco, para o Náutico,
vermelho e branco para o América. Juntava um branco e um
vermelho, um branco e um vermelho, dez ou doze e amarava
com uma fita, assim fazia jetones. Quando passava o corso na
porta e vinha uma pessoa amiga, Nina dizia, jogue! As meninas
jogavam e a rapaziada aparava aquela bola e quando de tanta
folia caia no chão, para não se perder, Nina dizia, pode levar!
Ai apanhavam, e ela dizia, prove, e quem comia agradecia,
gostosura, gostosura!
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Olinda é perigoso e ela não pode entrar sozinha. Tia Cina,
esposa de tio Gudes, tinha um casarão em Olinda e tratou de
hospedar a doente e mandou logo providenciar uma cadeira
de rodas. A recomendação médica foi seguida à risca. Maria na
cadeira de rodas e uma tijelinha que se enchia com a água do
mar e levavam para molhar as pernas. Maria fez o tratamento,
ficou boazinha e até morrer nunca mais teve nada.
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Ainda por cima é canhota
Douna Nina, foi mesmo Abigail quem fez, douna Nina, eu
não acredito. Quer que chame a menina aqui, ela pode fazer
para você ver. Quero, douna Nina, quero sim. Abigail, minha
filha, venha cá, faça aqui um pedacinho da nervura para dona
Guiomar, por favor. Chamou mamãe, chamei minha filha,
faça aqui um pedacinho de nervura, faltou, mamãe, não minha
filha, é só para eu mostrar aqui a ela. Basta umas três, minha
filha, e pode voltar a brincar. Douna Nina, pelo amor de deus,
está perfeito, e ainda por cima a menina é canhota! Mas por
que se admira, Guiomar, as mãos não são iguais, uma tem
cinco dedos, a outra também, Deus as fez iguais, não é preciso
corrigir. Douna Nina vou lhe dizer, venho aqui conversar com
a senhora para aprender a educar meus filhos. Guiomar, não
tem segredo, você vai vendo, quando estão errados, você os
corrige; quando se comportam, você os compensa. É assim
que a gente deve fazer.
Curso Normal
Maria Fernandes leve Abigail para estudar em Olinda com as
freiras alemãs da Academia Santa Gertrudes, há vaga para o
externato. As freiras informaram: era necessário passar pelo
exame de admissão. Maria Fernandes receosa, Olinda era
tão longe para Abigail ir e ainda mais sozinha. Se ao menos
Abigail tivesse companhia... Titia a senhora dá licença, me
deixe ir ali falar com a mãe de Alda Cruz, sim, Abigail, pode
ir. Dona Mariana, mãe do padre Borba, triste na janela, a filha,
Irene, formada em comercio, queria mesmo ser professora,
mas, infelizmente, não havia vaga nos colégios do Recife
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ou eram caros demais para as suas posses. Thereza de Jesus
Bordel, a família viera do Rio de Janeiro, passavam privações
e a mãe não encontrava escola, mas mesmo em Olinda, não
há dinheiro para a condução, minha filha... Abigail disse que
resolveria, titia, a senhora poderia ajudar?
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Alegria do pai
Minha filha, balançando assim a perna ela vai cair, pare essa
perna e venha me dizer o que você tem, não é nada, mamãe...
é que....meu nome é tão feio... Minha filha, venha cá, vou
lhe contar uma história, seu nome foi seu pai quem escolheu,
Abigail é um nome hebraico das terras onde Jesus nasceu e
significa alegria do pai. Ah, mamãe, pois a senhora precisa
dizer as meninas, quando elas chegam da escola e vão brincar
de boneca, a mais feia elas põem o nome de Abigail...
Guirlanda brasileira
Maria Fernandes na Casa Inglesa para entrega de uma
encomenda de melindre. Chapéus novos chegavam da
Inglaterra e a dona do estabelecimento perguntou se poderia
fazer uma grinalda larga para pôr neles. Maria Fernandes
tomou as medida e propôs uma guirlanda de margaridas.
Fez, levou. Foi sucesso. Entrou uma cliente e a vendedora
apressada: é tudo da Europa! Maria Fernandes não pode com
isso, e completou, mas a guirlanda é brasileira!
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Uma desgraça
Morfinomaníaco, coitado. Médico, ele mesmo receitava e
comprava. As doses cada vez maiores, os dias mais curtos, a
necessidade mais constante. Recém casado, a esposa punha
as mãos na cabeça, não sabia o que fazer, não tinha nada a
fazer, era sofrer calada, e ele ainda por cima médico... Foi se
consumindo aos poucos, até que no hospital foi impedido
de ter acesso aos medicamentos. Acabou internado para
tratamento, a coisa já ia a sério e adiantada, não houve jeito e
disso se consumiu. Morfinomaníaco, coitado, uma desgraça.
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Os doze meninos internos
Dudu na Concordia para visita, Maria Fernandes tristonha.
Xavier seria expulso da escola e ela nem podia telegrafar ao
pai do menino, tio Chico, que doente padecia de febre tifo,
e com uma notícias daquela poderia acabar de morrer de
desgosto – sorte que não era o indisciplinado e turbulento
Joazinho da Via Lactea, que Fanette anunciara na edição de
outubro. Aquele lá punha em desordem a classe e a escola,
fazia os colegas chorar no recreio, nem castigo, nem sermão
persuasivo que alegasse o desgosto que levava aos pais, e o
futuro? Triste, se não quiser pôr em sossego estas paixões da
inquietude e adquirir a disciplina dos meninos as direitas.
E era de fazer fita: os olhos de perdão, mas ouvido surdo, e
voltava a tudo. Quando soube que no futuro Joazinho tornou-
se padre, não pode crer!, era a última esperança de Fanette. E
Xavier interno no Colégio Nóbrega do Recife, aos cuidados de
Maria Fernandes, a responsável, que tratava de pagar o colégio,
levar o lanche e trazer pra casa em dia de feriado. O diretor
da escola havia informado a última, no almoço, os meninos
rindo a valer, e Xavier munido de dois garfos fazia voar arroz
da travessa que serviria aos doze meninos internos.
