Hamlet e o Filho Do Padeiro
Hamlet e o Filho Do Padeiro
Hamlet e o Filho Do Padeiro
MEMÓRIAS IMAGINADAS
AUGUSTO BOAL
A quem posso dedicar este livro, além de pai e mãe?
e à saudade de Albertino.
CAPÍTULO 1
GENEALOGIA PATERNA: TIO MIGUEL E A MELHOR SOLUÇÃO!
Nas conversas com a família vieram imagens. Tio Miguel, irmão do pai: barbas
brancas, chapéu preto. Ficou assim com o passar do tempo, no único retrato seu que
um dia vi. Na minha memória, sua imagem séria se confunde com outras barbas
brancas, sem chapéu: meu avô e dom Pedro II, último imperador do Brasil, exilado
pelos republicanos em 1889.
Irmão mais velho, Miguel era homem estranho: em vida, nunca sorriu. Explico:
pela primeira vez sorriu na hora de sua morte. Nem antes, ainda menos depois. Não
tinha tempo pra sorrir, como se sorrir consumisse a vida. Veio para o Brasil no
começo do século, mulher e três filhos. Deixou em Portugal o pai viúvo e muita
irmã: irmãos, ou já haviam emigrado ou lhe vieram na trilha. Viajar era a melhor
solução para criar filhos e ganhar vida mais suave que a de camponês trasmontano.
Com dinheiro adiantado sobre futura herança, Miguel comprou padaria, A
Chinezinha, em Benfica.
Trabalho sem tréguas: como alívio, a melhor solução foi oferecer sociedade ao
meu tio Antônio, já no Brasil, e ao meu pai, que veio exilado, aos vinte anos, em
1914, por se ter recusado a entrar na guerra em que Portugal, sem consultá-lo, havia-
se metido, sem saber por quê.
Por economia e amizade, Miguel e família dividiam a casa com um casal de
portugueses, Catalina e Celestino, sem filhos, comerciantes: armazém de secos e
molhados. Viviam em harmonia: as mulheres lavando roupa no tanque, varrendo
casa e quintal, cozinhando; os homens, saindo cedo pro trabalho, voltando tarde,
cada casal no seu quarto, os filhos em outro, sala, banheiro e cozinha de permeio.
UMA FLOR… ORNADA DE CADÁVERES…
Foi quando a “Espanhola” – famosa peste que assassinou milhões nos cinco
continentes – chegou ao país, devastando. Nas ruas, cada flor solitária se ornava de
cadáveres, em singular homenagem floral. No feroz combate entre oferta e procura,
a cotação dos cravos, camélias e copos-de-leite disparava. As rosas envergonhavam-se
do seu preço, murchavam de raiva, sem exalar perfume – os cadáveres mais fediam
por causa do preço das flores.
Entre os mortos, duas perdas importantes: a mulher do Miguel e o marido de
Catalina. Enterraram-se e os viúvos continuaram vivendo juntos – era a melhor
solução! –, educando filhos misturados, como se fossem marido e mulher. Como se
fossem. Ninguém se alarmava com essa ajuda mútua pois havia inimigo mortal que a
todos ocupava em emoções e pensamentos: a peste.
Acabou-se a “Espanhola”. Por falta do que fazer, começaram os rumores: Miguel
viúvo, viúva Catalina, viviam sob o mesmo teto, davam na vista. Além da padaria, ele
administrava o armazém; ela lavava a roupa suja: como sabemos, roupa suja é o que
de mais íntimo existe em família – esconde envergonhados segredos. Essa
intimidade gerava suspeitas, fantasias. Não se lava cueca impunemente.
Explicações plausíveis acalmavam falastrões: continuar assim era a melhor
solução – tio Miguel dirigia o armazém da amiga, como um pai, e Catalina cuidava
dos filhos do amigo, verdadeira mãe. Mas… ficassem descansados os bisbilhoteiros,
não havia nada entre os dois, nem haveria, além de mútuo respeito, sincera amizade
e ternas recordações. Assim se explicava a luz de um dos quartos, acesa boa parte da
noite: estavam recordando. Recordar é viver. Vivia-se noite adentro, com entusiasmo.
Alguns acreditavam na pureza das intenções viúvas, outros na realidade
conspícua. O ventre de Catalina cresceu: morreram dúvidas e nasceu linda criança,
menina morena; por muito carinho e pouca imaginação, foi nomeada Catalina.
Nenhum pai a registrou. Falta de tempo: trabalho. Daí por diante, Miguel e Catalina
foram reconhecidos como marido e mulher, “minha senhora, meu senhor, sim
senhores”.
SAUDADES DE TRÁS-OS-MONTES
A padaria prosperou e os sócios resolveram recomeçar, divididos. Antônio comprou a
parte dos irmãos, meu pai voltou a Portugal, finda a guerra, casou com minha mãe,
como prometido – conto essa história depois!!! E tio Miguel – ninguém é de ferro! –
teve saudades da pátria e resolveu visitar.
Além de saudades, havia problemas de terra: irmão mais velho, desejava exercer
antigos direitos sobre a herança do meu avô, incólume apesar de 83 anos
encurvados. Era preciso decidir quem ficaria com o quê depois do falecimento,
legalizar papéis. Em Portugal, como hoje no Brasil, terras e documentos nem sempre
se harmonizavam: viviam às turras. Embora ninguém desejasse a morte do patriarca,
já que inevitável, melhor seria esclarecer hectares e dinheiros antes, para que a
discussão não se fizesse depois da morte, em cima do corpo quente, no meio das
flores eivadas de pêsames. Questão de bom gosto.
Na hora dos passaportes, meu tio deu-se conta: maldita burocracia, havia
esquecido de legalizar seu casamento. Diante da lei, que não reconhecia bênção de
padre – concedida às pressas, para salvaguardar a moral e batizar o rebento entre
uma fornada de pão e outra –, os esposos eram reles concubinos, o que, naquela
época – vitoriana sem Vitória! –, era péssimo sinal.
Dois problemas: como viajar com passaporte de família, mais barato, sem ser
família, naqueles tempos rigorosos em que até simples olhares enternecidos, sob
pena de arruinarem a honra dos apaixonados, deveriam ser oficializados em papéis
timbrados, selos e carimbos? Como inscrever, em letra de forma e na forma da lei, o
frutífero matrimônio, ausente dos cartórios? Impossível: falta de tempo. Segundo
problema: como apresentar a nova esposa ao velho pai? Meu avô era possuidor de
princípios e fins morais insaciáveis, robustos!
Miguel resolveu, primeiro, o problema urgente: já que não podiam viajar como
família, convenceu a mulher de que a melhor solução, para enganar a polícia
marítima, seria que ele embarcasse com seus três primeiros filhos e ela com a tardia,
como se fossem mãe solteira e filha perplexa. Ambos viúvos, não precisariam da
autorização do cônjuge: atestados de óbito bastariam. Seriam duas famílias.
Combinaram não se falarem durante a travessia: era a melhor solução para evitar
suspeitas.
Chegando a Lisboa, Miguel resolveu o maior problema: as duas Catalinas iriam
sozinhas para Óbidos, terra da mãe, e ele, com as três crias da primeira instância,
para a casa do avô de barbas brancas, sem chapéu mas com reluzente bengala que
reluzia: era de prata – naquela época ainda não tinham inventado nem as imitações,
nem o Paraguai: tudo era autêntico! Até a mentira.
Catalina não gostou, mas quis acreditar nas intenções do marido. Segundo ele,
tratava-se apenas de um ardil para evitar fatal surpresa ao patriarca: seria excessiva
emoção ver seu primogênito, Miguel, recasado e premiado com uma filha. Meu avô
poderia assustar-se – não convinha, estava gripado. Depois, com o tempo, dando-se
tempo ao tempo, haveria tempo para regularizar a situação e, tempo vai, tempo
vem, tempo pra convencer o avô a aceitar os novos tempos, nova neta e nova nora,
tempo para novos casórios, novas legalidades. Era só uma questão de dar tempo ao
tempo. E o tempo foi passando…
SOBRINHA DE MUITOS NERVOS
Tempo, temporal: sem informar aos parentes antigos da existência da nova família –
filhos foram proibidos de falar da irmã caçula com tapas na boca e beliscões nas
nádegas –, Miguel inteirou-se de outras novas da família antiga.
A principal novidade era a sobrinha Maria Eduarda. Imaginem: Portugal – e não
apenas Portugal, mas Trás-os-Montes, região atrasada, onde ficava Vila Real – e não
na Vila, cidade, mas sim vilarejo, Justes, que ainda hoje, fim de século, imaginem no
princípio!, vive recluso no passado –, imaginem que, naquele tempo a perder de
vista, vivia-se no passado antigo, imaginem Maria Eduarda, morena, bonita, dezoito
anos, boa musculatura, trancada depois do jantar, lavando e quebrando pratos –
descuido, é claro, sabão escorrega, é lógico! –, varrendo e sujando, esfregando nariz e
boca nos vidros da janela, jogando fora o olhar, procurando o joaquinzinho estroina,
jovem como ela, vagabundo como ele só, que se recusava a pastorear cabras e
ovelhas e, se a família o obrigava, perdiam-se os animais, desgarrados, menos o
burro carregador, que não precisava pastor, voltava só, nem se perdia o
joaquinzinho, que também voltava, como burro de leiteiro, sem pastor e sem
pastorear, buscando Maria Eduarda, pastorinha, estrela-dalva.
Ela suspirava nos vidros embaçados da janela e o joaquinzinho lhe jogava
beijinhos e caretas torcidas: a mais não se aventuravam, dada a distância e a janela.
Apenas desmaios amorosos de parte a parte, os vidros embaçados. Um galo na
cabeça, um arranhão: penas de amor.
Escândalo. Diziam que o joaquinzinho estava louco, trespassado: além do choro
convulso, uivava. Como se fosse lobo. Urrava, bramia. Como se fosse fera. Coaxava,
mugia. Como se fosse bicho. Depois dos estertores, carpia-se, gemia. Como se fosse
amante.
Em todo o vilarejo não se falava de outra coisa e, seja a verdade cristalina,
assuntos não havia além da sempre rotina vagarosa: tanger bois, colher uva, fazer
vinho; plantar o trigo, colher o pão. Lavar casa e igrejinha.
A guerra havia acabado sem que se soubesse ao certo qual o país vencedor, nem
as consequências do conflito e, menos ainda, as causas. Ninguém sabia nada, nem o
douto farmacêutico: “Venceram os alemães ou os ingleses… quanto a isso, não resta
dúvida… Nós não ganhamos nem perdemos, ficamos na mesma…”, disse um dia,
sapiente. E todos concordaram: o farmacêutico sabia muito, homem ilustrado, como
os farmacêuticos de antigamente.
Ainda não estavam em moda os “objetores de consciência”. Naquela época, eram
chamados, por simplicidade, “desertores” – jovens vinham pro Brasil, deixando
mágoas e saudades. Agora, se partiam, era falta de dinheiro e trabalho. Ou porque,
desejando o bem, haviam feito mal a alguma moça em Vila Real e estavam jurados
de morte.
Tudo rotina… menos Maria Eduarda, escondida atrás dos vidros esfumados,
arfando peito e corpo inteiro, arfando das unhas dos pés às pontas dos cabelos, e
mais que arfava beijava a janela, aprontava desmaios, pratos quebrados na parede,
mão cortada, sangrando, agarrando o vidro, levada às pressas pra cama, tome água
com açúcar, abanos espanhóis e abanicos, alho na testa esfregado, chupe limão
verde, sal e vinagre, ameaças de cataplasma, vergonha chamar o farmacêutico –
médico de causas menores. Vergonha para a família inteira, pois não era doença
civil, era coisa de bruxaria. Eram nervos, só! Suspiros. Escândalo!
Os suspiros de Eduarda escandalizavam tias e vizinhos, menos o avô, que, por
decisão filial, devia tudo ignorar. Escandalizavam Justes e o maior medo da família
era que disso se viesse a saber em Vila Real, onde as mulheres iam em lombo de
burro, de meio em meio ano, comprar rendas e bordados, tapetes e toalhas de mesa
e, quando alguém se casava, enxovais inteiros, incluindo a rendada camisola da noite
perfumada! O prestígio da família não se poderia abalar em cidade tão senhorial! Ah,
Vila Real!
Era imperativo esconder que a moça de dezoito anos suspirava suspiros
profundos, agarrada às cortinas, mais de uma vez derrubadas, rasgadas, aos berros,
protestos: a moçoila queria sair à rua! Eram os nervos! Mas não se podia mostrá-la
nesse estado: vergonha! Fique presa! Até que lhe passem os nervos.
Tio Miguel inteirou-se da balbúrdia e, intrigado, perguntou à irmã Esmeralda,
mãe de Maria Eduarda, por que não a deixavam casar-se em paz com o joaquinzinho
que parecia bom rapaz quando manso, apesar de vagabundo, pois o que só fazia na
vida era postar-se diante da janela, ofegante e gemebundo. Respondeu a irmã que
isso de ser vagabundo podia-se arranjar, dava-se jeito: boa chibatada no lombo
amansaria a mais renitente rebeldia. Santo remédio. Palmatória: remédio santo!
A doença incurável do jovem era outra: pobreza! O joaquinzinho nem sequer
merecia maiúscula no nome, tão pobres a mãe lavadeira e o pai carcomido por
doença ignorada – doença inútil, pois não cumpria o dever e destino de toda doença,
que, como se sabe e lamenta, é a morte. O joaquinzãozinho pai tampouco merecia
maiúscula e era chamado assim, aumentativo minusculizado! – pronunciavam seu
nome com a boca pra baixo pra que caísse na sarjeta, no ralo. Joaquinzãozinho
estava entrevado desde a última década. Comer, que custava caro, comia, mas
morrer, como era sua obrigação, ah!, isso não, não fazia!
Esmeralda explicou que esse casamento seria ruinoso, pois já não estavam mais
no tempo em que um só filho herdava a herança inteira. Nos tempos passados, teria
sido ele, Miguel, herdeiro universal das terras do meu avô. Naqueles antigamentes, o
segundo filho era destinado às armas, o terceiro ao mosteiro – famílias queriam todo
o poder: da terra, da guerra e o da salvação das almas! Filhas que não se casassem
antes dos trinta: convento, sem tugir nem mugir – não podiam ficar solteiras –,
casavam-se com Jesus, respeitador! Com alguém haviam de casar!
Agora o mundo avançava, todos tinham parte da herança. Casando-se Eduarda
com o estafermo, os outros irmãos do meu pai, talvez meu pai, filho caçula, talvez
não aceitassem que ela e o estafermo herdassem, fosse um alfinete. Esmeralda
lamentava tempos idos, mal vividos. Murmurava: “Terra não se divide: é família, e
família não se corta ao meio…”.
Nessa embrulhada, mais conveniente seria encontrar alguém bem-posto que se
casasse com Eduarda: depressa, por causa dos nervos, e que somasse terras, por
causa das conveniências. Talvez homem da cidade, rico. Ou “brasileiro”, como eram
chamados os portugueses retornados.
Tio Miguel só não pigarreou, solene, porque naquela época ainda não se havia
inventado o pigarro. Esse costume só se difundiu agora – quando ninguém mais
pigarreia, a não ser em novelas de época na televisão, a fim de diferenciar a nossa
própria época de outras mais antigas, em que, supostamente, pigarreava-se à farta.
Sem pigarro, sem pestanejar – pestanejar também é coisa recente, referida ao
passado! –, Miguel iluminou o futuro imaginando a melhor solução, como era seu
hábito:
“Se o destino da menina é casar-se e não pode ser com o filho do pobre, pois que é
pobre; se o que se quer é aumentar a herdade e não dividir, vamos casá-la depressa,
por causa dos nervos. Já que os joaquins estão interditados, vamos buscar-lhe um
Miguel, pois se não é com um, com outro há de ser.”
“Um Miguel???!!! Não me venhas cá com miguéis nem manoéis, pois já não me
bastam joaquins, ainda hei de aturar um Miguel??? E qual, se não o vejo? Por aqui
não há miguéis…”
“Casa-se com o tio…”
“Contigo?! Homessa, era o que faltava… Dar minha filha mais nova ao meu irmão
mais velho…??? Pois está-me a parecer que tu é que te queres casar com ela…”
“E tu que com ela eu me case… Está-se a ver que a menina, com suspiros e gritos
na janela, com alguém há de casar-se, pois que não vai ficar a uivar a vida inteira,
como loba. Aos gritos, nenhum convento a aceita. Melhor que se case dentro da
família, que também fica a herdade família adentro! Não temos que dividir terras,
gado, nem o vinho… Esta é a melhor solução: que se case comigo…”
“Por esse lado, tens razão… Mas a questão tem outros lados: a menina é criança e
tu… já tens três filhos…”
“Já os soube educar. Posso educar mais uma… e outros mais, quando vierem…”,
ameaçou, sem sutilezas.
Era o que desejava Miguel, afoito: tinha também seus nervos escondidos e tinha
pressa, olhando os braços roliços. Porém, vejam bem: se o pepino não se torce de
pequenino, depois de crescido é difícil. Cortinas rasgadas e pratos quebrados – uns
por descuido, outros arremessados com violência contra as paredes! – eram prova
clara de que o pepino Eduarda tinha crescido sem torções ou medo. Difícil torcê-lo
agora, púbere, seios duros, farta menstruada. Miguel aceitava o desafio.
Esmeralda convencida, quase: faltava derradeiro empurrão. Miguel lembrou:
casamentos entre tios e sobrinhas não eram raros nas cortes europeias, príncipes e
princesas. A própria rainha Maria I, a Louca, tinha-se casado com um tio dezessete
anos mais velho do que ela.
“Por isso ficou louca…”, disse Esmeralda, em surto de lucidez. Parecia recusar a
ideia mas, na verdade, estava contente em se parecer com mãe de rainha. Pelo
menos na idade do genro. Bom começo…
Tomaram vinho velho do Porto, comeram biscoitinhos quentes e criaram
coragem pra contar a novidade aos parentes próximos. Ao avô, não, pelo adiantado
da idade. Nem à principal interessada, Eduarda, antes do dia e da hora: temor de
sonoras represálias.
O CASAMENTO ERA A MELHOR SOLUÇÃO
Casório em domicílio, convidadas freiras acompanhando o padre: se a noiva não
aceitasse as bodas, as freiras tinham ordem terminante de levá-la amarrada pro
convento: casa-se com Cristo, que aceita qualquer noiva, compreensivo! Se tudo
corresse bem como desejavam, as religiosas, para não perderem a viagem, teriam
autorização para cantar alguns salmos curtos e breves cânticos gregorianos e até
madrigais exaltando as virtudes do casamento e a obediência da esposa ao seu
senhor e amo. As crianças do povoado foram convidadas para pajens e damas de
honra, algumas promovidas a “anjinhos”! – com a missão de acompanhar a noiva, do
quarto até o altar instalado na mesa de jantar, onde já estava o vinho, e o casal
casado de volta ao quarto, onde estavam camisola e cama.
Convidaram parentela e amigos para padrinhos, não esquecendo ninguém:
maneira simbólica de comprometê-los com o casamento. Vieram falando baixo como
em ato clandestino, como se a polícia pudesse chegar. A longa festa foi mantida a
meio-tom, surdina e pompa. Discreta exuberância. Sorrisos suaves nos rostos duros.
Dos nubentes, não: cara de menina amuada, cumprindo castigo de joelhos no milho;
ele, sereno, sério. Não estava lá pra sorrisos.
A espetaculosidade das bodas era oferta aos linguarudos: tivessem, para
coscuvilhar, coisa mais interessante do que a proximidade sanguínea e a distância
das idades.
Com tais preparativos, natural que a novidade voasse por cima das montanhas e à
beira-mar; acabaram os habitantes de Justes informados. Além de Justes, Trás-os-
Montes e, além, Óbidos, onde moravam Catalina e Catalina, à espreita e à espera.
Catalina, enfurecida, alugou carro de bois e pôs-se a caminho, Catalininha às
costas e os bois a trote e a galope, reclamando da pressa e do estilo cavalar. “Hão de
ver!”, bramia, fúria em pessoa, fumaça nas ventas, no ouvido.
Três dias viajando, era tarde: casamento consumado, a sobrinha morava no
quarto do tio, menina feita mulher. Se gritava, os gritos eram diferentes,
estremecidos.
Catalina desvendou a verdade, detalhou sua vida conjugal, mostrou a filha que
chamava o tio de papaizinho. Aos gritos, mostrou fotos, cicatrizes, cartas,
testemunhos, pormenores. A família, em silêncio, acreditou… mas preferiu – era a
melhor solução – fazer de conta que não.
“Está maluca…”, disse tio Miguel e foi decretado: maluca!
Doida de raiva, Catalina maluca entregou a filha perplexa a uma das irmãs de
Miguel, Isabel corcunda – a que não se casou por causa de uma queda de cavalo que
lhe deformou a coluna, o que dificultava casamento e convento –, para que a criasse
como filha. Como herança, deixou uma receita médica que não tivera tempo de
aviar. Essa receita foi a única lembrança que a filha guardou daquela mulher que
desapareceu para sempre de Trás-os-Montes, de Óbidos, de Portugal, do mundo.
Ninguém nunca soube onde foi parar… se é que parou em algum lugar, um dia.
Pobre mulher, Catalina…
Meu avô morreu, tio Miguel legalizou a herança e tratou das formalidades, deixou
os filhos em Portugal aos cuidados da tia corcunda, a que não teve filhos e tinha
agora quatro alheios… – era a melhor solução! Voltou pro Brasil e foi morar com a
mulher, ex-sobrinha, na casa onde havia vivido feliz com outras gentes. Dessa vez,
ocupou a casa inteira. Progresso.
Por obra do Destino ou Fatalidade – ou ambos mancomunados –, Maria Eduarda
teve quatro filhos e deu a todos o mesmo nome, Frederico. Todos morreram antes de
uma semana de vida – dois, apressados, antes de nascer. A todos Maria Eduarda
fotografou, mortos, vestidos de rendas e bordados, preciosos. Guardou as fotos em
cima da cômoda do quarto, ao lado do espelho. Quando se mirava, mirava os filhos.
Os dois irmãos, Esmeralda e Miguel, tiveram mortes trágicas. Ela suicidou-se
jogando-se num poço d’água profundo, em sua herdade. Apaixonara-se aos quarenta
anos e quis casar. Os parentes e amigos que impediram o casamento de Eduarda com
o bobo, agora, com razão adicional – a idade: quarenta anos era já velhice! –,
também se opuseram. Esmeralda jogou-se no poço. Apaixonada… como a filha.
Tio Miguel, prosaico, foi atropelado pelo único automóvel matriculado em todo o
bairro de São Cristóvão. Por demais distraído, porque era o único carro que circulava
pela rua Bela de São João naquele meio-dia. Morte instantânea: seu sorriso, que
existia vivo, prisioneiro atrás do rosto, mostrou-se resplandecente. Morto, Miguel
deixou escapar o único sorriso da sua vida, o longo sorriso da Eternidade.
Na véspera da morte, minha mãe teve um sonho ou visão: parentes em velório na
casa de Miguel. Minha mãe tinha visões, premonições. Algumas davam certo. Herdei
essa coisa. Algumas dão certo. Eu faço de conta que nem acredito… mas presto
atenção.
Todos os outros personagens desta história morreram de forma convencional, na
cama, menos Catalina, que continua viva e tem nas mãos uma receita médica. Única
lembrança…
CAPÍTULO 2
GENEALOGIA MATERNA: AMOR DE PAI E MÃE: POR UM TRIZ, EU NÃO NASCIA!
Meu avô materno se chamava Antônio Rodrigues Alexandre e minha avó, do mesmo
naipe, Maria Vilela Pinto.
Ela, mocinha, morava com os pais em terras chamadas Martim, no Vilarinho de
São Romão, Freguesia do Pinhão, Concelho de Sabrosa, onde se registravam
nascimentos, casamentos e sepultamentos. Na quinta produzia-se uvas e vinho,
azeite e azeitonas e, durante as guerras, minérios, equitativamente vendidos a todos
os beligerantes, sem distinção de raça, credo, cor ou ideologia.
Existem controvérsias sobre como a família chegou lá, terras quentes no verão,
moderadas no inverno, propícias às videiras todo o ano, longe de Lisboa… Na casa da
minha avó-menina só se falava na corte, sotaque lisboeta cortesão, bisbilhotavam-se
assuntos reais. Havia, naqueles tempos, boudoir – lugar ideal para aleivosias.
Dizem que o avô da minha avó, um certo conde Saldanha, teria sido personagem
por demais conhecido entre os íntimos de d. Maria, a Louca, mais louco do que ela e
louco por ela. Esgrimista de talento, como ninguém, olímpico saltador de janelas,
como os gatos. Apelidado Saldanha, o Angorá, por ser mais felino que qualquer
bichano e usar roupas vistosas.
Dizem rumores – segredo fartamente divulgado – que Saldanha andava com a
rainha – a quem tinha acesso horas altas, na intimidade! – e ainda mais envolvido
estava com a principal dama real, marquesa mocinha, descendente de judeus e
árabes, mistura explosiva, pior que católicos e protestantes da Irlanda. O teor desses
rumores fala de afeições intensas e recíprocas, mas… sabe-se lá!
O marquês, marido ultrajado da presumível adúltera, prometendo evitar o
escândalo de um inevitável duelo e o consequente derramamento de sangue profuso,
e prometendo salvar a vida felina do rival, obteve da rainha o desterro de Saldanha,
avô da minha avó.
Não sei se as datas conferem, mas os boatos convergem. Resquícios de corte havia
à farta na família da minha avó Maria Pinto, que, esplêndida, montava a cavalo com
as duas pernas de um lado só, como convinha às princesas. Princesa não abre as
pernas, como se sabe. Pelo menos em Portugal, naquele tempo, não abria. Em
hipótese nenhuma. Hoje…
Verdade ou não, o brasão dos Pinto reluz na sala heráldica do castelo de Sintra. É
bonito, um luxo. Eu vi! Parece que eu tenho alguma coisa a ver com isso.
Saldanha, como presente real, teria recebido fazendas sem fim: era desterrado
que ganhava terras ao invés de perdê-las.
Antônio Rodrigues Alexandre, ao contrário, vinha de família camponesa; entre
suas obrigações estava a de ir ao Martim, no Vilarinho do Romão, buscar lenha e
vinho. Lá podia ver Maria Pinto a cavalo com as duas pernas de um lado só. Visão
encantatória: é lindo cavalgar de um lado só, principalmente quando se é bonita e
princesa.
De tanto buscar lenha, meu avô saiu chamuscado: apaixonou-se.
Ela também cativada, vendo homem tão diferente dos irmãos e tios delicados,
rendados, nada afeitos à enxada, suor na testa. Suor tem seus encantos, cheiro forte:
exala. O homem fecundava a terra e a fazia parir frutas maduras e flores coloridas.
Irresistível.
Casaram-se – a mulher seguia o homem – e foram viver na herdade do meu avô
paterno, sem o menor resquício de luxo que lembrasse os sucessivos desterros de
Lisboa e do Martim.
Maria foi educada em Sabrosa como se estivesse na corte. Nunca fez nada de
produtivo com as mãos: prova de que era nobre autêntica, boa cepa. Na Idade Média,
as mulheres nobres andavam com os cotovelos colados nas costelas, amarrados com
espartilhos, jamais mostravam o sovaco, para que ficasse bem claro que não
trabalhariam em hipótese nenhuma, valha-nos Deus: antes a morte! Se alguma coisa
precisassem, outros que o fizessem: era seu dever!
Justes, porém, não era a corte portuguesa, embora ainda fosse Idade Média.
Nasceram filhos: o mais velho, Tefé, herdou virulência e autoritarismo – não do
pai, meigo e doce, mas da nobreza lisboeta dos últimos vários séculos. Tirano. Todos
obedeciam, sem tugir nem mugir. A vontade de Tefé era lei. Piedade se alguém se
opusesse: castigo severo!
Seus irmãos, Aníbal e João, gozavam de circunscrita liberdade: passear pelo
povoado com amigos, depois do trabalho e do jantar. Suas irmãs – cinco moças
sadias, coradas e bem-dispostas, como nos melhores folhetins românticos, entre as
quais Albertina, minha futura mãe – ficavam trancadas em casa cuidando dos meus
avós e conversando assuntos de moças coradas e saudáveis. Não faltavam
tradicionais risinhos. Acontecia, de quando em muito, que viesse alguma amiga
contar mágoas e dores, ou despedir-se de solteira.
O casamento era a única saída viável: a jovem passava de uma prisão a outra –
esta, com mais deveres e chaves.
Tefé casou-se com a menina Gracinha, feita mulher. Aníbal, com a vizinha. Para
que as irmãs não encalhassem, Tefé escolheu marido pra mais velha, que obedeceu e
foi morar noutra quinta. O tirano achava que as restantes quatro deviam esperar até
segunda ordem!
Tia Lúcia não apreciava a espera. Havia quem a achasse de bom tamanho e
luzidia: o rapaz Lúcio. Para sua desgraça, anos atrás, por qualquer assunto idiota,
Tefé e Lúcio tinham brigado de tapa na cara e não se falavam. Quando na rua,
cuspiam no chão. Em ocasiões chegaram a se engalfinhar: por coincidência, só se
agarravam se houvesse alguém perto, pronto para apartar. Quando sozinhos, bastava
o cuspe no chão – a gravidade da ofensa moral era suficiente. Diziam-se desaforos.
Rosnavam. Falavam mal até das famílias, não escapando das pesadas críticas nem as
femininas figuras idosas.
Um belo dia, Lúcio não respondeu às provocações de Tefé. Mais Tefé provocava,
mais Lúcio lhe sorria. Chegou à suprema ofensa de lhe estender a mão e mandar
recados elogiosos sobre sua pessoa. A retirar ofensas não intencionadas. A pedir
desculpas pelas cusparadas no chão. Prometeu, sempre por terceiros, que cuspe,
nunca mais! Nem pensar!
Tefé não conseguia dormir, pensando no amável inimigo, fraterno rival. Para seu
temperamento era preferível a briga, pois sentia-se melhor no ódio do que nos afetos
cálidos. Brigas são difíceis, sendo de um lado só… Não assinaram a paz, mas não
prolongaram a guerra.
Até que Tefé teve uma visão atordoante que lhe explodiu a cabeça – e não
conseguiu dormir nunca mais:
“Esse desgraçado está a querer namorar uma das minhas quatro irmãs… Se me
arreganha os dentes quando passo, se me dá risos e recados, está a querer levar-me
uma das minhas irmãs!” – e passou a vigiar as mais protuberantes. Minha mãe,
menina, escapava ao controle.
“Desgraça: Deus me deu dois irmãos pra trabalhar a terra e cinco irmãs para
acautelar!” – a culpa era de Deus, como se sabe, sempre.
Interrogava uma a uma: o feito naquela tarde, o conversado, a quem olhavam da
janela? Respondiam que não olhavam janelas, haviam trabalhado caladas, rezando
em pensamento. Cansadas de tanta reza, iam dormir. Apagavam a luz: Tefé ouvia
risos. Enervante. Acautelar quatro irmãs era grande trabalheira – tarefa para
conventos medievais, grossas paredes românicas!
Tefé não conseguiu provar nada, nenhum amor. Não havia remédio, senão
aguentar gentilezas inimigas, mistério das irmãs.
O destino de homens dinâmicos era exilar-se no Brasil, ganhar a vida além-mar,
assegurar futuro à família. Tefé recebeu Carta de Chamada de um general brasileiro,
dono do Matadouro Santa Eustáquia, que o convidava para assistente do subgerente
de sua carnificina. Arranjos tinham sido feitos por familiares, a pedido do Tefé, que
tinha ganas de enriquecer mais depressa no Rio do que sabia ser possível em
Portugal.
Antes de viajar, reuniu a família da qual era chefe, pois meu avô, doente,
preocupava-se mais com a saúde de Maria Pinto do que com a herdade. Nomeou
Aníbal segundo chefe. Ordens expressas de proibir namoros prematuros – Tefé
anunciaria, de longe, a hora certa e o noivo justo! Aníbal faria relatórios quinzenais
sobre as atividades econômicas e emocionais da família.
Depois de nomear Aníbal guardião das mulheres que não podiam ficar
desgovernadas, foi-se com esposa e filhos. O clima melhorou, no que tange à
repressão. Distensão lenta, gradual e segura: a ditadura continuava, mas cedeu o
terror.
Meu avô, revigorado, voltou às lides caseiras e despediu um brutamontes
contratado por Tefé, mata-mouros que dizia palavras feias na frente das moças e
tinha função de trazer lenha. Em seu lugar, meu avô empregou um jovem saudável e
bonito, de bigodinho, parecido comigo: José Augusto, que viria, mais tarde, a ser
meu pai.
Quando viu o recém-chegado, Albertina, a caçula, que viria mais tarde a ser
minha mãe, com muito gosto perguntou: “Este não será tão mau como o outro?”.
Meu pai ouviu e respondeu: “Não, podes ficar descansada, não sou mau…”, e
ficou esquecido, olhando a menina, que tinha doze anos, ele vinte. “É bonita a
menina… benza-a Deus…”
“É, é…”, respondeu meu avô. “Agora, põe-te a trabalhar que és pago pra isso e não
pra ver bonitezas…”
Meu pai lá se foi com seu carrinho de mão buscar lenha, pensando na minha mãe
menina. Dizem testemunhos familiares que José Augusto ainda teve tempo de
murmurar: “Eu vou pro Brasil, ganho dinheiro e venho te buscar. Tu me esperas.
Vamos nos casar!”.
“Sim, senhor!”, teria respondido minha mãe, intimidada ou fascinada, morta de
medo e espanto.
Vendo aquele olhar intenso, de parte a parte, tive a certeza de que, cedo ou tarde,
eu nasceria. Com todo aquele amor nos olhos era inevitável: eu tinha que nascer.
O segundo sinal dos novos tempos democráticos foi Lúcio passear perto da casa
onde três moças o estudavam, atrás das cortinas. Passeava à distância menor do que
uma pedra de pulso frágil. Logo se viu que era Lúcia a preferida. Com os novos
tempos, liberdades, as moças passaram a ter o direito a curtos passeios depois do
jantar. Minha mãe, quarta moça, lavava os pratos e ajudava no negócio da família,
armazém embaixo do sobrado. Sonhando.
AMOR E TIRANIA
Naqueles tempos, mesmo casamento, comprometido com data e hora, não era
assunto só de dois: no mínimo, três. O início do namoro de Lúcia e Lúcio foi a
quatro, porque duas irmãs, Dora e Teresa, iam junto. Ficava minha mãe-menina em
casa, cuidando de Maria Pinto, doente de saudades da corte, que não conhecera, e de
Lisboa, onde nunca havia estado.
Aníbal ficou dilacerado entre fidelidades fraternas. Por medo ou cuidado, resolveu
escrever a carta delatora: “Meu q’rido irmão. É pr’ciso que saibas que a nossa q’rida
irmã Lúcia… Pois assim é…”.
Dizia a verdade modesta, pequena: Lúcio e Lúcia passeavam findo o jantar e se
diziam amorosidades. Sensatas, sensuais. Palavras ouvidas pelas irmãs hipnotizadas,
curiosas, contadas à noite a Albertina, cuidando da mãe, quase dormindo.
Tefé aconselhou-se com o general dono do matadouro, encantado com seu
protegido que não pensava senão em trabalho. Inspecionava bois e o abate e a venda
dos esquartejados. Tefé, veloz, tinha galgado patamares elevados da profissão:
gerente geral. Subalternos obedeciam, olhando o chão, temerosos.
O general, profundo conhecedor da arte da Disciplina, deu-lhe razão: ordem de
superior não pode ser desobedecida por nenhum Aníbal subalterno. Justa ou injusta
– não estava a Justiça em causa, era a Hierarquia! Único alicerce indispensável da
sociedade, a Hierarquia, essência do exército. Doesse a quem doesse, era imperativo
trazer para o Brasil a irmã faltosa, além de prodigalizar reprimendas ao irmão,
carente de competências.
Tefé ordenou que Lúcia viesse ter com ele. Mas… como viajar sozinha? Queria
protegê-la de um lobo, não poderia jogá-la no meio de matilhas em navio de
imigrantes. Pois que venham todas. Estás louco? Quatro moças sozinhas? Se são
muitas, fica Albertina cuidando dos pais e corre menos risco de se meter com o
Lúcio. Venham três. Sozinhas? Pois que venha também Aníbal. Casado, se viesse,
viria a família: o preço dos camarotes exorbitava.
“Casado também estou eu!”, respondeu, com letras garrafais, Tefé. “Vem tu, que
és o culpado!”
“Que vá o João, solteiro, e talvez arranje brasileira rica…”, respondeu Aníbal, com
letras não tão garrafais mas escritas com punho firme: tinta Parker preta que se
começava a usar. A família só discutia quem deveria vir e não se deveria vir alguém.
Vieram João e três irmãs. Tefé a todos acomodou na casa do general viúvo, com
dois filhos homens e quartos vazios, no morro de Santa Teresa, olhando a baía de
Guanabara. João passeava sozinho; adorou o Rio de Janeiro, principalmente a praça
Mauá e o Cais Pharoux, onde atracavam navios europeus, além de outros atraques.
João ficou dois meses, não arranjou brasileira, muito menos rica, e voltou para o
lavradio da terra em Trás-os-Montes.
As moças – menos Lúcia – tinham permissão de sair depois do almoço e voltar
antes das quatro pra cozinha. Dora e Teresa sorriam para os filhos do general,
também na carreira militar, mas que, pela pouca idade, ainda não exibiam a
disciplina paterna: fartavam-se de dar apertões e fazer outras brincadeiras com as
moças. Lúcia ficava à parte. Vinham rapazes amigos conhecer as portuguesinhas. Na
sala distribuíam beliscões carinhosos – assim que se namorava: namoro antigo
avermelhava a pele. Lúcia na janela, a suspirar.
Uma noite, suspirando, Lúcia ouviu seu nome, suspirado com a voz mais doce que
seus ouvidos jamais haviam ouvido, sotaque trasmontano, típico de Justes, da rua de
cima: “Lúcia… Lucinha… ó meu amor… ó…”.
Qualquer uma desmaiaria. Lúcia esticou o pescoço, esticou-se inteira, corpo e
desejo, e saltou para o jardim separado da rua por duas grades, distantes três metros
uma da outra: terra de ninguém que tinha dono – o jardineiro, o único que por ali
transitava cuidando de flores.
Lúcia ficou do lado de dentro das grades de dentro e – imaginem! – quem estava
do lado de fora das grades de fora? O amado Lúcio: vendera o que tinha de seu e de
emprestado, comprara passagem de vinda só, e lá estava, trêmulo, a três metros da
mulher amada.
Namoro atrás das grades. Faziam-se todas as promessas impossíveis, prometiam-se
eternidades gozosas… mas as grades eram altas e de ferro.
Ganhavam confiança, falavam juras de amor e o jardineiro ouvia, três
entardeceres escondido, escrevendo. No quarto dia, tremendo susto. Os jovens
amantes estavam-se olhando, braços esticados no abraço impossível, lábios abertos
no beijo prometido, o coração tamborilando o desejo proibido, quando o grosseiro
jardineiro pisou nas flores: “Alto lá. O que estão aí a fazer vócês?”, perguntou severo,
em bom lusitano carregado.
Antes das explicações, descreveu o que via e fez ameaça: “Tenho aqui dez folhas
de papel. O que vócês andaram a dizer e a fazer está aqui escrito. Cada folha custa
um mil-réis. Se m’as comprarem todas, podem rasgá-las e eu também as rasgo da
memória, não sou rancoroso. Caso não as queiram comprar, vou entregá-las ao
senhor general, que sou jardineiro fiel! O senhor general, soldado de respeito, vai
entregá-las ao seu irmão. O irmão, homem honrado… nem quero pensar no que vai
fazer com vócês… O melhor é esconder os punhais e as facas!”.
Os apaixonados prometeram resgatar as dez folhas. Todas as tardes o casal voltava
às grades mas não se falavam, ou só com a eloquência dos olhos, sorrisos tristes do
corpo. Em silêncio, as novas páginas do jardineiro ficavam brancas. Compraram, das
escritas, quatro, com dinheiro que tinha Lúcio economizado. Com trabalho, biscates,
foram comprando… até a sétima: acabou-se o erário.
“Estas me bastam”, disse o jardineiro. “Sou honesto e cumpro a palavra. Não m’as
compraram todas, como combinado. Vou lá dentro fazer o meu dever de jardineiro,
já que me sobram três…”
Entregou as folhas sobrantes ao general, que, como previsto, entregou-as a Tefé,
que, previsto, teve um colapso previsto. Parecia epilepsia, principalmente por causa
da espuma na boca!
Tefé pensou em matar – hábito adquirido no Matadouro Santa Eustáquia –, mas
não sabia por quem deveria começar a hecatombe. Chamou Lúcia, tirou o cinto,
ameaçou chibata. O general, avesso a sangue, contrariando sua vocação guerreira,
pacificou Tefé, aconselhando que fosse passar férias em Portugal levando as três
irmãs, porque ele mesmo não estava gostando de umas gracinhas que seus filhos
faziam com as mocinhas. Para os filhos, o general tinha planos matrimoniais na
emergente sociedade carioca. Com uma só viagem, abortavam-se três casamentos ou
ligações perigosas.
Tefé, cercado de mulheres endiabradas, resolveu voltar à conservadora Justes,
ajudado por Gracinha, meiga e dócil esposa, uma graça, que só falava, em resposta,
meias palavras. Gracinha tinha intensa vocação de surda-muda, sem pendores para
os sinais.
Lúcio, abandonado, ficou a chorar no Rio, triste, engrossando o alegre mar
tropical.
Tefé não aguentava tomar conta de tantas mulheres jovens e tinha negócios pra
cuidar. Amaldiçoou a primogenitura, atribuindo à condição fraterna deveres que não
lhe eram imanentes.
Para aliviar suas penas, concordou com o casamento de Teresa, que foi morar com
um fazendeiro distante. Dora se casou com um português-brasileiro que, ao vê-la
partir, deu-se conta do quanto estava apaixonado. Trouxe a mulher de volta pro
Brasil.
Lúcia, pobre Lúcia, de castigo: proibição absoluta de casar, sequer namorar ou sair
depois do jantar! Lúcia não se importava: queria ficar a sós, não pensava em
ninguém a não ser em Lúcio, bem-amado. Passou a gostar de grades e, onde as visse,
apertava-as no peito, beijava os ferros, esperando ouvir a voz do amor. As grades
frias silenciavam, não eram as suaves grades brasileiras…
Tefé decidiu encerrar suas férias e voltar ao Rio. Nomeou Gracinha guardiã de
Lúcia, já que Aníbal tinha-se mostrado precário. Até segunda ordem, que viria por
carta: Tefé governava à distância.
Por espantosa coincidência, os navios se cruzaram em alto-mar: o de Tefé, seguro
da virgindade da irmã, e o de Lúcio, que, para comprar a passagem, vendera o que
tinha – menos a alma, porque ninguém dava mil-réis pela sua, apaixonada. O moço
viajava com a roupa do corpo e sanduíches de mortadela no bolso, amor no coração
e esperança no olhar. Seu destino: Justes.
Aconteceu o destino: “Ela entregou-se!”, disse uma parente singela, explicando a
Gracinha o que Gracinha não conseguia acreditar.
“Entregou-se, como?”
“Como todas nós, mas… de boa vontade…”, insistiu na diferença.
“Sem ser casada?!”, perguntava Graça sem a menor graça.
“Nem avisaram ao padre… nem se confessaram…”
“Isso é o de menos, porque agora têm assunto pra boas confissões…”
Como supunham Lúcio no Brasil – na verdade, ele tinha ido morar, de barba e
bigodes disfarçado, em vilarejo ao lado –, ninguém se preocupou em fiscalizar a
virgem que dava tantos sinais de melancolia. Lúcio achou meios para se revelar à sua
amada e os dois passaram a se encontrar no estábulo da fazenda onde ele arranjara
emprego. Depois do amor, amorosas caminhadas em lombo de burro, de volta a
Justes…
Tudo seria felicidade não fossem as sagradas leis da biologia. Deus abençoara o
casal mais depressa do que o esperado.
Deus, compreensivo e justo, Deus, que perdoa fraquezas humanas e fortalezas,
Deus permitiu a felicidade, mas não se responsabilizou pelas consequências. E o
ventre orgulhoso, indômito, não se escondia: mostrava-se resplandecente.
Os correios trabalharam animados: Tefé soube da feliz desgraça, desgraçada
felicidade. A primeira vítima da vingança foi a própria mulher: “Estás descasada,
deserdada, desperfilhada! Pérfida! Divorciada! Como deixastes minha irmã cair tão
baixo!? Não te quero mais ver nem ouvir, nem ler tuas cartas. Rasgo-as antes que as
escrevas! Maldita! Quanto ao meu irmão, que não deixe esse amaldiçoado gatuno da
honra de donzelas honestas entrar em nossa casa. Nunca há de ver o filho! Lúcia está
proibida de tudo. Ponha-se tranca na porta do quarto e nas janelas. A criança há de
ser registrada com o nome só da mãe. Não há de nunca ter pai! Ser pai é ser homem
e esse traidor não é! Lúcia, volte pra cá que vou-lhe arranjar marido do meu agrado”.
Assim queria e assim foi. Lúcia pariu bela menina, filha de mãe solitária. Tão
linda que não lhe encontraram outro nome: Linda. Cercada de amor dos parentes
próximos e do ódio distante.