Lugar da cócega
Quando Cesário precisava de injeção, só confiava em Véssia.
Ela lá adoentada não estava em condições. Abigail se ofereceu,
e Véssia: Abigail não sabe, é um risco, e isso mais aquilo, ideia
de jerico, e não sei mais o que. Cesário consentiu. Suspendeu
a manga da camisa e advertiu, neste lugar não deve pois é o da
cócega, neste outro também não que é sensível, aqui não que
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tenho uma cicatriz. Lá Abigail aplicou a agulha e o homem
saltou da cadeira num pulo, tinha sido no lugar da cócega. A
seringa na mão de Abigail e a agulha no braço de Cesário, no
lugar da maldita cócega. Bem disse que essa menina não sabe
de nada, está vendo, me passe a seringa para cá, olhe só o que
você fez, e mais isso e aquilo, Cesário interrompeu, Véssia,
quem vai aplicar é Abigail.
Só falta o perfume
Dona Maria Fernandes, a senhora imagine, a casa do francês
não tem uma alegria, não tem um vaso, uma florzinha, pois
leve este botão de rosa, Nestorina. O francês espantou-se com
a perfeição, veio agradecer. Maria explicou: dificuldade, digo
ao senhor, é encontrar os forros e as tintas. Um dia chegou um
pedido de Paris. Maria Fernandes não dominava o francês. As
freiras freguesas que escreviam bem no idioma, socorreram.
Maria Fernandes fez as flores. Enviar com segurança via correio
marítimo era a recomendação. Na alfândega, os funcionários
exigiram, que fossem abertos os caixotes. Espanto total. Minha
senhora, para ser natural só falta o perfume.
Agostinho preso
Longe da terra, sozinho de todos, metido mais aqueles lá
e se não era forca e sim fuzilamento, pouca diferença fazia
que o resultado era o mesmo. Estranho, era estranho saber
que a vida tinha prazo certo com a morte datada. Surpresa
foi quando desceu a anistia por ordem daquele Pedro I. Era
que sorvia nele, só podia, também o sangue rebelde, não foi
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parvoíce decretar a separação de Portugal, se não foi, era o
que? Agradeceu por não ter passado miséria ao capitão do
forte, ele ali preso, e apenas. Nasceu amizade naqueles anos
de grade. Foi o que amansou os dias, de nome Childerico, a
quem honrou a palavra, serviam-se de uma jaca, e Agostinho
trouxe a semente pra plantar, aqui não havia, fosse ele vivo
ia ter sempre um Childerico nos Fernandes, disse e partiu.
Nem olhou para trás. Disso não era. Se veio a ferro e fogo
embarcado no Potengi com outros presos da revolução, no
porão, feito um escravo, escapando aos poucos, morrendo
gente, até padre, voltou melhor pelos recursos que tinha.
Nada fora confiscado.
Capitão de Milícias
Mas tudo não estava acabado, 1817 havia de se repetir.
Revolucionário o que. Era a favor do que era dele, não era capitão
de milícias à toa, aquele negócio de liberdade dos franceses era
coro do Seminário de Olinda. Seguiu o único destino que lhe
havia: as fazendas de gado e o cargo de Capitão de Milícias.
Tinha o poder e o status que cabiam aos homens de prestígio
de sua época. No redor da serra tinha suas fazendas de gado,
enquanto a serra abrigava uma instância de veraneio, com sítio
de farinha e fruteiras. Sobre sua participação em 1817, sabe-se
que foi preso no Ceará, quando quedou o movimento; lá fora
para divulgar a revolução. Convinha a Agostinho participar da
nova revolução? Se se juntou a causa era porque melhor não
estava do jeito que as coisas iam. Não ia se aquietar, em 1832
veio a prova, comandou tropa para combater Pinto Madeira.
.30.
Doenças, padecimentos, promessas
Quando caiu doente o doutor Sobral Pinto receitou limonada
e ácido sulfúrico para tomar aos goles, também doses de
clisteres de macela e óleo de rícino, era o começo. No terceiro
dia passou para o purgante. A febre tratada com raiz de
fedegoso cozida com açúcar. Nada de melhorar. Aplicaram-
lhe cataplasmas de jurubeba, o que não funcionou, um ano
depois estava nas inevitáveis sanguessugas. Doutor Sobral
ainda prescreveu bicarbonato de ferro e gengibre e pílulas
Vallet Bland. O doutor Jonathas Abbott da Bahia também
consultado, acrescentou óleo de jiboia e extrato de mulungu.
O sofrimento não teve fim, passou para homeopatia e uso de
mercúrio. Nenhum resultado. Fez promessa e da bem feita
para Nossa Senhora Virgem do Amparo, prometendo missa
e sacrifício. Para Nossa Senhora dos Prazeres, missa e um
quadro na igreja com dizeres anunciando a graça alcançada.
Melhorou. E estava na promessa soltar os foguetes que
saltaram no adro da igreja. Acontece que de tanto estar doente
disso ficou doente, doente de ser doente, padeceu de fraqueza,
desanimo, e foi para Paris continuar o tratamento.
A história de Emília
Emília morava com a irmã Ermelinda, o cunhado Artur e
os sobrinhos. O verão em Olinda na praia do Farol. Vila de
pescadores, poucas casas de veranistas, o cunhado levou luz
elétrica e praça com coreto. Emília promoveu sarau domingo
na praça. Apareceu Raimundo, voz empostada, cantava e
tocava violão. Educado, bem trajado, bonito e prestimoso,
Raimundo conquistava os olhares do verão. Um domingo
.31.
dedicou a Emília uma canção derramada, não só cantou e
tocou, tascou um olhar enternecido e apaixonado. O interesse
virou romance, veio namoro e alcançou noivado. Mas
Raimundo era casado. O matrimonio só durou um ano por
falta de comportamento da esposa. Emília soube, Raimundo
foi embora de vergonha. Emília caiu doente, padeceu, sofreu e
morreu de pneumonia, solteira e sem filhos aos trinta e cinco
anos de idade em setembro de mil novecentos e trinta e um.
.32.
Bob
O telhado e o gato de Abigail subiu. O povo da casa chamando,
desça daí, Bob, valha-me Deus, e ele nem o cabimento. Foram
buscar uma escada. Maria Fernandes fez menção de subir,
Véssia que não ia, morria de medo e não tinha nada que ver
com aquilo. O gato trepava no telhado e fazia pouco de Maria
Fernandes que aperreava-se. Clamou, berrou, suplicou. De
tudo fez, o gato, nada. Quando Abigail chegou, valha me Deus!,
ele pulou, correndo para se enroscar nas pernas da menina,
escapulindo casa adentro. Ficou a escada, Maria Fernandes,
Véssia, e Abigail. Noitinha, ao apagar das luzes, foi para a sala
de trabalhos, subiu a mesa e com a patinha derrubou uma
a uma as pétalas das rosas penduradas no cordão para secar.
Manhã que entra correu para o quarto. A última gaveta da
cômoda entreaberta, Nina guardava moedas. Com a patinha
arremessava uma a uma para o ar e o barulhinho delas batendo
no ladrilho pilim, pilim. As irmãs de Abigail correram até a
mãe: Mamãe, mamãe, Abigail está ensinando o gato a roubar
moeda.
Palavras indecorosas
As ladeiras em um mês consumiram um par de sapatos,
rasgaram a meia e fizeram bolha no pé. Maria Fernandes disse
mesmo assim, Ave Maria, se tivesse alguma coisa, as freiras
têm um ônibus, titia, e por que você não disse minha filha...
porque a senhora iria gastar mais dinheiro, minha filha,
quanto é que se paga pelo ônibus? Vou saber, titia. 10 mil
réis. Está vendo minha filha, um sapato custa trinta, e um par
de meia custa não sei quanto, e o seu pé nem se conta... No
.33.
meio do caminho o ônibus escorregava ladeiras, contornava
subidas, ondulava pelo caminho, o professor de português
de pé naquele balanço em que todo mundo subia e descia
no movimento do carro que seguia. Abigail, sob os protestos
das colegas, ofereceu seu lugar ao mestre e pediu ao chofer,
me passe ai esta pinoia. Pra que! Um zunzum se espalhou
pela Academia até os ouvidos da madre superiora. As alunas
vindas do Recife andavam dizendo palavras indecorosas. Fico
extremamente triste, madre, as pessoas por acharem que não
tenho mãe nem pai sou mal criada, pelo contrário, minha
tia me ensina a respeitar os demais, sentimento que me é
natural, característica de minha personalidade, e pinoia, está
no dicionário, quer dizer qualquer coisa.
.34.
Omelete
Aula de instrução doméstica, lição: preparar uma omelete.
Aquela que virar sem quebrar já estará pronta para casar, vou
deixa-las preparando as omeletes e vou subir ao convento,
daqui meia hora venho conferir a atividade. Madre! Madre!, a
senhora me dê licença, vim avisar que agora posso casar pois
virei a omelete sem quebrar, sinto muito Abigail, você não
poderá, pois ao virar o omelete e vindo aqui correr me contar
provavelmente a deixou no fogo e por esta altura já deve ter
queimado. Madre, Madre, me dê licença, vou voltar para
salvar a omelete.
.35.
Minhas muito queridas tias e Abigail,
Venho hoje escrever-lhes para tomar parte na alegria que Jesus
nos proporcionou em realizando o casamento de Abigail.
Neste dia serei a única ausente, porém junto de N.S. estarei
presente pedindo-lhe faça a nossa caçula feliz, uma verdadeira
esposa e mãe cristã. O mesmo peço para Paulo, acrescentando
que seja um médico seguindo os desejos do Coração de Jesus.
Sei que as minhas queridas tias, vão ficar agora muito sós, mas
têm a Nosso Senhor que não abandona a ninguém, Ele sabe
tão o que são as saudades que quis ficar na Eucaristia, façamos-
lhe companhia e já não há solidão. Junto d´Ele estou a todos
os momentos, as senhoras façam o mesmo e Abigail também,
no fim estaremos todas unidas no Seu amantíssimo Coração.
Eu continuo cada dia mais feliz na santa casa do senhor. A
Irmã que é portadora desta, dará todas as minhas notícias,
foi minha companheira de noviciado. Muitas lembranças a
todas os conhecidos parentes e amigos. Abençoem e aceitem
um afetuoso abraço e todo o carinho da sobrinha e irmã que
muito as estima nos SS. Corações de Jesus e Maria. Sor. Maria
da Imaculada Conceição. Religiosa de M. sra. De Caridade do
Bom Pastor. Deus seja bendito. Mosteiro Provincial de N. Sra.
De Caridade do Bom Pastor, Bahia 7-9-1937.
.36.
Papai,
Há muitos meses que não tenho notícias diretas suas, apenas o
Paulo, ultimamente, me tem escrito, falando-me a seu respeito.
Não sei se V.Mcê recebeu uns livros que mandei escritos por
mim quando estava no Rio. Tenho muito que contar e estou
agora em Alto do Rio Doce, que fica perto de Piranga, em que
eu estava, porém, tem melhor clima e o povo goza de muita
saúde. É impossível melhor clima do que este. V.Mcê deve ter
conhecido a Serra do Martins. Pois nem o frio de lá no inverno
se compara com o calor de cá. Daqui a pouco o termômetro
baixará para dez até agosto ou setembro. Quando me lembro
que o povo ai morre de sede pelas estradas enquanto a água
aqui cascateia por todos os lados das montanhas mineiras
movendo engenhos de cana, moinhos de triturar milho e
usinas de luz e força elétrica, tenho a impressão que Deus
esqueceu do Nordeste. Como vai V.Mcê? Todos ai vão bem?
Onde estão os meninos que Silvino e Segunda deixaram?