Lúcia veio para o Brasil, como castigo deixando a filha, que ficou aos cuidados de
minha mãe, crescendo, mocinha! Obedeceu à tirânica ordem, voltou pras grades, à
espera de que Tefé lhe encontrasse marido adequado, que apareceu na pessoa do
pacífico Azevedo, que não prestava atenção em nada, ensimesmado. Em qualquer
circunstância, repetia a frase: “Caso sério…” e abria sorriso longo, vazio. Não
prestava atenção nem nos automóveis. Acabou atropelado. Mais um.
Atropelamentos, naquela época de ruas desertas, eram frequentes, por ser difícil
às pessoas se habituarem com a existência de veículos mais pesados do que elas. Os
transeuntes não se haviam conscientizado da sua simples condição de transeuntes
vulneráveis e andavam por qualquer parte, esbarrando em caminhões e bondes da
Light. Havia gente tão caturra que não saía da frente do bonde, esperando que o
bonde lhe desse passagem… Nem reparavam nos trilhos… Tinha muito macho que
dava pontapé em bonde querendo demovê-lo de seus propósitos retilíneos.
Corria o boato de que os automóveis representavam sério risco para a
humanidade: o corpo humano poderia resistir à velocidade máxima de um cavalo
campeão; além dessa quilometragem corria o risco de se desintegrar. Os bólidos
quebravam recordes: trinta quilômetros a hora, cinquenta, setenta… ai, Deus, onde
vamos parar???!!!
Em Portugal, minha mãe cuidava de Linda e Maria Pinto, a dos braços
desorientados, nunca nada de útil haviam feito. A pobre senhora pagou tributo às
pernas fechadas: numa bela manhã, cavalgando cavalo estroina, a cavalgadura
assustou-se sem motivo e disparou, com medo da cavaleira. Minha avó, pernas
cruzadas de um lado só, escorregou, quebrou dois braços e meia perna e desde então
ficou entalada na cama; nunca mais deixou o leito. Meu avô olhava embevecido,
noite e dia, paralisado como ela. Apaixonado até o último segundo, olhando. Só
minha mãe trabalhava.
Até que morreu Maria Pinto, fidalga, princesa a cavalo do lado esquerdo. Cansada
de mãos cruzadas no peito, inúteis. Foi março. Em abril, morreu meu avô, olhando a
cama vazia. Morreu de monotonia, sem ter Maria a olhar.
Tio João, que havia desertado do Exército e, na Espanha, vendia minérios a quem
mais desse, voltou a Portugal e foi, para a sobrinha, o pai. Linda, anos mais tarde no
Brasil, foi, para mim e meus irmãos, nossa mais querida amiga, prima, irmã e
segunda mãe.
Albertina ficou só, uma criança no colo. O armazém vendia presuntos, salpicões,
queijos, azeitonas, bacalhau, broas de milho, tonéis de onze litros de vinho… fitas,
botões e mercadorias de armarinho.
Vez por outra, vinha um parente examinar os negócios e ajudava. Mas quem
assegurava o bom andamento do armazém era minha mãe e Angelina, empregada,
cinco anos mais jovem que minha mãe.
CASAR ERA INDISPENSÁVEL
Albertina caçula tinha 24 anos e muitos mais pretendentes. Bonita – não digo por
filho, há testemunhas: era bela! De Justes e até de Vila Real chegavam pedidos de
casamento, mas as responsabilidades da moça eram maiores do que o desejo de se
casar. Dizia-se que já estava passando da idade. Que pena: ela, que não era corcunda
nem feia, prendada, boa saúde, sabia ler e escrever e nunca errava nas contas,
trabalhadora, logo ela corria o risco de ficar pra tia.
Minha mãe conversou com parentes, pensou, viu que não havia remédio e
decidiu-se a casar. Havia em vão esperado o Príncipe Encantado. Albertina estava só,
esperando alguém sem saber a quem.
Não se entusiasmava por nenhum pretendente, ipso facto, escolheu o mais
apaixonado, João Marcelino, trabalhador, aceito até pelo Tefé, e com a virtude de ser
calado. Encontravam-se, uma tia de permeio – indispensável testemunha.
Marcaram a data do casório: 10 de setembro. Foram ao padre e confirmaram, dia
10. Ajustaram o preço da cerimônia e das flores, da música e das rezas. Em Justes só
se falava no casamento da minha mãe.
Dia 1°. de setembro de 1925, Justes acordou alvoroçada: havia chegado um
“brasileiro” – eram assim chamados os que voltavam do Brasil, depois de
encaminhados na vida. O brasileiro, chapéu-coco e bengala, bigodinho, chamava-se
José Augusto. Primeiro de setembro, nove dias antes do 10.
Todos queriam ver o brasileiro que conversava animado, contava novidades,
olhando para a porta do armazém: a moça Albertina, agora noiva, também o espiava.
O brasileiro sorria sorriso largo que ostentava orgulhoso o primeiro dente de ouro
que jamais havia sido visto em Justes! Dente de ouro brasileiro! Autêntico. Vendo
aquele dente, aquele brilho, luz solar, os camponeses locais sonhavam com o
Eldorado, Peru, Shangri-lá!
Entardecia e, antes que minha mãe fechasse as portas, meu pai sentiu súbita
vontade de um copo de vinho. Onde? No armazém, claro. Entrou e pediu tinto,
tomou uns goles para atiçar a coragem e lapidar o verbo:
“Albertina, tu te lembras quando me perguntaste se eu também seria mau como o
outro?”
“Que outro?”
“O que trazia lenha. Era brutamontes, dizia palavrões. Teu pai o despediu e me
pediu que ficasse no lugar dele. Tu perguntaste: ‘Esse não será tão mau como o
outro?’. Lembras?”
“Não perguntei a ti, foi ao meu pai.”
“Não sou tão mau.” Silêncio. “Agora… voltei.”
“Para quê?”
“Pra me casar contigo!”
Albertina pensou no dia 10. Fez-se – isto não é figura de retórica: é tempo
cronometrado, rigoroso –, fez-se pausa de, digamos, sem exageros, horas. Em
resumo: longa. Quebrada por Albertina, sincera: “Vai ser difícil…”.
“Casar é fácil: vai-se ao padre e paga-se o que for preciso; em Vila Real, vai-se ao
cartório e pagam-se os selos e já estamos casados! Depois, vai-se à companhia de
navegação e compram-se os bilhetes, pagam-se e já estamos a caminho do Brasil…”
“É fácil e difícil… porque… eu estou noiva.”
“Homessa. Com essa eu não contava!”, disse, triste, meu futuro pai. “Então… tu
não esperaste por mim?”
“Doze anos… Esperei o que pude…”
“Eu voltei… pra te buscar… prometi e cumpri… Sou homem de palavra!”
“O casamento está marcado para o dia 10…”
“Temos nove dias…”
Renasceu a esperança. Meu pai aduziu e seduziu:
“Quando estava no Brasil sonhei que voltava a Portugal pra me casar contigo e te
levar comigo… Sonhei até onde vamos morar, uma casa na rua Bela de São
Cristóvão… Sonhei muitas vezes o mesmo sonho… E a cada sonho a casa ficava
maior, mais bonita, pintada, colorida… A cada sonho crescia o quintal e o quarto dos
meninos e o das meninas… Já aluguei a casa… Mas, se estás noiva, é difícil…”
“Mas não impossível…”, falou realista Albertina, que, nesse instante, decidiu
minha vida e meu futuro. “Tu tens que me dar algum tempo…”
“Quanto?”
“Amanhã a esta hora, vens cá me ver e eu digo-te o que fiz…”
Antes de se despedirem, minha mãe perguntou: “É verdade que tens um dente de
ouro?”.
“Tenho, tenho.”
“Deixas-me vê-lo?”
Meu pai sorriu: o dente de ouro brasileiro brilhou ao sol lusitano. Estava selado o
compromisso. Despediram-se. Ele quis dar-lhe um beijinho, ela não aceitou: noiva,
mulher fiel.
No dia seguinte, ao acordar, depois de ter sonhado com José Augusto desde o
anoitecer à madrugada, minha mãe foi ver o João Marcelino e explicou, antes dos
bons-dias e dos como vais?, que tinha mudado de ideia, que não se podia fazer o
casamento, ficava o dito por não dito. Que a soubesse compreender e a desculpasse,
noivas não faltam, bonitas e trabalhadeiras, logo encontraria outra mais adequada e
condizente. Muitas boas tardes. Adeus. Nunca mais. E “tira-me da tua cabeça!”.
Minha mãe não queria deixar com o noivo sequer lembrança, saudades.
O aturdido Marcelino não teve tempo de abrir a boca ou arregalar os olhos. Não
foi convencido nem pôde convencer. Ainda bem: por um triz, eu escapei de não
nascer!
Desnoivada, Albertina foi à igreja, sem saber se tinha sido desculpada. O padre
meio dormindo, Albertina apressada não aceitava delongas, precisava abrir as portas
do armazém, chamou Eufrosina, a mulher do padre – perdão! –, a mulher que
cuidava do padre, senhora respeitável, bem entendido, como em geral todas as
mulheres de todos os padres! – perdão, que cuidam dos padres. Albertina deu-lhe
dinheiro para o acordar antes do café na cama. Eufrosina chamou, o padre veio
esfregando os olhos, em ceroulas e um crucifixo embaixo do camisolão. Albertina
informou que havia duas mudanças urgentes a fazer nos planos matrimoniais.
Primeiro, a data, muito próxima. Tinha que ser um mês mais tarde, 10 de outubro.
“Compreendo… os preparativos de um sólido casamento cristão levam tempo, os
noivos precisam se conhecer melhor, pois tomam decisão pra toda vida,
comprometem os filhos, a Santa Madre Igreja, compreendo… E a segunda mudança,
vamos lá ver?”
“É o nome do noivo: ele passa a se chamar José Augusto Boal…”
“Não compreendo!!!”, disse o padre, boquiabrindo-se, pensando que sonhava. “Ele
não se chamava… como era? João alguma coisa… Ou Manoel, Joaquim…”
“O que importa é como se chama agora! Meu noivo chama-se José Augusto Boal.”
Quando tinha que tomar decisões, minha mãe não perdia tempo nem
economizava energias: parabéns, mamãe!
Findo o dia, lá veio José Augusto olhando tímido, justificando a expressão “de
soslaio”. Ela não fez suspense, não vacilou: “Está tudo arranjado. Nosso casamento
vai ser no dia 10 de outubro. As passagens para o Brasil, quando é que as vais
comprar?”.
“Amanhã de manhã, vou a Vila Real: é lá que as vendem.”
“Compra três: a Linda vem conosco porque não a posso deixar sozinha. O pai, não
se sabe onde anda e a mãe está no Brasil…”
José Augusto viu Albertina determinada: comprou cabina de casal e outra ao lado,
menor. Antes do casamento, minha mãe se desfez das mercadorias do armazém e,
depois, da Angelina, quando a rapariga começou a lançar olhares ao meu pai. Mamãe
não perdeu tempo: despediu a moça. Outra vez, escapei por um pequeno triz!
Casaram-se em família, presentes amigos mais chegados. Dia 10 de outubro, 1925.
Nenhum dos dois jamais tinha ouvido falar em Stanislavski, mas a emoção foi
enorme.
Quando o navio zarpou, em Lisboa, no Tejo, findo o casamento, José Augusto,
vendo nos olhos da esposa o brilho, prometeu: “Daqui a alguns anos voltamos, pra
visitar os parentes e a terra”.
Meu pai morreu no exato dia em que fez 71 anos, 7 de junho de 1963, sem nunca
ter voltado a Portugal. Shakespeare, como meu pai, nasceu e morreu no mesmo dia:
23 de abril. Eu não tenho nada com isso: nasci no dia 16 de março em 1931 e espero
não morrer nunca: Deus dirá!
Depois de sua morte, minha mãe foi a Portugal uma só vez. Encontrou poucos
personagens desta história. Ela tinha ido me visitar em Lisboa, onde eu estava
exilado. No Bairro Alto, estávamos olhando o castelo de São Jorge, em frente. Ela
disse: “Foi aqui que eu vim com o teu pai, antes de viajar pro Brasil. Ele queria voltar
pra terra… Mas não voltou, só eu: não tem importância, ele está aqui comigo. Se eu
estou aqui, ele também está…”.
FAZ TEMPO, FUI MENINO…
CAPÍTULO 3
TRÊS CRIANÇAS CHORANDO
Fiquei triste. Chorava quando me sentei na ponte do portão da minha casa, à noite.
Tinha nove anos, idade de pessoas sensíveis, emotivas – como, aliás, qualquer idade:
depende das pessoas.
Aquele almoço ajantarado marcou minha vida, indelével. Episódio selvagem,
lembro com nitidez os personagens dessa história sangrenta. A cada lembrar,
detalhes esquecidos, meus olhos ameaçam lágrimas.
Naquele domingo, minha tristeza era motivada por delicada questão ética,
dolorosa. O tema: a responsabilidade individual. Questões éticas, para uma criança
de nove anos, são impressionantemente importantíssimas. Teria sido eu o
responsável? O primeiro culpado? Nove anos… e já tão consciente.
No quintal, animais. Galinheiro repleto como nas prisões brasileiras. Comíamos
galinhas de cabidela com frequência, frangos assados amiúde, coq au vin de vez em
quando. Patos e marrecos, escassos, também se comiam.
Os emplumados ficavam trancafiados no galinheiro abarrotado, no fundo do
quintal, com direito a passeio pelo quintal ciscando minhocas e exercitando os
músculos, como se faz nas prisões. O recreio galináceo começava pela manhã e se
encerrava quando o sol se punha: as próprias galinhas voltavam educadas para o
poleiro! Nosso cachorro Leão pastoreava as galinhas e seus pares de volta ao presídio.
Quintal grande oferecia espaço aos animais corpulentos. Meus pais compravam –
quando o caprino na feira mostrava boas feições e caráter convivial – um bode e três
cabras: consequência, cabritinhos.
Até aí íamos com frequência: caprinos. Suínos, raras vezes. Mas chegamos a ter
quatro ou cinco porcos, simultâneos.
Esse modesto jardim zoológico gastronômico tinha, aos meus olhos crianças,
sentido de trágica diversão. Eu me afeiçoava aos bichos, gostava de brincar com eles,
batizá-los – chegava a dialogar com galos, galinhas e cabritos, em longas e
inteligentes conversações, eu em português e cada um na sua linguagem natural
que, à minha maneira, eu traduzia.
Parecíamos amigos: não éramos. Eu conhecia a verdade que me atormentava:
vivia na casa-grande, castelo, destinado a brilhante futuro universitário, doutor; eles,
no corredor da morte, destinados à panela, forno e fogão, espeto. Mesmo a ração que
lhes dávamos, generosos – ingênuos, agradeciam! –, tinha finalidade culinária. Nosso
quintal era campo de concentração: hóspedes com vida marcada. Só eu viveria pra
sempre, toda a minha vida! Não pode haver verdadeira amizade entre indivíduos,
um eterno, outro perecível.
Brincando com os bichos, fim do dia, eu me sentia como religioso levando o
último consolo aos condenados de Alcatraz ou da Ilha do Diabo, na Guiana, onde
esteve preso o conde de Monte Cristo. Com frequência, sofria insônia sobressaltada
pensando em qual seria o condenado na manhã seguinte: repassava as feições de
cada bicho. Sentia profundo alívio quando, ao voltar da escola, verificava que minhas
galinhas, patos, marrecos e cabritos preferidos sobreviviam.
Eu só não me afeiçoava aos porcos. Nem eles a mim. Havia mesmo certa antipatia
recíproca, hostilidade, entre mim e os porcinos, mesmo jovens. Pra dizer a verdade,
nunca gostei de porco, nem no prato nem no quintal! Detesto chucrute!
Embora não tivesse paixão especial por nenhum porco, eram eles os que me
despertavam a maior piedade, porque se recusavam a morrer! Pelejavam valentes,
gritavam, escandalizavam a vizinhança, alvoroçavam o quarteirão lutando
denodados e conseguiam apenas a inútil solidariedade de outros animais que
cacarejavam e bramiam, impotentes companheiros de infortúnio: nenhum escaparia
ao trágico destino, chegada a sua hora e vez.
A morte de um porco era espetáculo hediondo: sangue esvoaçava como fina chuva
londrina, algazarra no galinheiro, incerteza quanto ao desenlace da luta à faca.
Primos e amigos vinham ajudar: não era tarefa para homem só, por mais valente.
Desde o momento do pega, o desigual combate provocava suspense e emoção. Os
algozes se aproximavam do porco, que, por precaução, gritava rouco e fanho; seus
berros se juntavam aos do resto da família porcina, solidária no terror e no pânico.
Os verdugos agarravam-no, amarravam-lhe as patas enquanto o carrasco principal
afiava a faca. O porco, vendo a faca, antevia seu trágico destino. Por intuição ou
instinto, conhecia as verdadeiras intenções da lâmina e vociferava antecipado.
A faca perfurava o pescoço suíno e o primeiro jorro vermelho espirrava como
mangueira d’água desgovernada, molhava ao redor, enquanto gritos e clamores
cacofônicos dos outros animais redobravam. A luta – armada de um lado só! – durava
meia hora, hora inteira, hora e meia ou mais. Isso quando as coisas se passavam bem
do ponto de vista carrasco. Mas podia acontecer o pior: o porco, intrépido, soltava-se
das cordas e dos seus captores e corria pelo quintal espalhando sangue, guinchos,
enquanto mulheres fechavam janelas e olhavam pelas vidraças, e nós, crianças,
olhávamos de longe os homens cercando o animal, cordas e correntes e, para casos
de extrema necessidade, um machado afiado destinado à cabeça.
Um dia, um porco de trezentos quilos, cuja morte havia sido planejada com
detalhes sofisticados de uma operação de guerra, jogou-se moribundo contra o
galinheiro, estraçalhou a cerca e libertou as prisioneiras, que, ensandecidas, pela
primeira vez na vida exercitaram suas asas e voaram como passarinhos por cima dos
muros para quintais alheios: eu nem sabia que galinha voava! Galinha voa: depende
da urgência!
Alguns vizinhos, de bom grado, devolveram os galináceos; outros quiseram
questionar nosso título de propriedade e só devolveram os bichos quando meu pai
ameaçou chamar a polícia. Galinha, por mais galinha que seja, a um só dono
pertence…
Morto o porco, o cadáver era esquartejado em silêncio: todos se sentiam culpados
cortando a gordura suína em pedacinhos para o torresmo; orelhas, joelhos, rabo e
focinho pra feijoada; e cada parte do corpo para diferentes panelas de barro e
condimentos.
Os executores do porco, depois do assassinato, tomavam banho ensaboado da
cabeça aos pés, e espalhavam pó de arroz nas axilas, talco nos artelhos e água-de-
colônia nacional na roupa, antes de voltarem à civilização.
Galinhas eram esganadas com menor espetaculosidade – evento rotineiro, quase
diário. A empregada fazia o sacrifício. Depois de carinhos enganadores, de um só
golpe torcia o pescoço penado. Logo – não entendo como – uma faca surgia na mão
da executora, vinda não se sabe de onde, e cortava a cabeça espantada. O sangue
escorria em vaso grande: dava cor e gosto à cabidela.
Minha mãe não matava galinhas. Minto: só uma vez tentou. Desastre: no meio da
operação sanguinolenta, teve piedade e a ave, com o pescoço cortado, saltou da
cozinha à sala de visitas, sujando os móveis de sangue. Nunca mais! Não se pode ter
pena das galinhas na hora da execução.
Coelhos matavam-se com simplicidade: forte pancada atrás da cabeça – morto. Aí
começava o lado feio: cortava-se o pescoço e arrancava-se o couro branco do animal
até os joelhos, pendurava-se o corpo nu, com pele e pelos na anteperna, como botas
finlandesas invernais. A pele se tratava com produtos químicos comprados no
curtume e se faziam tapetes; o corpo nu, despelado, era jogado em panela de ferro e
tostado com manteiga, alho, cebola, pimenta e pimentão, tomate, sal e farinha.
E os cabritos? Nunca vi morrer cabrito. Em casa, quando se decretava tal morte, a
execução se fazia aos sábados de manhã, quando eu estava na escola e o corpo era
velado em vinha-d’alhos, na geladeira, durante a noite. Só comíamos cabritos em
domingos especiais, no almoço.
Antes de sair pra escola, cedo, eu via cabritos saltitantes, brincalhões; à tarde, em
vinha-d’alhos, recheados com pão, vísceras e azeitonas. Era-me poupado o martírio.
Pois foi justamente um cabrito que me fez sentir um dos maiores dilemas morais
que já enfrentei. Chamava-se Chibuco, não sei se com “x” ou “ch”: esta é a primeira
vez que escrevo seu nome saudoso, até hoje apenas pronunciado.
Nascido em casa, filho de cabra por quem eu nutria simpatia e de bode mal-
encarado que eu admirava por ser de fino trato, respeitador – incomum aos bodes
triviais. Acabei apadrinhando Chibuco – optemos por essa grafia, menos enigmática
–, que passou a ser meu animal predileto.
Nossa amizade cresceu com o tempo e a família se maravilhava: Chibuco obedecia
às minhas ordens, entendia palavras que nem o aturdido Leão entenderia, embora
cães sejam mais inteligentes do que cabritos: Q.I. mais elevado.
Chibuco era o máximo! Corria, dava cambalhotas – raríssimo em caprinos – e
pulava corda – único. Sem destreza, é verdade, mas pulava. Pulava corda, sim
senhores. No quintal, eu amarrava a corda nas grades do porão e Chibuco saltava,
obediente. Cabrito pulando corda, sonho de toda criança! Eu sonhava acordado: ele
pulava.
Chibuco foi meu primeiro ator, fez de mim verdadeiro diretor teatral. Eu era
autoritário como são os diretores imaturos. Com ele, comecei minha carreira teatral:
eu dirigia espetáculos caprinos sem jamais consultar meu elenco. Só mais tarde
aprendi as alegrias do trabalho em equipe.
Meninos vinham ver o prodígio: Chibuco pulando corda, dando chifradinhas
carinhosas nas árvores e nas pernas. Eu dirigindo, orgulhoso. Exagerava, mandando
Chibuco imitar o cachorro. Chibuco, excelente ator, imitava o Leão e se deitava de
costas.
Todo mundo gostava: Angelina, viúva que morava sozinha, casa ao lado da nossa,
vinha espiar. Tia Lúcia, mirradinha, gostava de ver, com seus óculos redondos:
“Parece criança… Inocente…”.
“Anjo ou diabo: não é cabrito normal… Cabrito não faz essas coisas… Está pros
lados da feitiçaria…”, diagnosticava Angelina.
Chibuco sorria feliz quando eu o chamava; triste ficava, chorava como cordeiro
quando o expulsava. Posso dizer que entre o menino e o cabrito havia sólida amizade
autoritária, crescendo com o tempo e com os chifres do Chibuco, que se emancipou
da cabra mãe. Transformava-se em esbelto adolescente, garboso adulto, orgulhoso
como pavão excitado.
Deu-se a tragédia. Chibuco, sem perversa aleivosia, mas indisciplinado, durante
uma brincadeira excedeu-se, saiu da marcação combinada, faltou-me ao respeito e
deu-me chifrada no peito. Saiu sangue.
Mais assustado que eu, me olhava com cara de quem não encontra a palavra justa.
Aproximou-se pra beijar a ferida – suponho! –, mas eu o rejeitei, revoltado com a
chifrada e o sangue, olhar glacial e altivo. E decidi, punitivo: “Vou contar tudo a
mamãe!”.
Erro trágico, o primeiro dos trágicos erros que cometi na vida. Minha mãe cuidou
do ferimento e foi ao quintal dar tapas na cara do Chibuco, envergonhado. Na hora
do jantar, contou ao meu pai.
Ele acabou a sopa, calmo sempre, disse coisa que não entendi direito, parecida
com “Já está crescido bastante…”. Saí da mesa, fui à varanda ver o ex-amigo Chibuco
triste, assustado. Voltei, ouvi meu pai dizer coisa parecida com “Pode ser o
próximo…”. Fui ao banheiro olhar a ferida, mexi na pele e saiu mais de sangue que
limpei, voltei à sala, ouvi meu pai dizer coisa como “Pode ser sábado que vem…”.
As três frases dançavam na cabeça, mas não se encontravam em sequência lógica.
Já está crescido… quem? Pode ser o próximo… a fazer o quê? No sábado… e por que
não domingo?
Ainda ouvi outro comentário paterno, mas esse entendi: “Precisamos batizar o
menino!”. O menino era eu, pagão até os onze, e a promessa de batismo era
reiterada sempre que eu ficava doente. Medo de morte. Na verdade, meu pai queria
me batizar em Portugal – viagem adiada.
Fui dormir com o peito dolorido. Minha mãe veio me beijar e dizer que não era
nada. Parei de brincar com o Chibuco e suspendi os espetáculos teatrais. Todas as
tardes, antes do futebol, eu passava no quintal e olhava Chibuco com altaneira
indiferença, e ele me retribuía olhar triste de quem, por inadvertência, fez coisa
errada a um amigo: arrependido.
Sábado, pressenti que coisa irreparável havia acontecido. Entrei, vindo da escola,
e, depois do almoço, não busquei o Chibuco e fui pra cama, doente. Estava com
problemas respiratórios. Minha mãe achou melhor que eu passasse o dia na cama:
domingo estaria melhor. Tive pesadelos premonitórios! Vi sangue em sonhos.
Domingo de manhã, continuei doente. Na cama, ouvi minha mãe convidando
parentes para o almoço.
“Hoje temos cabrito…” Os sinos de todas as catedrais do mundo, em noite de
Natal, sinos embriagados do Vaticano, não soariam mais atordoantes do que a voz da
minha mãe: temos cabrito!
Me levantei de pijama, fui correndo pro quintal. Procurei meu amigo por toda
parte, no porão e na rua, procurei-o ao lado da cabra e do bode, seus pais, fui pra
onde chafurdavam os porcos, fui ao galinheiro pisando na merda e num pinto
desprevenido e surpreso.
Chibuco havia desaparecido. Voltei correndo e perguntei chorando:
“Onde está o Chibuco?”
“Na mesa…”, respondeu meu irmão, insolente.
Estava… recheado de pão, vísceras e azeitonas…
AS RAZÕES DOS CHOROS CONVULSOS
Eu estava chorando quando me sentei na ponte, depois do ajantarado, tardio.
Chorava alto pensando no Chibuco morto, nas brincadeiras alegres e nas tristes
injustiças da vida. Por que somos carnívoros, diacho? Por que Deus, que tudo pode,
não nos fez vegetarianos? Se pode, podia nos alimentar de pedras saborosas,
manjares de areias brancas de sobremesa, podia nos fazer beber água da chuva,
comer a rocha, beber o mar. Por que carne, por que peixe maior comendo o
menorzinho, lobo cordeiro, vida comendo vida??? Ah, Deus, você errou, viu?
Eu tinha perdido um amigo e excelente ator. Deus tinha mais o que fazer e não
pensava na minha tristeza. Eu chorava quando vi César na porta da sua casa.
Enxuguei meus olhos depressa, vergonha do rosto molhado, vermelho e quente.
Surpresa: ele também chorava.
Homem não chora!, diziam. De repente, nós, dois homens de nove anos,
chorando. “Por que você está chorando?”, perguntei.
“E você, chorando por quê?”, me devolveu.
“Marraio! Eu perguntei primeiro!”
César resolveu contar: “Meu pai… eu nunca podia imaginar que seria capaz de
fazer isso comigo… com minha irmã… Meu pai… poxa! Fazer isso com a gente…”.
“Fez o quê? Vai, conta logo! Fez o quê?”
“Acho que não vou contar, não…”
“Trato é trato: a gente combinou que cada um ia contar… Começou, tem que
acabar! Conta!”
“Você ainda não contou!”
“Vou contar depois, eu pedi marraio!”
“Marraio” não sei o que queria dizer: expressão significando que queríamos ser os
primeiros ou os últimos, segundo conveniências. Nesse caso, eu seria o último: pedi
marraio, César fugia da raia: “Não vou contar nada na frente do Zeca Carvoeiro…
Olha ele vindo aí…”.
Zeca, filho do carvoeiro, seu Antenor, vinha vindo. Por extensão, era chamado de
carvoeirinho e com razão, pois ajudava o pai no transporte do carvão usado para os
fogões de ferro e ferros de passar roupa.
“Engraçado, hoje o carvoeiro não bateu no Zeca… Viu ele gritando? Eu não.”
“Também não. Engraçado: hoje, o dia inteiro, o Zeca não apanhou…”
Seu Antenor era cruel. Todos os dias, Zeca, trabalhando com o carvão, ficava com
roupas imundas e cara preta. Pois bastava que o menino se sujasse de barro jogando
bola, lá vinha seu Antenor com corda, fina corrente ou pau, e cascava esses objetos
contundentes nas costas e pernas do garoto, que gritava: “Papaizinho, por Deus, não
me bate! Pelo amor da minha mãe!”.
Todos os dias, o ritual. Ninguém se metia: respeitavam direitos repressores do
chefe da família. Sangrando, Zeca voltava a carregar carvão. Antenor se justificava
diante dos vizinhos, cuja indignação se traduzia em expressões fisionômicas
carrancudas, não em atos: “Ele não tem mãe, eu é que tenho que bater pelos dois”.
A mãe de Zeca havia morrido de parto e o menino nasceu de cesariana, na época,
raríssima. Hoje, como o sistema de saúde do governo paga por cesárea preço maior
do que parto normal, o Brasil é campeão universal: todo mundo marca hora para o
nascimento do filho, depois da telenovela.
Antenor sentia-se humilhado por trocar fraldas, mamadeira: coisas de mulher. A
empregada, Joaninha, cuidava do menino, é verdade, e da casa, jardinava, fazia
comida, lavava roupa, mas tinha o defeito de ser mulher de fortes convicções:
religiosa até a medula.
A religiosidade saía-lhe pela boca e orelhas! Irredutível virgem aos cinquenta,
recusava-se a fazer sexo com Antenor, como seria prático e vantajoso para ambos, e
exigia folga aos fins de semana, quando assistia a diversas missas desde a
madrugada. Adorava procissões, quermesses, missas do galo e de corpo presente.
Adorava enterros. Adorava subir os 365 degraus da igreja da Penha: uma vez,
pagando promessa, subiu de joelhos. Outras, subia sem pagar promessa, puro prazer!
Feridas nos joelhos eram prova de santidade! Quanto mais degraus, mais perto de
Deus no Céu, mais aconchegada no sovaco do Cristo. Adorava adorar.
Fins de semana, Antenor ia às putas, quando no Mangue era preciso fazer fila.
Antenor deixava Zeca guardado pelo cachorro ou vizinho. De volta do Mangue,
fraldas, mamadeira e comida: coisas de mulher.
Essa humilhação de quando infante, Zeca pagava aos nove: éramos da mesma
idade. No fundo, Antenor recriminava ao inocente filho a prematura morte da
mulher, no parto. Zeca dizia: “A culpa é minha, meu pai tem razão. Pra que eu fui
nascer?! Eu devia ter morrido, ela não!”. Zeca implorava: “Pai, pelo amor da minha
mãe morta, não me bate mais, me deixa vivo…”.
César tinha pena e comentava: “Tenho mais sorte que o Zeca: meu pai só me bate
às sextas-feiras…”.
Por que não aos domingos ou feriados? “Sexta é dia de tomar porre! Bêbedo,
bate…”, estava o pai justificado.
Eu me sentia superior: meu pai não me batia nunca. Só uma vez. De cinto.
César e eu sentados, olhos enxugados, veio o Zeca, chorando.
“Você também? Por que está chorando?”
“Por que você também? Vocês estavam chorando!?”
“A gente estava, mas não está mais. E você? Conta por quê.”
“Olha só: enxuguei os olhos.”
“Conta assim mesmo!”
Ninguém queria ser o primeiro. Zeca concordou que, último a chegar, o meu
pedido de “marraio!” valia também pro César, que estava comigo. César propôs uma
salvaguarda: “Todo mundo vai ter que jurar pela sua mãe que não conta nada a
ninguém”.
“Eu não tenho mãe…”, lamentou-se Zeca.
Chegamos a pensar que deveria jurar pelo pai, mas concluímos que tal
juramento, no seu caso, não valeria grande coisa.
“Então jura só… Jura por você, ou por nada mesmo!”
Juramos e Zeca contou. A galega da rua Cintra, gorda ruiva, cheia de sardas, vinda
do norte de Portugal, quase Galícia, daí galega, viúva de quatro anos, era dona de
armarinho. Quando o marido morreu, ficou difícil continuar o comércio, mas a
galega foi aguentando. Sua principal inabilidade era com fiscais: a galega da rua
Cintra não se conformava com o hábito generalizado de subornar fiscais.
Raciocinava que, a contabilidade certa, as contas honestas, não teria a temer. Puro
engano. Tome multa! Os fiscais rondavam o armarinho. Piranhas.
Depois de anos, a galega tomou decisão histórica: recomeçar vida nova. Pediu
audiência ao Antenor, que, naquele domingo de manhã, havia tomado banho
integral, com ênfase nos dedos dos pés e sovacos, a fim de recebê-la condignamente.
Havia aberto uma garrafa de vinho Setúbal, adocicado, e comprado biscoitinhos na
padaria do meu pai. No fim da tarde, veio a viúva adornada de joias, rendas e um
leque espanhol. E boas intenções fulminantes.
Em resumo, a conversa que Zeca havia escutado atrás da porta – ouviu palavras e
suspiros – consistiu em pedido de casamento. A galega mostrou que, viúvos, estavam
desimpedidos para um casamento em regra, com selos, emolumentos e papéis
timbrados. Esse contrato matrimonial viria resolver a situação de ambos: ela
venderia o armarinho e entraria na nova sociedade com o dinheiro da venda, como
dote – à noiva cabia oferecer o dote, nem se discute. Ela também deixaria a casa
onde pagava aluguel e viria morar com ele, cuidando das tarefas domésticas, fazendo
o trabalho pesado que d. Joaninha já não fazia, devido à idade e aos joelhos
inchados, e pondo ordem em todas as suas coisas.
Zeca ouvira bem: ordem em todas as suas coisas! Era o Zeca uma dessas coisas, óbvio.
Last but not least, ao contrário de Joaninha, a galega da rua Cintra não se negaria,
em hipótese nenhuma, a não ser em caso extremo de doença grave, a dormir na
mesma cama que seu Antenor, para “o que der e vier, e seja lá o que Deus quiser!”.
Obediência cega à natureza indômita.
“Eu serei a dona da casa, da cama e da mesa, e essas tarefas corporais competem à
dona! Dever e desejo. Quero que o senhor saiba que eu só uso sabonete Lifebuoy.”
“Sem dúvida, sem dúvida…”, apressou-se seu Antenor a concordar… “Eu
também… life isso aí…”, mentiu.
Beberam a garrafa de Setúbal e, quando começaram a tirar do peito arfante as
joias, colares e balangandãs, quando a galega da rua Cintra fechou o leque espanhol
em sinal de “Por que não? É pra já!”, Zeca saiu de perto, adivinhando o desenlace.
“Meu pai vai se casar com a galega…”, e lhe rolavam lágrimas. “Abraçado com a
galega, ele gritava mais do que eu levando porrada…”
Procurei consolar: “Que bom: você vivia reclamando que não tinha mãe! Vivia
com inveja da gente… Agora todo mundo vai ter mãe… A gente pode xingar a tua
mãe também, sem pena!”.
Zeca, inconformado, insistia em soluçar: “Mãe, não: madrasta!”, e chorava em
cascatas. “Pode xingar, sim!”
“Madrasta” era palavrão na minha infância. Soava como torturadora, monstro da
lagoa Negra, bruxa. Havia quem preferisse não ter pai nem mãe do que ter uma…
ma-dras-ta. Nome tétrico, fantasmagórico!
Percebendo que tinha sido o único a contar sua história, Zeca reclamou. César
concordou em contar seu drama.
“Hoje lá em casa também teve casamento… Vocês conhecem o Zé Luiz, aquele
cara da luta romana? Aquele que tem um braço mais grosso que a minha perna?”
Zé Luiz tinha feito demonstrações de luta romana no pátio do Colégio Santa
Teresa, com um amigo. Vestia camisa verde que mostrava músculos mais grossos do
que as pernas de qualquer um de nós, mesmo somadas. Mais grossos do que as do
diretor do colégio, doutor Alcides, que andava na rua vestido de branco e olhando
pra cima. Dava medo. E ria riso solto, vendo o medo na cara das crianças. Fazia
ruídos de gato encurralado, assustando os assustados. Ladrava como cão, uivava
como lobo, rosnava como ele só: brincadeiras de atleta de luta romana…
Pois esse musculoso de cara atroz, que gania ameaças, tinha ido à casa do César
para pedir a mão da sua irmã e o pai – cúmulo da crueldade! – havia consentido. O
pai fez perguntas sobre salários, propriedades, quantas casas haveria de receber em
herança quando morressem os pais, quanto tempo haviam de durar os velhos
doentes etc. Perguntas práticas sobre o futuro, coisas assim, e logo disse que sim.
Veio a noiva e os dois se beijaram. Sem-vergonhas! Tomaram vinho Setúbal – era
moda.
“Casar não faz mal a ninguém”, Zeca e eu estávamos de acordo.
“Vocês já imaginaram o que é que esse cara é capaz de fazer com a minha irmã? O
braço dele… Ó… desse tamanho… Não quero nem pensar. Quanta judiação ele vai
fazer com ela… Tenho certeza de que esse cara vai obrigar a minha irmã a dar pra
ele, tenho certeza de que ela vai acabar dando pra ele, vai dar, vai dar….Tenho
certeza.”
“Nós também… Vai dar mesmo!”, mais uma vez concordávamos, Zeca e eu, e
agora os três. “Logo no primeiro dia!”
“Você imaginou, esse cara tirando a roupa dela… fazendo judiação… Coitada da
minha irmã… Um cara assim, forte, é capaz de tudo. Vai estraçalhar a minha irmã…
não quero nem pensar…”
César, ao contrário do que dizia, queria imaginar o que poderia ser o ato sexual.
Nossas informações eram escassas, não tínhamos professor e ele imaginava
violências, golpes de luta romana na cama nupcial, rounds de catch-as-catch-can e,
pior, um homem nu veria sua irmã, nuinha!
“A culpa é toda minha…”, murmurou, chorando.
Espanto nosso: se foi o pai que disse sim e a irmã amém, por que seria sua a
culpa?
“Eu tinha que ter mais idade, já ser grande, ter um emprego e, se eu ganhasse
muito dinheiro, fazia uma casa e, ao lado da minha casa, eu fazia outra menor e
dava pra minha irmã, e dava empregadas pra ela, carro e motorista, e ela não ia
precisar casar nunca, não ia deixar nunca que o Zé Luiz, nem ele nem ninguém,
visse ela nua, fizesse isso que ele vai fazer com ela… fizesse… sei lá o quê que vai
fazer… estraçalhar, vai estraçalhar…”
“Vai, não. Vai só fazer coisa boa…”, continuávamos a concordar, eu e o Zeca, na
esperança de que César tivesse descoberto alguma coisa nova e perigosa sobre sexo e
nos contasse – nós, no mais íntimo das dúvidas, também pensávamos que no
casamento havia um certo risco para a noiva. Em toda coisa boa, um perigo
espreitava. Mais gostosa, mais arriscada.
“Meu pai e minha mãe se casaram e ninguém estraçalhou ninguém!”, encorajei.
“Pai e mãe é diferente… Não põe pai e mãe nessa história…” E a raiva que teve de
nós secou suas lágrimas.
“A gente pode não pôr pai nem mãe nessa história, mas pai e mãe… é a mesma
história…” Não sei se fui eu ou o Zeca o autor desse raciocínio deslumbrante.
Nós três nos sentíamos culpados. Zeca, pela morte da mãe no parto – César e eu
achávamos fatalidade. César, pelo casamento – na sua imaginação, ultrajante – da
irmã com a luta romana, porque o pai tinha pressa em passar para o genro os
encargos com o sustento da filha, aliviando seu orçamento. Zeca e eu achávamos que
não: livre-arbítrio. E eu, era culpado de quê?
“E você? Agora é a sua vez…” Os dois me olharam esperando ouvir uma das
maiores tragédias da História. “Qual a tua culpa?!”
“A morte do Chibuco…”
Enquanto meus amigos secavam seus olhos, eu transbordava os meus. Chorando
cataratas, contei detalhes da morte do amigo e ator, Chibuco, primeiro e único!
“Você não teve culpa, não matou. Você nem sabe quem foi…”
“A culpa foi minha, sim, toda minha… todinha…”
“Por quê? Foram eles que mataram…”
“É… eu não matei… não matei, não… mas… na hora do almoço ajantarado… eu
estava com fome… e ele tão cheiroso… eu não aguentei… e comi um pedaço do
Chibuco…”
Os três, em coro, desatamos num choro convulso.
CAPÍTULO 4
O PEDIDO DE CASAMENTO
Meu pai, para ajudar parentes, tinha a generosa disposição de mandar Cartas de
Chamada para quem quisesse emigrar. Nessas cartas, necessárias à concessão do
visto de entrada, o remetente se responsabilizava pelo sustento do imigrante.
No caso do meu pai, o parente recebia “casa, comida e roupa lavada” durante
meio ano e trabalhava na padaria, ganhando um salário, depositado na Caixa
Econômica. Depois de seis meses, contrato terminado, cada qual decidia o futuro:
continuar, estabelecer-se por conta própria, mudar de profissão ou voltar pra
Portugal.
Meu primo Roberto veio, gostou, ficou. Calado, fez amigos, silenciosos como ele.
Passaram-se três anos. Ficou tuberculoso, meus pais financiaram o tratamento
durante meses, em sanatório de Correias, nas montanhas de Petrópolis, cercado de
floresta e riacho. Passarinho não faltava: orquestra. Curou-se: naquela época, coisa
rara – tuberculose era velório, cheiro de flores. Roberto voltou rosado, gordo. Cinco
anos se passaram. Fez 33, idade do Cristo. Morava sozinho. Mesmo adulto, meu pai
continuava sua referência paterna. Meu pai tinha cara de Pai. Levava jeito.
Uma noite, Roberto apareceu em casa sem ser esperado, depois da padaria,
quando estávamos à mesa. Minha mãe convidou-o para jantar. Aceitou, sentou-se à
mesa e começamos a comer. Falou-se do pão, dos fregueses e dos fornecedores da
“mistura”: isso aconteceu durante a Segunda Guerra, quando havia racionamento de
trigo – as padarias eram obrigadas a misturar trigo e milho ou centeio. Pão branco
era proibido. Eu até que preferia pão de centeio, mas os empregados não me
deixavam comê-lo dizendo que era pão dos pobres, como o pão dormido que
pernoitava nas prateleiras e se vendia pela metade do preço na manhã seguinte.
Aproveitando o silêncio, Roberto disse que tinha assunto sério pra conversar.
“Sério mesmo?”, perguntou meu pai.
“Muito sério…”
“Então, vamos comer…” Jantar era assunto sagrado, não se podiam misturar
seriedades.
Aliás, para ele, todas as horas do dia eram sérias: meu pai se levantava às quatro e
meia da manhã, levantava as portas de aço às cinco e meia, quando saía a primeira
fornada e já alguns fregueses esperavam famintos. Ao meio-dia e meia voltava,
almoçava à uma, às duas dormia a sesta até as quatro, voltava pra padaria às quatro e
meia, trabalhava até as nove, fechava as portas de aço, às nove e meia estava em
casa, tomava a sopa às dez da noite. A sopa, na minha infância, vinha depois dos
pratos principais, antes da sobremesa.
Essa rotina só se alterava nos dias quentes de verão, quando íamos à praia de
madrugada, antes do sol. Nosso cachorro, Leão, vira-lata preto, pontual como
relojoeiro suíço, vinha bater na porta do quarto paterno às quatro da madrugada,
quando calor, e continuava batendo até que meu pai desse o recado: “Hoje não
vamos à praia, Leão!” ou “Já vamos nos aprontar, Leão!”, e aí a gorda besta sentava-se
triste ou, alegre, balançava o rabo: adorava nadar! A praia se chamava Marinheiro
Marcílio Dias, que ninguém sabia onde se havia afogado, mas todos a conheciam
como praia das Morenas, e todos sabiam onde moravam mulatas e azeviches.
Quando íamos à praia, tínhamos que atravessar dois obstáculos. O primeiro, uma
rua com montanhas de lixo, uma de cada lado. Mesmo queimado, o lixo atraía
urubus. Não havia estação de tratamento, havia fogo. Na minha infância, no meu
bairro, poucas ruas tinham saneamento básico e o lixo era despejado perto do mar.
O segundo obstáculo, o mangue, cheio de siris e caranguejos que ameaçavam os pés
distraídos. Areia branca, mar calmo. O único perigo eram águas-vivas que
queimavam os pés quando, de fato, vivas.
Nesse dia, Roberto tinha assunto sério, mas compreendia que, apesar da urgência,
assuntos sérios não se tratavam no jantar: à mesa, jantava-se e conversavam-se
amenidades, que facilitavam a digestão. Assunto sério merecia que se abrisse a sala
de visitas, sempre fechada: só usada para aulas de piano das minhas irmãs e
conversas sérias. Ou, jus ao nome, quando vinham visitas. Raras.
Meu pai comia devagar – herdei o hábito. De sobremesa, abacaxi com vinho tinto
e açúcar. Herdei o vinho.
Depois de hora à mesa, meu pai se levantou e minha mãe abriu a sala de visitas
para que os homens entrassem. Ela e minhas irmãs foram lavar pratos, como
acontecia quando faltava a empregada. Minha irmã Aída tinha que subir num
caixote para alcançar a pia. Meu irmão foi jogar dominó sozinho e eu fui sentar na
ponte que ligava minha casa à rua. Fui ver gente passando. Como estava garoando
nossa londrina chuvinha fina, abri o guarda-chuva preto. Fiquei sentado, abraçando
os joelhos, o guarda-chuvas escondendo minha cabeça.
Tinha esse hábito: sentar na ponte vendo pessoas, imaginando profissões,
famílias, histórias. Os trens chegavam à estação, longe, de meia em meia hora e,
cinco minutos depois, começava o desfile dos que voltavam olhando o chão,
apressados, com fome. À tarde, trens chegavam amiúde e traziam multidões. À
noite, quase ninguém.
Chovia, a rua deserta, eu ouvia o coaxar de rãs e sapos, na vala pluvial embaixo da
ponte e nos baldios. Silhuetas de pessoas passavam nas janelas em frente. Imaginava
enredos.
“Então, que assunto é?”, perguntou meu pai, sentando-se numa das cadeiras de
pernas finas, ao lado do sofá de pernas finas, em torno da mesinha de mármore… de
pernas finas.
Roberto falou de pé, diante dele, nervoso.
“Meu tio, eu quero me casar… Já estou precisando. É necessidade. Já tenho trinta
e três anos… Quero ter família. Meu pai se casou aos trinta e três, meu avô também,
e assim há de ser comigo… Quero ter filhos. Meu tio, eu quero me casar. Quero
mesmo…”
“E já tens com quem?”, singela pergunta, oportuna.
“Anamaria é moça séria. Tem vinte e seis anos, já está um pouco velha, mas é
mais nova do que eu. Trabalhadeira… Freguesa, compra fiado, mas sempre pagou
em dia…”
Meu pai chamou minha mãe: “Está-me a dizer que se quer casar…”.
“É maior, casa-se quando quiser…”, ponderou minha mãe, senso prático.
“Quero pedir a permissão aos tios…”
Mesmo desnecessária, a permissão foi dada. Minha mãe fez a mesma pergunta:
“Já tens com quem?”, e obteve a mesma resposta.
“Eu já estava desconfiada…”
“Tu conheces a moça?”, espantou-se meu pai.
Já vira os dois na esquina, respeitosos, mãos dadas. Três vezes: desconfiava.
“É magra, gorda, alta, baixa…?” Meu pai queria detalhes.
“O melhor é trazê-la aqui…”, sugeriu minha mãe, sempre sensata.
Roberto concordou que a traria, logo que tivesse permissão. Meu pai, significando
que o assunto estava, provisoriamente, encerrado e a permissão concedida, pediu
um cálice de vinho do Porto: as visitas e os assuntos sérios sempre se encerravam
com vinho do Porto. Quando o assunto era muito sério, começava com cálice de
vinho do Porto e terminava com outro cálice de vinho do Porto. Quando a reunião
tinha sido premeditada, havia biscoitos. Meu pai gostava de mergulhar biscoitos no
vinho. Não herdei esse hábito.
Beberam e meu pai se levantou: hora de dormir.
“Os tios não querem ver a moça?”, perguntou Roberto.
“Quando é que a queres trazer?”, perguntou minha mãe.
Desde que Roberto chegara, já se havia passado hora e meia, hora e quarenta,
entre a conversa, jantar e cálice de vinho.
“Está aí fora…”
Meu pai e minha mãe espantaram-se juntos: “Aí fora… a noiva? E sabes que está a
chover?”.
“Está esperando… Não ia fazê-la entrar assim, sem permissão…”, confirmou
Roberto, para quem meu pai era um verdadeiro pai.
Minha mãe foi abrir a porta e pediu à tímida Anamaria que entrasse. Estendeu-lhe
a mão para cumprimentá-la. “Minha mão está molhada…”, escusou-se Anamaria,
tentando secá-la no vestido, também molhado.
Não era a mão apenas: o rosto, as pernas, o olhar. Ensopada! Hora e meia de pé,
na garoa. Eu, com meu guarda-chuva escondendo meu rosto, sentado na ponte, nem
havia percebido aquela moça apertando-se contra a parede, tentando escapar da
chuva.
Minha mãe serviu nova rodada de vinho do Porto e, enquanto bebiam, foi buscar
uma toalha. Quinze minutos depois a cerimônia estava encerrada, Anamaria enxuta
e Roberto foi levar a noiva até a porta de sua casa.
Levaram o meu guarda-chuva…
CAPÍTULO 5
O PARAQUEDAS DA DESAVENÇA
Meu guarda-chuva tinha história. Preto, como a unanimidade dos guarda-chuvas da
época, pois que só dessa cor se imaginavam. Foi revelação transcendental descobrir
que guarda-chuva podia ser colorido – rosa ou amarelo! – sem que perdesse sua
função primeira: guardar a seco seu usuário ou proteger moças contra bêbedos
abusados.
O meu estava descosturado nas pontas, o que diminuía sua área de proteção, com
a retração do pano.
Tinha história: quando se recordou, em 1942, o décimo aniversário do suicídio de
Santos Dumont, inventor do voo em máquina mais pesada que o ar, jornais
enalteceram os aviões e o dirigível Zeppelin flutuou, garboso, em cima de nossas
cabeças, voos rasantes de demonstração. “Ó minha tia, venha ver o Zeppelin…”,
gritava Linda, a prima.
Foi quando ouvi falar pela primeira vez em paraquedas e sua utilização na guerra:
exaltava-se a coragem dos combatentes que se lançavam na vertigem vazia, longe da
terra firme.
“Quando crescer, vou ser herói!”, jurei e, com seriedade, recebi meu juramento.
Incrédulo: “Será que serei?”.
Com frequência, eu dialogava comigo; uma parte de mim não acreditava no resto.
A parte rebelde me desafiou, abusada: “Quero prova!”. “Vai ter!”, respondi-me,
corajoso.
Não me dei por satisfeito com a resposta e discuti acalorado comigo, que
permanecia diante de mim, altaneiro: “Você não tem coragem de ser herói. Pra ser
herói é preciso valentia e você não é valente. Herói tem que ser heroico de verdade e
você nem sombra. É preciso enfrentar perigos, correr riscos e você não corre, não
enfrenta. Tem até medo do Zé Luiz quando ele luta luta romana…”.
“Zé Luiz tem o dobro da nossa idade, é mais forte. Espera eu crescer… Quebro a
cara dele, a tua, a minha, sei lá…”
“Quem mata seu próprio Chibuco não pode ser herói…”
“Matei não: comi! É muito diferente! Comi o Chibuco porque já estava morto
mesmo, mas não matei! Nunca faria isso!”, eu me defendia de mim.
“Comeu: pior! Onde já se viu herói comendo o seu melhor cabrito, digo, o melhor
amigo?”
Eu ficava furioso porque estava sendo tremendamente injusto comigo: sabia que
não tinha assassinado ninguém, menos ainda o Chibuco, o melhor de todos os
amigos, Chibucos ou não. Era impiedoso: foi briga feia. Quase cortamos relações, eu
e eu mesmo. Parte de mim, amadurecida, não permitiu que essa tragédia se
consumasse, mas, se dependesse da outra parte, insolente, nunca mais eu falaria
comigo!
Brigávamos tanto, eu e eu, que acontecia, vez por outra, que íamos embora ao
mesmo tempo, cada qual por uma porta: nós dois íamos embora… e me deixavam
sozinho. Juro que não era, não sou, jamais serei esquizofrênico: isso nunca! Deus me
livre da esquizofrenia – porta males e dores! Mas que ficava triste sozinho, quando os
dois mins me abandonavam, ficava. Pânico: sem eles, eu não era ninguém! A não ser
que eu fosse aquele Outro que ficava me olhando sofrendo, abandonado, ou ainda o
Outro que olhava esse Outro, incomodado pela presença de tantos outros Outros…
Era angustiante ficar, sem mim, a sós comigos. Foi aí que descobri que, talvez, o
talvez não existisse: existiria o sim e o não. Melhor: existiria o talvez que já seria quase
sim, e outro talvez que ainda não era não. O não e o sim fantasiados de talvezes. Por isso
a gente se enganava. Ou talvez só o talvez existisse: o Talvez que já não era Não e o
Talvez a caminho de ser Sim. Mas… talvez nem eu soubesse o que pensava. Talvez
um dos dois mins que tinham ido embora batendo a porta ao mesmo tempo, talvez
soubessem… Talvez nem eles. Ser ou não ser? Os dois! Bebo o mar! [1 ]
Resolvi acabar com a angústia e mostrar meu valor, exibir-me quem era e do que
seria capaz: amostra revelando heroísmos futuros.
“Vou provar, no fim da tarde, antes do jantar. Heroísmo deve ser praticado antes
de comer. Principalmente a sobremesa deve ser proibida antes de qualquer ato
heroico. Sobremesa e heroísmo não combinam, mesmo tendo açúcar, que dá
energia. Arroz e leite são fatais. Você e eu vamos ver. Vou provar que posso ser herói
de guerra mundial. Quando crescer, vou ajudar os Aliados a vencerem a guerra.
Quando eu entrar na guerra, cuidado comigo!”
“A guerra vai acabar antes de você crescer, por isso conta vantagem… Ainda por
cima, tua mãe não ia deixar você ir pra guerra. Tua mãe ia te agarrar pelo pescoço, te
trancava no quarto da empregada! Se o general quisesse te pegar, ela não deixava,
dava um tapa na cara do general com medalha e tudo: ela, sim, tem coragem; você,
não!”, dizia-me eu, contraditório.
Sempre briguei comigo – às vezes vivo às turras. Mesmo maduro, neste mesmo
instante escrevendo esta mesma história, brigo, discuto, disputo, agito, avento,
controverto: devo contar! – não devo! – quem sabe?
Uma parte de mim acha que essa contradição crônica tem seu lado bom; outra, vê
o mal. Sempre me olho fazendo, me escuto falando – nem sempre concordo com o
que falo ou faço, me seguro, meço, avalio, antes de seguir em frente. Quando
discordo, vou fundo, discordo da discordância. Complica, enriquece! Tenho inveja
das pessoas simples, que nunca duvidam de si, sempre de acordo consigo, fazendo
justo o que pensam, justificando o que fazem.
“Vou entrar na guerra antes que acabe e os Aliados vão vencer, comigo na
primeira linha!”, jurei patriotismos.
“Duvide-o-dó! Quero ver!”
“Vai ver: o guarda-chuva!”
“Tem o quê o guarda-chuva?”
“Vou te mostrar…” Já não sabia mais se me tratava de me ou te. “Vem comigo!”,
disse-me eu, e me segui, desconfiado de mim: nunca sei o que estou tramando, se
falo verdade ou minto, melhor cautela, já que de mim desconfio com razão. Eu não
me era confiável! Fui atrás de mim, precavido, me olhando de soslaio.
Guarda-chuva na mão, entrei na despensa, subi na cadeira, alcancei a janela e
pulei pro telhado. Com dificuldade porque, é claro, eu não me ajudava: vinha atrás
de mim fazendo troça, me censurando, acusando: “Vai fazer o quê? Espiar o banho
da Olímpia nua? Outra vez? Espera só o papai ficar sabendo…”.
“Fala baixo senão todo mundo vai ficar sabendo, não é só o papai, não!”
Eu me perseguia, sem dó: “É bom que todo mundo escute. A coitada tira a roupa
pensando que está sozinha e você com o seu olhão esbugalhado vendo o que ela
faz… olhando os peitinhos dela…”.
Eu sofria dividido, cada parte de mim se dividia e cada eu sobrante da divisão
subdividia-se a gosto: eu, sem-vergonha, caleidoscópico, tinha sido capaz de olhar a
nudez da Olímpia e tinha vergonha do feito; moralista, condenava o abuso; com
infantil curiosidade, queria mais: “Como é a Olímpia nua? Se não me contar, conto
ao papai…”.
Às vezes, pra mim, era insuportável viver comigo.
Vergonha! Eu não queria tocar nesse assunto comigo porque pensava que, se eu
descobrisse o que eu estava fazendo, se desse ouvidos ao que estava pensando, daí a
pouco todo mundo ia ficar sabendo. Boato corre célere. Ainda mais entre mim e
mim mesmo: sinapse instantânea! Eu, amedrontado, pedia-me que me calasse;
austero, continuava me acusando: quebrei a telha de propósito…
“Mentira: foi o vento!”
“Vento não se interessa por mulher nua, só folha de árvore: você, sim. Quebrou a
telha e quando a Olímpia vem tomar banho fica espiando pelo buraco e, depois do
banho, põe o caco no lugar. Se o papai ficar sabendo…”
Como eu estava curioso pra ver o que é que eu tinha planejado fazer como prova
de heroísmo, calei a boca e fui, pé ante pé, avançando pela cornija, morrendo de
medo de cair, fui me olhando, e essa parte de mim era tão má, eu era tão mau
comigo, que quase me empurrei pra quebrar uma perna ou, na melhor das piores
hipóteses, três costelas e a clavícula.
Nunca confessei, vai agora: eu tinha uma inveja danada do meu irmão porque ele
tinha quebrado a clavícula e eu, nunca. Clavícula quebrada dava um status danado
na infância: só pessoas de coragem acima de qualquer suspeita tinham o direito de
quebrar a clavícula e enfaixar o tórax. Prestígio. Eu, pobre-diabo, nunca quebrei nem
o dedo do pé… [2 ]
Para evitar cometer heroísmo do qual me pudesse vangloriar, eu estava disposto a
quebrar a perna. Não a minha própria, mas a daquele outro eu, porque agora queria
mostrar que podia ser herói. Ele queria ser herói, quando quem estava falando era o
eu do lado de cá – e eu queria impedir que eu fizesse um ato heroico, quando o eu que
falava era o outro: não poderia suportar ser testemunha do meu próprio heroísmo.
“Eu sou capaz!”, desafiei, abri o guarda-chuva e só os arames se abriram, sem o
pano, rasgado… Sem perceber o desastre, corajoso, gritei gritos de Tarzan e, sem
cipó, dei o salto. Haja heroísmo.
Caindo vertiginoso, o chão se aproximando demasiado rápido. Dei um grito
assustado e destronquei o tornozelo. O que mais doeu foi o medo, mais que medo, o
sarcasmo, o meu; o que menos doeu foi a dor, doída. Uma dor doida, outra doída.
Fiquei minutos me ridicularizando, chorando de dor, rindo do choro e chorando
do riso, deitado no chão gramado, enquanto eu ficava em cima da janela, mostrando
a língua, arreganhando dentes.
“Na minha idade ninguém pode ser herói! Ainda sou muito menino!”, não sei
qual dos meus dois mins disse a frase, sei que servia como defesa e acusação. Foi a
única vez que falamos em coro, eu e eu.
Já deitado, depois de minha mãe ralhar e fazer curativos, depois da comida na
cama, trocei de mim:
“Está vendo? Quis me fazer de mocinho e, agora, veja só quem ele sou: menino
bobo, a mãe faz curativo, come canja… Qualquer feridinha no pé e tome canja de
galinha…”
Eu me respondi indignado: “Eu cale essa boca! Tem herói que morre, não tem?
Morrer não é heroísmo: é acidente. Salvar uma vida, sim, é heroísmo! Sou mais herói
que herói de verdade: pulei e nem morri! Salvei uma vida – a minha! Isso, sim, é ser
heroico. Me deixa em paz…”.
Nunca segui meu conselho, nem atendi ao meu pedido: nunca me deixei em paz.
Naquela noite dormi mesmo comigo ao meu lado, me fazendo troça. É difícil dormir
ao lado de quem zomba. Difícil zombar de quem dorme.
Sem zombaria, tinha medo do silêncio. Por isso falava tanto, me discutia,
contradizia. Pergunto: será que eu não tinha certezas, ou tinha duas certezas que
pelejavam? Sei o que digo?
FRANCISCO DE SÁ DE MIRANDA, POETA PORTUGUÊS
Essa dicotomia, eu e eu, eu e mim, me persegue desde que me conheço. Não consigo
ser um só. Na alegria fico triste e, na tristeza, me alegro. Na coragem tenho medo e o
medo me dá coragem. Quando amo, duvido: amo a dúvida. Duvido do amor. Sei o
que digo e discordo. Pronuncio a palavra que não quero ouvir. Ouço a que não foi
dita.
Um dia, décadas mais tarde, descobri Sá de Miranda, poeta português,
quinhentista. Tive comoção, estupor e espanto, quando li:
Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo,
nem posso fugir de mim…
1 Quando por acaso acontecia, vez por outra, que eu ficasse de acordo comigo, só pelo gosto da discussão,
discutia até com Deus. Mas não gostava: quando perdia, Ele ficava furioso, de cara amarrada… Perigosa
desavença, desafiar poderosos.
2 Além de ter quebrado a clavícula e exacerbando minha inveja, meu irmão volta e meia voltava pra casa ferido
de futebol; a ferida se infectava e produzia uma chaga. Numa das farmácias da Penha – não a nossa habitual –
onde os remédios eram aviados, costumava-se obedecer à receita do médico na parte de cima do pote da pomada
– quando usava essa parte, a ferida do meu irmão quase se fechava; quando, inocentemente, usava-se a parte de
baixo, onde o farmacêutico punha substâncias estranhas, a ferida reabria. Já naquele tempo era perigoso
consumir remédios made in Brazil…
CAPÍTULO 6
VENDO O MUNDO PASSAR DE CÁ PRA CÁ… DE LÁ PRA LÁ…
O mundo passava de lá pra lá… Eu, espectador, lado de cá, sentado na ponte do
casarão que ligava o jardim à rua, por cima da vala, rã coaxando, cheiro de lodo
subindo.
Vez por outra, eu entrava em cena. Carnaval e quermesses: dava meus pulinhos,
batucando, comendo cachorro-quente com cebola e patriótico pimentão verde-
amarelo.
O povo pulava nos “blocos sujos”: fantasias maltrapilhas, lixo limpo, reciclado.
Homens vestiam-se de mulher, imitavam o farmacêutico e o Pedro, pessoas dúbias.
Quanto mais feios, mais divertidos; mais requebrentos, mais engraçados. As
mulheres, não: quanto mais belas!
De porta em porta, pediam moedas miúdas, comida, cachaça. Quem não dava
eram os revoltados donos de gatos roubados, metamorfoseados em cuíca, pandeiro e
tamborim: couro do gato – dizem – tem mais sonoridade por causa dos miados. Não
vejo relação – miado não se impregna no couro, nem se dissolve na pele!
Sabedoria popular: Vox populi, vox Dei! Acho difícil: com tantas preocupações
cosmológicas e cosmogônicas, Deus tem lá tempo pra se preocupar com gatos?!
Façam quantos tamborins e cuícas quiserem com pele de felino descuidado: Deus
tem problemas mais nebulosos e galácticos… Gatos são ondulantemente felinos:
neles, Deus não habita. Deus não é dengoso: severo.
Antes do Carnaval, a gataiada ficava trancada, perplexa e nervosa. Gato que
pulasse janela assinava sua sentença de morte. Impossível escapar aos pré-
carnavalescos ensandecidos. Mesmo no resto do ano, os bichanos corriam razoável
perigo de vida porque podiam ser devorados a qualquer momento, embora a fome
não fosse tão popular como hoje em dia. No forno da padaria, fregueses assavam
cabritos, coelhos e frangos depois da fornada da tarde: cheguei a assar muita lebre
que miava… [1 ]
Comprávamos lança-perfume (éter, naquela época, podia: dava só um friozinho
gelado na cabeça, tonturazinha inocente!) e jogávamos o jato perfumado nas pernas
das mocinhas vestidas de ciganas, babushkas ou pijamas russos, fantasias baratas. As
moças reclamavam – mais reclamavam, mais nos divertíamos, elas e nós:
sensualidade infantil. Tome frio jato de lança-perfume gelado nas pernas quentes,
suadas: mais joelhos ao léu, maior o êxtase. Eu adorava jogar perfume em pernas
bem-amadas.
Alguns rapazes perfumavam os seios das moças e os lenços: cheiravam, uns e
outros. Hoje, na Penha, nem pensar. Cocaína, sim, vá lá, vende-se em qualquer
lugar… mas lança-perfume? Proibidíssimo!
PADRE RICARDO E DALVINHA
Jogava-se perfume até diante do padre Ricardo, recém-saído do seminário, único
morador do bairro que tinha olhos azuis e cabelo querendo cachear, aloirado, sueco,
alemão, dinamarquês.
Eram dois os padres conspícuos da Penha: o velho monsenhor Rocha, rochedo de
virtudes, subia em carro elétrico, saltava no meio do caminho, pedalava três degraus
agarrado na bengala, piedoso sacrifício. Voltava ao carro e subia ao topo: pernas
tremelicando. Ficava a constância da tentativa, do esforço: três degraus, mais raro,
cinco ou sete.
Contavam-se lendas sobre o padre Rocha: gostava de ficar trancafiado solitário
dentro da igreja, vagando na noite escolhida segundo a lua, jejuando. Nem água
benta bebia, nem comia sanduíche de milanesa, embora cruéis a sede e a fome. Fiéis
fielmente seguiam o clérigo, clericando a sós. Amedrontados ouvidos, colados às
portas trancadas, ouviam vozes: Rocha não era ventríloquo: ipso facto, tinha alguém
na sua vetusta companhia! Ah, meu Deus! Que disse eu? Seria Deus???
Uma noite, três ladrões mal-encarados que intencionavam furtar a imagem da
Santa – folheada a ouro, pintada de esmeralda, carvões diamantinos nos olhos –
arrombaram a igreja e viram monsenhor Rocha conversando tranquilo com uma Luz
Ofuscante.
Só isso: conversava, como se fosse normal, com a Luz Ofuscante, como se Luzes
Ofuscantes fossem coisa encontradiça em igrejas de bairro pobre. Trocavam ideias,
impressões, o padre e a Luz, dá cá toma lá, ele dando tapinhas nas costas da Luz
Ofuscante, costas largas e rijas.
Foi o que juraram. Juraram que viram. Em cartório, com selos e carimbos!
Segundo eles, monsenhor Rocha e a Luz Ofuscante eram excelentes amigos de longa
data, camaradas apesar da diferença das idades. A Luz era bem mais velha que o
velhinho, idosíssima, porém bem conservada, robusta, Luz bailarina.
A Luz Ofuscante – segundo relatos molhados de suor e lágrimas, sonorizados de
estrondosos soluços – dava conselhos paternos, coisas de bisavô com tempo e lazer.
O padre ouvia, obediente filho, respeitoso, mas com personalidade e decisão –
mesmo sendo a Luz o Pai do padre, tinha que ouvir divergências filiais. Ninguém
sabe tudo! A voz do padre, rouca, resfriada; a da Luz, grossa e rija, doce e meiga, voz
sorridente. Deus, que pode até sorrir, não gargalha. Desmoralizar-se-ia.
Os três ladrões rolaram penha abaixo, rua acima, recheados de medo e
arrependimento, sem a santa imagem, que escapou ilesa; ofegantes, foram se
entregar mãos ao alto ao delegado incréu, a quem confessaram a intenção gatuna.
Dizem que fizeram concurso pra polícia, ganharam prêmios com louvor, e
juraram, pés juntos, nunca mais roubar santas folheadas a ouro, mesmo
esmeraldinas. Não se sabe se cumpriram a promessa, mas ficaram ricos. Um dia, a
Santa apareceu arranhada a canivete, sem o folheado aurífero. Quem terá sido?
Nunca perguntei, discreto desconfiado.
Diante do monsenhor tudo era bento e sacro; o mais trivial “Deus te abençoe”
revestia-se de solenidade litúrgica. Diante do jovem Ricardo, rapazes jogavam lança-
perfume, sem pejo: o padre sorria, abençoando, sem saber por que sorria e, menos
ainda, a quem abençoava. Inocência…
Ricardo sorria sem descanso, no jardim e na rua, cumprimentando senhoras
enjaneladas, tapinhas nas bundinhas das crianças travessas que não gostavam nada
dessa carícia. Seus lábios devotos murmuravam esvoaçantes ave-marias azuladas.
Como se sabe, Ave-Maria é azul, Pai-Nosso verde, Salve-Rainha rosa e o Credo, lógico,
violeta fúlgido. Isso todo mundo sabe, não carece explicar.
Ricardo, solitário atleta sorridente, costumava exercitar o corpo, além da alma.
Fazia os movimentos de capoeira e boxe, sozinho, sem dar combate – ou como se
estivesse combatendo diabinho gordo, destreinado; fazia elegantes movimentos de
basquete e vôlei sem companheiros a quem dar passes, sem bola! Encaçapava cestas
invisíveis e ganhava divididas. Sorrindo, vencedor.
Ricardo só ficava sério na missa, mais sério no sermão, quando falava dos
múltiplos padecimentos de santos e apóstolos, priscas eras do cristianismo
perseguido. Sorrir, tratando-se de tema tão delicado e atual, seria exagero. Ricardo
descrevia torturas milenares como se estivesse falando do momento.
Tinha muito doidão de lança-perfume na minha infância. Doidões inocentes: não
sabiam que estavam pecando… Ê, tempos bons, pecados inconscientes, sem culpa…
Pecados abençoados.
“A bênção, padre!” “Deus te abençoe, meus filhos!”, respondia, misturando
singulares e plurais, em bailes gramaticais: “Valha-te Deus, meninada!”. Valia tudo:
importante a fé!
Quiseram ensinar Ricardo a lançar perfume – juro que o bom prelado resistiu!
Acabaram agarrando o moço, de brincadeira, fazendo o padre apertar a
alavanquinha com o dedo – juro que contra a vontade, foram os doidões que o
forçaram! O jato acertou as pernas da Dalvinha – juro que por acaso!
Entre as moças que mais se embraveciam com lança-perfumes – e mais
secretamente gozavam! – era Dalvinha a primeira, retumbante menina-moça de
quinze anos, filha de família de crentes discretos – seguidores de seitas mais ou
menos protestantes, com pitada de religiosidade mais ou menos autóctone e danças
mais ou menos africanas. Uma mistura de muitos mais ou poucos menos. Contudo,
crentes sinceros, mais religiosos que muito carola ostensivo.
Sob pretexto de ainda ser criança, usava saia curta; já mulher, mostrava as coxas.
Dalvinha, a preferida de nove entre cada dez jatos etéreos.
Justamente Dalvinha foi a vítima do padre. A menina-moça teve ataque
aparentado à apoplexia, sem espuma na boca mas com direito a tombo e
esperneamentos! Susto em todo o bairro, “chama meu pai, minha mãe!”, “chama o
médico!”, “ambulância!”, “polícia”, “advogado”, “chama o farmacêutico”, “chama o
Pedro, que entende de estertores!”.
Dalvinha, depois de meia hora esperneando em saia justa, com inevitáveis
consequências visuais, calmou-se, sorrindo bem-aventurada para o aterrorizado
mensageiro de Deus, ajoelhado a rezar. A moça-menina contou pras amigas que,
naquele momento, sentindo o jato frio prolongando a mão do padre, teve uma visão
do Paraíso com direito a Pai, Filho, Espírito Santo, Virgem Maria e uma multidão
imensa de anjos em regozijo e anjas de saia curta, dançarinas. Anjarada estridente,
aplauditiva!
Olhava o padre e via em dobro, como bêbeda! Trêbeda!
Crianças, achávamos que foi sem querer. Mães de moças viam propósito malsão:
em solitário trágico segundo, o Diabo, em carne, osso, botas e tridente, teria entrado
no corpo do padre, que rezava com sofreguidão de seminarista.
As mães queriam puni-lo. Como? Impossível contar o jovem desmando ao velho
padre, porque certeza certa, irreversível, certeza sem sabe-se-lás nem poréns, essa
não havia. Mesmo vero, seria temeridade contar ao Rocha, entretido em
conversações ontológicas com a Luz Ofuscante: perigo de enfarte, idade avançada.
Resolveram-se pelo silêncio: não diriam nada a ninguém, nem sequer aos maridos –
as ainda não viúvas – nem às amigas – as que já o eram.
Silêncio, segredo. Porém, porém… Haja poréns!
No confessionário, o padrezinho teria que ouvir palmatórias morais. Desde esse
dia e durante o tempo em que durou a fogosa indignação materna, o padre Ricardo
ouviu, não singelas poucas e boas, mas vigorosas muitas e ótimas! Com medo e
pânico, o ex-seminarista, padre fresco, entrava no confessionário e tanto sofria que
quase se confessou (ou denunciou), ele mesmo, ao padre Rocha. Resolveu-se pelo
não: seu peito era sem mácula, embora ao dedo desastrado sobrasse a culpa pelo
gélido disparo. Dedo e doidões!
Naquele confessionário – pela primeira vez na história do cristianismo, desde os
tempos heroicos de Pedro, a Pedra! – eram os pecados do padre que ali se
registravam.
“Padre, o senhor não tem vergonha na cara?” “Não renunciou à coisa vil, não
jurou castidade, não prometeu nem pensar nudez!?” “O que diria o velho Rocha
piedoso? O Santo Papa Misericordioso?” “Padre, o senhor pensa o quê quando olha
pra mim? Olha meus olhos, dentro de mim, bem fundo, vá fundo nos meus olhos!”
“Padre, tome tento! Não pense coisas do corpo! Corpo de padre não grita! Padre não
esperneia! Não é como a gente! Ah, padre… padrezinho bonito…”
Entre as mães, quem mais deslumbrava no rigor castiço contra Ricardo era dona
Rosa de Cascadura. Gorda da cintura pra cima, magra barriga e pernas finas de flauta
doce cintura abaixo, vivia dizendo “Isso é um calvário!” em quaisquer circunstâncias.
Se subia os 365 degraus da igreja, suspirava a cada vinte ou trinta:
“Minha Divina Nossa Senhora, é degrau demais: isto é um calvário.”
Se entrava no bonde, apinhado de pingente na hora do aperto, se ficava entalada
entre dois bancos, murmurava:
“Meu divino são José, aqui me tens ao teu pé: isto é um calvário!”
Se voltava pra casa e chovia torrentes, não hesitava:
“Santa Bárbara bendita, que no céu estás escrita com papel e água benta, nos
livrai desta tormenta… isto é um calvário!”
Dona Rosa de Cascadura resolveu tomar satisfações com Ricardo, mesmo sendo
filha alheia e não sua. Melhor: mantinha o sangue-frio.
“Padre, o que o senhor anda matutando? Confessa neste silêncio, comigo sozinha.
Sei o que o senhor quer… Você é homem, precisa, tanto quanto nós, mulheres;
dizem até que mais, não sei, homem não sou, mulher desde menina… Menino, não
busque o desejado em criaturas indefesas… Ainda se o perfume fosse nas pernas da
mãe da Dalvinha, carente, ou nas pernas de mães que lá estavam desejosas, ou em
mim, por exemplo, padre, em mim, nas minhas pernas… Fosse minha coxa,
entenderia… em mim, vá lá, deixa estar… Mas a menina é virgem de quatro
costados… Pense bem, padre… Virgindade é perigo… sedução, luxúria, crime…
purgatório, inferno… tridentes, diabos…”
“Pelo amor de Deus, diga logo!!!”, bradava o desesperado, gritando em surdina,
esfregando mãos e torcendo pés. “Diga logo a minha penitência: quero pagar até os
pecados que não cometi!!! Como o Cristo, que pagou pelo que não fez: por nós!
Quero pagar por vocês!”
“Por ora, vá rezando cem ave-marias…”, sentenciou, severa. Achou pouco, desejou
maior punição: “… e mil pai-nossos! Deus há de perdoá-lo… Reze com fé e, depois,
venha me ver…”
O padre se revoltou: “Vou pagar a penitência só porque rezar é minha ginástica
espiritual! Mas… mil pai-nossos é… demasiada devoção. Não mereço essa represália.
Isso é um calvário, sim senhora, dona Rosa de Cascadura! É calvário e dos compridos,
muitos passos e quedas!” – e saiu da nave estrebuchando os primeiros versos da
primeira ave-maria ruborizado, vermelho, mordendo a surpresa Mãe de Deus com
seus lábios injustiçados.
No confessionário, suas orelhas ficavam mais vermelhas que brasas de lenha.
Com o tempo, brasas esfriam, cinzentas, a fúria adormece e os comentários
silenciam. Ricardo nunca mais olhou Dalvinha, pelo menos na nossa frente.
Dalvinha, sim, cravava olhares punhalescos no atlético religioso. Crianças, tínhamos
vontade de chorar sem saber por quê. Zeca, César e eu chorávamos na ponte do
casarão, olhando Dalvinha que olhava o vento apressado – Dalvinha não olhava
ninguém: via o vento. Dalvinha, crescida demais pra menina, fresca e verde pra
mulher…
Zeca, César ou eu, um dos três disse um dia, lamentoso, um só ou juntos nós três:
“Eu queria a Dalvinha só pra mim…”.
Os outros dois concordaram, urgentes: “Eu também…”. Estávamos de acordo. “Só
pra nós, três Dalvinhas…”
Um dia, Dalvinha apareceu de saia comprida: ficou decretado – era mulher.
Converteu-se de coração ao catolicismo. Passou a frequentar a igreja e não perdia
missa do padre Ricardo. Comungava – ah!, isso, sim, não perdia uma só comunhão,
não deixava escapar uma só hóstia que chupava como sorvete, uma penitência ou
absolvição. Passou a ser a mais comungada de todas as fiéis da zona da Leopoldina.
“Vá comungar assim no inferno!”, blasfemava o coroinha ateu e ciumento.
Quando esquecia um pecado – obcecada pelas confissões! –, subia os degraus já
descidos, ofegando pelas orelhas, encontrava o padre no pátio e, ambos de pé,
juntava um P.S. à confissão regimental. Nem entre os torcedores de Corinthians e
Flamengo encontrava-se tamanha devoção.
Dalvinha… Perdemos as esperanças… Deus seja contigo.
FUTEBOL, CACHORRO E CARROCINHA
Fora do carnaval, eu jogava futebol, no ataque, e adorava marcar gols – com os pés,
joelhos, bunda, barriga, calcanhar, de letra, de bico, o que fosse, só cabeçadas não
dava, nem por decreto-lei: talvez, por isso, não tenha feito carreira como goleador
emeritus. A bola pedia pelo amor de Deus que eu lhe desse um peteleco com a cabeça,
eu encolhia o pescoço e não cabeceava. Nunca! Perdi gols incríveis, gols feitos,
embaixo da trave, em cima da risca, na marca do pênalti. Passei vergonhas, ouvi
insultos, levei empurrões, desaforos. Serena, minha cabeça, galharda e altiva, evitava
os lances altos. Futebol é com os pés! Foot = pé! Não existe headball. Se existisse, eu
não jogaria: execro a ideia. Cabeça, mesmo ruim, foi feita para usos menos
solavancados.
Jogando bola percebi a relação entre o poder econômico e o respeito que inspira:
o dono da bola marcava mais gols que os outros meninos. Em sinal de respeito, ao
redor do dono fazia-se vazio. Goleiros faziam-se vagarosos quando a bola era chutada
pelo pé proprietário.
Comecei a comprar bolas com minha mesada… e comecei a brilhar nos quintais
da Penha Circular.
No caminho para a Escola Santa Teresa, eu irradiava mentalmente jogos
fantásticos nos quais assumia a meia direita do Fluminense F.C., que sempre ganhava
por goleadas homéricas. Nossa linha de ataque, irresistível, demolidora, era formada
por Pedro Amorim, Augusto Pinto Boal (estudante, filho de José Augusto Boal,
comerciante, e de dona Albertina Pinto Boal, prendas domésticas), Rongo, Tim e
Carreiro. Eu tinha orgulho de nomes e sobrenomes… e mais houvesse! Nas minhas
irradiações, vencíamos sempre – eu, é claro, dono da bola, digo, do microfone, digo,
da narrativa, marcava belos gols olímpicos – sempre com os pés! – e dava
maravilhosos passes com os quais meus colegas tinham apenas o trabalho de
empurrar a bola para as redes sob as traves desguarnecidas – eu tinha driblado até o
goleiro.
Hoje, peço tardias desculpas ao grande meia-direita Romeu por tê-lo substituído
nas minhas locuções radiofônicas. Compreenda, Romeu, eu tinha que entrar no
lugar de alguém, não podíamos jogar com doze feras: covardia.
Mais que futebol, antes dos onze anos, ainda no casarão, o que eu fazia com gosto
era sentar na ponte, fim da tarde, gente passando, cavalos pastando, burros da
prefeitura carregando lixo; poucos animais, gente demais. Imaginava vidas,
inventava. Às quintas-feiras, passava a carrocinha laçando cachorro com laço de aço,
vira-latas para o sacrifício, amontoados na carroceria gradeada – cães sadios ao lado
de leprosos e sarnentos, cães de porte ao lado de miniaturas bem penteadas. A
cachorrada, solta, brigava; na carrocinha, tornava-se amiga e solidária diante do
coletivo destino.
A morte esteve por demais presente na minha infância. Flores, coroas. Carros
fúnebres engalanados, sóbrios rabecões. Vi punhais cravados em carne de mulher, vi
sangue, ouvi tiros. Vi gente cortada a faca: a gorda sra. Mariana cortada pelo amante,
no peito e no braço…
Crianças donas de cães, distraídas na hora do laço, davam-se conta da perda e
corriam uivando, ganindo atrás da carrocinha, implorando de volta seus amigos
caninos, jurando tomar boa conta, doravante. Os laçadores nem olhavam: não
tinham salário, ganhavam por bicho laçado. Corações de pedra! As crianças voltavam
pra casa aos berros, e mais berros haveria depois da paterna pancadaria…
Quando pais, comovidos, iam ao depósito procurar os enjaulados, se ainda
estivessem vivos no princípio da noite, teriam que resgatá-los a bom preço, depois da
vacina – nem sempre os pais dispunham dessas quantias e voltavam com o relato da
morte estoica e heroica.
Dia de carrocinha era dia de lágrima infantil. O choro convulso, esparramado,
incomodava Mateus, que dizia, sem avaliar a crueldade: “Deviam inventar
carrocinha de crianças…”.
O SUBTENENTE E A AEROMOÇA
A professora de aritmética trouxe o irmão mais velho à escola. Fardado: subtenente
do Exército. Dona Edite contou o esforço dos pais em realizar os sonhos militares do
filho, cantou seus sucessos no quartel de cavalaria – já que não tinha tido a
felicidade de ser sorteado para defender a pátria na Itália, cuidava da bosta dos
cavalos! Elogiou sua respeitabilidade e pediu ao irmão que dissesse qualquer
bobagem a título de incentivo, que nos ajudasse a planejar nosso futuro – talvez
algum de nós se decidisse a seguir sua carreira militar cavalariça.
O subtenente tomou a palavra, misterioso e grave, olhando o teto:
“A cada trinta anos, uma guerra é inevitável…” Era o Destino Inescrutável que o
dizia, a Quinta sinfonia de Beethoven em première de gala, com mais pompa que
periquito de realejo. Falava sem olhar nossa cara. O subtenente, em nenhum
momento, olhou ninguém – soberba castrense.
Nós, trêmulos com notícias do Exército alemão cercando Stalingrado – não
entendíamos de política nem sabíamos onde ficava Stalingrado ou o monte Cassino,
nem Auschwitz, Sibéria, nem gulags! –, mais assustados ficamos diante da
autoridade que nos vaticinava blitzkriegs, guerras campais. Eu tinha certeza de que
não tinha a mínima vocação para D’Artagnan! Farda, nem pensar!
O subtenente continuou sem que nenhum de nós entendesse um ponto e vírgula
– repetia o que aprendera de cor com algum tenente ou capitão que,
hierarquicamente, estaria repetindo um coronel ou general! Declarou solene que o
Brasil, desgraçadamente, ainda não tinha “autonomia” para “engolir” nenhum
grande país inteiro – só “franjas” na fronteira norte da Argentina ou sul da Colômbia
e Venezuela, do leste do Peru, Equador e Bolívia. Apenas o Uruguai e o Paraguai o
Brasil poderia “engolir” inteiros!!! Sem falar nas indigestas Guianas…
Valha-me Deus, que apetite!!!
Da América do Sul só escapava da engolição do faminto subtenente o Chile,
escondido envergonhado atrás da cordilheira! Eu ficava imaginando que raio de
“autonomia” era essa de que tanto carecíamos para “engolir” países e “franjas”.
Ao invés de enriquecer nosso vocabulário, a estapafúrdia “autonomia” só veio
empobrecê-lo. Durante algum tempo, dizíamos “autonomia” para designar qualquer
coisa, como ainda hoje dizemos coisa pra coisa qualquer e os franceses machin pra
qualquer bidule.
“Professora, a senhora me dá ‘autonomia’ pra ir no banheiro fazer pipi? Estou
apertado!”
“Professora, eu não tenho ‘autonomia’ pra entender essa multiplicação…”
“Ah, se eu tivesse ‘autonomia’ pra namorar a Dalvinha…”
“Olha aqui, César e Zeca, hoje acabou a minha ‘autonomia’ pra aturar vocês: vão
embora pra casa e eu vou pra cama…”
Alguns meninos, imaginando-se homens, sonhavam amanhecer subtenentes,
cheios de variadas ‘autonomias’: não tenentes inteiros, isso nunca, mas “subs” como
o irmão de dona Edite, que não fora sorteado pra defender a pátria e fazia defesa
civil limpando bosta e fazendo enfermagem, trabalho digno das moças, mas, enfim,
subtenente era pau pra toda obra: se não combatia agora, bem poderia esperar trinta
anos como Jacó servindo Labão, pai de Raquel, serrana bela, que não servia ao pai,
servia a ela… como nos ensinava Camões nos lábios de dona Neuma.
Pra não ficar devendo, dona Neuma, professora de poesia e português, trouxe a
irmã de rouge e batom, que tinha sido reprovada para aeromoça da aviação civil.
Ninguém sabia ao certo o que era – só se sabia que era preciso voar, Japão, China e
Tailândia, países que ficavam do outro lado do globo inflável que tínhamos na sala
de aula!
A moça mostrou-se rosada, vestida de saia escocesa curta, estampada, grampo na
coxa. Fora reprovada mas, enquanto aguardava o resultado do exame, sonhara com
Paris, Nova York, Londres, oceanos, mares e montanhas. E nós ali, na Penha,
cheirando o Cortume Carioca, quando batia o vento sudeste…
A reprovada de lábios carmesins serviu de exemplo às meninas: um dia seriam
todas reprovadas – sonho belo! – para o invejável posto de aeromoça da aviação civil!
Conchinchina. Tibete – não custava sonhar – quem sabe, Dalai Lama?
Durante semanas, minha classe se compunha de meninos subtenentes,
limpadores de bosta, e meninas aeromoças, reprovadas para a aviação civil. Nossos
paradigmas estariam orgulhosos de nós se nos vissem – nunca mais voltaram ao
Santa Teresa. Na nossa fantasia, casaram-se e tiveram muitos subtenentinhos
desclassificados e aeroviárias reprovadas.
OS HONRADOS LADRÕES DE GALINHAS DE ANTIGAMENTE
Eu era a primeira pessoa que as visitas encontravam, quando visitavam meus pais.
Na ponte, minha sala de visitas, eu também recebia amigos.
“Viram ontem o ladrão de galinhas? Quase mataram…”, dizia César.
“Tem que matar!”, apoiava Zeca, habituado às porradas.
“Ladrão de galinhas é pai de família como todo mundo…”, eu discordava.
Meu argumento simples: ninguém se arrisca a roubar galinhas por vocação.
Roubar galinhas não era crime, não merecia a morte.
Uma das lembranças mais intensas que afago da minha infância e adolescência é
a dos ladrões de galinha – homens que, literalmente, roubavam galinhas. Quando
apanhados em flagrante, plena noite, eram linchados, humilhados, deportados do
bairro pela vergonha.
Com a distância do tempo e a madurez da idade! – pressentia então e sei agora –,
vejo que aqueles homens corajosos eram ultrajantemente injustiçados. O verdadeiro
ladrão de galinhas era honrado pai de família que as vicissitudes da economia de
mercado deixavam sem trabalho ou minguados mil-réis para o sustento da família.
Pedir esmolas seria aviltante confissão de fracasso. Com galinha se faz caldo e
canja. O honrado homem dispunha-se a correr o risco: a ladroagem galinácea era
deveras arriscada; arte, ciência, guerrilha solitária.
Os perigos enfrentados pelos ladrões noturnos eram variados: saltar muro ou
cerca, atravessar o quintal evitando ratoeiras, esgueirar-se na escuridão para dentro
do galinheiro, silenciosos, e – prendendo a respiração! – executar o golpe preciso que
só os mais hábeis realizavam com maestria: agarrar a galinha pelo pescoço, com tal
rapidez que a surpresa inviabilizava a autodefesa da ave, sem o menor ruído para
não acordar companheiras da infausta vítima, pois o tremendo cacarejar e o ladrar
dos cães, o berro dos cabritos e o grunhir dos porcos despertariam proprietários e
criados, que acudiriam vestidos com pijamas ou cuecas, e a vida do heroico ladrão
correria sério risco.
Era roubo, mas não desprovido de certo grau de heroísmo e astúcia, na escolha da
hora certa, do galinheiro vulnerável e da galinha justa.
Hoje já não se rouba como antigamente… As galinhas já se compram mortas e
nuas, congeladas, empilhadas, anônimas.
Essa arte desapareceu como estão desaparecendo os afiadores de facas que ainda
tocam “Asa branca” com seus instrumentos cortantes e perfurantes, os peixeiros
com suas cestas e pregões, carvoeiros enegrecidos que alimentavam nossos fogões de
ferro, realejos com periquitos desvendando o futuro, bicando envelopes.