O Manuel já casou? Paulo comunicou-me do noivado dele
ficando eu satisfeito porque a moça é nossa prima do Recife,
em 1925, era a mais bonita da capital. Não sei se algum dia
voltarei ai. Dalila está sofrendo de uma aneurisma no coração,
proibida de qualquer viagem por terra ou por mar. Além
disso, os meus interesses aqui não me deixariam ir a não ser
a passeio. Já deixei a promotoria e estou advogando, por dar
mais rendimento. Espero em Deus que a minha sorte se forme
de uma vez e que eu possa algum dia ser útil ao nosso país e
àqueles que precisam de mim. Recomende-me a Iaiá e aos de
casa. Abençoe-nos a todos, Francisco, Alto do Rio Doce, 4-5-
1932.
.37.
Cortejo
Assim previu em sonho, morto seria conduzido pelos
moradores do engenho em cortejo fúnebre a atravessar o
vale em despedida. Última saudação no derradeiro passeio
silencioso a cada coisa, o engenho que dali não muito não
moeria mais a cana, o canavial, a terra, a gente. Seguia a
procissão pela estrada de terra, saudando cada passo corrido
ao pé do cavalo e nas viagens de trole. Rios que cortavam o
vale, o canavial, as fruteiras do sítio, tudo era levado com ele,
conduzido pelos trabalhadores do engenho e a família. Ao
cortejo de Joca nada faltou nem o sonho dito, escrito e vivido
da forma como se anunciara no sono. Ao pé da ataúde no
cemitério de Ceará-Mirim a enterrar com os pais e os irmãos,
toda uma ascendência que da fertilidade da terra fizera brotar
a família.
Escritura
República dos Estados Unidos do Brasil, Estado do Rio
Grande do Norte, Cartório Judiciário, Luiz Paulo V. Carvalho,
tabelião, Ceará-Mirim, rua doutor Pedro Velho, 81. Escritura
de compra e venda de uma parte da propriedade agrícola
engenho Espírito Santo, neste município, terra de alagadiço,
arisco e tabuleiro, casa de tijolo e telha e casa para moradores,
engenho bangue para fabricação de açúcar mascavo,
maquinismo a vapor, cercada de arame. No arrisco, o sítio de
fruteiras e a fábrica de animais. A nascente é limite com Ilha
Grande, o poente, limite com Guanabara, o norte com rio
Quiri, e ao sul, estrada para Extremoz. Outorgantes, filhos
da herdeira falecida dona Maria Segunda casada que foi com
.38.
Silvino, 15 de março de 1943. Dona Aline e Ernesto, 23 de
novembro de 1943. João, 24 de fevereiro de 1944. Valdemiro
e Izabel, 08 de julho de 1948. Manuel e Inês, filhos e genros
da falecida Umbelina, 23 de março de 1955.
Povoar o mundo
Oscar: Saúde. Recebi sua carta de 15 de novembro último,
com 2 meses de viagem. Mudei-me de Barbacena e ora estou
em Juiz de Fora, considerada a melhor cidade de Minas, depois
da Capital. É grande empório comercial. Estamos aqui muito
satisfeitos. Se realizar a ideia de ir ao Rio por terra, certamente
passará por aqui, pois, estamos à margem da E.F. Central do
Brasil e a 6 horas da Capital Federal. De Pirapora, comprará
passagem até aqui, onde poderá passar alguns dias conosco.
Moro a 100 metros da Estação. Gostei de ver a sua filharada.
Realmente você se propôs povoar o mundo: eu não diz esse
voto, nem tenho tido tempo para isso. Ando para cima e
para baixo, advogando, ensinando, escrevendo livros, fazendo
jornalismo, discursando, esqueço-me até da velha, que, aliás,
ainda está moça e forte. Tive notícias suas, há pouco tempo,
por intermédio de dois índios Tabajaras, que moravam ai, e
agora moram no Rio, na Ilha do Governador. Trabalharam 2
meses no Casino daqui e foram hóspedes do hotel onde estou.
Bons e inteligentes rapazes! Adeus. Recomendações de Dalila,
Lenka, Yan para você e a todos. Abraços do irmão, Francisco.
20-1-1944.
.39.
Ideia de jerico
Raul Fernandes deixava o consultório e antes do caminho de
casa era liberar as ideias soltando conversa fora. A guerra já ia
longe e só escapou mesmo porque foi perspicaz, não dormiu
no ponto. Percebeu logo que daquela maneira não poderia ser.
Tudo errado, repetia, e a sério, não era homem de brincadeira,
ainda mais com um assunto assim. E não foi por falta de
conselho. Ele mesmo não era a favor daquela bandalheira
toda, longe de mim, partido nenhum que o comprava, mas
como estava lá e pediram a opinião, quem era ele para não
dizer? Não foi ouvido, é certo, logo ele que era estudado,
oculista, mas mais que isso era um homem de visão. Sorte que
deu tempo de concluir o curso de aperfeiçoamento antes de
começar o furdunço. A medicina europeia era um avanço, o
centro de estudos consolidado e tudo. E foi lá na Alemanha,
para onde tinha ido, que conheceu o fuhrer, e a ele deixou o
derradeiro e sábio conselho, antes de tomar o último dirigível
para a América: Hitler, você não invada a Rússia! E deu no que
deu, haja vista Napoleão ter feito a mesma besteira. E tomava
o último copo. Hitler, você não invada a Rússia!
.40.
A fórmula
Testemunhas do tempo alegavam que a falta de banho não
lhe fazia mal e que cheiro ruim não tinha. Também não se
tratava de economia. Seja em casa, ou em viagem, banho não
havia. Se sujasse um dedo, lavava apenas ele. Nada de lavar a
mão limpa em vão. Defendia também a causa de que banho
é coisa perigosa. Assunto de vida e de morte. Um fulano foi
tomar banho, escorregou, bateu a cabeça, morreu; outro fez
uma baita refeição foi tomar banho, teve congestão, morreu.