As ciganas – ah!, que saudades das belas ciganas escuras que liam nossas mãos,
sempre otimistas: riqueza para toda a vida, vida longa e filhos… que seriam felizes
em suas longas e ricas vidas, cheias de filhos…
Hoje, alguns apátridas continuam a tradição, roubando galinhas – agora, a dos
ovos de ouro: o país, o povo, o Tesouro.
AS PIRÂMIDES DE FERRO
Zeca taxativo: matou galinha, mata o ladrão. César pensava meio-termo: surra
bastava. Como as que Zeca levava do pai. Aí a conversa buscava outro rumo pra não
tocar em coisas delicadas: pancadarias, porradas…
“O pai de vocês nunca bateu nos filhos?”, insistia Zeca querendo absolver o
próprio. “Todo mundo bate nos filhos, pai é pra isso… pra desentortar o entortado.
Quando eu for pai… me segura! Meu filho vai sofrer comigo!”
César confessava surras especiais, quando a traquinagem merecia castigo
corporal: quebrar um copo, por exemplo, deixar comida no prato, pisar nas plantas
ou no cachorro, ser reprovado na escola: coisas sérias. Por ter sujado a roupa jogando
bola, como o Zeca, isso nunca!
E eu? Só uma vez apanhei do meu pai quando, em legítima defesa, joguei uma
cadeira na cabeça do meu irmão… Meu pai pediu desculpas… meu irmão também…
Tinha orgulho de nunca ter apanhado – só essa vez. Minha mãe, vez por outra, me
dava cascudos – mas tapa de mãe a gente nunca sabe se é reprimenda ou carinho. Pai
é coisa séria.
No portão, comentávamos aconteceres. Durante a Segunda Guerra Mundial, o
Brasil tinha um projeto nacional: a vitória Aliada. O povo trabalhava contente –
naquele tempo brasileiro ria, mesmo sem receber cachê da televisão!
Lembro das latas que se juntavam em terrenos baldios: as pirâmides de ferro que
– diziam os jornais, sem explicações – eram necessárias ao esforço de guerra.
Ajudariam a Inglaterra a derrotar os nazistas.
“Pra que a Inglaterra quer tanta lata?!?”, eu me perguntava espantado, olhando o
mapa. “Será que naquela ilha tão pequena cabe tanta pirâmide? Não vai afundar?”
Éramos as crianças que mais erguiam pirâmides de latas de sardinhas portuguesas
e de pêssegos em calda argentinos, panelas furadas, talheres retorcidos: estávamos
convencidos de que, com isso, ganharíamos a guerra e a Inglaterra seria salva. Nós
salvaríamos a Inglaterra e a rainha nos diria muito obrigado, beijando nossas mãos
infantis! Cheguei a amassar uma panela ainda com feijão preto – minha mãe fez que
não viu! – só pra poder levá-la pra pirâmide e completar minha cota diária. Éramos
soldados e cada um lutava com as armas de que dispunha. Minha arma, nesse dia, foi
a panela!
Pra que serviriam as latas?, pensava com meus curiosos botões. Os botões não
respondiam, mas a satisfação de pelejar amontoando latas era maior que a alegria de
outras competições, quando moleques da minha rua se orgulhavam de caçar – ou
será pescar? – rãs e sapos mais robustos que os dos moleques das ruas transversais,
em suas magras valas pluviais, afluentes da nossa.
A SALA DE VISITAS
Pela minha “sala de visitas” passavam figuras periódicas: o mata-mosquitos vinha
trazer creolina para privadas e fossas – eu detestava o cheiro. O Rio de Janeiro ainda
não se havia livrado de algumas doenças endêmicas. Tinha-se que aguentar a
creolina, cheiro insuportável. Melhor cheirar creolina do que pegar febre amarela –
quem tinha febre amarela ficava vermelho e verde: eu não entendia o baile das cores
hospitalares.
O cheiro do flit era pior: dias de calor, minha mãe, com uma bomba de flit
espargia inseticida nos quartos, trancava portas para que moscas, baratas, vaga-
lumes e seres assemelhados morressem envenenados; antes de dormir, abríamos a
janela para que entrasse brisa de ar puro… além de mosquitos frescos e famintos…
“Teu pai não vai me dar um dinheiro?!”, perguntava o mata-mosquitos: já existia
propina, mesmo sendo o funcionário assalariado. Meu pai não estava: o mata-
mosquitos, vingativo, jogava creolina na grama. Eu jogava terra na creolina, medo de
que os animais lambessem.
No portão, ouvia conversas dos adultos, que não prestavam a menor atenção em
mim. Uma roda na esquina discutia animada: amigos do meu pai, desacorçoados
sobre a nova lei que proibia escarrar no chão.
Mateus dizia que todo mundo tinha que ser obrigado a engolir o próprio escarro;
Filisberto dizia ser direito universal e inalienável cuspir a bel-prazer do cuspidor. Em
defesa do primeiro argumento, dizia-se que escarro próprio não contaminava o
escarrador: revertere ad locum tuum! Em defesa do segundo, alegava-se que ninguém,
pela Constituição federal, pode ser obrigado a engolir o cuspe e, quanto menos
perdigotos alojados no corpo, mais saudável seria o espírito: para isso se inventaram
ruas e calçadas – pra cuspir. Além das suntuosas escarradeiras de porcelana chinesa,
como as do Teatro Municipal, intencionadas para a mesma serventia. Hoje, dia de
ópera, escarradeiras são admiradas por sua beleza oriental, ninguém cospe: mas já
conheceram dias piores.
Eu tinha nojo!
Ouvia os mais velhos dizendo que, quando Osvaldo Cruz, ministro da Saúde,
decretou a vacina obrigatória, houve rebelião popular e o governo teve que decretar
estado de sítio. Acabou-se a febre amarela e a varíola, mas muita gente foi vacinada
na cadeia, depois do cassetete: imunes contra a varíola, pernas e braços quebrados.
Polícia Especial não brincava em serviço quando se tratava de vacinar recalcitrantes!
O povo foi salvo a pontapés!
Em questões de saúde, consultava-se o farmacêutico, que sempre deslizava,
meigo, pela tangente:
“Há casos em que cuspir é desnecessário; portanto, configura-se o crime. Outros,
porém, imperativos e urgentes, dependendo da lógica da distância entre a boca e o
chão e a trajetória da gosma, podem-se negligenciar…”
Todo mundo pensava que o farmacêutico lhes tinha dado razão e o debate
continuava, ambas as partes sustentadas pelo aval do médico de causas menores.
PEDRO E O FARMACÊUTICO
Como o farmacêutico era homossexual, embora lhe perguntassem a opinião, poucos
acreditavam no que dizia.
“Um veado… o que vai lá saber? Veado entende de dar o rabo… Especialistas…”
Outros levavam lenha à fogueira: “Ele gosta de dar injeções. Agarra nosso braço…
Devia ser proibido. Injeção, só médico diplomado e, mesmo assim, sob juramento!
Na frente de testemunhas! Essa história de homem, mesmo médico, ficar mexendo
no corpo da gente, é coisa de bicha. Médico devia examinar a fotografia…”.
A mulher do farmacêutico – pois ele a tinha: morena escura, forte de braço,
temperamento instável: lágrimas salgadas ou riso desatado. Não se preocupava com
a sexualidade do marido, embora fizesse escandaloso escarcéu quando lhe contavam
com quem o haviam encontrado, em que posição duvidosa – vivia chorando! Ela
própria tinha secretos amantes: vivia rindo! Vez por outra, o escândalo era maior:
cortava pulsos e garganta. Um amante a largava, um talho surgia no pulso ou no
pescoço, dependendo do maior ou menor afeto!
A farmacêutica devia ter sorte no jogo, porque nos amores… Vivia ensaiando a
morte: abundantes cicatrizes. Parecia aquelas mulheres africanas que colocam um
colar de madeira para esticar o pescoço; ficam belas, segundo seus padrões estéticos.
Em vez de colares, a farmacêutica tinha cicatrizes de navalha: sete, segundo uns,
doze, segundo os mais alvoroçados – a danada da mulher não parava quieta, não
deixava que lhe contassem os talhos… Nos braços, catorze no direito e sete no
esquerdo: era canhota.
As mulheres do bairro, comovidas com tantas tragédias, foram em comissão
consolá-la e sugerir moderação na escolha dos amantes. Gentis, mostravam-se
compreensivas:
“Com um marido desse jeito… até nós, quem sabe? Dessa água não se pode dizer
que não beberemos quando for demais a sede… Mas sem exagerar… Todo mundo
deita em sua cama. É truculência, afronta ao marido…”
“Que tem meu marido?”
“Tem jeito esquisito… Quando dá injeção, agarra o braço dos nossos homens de
um jeito que não é normal. Com franqueza, seu marido não é homem… e o marido
de uma mulher precisa ser homem. O seu é maricas!”
A mais atrevida, Rosalva, pôs os pingos nos iii, aaa, eee, ooo e uuu, nos yyy, e mais
vogais houvesse, ou consoantes afrescalhadas como “ele” e “agá”…
“Encurtando conversa, sem luvas de pelica: todo mundo sabe que o seu marido é
veado! Completamente veado! Da cabeça aos pés!”
A princípio, a farmacêutica resistiu: “Meu marido é um profissional sério,
competente, fino. Não fica falando comigo dessas porcarias. Não quero nem
saber…”.
“Falar, não fala, mas quanto às vias de fato…”, pisou na ferida Rosalva.
Cada vizinha arremessava seu consolo ou crítica, mas Rosalva tinha-se
desbordado: maricas, mulherzinha, pederasta, sodomita, gilete ambicortante, barca
da Cantareira que atraca dos dois lados, ainda vá… mas assim, escancarado, veado?
Ficaram surpresas com a resposta da esposa que deu de ombros: “Pior é o Pedro…”.
Quem era o Pedro? Homossexual que carregava o estigma nos bíceps; naquela
época, homossexual era apenas veado. Não era conhecido por família ou profissão,
difícil de conseguir, sendo-se bicha, tricha, policha. Não era conhecido por qualquer
outro atributo: veado era veado, está dito. No máximo, concedia-se pequeno
desconto aos que fossem “ativos” – estes, segundo a opinião geral, não haviam
renunciado por completo à virilidade. Eram, de certa forma, ainda mais machos do
que os héteros – machos que comiam machos!!! Os renegados, “passivos”, esses não
encontravam piedade aos olhos severos dos guardiães da moral…
Pedro parecia não se incomodar. Todo mundo sabia da sua condição e ele
passeava pela Lobo Júnior com calças apertadíssimas, camisa justa sem manga,
braços musculosos e boca pintada de batom cinza, discretíssimo.
Aos domingos, terminados os jogos nos campos do Penha F.C. e do Maravilha
Atlético Clube – um ao lado do outro, o que fazia com que acontecessem duas bolas
no mesmo campo e nenhuma no vizinho –, Pedro desfilava pelas calçadas com
terceiras intenções, trocava olhares coniventes com rapazes, até jogadores.
Anoitecia, Pedro ia pro campo de futebol, só que agora o jogo era outro. Disfarçando,
os machões iam atrás, entravam em campo, faziam fila…
Todo mundo comentava. As crianças se perguntavam: “Pronde é que eles vão?”.
“Pra trás do mato… Iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiihhhhhhhh!!!”
Os maiores ruminavam críticas: “Deve-lhe fazer mal, tanto esperma pela barriga
adentro… O organismo não aceita… Contra natura, as tripas não foram feitas pra
isso…”.
“Que nada: está cada vez mais saudável, mais gordo…”
“Iiiiiiiiiiiiiiiihhhhhhhhhhhh!!!”
Ficavam aí os comentários e logo se falava dos lances da rodada. Raramente, um
dos jogadores daqueles times era contratado por um período experimental em
algum dos grandes clubes. Era a glória!
AMADEU, GLORIOSO POR UM INCHAÇO
O mais glorioso foi Amadeu, cara de fuinha, beque central do Maravilha, contratado
pelo Bonsucesso, que de bom e de sucesso só tinha o nome: perdia de todo mundo e
a torcida ficava feliz quando era só de três ou quatro, ou quando o time conseguia
marcar um solitário gol.
“Estamos melhorando…”, dizia o técnico. “Hoje foi só de quatro a um. Agora, só
falta armar a defesa e pedir ao goleiro que não fuja da bola.”
Amadeu estreou com um desses belos resultados: três a zero. Contra, é claro. No
segundo jogo, perdeu só de dois e houve festa em Bonsucesso, romaria à igreja!
Todos atribuíam a Amadeu ter conseguido parar – ou quase! – o ataque adversário.
Só dois: façanha, heroísmo!
Foi quando aconteceu o jogo que deveria consagrá-lo: a partida decisiva contra o
Flamengo, cujo ataque incluía alguns dos maiores jogadores de todos os tempos, os
temidos Valido, Zizinho, Pirilo, Perácio e Vevé! Naqueles primórdios, os times
jogavam com a formação de 1-2-3-5, aprendida com os ingleses do Arsenal e do
Southampton, que vieram ao Brasil nos humilhar de cinco a zero e seis a um. Nada
de audácias: futebol era bola na rede! Qual a melhor defesa? Claro, o ataque: então,
põe cinco lá na frente e chuta! Futebol é gol!
Amadeu contra os gigantes rubro-negros! Amadeu, Pérola Negra do Maravilha A.C.,
orgulho da Penha Circular, pequenino Davi contra onze gigantescos Golias!
Começou o jogo; logo no primeiro avanço, Pirilo empurrou Amadeu com o
cotovelo e o beque caiu dentro da área: como esse era o lugar mais frequentado
quando o Bonsucesso jogava na defesa, ali crescia pouca grama embaixo de tantos
pés e o infeliz Amadeu caiu em cima do braço, ralou o corpo na areia dura, sangrou
em abundância e teve que ser retirado do campo nas costas de dois negões: ainda
não se havia inventado a maca. Também não se haviam inventado as substituições. O
Bonsucesso ficou com dez. Se, com onze, era difícil…
Nos vestiários, a mão inchou e a cabeça do Amadeu ainda mais! Ouvia a narração
do jogo pelo rádio de pilha e a progressão alarmante dos gols flamenguistas: três,
cinco, sete a zero, só no primeiro tempo.
Amadeu estava destruído: sentia-se culpado por tanta desgraça. Quando os
companheiros entraram no vestiário, no intervalo, Amadeu, chorando convulso,
jogou-se de joelhos aos pés do time inteiro, implorando perdão, rezando para Nossa
Senhora de Bonsucesso, sem saber se a divina santa existia ou não.
Surpresa: ao contrário do que temia, seus companheiros estavam deslumbrados e
queriam ver a mão inchada, obra do fabuloso Pirilo, o maior centroavante da
história, só comparável a Leônidas da Silva, o Diamante Negro, e Friedenreich, o
loiro diabo tricolor! Hip hip hurra!
Amadeu só não deu autógrafos porque ainda não havia sido inventado esse
hábito, nem permitiu beijos, porque não queria ser confundido com o farmacêutico,
que gostava de beijar, menos ainda com o Pedro, que olhava os homens com um
risinho prometedor nos lábios: no mais, foi carregado em triunfo, nos ombros dos
companheiros, porque o Corpo de Bombeiros ainda não havia inventado essa cívica
homenagem em carro seco, vermelho. A glória andava a pé, naqueles tempos!
Quando acabou o jogo – nove a zero: o Flamengo, piedoso, no segundo tempo fez
só mais dois inevitáveis! –, Amadeu foi em carro aberto de volta à Penha e ficou até
altas horas mostrando a mão inchada, escoriações generalizadas (não queria
escondê-las com gazes!). A todos confirmava, sorrindo:
“Foi o Pirilo…”, sorria seu riso de fuinha.
“O Pirilo do Flamengo?!!!??…”, assustavam-se.
“É… Pirilo do Flamengão, ele mesmo! Esse inchaço, carne viva: foi ele, o Pirilo. Me
deu uma porrada… que porrada, seu! Doeu à beça…” – e sorria, feliz com a dor.
“Esse Pirilo… não tem jeito… endiabrado!”
Durante toda a semana, quinze dias, Amadeu foi herói às custas do Pirilo e todo
mundo queria ver a mão inchada. Não reclamava nunca, tirava o esparadrapo e
mostrava ferimentos e pus:
“Foi o Pirilo…”, sorria sorriso fuinha.
Reclamou só quando Pedro quis ver a mão deformada e, até aí, tudo bem, mas
quis tocá-la: “Sai pra lá! Isto aqui é mão de macho!”. Não ia dar confiança só porque
tinha se transformado em herói bairral.
“Por isso mesmo…”, respondeu a meiga voz do Pedro. “Por isso mesmo, macho,
meu bem…”
A gloria de Amadeu durou o inchaço: quando voltou ao normal, perdeu a graça.
Amadeu rescindiu o contrato com o Bonsucesso e voltou a jogar no querido
Maravilha, que, sem dúvida, era o time do seu coração. Como amador, passando
dificuldades, fome, o que lhe aumentava o mérito.
DEPOIS DO NATAL EU RESOLVO
Sentado na ponte do portão, no casarão, eu via fregueses da padaria que vinham
pedir dinheiro emprestado ao meu pai, que não era rico, mas parecia. Tinha a fama:
mandava Cartas de Chamada, tinha duas padarias, poupança na Caixa Econômica –
status. Pediam dinheiro pra comprar um jipe, reformar a casa, a filha ia se casar com
um joão-ninguém… Meu pai ouvia atento e respondia: “Depois do Carnaval,
resolvo…”.
Os pedintes não levavam dinheiro, mas bebiam vinho do Porto na sala de visitas.
Meu pai só emprestava – ou dava, pois sabia sem retorno! – quando se tratava de
doença ou tragédia natural: muleta pro aleijado, olho de vidro pro cego, consertar
casa depois de tempestade. Aos outros, a resposta era a mesma: “Depois do
Carnaval…”.
“Seu Boal, nós estamos ainda no mês de maio…”
“Então, depois do Natal…” Meu pai encurtava prazos pra não desanimar: eram
fregueses.
POR QUE NÃO SOU PIANISTA
Tive a carreira de pianista mais curta da história – um entardecer! Começou às
quatro da tarde e antes das cinco e meia estava terminada…
Foi assim: minhas irmãs tinham uma professora de piano, dona Marieta, que
vinha duas vezes por semana para os solfejos. Ficavam ao piano, cantando as
mesmas melodias: nunca esquecerei “Pour Elise”! Foi o meu primeiro amor musical.
“Danúbio azul”… Adoro valsas.
Sempre gostei de música: ficava no jardim, escutando. Um dia, casualidade,
minhas irmãs ficaram doentes e a professora, que não foi avisada, veio. Meu pai não
hesitou:
“Pra não perder a viagem, pode ensinar alguma coisa ao Augusto…” Meu pai era
progressista: “Que estude piano, ele também”.
“Oba, é a minha vez!”, exultei, saltando mais alto que o Chibuco!
Meu irmão, dúbio, pensou em Pedro: “Piano não é coisa de menino: começa
tocando piano e depois não se sabe onde vai parar…”.
Dona Marieta liquidou meu entusiasmo: “Olha aqui, viu? Menino joga bola, pula
cerca, trepa em árvore. Nunca vi menino tocando piano. Imagine, menino tocando
flauta: seria indecente, indecoroso. Um pouco de respeito e amor-próprio não fazem
mal a ninguém. Talvez – quem sabe? – cuíca, berimbau, pandeiro, zabumba,
bateria… vá lá. Mas piano… tenha santa paciência! Era só o que faltava… Menino e
harpa não combinam, nada que ver! Menino e cravo… ridículo!”, dizia sem o
mínimo respeito por Mozart.
“Eu gosto…”, murmurei em dó menor.
“Não é questão de gosto. Por acaso menino gosta de brincar com boneca? Gosta de
fazer bordado? Fazer xixi sentado? Claro que não! Piano é a mesma coisa, é xixi
sentado. Pra mim, é salário. Sou paga pra isso, vamos lá. Vamos em frente: solfeja!”
Eu fazia o meu possível e dona Marieta complicava o que já não era simples, para
uma criança de dez anos. Ameaçava: “Não é nada disso, olha aqui, esse dó é uma
branca, vale dois: dó-ó, viu? O fá é negra, vale um fá: fá! Só! O mi é redonda, vale
três: mi-i-i! Depois vem a colcheia e a semicolcheia, a fusa e a semifusa, os sustenidos
e os bemóis… As sincopadas são um pontinho… Você não entendeu nada e é por
isso que não é nada disso… Solfeja! Já!”.
“A senhora podia repetir?”, fui corajoso demais fazendo a pergunta audaciosa.
Como ela não respondesse, pensamento e olhar distantes, vendo o abajur e
balançando a cabeça, tentei encorajá-la, puxar assunto: “Dó-ó-ó− óóó-ÓÓÓ-ÓÓÓ-
ÓÓÓ…”.
Abri a boca até arrebentar: se o piano tivesse mais três ou quatro metros de teclas,
talvez alcançasse minha tonalidade! Vizinhos vieram ver o escândalo sonoro! D.
Marieta foi cruel:
“Eu é que tenho dó de você… Dó-ó-ó-ó-ó-ó-ó… Você nunca vai ser pianista,
trompetista, harpista, saxofonista, corista, cantor, afinador de piano, nem
carregador, nada que tenha que ver, mesmo remotamente, com a música… Mas
vamos lá, preciso dessa aula, é meu salário. Repete comigo: dó-dó-dó-dó…”
Si alguma vocação musical alguma vez tive, foi lá assassinada, na sala de visitas.
Sem dó nem piedade, à luz do sol poente! A ré: dona Marieta! Pobre de mi. Só ficou
faltando o fá…
O que não me impediu, como diretor de teatro, de dirigir musicais, alguns,
decisivos: Opinião, Tiradentes, Zumbi. Não sei cantar, meus dedos se enroscam nas
cordas e tropeçam nas teclas. Mas sei ouvir.
Não é ideal, mas tem servido.
ZÉ KETI ASSUSTADO
Dirigindo Opinião, mostrei ao Zé Keti como é que eu gostaria que ele cantasse a
música-tema fazendo com que o “Podem me bater, podem me prender!” fosse grito
de revolta e não alegre Carnaval. Pra dar uma ideia, ousei cantar. Só para dar uma
ideia. Zé Keti pensou que eu quisesse que ele me imitasse.
“Você quer que eu cante assim?”
“Mais ou menos nessa linha…”
“Não canto, não…”
“Por quê?”
“Tenho família pra sustentar… Se eu cantar desse jeito, perco todos os meus
empregos…”
NAMORO ALEMÃO, CASAMENTO ALIADO
Antes que o Brasil se decidisse pelos Aliados, o fascismo hitleriano conquistava
entusiastas: os que sempre estão do lado ganhador. Tem gente assim: sempre no
poder, do lado que manda, trocando de lado, sempre. Muitos marxistas dos anos
1960 tornaram-se pragmáticos nos 1990: arautos da globalização e venderam o Brasil
de graça! Nós pensamos que eles mudaram, mas não: estiveram sempre correndo
atrás do poder. Seriam stalinistas sob Stálin, maoistas dos livrinhos vermelhos e
ninguém defenderia a glasnost mais fervorosamente, nem Gorbachev! Dalai Lama ou
Chou-En-lai, xá ou aiatolá: só importa o poleiro do poder! Joaquim Silvério ou
Gonzaga: depende do lado que sopra o vento.
Na Alemanha, SS; aqui, integralismo e seus paramilitares, galinhas-verdes, que
desfilavam de verde-amarelo cantando o Hino Nacional, raivosos – as margens
plácidas pareciam rios revoltos, palavrões; gritos heroicos nunca foram tão
retumbantes. Todos tinham que tirar o chapéu à sua passagem – chapéu, quepe,
boné.
Um rapaz estava murmurando o hino de boca aberta, comovido diante do
patriotismo fervoroso dos galinhas-verdes, esquecido do boné na cabeça, bêbedo de
patriotismo. O comandante do batalhão, passando perto, deu-lhe um tremendo
bofetão no rosto e o rapaz caiu na vala da lama e das rãs, a boca escorrendo sangue.
Saiu sozinho, escalando a margem, trôpego, sujo: ninguém teve coragem de ajudá-lo,
com o batalhão desfilando, ameaçador. Em volta da bofetada, fez-se silêncio de
cemitério à meia-noite sem vento.
Naquela tarde, na padaria, que servia cervejas em três mesas e nove cadeiras, o
tema foi a bofetada: “Se está combinado que tem que tirar o chapéu, tira-se o
chapéu… Se não se tira, aguentem-se as consequências…”. Era Mateus, bebendo
chope.
“Bofetada não é direito…”, resistia Filisberto, baforando o charuto.
“Está combinado… O que é como é, tem que ser desse jeito, ainda mais em
tempos de guerra mundial…”, dizia Mateus, entendido.
“Quem combinou?”
“Passam galinhas-verdes, tira-se o chapéu…”
Ninguém sabia quem eram os galinhas – pressentiam: coisa boa, é certo, não.
Vagamente, falava-se assassinos de judeus, ciganos e comunistas.
Paradas eram moda. Qualquer solenidadezinha, tome desfile. Eu mesmo desfilei,
farda branca, uniforme de gala do colégio, fivela e cinturão dourados, quepe quente,
em frente a Getulio Vargas, no Sete de Setembro, Central do Brasil, orgulhoso, sendo
visto, no meio da multidão, pelo presidente da República. Sete anos: uniforme
branco, calor, quepe, suor, tonteiras, marcha militar.
Quando eu, patriota, entoava heroico o hino, os protestos dos amiguinhos me
ensurdeciam: “Augusto, para de cantar, não atrapalha…”, pediam, gentis, meus
coleguinhas. Orgulhoso, apesar da afronta, eu murmurava a letra, sotto vocce, sem
murchar meu patriotismo recalcitrante.
Foi assim que comecei a acreditar em pátria. Apesar dos pesares, acredito ainda.
Até quando? Pátria… existe?
Paris caiu! Onde? Londres de pé!
“Paris caiu!!!”, disse meu pai, entrando em casa como se fosse trincheira.
“Caiu onde?”, pensei, espantado, e fui correndo pra cozinha, onde ele contava à
minha mãe, trêmulos os dois, detalhes da queda de Paris.
“Londres ainda não caiu, graças a Deus! Londres está de pé!”, completava o seu
Boal o noticiário do dia. “Nem vai cair! Nunca!”, acrescentava, otimista. Minha mãe
apoiava: “Queira Deus que não caia, Londres, queira Deus… Vamos fazer o
possível…”.
Hitler dava medo. Apavoradores discursos em alemão: ouvíamos na rádio, em
tradução sobreposta. Eu não sabia o que era Heil Hitler!, mas tinha medo. Por isso –
quem sabe? – até hoje não consegui aprender alemão; falo algumas línguas, quatro
ou cinco, mas alemão, nem pensar: só danke schön, Verfremdungseffekte, coisas assim…
Trago o inconsciente à flor da pele, embora alguns dos meus melhores amigos sejam
alemães – não impede.
A política também me dava medo porque não sabia de que lado ficar, quais os
lados, ou se podia mudar de lado. Quando Getulio abandonou o noivado alemão e se
casou com os Aliados, a noiva não era virgem! Boa parte da população, catequizada
pra gostar do fascismo, continuou vestida de verde berrando “Heil Hitler! Anauê!”. O
que antes era virtude virou vício! Se antes batiam, agora apanhavam!
Vinha o Socorro Urgente: camburão tamanho família, policiais armados com
robustos cassetetes de borracha dura, desciam do carro e, sem perguntas, baixavam
o pau!
Violentos e democráticos: pancadaria distribuída à farta, sem distinções de sexo,
raça ou cor. Quem estivesse em sua área de ação, porrada! Desmaios. Vinha a
ambulância, horas depois, cuidar dos feridos.
Quando o assunto era grave, além do Socorro Urgente vinha a Polícia Especial:
atléticos catarinas – assim como o papa tem seus esbeltos guardas suíços desenhados
por Michelangelo, a ditadura da época tinha seus catarinas, de Santa Catarina, gente
troncuda, descendência germânica, sem parentes no Rio de Janeiro, que baixavam o
cacete com a consciência tranquila: não seriam reconhecidos por nenhum amigo
nem baixariam o sarrafo em parente.
MÁRIO E MARGARIDA
Os jogadores de futebol não respeitavam juízes acostumados a apanhar. Juízes só
passaram a ser reconhecidos como “autoridades” quando a federação importou cinco
ingleses, vestidos de preto, antes do campeonato mundial de 1950. No entanto, havia
um juiz que todos respeitavam e contra quem jamais levantavam o bico da chuteira:
Mário Viana, oficial da Polícia Especial.
Anos mais tarde, apareceu outro juiz, homossexual apelidado Margarida, gestos
suaves, melódicos e ondulados. Margarida detestava a violência e adorava marcar
pênaltis. No começo de sua carreira, Margarida era desrespeitado: tome expulsão e
pênalti. Quando os jogadores compreenderam que uma coisa era o que ele fazia na
cama, outra o apito no gramado, deixaram de ver suavidades e se concentraram no
jogo limpo.
Sempre que me lembro de um, lembro o outro: o meigo e o machão. Os dois
marcando pênaltis, expulsando. Os dois obedecidos.
QUANDO COMEÇOU MEU TEATRO
Mateus e Filisberto dialogavam coerentes: mesmas bobagens, cada qual as suas. Eu
via galinhas-verdes desfilando e as ilustres personalidades no palanque presidencial,
cada qual representando o seu papel. Via a hipocrisia da minha professora de piano,
que me olhava com cara feia e se desmanchava em sorrisos na frente dos meus pais:
elogiava até meus dedos galgos. Não me ensinava nada e punha a culpa em mim.
Tudo teatral.
Ouvia, pela Rádio Nacional, a primeira radionovela brasileira, Em busca da
felicidade, que estreou em 1941, tinha eu dez anos. A música de suspense, em fins de
capítulos, me assustava. As vozes trêmulas dos atores me faziam tremer. Ouvia
minha mãe contando histórias de A ré misteriosa e outros folhetins que recebia em
fascículos.
Esses personagens circulavam à minha volta. Personagens de ficção misturados a
realidades. Meus irmãos e eu tivemos a ideia de fazer um teatrinho. Líamos o
fascículo da semana e o dramatizávamos.
Curioso: eu nunca entrava em cena, queria ser diretor. Dizem minhas irmãs que
eu era autoritário, mas concordam ser necessário, porque meu elenco era
indisciplinado.
Ensaiávamos aos domingos, depois do ajantarado, e, no fim da tarde, a família se
sentava na sala de jantar, desempenhando com brilho o papel de plateia. À guisa de
cortina abríamos as portas que davam para um quarto de costura, meu primeiro
palco. Irmãos e primos eram os atores. Como havia muitos personagens, tinham que
representar vários papéis. Talvez tenha sido aí que comecei a imaginar o Sistema
Coringa: acontecia que o mesmo personagem fosse representado por vários irmãos e
cada irmão representava vários personagens. Não existia a propriedade privada dos
personagens pelos atores: cada cena era contada por quem estivesse disponível, cada
personagem por quem dele mais gostasse. Já aí eu usava a forma Arena conta…:
Irmãos Boal e seus primos contam… Contávamos A ré, O conde de Monte Cristo, A escrava
Isaura, A ceia dos cardeais…
Queríamos o ritual completo: cada espectador teria que comprar bilhete. O preço:
três chapinhas de garrafa de cerveja ou guaraná, que viravam rodas dos carrinhos
que fazíamos com latas de marmelada…
Nosso teatrinho durou vários espetáculos, comigo acumulando funções de diretor
e ponto, porque fazia questão que meus irmãos respeitassem o texto do autor.
Continuei assim a vida inteira, respeitador! Eles, ao contrário, queriam improvisar.
Quando um dos atores mudava as frases, eu brigava, chorava, ameaçava acabar com
nossas jovens carreiras artísticas.
Eu fechava as “cortinas” com estrondo, brigava, discutia, até chegar a um acordo
e reabrir as “cortinas” e… saíamos em busca dos espectadores, que tinham mais o
que fazer: ao menor pretexto se dispersavam. Catávamos um a um, trazíamos nossa
plateia de volta, devolvíamos o dinheiro da entrada – as chapinhas –, cobrávamos
outra vez as mesmas chapinhas e o espetáculo recomeçava. O ritual de pagar entrada
era importante – era o pacto que estabelecíamos com a plateia, sinal de aceitação
mútua.
Hoje, quando faço teatro na rua e saímos à cata dos espectadores, lembro. Hoje é
fácil. O público é tão carente, vem correndo.
Chibuco, bom ator, nem sempre entendia minhas instruções e tinha seus
próprios desígnios. Com meus irmãos era possível dialogar. Melhor trabalhar com
atores humanos. Progresso inaudito! Ator é gente!!! Sempre respeitei meus atores:
eram meus irmãos. Continuam sendo!
Acontecia que, sendo o espetáculo curto, acrescentávamos um show de variedades
no final da peça. Era a vez de Marlene, prima de seis anos, que vinha encantar a
família. Voz linda, linda, mas… eu era implicante, quando menino, e implicava com
árias e solos. Atores representavam uma história – estavam a serviço de alguma
coisa. Inter-relação. Nos solos, o cantor mostrava-se a si mesmo.
Inventei um prêmio que, ao mesmo tempo, premiasse e culpasse – sádico, na
infância. Minha prima Marlene ainda hoje (1999) lembra que o prêmio se chamava
Abacaxi – anos antes de Chacrinha, diz minha prima.
Minha admiração pelos atores data daqueles espetáculos. Tenho certeza de que, a
partir da primeira experiência com meus irmãos, adotei a ideia fixa de fazer teatro.
Assim que a minha primeira temporada teatral infantil acabou, começou meu desejo
de ser artista. Sou!
Nunca entendi por que Gordon Craig perdia tempo tentando inventar atores-
marionetes. Se o conseguisse, seriam como a cantora japonesa fabricada por
computadores em 1996: virtual – mesmo não existindo, fez sucesso extraordinário!
Imensa legião de admiradores, fã-clubes e… não existia. Totalmente fabricada com
as vozes sintetizadas de milhares de cantoras, o corpo e a dança de centenas de
dançarinas, olhares mortíferos de dezenas de vamps de cinema e a inocência perversa
de alunas da Escola Normal… Eis a estrela-robô. Sucesso cataclismático. Quem
respondia às cartas de amor que recebia aos milhares todos os dias eram outros
computadores, que analisavam ardores missivistas e respondiam… dando
esperanças…
Gordon Craig morreu antes do advento dos computadores, únicos que poderiam
realizar seu sonho. Eu, ao contrário, que vivo na civilização dos robôs, prefiro
trabalhar com atores imperfeitos, que tenham medo de entrar em cena, mas que
tenham ideias na cabeça, desejos no coração – dialoguem.
Nosso teatrinho infantil durou a infância. Deixou a vontade enorme de começar à
vera o que era à brinca.
Hoje, navego pela internet e me sinto sentado na ponte do portão da minha casa,
vendo o mundo passar.
Lanço mensagens no meu site, como garrafas ao mar… Escrevo livros como se
quisesse alcançar alguém que não cheguei a conhecer, ou alguém cujo rosto se
dissolveu no tempo…
Quero ver o rosto de quem, nos meus livros, vê o meu.
1 Anos mais tarde, fazendo teatro pelo Nordeste, comi gatos, não digo por lebre, mas por galinha.
CAPÍTULO 7
TORRE DE COMANDO, PADEIRO E PÃO
Sem me dar conta, aos onze anos comecei a trabalhar na Padaria Leopoldina, quando
nos mudamos do casarão. No começo, ia levar recado da minha mãe ou buscar lata
de azeite. Meu pai me mandava servir um freguês: manteiga, pãezinhos ou bolachas
de polvilho. Tinha troco: eu comia o que queria. Ganhei tendência a engordar.
Passei a cumprir horários, em troca de mesada. Nas férias trabalhava em dobro!
De manhã, quando saía a primeira fornada; à tarde, quando da segunda. Entrava em
cena o pão quente, cheiroso, crocante: explodia a gritaria selvática da plateia de
fregueses famintos: pisadas, cabeçadas, chega-pra-lás – ainda não se havia inventado
esse artifício maravilhoso, a fila!
Hoje, tem fila pra tudo – então, valia a força bruta, empurrão; delicadezas raras.
Normal empurrar gordos, pisotear os fracos, bolinar moça bonita, gritar em ouvidos
moucos! Gente suava abrindo espaços. Crianças sufocadas. E ninguém inventava a
fila… singela ideia! Como na Babilônia, vinte séculos antes de Cristo: suando,
carregando pedra nas costas e ninguém inventava a roda! Quantas boas ideias andam
por aí que ainda não foram inventadas!
Aos dezoito, quando entrei na Escola Nacional de Química, na Praia Vermelha –
dois ônibus, hora e meia de sacolejo, ida, hora e meia, volta –, passei a trabalhar só
aos sábados: meus colegas iam dançar com as moças na Faculdade de Medicina, eu
pro balcão. Hoje, só danço escondido na multidão ou dirigindo musicais.
Devo ter tido uma doença que nunca descobri. Esperando ônibus, 43°C à sombra,
casimira inglesa e gravata italiana, poeira granítica suspensa no ar, misturada ao
cheiro fétido do curtume – de acordo com o vento, cheirava norte ou cheirava sul
(morando no oeste, pegava as sobras) –, sentia tonturas e sentava no meio-fio.
Alguém, solidário, me punha no primeiro banco do ônibus, balançava menos. Em
casa, recomposto, não procurava médico.
Éramos assim, descuidados com a saúde: meu pai teve mal-estar, deitou-se duas
horas além dos hábitos, levantou-se e foi trabalhar: anos mais tarde descobrimos que
tinha sido enfarte…
No balcão, inventei um posto de observação que substituiu a ponte. Queria
continuar imaginando. Achei o banco do guarda-livros, que sentava uma nádega só.
Ao lado do fone pendurado, eu lia A Noite, Diário da Noite e a revista Eu Sei Tudo.
Sempre precisei de uma torre de comando, como diretor na escuridão dirigindo
atores iluminados.
O LOCUTOR DE RITUAIS
Olhava o mundo. Fazia de conta que as coisas só aconteciam por obra e graça da
minha vontade: brincava com os empregados prevendo o que faria cada freguês: se
antes “irradiava” futebol, agora “irradiava” os movimentos desses personagens antes
que acontecessem.
Mateus aparecia na varanda, eu irradiava:
“Vem, Mateus. Atravessa a rua mas, antes, olha pra trás” – nunca entendi por que
olhava pra trás antes de atravessar pra frente. “Entra com a perna direita…” – ele
entrava, olhando a perna. “Agora para, olha sua casa e vê se não esqueceu a porta aberta,
bobalhão!” – Mateus olhava portas e janelas: fechadas. “Entra e senta, velho idiota!
Encosta no balcão de mármore e diz que o calor é insuportável… não há quem aguente… Vai,
boboca! Fala!” “Não se aguenta… insuportável…”, dizia Mateus, esfriando as costas no
balcão de mármore. “Geme, Mateus…” Gemia.
Vinha Filisberto, redondo – nunca vi ninguém tão mapa-múndi! Sentavam-se,
acendiam charutos, baforavam ritmados, bebiam chopes com fervor meditativo e
cuspiam no chão com desembaraço, a mesma porcaria. Sem-vergonhas. Até Mateus,
inimigo das cusparadas, cuspia.
“Agora, Filisberto, zepelim de cocô, faz piadinha sem graça falando do mármore e da lápide
fria esperando por nós de boca aberta…”
Vinha a piadinha fúnebre: “No mausoléu ninguém vai se queixar do calor… Não
tenho pressa: prefiro o inferno do verão aqui na terra, do que o paraíso do inverno
com sete palmos por cima…”.
Quando um empregado faltava, eu começava de madrugada abrindo as portas de
aço, ainda escuro: operários do curtume, formigas apressadas! Eu ordenava que
pedissem café com leite, pão com manteiga e, ninguém é de ferro, um copo de
cachaça ou parati: engoliam álcool de pura cana como russo engole vodca. Incêndio
matutino! Depois do fogo acordavam. As máquinas esperavam: cortavam dedos!
Na mão, marmita. No bolso, cigarros. Nos olhos, cansaço e tristeza. O futuro…
vazio.
O CANTADOR
Crianças iam estudar, lavadeiras cuidar da roupa, peixeiro vender peixe de olho
aberto, frangueiro frangos espalhafatosos, amarrados pelos pés em vara que o
vendedor punha nas costas, os bichos de cabeça pra baixo. O entregador de pão no
seu triciclo. Um ceguinho, que via mais que vidente, passava à noite na rua,
cantarolando música de igreja e, de manhã, entrava na casa de um operário e
ninguém sabia por quê.
Vizinhos imaginavam, mas a mulher trabalhava, visível. O ceguinho dormindo…
Enigma. Ou caridade, o que não deixa de ser um enigma.
Antes que o marido voltasse, o cego saía e perambulava até a noite, quando
escolhia onde deitar, cantar música de crucifixo e pedir esmolas.
Inspirado no cego, escrevi Martim pescador, que chegou a ser ensaiada com Grande
Otelo e Abdias do Nascimento, meu mais antigo querido amigo, irmão, Léa Garcia,
que veio a ser sua esposa, e atores do Teatro Experimental do Negro. Ensaios no
galpão do apartamento onde eu morava, 1130, Lobo Júnior. Inspirado nos cegos,
operários, brancos e negros, escrevi: O cavalo e o santo, O logro, Maria Conga.
Peças que deixava repousando; anos mais tarde, reescrevia. Como o pão do meu
pai: primeiro fazia-se a massa; repouso; cortava-se, dava-se forma e talho; repouso,
no tabuleiro; por fim, o forno. Como este livro. Escrevendo, faço meu pão, como
meu pai.
Quanto às minhas marionetes, eu me sentia espectador vendo a peça repetida.
Personagens iguais a si mesmos, sem surpresas. Dia diferente era o de chuva ou
domingo. Fora fins de semana, todas as feiras eram a mesma feira.
Essa monotonia me fez inventar algumas das técnicas d’ O arco-íris do desejo: o
percurso dos rituais, os gestos rituais, as máscaras.
A ESTRANHA HISTÓRIA DO ALEMÃO DO PIAUÍ
O único personagem inesperado, na minha infância, o que nada tinha a ver com a
Penha, foi um jovem que apareceu de repente. A princípio, ninguém estranhou,
apesar de que extravagava impertinente, roupa roçando o preto, como saído de
cerimônia fúnebre. Vez por outra, de bengala, exagero… na Penha, empoeirada!
Bengala é coisa de hemisfério norte, neve e frio. Terno preto no sol esturricado!
Chapéu-coco com tarja preta, suado! Doido, maluco! Óculos finos, dourados!
Mistério.
Homem estrambótico. Ninguém lhe falava, estranheza assustava. Juravam que era
um gênero especial de assombração, conselheiro de Satanás, espionando humanos:
sem ser o Diabo-Mor, santo não era. Havia quem queria verificar se, em lugar de pés
normais com dedo unhado, pés de gente, teria por acaso pés de bode, cascos
endurecidos, mas ninguém se atrevia a pedir: “Tire o sapato, cavalheiro: mostre a
sua essência!”. Carecia coragem, sobrava medo: e se o homem fosse bode? Se,
descoberto, se pusesse a chifrar adoidado. Chifre envenenado, curare? Melhor deixá-
lo.
As únicas pessoas que se vestiam de preto – fora luto cerrado depois do enterro ou
a vida inteira, viúvas inconsoláveis – eram os padres da Igreja e o Homem da Capa
Preta, leproso foragido que vinha agarrar meninos desobedientes e levá-los
algemados para o leprosário em Caxias – diziam. Terror! Por que algemas? Ninguém
sabia. O Homem da Capa Preta era a Carrocinha de Crianças que havia profetizado
Mateus.
Esse homem não era alucinação, existia. Não prendia ninguém, a não ser em
nossos pesadelos culposos. O Capa Preta servia às mães para assustar filhos: “Ele te
leva… se não fizer o que eu mando, se não tiver boas notas na escola, se esquecer o
dever de casa, se não ajudar na cozinha, se não comer a comida do prato, se não
lavar os pés…”.
Crueldade! Aos poucos, o Homem da Capa Preta perdeu prestígio: não fazia mal a
ninguém, era bom, e os meninos começaram a lhe jogar pedras e busca-pés de São
João. Sangrando, o leproso fugiu e nunca mais voltou. Morreu das feridas, não da
lepra.
Quem seria o enlutado? Serviço secreto? Teria parte com o diabo ou seria mais
sólido, terreno? Destoante demais: discrepante, disparatado.
“Só se for do serviço secreto português…”, dizia Walter, caixeiro, encostando a
barriga no balcão. Mateus e Filisberto, lusitanos, faziam que não ouviam.
“Pode-me vender, por gentileza, chá Lipton inglês importado?”, perguntava o
enegrecido, como se pairassem dúvidas sobre as intenções do nosso comércio.
“Tudo que está à mostra vende-se, cavalheiro!”, dizia Walter. “Menos a caixeira,
moça de fino trato, e eu… O resto pode levar.”
“Quanto lhe devo?”, questionava o estrangeirote.
“A mim, nada, mas ao patrão… deixe-me ver…”, Walter imitava o estilo
norueguês.
Um dia, Mateus e Filisberto resolveram descobrir quem era o cara-pálida, sob a
curiosa e veraz afirmação de que “Deve ser alguém!”.
“O senhor, diga-me lá… por que anda assim tão esquisito, fora do comum, de
propósito, fora de moda e lugar…?”, perguntou Mateus.
“O estilo é o homem…”, redarguiu, pois não era homem de apenas responder o
distinto diferente. “Cada qual tem seu estilo. O de vossas senhorias é
inconfundível…”, acrescentou de forma a não ofender, ironia dissimulada, voz
aflautada e doce.
“O senhor é padre? Tem parentescos com a religião?”, perguntou Filisberto, sem
sutilezas, mordendo o charuto e cuspindo a lasca mordida. “Padre ou pastor, rabino,
macumbeiro, pai ou mãe de santo, coisas caindo mais pros lados de Deus? Tem a ver,
por acaso?”
“Nem acaso, nem vocação…”, obtemperou o estranho, pois que não era homem
para apenas redarguir. “Sigo com denodo o caminho da ciência e não aquele que nos
leva ao dogma. Respeito, porém, todas as religiões, por mais africanas que sejam,
animismo, até as mais rasteiras!”, prolongou-se, esmerando-se em detalhes fonéticos,
demorando o dobro do tempo necessário pra dizer o mesmo, caso apressado.
“O senhor… diga a verdade… é rosa-cruz, adventista do décimo terceiro dia,
esotérico ou maçom?”, voltou Mateus com a adivinhação, ao invés de perguntar logo
quem era o homem.
“Embora não se devam dar a conhecer, conheço esses senhores…”, retorquiu o
forasteiro, que não era homem para apenas obtemperar. “Na verdade, talvez devesse
ter-me iniciado… porém, pedreiro…” – e se engasgou na dúvida. “Talvez… houve
época… pensei possível. Quais as vantagens? O lucro é o homem!”
Filisberto, redondamente gordo, deu a última tacada – tacada gorda!
“Se o senhor é assim tão esquisito, mas não é padre camuflado de pedestre, nem
maçom disfarçado de protestante, nem chefe da Guarda Civil, nem sargento da
Polícia Especial, se não é galinha-verde nem galo preto de Exu, por que se veste
assim como urubu, se o senhor não é merda nenhuma conhecida nessa vida?”
“Nem português!”, interlocutou o elegante estranho, fazendo alusão à
nacionalidade dos amigos.
“Nem português… Então, está-se a ver que só pode ser alemão!”
Pausa triunfante: haviam descoberto a nacionalidade do homem. Quem não era
tudo aquilo que sabiam existir, quem não era nada de conhecido, é claro que só
podia ser alemão!
“Infelizmente não sou alemão…”, contrariou o indigitado teutônico. “Sou
brasileiro, desgraçadamente… Nasci em Cajuazeiro do Sul, no Piauí…”
“Tem gente que ainda nasce no Piauí, apesar de tudo… O lugar é tão merecedor
como qualquer…”, defendeu Filisberto sua pátria adotiva. “Dizem que o Piauí está-se
a acabar, mas ainda anda por lá…”
O falso alemão protegeu-se: “Não estão de todo enganados: fui educado na
Alemanha, sim, Köln…”.
Pronunciou a palavra Köln com tanta sutileza aveludada, tanto cetim e musselina,
que nenhum brasileiro, muito menos alemão, entenderia de que raio de cidade
estaria falando.
“Köln, que vocês chamam Colônia… Köln… Köln… Köln… Foi lá que me
eduquei”, esmerou-se.
“Que nem água-de-colônia?”, perguntou Mateus, entretido com a conversa do
suado chapéu-coco branco e roupa preta.
“Precisamente… Kölnwasser, Glockengasse, 4711…” – sabia até o endereço. “Lá
construíram belo museu revelando os segredos da água-de-colônia, Kölnwasser! Os
europeus prezam suas tradições, por isso existem lá tantos museus como aqui
botequins: um em cada esquina.”
“A gente preza a cachaça…”, sorriu Walter, repleto de patriotismo. “Em Minas
Gerais…” Foi cortado: o alemão atraía mais atenção do que qualquer autóctone
trivial dissertando sobre temas alcoólicos.
“Sua graça?”, quis saber Filisberto e, mesmo que o alemão não tivesse pedido
explicações, explicou: “Graça quer dizer, como se chama? Como é a porra do seu
nome? Sua graça?”
“Eu me chamo Roethe, doktor Karl Roethe Ribamar.” Carregava fanático na
pronúncia do setor alemão, esmaecendo o magricela Ribamar… cuja origem, a bem
da verdade, era o Maranhão, não o Piauí.
Deu por encerrada a conversa e foi-se às compras: “Faça-me a gentileza: cinquenta
gramas de margarina. Seja amável: broa de milho. Tenha a bondade: cerveja Malzbier
e um ovo… Se não for incômodo, uma dúzia de ovos, em separado…” – a padaria
parecia supermercado subdesenvolvido!
Assim falava, cheio de remelexos. Incapaz de dizer, como todo mundo: “Me dá!
Porra, eu estou com pressa!”. Não tinha pressa, não ia a lugar nenhum.
Em outras visitas à padaria, respondendo às perguntas indiscretas, o jovem
colonial contou que seu pai tinha-se casado com uma turista alemã separada do
marido sueco, que chegara atrasada ao navio nigeriano de volta à Europa, em um
tour organizado por uma agência de viagens turca – dizia-se que o navio partira
antes do combinado, levando traficantes libaneses foragidos, que haviam pago o
dobro do preço da passagem ao comandante paquistanês, que era casado com uma
norueguesa ciumenta, em suma, babélica história marítima, coisas que só
acontecem em alto-mar.
A mãe hospedou-se em uma espelunca do porto, esperando o próximo navio, e,
como não tinha o que fazer, bebia cerveja a ver navios e foi ali que conheceu um
fazendeiro rico que a confundiu com outras mulheres que também esperavam
melhores dias, bebendo cerveja, vendo navios e atendendo à freguesia, quando
havia. Casaram-se e ficaram morando no Piauí.
Nasceu o filho. Quando doktor Karl tinha seis anos, por intransponíveis diferenças
culturais, a mãe voltou pra sua terra levando o filho e ambos fizeram o possível para
arrancar o Ribamar do nome, depois do terceiro casamento materno, mais
endogâmico, com um violinista tirolês de calças curtas e penas verdes no chapéu.
Até que veio a guerra, o pai adotivo morreu em combate encarniçado à baioneta.
Doktor Roethe e a mãe, empobrecidos, decidiram tentar a vida em solo piauiense,
como piauienses da gema; foram ao encontro do Ribamar pai, em busca de sustento
e – quem sabe? – reconciliação. Mas o velho grileiro Ribamar, ainda mais rico, já
estava casado em sétimas núpcias com uma moça de dezessete anos que nem quis,
nem ao mínimo dos menos, apertar a mão da família Roethe, que cada vez encolhia
mais. Como Ribamar era por demais milionário, deu-lhes dinheiro de sobra pra
comprar casa e morar no Rio. Subúrbio, é claro: Penha. Bem longe do gado e da
esposa do coronel!
Doktor Karl repetia: “Infelizmente, nasci no Piauí… Com tantas cidades bonitas na
Alemanha… Giessen e sua ponte pedestre suspensa… Berlim cosmopolita,
Hamburgo e seu gigantesco porto… Wiesbaden e seus célebres banhos… Gauting e
sua bucólica rua principal, Mainz e as bíblias de Gutemberg… Saarbrücken e suas
dançarinas, Wuppertal e seu museu neandertaliano… Fui nascer logo em Cajuazeiro
do Sul e seus cajus…”.
Antipático o homem de preto. Afinal, falava da nossa pátria, ora essa. Um homem
que usa bengala não tem o direito de falar mal dos povos que não usam bengala, ora
veja! Bengala pra quê, se não se é coxo?
Acabamos habituados às impertinências germânicas.
O TELEFONE PRETO: 30-2473
Tocava o telefone, o primeiro a ser instalado no bairro: 30-2473! Número mágico.
Alguém atendia: recado, por favor, manda chamar.
Raramente tocava: havia poucos no Rio. Quando soava, susto: foi difícil nos
habituarmos com o som que disparava esquisito, inumano. Som de telefone antigo
era fantasmagórico, extraterrestre.
“Pode chamar dona Fulana, rua tal número tal?”
Quinze minutos até que alguém atendesse o pedido, o fone pendurado. Cachorros
curiosos, conversando entre eles, vinham lamber. Adoravam lamber telefone, olhos
brilhando. Parecia osso preto: sei lá o que se passa na cabeça de cachorro. Mordiam.
O fone ficava cuspido de baba de cão.
Um cachorrão abusado, inventor de encrenca, depois de rosnar, quebrou um
dente mordendo o fone, puxou o fio e arrebentou o aparelho, que caiu da parede.
Veio o técnico da companhia refazer a ligação. Quem paga? O dono do cachorro
desdentado precisado de cuidados odontológicos, o freguês que demorou em
atender, ou a telefônica? Meu pai, dono da linha, é claro.
Daí por diante, descobriu-se que o fone não precisava ficar pendurado: podia
repousar em cima do balcão, fora do alcance das dentaduras caninas… Avanço
civilizatório.
Uma das pessoas que mais telefonavam era dona Hildegarde. Outra alemã.
Desbocada como ela só! Tinha aprendido ou fabricado uma coleção invejável de
palavrões adaptados a todas as circunstâncias. Como fazia sucesso, não perdia
oportunidades! Mais engraçada ficava com sotaque cheirando a chucrute e linguiça:
palavrão brasileiro, pronunciado com fumegante acento alemão, era de morrer de
rir. Dizia palavrões com a inocência plena de uma estrangeira que não sabe o que
diz: as palavras, na língua materna, têm história e pré-história; em língua alheia,
história só. Se digo “minha mãe” é só a minha: ma mère, my mother, madrecita… são as
de todo mundo. Mãe é o que mais existe! Mais que pai!
Hildegarde me provocava: queria me casar com a filha, Belinha. Me abria o apetite
com delícias pós-matrimoniais: “Vais te casar com ela e depois lhe pões a piroquinha
dentro…”.
Dentro do quê? Onde? Como? Queria ser minha sogra, melhor, consogra do dono
da padaria! Sem meias palavras, eu aclarava: “Casar não é possível porque minha
mãe já decidiu: vou me casar com a princesa Margaret! Agora, a piroquinha… vamos
ver… Seria pra quando?”, eu me emocionava, seduzido, e olhava Belinha regando o
jardim – minha piroquinha inquieta. Estava pronto a aceitar princesa distante,
satisfazendo minha mãe, mas seduzido por Belinha, que morava a olho nu, sem
oceano de permeio.
A princesa mencionada era a da Inglaterra: ainda bem que minha mãe não era
ambiciosa e poupava a rainha, conformava-se com a irmã mais nova. Se não… Philip
teria tido um poderoso rival!
Quando Belinha vinha comprar manteiga era eu que me derretia!
Outra que passava horas telefonando era Dalvinha. Casada com o mecânico de
automóveis, João Bobalhão: digamos, com gentileza, pouco ilustrado. A moça virou
gorda, mãe de três filhos: um branco, um negro e o primogênito, azul.
Explico: nervosa, Dalvinha procurou Bobalhão e lhe propôs casamento. Quando o
queixo pendurado do proposto noivo voltou ao lugar, acertaram as bodas para a
semana seguinte e Dalvinha deu à luz um prematuro menino de cinco quilos depois
de quatro rápidos meses de gestação.
Ninguém acreditou que fosse prematuro, demasiado robusto para tão curtas
circunstâncias, e por causa dos olhos azuis e do cabelo aloirado, cacheado, parecido
com não se lembravam que leigo ou que padre, diferente do presumível pai,
Bobalhão, pele morena. A cor negra do segundo filho era explicada pela ascendência
paterna – teria havido um negro na frondosa árvore genealógica do João, galho de
cima. Além disso, fatores psicológicos intervieram, é lógico: nove meses antes da
gravidez, Dalvinha tinha-se convertido ao candomblé e frequentava terreiros em São
Gonçalo e São João de Meriti – a maioria dos participantes era negra, reluzente.
Assim, por mimetismo religioso incontrolável… mistérios… deu no que deu!
A brancura alvar do caçula era porque o ventre ia aos poucos se purificando.
Assim se explicava a cor dos filhos. Deus seja louvado! Esse mesmo Deus que
Dalvinha adorava através da sua nova religião, o espiritismo kardecista. Dalvinha
amava a Deus sob qualquer pretexto e sob todos os aspectos, formas e rituais. Seu
guia espiritual, expulso de sua igreja por indisciplina, incorporava espíritos
agressivos, atléticos, que adoravam brincar com Dalvinha.
Dalvinha telefonava sem olhar pra gente. Acho que nunca reparou que eu existia.
Melhor pra mim: estava gorda.
Trabalhar na padaria só era ruim quando um empregado faltava. Ruim ter que
escutar conversas do padeiro Dagoberto contrariando Walter, pra quem sexo era
ginástica melhor do que nadar ou andar a cavalo – cooper não existia –, e o padeiro
dizia que muito sexo causava tuberculose…
“Então já morri!”, ria Walter. “Morro tuberculoso todo domingo, no Mangue…”
O Mangue era onde hoje é a prefeitura, lugar que já se chamou Vila Mimosa,
menos insalubre. Mangue, hoje, é sinônimo de ecologia – vida; naquele tempo,
gonorreia, cancro, sífilis – morte.
Quando o furacão dos fregueses amainava, Dagoberto fazia a louvação da
sardinha em lata assada em pão francês: deliciosa maravilha. Para experimentar era
preciso uma ordem: quando meu pai trabalhava na outra padaria, a Mafra, só quem
podia dar ordens era eu.
Sardinhas assadas no pão ficam maravilhosas, molho de tomate encharcando o
miolo branco. Meu pai viu latas de sardinhas vazias. Contei a verdade. Aceitou. Me
senti gente, gerente poderoso: menino que podia autorizar o padeiro-chefe a fazer
sanduíches de sardinha em lata!!! Então já não era menino: era homem!
Por pouco não decidi ser padeiro, tamanho o poder de que me senti investido.
SONHO DE ESCRITOR
Eu gostava de ler e escrever. Não queria que ninguém soubesse que eu era escritor e
me fechava num quarto-depósito de tralhas, onde minha mãe costurava. Já
morávamos em apartamento, pequeno. Dizia meu pai, à guisa de consolo: era nosso!
“A primeira coisa que um homem deve fazer na vida é comprar casa própria!”,
dizia seu Boal. Nós nos habituamos a viver em apartamento apertado, crescendo
quando meu pai comprou a casa ao lado.
Eu abria a janela que dava para o tanque onde minha mãe lavava roupa miúda. A
pesada dona Ana lavava em sua casa. Não havia máquina, tudo na mão e, lógico,
fazia parte das ocupações femininas: imaginem homem lavando roupa!!! Heresia!!!
Infâmia!!! Desonra!!!
Em cima da máquina de costura, escrevi minhas primeiras peças.
Ana lavadeira, casada com Aristeu, que trabalhava na Light. Como ele tinha
direito a atendimento médico gratuito, quando dona Ana ficava doente, explicava ao
marido os sintomas e ele ao médico da Light: mentia que sentia os sintomas da
esposa e recebia de graça receita e remédios. Numa consulta, o médico esbravejou:
“Pelos sintomas, o senhor está com mioma no útero e complicações nos ovários!
Vamos operar!” O médico deu remédios mas recomendou abstinência sexual por
dois meses – castigo!
“Quer que ajude, mãe?” “Não precisa: escreve”, respondia.
Meu primeiro “romance” foi uma reescritura de textos sobre Pedro, o Grande e
Catarina da Rússia. Eu queria final diferente, mais unhappy ending. A máquina de
costura Singer foi minha primeira mesa de trabalho. Tinta nanquim. Sentia prazer
em desenhar a letra, pintada.
Comecei a ler tragédias gregas: na mitologia grega, algumas histórias se pareciam
às das mitologias nagô e ioruba. Édipo e Orungan são mitos semelhantes – na versão
negra a violência é maior: Orungan arranca seus filhos-irmãos do ventre de sua mãe
e os mata.
Na máquina de costura escrevi peças misturando mitologias com vidas das
pessoas que eu via! Átridas e Fuas Roupinho.
INJUSTOS JUSTICEIROS
Em 1941, os Estados Unidos entraram na guerra, pouco depois da invasão da União
Soviética pela Alemanha e do início da política da Boa Vizinhança em substituição à
política do Big Stick, com a qual, sem o mínimo respeito ou compostura, os Estados
Unidos se davam o direito de invadir qualquer país do seu quintal – a América
Latina! – que não seguisse estritamente seus desejos. Renunciavam ao direito escrito,
não às invasões… e continuaram invadindo. Panamá, Granada…
Com a Boa Vizinhança deixamos de ser bons selvagens e aprendemos a cantar:
Carmen Miranda, sucesso na Broadway e Hollywood, cachos de bananas douradas,
uvas de esmeralda e abacaxis azuis.
Havia o sério risco de o nazismo avassalar o mundo. Os Estados Unidos ficaram
flexíveis na economia e o Brasil pôde desenvolver sua indústria: criou-se a
Companhia Siderúrgica Nacional em 1941 e a Vale do Rio Doce em 1943. Nosso
orgulho: podíamos fabricar aço e laminados, como gente grande. Fábrica Nacional de
Motores: estávamos entre os países poderosos.
Em 1943, o Brasil, que havia entrado na guerra no ano anterior, formou a Força
Expedicionária Brasileira e foram nossos soldados conquistar monte Cassino e monte
Castelo! Vargas namorava o Eixo. Permitir o nosso desenvolvimento econômico foi
parte do acordo para que o governo brasileiro mudasse de lado e de ideologia.
O ódio contra alemães, mais que contra italianos – japoneses nem eram notados,
assemelhados aos chineses de pastelaria –, cresceu. Soldados brasileiros matavam e
morriam na Itália e, no Brasil, ninguém esquecia que os galinhas-verdes –
assimilados aos alemães – tinham, durante anos, cometido violências contra a
população. Torturas a granel e assassinatos, receita ariana: comunistas, gays e
ciganos.
Formaram-se grupos antinazistas; na Penha, o Justiceiros Contra o Nazismo:
grupo de homens irados para castigar alemães pelo simples fato de serem alemães –
vinte ou trinta homens armados, paus, facas e punhais. [1 ]
Alguns desses Justiceiros eram antigos galinhas-verdes, afilhados de Plínio
Salgado, galinha-verde-mor. Hitler no poder, nazistas; venciam os Aliados: morte ao
nazismo!
Para justificar o nome, precisavam de vítimas. Chefiados pelo João Bobalhão –
marido confesso de Dalvinha, suposto pai de filhos branco, negro e azul, ex-galinha-
verde, que, como indicava o apelido, absolutamente não era um gênio –, saíram às
ruas, decididos a tomar vingança pelo afundamento de um navio brasileiro por
submarinos nazistas. Primeiro, quiseram dona Hildegarde e seu insofismável
sotaque: mais alemão, impossível. Alguém objetou: “Ela já é brasileira, fala até
palavrão em português…”.
“Ver pra crer!”, ponderou Bobalhão.
Foram à casa de Hildegarde, bolinaram Belinha em toda a superfície do seu corpo,
incluindo as partes escondidas, trouxeram a velha pro meio da rua, fizeram roda e o
Bobalhão mandou que ela dissesse quantos palavrões soubesse. A enciclopédia do
palavreado afoito sabia os usuais, os em desuso e inventava neologismos aviltantes.
Foi perdoada por motivos escatológicos. Perdoada com aplausos!
Os Justiceiros foram buscar o dr. Roetke e sua mãe: Karl havia mudado de nome,
chamava-se Carlinhos Kid Ribamar, flamenguista fanático, frequentador de
macumba, colares bentos e figas, e sua mãe não podia atender ao gentil convite do
Bobalhão porque se encontrava acamada com suspeita de meningite, apendicite e
estomalactite – exibia diagnóstico e receita fornecida pelo farmacêutico, que podia
ter os defeitos que tivesse… mas era solidário.
Foi tão sincero o teuto-piauiense, “Me proteja, Padim Ciço”, que falava agora com
o mais puro acento nordestino, “Num sabe?”, e os Justiceiros acreditaram, “Ô
gente!”. Mesmo acreditando, quiseram prova de patriotismo do ex-admirador de
Köln e sua catedral, Wiesbaden e seus banhos, Saarbrücken e suas coristas:
mandaram que cantasse o Hino Nacional com patriotismo e fervor. As duas partes
inteiras até o “dos filhos desta pátria és mãe gentil, terra adorada, Brasil”!
“É muito comprido, uai! N’é não?”
Esse erro quase lhe foi fatal – misturar Minas Gerais com Piauí, imperdoável!!!
Alterosas com Nordeste, Uai com Padim Ciço, demais! Salvou-se dizendo que a Pátria
Brasileira é grande e indivisível! Dado o calor do momento e a urgência de um bode
bem expiatório, desistiram de castigar o ex-Capa Preta, vestido do mais
resplandecente arco-íris tropical, que entonou com desafinado garbo os primeiros
versos do “Ouvirudu”…
Com voz de tenor, cantou o que lembrava: jamais se viu intérprete tão
emocionado e emocionante. Trinou e tremulou a voz, as mãos no peito e, com
elegância e brilho, ofereceu variantes mozartianas, melhores que o original: foi
aprovado.
Os Justiceiros precisavam dar uma lição a algum alemão: afundaram o Baependi
nas costas de Pernambuco. E nós, não vamos fazer nada? Sangue! Vingança!
“Bater em gente conhecida é chato, fico arrependido! Vamos bater só em
desconhecidos!”, concordou João Bobalhão.
“Na-na rua Gua-Guatema-ma-ma-ma-la te-te-tem u-ma-ma fa-fa-família inte-te-teira
que-que não fa-fa-fala com ninguém… Mora lá fa-faz mais de do-dois meses e não fa-
fala com ninguém…”, acrescentou o Manuel Gago Coutinho, assim apelidado por
motivos gritantes.
Era verdade, mas ao contrário: tratava-se de uma família de alemães comunistas,
judeus combatentes, antinazistas, fugitivos de Hitler que não falavam português.
Ficavam em casa estudando, dicionário na mão e um compêndio na outra, jornais na
mesa…
Lá se foram os Justiceiros, armados de paus e pedras, cortantes facas, perfurantes
punhais. De longe, ouviam-se gritos estrangeiros e vidros quebrados. Do meu quarto,
ouvi gritos, ouvi vidros, ouvi a porta arrombada.
No fim da noite os Justiceiros voltaram: alguns tinham sangue na camisa. João
Bobalhão, sangue na boca.
Sérios, poucas palavras. Esvaziaram garrafas de parati no botequim. Alguns foram
pras suas casas, outros dormiram ali.
No dia seguinte, o jornal A Noite anunciava que uma família alemã, inteira, tinha
sofrido acidente de carro: estavam, pais e filhos, internados no Hospital Getulio
Vargas, em recuperação…
Algumas das vítimas, com sinais de perfuração no corpo por objetos penetrantes.
1 O governo brasileiro chegou a ameaçar com o confisco dos bens de todos os alemães residentes no Brasil, como
compensação pela perda dos nossos navios torpedeados por submarinos nazistas. Isso bastou para que, seguindo
o exemplo da ameaça oficial, algumas casas de alemães fossem assaltadas, e os ladrões exibiam o produto de seus
roubos como prova de patriotismo…
CAPÍTULO 8
RENATA, A LOIRA – OU A SENSUALIDADE DA QUÍMICA INORGÂNICA
Quando entrei para o Colégio Brasileiro de São Cristóvão, aos quinze anos, minha
vida mudou: metamorfose. Borboleta sai do casulo, explorando espaço e tempo.
Principal diferença: viajar de bonde alargava meus horizontes em, pelo menos,
dez quilômetros – à escola eu ia a pé, olhando pros lados; ao colégio, quilômetros ao
redor.
Até meus quinze anos, Penha e Olaria eram o “mundo”; o centro da cidade,
aventura rara. Laranjeiras, vaga lembrança. A praia, franja de branca areia, depois
das montanhas de lixo preto – praia era a madrugada. Festa popular, quermesse na
igreja. Amizades, amigos de rua, portão da ponte.
A humanidade, em São Cristóvão, explodiu caleidoscópica. [1 ]
Aos onze anos eu tinha encolhido: nós nos havíamos mudado do vasto quintal,
bichos, árvores, para apartamento apertado, terraço, flores de vaso, bola de gude no
tapete, pipa no ventilador: perdi o sol e a lua. Agora, meu pai construía quartos
anexos, comprava terrenos e eu mudava de escola – o mundo crescia além do
infinito, invadia o território da marquesa de Santos, amante do imperador, Quinta
da Boa Vista.
Senti a importância de viajar, conhecer bairros distantes!
Bonde, mais barato que ônibus, obedecia a horário. Os motoristas dos ônibus
faziam curvas fechadas – virilidade. Passageiros achavam graça quando caía alguém.
Riam, menos o caído, que podia ser o risonho da curva seguinte.
Bonde não inventava percurso, seguia trilhos: motorneiro tinha o destino traçado.
JOSÉ MARIA, UMA VEZ NA VIDA…
Um se chamava José Maria, o outro também. Trabalhavam na mesma empresa,
motoristas na mesma linha, trajeto. Dobravam curvas, aceleravam subidas, paravam
nas cancelas respeitando a prioridade peso-pesada do trem.
Somando idades, 120 anos distribuídos por igual: sessenta no mesmo mês, dias
pouco distantes. O filho de um se chamava José, a filha do outro, Maria. Eram
casados. À recém-nascida nomearam Maria José, em quádrupla homenagem.
Depois do trabalho, no botequim bebiam cachaça da mesma garrafa, comiam
sanduíches de mortadela. Trocavam ideias em torno do tema teimoso:
aposentadoria.
Cansados: décadas do mesmo caminho, passageiros, bonsdias, buzinas, poeira,
valas, ruas descalças, buracos – tudo mesmice. Os anos futuros davam certeza:
seriam iguais aos já passados. Piorando devagarinho, porque a saúde de um dos Josés
Maria amolecia, pulmões roncavam, tremiam mãos, dedos custavam a agarrar o
volante escorregadio. Aposentadoria: viesse logo. Faltavam cinco anos…
Numa viagem, José Maria, o doente, parou o ônibus apinhado e, com sucumbidos
alentos de uma vida desmaiada, deu a última informação: “Vão me desculpar, mas
não aguento mais. Façam o favor de descer e peguem o ônibus do José Maria que
vem atrás…”.
Sentou no seu lugar, fiel amigo de vida inteira, agarrou o volante desgastado,
pousou a cabeça, doce, e morreu tranquilo, sem esperar aposentadorias.
José Maria, o são, veio mais tarde. Não quis acreditar. Foi obrigado, vendo o corpo
gelado do amigo duro, rigidez de estátua.
“Hoje vou fazer o que sempre quis…”, gritou José Maria. Entrou no seu ônibus e,
enterrando o pé, desviou-se de todos os caminhos consabidos, subiu ruas virgens de
suas rodas, ladeiras insuspeitadas, arrancou cancelas fechadas, escapando do maria-
fumaça resfolegante, negro trem assustado; não parou em nenhum ponto, não
atendeu apelo ou campainha, grito de espanto ou voz de misericórdia. Em hora e
meia, percorreu todas as ruas proibidas, invadiu o mangue, surdo aos gritos
prostitutos da Zona, atravessou o cemitério do Caju sem tempo pra rezar por
nenhum morto surpreso, amedrontado. Parou quando o poste irredutível disse:
“Basta, é demais!”.
Muitos ficaram feridos, ele mais que todos, escoriado. No hospital, a notícia:
quando de alta, receberia voz de prisão.
“Não tem importância. Uma vez na vida, fiz o que queria… andei pelos caminhos
que escolhi… Esqueci o freio, pisei no desejo…”
AMIGOS E PROFESSORES
Pra economizar dinheiro e comprar revistas, eu gostava do bonde taioba, que
transportava gente e bagagem. De pé, conversando com cachos de banana, latas de
manteiga e banha, caixas de azeite, sacas de feijão e de arroz.
No Colégio Brasileiro, eu tinha um amigo: Israel, que viera comigo do Santa
Teresa. Foi ao Israel que mostrei, orgulhoso, minha primeira “biblioteca”, ainda no
curso primário: caixa de madeira de maçãs argentinas. Com arames e pregos, eu
tinha instalado um pano que corria na frente da caixa para proteger meus livros da
poeira.
Que livros? Por favor, não riam: Vargas Villa, Eduardo Zamacois, As leis do triunfo,
de Napoleon Hill, espécie de Dale Carnegie simplificado… Literatura espantosa,
tremendos melodramas misturados com livros didáticos, Os miseráveis, de Victor
Hugo, Os lusíadas, de Camões, A carne, de Júlio Ribeiro (romance erótico, nada de
açougue!) e uma Bíblia doada por uma família protestante vizinha. Eclético!
Em todos os países do exílio, a primeira coisa que fiz foi a biblioteca.
E pendurei quadros. Carregamos, a família exilada, dois quadros naïfs comprados
na Argentina. A pintora, Ana Sokol, romena, ganhava a vida como barbeira antes de
ser conhecida em arte; quando reclamávamos do preço dos seus quadros, batia na
madeira (não pintava em tela) e exclamava: “É caro, mas a madeira é boa! Não dá
cupim!”. Até hoje tenho seus quadros e tenho saudades.
Israel e eu ficamos amigos do Silvan, filho do nosso professor de matemática e
violinista. Eu não tocava nem cuíca… Inveja: violino! Israel ouvia discos de música
clássica – os dois conversavam sobre Mozart, Wagner, Beethoven; eu ouvia Noel,
Sinhô, Chico Alves, Carlos Galhardo, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Gonzaga pai,
Moreira da Silva… Envergonhado, desta lista omito Vicente Celestino – sabia de cor
“O ébrio”, da primeira até a última gota de cachaça! “Coração materno”, nem se fala:
eu tropeçava em corações saltitantes! De repente, surgiu Ângela Maria em nossas
vidas: era unanimidade.
Silvan e Israel eram os melhores alunos da classe – eu talvez o terceiro, quinto ou
sétimo… sei lá, nono. Não era pior, nem melhor. Só estudava matérias dos
professores de quem eu gostava.
No curso ginasial, tive o professor Erasmo, que me revelou a matemática e me
ensinou a pensar o mundo de forma racional, a procurar causa e razão de todas as
coisas, a fórmula, o teorema, as hipóteses. Me ensinou a descobrir os porquês.
O professor Peçanha com cedilha ditava a aula e nós copiávamos a vida sórdida de
reis e rainhas, sangrentas guerras do Peloponeso, torturas inventadas pelo Flagelo de
Deus, aventuras de Marco Polo – tudo com letra bem desenhada, asséptica. Hunos,
godos e visigodos, vikings inventando a Rússia e Vasco da Gama dando a volta ao
mundo, genocídios indígenas e escravidões negras, tudo isso mal passava pela minha
consciência e ia direto para a página branca – os alunos só se preocupavam em saber
se tinham ouvido ponto ou ponto e vírgula.
Quando a mão cansava, gritávamos: “Professor, conta uma lendinha!”.
Transfigurado, Peçanha teatralizava mitos, revivia invasões e desembarques,
personificava heróis e vilões, protagonizava guerras e nós descansávamos a mão
direita. As lendinhas do Peçanha foram, para mim, a verdadeira história. Teatro!
O professor Edgar me ensinou que a geografia não estava no mapa, mas na
realidade viva de oceanos, continentes, vulcões, ilhas, rios, montanhas. A geografia
não podia ser entendida sem história, as duas eram só uma. O ser humano vivia
numa e fazia a outra.
No científico, o professor Vitória me aconselhava leituras, livros verdes,
vermelhos e azuis da Editora Nacional, humanidades. Vitória gostava de poesia e nos
fazia ler Edgar Allan Poe. Lembro o professor de filosofia e de história, David Perez,
velhinho animado, parecido com o Pafúncio, marido da Filomena, superinteligente,
superculto, superengraçado, superteatro, supertudo. Durante um exame oral,
presidente da banca, sério, perguntou a um aluno quem tinha sido o assassino de
Júlio César.
“Eu não posso mentir, professor…”, respondeu o aluno, comovido com a morte
do romano ilustre. “Não tenho a menor ideia de quem foi o covarde assassino… Nem
sei os motivos, nem sei quem foi esse Júlio, nem sei se merecia a morte ou se castigo
brando bastava…”
“Foi você?”, tentou ajudar Perez, com a seriedade que o tema fúnebre requeria.
“Deus me livre, professor! Eu seria incapaz desse crime!”, assustou-se o aluno.
“Eu também não! Ipso facto, já temos uma pista…”
Era assim o professor Perez: ensinando latim na aula de história, filosofia na de
latim, história na de filosofia e se divertindo com a nossa ignorância em todas essas
matérias.
RENATA, A LOIRA
Eu gostava de química pelo professor Gildásio e porque Renata adorava química. No
primeiro olhar, Renata entrou na minha vida. Eu tinha dezesseis anos e precisava,
urgente, de uma namorada, quanto mais não fosse, pras mãos dadas, cheirando o
pescoço. Quanto mais não fosse e, naquelas épocas, mais não era, nunca.
Israel, Silvan e eu saíamos juntos do colégio, andávamos até a esquina onde
morava Silvan, ficávamos conversando, antes de nos despedirmos. Às vezes, vinha
conosco a loira Syboney, que ficava menos tempo porque morava em Vigário Geral e
tinha que tomar o trem na Estação Leopoldina.
Creio que estávamos apaixonados pela Syboney. Era tão boa aluna como eles,
melhor do que eu. Penso que gostava de nós três. Mesmo com tantos gostares
ninguém nunca – ao que eu saiba! – confessou nada. Nem para si mesmo.
Quando ela estava presente queríamos ser os mais espirituosos, revelar
profundidade na análise dos livros lidos, possuidores de maiores conhecimentos
gerais. Queríamos ser os mais dignos dela!
Syboney não era a mais bonita: era terceira. Primeiro, Renata, beleza natural, e,
segundo, a outra, artifícios.
Ah, a outra, ah!… Generosa. Isso: a moça se chamava assim com todas letras.
Maria Generosa. Pais desalmados. Com tanto nome de santa…
Renata e Generosa eram as bonitas da classe. Generosa pintava olhos e boca como
mulher grande, beleza produzida: usava batom, única em todo o colégio. Quando
queria alguma coisa pegava nossa mão. Esquecia a sua na nossa, virava pro lado e
falava com outra pessoa. A mão ficava agarrando nosso braço, ombro. Até pescoço.
Ela trocando ideias com a amiga. Descontraída.
Dezesseis anos, naquele tempo… dava nervoso. Generosa fabricava nervosismos:
polvorosa. Com o espelhinho da bolsa retocava os lábios, olhava pra trás pra ver
quem olhava pra ela e ficava olhando pra pessoa e a pessoa olhando pra ela, e o
espelho também olhava, espelhando olhares. O que rolava de olhares naquela sala,
quando Generosa estava num dos seus dias exuberantes, não era normal!!!
Queria contar segredo e chegava na minha orelha, colada, que eu ficava de batom
manchado.
Se um de nós ficava na porta, a morena Generosa – vestidos estampados de aves e
flores: fauna e flora amazônicas eram temas de suas saias –, a dançante Generosa
dava jeito de sair da sala roçando nossa perna, atiçando. Além do batom, perfume:
era demais, gente, por demais demasiado! Nós não fazíamos nada. Conversávamos
filosofia, álgebra, geometria… Era assim naqueles tempos – vocês, hoje, têm mais
sorte.
Os tempos mudaram. Hoje, aos catorze anos, pouca gente é virgem. Naquele
tempo ficava-se incólume até mais tarde. Namoro é cultura, muda com o tempo. A
biologia, no entanto, não é cultura: o corpo humano deseja em qualquer tempo. [2 ] O
corpo humano andava nervoso, farejando inquieto.
Renata, contrário da Generosa: sua cor, a da pele; seu perfume, o do corpo. Que
pele, que perfume!!! Que cor, que corpo!!! Não sei se embelezo lembranças, endeuso
memórias, divinizo recordações, mas penso que Renata… gostava de mim. A gente
falava baixinho, pertinho. Gostava, sim. Eu pensava. Penso que pensava. Pensando
bem, pode ser que não. Era, sim. Quem sabe? Sei não…
Generosa era generosa em direções sem fim; Renata me tratava com carinho só
pra mim. Eu retribuía, pletórico, sem exageros. Acho que era namoro – cada idade
tem sua feição. Ela me contava sonhos: os da noite e os de futuro. Ninguém conta
sonhos se não gosta. Renata contava. Eu também. Só não contei meu sonho maior:
Renata. Fiquei devendo.
Talvez outros rapazes da classe pensassem como eu, Renata gostando deles.
A CARREIRA DE DOUTOR E O AMOR
Ficamos assim dois anos. No terceiro, tínhamos que escolher carreira. Meu pai dizia
que eu tinha que levar a vida a sério. Professores diziam que escolhêssemos por
motivo sério.
Rapazes seriam engenheiros, médicos: profissões bem pagas, prestígio. Moças se
arrependiam de terem entrado para o científico e não clássico e optavam por belas-
artes ou desistiam, buscando casamento.
Meu pai perguntou ao vendedor do fermento Fleischmann quanto ganhava de
salário. Nada. Quanto ganhava o químico responsável pelo fermento? Enormidade. A
partir daí, a profissão de químico passou a ser valorizada. Sábio, meu pai comentou:
“É melhor ser químico do que vendedor de fermento…”.
Israel escolheu engenharia e foi para Brasília, trabalhando com o engenheiro-
poeta Joaquim Cardoso, autor do O coronel de Macambira. Silvan, que tocava violino,
instrumento diplomático, tornou-se embaixador. E eu? “O que é que você acha que
eu vou ser?”, queria que alguém desvendasse o meu futuro.
Um dia, Alzira, apaixonante colega, e eu nos encontramos na cidade. Tomamos
milk-shake e conversamos sobre o futuro. Alzira decidida: seria professora, custasse
o que custasse.
“Vou ser professora… Do quê, depois se vê!”
Eu ficava fascinado com a ferrenha determinação. Havia qualquer coisa errada
comigo que não me deixava decidir: eu gostava de tudo, mas não podia ser tudo.
Decidi decidir. Tomei a decisão: “Alzira, vamos ao cinema!”.
Chamava-se Trianon: [3 ] O espetáculo começa quando você chega! Noticiários, desenhos,
brevidades. Cada um pagou a sua entrada.
Sentamos aconchegados, eu sentindo o cheiro da Alzira, que ficava nervosa com o
que via na tela e exalava cheiros segundo as emoções: guerra e saltos a vara, corrida
de cavalos, natação, futebol: a cada lance, um cheiro, e Alzira agarrava meu braço,
apertava.
Veio um documentário sobre reprodução animal. Quantidade enorme de
coelhinhos. Alzira pediu: “Augusto, você me dá um coelhinho?”.
“Alzira, coelhinho não posso…”, eu não sabia onde comprar coelhos.
Os filhotes continuavam o desfile: “Augusto, você me dá um porquinho-da−
índia?”.
“Alzira, da Índia não posso, não…”
“Augusto, você me dá um cavalinho?”
Eu, cheirando o cheirinho: “Alzira, cavalinho não dou…”.
Apareceu um berçário, bebês de todas as caras e cores. Antes que Alzira pedisse,
ofereci: “Alzira, desses, dois ou três posso te dar… você querendo…”.
Ela fechou a cara e não falou comigo quinze dias. Eu insistia:
“Você decidiu mesmo ser professora? Carreira séria…” Alzira emudecida. Não me
via, nem ouvia – cega surda-muda. Só porque eu disse aquilo.
Não soube interpretar o explosivo mutismo: Alzira não disse sim nem não,
sabendo que eu gostava dela e eu sem saber se ela gostava de mim, mas pensava que
gostava, como eu gostava da Renata que talvez gostasse de mim também, porque de
alguém tinha que gostar e eu estava à disposição pra ser gostado, podia muito bem
ser gostado! Gostasse, gostaria de ter gostado. Naquela idade, gostávamos de gostar e
ser gostados, gostosos. Alzira gostava de quem se não de mim?
Nenhum namoro se concretizava: paixão pairando. Se um de nós dissesse “Estou
apaixonado!”, não precisava dizer por quem. Como se a frase não necessitasse objeto
direto. Como se admitisse objeto flutuante: “Estou apaixonado pelas Renata,
Rosinha, Ramona, Rute, Rosalva, Rosalinda, Syboney, Cydnéia, Cecília, Silésia, Inês,
Idalina, Isabel, Eduarda, Eliana, Myriam com i e com y, Madalena, Marialva, Maria
Antonia, Maria Aparecida, Maria José, Maria Vitória, Mariúska, Alba, Albertina,
Amélia, e por você, Alzira, meu verdadeiro amor… e também pela… pela… como é
mesmo que se chamava aquela freguesa da padaria? Elizabete… Não, Belinha… Ah,
esqueci… Amor criança…”.
Éramos o que se podia chamar “pessoas puras”. Eu estava apaixonado por todas as
colegas da minha classe e pela maioria das moças do colégio inteiro e, pra não faltar
à verdade, até por professoras e vizinhas. Só escapavam amigas da minha mãe. Isto é,
algumas. Paixão avassaladora, torrencial. Eu gostava de gostar, apaixonado pela
paixão!
Amores podiam esperar: profissão era urgente! “Que profissão, meu Deus!?”
Angústia! Medo! Queria teatro. Depois de dirigir cabrito, quatro irmãos certos e
primos aleatórios, depois de poesias e contos, diálogos esparsos e novas versões de
velhos romances, eu não queria parar: queria teatro! Teatro.
Onde a coragem de contar ao pai? Jamais entenderia, quanto mais permitir…
Teatro, para ele, eram brincadeiras que fazíamos em família, três chapinhas de
cerveja, ou eram as revistas musicais do Teatro Recreio, na praça Tiradentes.
Beatriz Costa – cantora portuguesa que vinha todo ano ao Brasil –, Oscarito,
Grande Otelo e outros artistas imitavam políticos, em “cortinas” – números cômicos
ou canções, no proscênio, enquanto maquinistas trocavam cenários. Usavam-se
cortinas entre cenas em que bailarinas trocavam uma nudez por outra. Os
espetáculos terminavam em cascata de água verdadeira sob aplausos entusiásticos
para águas e bailarinas quase nuas.
Revistas chamavam-se assim porque passavam em revista os fatos políticos
marcantes de cada ano. Pra driblar a censura, críticas ao regime ditatorial
terminavam com alguém clamando: “Até parece sabotagem à obra do nosso grande
presidente…” – Getulio mandava liberar.
Gostávamos de teatro, mas íamos pouco: meu pai achava a praça Tiradentes
inconveniente: já era local de prostituição de travestis, que começavam a trabalhar
mais de noite mas, antes, já desfilavam.
Meu pai e minha mãe – ela mais aberta às ideias insólitas – não poderiam
entender meu desejo, nem imaginar que teatro pudesse ser estudado em
universidades. Como bom imigrante, meu pai dizia que teríamos total liberdade de
escolher profissão… desde que nos formássemos em doutores. Parecia a piada do
português que dizia à filha: “Tu podes escolher marido… desde que te cases com o
Manuel!”.
Meus irmãos e irmãs escolheram medicina, arquitetura, letras neolatinas…
Carreiras doutorais. E eu? Doutor, em quê? Teatro? Nem pensar!
“E você, Renata, vai seguir o quê?” “Química…”
Por que não? Químico é doutor. Química é divertida, alegre… Química orgânica
explicava a Vida! Explicava Renata bronzeada. Viva a química! Química inorgânica,
então, nem se fala: sensualíssima… quando Renata estava ao meu lado.
Microbiologia, ao lado de Renata, beleza pura! Pesquisa de cationtes e aniontes, eu e
Renata pesquisando, era mais cheia de suspense do que filme de Agatha Christie.
Cheguei em casa e anunciei: “Química…”.
“É bom…”, disse meu pai. “O químico do fermento Fleischmann ganha uma
fortuna, muito mais que o vendedor… Química é séria…”
Daí por diante comecei a dar mais atenção ao professor Gildásio, sem perder o
interesse por história e filosofia. Virei ótimo aluno! Comecei a sonhar com o futuro:
Renata e eu, vestidos com belos aventais brancos, experiências mágicas, provetas,
alambiques, tubos de ensaio, alvíssimos laboratórios estonteantes, produzindo
fermentos mirabolantes para agrandar o pão da padaria do meu pai, pão maior que o
de Açúcar!
Na verdade, o único fermento que jamais circulou no meu curriculum
universitário foi na aula de microbiologia quando escolhi fabricar… uísque. Não deu
certo, nem porre, o que é a obrigação de todo uísque que se preze. Os pure malt
escoceses não teriam nada a temer.
Para entrar pra universidade era necessário um curso paralelo ao colégio, que nos
preparava para o rigoroso vestibular. Para a carreira de química industrial havia
quatrocentos candidatos e quarenta vagas! Nós, Renata e eu, estávamos decididos.
Seríamos químicos!
Intensificamos nosso ardor no Curso Moseley do professor Moura, rua Farani,
Botafogo. Eu estava certo de que, na faculdade, com dezoito anos, Renata e eu
certamente teríamos a coragem de dizer o “Eu te amo!…” que faltava, e o “Eu
também!” selador de felicidades eternas. Nossos corações não paravam de pulsar,
nossos olhos de gritar: “Eu te amo!”. A danada da boca, muda, calada.
Veio o dia do exame.
Houve um pequeno inconveniente: eu passei, Renata, não.
Quando me dei conta, estava na universidade estudando química com todos os
tubos de ensaio, provetas e alambiques com que sonhara… mas sem minha Renata
querida, sem o sonho…
Sonhei sonho vazio, tela branca….