Banho era causa mortis averiguada. Ele, ele fumava, jogava
baralho e tinha um casaco. Viveu saudável e sem incidentes
e sem banho, e disso não morreu. Um século se passou e
laboratórios norte-americanos comprovaram que sabonetes
e shampoos eliminam as bactérias da pele, essenciais agentes
anti-inflamatórios e adstringentes. Delas fizeram uma formula.
O cientista que a desenvolveu não toma banho há doze anos,
vive com elas e segue muito bem, mais jovem e saudável. Há
velhas razões que a própria razão agora conhece.
Carnaubinha, 28 de maio
Meu maridinho querido, deixei para conversar com você tarde
para poder dizer algo sobre o susto de ontem. Como fez a
viagem? Como vai nossa casinha? Encontrou tudo direito?
Não senti mais coisa alguma, passei o dia bem. Que dia longo
o de hoje! Tomei banho em casa (o almoço àquela hora não me
deixou ir ao açude). O nosso galo me fez um outro pequeno
susto, mas só houve bater mais acelerado do coração. De agora
em diante vou ter bem cuidado para não me assustar a toa.
Aliás não está na nossa vontade, não é? Estou ansiosa para que
.41.
chegue o dia de amanhã para vê-lo chegar e abraça-lo, com
paciência vou suportando essa ausência do “meu amor”. Agora
tem mais alguém que se já estiver em formação vai começar a
requerer da mãezinha sua parte de orações para ser bem feliz.
Avalio o frio que vai sentir hoje sozinho, eu também vou ficar
bem encolhidinha. Não se esqueça de trazer esparadrapo e a
lata de goiabada, estou bem pidona. Vão essas duas cartas para
o correio, a de Tereza aérea vai com muita urgência (não fique
curioso...), com muita saudade e grande carinho envio muitos
beijos para lhe fazer contente, sua Abigail.
As férias
Rio de Janeiro. A menina era hóspede no apartamento de
Copacabana. Você dorme comigo no quarto, minha filha,
que a cama é enorme e tem espaço de sobra pra nós duas.
Gerusa caladinha, tímida, menina na casa dos parentes e
impressionada. Tinha sabonete por tudo que era gaveta e
cômoda, um estoque. A tia viúva e alegre tinha mania de
comprar sabonete para não faltar. Quando desceram para a
rua na instância de tomar um sorvete, o Rio derretia naquele
verão de férias, e a menina vinha do internato na Bahia. Tudo
aquilo ali brilhava, pois antes de passarem na sorveteria, um
pulo no mercado para comprar mais algumas coisas de precisão
e... sabonetes! Susto maior foi à noite nos preparatórios para
dormir, a menina temendo pesadelo, a tia vestia uma máscara
na cara com produtos para a pele e rodela de pepino para os
olhos descansarem, nunca que tinha visto aquela moda, e
as portas dos armários antigos de jacarandá rangendo, não
bastasse a advertência da tia, tinha o sono leve que nem um
.42.
barulho de alfinete caindo poderia ser registrado. Lá a noite
foi em vigília, medo de acordar a marmota que estrondava
Copacabana com ronco dos mais potentes. Coitada, no outro
dia saíram logo cedo para comprar sabonetes, e ela menina
caindo de sono pelas tabelas. As férias seriam longas.
Cavalo de sela
Foi vender o cavalo, animal bom de sela, meio que não
queria se desfazer, era baixeiro para danado, andador, macio,
e ainda por cima tinha porte, era o mais acalantado do vale,
só mesmo vendo, quem botava o olho não se enganava, era
todo completo de características. A vontade de vender veio,
talvez para que colocando preço, ganhasse mais um valor. No
mercado começou o assunto entre um trago e outro, a vontade
de vender saiu, e pronto, sem preço, mandou e disse: quer
comprar, coloque preço. Vendedor sempre acha que vale mais,
comprador, menos, ficou nisso e naquilo, anunciaram dez
contos, ofendeu-se, não era a sela que estava vendendo não,
era o cavalo todo, dez contos nem no areio, ou muito menos
aquele estribo de prata ali, coisa que pertenceu ao avô coronel
de título. Conversa foi, conversa veio, e saiu do mercado a
notícia: o cavalo à venda por quinze contos, nem mais, nem
menos, e ninguém se atrevesse de vir com menos, o compadre
ofereceu doze, no pau, ali, o bolo de notas, não, vale quinze,
só vendo por quinze, um sabido pagou os quinze, mas em
duas vezes. Recebeu metade e a outra metade nunquinha... e
entre um trago e outro, no mercado, considerava: posso não
ter recebido, mas vendi caro!
.43.
Pontaria
Paulo atenderia um chamado de urgência. Vieram a cavalo
na madrugada bater à porta. Era preciso que fosse depressa,
o parto complicara e a criança nada de sair, o doutor era o
único remédio. Só fez aprontar-se, a rotina da pressa era diária
da profissão, apanhou a maleta com os instrumentos e saiu
levando a serragem da madrugada. A Serra do Martins dormia.
Paulo recomendou ao irmão Damião que olhasse Abigail, a
criança e a casa, tão logo estaria de volta. No berço, Regina
Maria dormia o sono. Manhã cedo, um morcego nos caibros,
Damião na mesa mesmo embaixo, Abigail com a espingarda
na mão, Damião afaste, que ele pode cair bem na sua xícara, e
desde quando Abigail você tem pontaria? Puf, a resposta foi o
morcego mergulhado na xícara do café.
.44.
Carteira Militar
Folha de identidade: nome, Paulo, 1,60 de altura, cor branca,
cabelos castanhos, barba raspada, bigodes raspados, olhos
castanhos escuros, boca regular, rosto comprido, nariz regular,
lê? Sim!, escreve? Sim!, conta? Sim!, vacinado? Sim. Sabe
nadar? Sim. No dia onze agosto incorporou-se ao regimento
para tomar parte nas manobras anuais no lugar denominado
Quintas, assinado, José Ferreira Furtado, Sargento Instrutor.