1 Outra transformação importante na minha vida foi a invasão dos plásticos. Durante a guerra o Brasil não tinha
dívida externa, tinha crédito, vendendo minérios a preço de amigo. Finda a guerra, os Estados Unidos pagaram
seu déficit vendendo plásticos. Tudo de matéria plástica, de pratos a penicos, cestas e brinquedos, instrumentos
musicais, tudo. As pessoas, elas próprias, começaram a se parecer com matéria plástica. O país vivia rodando
bambolê na cintura e ioiô na mão. O Brasil se plastificou… e se reendividou.
2 O corpo humano não é cultura: a forma de beijar pode ser, não o beijo.
3 Ao lado de onde hoje é o escritório do Centro do Teatro do Oprimido, no Teatro Glauce Rocha.
CAPÍTULO 9
ESQUENTANDO PANDEIROS, CUÍCAS E TAMBORINS
Quando me dei conta, estava com avental branco, sentado em cadeira branca, mesa
branca de brancos ladrilhos, provetas e tubos serpentinos, retortas transparentes,
líquidos coloridos, mais iriados que o arco-íris mais cintilante. Estava sentado ao lado
de colegas vestidos de branco, diante de professor de rosto mais branco que o seu
avental branco, cabelos brancos, paredes caiadas de branco, chão alvo, limpo,
reluzente, branco!
Fiquei pálido de espanto. Fiquei branco! “Meu Deus, o que é que eu estou fazendo
aqui?!”
Química significava livros, cadernos, fórmulas, apostilas e, mais que tudo, o
perfume de Renata. Agora, em lugar do perfume, a sala cheirava a enxofre amarelo,
queimado. O campo de vôlei, onde rapazes assistiam às partidas femininas e vice-
versa – elas vinham! –, cheirava a enxofre. O ônibus, que me trazia da Penha,
cheirava a enxofre. A pedra da Penha cheirava a enxofre; a igreja, a pia batismal, o
altar, o Cristo crucificado, enxofre puro! O jardim da minha casa, enxofre. Flores
cheiravam a enxofre. Meu nariz cheirava enxofre e cheirava a enxofre. Meu pulmão,
enxofre só!
Químico que não gosta de enxofre é médico com medo de sangue. Goleador que
detesta pênalti. Não pode: tem que amar – pênalti, sangue e enxofre!
É complicado amar o enxofre: muita vocação é necessária! Prefiro bater pênalti!
Fiquei deslumbrado com a brancura do laboratório, onde colegas desfilavam
como brancos papas amarelados, missa festiva. Saudades do perfume da Renata.
Pesquisas no cursinho eram com papel e lápis. Agora, misturando substâncias,
cuidando para não vê-las efervescer e transbordar se os cálculos fossem errados. Eu
tinha medo dos ácidos. Queimam, furam! Deus me livre e guarde! Ácidos, nunca!
Levei sustos líquidos estudando química.
No fim da primeira aula, encontrei a família entusiasmada: “Gostou? Os colegas?
Professores?”
“Meu Deus… ainda faltam quatro anos!”.
Acabava de entrar e pensava em formatura! Em nenhum momento pensei
desistir. Meu pai merecia sacrifícios: queria filhos doutores! Jurei que não seria
ovelha negra, nem bode expiatório. Custasse, doutor: nem bode, nem ovelha!
COPACABANA, PRINCESA DO MAR
Em uma tarde em que dois professores faltaram, aproveitei a liberdade pra cruzar o
Túnel Novo: pela primeira vez, aos dezoito anos, vi o mar em Copacabana, a praia
imensa, cem vezes maior que a das Morenas. Voltei pra escola com o oceano nos
olhos vermelhos. Nunca havia imaginado mar tão grande, tanta água, tanta areia.
Tanta gente, mulheres tão morenas. Tanto sol.
Naquela noite, sonhei mar. Redes e pescadores. Hoje, moro em cima d’água,
quase. Escuto, vejo ondas calmas, da janela, sorrindo horizontais, ou raivosas
verticais, espumantes: sedutoras sempre – depende do dia, do humor do mar, do seu
estado de espírito, inquieto. O mar não é confiável – acalma e assusta, destemperado.
Dá confiança e mete medo. O mar é um irresponsável. É o louco da família. Traz
areia e engole a praia. Entenda-se a loucura marinha!
Quando viajo, trago o mar na memória dos sons arquivados vivos; fechando os
olhos, vejo o mar, ondas rolando. Converso com o mar, ele responde. Nem sempre
resposta certa: diz o que quer.
Somos ritmo, temos ritmos no corpo: biológicos, o coração, a respiração;
circadianos: a fome, o sono… O ritmo cósmico, dias e noites, inverno e verão…
Quem mora à beira-mar tem o mar como ritmo essencial: internaliza. É preciso
harmonizar ritmias. As do corpo e as do cosmos.
Quando se o perde, leva-se o mar no peito. Onde se vá, conosco vem. Sozinho,
sem o mar, o coração bate pela metade! Quem vive ouvindo ondas, se não as ouve,
esvazia-se. Algo falta, se falta o mar, a música.
DIRETOR DE ALGUMA COISA
Eu estudava mais que os colegas: como não me apaixonava pelas substâncias, devia
estudar mais para entender o mesmo.
Logo no primeiro mês, eleições para o diretório acadêmico. Todos os cargos
disputados, menos um: diretor do departamento cultural. Eu podia me candidatar
com a certeza de ser eleito: candidato único. Quase perco: novo na escola, ninguém
lembrava meu nome – maioria de votos brancos… como o laboratório!
Diretor cultural tinha a responsabilidade de organizar conferências, exposições,
debates, o que fosse, desde que se pudesse nomear “cultural”! Gafieira: cultura, é
claro.
Nos intervalos de aula eu ia pra praia Vermelha; sentava, olhando ondas,
pensando atividades culturais. Sempre gostei de ver ondas avançando, crescendo,
ameaçando, morrendo. Parece teatro: uma cena depois da outra, mais intensa. Eu
precisava que o mar me inspirasse: pela primeira vez era diretor de alguma coisa, o
que era muita coisa. Na Urca, via ondas ondulando: o mar que se dissolvia na areia…
ideias rolavam na cabeça.
Vi duas oportunidades: encontrar pessoas importantes que eu admirava e ver de
graça espetáculos; as companhias convidavam universitários.
O sr. Umberto, velhinho gordo, baixo, distribuía convites para óperas e balés no
Municipal, engrossando a claque nas galerias. Durante os espetáculos, fumava mata-
rato, barato e preto, falando sozinho, blasfemando, cuspindo nas escarradeiras
chinesas! Surgia de repente, fantasmagórico no escuro, segundos antes dos
programados aplausos, no fim de árias e duetos cruciais. Voz de baixo, como
convinha, baixo e rouco, rouco e fanho, gritava, fanho e rouco: “Più forte, più forte!
Mascalzones! Cambada de vagabundos!”, misturava seus conhecimentos poliglóticos.
Berrávamos o que podíamos, aterrorizados com Umberto, que exigia aplausos de
quebrar ossos manuais, gritos estertóricos em troca de novos ingressos para a
próxima ópera, próxima claque. Nós, da Escola de Química, aplaudíamos com tal
galhardia que senhoras distintas, na plateia, olhavam assustadas, com justa causa.
Houve dia em que um smoking chamou bombeiros, temendo incêndios.
Teatros tinham seus Umbertos; pude ver Procópio e sua filha Bibi Ferreira,
Dulcina e seu marido Odilon, Eva e seus artistas, Aimée e suas coxas, [1 ] Henriette
Morineau e sua família, Alda Garrido e sua Filumena Marturano, Dercy Gonçalves e
seus palavrões, e até companhias estrangeiras, como Madeleine Renaud e Jean-Louis
Barrault, Picollo de Milão e Strehler, Ballet du Marquis de Cuevas, Ballet Theatre,
Alicia Alonso e Igor Youske-vitch. Vi o famoso Willy Loman de Jaime Costa, em A
morte do caixeiro-viajante, de Arthur Miller.
Quando Jaime resolveu montar a peça, um grupo de integristas estéticos
intransigentes foi ao teatro com a ideia furibunda de vaiar: não podiam conceber
que Jaime, artista mais para as variedades do que para as seriedades teatrais, fosse
capaz de interpretar Willy.
Dentro do possível, Jaime estava admirável e os mais desfeitos em lágrimas foram
justamente aqueles que pretendiam insultá-lo. Poucas vezes vi tanto choro na
plateia. Aprendi que, se um ator é bom para um gênero, já merece confiança para
todos: não se pode prejulgá-lo. Catalogar o artista é mal irremediável: dama caricata,
galã romântico, soubrette, centro ou capocomico, só serve para limitar o ator àquilo que
já sabe, a continuar sendo o que é, repetidor de si mesmo.
Em São Paulo havia um botequim onde atores desempregados tomavam café ou
cachaça: lá vinham empresários de circo, no último minuto, convidar atores para
desempenhar papéis conhecidos em peças de sucesso: além dos números
acrobáticos, atletas e animais, circos apresentavam espetáculos teatrais. Atores eram
escolhidos por seus rótulos: galã…
Eu queria ver peças e artistas, falar de teatro: ficava triste quando descia o pano e
eu ia pra casa pensar sozinho; queria fazer perguntas, aprender. Resolvi organizar
um ciclo de conferências. Pra começar, convidei o dramaturgo que mais admirava,
Nelson Rodrigues.
NELSON, PADRINHO
Fui à redação do seu jornal depois que, pelo telefone, ele concordou em fazer uma
palestra. Cheguei, olhei O Dramaturgo e minhas pernas tremeram diante da
Divindade! Nelson perguntou, modesto, se eu acreditava que alguém fosse assistir:
não queria falar pra cadeiras vazias.
Claro! A Escola de Química poderia assegurar cem pessoas interessadérrimas na
sua dramaturgia, mais dezenas de estudantes de outras faculdades: íamos colar
cartazes por todos os diretórios. Além dos estudantes, leitores do seu jornal
prestigiariam o evento, é claro, o jornal deveria publicar uma nota enorme: só aí,
mais duzentos assistentes ou 250. Mais gente viria de toda parte… essas coisas se
espalham boca a boca… Trezentas… Talvez mais. O melhor seria conseguir um
auditório no centro porque na praia Vermelha não havia sala que comportasse
tantos apaixonados…
“Pode ser…”, disse Nelson. Pelo tom da voz, podia ser que não.
Eu jurava: “Trezentas… cálculo nem pessimista nem otimista: realista! Talvez
mais, quem sabe, menos… Imponderável! É como espetáculo: ninguém conhece o
segredo do sucesso”, esbanjei conhecimentos teatrais diante do Mito.
Fui à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde era presidente Herbert Moses,
pedi a sala maior. De graça. Fiquei decepcionado porque cabiam apenas duzentas
pessoas. O funcionário me tranquilizou: “Se vier tanta gente como você pensa, os
retardatários ficam de pé ou sentam no chão: ninguém vai se incomodar”.
Achei razoável: para ouvir Nelson, meu mestre – o Mestre! –, ficar de pé ou sentar-
se no chão seria honra inaudita.
Nelson foi o segundo a chegar – primeiro, eu. Depois de nós, passaram-se minutos
e angústias, passou meia hora e o primeiro a chegar foi o meu desespero.
Um tímido saiu do elevador, em silêncio; duas pessoas magras – “Boa tarde!”; três
– “Como vai?”; quatro – “Gostaria que o senhor lesse a minha última peça, será
possível?”; cinco – “É sobre futebol que o senhor vai falar? O nosso Fluminense,
heim?… perder assim do Flamengo, nunca mais, viro a casaca!”; seis – “Ué, ainda
não começou?”; sete – “Agora o que é que a gente faz?”.
“Vamos começar”, sugeriu Nelson.
Poucas vezes senti tanta angústia como naquele fim de tarde, quando vieram sete
pessoas ouvir Nelson Rodrigues. Brincalhão, Nelson começou a palestra perguntando
se não seria melhor fazê-la no Vermelhinho, botequim frequentado por artistas, que
ficava em frente. Ganhava-se tempo misturando conferência e cafezinho, teoria e
prática…
Esse bom humor e modéstia contrastavam com as histórias que se contavam do
dramaturgo. Dizia-se, maldosamente, que em todos os espetáculos a que assistia,
mesmo que fosse tragédia de Shakespeare ou comédia de Molière, quando o público
entusiasmado pedia a presença em cena do autor, Nelson se levantava e agradecia.
Afinal, Autor era ele!
Conta-se que Nelson estava conversando com um admirador – qualquer de nós! –
e reparou que, depois de duas horas, não haviam falado senão dele, Nelson, suas
peças, sua vida. Num rompante de modéstia, Nelson teria dito: “Já falamos muito de
mim, vamos falar de você: das minhas peças, qual é a que você mais gosta?”.
Como fazia piadas com todos, todos gostavam de fazer piadas com ele. Sou
testemunha de que era excelente amigo. Meu testemunho vale mais porque em
nenhum momento comunguei com suas ideias políticas. Sabem o que significa
“antípodas”? Pois é: éramos nós. Eu pra cá, ele bem pro lado de lá…
Eu tinha admiração pelo escritor e pelo amigo. Talvez nem tanto por suas peças –
confesso, escondido, me perdoem… –, mas pela energia com que as defendia.
Admiração que ficou abalada quando circulou a notícia de que Nelson era autor de
uma série de crônicas sobre Giselle, a espiã nua que abalou Paris. O Diário da Noite
publicava capítulos de sexo e intrigas, ornamentados de fotos da espiã nua nos
braços de oficiais nazistas: espiã. As histórias chegavam ao escatológico; numa delas,
a heroína-prostituta se deixava infectar com vírus de gonorreia para adoentar
nazistas. Horror! As fotos forjadas de patrióticas nudezes, é lógico, vendiam o jornal.
Perguntei ao Nelson se era verdade o que diziam, se era ele o autor dessas
pseudorreportagens: “Você é Giselle?”.
Nelson respondeu, injuriado: “Estão dizendo por aí que eu sou a Giselle! Mentira
deslavada! Eu sou Suzana Flag: Giselle é o Fulano!”, e citou um outro jornalista
famoso.
Suzana era comportada. Autora de folhetins sensuais de sucesso.
A partir do fiasco como empreendedor cultural, comecei a cultivar sua amizade.
Ia visitá-lo na redação onde trabalhava e, tímido, lhe dava minhas peças, que ele lia
de verdade, tenho certeza: fazia comentários e anotações a lápis, sugestões de cortes:
“enxugamentos”. “Enxugar” queria dizer diálogo telegráfico. Todo diretor tinha
mania de enxugar. As peças do Nelson já vinham enxugadas.
Dos seus conselhos, o que repetia com maior convicção era o de deformar a
realidade. Teatro não é realidade: é uma visão da realidade. Logo, não tinha por que
ser igual. Vociferava contra Antoine, diretor francês do início do século, que, quando
a cena se passava em um açougue, todos os dias botava carne fresca pendurada.
“Imbecil!”, explodia, “espumando de raiva”, como dizia…
Na redação havia um bar. Nelson fazia bolinhas com o pão enquanto falava e as
jogava em diversas direções: até hoje me lembro desse hábito estranho. Falávamos
de teatro e de futebol. Ele jogando bolinhas de miolo de pão…
Nelson era apaixonado pelo mesmo clube de futebol que eu, o Fluminense, o que
nos provocava secreta vergonha: no começo do século, nosso clube proibia jogadores
negros em seu time, o que deu origem a outro clube, o Flamengo, formado pelos
antirracistas revoltados. No Fluminense, os mulatos eram aceitos desde que se
comprometessem a passar pó de arroz no rosto para esconder a negritude! Eu era
antirracista, revoltado como ninguém, mas meu coração batia pelo tricolor: que
sofrimento! Por que tricolor, não sei – espírito de contradição: meu irmão era Vasco.
Numa extraordinária prova de confiança e apreço, Nelson me deu uma das suas
peças – acho que foi Senhora dos afogados – para que eu a lesse e desse palpite. Ele
usava máquina de escrever, desengonçada, batia com dois ou três dedos um original
e cinco cópias, papel-carbono azul.
No dia seguinte levei o “troféu” para a Escola de Química, mostrei a todo mundo a
quinta cópia, li pedaços do diálogo em voz alta e até o professor de química
inorgânica, dr. Portocarrero, veio ver do que se tratava. Ficou admirado com minhas
amizades estéticas. Esse professor vinha a ser contraparente de Tonia Carrero – tio-
avô, creio.
Depois da aula fui devolver a obra-prima, emoldurada pela minha admiração
incontida. Antes de entregar a peça ao Nelson andei passeando pela redação,
exibindo o calhamaço para que ficasse bem claro para todos os jornalistas presentes
que eu tinha sido agraciado com o título de Primeiro Leitor – junto com mais cinco
ou seis pessoas, cópias em azul e original preto! – das obras do maior dramaturgo
vivo, Nelson Rodrigues.
A redação cheia: Pompeu de Souza, Prudente de Morais Neto e, deslizando rápido,
Vinicius de Moraes. Era grande poeta, mas não letrista – precisava trabalhar como
jornalista… Quando a poesia se musicaliza, aumenta a renda. Bandeira e
Drummond, belos poetas, nunca encontraram seus Jobim, Lyra, Edu, Francis ou
Baden… Nunca ficaram ricos.
Eu exibia o troféu, mas os jornalistas estavam ocupados com suas pautas, sem
tempo para miudezas.
OUTROS AMIGOS
Foi Nelson quem me apresentou ao Sábato Magaldi, fundamental no início da minha
carreira de diretor. Assistimos a uma peça e fomos conversar em torno de um
refresco de caju (eu) e chope (os outros). Além de nós estavam mais cinco ou seis
atores e atrizes conhecidos que falavam com entusiasmo; eu calado, olhando. Vez
por outra, alguém pedia minha opinião; eu sorria, como quem vai dissertar, mas não
me animava a dizer meu pensamento. Quando criança, eu me sentava no portão da
minha casa, vendo de longe. Agora, via de perto, calado do mesmo jeito.
Sábato provocava minha admiração: tinha lido todos os livros, assistido a todas as
peças. Inteligente, tinha opiniões. Outros falavam por citações – Sábato, com texto
próprio.
No Serviço Nacional de Teatro (SNT), à noite, havia um curso de teatro em que
Luiza Barreto Leite [2 ] e Sadi Cabral foram, que eu saiba, as primeiras pessoas a
lecionar Stanislavski no Brasil – pelo menos, no Rio; a gente tem a mania de pensar
que o Brasil é Rio, no máximo, São Paulo.
Não me matriculei, mas permitiam que eu assistisse às aulas, calado.
Além de Luiza e Sadi, havia o Duque, professor de danças “sociais” (valsa,
foxtrote, swing, bolero – tango exorbitava, demasiado audacioso, proibido!) e…
etiqueta: como sentar-se à mesa, conversar com dama distinta, como comer com que
talheres, beber vinho com que copo, gordo ou magro, champanhe com que flûte ou
taça. Fazia parte do curriculum, caía na prova. Champanhe na prova de ator, vejam
só! Que chique!
Em frente à ABI, o Vermelhinho, encontro de artistas. Lá conheci uma porção, a
fundo ou de raspão: o pintor Antônio Bandeira, que morava em Paris, o cenógrafo
Santa Rosa, o poeta Manuel Bandeira, Ody Fraga (que me vendia livros depois de
lidos…), o poeta negro Solano Trindade… Vinham tomar café, chope ou conversar.
Vi Di Cavalcanti e fiquei amigo de Djanira: ainda tenho um retrato meu com ela (e
mais vinte pessoas!) no dia do casamento de João Paulo e Helena.
Foi no Vermelhinho que conheci Abdias. Antes, minha relação com os negros era
de piedade: sentia pena dos negros da Penha. Depois, passou a ser admiração: como
era possível, cercados por tanto preconceito, que os negros sobressaíssem, fosse no
que fosse? No teatro, por exemplo, personagem negro era escravo ou criado. Para o
papel de Otelo, nem pensar! Pele: estigma!
Meus personagens passaram a ser menos piegas e mais revoltados. Passei a gostar
de subversivos combatentes. Abaixo a melancolia!
O MARAVILHOSO TEATRO QUE NUNCA EXISTIU!
Glaucio Gil e Leo Jusi, alunos do SNT, foram meus amigos fraternos. Analisando os
grupos teatrais existentes, não satisfeitos, decidimos fundar o Teatro Artístico do Rio
de Janeiro. Imitando ou “parodiando” o de Moscou, de Nemirovitch-Danckenko e
Konstantin Stanislavski. Glaucio seria o ator principal, Leo diretor, eu dramaturgo.
Estávamos procurando teatro, elenco, procurando convencer o Santa Rosa a fazer
os cenários, procurando peça e, enquanto procurávamos, fazíamos planos
maravilhosos.
Até minha viagem para os Estados Unidos, setembro de 1953, continuávamos
procurando. Voltei em 1955, procurando…
Nessa busca, pela primeira vez, colocou-se na minha consciência a função social
do teatro e seu significado político. Antes, escrevia desabafos para mim só. Agora,
seria para o público. Antes, escrevia como quem berra – não acreditava que minhas
peças seriam montadas: agora, era necessário articular pensamentos, pois certo seria
ouvido. Dizer o quê ao público: o que sentíamos ou o que achávamos que ele deveria
sentir? Pensar o que pensávamos ou o que ele deveria pensar? Testemunho ou
catequese? Teatro deve divertir ou educar? Educar vem do latim e quer dizer conduzir.
Teríamos nós o direito – ou poder! – de conduzir nosso público? Onde?
Nenhum de nós estava entrincheirado em sua estética e havia uma unanimidade:
nosso teatro seria de altíssima qualidade. Ah, isso sim! Sem dúvida! Qualidade acima
de tudo! Ah!
Qual qualidade? Como se mede? Sou artista, crio o novo, aquilo que não tem
parâmetros. Se não os tem, como medi-los?
Às vezes vencia a tendência de um repertório maciço de concreto armado
blindado, incluindo Ralé, de Gorki, Um mês no campo, de Turguêniev, O jardim das
cerejeiras, de Tchekhov e, a parte ambiciosa, adaptações teatrais de Guerra e paz, de
Tolstói, Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski – só pra começar, devagar. Esses autores
sabiam o que dizer: nós seríamos seus intérpretes fiéis.
Para uma trinca de jovens artistas era ambição desmedida, Deus seja louvado!
Felizmente logo nos dávamos conta de que estávamos russófilos em demasia. Como
era sonho, pra que sonhar em branco e preto e tela pequena? Queríamos sonhos
épicos, gigante cinemascope tecnicolorido.
Abandonávamos os russos e partíamos para os clássicos: Shakespeare, campeão
imbatível – só não sabíamos em que ordem iríamos montar suas tragédias e
comédias e… até sonetos!
Eu e Glaucio queríamos Hamlet. Glaucio falava inglês, tinha visitado os Estados
Unidos como guia turístico; eu estudava com professor particular – um chinês que
morava na Lapa, atrás da atual sala de ensaios do Centro do Teatro do Oprimido! Ia
estudar em Nova York e sabia recitar monólogos:
Hesitação: solid ou sullied? Porque uma coisa era sólida, outra maculada? O que será
que o Shakespeare quis dizer?
Na química eu ia passando de ano – estava entre os mais ou menos! Era
reconfirmado diretor cultural – ninguém disputava o meu invejável posto.
Caíamos na realidade: onde arranjar dinheiro pra tanto Shakespeare, onde o
teatro que abrigasse tanto elenco? Onde o público que se apaixonasse por nós?
Queríamos ser amados!
Seria necessário educar o público. Para educá-lo, primeiro, atraí-lo. Para atraí-lo,
em Ipanema e Copacabana, não seria com os miseráveis de Gorki, angustiados de
Tchekhov ou os execráveis serial killers de Shakespeare.
Primeiro atraí-lo, depois educá-lo. Sendo o Rio cidade balneária, vocação turística,
teríamos que começar com repertório que não metesse medo. Comédias digestivas.
Fazíamos ressalva: sem cair na idiotice! Nada de superficialidades. Besteirol, jamais!
ENFIM, DOUTOR EM ALGUMA COISA
1952 foi o meu último ano na universidade. Pelo curriculum, os alunos deveriam
fazer um estágio em indústrias paulistas.
São Paulo, Hotel Lux: pela primeira vez na vida, dormi fora de casa – aos 21 anos.
Sozinho, sentei em frente a uma penteadeira – espelho redondo (também se chama
psichê, como psichê mesmo!!!) –, olhei cara e corpo e pensei: “Estou sozinho…”.
Fiquei triste. Não gosto de ficar sozinho e preciso ficar sozinho – eterna discussão
comigo.
Gostava do portão, sabendo a família dentro, amigos perto. Sozinho… e
acompanhado. Em São Paulo, sozinho só, no meio da multidão, que andava mais
depressa que os cariocas, “São Paulo não pode parar” e não parava, “São Paulo, a
cidade que mais cresce no mundo!” crescia na minha frente, estrondosa: ouvia-se
crescer! Champignon depois da chuva.
Paulistanos não tinham o gingado da praia, nem praia, nem eram morenos. Como
era possível cidade sem praia? Toda cidade tinha obrigação de ter praia! Logo agora,
que eu era amigo de Copacabana.
Um exercício de Stanislavski consiste em adivinhar a história de um personagem
que vai passando. No exercício, outro ator inventa a história e interpreta o
personagem; sentado num banco de jardim, eu ficava olhando pessoas passarem,
imaginando histórias.
Voltei ao Rio, findava o ano. Recebi meu diploma no Teatro Municipal, onde seu
Umberto berrava incentivos palmíferos. Tenho ainda o smoking que meu pai
mandou fazer na Alfaiataria Teixeira. Apertando, prendendo a respiração, ainda
entro, com dificuldade e orgulho, heroico…
As moças foram vestidas com longos vestidos brancos virginais: casavam-se com a
ciência! Emoção, olhos rasos d’água. Até eu fiquei comovido. Chorei escondido. Era
doutor, como queria meu pai.
Fui diplomado – foi a primeira vez que me aplaudiram em um teatro! Minha mão
tremia e a consciência também: “Será que mereço? Sou químico? Será que sabem
que não quero ser o que eles estão discursando que sou?”. Crise de identidade. Tive
muitas em minha vida. Será que sou, neste instante, quem estou escrevendo que fui?
Eu serei eu? E, se não, quem? Arre!
No fim da cerimônia, as moças voltaram pra casa com suas famílias, carros
alugados para a festa. Nós, homens, no pleno exercício da nossa liberdade
masculina, fomos para um bar na galeria Cruzeiro (hoje edifício Central), onde os
bondes davam voltas, e tomamos refresco de caju (eu!) e chope (os outros).
Na verdade, ninguém recebeu diploma: não ficaram prontos a tempo – eram
desenhados com letras góticas douradas, fechados com lacre, davam trabalho. O
diretor nos entregou canudos de papel almaço, enrolados com fitinha azul para os
moços, cor-de-rosa pras meninas.
Depois do terceiro chope – quando se é jovem, o porre vem mais cedo! –, alguém
sugeriu fazer uma fogueira de “diplomas” e apagar o fogo com mijo.
Alguns eram entusiastas pirômanos, outros achavam desrespeito à população e
aos bondes – as labaredas seriam nos trilhos, para maior espetaculosidade do evento.
Eu era contra, motivo sério: com que cara dizer ao meu pai que havíamos queimado
diplomas na linha do bonde e apagado o fogo com mijos certeiros? Meu pai era
progressista, mas isso estaria além do seu entendimento: queria filhos doutores e os
diplomas, mesmo falsos, davam certeza.
Venceu a maioria, fez-se a fogueira e desembainhamos solenemente nossos pênis
– confesso que mijei menos que meus colegas: caju que não é diurético como chope.
UM HOMEM JUSTO
Meu pai era homem justo. Meus irmãos fizeram cursos longos, eu me formei mais
jovem. Aos 21 já era químico industrial – 1952 foi o último ano em que a Escola
Nacional de Química formou químicos industriais; daí pra diante, engenheiros
químicos. Para ter também esse diploma, seriam necessárias matérias
suplementares.
Meu pai me deu o direito a um ano de especialização no exterior. Podia estudar
um ano inteiro. Engenharia química, bem entendido. Pensei na França (tinha visto
espetáculos franceses no Municipal) e nos Estados Unidos (gostava de O’Neill, Miller,
Williams…). Mas teria que estudar plásticos e petróleo misturados com teatro.
Na livraria Civilização Brasileira encontrei European Theories of the Drama, de
Barrett Clark, com ensaios de teóricos do teatro ocidental. O último capítulo
colecionava escritores norte-americanos. Lá estava John Gassner – quis estudar com
ele.
Glaucio Gil me ajudou com o seu impecável inglês e eu escrevi uma carta, certo
de que jamais teria resposta: professor tão importante ia lá encontrar tempo para
responder a um rapaz suburbano?! Claro que não. Semanas mais tarde, Gassner
respondeu dizendo que, a partir do ano seguinte, estaria lecionando playwriting na
Columbia University – ia se mudar de Yale. Deu o endereço e o nome do diretor,
Milton Smith.
Na primeira metade do ano de 1953, como as aulas só começariam em setembro,
estudei inglês com o chinês da Lapa.
1 Não havia peça (comédias de bulevar, chamadas “picantes”) em que essa moça, que era linda, não entrasse em
cena de calcinha e sutiã e combinação transparente.
2 Luiza foi uma das combatentes mais enérgicas pela regulamentação da profissão de ator e, sobretudo, de atriz:
atrizes tinham em suas carteiras de trabalho, até o início dos anos 1950, a palavra prostituta como definição de
sua arte.
CAPÍTULO 10
NOVA YORK: O IMPULSO E O SALTO
Meu primeiro voo internacional foi pela Braniff, quatro hélices, três etapas: Rio-
Lima, no Peru. Pernoite. Hotel Bolívar. O garçom trouxe ceviche no quarto e
perguntou: “Está servido, señor?”. “Como no, señor?!” – foi meu primeiro diálogo na
língua de Cervantes. O garçom não queria literatura, queria gorjeta – amarrou a cara
e bateu a porta.
Na rua, homens cobertos de ponchos de mil cores. Impacto: tanta cor, no Rio, só
no Carnaval. Em Lima, herdeiros incas se pareciam aos japoneses da Liberdade, em
São Paulo. Diferença: coloridos!
No Brasil, no tempo das invasões portuguesas em 1500, havia mais de 5 milhões
de indígenas nus vivendo na Idade da Pedra: foram dizimados por não se adaptarem
ao cativeiro nem saberem se defender. Hoje, calcula-se em menos de 20 mil, vagando
pelas florestas.
Nos países bolivarianos havia civilizações adiantadas: incas faziam delicadas
cirurgias no cérebro abrindo crânios: trepanação sem infecção hospitalar. Em Cuzco
os espanhóis transformaram um templo incaico em catedral católica; veio um
terremoto e varreu a argamassa espanhola e fez ressurgir o templo original. Incas
sabiam construir edifícios deixando espaço entre as pedras para resistirem aos
tremores.
Astecas, maias, toltecas, chichimecas e outros aborígenes se esqueceram de
aprimorar as armas de guerra – espanhóis e portugueses fizeram a festa. Além da
pólvora, nas Américas não existiam cavalos, mágicos tanques de guerra: cavalo e
cavaleiro pareciam, aos olhos indígenas, míticos centauros – respeito e medo!
Isso eu já sabia, lendo livros: vendo rostos tristes, impacto imenso! Me senti
invasor. Senti culpa, sem ter culpa.
Para mim, a verdadeira humanidade era morena, gingando, queimada do sol. Ser
humano: carioca moreno. São Paulo era humanidade esquisita, com sotaque – não
era a mesma coisa, mas vá lá. Imaginem meu susto e espanto: de repente, todo
mundo virou índio japonês embrulhado em poncho colorido, mulheres usando
chapéu de homem! Pesadelo! Queria fugir!
Procurava quem tivesse a minha cara: em vão. Verdade que eu conhecia gente
diferente de mim, já tinha visto mongóis mal--encarados e pigmeus minúsculos,
aborígenes australianos e longevos do Cáucaso – mas no cinema. Filme é celuloide e
nele todas as liberdades são permitidas. Em Lima, em carne e osso indígenas se
mostravam cara a cara, olho a olho. Me achavam estranho porque eu era: branco e…
sem poncho! Em Lima, homem sem poncho, tremendo frio: estranhíssimo!
Me olhavam: o diferente era eu. Me senti sobrando. Estaria certo sendo sem cor,
mesmo esmaecida, atenuando a brancura?
Não quis esquecer aquela noite quando percebi que eu era o Outro: não era índio,
não usava poncho, não tinha pele escura nem olhos ovais! Quis guardar imagens da
diferença, comprei a escultura de um deus e fui dormir. No quarto, espelho na
parede – espelhos me perseguiam. A luz apagada, eu me via na penumbra azulada.
Isso espelhos têm de ruim: espelham! Via minha imagem e sentia que alguém me
via. Meu outro eu.
Não dormia: o olhar me olhava. Cobri com o cobertor minha imagem quente
aprisionada no espelho – meu corpo frio, ao léu. Eu continuava imaginando a
imagem escondida: ela e eu, cansados. Não me lembro quem dormiu primeiro, eu ou
ela. Lembro que acordei com o nariz entupido.
Segunda etapa: Lima-Miami, voo atormentado, gente vomitando em saquinhos –
era comum. Nunca mais vi gente vomitando, mas, naquela época, todo mundo
vomitava com a maior naturalidade e o avião sacolejava com a maior cara de pau!
“Atravessamos a linha imaginária do equador!”, grande evento da travessia! [1 ]
Merecia anúncio, sorrisos. “Apertem mãos e cintos… não muito, senão os próximos
vômitos já serão no hemisfério norte…”, dizia o engraçadinho comandante. No Sul,
ainda se admitia, mas naquelas geografias civilizadas não ficava bem vomitar.
Miami! Novo pernoite.
Hotel de estrada com mini-city-tour. A única imagem que guardei de Miami foi a de
um combate feroz entre índio e crocodilo. Eu me assustava com lances marciais e
piruetas do índio, a boca afiada do crocodilo, punhais. Temia pela vida humana. O
rinque de terra batida, cheio d’água e chão de pedras, ajudava ao bicho mais que ao
humano. Anfiteatro de madeira: turistas curiosos, forasteiros. Ao meu lado, gente
mais experimentada que eu ria dos golpes ensaiados: o meigo crocodilo amestrado
fazia cara feia de mau-caráter, embora fosse suave como gata dengosa. A luta era tão
falsa como catch-as-catch-can em cidade do interior maranhense. No fundo, índio e
crocodilo eram bons amigos, excelentes pessoas, trabalhadores.
Foi o meu primeiro contato com o show business norte-americano…
Miami-Nova York. Um amigo do meu pai me havia ensinado o Hotel America,
perto de Times Square, dez dólares a diária. Cara a cara com a penteadeira refletindo
minha imagem espantada; me senti perseguido, pelos espelhos e por mim. Me
parecia que o meu eu de verdade estava na imagem.. então quem seria o eu do lado
de cá?
Encostei as mãos verdadeiras nas minhas mãos especulares, querendo o
impossível aperto. Busquei o abraço, olhei fundo meus olhos e me falei baixinho,
como quem fala ao espelho que espelha imagem imaginada, não a deveras:
“Estamos sós… não vamos brigar: vamos confiar um no outro, amigos.”
Não me lembro o que me respondi, mas aceitei a paz momentânea. Acho que me
encorajei a sermos um dos meus eus, íntegro, soma dos dois ou três como havia
sempre sido.
Se os paulistanos já eram diferentes dos cariocas, pelo menos falavam língua
inteligível. Em Nova York me perdi. Passei os primeiros dias, caipira em cidade
grande, espiando arranha-céus e me sentindo como uma amiga brasileira que mora
em Hong Kong: ela diz que, quando em casa, tudo bem, sente seu território; mas se
sai à rua, sente-se claustrofóbica. É a única cidade onde as pessoas sentem
claustrofobia ao ar livre. Nova York, quando cheguei, me dava claustrofobia até no
Central Park.
Todas as noites comia frango – sabia pronunciar chicken com o mais requintado
sotaque de Shangai! Comi chicken todos os jantares até aprender a pronunciar meat
loaf and potatoes. Variei verduras quando, corajoso, disse chow mei e o garçom
entendeu de que assunto se tratava, salve! Todas as noites, depois do clam chowder e
da apple pie, voltava pra cama e enfrentava a penteadeira, que me perguntava:
“Que ideia maluca você teve! Que é que te interessa esse país que não é teu, essa
cidade que não é a tua, essa língua que você não fala?” Eu era severo comigo. “Volta
pra casa no primeiro avião e funda logo esse raio desse Teatro Artístico do Rio de
Janeiro, monta tuas peças e, de quebra, as obras completas do Shakespeare e pronto
– nada mais fácil! Que é que você quer? Ser escritor, não é? Então escreve!!! Fazendo
é que se aprende! Talento não se ensina! Que John Gassner coisa nenhuma!!! Volta
pro Rio: lá você tem amigos.”
Tive sérias altercações comigo, cão e gato, eu e eu, precária paz. A culpa sempre
foi minha: só não sei qual dos meus mins o mais culpado.
Quase cortei relações comigo, como quando criança; me falava só o necessário e,
quando me falava, era com aspereza e nem me olhava na cara, não queria me ver –
só no inevitável barbear. Já tinha adquirido o know-how e, quando me aborrecia
comigo, quando me enfezava, perto das vias de fato, jogava o cobertor no espelho e
pronto: apagava parte de mim e evitava a ruptura definitiva. Sentia remorsos e
procurava minha imagem em outro lugar, atrás da porta, como se ela tivesse
abandonado o espelho, amuada. Procurava a paz e, a mim mesmo, estendia a mão.
GASSNER, MEU PROFESSOR
Tinha certeza de querer voltar e mais certo estava de querer estudar com Gassner. Se
eu acreditava que talento não se ensina, acreditava que, em se o tendo, Gassner faria
bem. Afinal, tinha sido o professor de Arthur Miller, Tennessee Williams e outras
famas – devia saber. Podia me ensinar chaves que abrissem portas. Estradas a Roma:
sei que todas chegam lá, mas não conhecia nenhuma.
Até a data da primeira entrevista no Brander Matthews Theatre, da Columbia, eu
dormia decidido a voltar pro Brasil no dia seguinte e acordava com a determinação
de estudar com Gassner!
Tomei o primeiro subway da minha vida. Sabia que deveria descer na 116th Street
na direção uptown e desci certo. Só que peguei o trem errado, Lenox, e fui parar no
Harlem – só via negros.
Foi minha terceira humanidade: todo mundo escureceu! Se todos se parecessem
com o Abdias ou Grande Otelo, seria conforto: mas havia os bem e os mal-encarados,
sorrindo e raiventos. Eu perguntava pela Columbia University e nem respondiam ou
respondiam em voz baixa – eu ainda não entendia palavrões e agradecia: “Thank you,
mister, thank you, madam”. Até que uma senhora idosa compadeceuse materna,
esclareceu o mistério: havia duas 116th Street, East e West, uma pra cada lado da
5thAvenue. Eu estava uptown, do lado de cá, Harlem, e não de lá, Columbia.
Respirei fundo, fui downtown e outra vez up, na direção certa.
Pontualidade britânica – carioca, tenho espírito mineiro ou sueco: tinha saído do
hotel horas de avanço. Quando vi nas escadarias a estátua da Alma Mater, que
conhecia de fotos, eu me senti em casa. Sentei nos degraus, fiz carinho na estátua:
sujei a mão na sujeira pombalina. Respirei fundo, encarando os olhos de pedra.
Sempre, antes das grandes decisões, respirava fundo! Ainda hoje, respiro! Oxigena!
O professor Milton Smith usou o vocabulário indispensável; decidimos que cursos
eu deveria fazer. Shakespeare, of course, Drama Moderno, Direção, Teatro Grego e
Playwriting com Mr. John Gassner! Os professores, além de Gassner e Smith, seriam
Maurice Valency, Norris Houghton, Theodore Apstein e não me lembro mais quem:
lembro que eram bons. Informei que precisava de tempo e espaço pras aulas de
química: Plásticos e Petróleo. Mr. Smith pediu que eu repetisse três vezes o que dizia,
pensando que me faltavam palavras em inglês: pelo contrário, sobravam.
“What Chemistry is that: Shakespeare and Plastics…?!?!?”, perguntou incrédulo.
Expliquei: química era obrigatória não só por causa do meu pai, que merecia
sacrifícios, mas porque o governo brasileiro, já então, discriminava as artes – só
autorizava a compra de duzentos dólares mensais ao câmbio oficial se o estudante
estudasse ciências: artes não valiam para efeitos cambiais. A diferença entre o
câmbio oficial e o paralelo era de mais de 100%. Esses dólares eram a minha mesada.
Tinha que me matricular como cientista: se a química já era difícil em português,
imaginem em língua que mal dominava – pra ser sincero, língua que me dominava a
mim, sem contemplações!
Estudando inglês com o professor chinês eu me apaixonava pelas palavras difíceis
e inúteis – flabbergasted era o meu principal amor! Ninguém fica flabbergasted o tempo
todo – só eu! Flabbergasted à beça! Em vez de ficar flabbergasted poderia ficar apenas
surprised, astonished, amazed, stunned, astounded, dumbfound, tanta coisa, mas não,
queria ficar flabbergasted e pronto: flabbergasted est!
Tive que aprender às pressas palavras prosaicas: no restaurante, comia meat e não
flesh, e pork e não pig. Faz diferença: o primeiro está morto, o segundo ronca! Entendi
esse detalhe quando pedi pig e o garçom roncou, rindo.
A universidade me deu uma lista de quartos para alugar. Fui morar com um casal
de meia-idade, ele rabino, ela, dona de casa. Aluguel semanal igual à diária do Hotel
America: dez dólares. Riverside Drive. Descendo, subia o vento gelado do rio,
rachando nariz e orelhas.
Os frios são diferentes segundo o país, a geografia, a cultura. O frio do Rio é mal-
encarado, sabe que está fora de lugar, invasor insolente – não é aí o seu lugar: frio
estrangeiro. Ataca, machuca, deixa vítimas e vai embora, de volta à casa materna,
Argentina e outros recantos glaciais. O frio gaúcho é intrometido: engalfinha-se
fugidio camisa adentro, minuano. O frio de Londres, cinzento, molhado, transborda,
encharca a roupa, ensopa. O frio de Praga é cordilheira branca na planície. O frio de
Estocolmo, escuro, faz noite às três da tarde; porém, respeitoso, sincero: é frio, é o
seu jeito de ser, não faz por mal.
Todos os frios são sinceros: só o frio de Nova York mente, traiçoeiro – é frio azul.
O céu invernal de Nova York é tão azulão como o estival do Rio. Instantâneo, o frio
nova-iorquino se aloja na coluna vertebral, vai direto à medula e morde com
caninos. Sangra! Aguentei o frio do Hudson River no Riverside Drive, descendo
ladeira, dois anos a fio. Dois anos de orelhas rachadas e nariz vermelho.
Na primeira aula de química não entendi rigorosamente nada, nem uma só
palavra, uma fórmula, um suspiro, intenção ou propósito, um olhar, nada. Não
entendi nem por que estava ali!
Nas aulas de teatro também não entendia, mas inventava – era criativo! Notei que
os professores de teatro, mesmo austeros, usavam o corpo pra falar; os de química,
mesmo alegres, não usavam nem a voz. Falavam em silêncio.
Na primeira aula de dramaturgia, Gassner me apresentou aos outros alunos: “Mr.
Boal lives in Buenos Aires…”.
Expliquei as diferenças geográficas, sociológicas e culturais do Cone Sul, mas devo
ter embaralhado as palavras de tal maneira estapafúrdia que meus colegas pensaram
que eu fosse paraguaio.
Como não entendia nada, reparava em detalhes: a linguagem das palavras é
apenas uma das linguagens que utilizamos nos nossos diálogos – existem as
linguagens da voz, do corpo, do movimento, a do corpo no espaço e as linguagens
inconscientes. Já que me escapavam as palavras, prestei atenção ao resto.
Reparei que os professores de química falavam só com a boca. Os de teatro
mexiam o corpo e cantavam. Eu olhava o corpo dos professores, ouvia suas vozes e
pensava: “Agora deve estar falando de Ibsen: esse repinico rítmico só pode ser
norueguês, esses gestos de mão precisos, secos, entrecortados – é o mais puro Ibsen!
Agora, esse jeito subterrâneo escondido, meias palavras, esse peso nas costas,
angústia, esse grito, é Tchekhov… Ah, isso é Shakespeare, com certeza: essa maneira
decidida e enérgica de ondular o braço e depois bater duro e forte, só pode ser
Shakespeare”.
Resolvi que deveria ler jornais de manhã, ir ao cinema às tardes e ouvir rádio o
dia inteiro. E, sobretudo, falar sozinho. Nisso, eu era um craque.
Logo na primeira semana planifiquei a rotina. Acordava às sete, comprava o New
York Times na esquina, andava três quarteirões até a cafeteria da universidade, Lion’s
Den, lia jornal comendo cereais e iogurte, tomando café e suco de laranja, voltava
pra lavar os dentes enquanto ouvia rádio, ia pra biblioteca estudar. Ao meio-dia,
sanduíche. De novo os dentes, livros até a hora das aulas, às seis. Quando não tinha
aula, às duas da tarde, cinema Thalia – todos os dias, dois filmes pelo preço de uma
entrada. Acho que vi toda a cinematografia francesa, italiana, alemã, japonesa, russa
e os filmes norteamericanos antigos.
Depois de semanas, a rotina me invadiu. Comecei a ficar mais solitário do que
nunca, agora que vivia no meio de multidões. Ninguém falava comigo. Patinho feio!
A solidão de homem cercado por multidões é tão ruim como a das celas de
segurança máxima, cercado de paredes grossas: conheci as duas. Ninguém me olhava
se eu andava; se parava, ninguém me olhava. Experimentei sentar no meio-fio, fiz
caras e caretas: ninguém me olhou. Dei um grito no meio da rua. Ninguém ouviu:
todo mundo tinha mais que fazer do que ouvir gritos de brasileiros solitários…
Eu estava só. Até meus outros eus tinham-se ido, cansados de mim… Pensei,
aterrorizado, que esse último eu que ainda me restava talvez me abandonasse
também: quem ficaria?
LANGSTON HUGHES E A AMIZADE
Descobri que a universidade tinha um programa cultural. Langston Hughes, famoso
poeta negro, ia fazer conferência. Me lembrei de uma carta que Abdias queria que eu
lhe entregasse.
Fui. No fim dos aplausos, cumprimentos. Fila. As pernas começaram a tremer e eu
me lembrei da tremedeira que tive quando vi Nelson Rodrigues. Imaginei a emoção
que teria, apertando aquela mão, celebridade mundial.
“Mr. Hughes… my friend… Abdias, you know… my very good friend… a brother… this
letter… see? It is for you… He wrote him-self… by himself… for you… for himself… não sei. It
is yours! Take it!” – as palavras estavam, na maioria, certas; o estilo, sincopado. A
sintaxe, aleatória.
Hughes lembrava muito bem do our friend and brother Abdias, a quem queria muito
e admirava mais. Conversou bons três minutos – entendi a metade do que disse e,
felizmente, nessa metade inteligível estava o convite para uma mesa-redonda no
Harlem.
Na semana seguinte, fui à mesa sobre poesia e literatura negras nos Estados
Unidos. Langston me apresentou a vários amigos, negros e brancos, brancas e negras.
Todos antirracistas determinados – essa luta, essa determinação os unia. Muitos
conheciam Abdias e gostavam dele. Senti amizade, Langston e Abdias. Como é bela a
amizade de quem luta com razão pelas mesmas razões. Não importa a cor da pele,
sexo, idade, país: importa a razão, a paixão!
Nunca entrei no seu círculo de amizades, mas era convidado para espetáculos no
Apollo Theatre [2 ] ou conversas de bar. Eu era presença inobstrusiva – ouvindo atento
e só respondendo se perguntado.
“Moro no Rio de Janeiro, que é a capital do Brasil, and not Buenos Aires, capital da
Argentina, que é outro país, another country, como o Paraguai, cuja capital é Assunção
e é também another country, e a capital do Equador é Quito, do Uruguai, another
country, Montevidéu… do Chile, Santiago… da Colômbia, Bogotá… e… pois é… é isso
aí…”
Quando o vocabulário é reduzido a conversa tende a ficar chata… Melhor sorrir,
inteligente. Pensar inteligente em português, sorrir em inglês. Isso eu sabia fazer:
feições inteligentes!
Fui sorrindo e conhecendo gente famosa: Sugar Ray Robinson, que apertava a
mão de todo mundo e me dava medo de levar um soco – todo pugilista gosta de dar
soco de brincadeira –, Dizzy Gillespie, a quem quase pedi pra tocar pra mim…
Conheci tanta celebridade negra que hoje penso que conheci todo mundo e fico
pensando: “Será que o Martin Luther King estava lá, era aquele? Claro que estava,
claro que era. Será que aquela mulher fascinante era a Ella Fitzgerald? Claro que sim!
E mais esse e mais aquele? Lógico!”. Será que eram mesmo?
Hoje, tenho a impressão de que conheci todo mundo mas, na verdade, devo ter
conhecido apenas meio mundo! Abraham Lincoln, por exemplo, tenho a certeza de
que nunca vi… a menos que ele fosse aquele homenzinho barbudo e calado lendo
jornal naquela mesinha no fundo do bar… É mesmo… quem sabe era ele? Não era,
não: morto não lê o Times.
Aos poucos fui perdendo o medo de gente famosa – gente como a gente. Decidi
que seria repórter do Correio Paulistano – tinha um amigo que trabalhava lá. Me
aceitaram como correspondente amador: de graça. Iniciei minha carreira como
jornalista internacional.
Comecei a entrevistar quem eu queria conhecer. Todo artista gosta de sair no
jornal – necessidade da profissão. Mesmo jornal provinciano – qualquer notícia de
qualquer tamanho – é importante. Eu ia ver teatro, escrevia carta pedindo
entrevistas e deixava na portaria do teatro com o número do meu telefone. Ninguém
nunca se recusou.
Foi assim que conheci José Ferrer, depois de uma matinê do famoso Cyrano de
Bergerac, no City Center. Ruth e Augustus Goetz, adaptadores de O imoralista, de Gide;
através deles, Louis Jourdan, Geraldine Page e James Dean, que trabalhavam na peça.
Dean fazia o árabe sedutor; seduzia, mas ainda não era famoso.
Através de Geraldine Page, conheci José Quintero, porto-riquenho radicado em
Nova York, diretor de um teatro de arena que ainda existe, o Circle in the Square.
Entrevistei Harold Clurman, Stella Adler e Kazan, depois da estreia de Gata em teto de
zinco quente, com Barbara Bel Geddes, Burl Ives, Mildred Dunnock e Ben Gazzara.
Entrevistei bailarinas do Wish You Were Here, que tinha piscina de verdade em cena:
tirei fotos na piscina. Robert Anderson, autor de Chá e simpatia, com Leif Erickson,
Debora Kerr e John Kerr (não eram parentes), que foi substituído por Anthony
Perkins – aí descobri que Perkins era meu colega de classe nas aulas de Shakespeare,
mais mudo do que eu, e ninguém sabia que era ator.
O Correio gostava dos meus artigos: além de serem de graça, falavam de gente
famosa. Depois de voltar pro Brasil continuei 143 escrevendo reportagens com gente
importante: “Bibi Ferreira, muito triste” e “Leonardo Vilar, um ator” foram minhas
primeiras reportagens.
Através de um conhecia outro e mais outro. Tagarelando em inglês. Aprendi a
gostar das palavras, casar palavras nas duas línguas. Como se fossem vivas. Eram. A
palavra é um ser vivo: só se deixam aprender quando amadas. Feito mulher.
Gassner conseguiu que eu fosse admitido em sessões do Actors Studio, como
ouvinte – melhor dito, vidente, pois via mais do que entendia. O temporário local de
trabalho chamava-se Malin Studio, teatrinho, e eu ficava a poucos metros dos atores
– fascinado vendo o ator criar personagem. Desde aquelas sessões tenho fascínio por
atores que vivem de verdade seus personagens – não fazem de conta. Ver ator
criando, metamorfoseando-se, dando vida às suas potencialidades adormecidas é
uma das maravilhas da natureza humana.
É a melhor maneira de se entender o ser humano: ver ator criar.
Actors Studio, Arena – o ator era o centro do universo. Meus melhores espetáculos
foram espetáculos de ator, não de luz ou cenografia – mesmo tendo trabalhado com
cenógrafos maravilhosos como Gianni Ratto, Flávio Império, Hélio Eichbauer,
Marcos Weinstock, Hélio Oiticica, José de Anchieta, Rosa Magalhães…
WRITERS’ GROUP
No Brander Matthews Theatre, Howard veio me convidar para integrar um grupo de
dramaturgos, Writers’ Group, Brooklyn. Dez futuros escritores, moças e rapazes.
Moças… que bom. Além de dramaturgas, eram moças. Sempre gostei dessas duas
categorias especiais.
Ser estrangeiro, ter sotaque dava charme. Eu estava mesmo precisando de ajuda
divina. Fiz grandes amigos e inesquecíveis amigas. Nos reuníamos aos sábados e
líamos nossas peças. Um relator tinha a obrigação de ler e fazer relatório escrito,
antes dos debates. Continuávamos juntos, duas, três horas, conversando. Eu me senti
querido, integrado. Foi meu primeiro grupo de teatro, depois dos meus irmãos.
Ainda penso naqueles jovens com carinho, saudades.
Quando senti que já usava destemidamente palavras coloquiais, tive coragem para
atacar o Dom Quixote… em espanhol. Comecei e não parei mais. Queria comparar
Cervantes com Shakespeare (que eu já lia com desenvoltura), não só porque viveram
na mesma época e morreram no mesmo ano, mas porque desconfiava que a lenta
passagem do feudalismo para sociedades burguesas era a essência da obra desses
dois autores.
Dom Quixote é herói fora de época: seus valores são os da fidalguia de duzentos
anos antes. Amadis de Gaula é o belo exemplo. Nada nele é ridículo; o ridículo de
Quixote é o seu anacronismo. Hamlet, à semelhança do Quixote, traz em si valores
passados, em si seu pai; traz também a virtù burguesa, de Cláudio. Hamlet é os dois
reis, o pai e o tio!
Hamlet sintetiza o mundo em transformação, mundos coexistentes: a nobreza
pura, idealizada, o Fantasma e a burguesia impetuosa, inventando a moral
pragmática, o Tio. Ser ou não ser? A tragédia de Hamlet não é ser ou não ser: é ser e não
ser. Hamlet é os dois, o Pai e o Tio, a morte e a vida – e só não sabe ser ele próprio.
Sou especialista nessa dicotomia…
Depois da primeira leitura quixotesca em 1954, todos os janeiros, durante pelo
menos dez anos, eu pensava: “Faz tempo que não releio Dom Quixote!”. E me punha a
reler, anotar e reavaliar anotações. “Faz tempo que não leio Shakespeare!”, e alguma
peça sua voltava à minha mesa. Esses dois autores marcaram minha vida.
Um ano depressa passa e ainda mais quando você começa a gostar do que faz,
entender a língua que fala, criar amizades, amores. Quando se está escrevendo
teatro, dando para um professor como era o meu, um luxo, ouvindo seus
comentários – principalmente o comentário que mais me agradava ouvir, o de que
eu dava trabalho, era o aluno que mais escrevia! –, quando se tem colegas como os
que eu tinha, quando se está aprendendo, lendo todos os livros, vendo todos os
filmes, assistindo a todos os espetáculos, quando se vive assim, vivendo, um ano voa.
Quando me dei conta do tempo, o ano letivo acabado. Em química, tive as notas
que merecia: aprovado sem entusiasmos. Em teatro, ótimo!
Fui me despedir de Gassner, o Papa da Dramaturgia. Sentou-se num banco do
corredor, relembrou minhas peças, elogiou meu progresso, desejou-me felicidades.
Explicou que ser dramaturgo era dom, como poeta – podia-se aprender estudando,
mas ser pianista era dom como pintor, arquiteto ou cirurgião. Sempre se pode
aprender; o dom, porém, é necessário. Levantando-se, disse a frase fulminante que
me comoveu até a raiz dos cabelos e as unhas dos pés: “Mr. Boal, you are a playwriter!”.
Temeridade! Eu tinha dois caminhos: ou desmaiava ou… tomava resolução
heroica. Prevaleceu o heroísmo.
“Sabe, Mr. Gassner, eu acho que posso melhorar. Pra isso, preciso estudar com o
senhor um ano mais, inteiro. O senhor é um professor formidável. Resolvi que não
volto pro Brasil, não: fico também no ano que vem…”
Rasgamos sedas.
FULMINANTE CARREIRA DE JOVEM GARÇOM EM ATLANTIC CITY
Com a Columbia University não havia problema: bastava que eu pagasse os credit
points, caros! E com meu pai?
Homem justo, tinha-me oferecido um ano de estudos no estrangeiro como
compensação pelos cursos mais extensos dos meus irmãos; eu pedia dois. Escrevi
explicando minha emoção, o significado de ser chamado de playwriter por Gassner,
nada menos, Príncipe dos Professores! Tinha a certeza de que meu pai entenderia.
Tomei a decisão de trabalhar. Ele, a de me apoiar. Obrigado, pai, embora tarde,
receba meu agradecimento carinhoso. Homem justo.
No verão, empregos à farta: colher laranjas na Califórnia ou ser garçom em
Atlantic City e Miami. Em vez de chupar laranjas na West Coast, tomei o ônibus para
as praias do sul – só não quis voltar a Miami porque já conhecia o crocodilo.
Visitei agências de trabalho temporário, hotéis, cassinos: lá estavam os empregos.
Visitei as cozinhas de três hotéis. Minha intenção clara: observar panelas in loco,
sentir o cheiro da comida, passar o dedo, chupar o molho. Escolhi o melhor
cardápio: o do Chelsea Hotel.
Logo no primeiro almoço percebi o engano: empregados não comiam como a
clientela – recebiam gororoba simplificada.
Como eu não sabia fazer nada me deram o lugar de ascensorista, que não requeria
saberes. Nunca vi emprego mais chato, mais sem graça que chupar prego. Inútil –
ascensorista faz o que qualquer usuário pode e deve fazer: aperta botões.
Nos Estados Unidos, a maioria dos hotéis ostenta porteiros e até carregadores de
malas mais fantasiados do que Carmen Miranda nos seus dias de glória
hollywoodiana, ou general soviético em parada militar na praça Vermelha. Eu ficava
revoltado com tantos bordados. Reclamava em bom português pra que ninguém
entendesse e vestia farda em inglês: foi a única em minha vida.
Durei um dia sobe-descendo: abriu-se vaga de bus-boy, rapazes – moças serão
busgirls? – que tiram pratos sujos da mesa e colocam pratos limpos. Secretários de
garçom.
Emprego divertido, social, dava direito a gorjeta. Explico: o bus-boy ganhava
gorjeta do garçom, que ganhava gorjeta do chefe da station (conjunto de mesas), que
ganhava gorjeta do cliente. Era o chefe que recolhia as moedas – ninguém podia
tocar em dinheiro, só o chefe. Somava, dividia (algo subtraía) e dava parte aos
garçons da sua station, e cada garçom arbitrava uma parcela (mínima), e era isso o
que sobrava para nós, míseros bus-boys. Por semana, cinquenta dólares. Pra mim,
fortuna inaudita!
Sempre fui trabalhador – herança paterna. Mesmo bus-boy, gostava de fazer
direito. Fui promovido a garçom no fim da primeira semana. Os colegas me
chamavam de Columbia Man. Dava charme ser estudante da Columbia, das mais
prestigiosas do mundo. Meu sotaque, mais charme. E o fato de ser simpático bilíngue
sem hesitações – e, com tropeços, tri (incluindo meu incipiente espanhol) – ajudava
nas promoções.
Depois de três ou quatro semanas, fui promovido a chefe de station: glória.
Fulminante carreira, de ascensorista a chefe de setor!
Eu tinha tudo pra conquistar o coração de Margaret, bus-girl que trazia bebidas –
não era nobre, não morava em Londres nem na Penha, mas se chamava Meg, meiga,
mas não dócil – revoltada.
Margaret não tinha sangue azul, como desejava minha mãe, mas era princesa – eu
que o diga! Trabalhava pelo mesmo motivo que eu – dinheiro! Vinha de Baltimore,
Maryland, e estudava filosofia. Gostava de música.
Nós namorávamos em qualquer lugar ouvindo ritmos caribenhos, no hotelzinho
chinfrim onde eu me hospedava, no dela, melhorzinho embora também meia-
estrela, ou no boardwalk, em cima ou embaixo. Explico: ladeando a areia, existia um
boardwalk, caminho de madeira, onde os turistas passeavam. Em certos pedaços, ao
anoitecer, a parte debaixo era ideal para carinhos sinceros e afagos apaixonados.
Margaret sabia cantar. Eu nem no banheiro – ah, dona Marieta! – e confesso, meio
sem jeito, que gostava de Bing Crosby, Sinatra e das orquestras de Lucho Gatica,
Tommy Dorsey, Xavier Cugat… Pois é, ninguém é perfeito. Até Liberace me parecia
ter relativo talento tocando piano e dizendo small talk, little jokes… se não fosse a
brilhantina no cabelo…
Meg era tão revoltada contra a sociedade e o american way of life quanto contra a
música romântica ambiental que escutávamos trabalhando: “Oh, My Papa!”,
“Stranger in Paradise”, “Hernando’s Hideaway”…
Embaixo do boardwalk, Meg trazia um toca-discos de plástico azul, não sei onde
descobria a tomada elétrica – se é que havia! – e ficávamos ouvindo suas músicas
preferidas em discos de 78 rotações – talvez, em 1954, fossem menos, sei lá!
Namorando, quem vai ficar contando rotações…?
Música, qual? Ainda não era Elvis Presley, não podia ser – “Hound Dog” é de 1956
e eu voltei pro Brasil em 1955! Talvez uma prematura e premonitória Jamaica. Mas
juro que, quando me lembro das músicas que Meg adorava, eu me lembro de Elvis,
the Pelvis!
Ainda hoje, quando me lembro do boardwalk mais importante da minha vida, é
como se estivesse escutando Elvis cantar “Blue Suede Shoes”, que ainda não tinha
sido composta. Não era ele, mas alguém que, na minha imaginada memória, cantava
como ele. Sei que não podia ser: Elvis entrou retumbante jurando que “I’ve Got a
Woman!”, sem que tivesse predecessores; chegou exclamando “That’s Allright,
Mama!”, batendo de frente com tudo que se tocava e se ouvia, entrou gritando: “One,
two, three o’clock, four o’clock rock!!”!
Imaginem essas sonoridades selvagens invadindo espaços hoteleiros e cassinescos,
onde flutuavam meigas suavidades, indutoras ao uísque, ao cheek-to-cheek! Elvis foi
amazônica pororoca musical quando eu já estava no Brasil. Engraçado como a
memória se engana e, mesmo sabendo-se errada, jura! Juro, era ele… e sei que não
era!
O rock foi revolucionário. Veio rompendo limites, contornos, cadeias. Elvis: poeta
do desconforto, da revolta! Depois, rock virou a insuportável bobagem barulhenta
que somos obrigados a suportar. Mas foi protesto, afirmação, foi jovem! Demolidor,
surpreendente. Arte. Vez por outra, ainda é. Rita Lee, mais esse e mais aquele, ainda
são.
Talvez – pensando bem – o rock já fosse a bobagem cinza de hoje – Elvis é
daqueles que “não resistiram ao tempo”. Ninguém, hoje, em sã consciência, põe um
CD de Elvis no laser: só descuido ou masoquismo. Naquele momento, porém, como
ele se contrapunha a algo bem pior, parecia maravilhoso.
Digo mais: seu conteúdo revolucionário não estava nas músicas, mas na sua
contraposição ao meloso gosto melodioso melado da época. Era revolucionário pelo
que negava, não pelo que dizia. Hoje, mostra-se como sempre foi, vazio.
Transformou-se naquilo que condenava.
Ouvindo Elvis (ou quem fosse, sei que não era ele!), eu pensava: no Rio, havíamos
querido suavemente fazer a transição do teatro balneário – é claro que havia no Rio
outros elencos e outros artistas, belos espetáculos, admiráveis, mesmo que não
fossem muitos! –, queríamos ajudar a fazer a transição disso para um teatro sério e
queríamos fazê-la suave. Na música, Elvis entrava aos pontapés!
Ruptura é ruptura. O rock, que hoje me desencanta, me ajudou a pensar assim.
Obrigado, Elvis, the Pelvis. Obrigado, querida Meg.
Assim tem que ser, pensei. Um dia, vou fazer o que quero, o que penso, e o que
penso que quero e o que quero pensar! Não vou pensar no que quer o público:
pensarei no que quero eu! O artista manda! Machão!
Van Gogh pensou com sua cabeça, moveu o pincel com suas mãos, misturou
tintas com seu olhar. Não disse: “Que será que vão dizer? Marchand vai me
comprar?”. Por isso soube pintar o vento, que não ficava quieto pra posar nem pra
Van Gogh. Soube pintar a velhice e não apenas o velho sentado na cadeira amarela.
Pintou a cor e não apenas a coisa colorida. Viva Van Gogh!
Rembrandt gostava da ambiguidade do claro-escuro sem se preocupar com
reclamações de quem queria mais luz pra ver melhor… Picasso sempre fez o que lhe
deu na telha. Telha de artista. Imaginem se tivesse prestado atenção às mulheres que
preferiam ser retratadas com um olho de cada lado do nariz e a boca embaixo das
narinas? Picasso via narizes e tetas, bocas e orelhas onde quer que estivessem na sua
imaginação, não na cara de suas modelos.
O público, o que eu quiser, há de querer! Así soy! Não vou fazer o que penso que
deva ser feito, mas o que quero: correr riscos.
Acabaram-se as férias em Atlantic City, promessas de amor, juras de não esquecer.
Meg foi pra Maryland – onde andará? Eu não esqueci, e você, Meg, lembra?
Meu segundo ano em Nova York foi ainda melhor que o primeiro. Fiz o que já
tinha feito – só que agora sabia o que estava fazendo.
Perto do fim do segundo ano, a Columbia promoveu concurso informal de peças
em um ato. O prêmio: montagem do texto. Fui o primeiro colocado com Martim
pescador. Feliz pensando no que aprenderia com o diretor, atores e público.
Estudando, tomava impulso: agora, daria o salto! O impulso era na máquina de
escrever: o salto, no palco.
A direção da escola considerou que o texto, embora bem escrito e teatral, não era
adequado nem pelo tema – pescadores brasileiros – nem pela forma – cru
naturalismo. Decepção. E agora?
Entrou em cena o Writers’ Group. Decidiram que seria uma afronta aceitar que a
obra vitoriosa não fosse montada, agora que estávamos todos com invencível tesão
de ter a primeira peça do Group em cena, respirando. Meus colegas produziriam eles
mesmos o espetáculo, junto com uma comédia que escrevi, The House Across the Street,
e outra do Howard, The Old Man. Acabamos trocando o Martim por outra minha, The
Horse and the Saint. O elenco seria formado pelos dramaturgos do grupo, sendo
diretores os autores.
Sem querer, comecei a dirigir. Como não era diretor, não tive medo de dirigir.
Não temi o fracasso: estava de antemão perdoado. Até o meu eu alternativo ficou de
acordo comigo, torceu pelo sucesso! Como os atores não eram atores, não tiveram
medo de atuar: estavam ótimos.
Como não havia dinheiro, decidimos construir cenários, varrer chão, pintar
paredes, convidar amigos, vender bilhetes, servir drinques e guloseimas, agradecer a
gentileza de terem vindo enfrentando o risco…
Foi o salto depois do impulso. Como não sabíamos nada, aprendíamos juntos. Me
encantava a metamorfose: uma coisa, o texto escrito; outra, no espaço, no cenário,
na luz, no movimento, no corpo e na voz. Tudo ganhava sentido: nova escritura.
Aprendi que o diálogo, no papel, tem jeito calmo, leva o tempo da leitura – lido, é
tempo passado. Voando entre gente viva, no palco, diferente – vivido, tempo
presente!
Nilson Penna, cenógrafo brasileiro, de passagem em Nova York; nós o convidamos
pra fazer a cenografia. Aceitou. Não tínhamos dinheiro pra produção, mas Nilson
tinha uma grande amiga: Bidu Sayão, cantora lírica.
Fui com ele à casa de Bidu, conhecemos sua mãe, ouvimos seus discos, ela ouviu
nosso projeto, ambicioso, e nos deu dinheiro, além de chá.
Minha primeira direção em teatro foi produzida por Bidu Sayão: vejam que
chique! Até hoje guardo um retrato meu abraçado com ela. Com os cem dólares que
carinhosamente ofertou, fizemos cenários, alugamos o Malin Studio – o mesmo onde
se reunia temporariamente o Actors Studio – e fizemos três espetáculos lotados de
amigos. Não apareceu um único incauto espectador desconhecido. Todos estavam de
antemão conquistados: pais, namoradas e namorados, amigos e acompanhantes.
Espetacular sucesso!
Estreei na Broadway, como diretor e autor – que luxo!
O ENTERRO
Logo depois da estreia, desmonte. Pela primeira vez, senti a tristeza de ver cenários
se desfazendo, o palco se desnudando, pronto para se entregar a outro espetáculo
ansioso. Palco prostituto!
Nossos cenários em quinze minutos estavam amontoados na porta, à espera do
caminhão. Ali, naquele palco onde eu tinha vivido as minhas primeiras emoções
teatrais, já não se viam meus personagens, já se preparavam novos dramas.
Compreendi por que, no Brasil, alguns elencos gostavam de fazer o “enterro” da
peça no último espetáculo: nessa derradeira vez, improvisações são permitidas. Cada
ator, a sós, prepara surpresas: textos fora de contexto, figurinos de outra peça,
marcações absurdas, falsas entradas e inesperadas saídas. A maior tragédia se
transforma em farsa deslavada! Risos em lugar de soluços. Frenesi em lugar da
reflexão.
É uma forma de se fazer o luto do espetáculo. Quase sempre o elenco avisava à
plateia de que se tratava de um enterro e os espectadores se preparavam.
Prefiro o luto tradicional, mesmo que lágrimas rolem escondidas. Sem ser
masoquista, prefiro o sofrimento da despedida. Prefiro a verdade.
OS ADEUSES
Lágrimas rolaram. Pela peça e pela despedida: na semana seguinte terminaria minha
temporada nova-iorquina, já estava de malas prontas.
Não era só o cenário que se desmontava – era Nova York, a Columbia University, a
Broadway e a off-Broadway, os cinemas de Greenwich Village e o Thalia, Harlem e o
Bowery, bibliotecas e museus, ruas e parques. Meu mundo se desmontava.
Não era só o elenco que se desfazia, a cidade que se afastava: eram Gassner e
Hughes, amigos da universidade e do Writers’ Group, era a garçonette que me servia a
sopa, o clam chowder dos dias frios.
Desmontavam-se minhas lembranças de Atlantic City. Dois anos, quando se é
jovem, é longo tempo. Mais tarde, passam correndo. Pena! Tempo – vá devagar!
Em julho de 1955 voltei ao Brasil.
No avião cheio, vim vazio.
1 Muitos anos mais tarde cheguei à Austrália vindo de Nova York depois de vinte horas de voo. Ia começar a
trabalhar na terça-feira e eu, partindo domingo, pensei ter chegado na segunda. Ledo engano: em cima das ilhas
Fiji atravessei a International Date Line, outra linha imaginária, que decreta onde nasce o dia: ali perdeu-se a
minha segunda-feira. Cheguei e fui trabalhar…
2 Teatro musical no Harlem onde muitas estrelas de ontem e de hoje começaram carreira.
NA ARENA DO ARENA
CAPÍTULO 11
O TEATRO DE ARENA (1956-1971)
Parte da minha vida se divide em períodos de quinze anos: quinze no Arena, quinze
no exílio, quinze de volta ao Brasil… e agora? Um novo caminho: a Sambópera! Mais
quinze? Bastam cinco!
NA REDE, PLÁCIDO SOSSEGO…
Dormia, balançando na rede do terraço, lendo revista de crime e mistério, X-9…
Explico: quando voltei, meu irmão deu a notícia assustadora – havia conseguido para
mim um belíssimo emprego na Petrobras: excelente salário. Minha carreira prometia
ser mais fulminante do que havia sido a de garçom em Atlantic City! Fantástico,
maravilhoso!
Pânico! Se assumisse a química, nunca mais faria teatro.
“Você não é nacionalista? Nada mais nacional que a Petrobras… O petróleo é
nosso! Vai trabalhar na Petrobras!”, dizia meu irmão.
Empregos à fartura. Ficou célebre a frase da minha irmã Augusta quando
começou a trabalhar como professora: no fim do mês, voltou pra casa com dois
contracheques, seus primeiros salários em dois colégios: “E agora? Que é que eu faço
com tanto dinheiro?!”, perguntou espantada, olhando as enormes cifras dos salários
simultâneos.
Professores eram semideuses. Com diploma na mão e anel no dedo – os meus a
polícia roubou, duas décadas mais tarde! –, podia-se escolher emprego à vontade. Eu
era Columbia Man: empregadores faziam fila! Petrobras, Fermento Fleichmann, Vale
do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional… O Brasil crescia.
Procurei Nelson Rodrigues. Contei aflições. Não queria ser químico, mas não
achava justo meu pai sustentar marmanjo de 24 anos.
“Você fala inglês. Sabe traduzir?”, perguntou Nelson.
“Posso tentar, mas não sou tradutor…”
Nelson me deu um endereço amigo: “Fala com o Drummond!”, diretor da revista
de crimes, sexo e sangue X-9, avô do James Bond. Drummond me fez passar a
primeira prova: traduzir um texto curto, profusas rajadas de metralhadoras, espirros
de Rh. Carreguei nas tintas vermelhas.
Fui aprovado. Desde a primeira tradução, toda semana ia buscar textos
ensanguentados e fumegantes.
Drummond gostava das minhas versões. Não reclamava quando eu alterava o
texto: ganhando por página, quando sem dinheiro, inventava subenredos, criava
personagens, esticava um conto de dez páginas que virava novela de trinta. Se
estivesse de bolso recheado, matava antes do tempo personagens importantes.
Como não lia a história antes de traduzi-la – irresponsável que era! –, com
frequência assassinava personagens que seriam necessários para desvendar o crime,
e isso me obrigava a fabricar pistas pra ressuscitar cadáveres. Me transformei em
poderoso Inventor de Ressurreições.
Foi assim que aprendi a técnica do romance policial, que me ajudou a escrever,
em 1975, uma novela sobre o golpe de Estado na Argentina – antes mesmo que fosse
deflagrado –, A deliciosa e sangrenta aventura latina de Jane Spitfire, espiã e mulher sensual.
O livro foi editado pelo Jaguar n’O Pasquim, e Guidacci fez belíssimos desenhos
absolutamente pornográficos e lascivos e o livro foi vendido às dezenas de milhares
nas bancas de jornais do Brasil inteiro… não nas livrarias. Os compradores pensavam
que se tratava de livro de pura sacanagem – e sacanagens havia às mancheias, mas
não só! Através dessa técnica eu explicava as maquinações econômicas e políticas
daquele período, naquele país. Perón não ficava bem na minha trama… Menos ainda
na pena de Guidacci.
Molemente me balançava, tocou o telefone: Magaldi, de São Paulo.
“O Arena precisa de um diretor. Sugeri o teu nome.”
“Eu não sou diretor…”
Sábato lembrou que eu havia dirigido peças na Broadway. Temporada de três
espetáculos lotados de amigos, produção caseira de Bidu Sayão… mas Broadway!
Durante anos isso foi motivo de orgulho pra mim: minha estreia foi na Broadway,
oba! Com o tempo, fiquei calmo…
“Se dirigiu, é diretor!”, e não se fala mais nisso.
Nelson tinha razão: quem fala inglês é tradutor! Acabei achando que o Sábato
também: quem dirige é diretor!
RATOS E HOMENS
José Renato foi sincero e franco: “Você diz que não é diretor mas pode ser que leve
jeito. Vamos tentar. Se der certo, melhor pra todos; se não, volta pro Rio”.
“Você tem confiança em mim?”
“Não tenho nem deixo de ter: não te conheço. Mas preciso de um diretor pra
dividir comigo o repertório. Estou na televisão e não me sobra tempo.”
Prefiro assim: claro e sincero. Nesse meu começo de carreira, Renato foi
importante: eu sabia o que ele pensava do que eu fazia, ele dizia! Sem papas na
língua! Me dava segurança.
Logo me veio à cabeça Hamlet. Eu só pensava em Hamlet. Queria começar com o
texto bem-amado.
Ainda no Rio, já tinha imaginado o espetáculo. Eu me lembrava do Hamlet do
Teatro do Estudante, com Sérgio Cardoso – gostava da sobriedade do espetáculo. Era
recomendável que fosse me habituando à sobriedade: pobreza à vista!
Mesmo sóbrio, precisava espaço: Hamlet respira, tem pulmão. Hamlet é ar livre, céu
aberto.
Quando entrei na arena do Arena, quase fiz a pergunta ingênua: “Onde fica o
teatro?”. Tímido, fiquei quieto, esperando que me mostrassem o palco, a cena, luzes,
ribaltas, cicloramas – queria ver.
José Renato mostrou a miúda arena, minúsculos metros quadrados, cinco por
cinco. Pouco maior que sala de jantar. Devagar, entendi que era ali a arena do Arena.
Naquele pequenino ali mesmo, ali deveríamos fazer revoluções estéticas…
Algumas, com estudo e trabalho, fizemos!
Escassez é limitação, não vamos elogiar a falta de recursos como se fosse bênção
divina; desejar a carência – absurdo! O artista, no entanto, não choraminga. Com
desejo e arte, falta de meios pode ser estímulo. Em nossos países escravizados
estamos condenados à criatividade!
Essa pobreza não desejada acabou se transformando em condição ideal para o
trabalho com atores. Espaço cênico finito: dentro de nós, porém, somos infinitos.
Fizemos a busca da infinitude: para dentro de nós.
No Arena, mergulhamos no precipício da nossa alma.
Em 1998, meu filho Julián, depois de tanto ouvir falar, finalmente foi conhecer o
local: “Pai, isto aqui é o Arena??? Foi aqui que vocês fizeram aquilo tudo???”. Nunca
vi tanto espanto. Justificado!
Naquela época, José Renato era elogiado por ter introduzido no Brasil uma forma
barata de se fazer teatro. Verdade, mas não só: introduziu espetáculos em que os atores
eram valorizados ao extremo. A arena não permitia truques, não dissimulava: atores
tinham que se apoiar uns aos outros.
Arena era olho no olho, close-up: atores em primeiro plano, a menos de um
metro dos espectadores, centímetros. O Arena parecia uma extensão do Actors
Studio. Cara a cara!
Acredito que, mesmo que se disponha de meios materiais, o começo, o âmago – e
pensem todos os sinônimos que quiserem para significar a Verdade! –, a verdade de
todo teatro é a inter-relação entre seres humanos. É a paixão que entre eles flameja.
Aqui está a essência do teatro, que pode, depois, vestir-se de ouropéis! Não antes.
Disse Lope de Vega: “Teatro é um tablado, dois atores e uma paixão!”. Assino. Não
preciso nem do tablado…
Fiquei olhando 25 metros quadrados de chão, pensando se Hamlet: caberia?
Hamlet close-up, por que não?
Cláudio? Para mim, a tragédia não é Hamlet e os outros: é Hamlet e alguns outros
versus Cláudio e o resto. O rei é o emergente, o poder burguês que se afirmava; o
príncipe, os valores que se desmoronavam no reino apodrecido da Dinamarca… Este,
porém, continha aquele e, aquele, resíduos deste.
Hamlet, intimidado – ele tem medo da moça, sim! –, mandando Ofélia para um
convento, em meigo e triste lamento; voz baixa, carinhoso, pedindo à rainha
Gertrudes para nunca mais fazer amor com seu tio. Acalanto, o diálogo com a mãe.
Sussurro, a conversa do Fantasma com o filho, meia voz – maravilha! É assim mesmo
que tem que ser conversa séria de pai e filho, e não purgatoriais trombones de
ultratumba! Até aí, tudo sotto vocce. Mas… como matar Polônio atrás de cortinas
suspirantes? Como sussurrar duelos mortais e acrobáticos, sangue espirrado? Como
murmurejar a entrada triunfal de Fortinbrás? Pode, sim.
Questões que tinham solução, tinha certeza, nos ensaios – cada coisa tem seu
tempo. Como dizia Scarlett O’Hara: [1 ] “Tem um cadáver embaixo da cama? Bom,
hoje não tenho tempo para os mortos: resolvo amanhã…”.
Sonhava dirigir Hamlet, mas a primeira peça já tinha contrato assinado: Ratos e
homens, de John Steinbeck.
Elenco? Os atores do Arena não eram ruins, mas, como se dizia na época, eram
estilizados. Como eu tinha visto Escola de maridos, de Molière, com jovens atores do
Teatro Paulista do Estudante, disse ao Renato: “Pra ser franco, como você comigo,
prefiro o TPE. Vou me sentir mais à vontade trabalhando com gente inexperiente
como eu, não com quem sabe tão mais”.
Renato concordou: caía bem, era preciso dar férias ao time principal. Com ele me
ajudando, escolhemos o elenco, no qual estavam atores que comigo trabalhariam
mais de dez anos, como Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, ou pouco
menos, como Dirce e Flávio Migliaccio, Milton Gonçalves, Riva Nimitz, Vera Gertel.
Outros, de longo convívio, vieram mais tarde: Lima Duarte, Paulo José, Dina Sfat,
Myriam Muniz, Fauzi Arap, Fernando Peixoto, Sylvio Zilber, Juca de Oliveira, Ary
Toledo, Nelson Xavier, Isabel Ribeiro, Joana Fomm…
Acertamos o salário. Não me lembro se eram seis, 6 mil ou 6 milhões; não me
lembro se eram cruzeiros simples ou complicados, cruzeiros novos ou velhos,
cruzeiros cruzados, novos cruzados ou velhos milréis: com a inflação de 30% ao mês,
o governo mudava de moeda sem pestanejar. Só sei que o meu salário tinha o
algarismo seis em qualquer parte, pra frente ou pra trás. Isso me impressionava:
fazer teatro e, ainda por cima, seria pago! Vocês entenderam bem? Ser pago por essa
alegria!
Mal conseguia acreditar: receber dinheiro pra fazer o que mais amava! Viver sem
luxo. Além do salário, direito ao almoço, na casa do Renato: sua mãe, a carinhosa
dona Gina, me fazia lembrar minha própria mãe – maravilhosa cozinheira! Nunca
vou esquecer a macarronada das quintas-feiras! Nem o emprestado carinho materno
que recebi.
Além da comida, o ambiente familiar fazia com que eu me sentisse protegido. Foi
importante nesse começo de carreira. Até hoje, em teatro, busco a família. Busco
irmãos. Encontro, mesmo falando outra língua.
STANISLAVSKI
A melhor maneira de ensaiar seria, desde o primeiro dia, praticar Stanislavski.
Expliquei como seria o trabalho, pedi que estudassem os primeiros capítulos da
Preparação do ator, que começaríamos a experimentar no primeiro ensaio, às duas
horas da tarde, em ponto. Fui pra casa – quarto emprestado – reler anotações sobre o
Actors Studio, rever rabiscos nos livros do mestre russo. Stanislavski foi, desde
minha estreia profissional, setembro de 1956, e até o meu futuro minha referência
como diretor.
Às duas da tarde em ponto, estava ansioso, sozinho, sentado na plateia do Arena.
Às duas e quinze, meio elenco. Duas e meia, o elenco ficou completo. Pedi que
abríssemos o livro no primeiro capítulo e lemos a violenta descompostura que
Stanislavski passava no ator retardatário.
Um poeta pode acordar no meio da noite e escrever belo poema – basta
inspiração! Um pintor pintar um quadro em minutos ou anos, como sentir melhor.
Mas artistas de artes coletivas não podem convocar espectadores às três da
madrugada, alegando que só nesse momento sentem que baixou o santo.
Teatro é arte coletiva. Respeito e disciplina são essenciais.
O capítulo terminava com o velho Stanislavski se recusando a dar aula naquele
dia: punição e advertência. Eu, moço estreante, fui moderado: “Vamos ler a peça.
Amanhã, por favor, não me chegue ninguém depois das cinco pras duas, porque é o
ensaio que começa às duas, não vocês que começam a chegar”.
No Brasil sempre esse problema. Em horários, sou britânico, sueco, dinamarquês,
alemão, japonês, finlandês, norueguês, australiano, bora-boraniano, hongkonguês,
neozelandês, tudo… Não tenho nada de carioca!
Reparem que, na lista da pontualidade, não incluí Portugal, Bolívia, México,
Equador, Colômbia, Argentina, Itália…
Nos dias seguintes, quase todo mundo estava de livro aberto quando entrei.
Sempre foi assim: quase na hora, quase todo mundo. Até hoje, não me conformo.
Comigo não tem quase: não me conformo mesmo!
A forma da cena limitava a criatividade visual: chão escasso, rodeado de plateia
por todos os lados, menos um que conduzia a uma parede azul, e duas escadas
laterais para acesso dos espectadores.
Nem tudo era desvantagem: os atores estavam sempre de costas para uma parte
da plateia, de frente pra outra. Tinham que representar com verdade, expressivos em
todas as direções.
A proximidade era intimidante. Durante uma representação de Chapetuba Futebol
Clube, do Vianninha, o autor interpretava um jogador de futebol – em determinada
cena, deitava-se num catre encostado na primeira fila, onde jovens espectadoras
estavam sentadas a dez centímetros do seu corpo. Era rapaz bonito. Uma das moças,
mais encantada, comentou e todo mundo ouviu: “Que pernas bonitas ele tem…”. A
cena era dramática e tivemos que segurar o riso… Imaginem o Vianninha.
Com frequência ouviam-se comentários da plateia e aumentava-se a concentração.
Trabalhar em arena é extenuante, mas gratificante. Inter-relação ou morte!
OS OLHOS
Cada dia estudávamos um capítulo de Stanislavski e analisávamos o texto. Durante
os ensaios, estudamos todo o primeiro livro do mestre. Estudando o método – não
servilmente, mas aplicando-o à nossa realidade –, começamos a criar um estilo
brasileiro contraposto ao do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).
Espetáculo brasileiro significava sermos nós mesmos. Não fazíamos considerações
de classe, sistema social etc. Apenas isto: memória emotiva. Era inevitável que os
excelentes atores do TBC, dirigidos por quatro diretores italianos, um belga e um
polonês, acabassem com prosódia em francês, polonês ou italiano. Nós éramos mais
parecidos aos nossos espectadores.
Para mim, sempre foi esse o alicerce de todo espetáculo: dois atores se olhando. O
olho é a parte mais vulnerável do corpo humano! Por isso procuramos, recatados,
esconder nossos olhos em momentos de emoção. Ou oferecê-los, em momentos de
amor. Os atores devem-se oferecer seus olhares. É no olhar que se cria a estrutura do
espetáculo. É no olhar que nascem os personagens. É no olhar que se descobre a
verdade. Não basta o olho aberto: falo do olhar profundo do qual até os cegos são
capazes.
O ator não entra no personagem: falso. Nenhum ator pode interpretar um
personagem que não exista dentro de si. O personagem sai do ator, que o levava
dentro. Sai pelos olhos! O ator entra, sim, nos personagens dos outros, não no
próprio. Entra pelos olhos!
Teatro, para mim, foi sempre essa energia que passa de um a outro, entre os dois.
Como o amor, que não está contido em um ou outro amante, mas existe intenso
entre um e outro, também assim a teatralidade não pertence a este ou àquele. Como o
raio, é faísca que salta entre dois polos. Dizia Marx que a menor unidade social são
dois cidadãos, e disse Brecht que a menor unidade teatral são dois atores: é o que
penso. Penso que foi Brecht quem disse isso, mas, se não foi, digo-o eu!
Em torno das inter-relações, criei espetáculo simples, onde os movimentos se
reduziam aos obrigatórios. Cada gesto tinha sentido. Uma mesa quebrada, uma
cadeira rota e dois caixotes. As roupas – não tínhamos cenógrafo nem figurinista, ça
va sans dire! – foram compradas na feira. Riva Nimitz veio comigo e ajudou na
escolha.
A POBREZA
Pensei em justificar a pobreza e criei uma expressão, “realismo seletivo” – um
pequeno elemento ou parte da coisa simbolizava a coisa: feixe de palha era o celeiro;
espelho quebrado, o quarto da mocinha; arreio de cavalo, cavalariça… Cenografia e
figurinos cabiam em um saco de roupa. Melhor pra viajar.
No começo, distância: Guarnieri e Vianninha sabiam que eu tinha estudado nos
Estados Unidos e me chamavam de americano ou caubói. Diziam que eu caminhava
como se estivesse a cavalo. Eu fazia o possível para gingar como carioca – isto é,
como eu próprio gingava, fazia uma caricatura de mim mesmo, exagerava o balanço
e, quanto mais tentava a ginga, mais caubói me tornava. A confiança veio pelo
trabalho, apaixonados pelo que fazíamos.
O estudo de Stanislavski foi pedra fundamental na minha carreira. Foi ele que
sistematizou um método – embora não gostasse que chamassem de método ao seu
método – que ajuda o ator a buscar, em si, ideias e emoções atribuídas aos
personagens. Nesse sentido, uma das principais funções do diretor é ser maiêutico,
como Sócrates no seu processo de filosofar – o filósofo é a parteira que faz o aluno
descobrir o que já sabe, sem saber que o sabe, através de perguntas que provocam a
reflexão, abrindo caminho para a descoberta. Assim deve ser o diretor teatral: ajuda
o ator a parir personagens.
O parto podia ser difícil. Vianninha, em laboratório, interpretava um personagem
que deveria sentir a angústia de subir um desfiladeiro pra salvar alguém, e se dividia
entre a solidariedade e o medo. Quando observei que ele não tinha sentido nada e
estava apenas relatando a frio pensamentos sem emoções ou sensações, Vianninha
se espantou e disse: “Você queria que aqui, nas arquibancadas, eu sentisse o medo da
morte?”.
“Claro. E que nos contasse esse medo, que deve ser terrível…”
Houve incredulidade. Depois de pausa meditativa, um dos atores comentou,
amedrontado: “Mesmo que pudesse, eu nunca faria isso, porque… com certeza deve
fazer mal à saúde… Stanislavski, levado a sério, adoenta…”.