Desenlace final
Iandu, mil novecentos e vinte e nove. Era grande o
ajuntamento, reuniam-se vaqueiros de toda região para
participar da separação do gado e ferra. Também havia
agitação e farra naquele movimento que era só feito. Joaquim,
Paulo e Manuel foram. Não consta que nenhum tenha se
atrevido a montar, aquele tempo era só de visita e apreciação
do movimento. Nem soltaram a rés e a poeira ia subir com a
corrida dos animais, o vaqueiro e o batedor. Cabras de chapéu
e roupa de algodão branca e camisa, as mãos para trás, a cara
mirando a porteira que se abriria, um amontoado, uns pelos
curral, outros dependurados na cerca, cada um procurava o
melhor canto de assistir. O vaqueiro deu a volta com o cavalo
fechando o círculo e o batedor com a cara do cavalo bem na
boca da saída esperando a bicha vir para marcar a linha da
carreira e emparelhar o animal, apanhar o rabo e entregar ao
vaqueiro para o desenlace final.
.45.
Diário de notícias
Leitor amigo, o perfilado de hoje é o nosso amigo Paulo.
Moreno, olhos pequenos e castanhos, cabelos anelados e
partido ao meio, estatura mediana, andar vagaroso e balançado,
atitudes decididas, alma generosa e sentimentos louváveis, são
em síntese, características de sua personalidade. Filho do bem
aventurado rincão potiguar, céu estremecido do aeronauta
Augusto Severo, do mártir Frei Miguelinho e do Padre
João Maria, filho do prospero e feliz vale do Ceará-Mirim.
Concluindo o curso de humanidade no Atheneu Norte-rio-
grandense lá um dia em fevereiro de 1928 entre meigos abraços
e ternas recordações do rincão natal, rumou diretamente à
terra de Rio Branco e Nabuco em busca da realização do seu
grande sonho, ser médico. Acadêmico de medicina, na mais
formosa capital do Norte as fantasias e quimeras da vida cedo
lhe sorriram, a música e a poesia passaram a ser assunto de suas
cogitações... e foi poeta, amou... e ficou noivo.
.46.
Do trem e da caixa dos Ponhos
Destarte, o limiar do curso superior, a aurora dos primeiros
dias da academia, foi o marco que assinalou o entusiasmo pelos
livros e a coragem desassombrada pelos estudos. Já terceiro
anista, quis conhecer a boa terra de Ruy, a Mulata Velha de
Seabra e em março de 30, na secular faculdade de medicina da
Bahia continuou seu curso médico. Pelo seu grande amor às
nossas tradições e à nossa gente, certa vez jurou, pelo Senhor
do Bonfim, que pertencia ao ninho de Moema e, filho que
é, do pedaço do mar de Poti, não deixou de ser jamais da
terra de Zumbi – pequenina terra da bem amada noiva. Não
fora o adiantado da hora e eu te contaria, ainda aqui, a mais
interessante história de Paulinho – a história do trem, da caixa
dos Ponhos e do apito da fábrica – muito conhecida de todos
os seus colegas de pensão... e tem-se assim, caro leitor, em
ligeiros traços, o que te pode dizer de um moço às direitas, um
observador imparcial. Assinado, Neiva.
Recife, 1 de setembro
Meu noivo, meu Paulo querido. Recebi hoje uma outra
cartinha tua datada do dia 25 de agosto. Vim conversar um
pouco contigo, muito embora esta não siga mais, te aguarde
aqui. Fiquei admirada da certidão, chegou tarde. Os papeis
já estão prontos, o que nos é necessário é a justificativa tirada
no cartório daí. Isto te avisei em carta aérea, recebeste? Talvez
não tenha recebido uma que seguiu no avião da segunda-feira.
Não te parece um sonho tudo isto? A nossa casinha que está
se pintando de novo, se embelezando para os nossos esposais.
Disse-me hoje uma amiga que ela já está com cheirinho de
.47.
noivos. Ri muito pois não acho que tenhamos cheiro de tinta
à óleo. Sabe do que me recordo? do casamento de Lourdes.
Éramos três, agora só a caçulinha. Naquele tempo o nosso
estava tão distante, mas agora, Paulo, chegou nossa vez. Todos
os dias agradeço tudo isso ao bom Deus e peço mais graças
para nós. Hoje experimentei o meu vestido do dia, senti-me
tão feliz em pensar que está tão próximo que agora não chego
a crer na realidade. Se estivesse aqui no dia 7, seria ótimo.
Iríamos a parada cívica juntos e à noite à casa do Coronel
Pantoja, neste dia ele receberá talvez a promoção ao posto
que espera. Concordamos? E casaríamos no sábado 11, para
demorarmos mais dias aqui, já casados e tal. Agora vou te dar
boa noite.
.48.
extrovertida. Nas despedidas, o tio: tenho um queijo para vocês
levarem. Queijo bola, daqueles que vem em lata, trambolho
que não caberia na bagagem. A viagem de ônibus, o queijo no
bagageiro. A lata a cada solavanco, sopapo e arrancada, para lá
e para cá, um barulho dos infernos. Os passageiros a reclamar,
um quase manda parar o ônibus. A lata sambava, Regina tesa
e ninguém sabia de quem era aquele queijo bola barulhento.
A minha parte
Alta madrugada. O silêncio na rua e na casa. Até que Abigail
desperta com o barulho que primeiro vinha de longe e à medida
que foi despertando no susto, mais de perto. Paulo dormia
profundamente na sua mocidade de pai aos cinquenta anos,
médico obstetra que pela razão do ofício trabalhava a qualquer
hora. Até no meio dos bailes do América quando paravam
a orquestra para anunciar: doutor Paulo, chamado para o
senhor da maternidade. A sorte das suas filhas em vestido de
baile é que as deixava ficar na companhia de Abigail e depois
voltava para busca-las, sempre compreensivo e generoso. O
bebê chorava. Abigail: Paulo, o bebê está chorando. Paulo:
Abigail, a minha parte pode deixar chorando.
.49.
Possante
Paulo e Abigail resolveram comemorar as bodas em grande
estilo. Abigail muito prendada com tudo da casa e da família
traçou cada detalhe preciso para uma recepção impecável, bem
servida e agradável. Receberiam em casa parentes e amigos.
A casa da Mossoró era grande, a sala da frente ampla, a de
jantar também de bom tamanho e ainda havia o jardim para
distribuir as mesas e os convidados. Muita coisa foi preparada
em casa, outras encomendada a melhor banqueteira da cidade.
O cardápio acertado e serviriam guaraná, vinho e uísque, seria
bom contratar garçons para o serviço e contrataram. Noite
da festa, as meninas nos mais novos modelos e penteados,
os convidados, o casal, um bolo, salgados volantes, a festa
andava a contento, um jantar seria servido. Paulinho, o caçula,
meninote, com oito para nove anos, saiu pela festa entre os
convidados como se fosse um carro de corrida, vrummmm,
vrummm, e quase derruba um garçom, atropela uma tia velha
e estaciona no sapato de um diretor, e toque arranque, freada,
rabiada, e há quem tenha visto até um cavalo de pau. Mas o
que é que esse menino tem minha Nossa Senhora? Andou a
noite toda pela cozinha tomando o restinho de todos os copos
de bebida.
.50.
Maria Anunciada
Antes de sair, dava umas boas palmadas nos meninos, pois já
sabia que iam aprontar e muito, para que deixar para volta?
Um dia esqueceu, a sorte foi o mais menino dos três veio
chamar: mamãe, a senhora não vai bater na gente hoje não?
Casou muito moça e com tio Artur Fernandes e ficou viúva
muito moça com um sítio e os filhos. Só envergava preto a
partir de então. Em casa, um branco em preto e olhe lá, a
família visse, iam ficar falando. A missa não perdia e cantava
fervorosamente o hino de louvor, “nooooossa senhoooooora,
rogaaaaaaiii por nóoooooos”. Missa apinhada, e ela assim
acima do tom, o padre teve que intervir: essa voz de taquara
rachada pare que meus ouvidos não aguentam mais! Aos
domingos ia visitar as tias Maria e Véssia na Mossoró. Morava
ali perto, seu sítio tomava um quarteirão entre a Mossoró e a
Campos Sales, toda a quadra até a Rodrigues Alves. No tempo
do marido vivo, bastava desmaiar, ter um achaque, quando
queria uma coisa, e ele vinha, minha filha, o que foi? E fazia os
gostos. Era bom demais. Mas ele morreu, veio a precisão. Ela
vendia leite, negociava frutas e até costurou batina. E venceu
com toda família.
Outrora em Taborda
Heráclito Vilar emproando a palavra, carregava nas letras
demorava para dizer a sua Tabouuurrrda, capaz até de tomar
eco, tão grande e compridas eram as terras, era a sua Taborda.
Lá passava um riacho azul e muita coisa no engenho dele e
de dona Marriquinha, sua mulher, que só ele recordando
contava, como uma certa vez lá ele estava e rumando para um
.51.
passeio e uma cutia ele avistou no mato e achou de perseguir.
Outrora em Tabooorrrda sai para andar com um cachorro e
levei a espingarda. Quando ia no caminho assustei uma cotia
e o cachorro botou atrás. Eu aprumei a espingarda e disparei,
meti chumbo do grosso para cima da cutia. E nada, que errei o
tiro. E parti atrás. A cutia tome a correr, eu tome a correr atrás,
pois a cutia continuou e entrou num buraco que tinha logo
mais pela frente, pois lancei a mão e puxei a cotia pelo rabo.
Heráclito, e cotia tem rabo? As de Taborda tem.
O jumento de Taborda
Outrora em Taborda havia um jumento. Uma beleza de
andadura, macio, baixeiro, o pelo luzidio de que era tratado
no milho, manso para danado, o xodó de seu Heráclito que
afirmava que melhor que aquele não havia. Custou muito a
encontrar um igual, porque vinha com um conhecimento que
os outros não tinham. Era um jumento ensinado que além de
todas as qualidades que lhe assistia tinha a de ser inteligente e
saber abrir porteira sozinho. Nem precisava apear da montaria,
ou muito menos ajeitá-lo para junto da cancela. O danado se
encarregava sozinho de liberar a passagem. O jumento abria
tudo que era porteira, qualquer que fosse. Qualquer que seja?
Qualquer uma. E se for com arame? Ele abre. E se for com
tramela? Ele abre do mesmo jeito. E se colocar um cadeado
com uma corrente, né possível que ele consiga abrir? Ele abre.
Basta colocar a chave na boca dele que ele abre.
.52.
Caritó
O pai juiz de Direito e nunca permitiu que Maria aprendesse
a ler, o que ela conseguiu com muito custo, esforçando-se
sozinha sobre os livros. Sobrevivente da peste de varíola que
tomou Natal e adoeceu muita gente, recebeu benesses do
padre João Maria em seu burrinho de casa em casa prestando
assistência. Como vai, senhor vigário? Por hora não vou, fico
aqui. Quase santo, distribuía aos pobres tudo que tinha, a
pensão de dois mil reis que o irmão mandava do Rio, e até o
tecido novo para costurar batina nova. Cada vez que ia atender
a um doente badalava o sino, pra que rezassem por quem
padecia. Depois da missa matinal, às cinco horas, formava a
fila de confidente e a peste combateu com assistência e Nossa
Senhora da Apresentação, a quem pedia: livrai-nos da peste!
Que de tão grave que nem usar lençol se podia, cobriam-se os
doentes com folhas de bananeira. Muita gente morreu. Maria
escapou, valei-me Nossa Senhora e arranjou pretendente. O
pai não queria de jeito nenhum, e fez ela jurar, e ela jurou, no
leito de morte dele, no derradeiro momento da partida que
não cassasse de jeito e maneira. O rapaz era chegado a tomar
umas cervejas. Cumpriu a promessa e ficou caritó. Quando
Gisélia, menina, ouvindo aquela história ficava por conta
mesmo, batia o pé, pois eu, eu casava, ah, se eu não casava!
.53.
Necrológio
Entre a legião desaparecida daqueles que foram exemplo de
inteligência, modelos de perseverança, e de caráter, no meio
em que nascemos, e, até hoje, temos vivido, destacamos, à
semelhança do que praticamos com aqueles que merecem as
nossas homenagens e a gratidão da pátria, a figura veneranda
do Dr. Manuel Hemetério Raposo de Mello. Desde a infância
até a velhice revelou, sem solução de continuidade, a pureza
de seus sentimentos, a retidão de sua conduta austera. O bom
senso era a força motora de sua vontade. Sabia agir e sabia
querer. A luz do sol do dia 2 de agosto de 1913, ao deitar do
poente. Iluminou, pela última vez, a fronte daquele que aos
73 anos de idade, tombara para sempre no acaso da vida. O
seu corpo teve sepultura no cemitério público de Natal e os
seus restos mortais, por iniciativa da família, acham-se hoje na
Igreja Matriz do Ceará-Mirim.
À guisa de estribilho
Na hora extrema, chamou junto ao leito seu filho Dr. Hemetério
Fernandes e disse-lhe: “meu filho, naquela gaveta (indicando
uma mesa próxima) tenho 1:500$000, única economia que
consegui reunir durante 52 anos de serviços, para o meu
enterro. Desejo-o bem modesto e o que sobrar distribua com
as suas irmãs solteiras.” Já nos últimos momentos agarrou as
mãos do Dr. Varella Santiago, seu médico assistente, que o
havia tratado com o máximo de desvelo, dedicação e carinho,
e disse-lhe: “Dr. Não tenho com que recompensar os meus
serviços, sou pobre; meus filhos saibam ser reconhecidos
como eu lhe sou grato.” Quanto oiro nestas palavras das quais
.54.
os ouvido humanos raramente escutam o som. Extremado
admirador das virtudes do Márquez de Paranaguá, o Dr.
Manuel Hemetério não cessava de repetir, à guisa de estribilho
a celebre frase daquele titular: “a minha pobreza é a minha
riqueza.”
Caprichosa
Ele era atencioso e tudo. E ela, caprichosa demais. Eram
casados. Ia haver uma festa, ele convidada. Ela dizia que não
tinha vestido, e ele providenciava. Comprava o tecido, corria
lá em Úa e mandava fazer. Ele a convidava para ir à praia, ela
implicava, aquela coisa todinha, mas ia. E ficava ele na areia, e
ela dentro do carro na buzina até ele resolver voltar para irem
para casa. A família dizia que foi ela quem estragou, com os
caprichos. Ele tão calmo e manso, parece que aguentou como
pode, mas uma noite anoiteceu e não amanheceu em casa.
Ninguém tinha notícia, procuraram daqui e dali, foi aquela
coisa. Ele fugiu. Fugiu e foi-se embora para o Rio de Janeiro
com uma moça que trabalhava no INPS. Ela então vivia em
cartomante, foi para Elias da Corrente, arrumou conselho,
parece que fez até feitiçaria. Foi também nas curandeiras, em
tudo no mundo e quando achou que não adiantava de nada,
ele telefonou. Mandou ela ir, ela foi, ficou lá um mês e ele
sumiu outra vez. Mais uma leva de trabalhos, rezas, consultas,
até que parece que ela desistiu, e nunca mais, de jeito nenhum,
se viram.
.55.
A vaca cega
Manuel Villar adquiriu a vaca por um preço justo. Pagou à vista
sem questionar o valor. Uma beleza de animal, só se vendo, uma
vaca de porte, merecia retrato, prêmio para parede. O negócio
foi acertado ali no consultório de Manuel Villar, logo após
o expediente. Havia dias que Benildes passava ali para expor
a maravilha que era aquela vaca num rebanho. Destaque em
escola de samba, se fosse alegoria, e por ai se iam as vantagens,
loas, méritos que imprimia ao animal. Tá certo, tá certo, dizia
Manuel Villar, até que pelo fim da semana acertou e justou a
compra, não se sabe, comentou um camarada no balcão do
mercado, se para livrar-se da insistência. E pronto sorveu o
último gole e negócio fechado. Manuel Villar era oculista. O
morador veio avisar: seu Manel, a vaca dá dois passo e mete a
cabeça na porteira, se engancha em cerca, um moído mais feio
do mundo que só o senhor vendo. Manuel procurou Benildes,
mas Benildes, você me vendeu uma vaca cega? Mas doutor
Manuel, e eu ia vender para quem se não fosse para o senhor
que é oculista.
.56.
À la carte
Berlim. O fausto da casa era o completo serviço com toda
prataria, porcelana e cristais. Lustre no teto e garçom com
cabelo à escovinha, serviço trilíngue ao gosto do freguês:
alemão, francês ou inglês. Bem localizado os salões nunca
fechavam, fosse dia, fosse noite, tudo brilhava para melhor
servir. Irretocável. Frequentavam ministros de Estado, atrizes,
ricos e endinheirados, citadinos e estrangeiros. Um luxo.
Peculiar era a sua carta, contava doutor Raul, porque o que
fosse pedido, mesmo que ali não estivesse escrito, era servido
sem reservas, assim mesmo anunciou a um conterrâneo que
lá levou. Doutor Raul saiu do curso e foram lá se encontrar.
Chegou o garçom com todos os salamaleques e o cardápio.
Doutor Raul folheou, folheou e nada o agradava daquela vez.
Preferiu ousar. Os olhos do amigo só espanto. E Raul: quero
um sanduiche com hambúrguer de carne de dinossauro. E o
garçom nem se abalou, pois sim, doutor Raul, conhecia pelo
nome, imagine. Mas tocou a demorar, o amigo desconfiando.
Até que Raul chamou o garçom. E meu hambúrguer?
Desculpe, doutor Raul, solenemente respondeu, a carne já
está no preparo mas é que não conseguimos ainda o pão.
.57.
Este livro foi composto em
Adobe Garamond
e impresso em cartão
Duo Design 250g./m². (capa)
e Pólen Soft 80g./m². (miolo)
pela Offset Gráfica, Natal/RN,
em outubro/2018
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