Percebi o medo de sentir medo. Aproveitei a oportunidade e pedi que descrevesse
esse medo, como era o medo de ter medo…
Expliquei que Stanislavski não era indigesto. Ao contrário do que dizem os mal
informados, ele nunca pregou orgias emocionais. Nele percebemos a preocupação
com a ideia que rege a ação do personagem: razão e emoção. A emoção decorre de
uma descoberta e não da ignorância. É terapêutica: a verdade é terapêutica. Arte faz
bem à saúde. Devia ser recomendada por todos os médicos. O teatro também! [2 ]
Se o ator se deixa levar por emoção desgovernada, sem rumo, sem nada descobrir,
é tonto. Ou, se articulado, serve como puro exercício de emoção abstrata: atores
discutem com aspereza um tema absurdo, usando só palavras que não façam sentido
e devem chegar à raiva, amor etc. Como exercícios abdominais que servem para
fortalecer os músculos da barriga; como pedalar em bicicleta ergométrica, sem sair
da sala. Ou vocalise – ginástica.
Ainda hoje se encontram atores que têm medo ou aversão a tudo que seja de
natureza emocional. Inventam esse absurdo de emoção versus técnica, como se fossem
antônimos e não partes do mesmo processo criativo. Alguns chegam a se emocionar
falando contra a emoção…
EMOÇÃO EM WUPPERTAL, BERÇO DO PRÉ-HUMANO NEANDERTHAL
Dou exemplo extremo, recente. Em 1985, fui convidado pelo Schauspielhaus de
Wuppertal, na Alemanha, para dirigir a peça de García Lorca El Público. A maior parte
desse texto estava perdida e, tendo sido encontrada meses antes, tratava-se da
primeira montagem mundial do texto completo.
Fiquei espantado: em geral, os diretores são rotulados pelo que fazem com maior
frequência ou pelo que tenham feito de mais importante e não são considerados
capazes ou interessados em fazer o que não lhes é habitual. Sempre fui conhecido
por espetáculos com preocupações sociais – apesar de já ter dirigido e de gostar de
tudo um pouco! El Público era uma tentativa de escritura surrealista. Inquieto,
perguntei por que me tinham escolhido para dirigi-la: “Nada mais surreal do que
convidar você!”.
Achei ótima a explicação e fiquei fascinado em usar Stanislavski em peça
surrealista. Para mim, uma coisa é o surrealismo, outra, o nonsense. Este é uma
sucessão de significantes sem significado, ou sem sentido na sua justaposição;
naquele, um sentido existe, subterrâneo, inconsciente, e se transmite do artista –
através da sua obra – ao espectador. Eu queria achar esse sentido oculto, sem traduzi-
lo em palavras. Guardar significados possíveis, não reduzi-los a um só. Queria que o
espectador pudesse projetar, na simbologia do espetáculo, desejos inconscientes.
Alguns atores wuppertalianos, treinados de outra forma – embora estivessem na
casa de Pina Bausch! –, queriam explicações lógicas para tudo. Quando me
perguntavam se tal cena era isto ou aquilo, eu respondia, sincero: “É isto e aquilo!”.
Insatisfeitos, queriam sim ou não, a ou b, um ou dois, como computadores. No
entanto, eu dizia a verdade. Queria isto, aquilo, e mais alguns aquilos e outros istos:
queria o mais, o também, talvez, além disso, o quem sabe?.
Estávamos ensaiando a cena em que as Figuras discutem para saber quem é Um e
quem é o Outro. Chega o Centurião, que precede o Kaiser, e exige que se definam. A
cena termina com a chegada do Kaiser que escolhe um e recusa o outro.
Os atores que interpretavam as Figuras insistiam: “Um, o quê? Outro, o quê? O
que se esconde nessas palavras terríveis, Um e Outro?”.
Eu insistia em que atores deveriam vagar e navegar num mar de significações
possíveis, devanear: fazer com que o desejo de ser Um (o que ambos queriam), e não
o Outro (que rejeitavam), provocasse a emoção que os levaria à forma justa: ideia
emoção forma: a essencial tríade!
Queremos ser Um e não Outro. Os atores deveriam pensar Um e Outro com
amplitude e não singularizar um dos sentidos possíveis, reduzindo-os a só isto ou só
aquilo.
Expliquei que qualquer conotação que déssemos a Um e Outro reduziria a riqueza
de significados possíveis, tornando a cena realista, menos interessante. Como se
alguém pusesse legenda em um quadro: “O sorriso enigmático da Gioconda, a
estranha dama misteriosa que nunca ninguém soube explicar quem era e que se
suspeita que tenha sido um rapazote imberbe”, de Leonardo da Vinci; ou “Duas
mulheres almoçando nuas, vejam só, deitadas na relva com cara de enfadadas e
observadas por homens vestidos de negro”, de Manet. Ou, em música, “O destino
bate à porta”, também conhecida como a Quinta sinfonia de Beethoven…
Banalizações!
“Conotação, como?”, perguntaram.
“Se eu disser que Um é Hamlet, Outro Horácio, fica claro, mas se escurece a gama
de significações e se reduz o conflito, denso e profundo, justamente por nebuloso e
impreciso, à corriqueira disputa de atores pelo melhor papel.”
“Pode reduzir, mas se for disputa de papéis, isso nos tranquiliza, porque
conhecemos esse problema. Precisamos de precisões.”
“Então vão ter! Mais do que precisam!”, ameacei, perdendo a paciência, o que
raramente me acontece.
Chamei o chefe dos maquinistas e pedi veloz este cenário: à direita, mesa de
banquete, com o que encontrasse no depósito – leitões assados, frangos, perus,
tonéis de vinho, barris de cerveja, o que houvesse de gastronômico e apetecível, em
papier mâché. À esquerda, mesa com instrumentos de tortura, correntes e correias,
serras, fios e ferros. No centro, cela fechada.
Com germânica precisão, em dez minutos, diante dos olhares espantados surgia a
cena, deslumbramento acima de qualquer expectativa. Pedi aos atores que
improvisassem, na cela fechada, Um e Outro, agora que sabiam cada destino.
“Dentro da cela ninguém vai nos ver.”
“Não é espetáculo: é laboratório! Não interessa a plateia, só vocês!”
Improvisaram e só podíamos ver suas cabeças quando passavam por uma
janelinha da cela. Emocionados estavam e mais ficaram quando entrou o Centurião
dando chicotadas no cenário e exigindo saber quem eram Um e Outro, antes que
chegasse o Kaiser. Subi no palco e derrubei uma das paredes da cela no justo
momento em que entrava o Kaiser e perguntava: “Quem é quem?”.
Os atores se atiraram aos pés do imperador clamando que eram, ambos, Um! O
Kaiser fez sua escolha e levou Um dos atores para o banquete: ele subiu na mesa e se
pôs a dançar, no meio das comidas e bebidas. O Centurião levou o Outro para a mesa
de torturas e, enquanto manejava, com enervantes e assustadores ruídos, os
instrumentos da dor, o ator – já agora transformado no Outro – despiu-se e se deitou
na mesa, pronto para a tortura. O Um dançarino, vendo a cena, fez strip-tease
grotesco, bailando. Os dois nus.
Terminou o improviso. Os espectadores – minha assistente, a tradutora,
maquinistas e faxineiras – estavam emocionados. Aplaudiram com entusiasmo. Os
dois atores, em coro, disseram: “Somos profissionais e fazemos tudo que o diretor
mandar. Tudo, menos isso: porque isso não é teatro, isso somos nós! É nossa vida,
intimidade, privacidade que só a nós pertence e que expusemos aqui! Vamos pedir
demissão!”.
Foi um custo convencê-los a não se demitirem. Conseguimos. Mais difícil
convencê-los de que aquilo era teatro e bom. O espetáculo fez sucesso, espanto geral.
Os atores continuaram até o fim da temporada dizendo: “É sucesso, mas isso não é
teatro: isso somos nós…”.
Sempre que o espetáculo terminava, emocionados, agradeciam. Quem agradecia:
ator ou personagem? Onde acaba um, onde começa o outro? Quem era Um, quem
era o Outro?
OS CURSOS E O SEMINÁRIO DE DRAMATURGIA
Os ensaios de Ratos e homens, em 1956, foram menos drásticos. A peça estreou em
setembro. Renato, antes do sucesso, já tinha me convidado pra codirigir com ele o
teatrinho.
“Você é um diretor!”, disse. Fiquei orgulhoso e me lembrei de Gassner: “Você é
um dramaturgo!”. Perguntei a mim mesmo: “Será verdade?”.
Nunca tive certeza. Será que sou dramaturgo, diretor, professor, escritor, teórico?
Tanta gente tem tanta certeza, sabe se definir – eu nunca soube. Sou talvez um,
talvez outro.
Depois da estreia, eu me postava na entrada. Sentia, primeira vez, a angústia da
bilheteria: quantos virão? Quantos reservaram ingressos? A vida do teatro dependia
deles.
Excelente estreia não era sinal de boa carreira – havia que esperar o boca a boca –
os franceses dizem bouche a oreille, que é mais correto: ninguém faz publicidade boca
a boca… a não ser em certos casos…
Um dos maiores sucessos que tive foi A mandrágora, de Maquiavel. Estreia,
lágrimas de alegria. Dia seguinte, ninguém. Absolutamente ninguém. Nem um único
e piedoso espectador, nem amigo, namorada. Resolvemos fazer o espetáculo… pelo
prazer, portas abertas.
No começo, o porteiro, o bilheteiro e eu. Vieram depois três bêbedos, atraídos
pela música: de graça, ficaram. Passou o porre.
Chuva, mau sinal, quem havia reservado podia desistir. Dependíamos da
bilheteria: salários, publicidade, manutenção e a nova montagem.
Anos mais tarde, exilado em Buenos Aires, se chovia às cinco da tarde, eu, sem
saber por quê, me angustiava. Descobri: em São Paulo, se chovia às cinco, metade
dos espectadores desistiam.
Ratos e homens lotava. Os atores tinham tomado o gosto pelos exercícios de
Stanislavski e pelos que eu inventava, já naquele tempo, e que me serviram de base
para Jogos para atores e não atores. Nós institucionalizamos o Laboratório de
Interpretação.
De onde veio esse nome, laboratório? Creio que da Praia Vermelha. A química me
ajudou, não apenas na escolha onomástica, mas na necessidade que sinto de
sistematizar com precisão, no rigor do trabalho. O pensamento científico está por
trás do que faço. Meu pai tinha razão: quatro anos não foram desperdício – a
química, por estranha alquimia, floresceu em meus livros, nas encenações e na
minha vida.
No laboratório criávamos sentimento de fraternidade com atores que vinham de
outras companhias. Tínhamos orgulho em falar de classe teatral, como se falássemos
de parcela importante da classe operária.
O elenco me pediu para contar como eram as aulas de Gassner. Queriam que eu
fizesse um Curso de Dramaturgia, aberto ao público.
Achei a ideia boa, mas argumentei que não era professor, não sabia dar aulas.
Disseram que eu não devia me preocupar comigo e sim em transmitir o que tinha
aprendido: “Só você esteve com o Gassner: conta o que ele contava…”.
Quem sabe falar é conferencista… Ou escritor: basta desenhar no papel as letras
que saem pela boca. Ser escritor é pensar: todo mundo pensa. Todo mundo é
escritor!
Tive medo, mas aceitei. Nunca tinha falado em público: natural que minhas
pernas tremessem. Nada de mais, só tremenda tremedeirinha.
Eu tinha planejado falar de pé. Vi cem pessoas esperando minha fala – entre elas,
gente conhecida, famosa, como a escritora Pagu – e preferi pedir cadeira e mesa para
meus papéis, que tremeriam menos.
Terminou a aula-conferência e meus amigos perguntaram como me sentia:
“Conferência é fácil: é só se concentrar no que quer dizer e não em si mesmo… Se
você quer convencer pessoas, pensa nelas, não em você”.
Durante semanas, reuniam-se cinquenta pessoas assíduas e eu dava aulas
mostrando que as leis em dramaturgia são instrumento de trabalho para serem
utilizadas, não obedecidas. Leis extraídas de obras-primas, Sófocles, Shakespeare,
Molière. Se quiser use; se não, corra riscos…
Peguei gosto. Descobri que, quando ensina de verdade, o professor é quem mais
aprende. No mínimo dos mínimos, aprende como são as diferentes maneiras que
alunos têm de aprender a mesma coisa.
Eu aprendia com segurança o que ensinava. Algumas perguntas já tinham sido
respondidas pelo Gassner; outras respostas tive que inventar. Guarnieri e Vianninha
escreviam muito – estimulavam os outros.
O MEDO
Curioso o medo: continuo tímido, mas diante da plateia fico tão interessado em
convencer as pessoas que esqueço o medo. Vejam bem: não perco o medo – esqueço.
Esqueço que estou com medo. O medo se afasta, se esconde, mas volta no fim da fala
quando já não há mais razão pra medo, ou pode continuar submerso durante a fala,
fora do meu olhar: sempre está em algum lugar a timidez.
Não tenho medo só porque tenho medo: fico com medo de que os outros vejam
meu medo, sintam meu medo, pressintam que estou com medo, sei que o medo está
à espreita, o medo é narciso, vaidoso, gosta de se mostrar nos momentos
inconvenientes: o medo não tem medo de se exibir! Quando acontece, empurro a
timidez pro lado, grosseiro, e falo alto pra esconder o medo… Fico com medo de ter
medo e escondo o medo. Onde? Em mim! Que medo!
As pessoas são muito complicadas. Eu, então, nem se fala!
O presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, dizia que devemos ter
apenas um medo: o medo de ter medo. Eu também tinha esse medo, dose de
elefante. Medonho!
O SEMINÁRIO
No ano seguinte, 1957, organizamos outro Curso de Dramaturgia, aberto. Em 1958,
depois da estreia de Eles não usam black-tie, resolvemos fundar o Seminário de
Dramaturgia para aprofundar nosso estudo, agora em pequeno grupo.
O seminário seria para convidados e o curso para todos. Reunimos doze futuros
autores profissionais, alguns já tendo escrito, outros nem uma linha. Reuniões aos
sábados de manhã para analisarmos peças com, no mínimo, dois relatores – um dos
quais sempre eu, já que me supunham conhecedor de carpintaria teatral: para isso
tinha estudado na Columbia University!
Os relatores tinham que ser minuciosos, prestar informações nos debates. Os
outros participantes ouviam a leitura e debatiam. As reuniões terminavam quando
se sentia fome. Almoçávamos num botequim da Consolação, onde nos esperava
suculenta feijoada, apesar do calor! Discussões suadas. Difícil combinar Hegel,
Brunetière, Aristóteles com torresmo e costela de porco – no verão! Sófocles, Ibsen e
Shakespeare com couve, laranja e chouriço. Heroicos: caipirinha com Maquiavel e
Eurípides. Delícia!
Notei que quem tomava caipirinha tornava-se generoso, capaz de compreender o
ponto de vista alheio. Eu era solidamente abstêmio: até então, o único álcool que
tinha atravessado minha garganta, com certa dificuldade, tinha sido um modesto
cuba-libre na despedida do Writers’ Group, copo que causou severo estremecimento
da minha reputação de jovem bem-comportado.
Desde então tenho pensado escrever um ensaio sobre “O álcool e seus curiosos
efeitos sobre a ideologia”. Começo escrevendo, bebo um bourgogne e esqueço.
Depois do almoço, descanso antes da matinê às quatro. Aos sábados, os teatros
faziam sessões às quatro, oito e dez e meia. Aos domingos, seis e nove. As peças não
podiam durar mais que duas horas, com intervalo obrigatório para o bom
funcionamento do bar. À meia-noite, cine Paissandu: Kurosawa, Fellini, De Sica,
Visconti, Rossellini…
Atores que trabalhavam na TV Tupi eram obrigados a ensaiar depois da meia-noite
– no teatro das duas da tarde à meia-noite e até as quatro da manhã, na TV. Segundas,
sagrado dia de descanso, ensaiavam no estúdio à tarde, mortos e, ao vivo, às nove da
noite: não havia videoteipe. Eh, vida boa, não é mesmo, Fernanda, Fernando, Ítalo,
Sérgio, Nathalia…? Heróis!
Parte do seminário tinha participação partidária; normal que os debates fossem
politizados. A paixão pode levar à intransigência. Algumas vezes, intransigíamos. O
seminário ficou com fama de sincero beirando o dogmatismo. Hoje seríamos mais
compreensivos.
Às vezes sentíamos a violência na própria cabeça. Escrevi um Édipo paulistano,
Helena e o suicida, e quase fui parar em hospital psiquiátrico depois dos virulentos
ataques dos meus ex-alunos!!! Me consolava: “Estão se revidando ensinamentos…”.
Convidávamos, para dar aulas, quem conhecia certos temas mais do que nós,
como Sábato, que nos falava do teatro grego, Anatol Rosenfeld, que nos introduzia o
teatro alemão, Décio de Almeida Prado, que nos contava a história do teatro
brasileiro, José Renato e Ruggero Jacobi. Autores que não eram do seminário, como
Jorge Andrade e Bráulio Pedroso, vinham ler suas peças.
Na verdade, em 1957, o seminário organizava cursos e reuniões informais, mas só
adquiriu a forma acima depois do Black-tie, em 1958.
Em 1959, Alfredo Mesquita me convidou para inaugurar dramaturgia na Escola de
Arte Dramática, o que tornou desnecessários os cursos do Arena: quem quisesse,
fosse para a EAD.
Tive alunos inspirados: Renata Pallottini e Lauro César Muniz, na primeira fila, no
meu primeiro ano. Na segunda turma, meu amigo e, mais tarde, advogado político
César Vieira (Idibal Pivetta). Para montar suas peças, César criou o União e Olho Vivo,
já trintenário, o mais antigo teatro popular do Brasil. Ao seu lado, sentava-se o juiz
Sant’Anna, pai de Vanya, que viria a ser esposa de Guarnieri. Eudynir Fraga e outros
nomes, lembro imagens.
Fomos convidados a mostrar Ratos na Tupi. Novelas não existiam – só nas rádios.
Fiquei impressionado com o diretor de TV, Luiz Gallon: uma perseguição na floresta e
Gallon, com duas câmeras e dois galhos de árvore, criava a impressão de floresta
amazônica, onde se escondia Lennie, depois de matar a mulher do patrão.
Adrenalina, na hora da transmissão, jorrava aos borbotões: ninguém podia errar,
tudo ao vivo.
Fim do ano, Ratos e homens devia sair, embora lotado, e Renato me pediu pra
dirigir a próxima. Qual?
MARIDO MAGRO, MULHER CHATA E A NAMORADA IMPLICANTE
Difícil repertório. Hamlet, nem pensar! Sugeri um texto copacabanense meu, Marido
magro, mulher chata: personagens jovens e poucos, cenário único.
Depois da trágica tristeza de Steinbeck, salutar comédia das que apelidávamos,
envergonhados, “despretensiosas”. Peça brasileira era veneno de bilheteria. Comédia
despretensiosa era perdoada. Vianninha entrou no elenco e também sua esposa,
Vera Gertel – ambos do TPE.
Sofás emprestados, jardins artificiais emprestados, smokings alugados, roupa da
família.
Eu, feliz. Tocou o telefone: minha nova namorada, Maria Cristina, atriz recém-
chegada da Inglaterra, onde tinha estudado arte dramática, mulher culta,
inteligente, bonita, cheia de prestígio. Falava o tempo todo em Peter Brook e eu
ficava com ciúme danado. Falava das maravilhas europeias, culturas diversificadas, e
eu acabava de chegar dos Estados Unidos, onde tudo era uma coisa só. Mas era Peter
Brook que me deixava mais enciumado. Janeiro de 1957.
O namoro dava certo, estávamos felizes. Éramos sinceros a mais não poder,
dizíamos o que pensávamos – demais. No dia da estreia, Maria Cristina exagerou na
franqueza exuberante: tão sincera… diacho! Estreia, a gente tem que ter cuidados
especiais com sensibilidades estreantes. Maria Cristina desmediu-se desmesurada.
Eu tinha lhe dado o texto para ler e quis sua opinião, ouvir elogios pelo telefone:
“Leu?”. “Li.” “Gostou?” “Uma porcaria. Pra não dizer merda, porque hoje é dia de
estreia e você podia pensar que era estímulo!”
“O que foi que você disse?! A ligação está horrível… essa telefônica não presta…
não estou entendendo nada…”
“Está entendendo muito bem, sim! Essa peça é uma porcaria! Como é que você é
capaz de dirigir tão bem o Steinbeck, emocionante, me fez chorar – olha que sou
excelente atriz, não choro à toa, só quando quero, no palco! –, me fez chorar e vem
você e faz uma chanchada horrorosa, que raiva!”
“Depois da estreia a gente conversa…”, pedi, querendo adiar as críticas.
“Eu nem sei se vou continuar namorando você depois da estreia… Imagina nós
dois na cama e me vêm à cabeça esses diálogos irresponsáveis! Corta qualquer
tesão…”
Eu argumentava que os personagens eram irresponsáveis e a peça denunciava a
juventude imatura de Copacabana. Foi o argumento que me veio, pego de surpresa.
Tinha que dizer qualquer coisa, disse…
“Denuncia o quê, Boal, onde é que você está com a cabeça? Denuncia nada: pura
complacência! Um pavor!”
“Está bem, mas o texto é só parte do espetáculo, não é o todo… Você precisa ver.
Venha hoje! Reservo quantas entradas você quiser! Você vai ver que toda a crítica
social está na interpretação dos atores. O Vianninha, a Vera, a Riva, o Geraldo estão
ótimos… emoção… inteligência…”
“Deus me livre de ver essa vergonha nacional… Tenho mais o que fazer. Vou ficar
em casa. Na cama, com Brecht… relendo Brecht… Aliás, você precisa começar a
ler… É ótimo! Morreu na Alemanha quando você estava ensaiando o Steinbeck. Acho
até que morreu no dia da estreia. E se o Shakespeare estivesse vivo, morreria hoje à
noite!!! De vergonha!!!”
Coisa de namorados. Sinceros. Demais. Ela não calava a boca, eu com a orelha
ardendo no telefone preto, como o da padaria do meu pai: regredi! Falou de Peter
Brook… Ah, Peter, você me paga!
“É, mas o Peter também faz comediazinhas… eu vi, na Broad-way… Um musical
House of Flowers… bem feito, divertido, mas comediazinha… putas e policiais de
pijama… eu vi… vi, sim…” – eu morria de ciúmes, sem saber se lembrava direito ou
torto, mas ia lembrando, a torto e a direito, os diretores famosos que algum dia
tivessem dirigido um pecadilho…
Ela nem quis ouvir. Argumentou que Peter Brook tinha feito Titus Andronicus com
Laurence Olivier e Vivien Leigh e eu, não. Me contou, sem mais nem menos, o
curriculum vitae do Peter, da Vivien e do Laurence, do Redgrave pai, do Gielgud, Dame
Evans, Peggy, Paul… e não parava de contar maravilhas. Da frente pra trás, estava
em Thomas Kyd quando eu parei de escutar!
Noite de estreia, ela chegou em cima da hora, entrou no escuro, escondida. A
plateia não parava de rir! No fim, não parava de aplaudir. Maria Cristina me
procurou nos camarins: “Você tinha razão: o texto não é todo o espetáculo…”.
Elogiou a frescura dos atores, a inteligência das marcações, gostou de tudo. Essas
mulheres…
“Não, quem tem razão é você: é uma merda! Vou proibir amanhã mesmo! Essa vai
ser a única montagem desse troço.” Esses homens…
Não quis sair com ninguém depois da estreia: fui pra casa jantar sanduíches
sozinho. Sucesso amargo. Maria Cristina tinha razão: eu tinha traído meus
personagens da Penha, traidor da causa operária, da revolução socialista, do Homem
Novo, de Stanislavski e Tchekhov, do famoso Teatro com T maiúsculo, da minha
Ideologia com I maiúsculo, tudo, não sobrava nada! Nada com N! traidor com
tezinho minúsculo, miúdo!
Maria Cristina veio me visitar, depois de jantar com amigos. Eu já estava sereno e
disse que a bronca tinha me ajudado a ver claro, voltar à minha verdadeira ideia de
teatro.
Maria Cristina estava carinhosa. Ninguém é de ferro: antes de seguir, perguntei:
“Você não vai lembrar diálogos, não vai cortar o tesão?”.
Disse que não. Como era tarde, preferiu ficar comigo até o sol nascer. Esses
casais…
PRA QUEM SE FAZ TEATRO?
Três meses de salários em dia. Era a vez do Renato e escolheu Enquanto forem felizes,
de Vernon Sylvaine.
Depois, voltei ao realismo seletivo e à seriedade, Juno e o pavão, de Sean O’Casey (5
de junho de 1957), obra-prima que já falava da guerra civil irlandesa. Convidei, para
traduzi-la, o poeta Manuel Bandeira. A tradução ficou um primor. O elenco ia de Sadi
Cabral (de quem eu ouvira pela primeira vez o nome Stanislavski) a Aracy
Balabanian, que estreava como profissional.
Foi o espetáculo mais exato que tinha feito até então: emoção e rigor. Na plateia,
chorava-se diante da irracionalidade da guerra, mortes inúteis. Quem assistia
gostava. Especialmente da cena em que Vianninha, o guerrilheiro traidor, ao ser
cercado pelos ex-companheiros, vendo-se perdido, ajoelhava-se e rezava a ave-maria:
a luz se extinguia e, no escuro, um tiro. Voltava a luz, lágrimas em todos os rostos.
Curioso: ficávamos felizes vendo sofrimento. Os desígnios do teatro são
inescrutáveis… Teatro é forma de se entender a dor, dominá-la. Fazemos teatro para
sermos maiores do que a dor. Senhores da dor!
Pena que o tema não inspirasse. A guerra civil irlandesa era tão distante… Os
espectadores diziam: “Sabe que eu gostei?! Mas não entendi nada…”.
“Sabe que eu gostei!?!” não prenuncia êxitos. “Não entendi nada…”, menos ainda.
Juno e o pavão ficou dois meses. Não bastava que fosse a peça obra-prima e o
espetáculo, uma pérola – era necessário algo mais. O quê?
Na alternância, Renato montou Silveira Sampaio, Só o faraó tem alma, Alfredo
Mesquita dirigiu um espetáculo duplo, A falecida senhora sua mãe, de Feydeau, e Casal
de velhos, de Mirbeau, e eu, que não gostava de ecletismo, insisti no filão realista, They
Knew What They Wanted, com o espantoso título de A mulher do outro, de Sidney
Howard, que nos permitia continuar Stanislavski com peças estrangeiras.
Fazendeiros norte-americanos: nada a ver com os brasileiros. A globalização cultural
ainda não tinha operado em nós a “prótese do desejo”, ainda desejávamos falar de
nós, ouvir nossa voz, ver nosso rosto.
Durante os ensaios, senti que me preocupava demais com o rigor do espetáculo e
menos com os personagens. Como se a objetividade do espetáculo primasse sobre a
subjetividade dos atores. Eu queria, com recursos teatrais, esconder interpretações
deficientes de atores menos capazes que haviam entrado no elenco.
Era como se estivesse fazendo prova de fim de ano em Nova York sem pensar na
plateia de São Paulo, que tinha outras preocupações e não estava interessada em
problemas rurais norte-americanos.
PARA QUEM?
Para quem se faz teatro? Para si ou para o público – e que público? Nem sequer pra
mim escolhia: eu era um Columbia Man e essa formação universitária me fazia pensar
em textos literários, obras-primas de compêndios, sem levar em conta realidades que
estavam da porta para fora. Só me faltou montar Shakuntala! Orgulho dos meus
professores. Fazia repertório para exames de fim de ano.
Sempre gostei de rigor, embora nem sempre o tenha conseguido. Sempre me
preocupou esse difícil equilíbrio. Como o encontro diretor e ator: a subjetividade
deste – quando é bom ator! – tende a exigir mais tempo e mais espaço do que pode
aquele lhe conceder.
O trabalho do Actors Studio permitia certa indulgência dos atores consigo
mesmos. “Tudo bem?”, perguntava um personagem. Antes de responder, o outro
olhava o copo, segurava o copo, rolava o copo nas mãos, levava o copo aos lábios,
bebia um gole, punha o copo na mesa, afastava o copo e respondia: “Yeeeeeeeee
eeeeeeeeeeehhhhhhhhhh…”.
Isso acontecia mais no cinema. Haja pausa! Quando os atores eram Marlon Brando
ou James Dean, perdoava-se. Infelizmente, a maioria não era Dean nem Brando, nem
justificava tanto vagar.
Stanislavski, dando liberdade aos atores, não esquecia a interrelação – esta
interdependência é social, existe no tempo e no espaço concretos, não apenas na
subjetividade incomensurável do ator. O Actors Studio criou uma espécie de
realismo expressionista… Nos diálogos, o que se mostrava, em cena ou na tela, era o
que ia na cabeça de cada um e não na relação entre os dois. Difícil equilíbrio.
DE MULHER, ENTENDO EU!
Uma história verdadeira ilustra esse conflito.
Pedro Paulo era diretor de teatro bem informado, falava línguas, lia todas as
revistas teatrais e estava apaixonado pela atriz Anabela, que também falava línguas,
informadíssima, além de bonita. Cultos, no sentido de que tinham informações
acumuladas – a maioria inúteis. Eram o que Nelson Rodrigues chamava de
“analfabetos em vários idiomas”.
Estavam ensaiando Senhorita Júlia, de Strindberg, e Hamilton Manga fazia o papel
do empregado: excelente ator que não sabia falar nem português – diziam dele que
tinha o vocabulário tão rico e variado como o do papagaio do vizinho, que aprendeu
a falar de velho… [3 ] Manga ficava ouvindo eruditas conversações entre Pedro Paulo e
Anabela em inglês, francês e italiano, idiomas que dominavam com acrobacias.
Manga fora da conversa, fulo, aguentando. Sentia-se culpado por tão ignorante em
matéria idiomática, além de outras ignorâncias variadas. Engolia heroico as citações
de Shakespeare, Corneille, Molière, Dante, Ariosto, Homero, Racine. Depois das
poliglóticas explicações, Pedro Paulo perguntava, maldoso: “Entendeu, Hamilton?”.
“Mais ou menos…”
“Então repete!”, pedia, cruel.
“Vamos ensaiar!”, implorava Manga, que, em cena, era comunicativo, maravilhosa
presença, transmitia tudo, especialmente quando não entendia nada.
“Vaca que dá leite não sabe o que faz…”, dizia Nelson.
Sessões de tortura. Hamilton, arreganhando dentes, jurava vingança. O diretor lhe
perguntava e Manga respondia com outra pergunta boba; por exemplo, qual a
diferença entre camelo e dromedário, aranha e bicho-da-seda, palmeira e coqueiro?
Era xingado de burro e ruminava desejos de vingança.
Até que chegou o dia. Pedro Paulo, esplendoroso, esbanjando erudição em todas
as línguas; Hamilton sorumbático, frango molhado, até ouvir a frase salvadora,
“Vamos ensaiar!”. Pedro Paulo mandou que improvisassem a cena na escada depois
de que o criado e Júlia passaram a noite fazendo amor.
Terminado o improviso, o diretor deu berros medievais dizendo que não era nada
disso, que Hamilton não tinha entendido nada, Strindberg era um dos maiores
escritores contemporâneos e ele não poderia permitir esse verdadeiro assassinato de
uma obra-prima…
“Então explica, porra! O que é que está errado? Explica em português…”
Pedro Paulo explicou em português: “Eles passaram a noite trepando, está
ouvindo? Era tudo o que ele queria na vida e conseguiu: a noite toda, ele e a menina
rica. Foram pra cama às nove da noite, agora são sete da manhã”, exagerava. “Então,
o rapaz, felicíssimo, abre a porta e vem descendo e salta os degraus da escada, dois a
dois, três a três, pula, grita, é um homem feliz, entendeu? Ele não é esse personagem
triste que você fez, se arrastando pela escada, parecendo bêbedo…”.
“Eles passaram a noite trepando, das nove da noite às sete da manhã???”
“Isso: está feliz como nunca! Por isso, salta os degraus de dois em dois…”
“Sabe de uma coisa? Abandono. Peço demissão. Hoje mesmo, agora.”
Espanto e medo: a publicidade feita, não seria possível substituir Hamilton, que,
além de tudo, tinha público cativo.
“Você ficou maluco? Abandonar por quê?”
“Porque você pode entender muito de Shakespeare, Aristóteles, Schopenhauer,
Spinoza, estética e filosofia, mas de trepadas entendo eu: se ele passou a noite
trepando, está cansado, arrebentado, não pode descer as escadas dando pulinhos
afrescalhados como você quer!!!”
Tinha razão. O diretor queria a cena alegre, personagens saltitantes, mas o ator
não podia fingir. Sexo, se é bom, exaure!
DISCIPLINA
O rigor sempre me preocupou. Conto duas histórias significativas. No Brasil, era
difícil começar na hora por causa dos atrasos, atores gravando novela, filmando. Na
Áustria e na Alemanha, onde trabalhei várias vezes, era o exato oposto.
Nada mais a Calingasta, de Julio Cortázar, no Schauspielhaus de Graz, Áustria: eu
estava fazendo a marcação e pedi a um ator que fosse pra trás de uma mesa com um
livro na mão e, segurando o livro, ameaçasse jogá-lo contra outro personagem. O
ator assim fez, mas, na hora de levantar o livro com a mão direita, viu seu relógio no
pulso esquerdo e disse: “São duas da tarde”.
Surpreso, perguntei: “E daí?”.
“Pelas normas do sindicato, o ensaio deve terminar às duas.”
Continuava com o livro ameaçador, olhando o relógio. Perguntei se não seria
possível terminar a marcação da cena; respondeu que preferia obedecer a horários
do sindicato. Concordei, decepcionado.
Dia seguinte, às nove em ponto, o ator, atrás da mesa, levantou o livro,
ameaçador, e perguntou: “E agora? O que é que eu faço com o livro?”.
Ator germânico é assim: o diretor fala uma vez, é pro resto da vida. Mas tem que
falar antes das duas da tarde, hora do sindicato…
Schauspielhaus de Nuremberg, La Malasangre, de Griselda Gambaro. Preparando o
cenário, coloquei, no meio da cena, uma mesinha. No dia seguinte, achei que não
ficava bem do jeito que estava e decidi mudar a posição da mesinha. Subi no palco e
a coloquei pro lado esquerdo. Desci as escadas, costas para o palco, sentei, e tive a
impressão de não ter movido a mesa o suficiente, porque parecia continuar no meio.
Tornei a subir, puxei a mesa bem para a esquerda. Desci, sentei, olhei e – não era
possível! – a mesa estava outra vez no centro.
Para explicar o mistério, tornei a subir, a mudar a mesa e, descendo de costas, não
deixava de olhar o palco: um maquinista, rápido, recolocou a mesinha no lugar
antigo.
Protestei: parasse com brincadeiras! Ele me respondeu e minha tradutora
traduziu: “O senhor pode ser o diretor, mas eu obedeço às ordens do chefe dos
maquinistas. Se quiser mudar a mesa, pode à vontade, mas primeiro tem que falar
com a sua tradutora, pra explicar pra sua assistente, e a sua assistente vai explicar
pro meu chefe dos maquinistas, e o chefe dos maquinistas vai me dar nova ordem, e
aí eu mudo a mesa pra onde o senhor quiser, primeiro no meu desenho, depois no
palco! Enquanto isso, a mesa tem que ficar no centro, porque é onde ela está no meu
papel!”.
Tive que explicar pra tradutora, que explicou pra assistente, esta pro chefe dos
maquinistas, que deu a ordem ao maquinista… Levou tempo, mas consegui mover a
mesa alguns centímetros pra esquerda e me dei por feliz por não ter sido preciso
carimbo, nem selos, emolumentos, nem firmas reconhecidas…
UM CORAÇÃO SÓ
Eu sentia ser excessiva a burocracia artística. Espetáculos produzidos em série.
Afinal, teatro não é salsicha!
Schauspielhaus têm a obrigação estatutária de fornecer repertório variado ao
público de sua cidade. A cada noite uma peça diferente: clássico alemão, bulevar
francês, peça moderna, musical… e até teatro experimental, se a experiência for
feita dentro de limites…
Como arte coletiva, a formação de equipe é imprescindível, rigor contratual ou
laços afetivos, mas tem que existir.
Existiu, em minha vida, em ocasiões e motivações diversas. Quando eu e
Guarnieri escrevemos e Edu Lobo musicou Arena conta Zumbi, sempre juntos,
ensaiando partes do texto e músicas que iam ficando prontas. À noite, Tartufo, de
Molière, e, depois do jantar, até de madrugada, íamos autores e atores pra minha
casa. Guarnieri e eu nos revezávamos na Olivetti, os outros em volta, dando
sugestões, Edu trancado em outra sala, compondo.
Juntos criamos essa unidade, esse coração, não só porque éramos família, mas,
ideologicamente, estávamos juntos, lutando contra a recente instalação da ditadura
cívico-militar, que tantos matou e tantos danos irreparáveis causou.
O mesmo aconteceu com Arena conta Tiradentes, [4 ] mesmos autores, música de Gil,
Caetano, Theo de Barros e Sidney Miller, e Arena conta Bolívar, texto meu e música de
Theo, com Lima Duarte, Zezé Motta, Isabel Ribeiro, Cecilia Thumin, Renato
Consorte, Hélio Ary…
Em Graz, encenando peça sobre o meu próprio exílio, Murro em ponta de faca,
atores que eu jamais tinha visto, país jamais visitado, língua que jamais consegui
aprender, mesmo assim, criamos uma família – eu sentia carinho em todos,
solidários comigo, sabendo que eu tinha escrito aquela peça com sofrimento,
denúncia da ditadura, injusta e cruel.
Os atores sentiam o drama do exílio – não só o próprio exílio profissional,
vicissitudes da profissão –, mas também porque a Diáspora, o êxodo, são temas
tragicamente presentes na memória dos europeus.
Com tristeza, lembro exemplos contrários. Quando fiz L’Incroyable et triste histoire
d’Erendira et sa grand-mère diabolique, no Théâtre de l’Est Parisien, no ano em que
García Márquez ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, 1983, no espetáculo tudo era
bom… mas faltava coração.
As interpretações eram boas, inclusive Marina Vlady, na protagonista; a
cenografia e os figurinos, admiráveis, a música ótima, a iluminação de mestre,
minha direção me parecia excelente… mas faltava o essencial. Havia corações em
demasia, mas não batiam sincrônicos. O espetáculo não tinha a cara de nenhum de
nós.
Todas as noites a polícia vinha protestar, chegou a ameaçar fechar o teatro por
excesso de lotação: escadas cheias! Tinha tudo, menos coração.
Como O corsário do rei, que marcou a minha volta ao Brasil: as letras do Chico
Buarque eram tão lindas como a música do Edu; os atores, desde os heroicos Marco
Nanini e Denise Bandeira até o último dos figurantes, ótimos; meu texto e direção,
bons; na orquestra, quinze professores escolhidos entre os melhores do Rio de
Janeiro; os produtores não pouparam esforço pra fazer a bela e custosa montagem de
Hélio Eichbauer, dois navios em cena, canhões disparando bolas de fogo azul em
cruentas batalhas navais, lindas coreografias!
Faltava coração: Duguay-Trouin só nos comovia intelectualmente…
“Que voulez-vous?”, perguntou-me meu psicanalista, dr. René Major, quando voltei
para Paris, onde morava. “Você encena uma peça na qual um corsário francês ocupa
e pilha o Rio de Janeiro. É natural que tenha sido confundido com o protagonista:
depois de quinze anos de exílio, você volta da França para invadir o teatro brasileiro
numa montagem tão custosa… Pensaram que você fosse o corsário…”
ELES NÃO USAM BLACK-TIE
O segundo semestre de 1957 não foi bom. Teatro pequeno, sucesso não dava pra
aguentar a folha de pagamento do mês seguinte.
Nosso Curso de Dramaturgia dava seus primeiros frutos. Com o laboratório
buscávamos formas brasileiras de atuar, mas as peças eram estrangeiras. Crise!
Ou vai ou racha. Ou nos afirmamos como somos ou fechamos! Decidimos montar
Eles não usam black-tie, do Guarnieri.
Como o dinheiro era escasso, não dava pra todos. Recebi um convite pra dirigir
Society em baby-doll, de Henrique Pongetti, no Teatro Moderno, do marido de Dercy,
Danilo Bastos. Esse convite me fez sofrer. Meu coração apertou: o lógico era que eu
fosse dirigir essa comédia me afastando por uns tempos do Arena e José Renato,
dono e diretor permanente do teatro, abandonasse a televisão e dirigisse o Guarnieri.
Conversamos, bons amigos que éramos, e assim foi resolvido.
Constrangido, tive que abandonar Black-tie, depois de já ter participado da escolha
do elenco. Tive recaída na comedieta. Felizmente, Maria Cristina tinha ido morar no
Rio e já não éramos namorados.
Ensaiei Baby-doll pensando no Black-tie – não desejo essa angústia a nenhum
diretor: dirigir peça em um teatro, pensamento e afeto em outro.
Meu novo elenco incluía atores competentes como Luciano Gregory, que fazia o
papel de conde italiano: era italiano e parecia conde, com monóculo, costeletas e
bigodinho! Odete Lara, a estrela, e mais doze atores, incluindo, pela primeira vez na
minha vida, alguns NN (no-named): até então, meus atores tinham nome e faziam
nome – conheci o anonimato.
Acabava o ensaio, cada um seguia seu destino, não como no Arena. Eu ia para o
Black-tie saber dos ensaios. Me dei conta de que teatro também podia ser feito por
indivíduos que não fossem família como nós. Não eram necessárias juras de amor
eterno. Nós, mesmo recebendo salários, tínhamos cara e jeito de amadores:
amávamos! Quis ainda mais ser família! Teatro, só se entre irmãos, como no Conde de
Monte Cristo.
Ambos sucesso, bom para o teatro brasileiro, porque peças assinadas por
brasileiros, personagens sem tradução. Era o que mais precisávamos: acabar com o
estigma de veneno de bilheteria.
Black-tie, infinitamente melhor, na belíssima direção do Renato e com Lélia
Abramo fazendo todo mundo chorar e compreender a vida de pobre, Flávio
Migliaccio, Celeste Lima, Xandó Batista, Miriam Mehler, Milton Gonçalves e o
Guarnieri – no jovem que, por amor ou medo, furava a greve –, todos atores nos
emocionando a valer, acabou ficando o ano de 1958 em cartaz.
Guarnieri escreveu Gimba, que apaixonou Maria Della Costa, que a interpretou,
dirigida pelo Flávio Rangel. Guarnieri decidiu acompanhar seu novo texto, como ator
– natural, queria lamber a cria! –, e nós ficamos tristes: contávamos com ele para a
peça do Vianninha. Foi-se um irmão… Ainda hoje me lembro da sua despedida,
quando deixou o papel do Tião com o Vianninha. Separações de irmãos são tristes.
Um dia voltou. Eu sabia que voltaria.
Em equipe, cada membro está em todos os outros; um pedaço de cada um em
cada qual. Se um dos membros se vai é como se, de cada um dos que ficam, parte de
si se fosse. Arena sem Guarnieri não era o mesmo: era o Arena sem Guarnieri.
Demorou em descobrirmos: fosse embora quem fosse, eu ou qualquer, ficava uma
ideia, projeto, maneira de caminhar. Caminhamos.
Black-tie foi passo gigante – pela primeira vez nossos atores representavam texto
que falava de gente bem nossa –, empatia por total identidade, não só analogia,
como com peças estrangeiras.
Resolveu-se o problema financeiro; por outro, retardou-se minha volta, embora
continuasse dirigindo o laboratório e o seminário.
Enquanto não era necessário ensaiar nova peça, recebi outro convite: A valsa dos
toureadores, de Jean Anouilh. Pela primeira vez, o prazer de trabalhar com cenógrafo:
Gianni Ratto, italiano de sucesso, veio apaixonado por uma mulher e pelo país.
Revelação extraordinária criar com outro artista, além de atores e autor. Apesar
de quinze anos mais velho do que eu, famoso, passado profissional respeitável –
tinha dirigido até ópera no Scala de Milão, que ajudara a fundar! –, Ratto me
estimulava e oferecia alternativas para o que eu queria. Maravilhoso assim. Não sei
desenhar, falava, e me sentia desenhando com suas mãos; não sei pintar, me sentia
pintando com seus pincéis. Os cenários que fez eram o que eu queria, e eram ele.
Obrigado, Gianni.
A valsa foi exercício de estilo, digamos educadamente, mas nada a ver comigo.
Com as peças que até então eu dirigira sempre me identificava. Anouilh me deixava
gelado. Nos ensaios, eu me surpreendia: “O que estou fazendo aqui, Nossa Senhora
da Penha??? Não tenho nada que ver com esse teatro!!!”. Não era ruim, a peça: não
tinha nada a ver comigo, nem eu com ela!
“Será que alguém ouviu meus pensamentos?” Não: tinha pensado em voz baixa…
e baixava o tom de pensar. Uma voz de dentro, enfurecida, me dizia: “Ouvi você
pensando, sim!!! Vergonha!!! Dirigir espetáculo que não recomendaria aos amigos!”.
“Quem é???”, eu me perguntava. “Quem está falando sou eu, eu mesmo, você:
Augusto Boal…”
Se tortura psicológica existe, era essa. Peça e espetáculo não desagradaram… Nem
sucesso nem fracasso, nada, ninguém, coisa nenhuma…
Logo depois, para o Teatro Moderno, dirigi uma peça de Lauro César Muniz, A
comédia atômica, continuando a lançar novos autores nacionais.
O MUITO QUE APRENDI COM DERCY
Black-tie continuava em velocidade de cruzeiro, outro convite: Dercy Gonçalves num
dramalhão medonho, Dona Violante de Miranda, de Abílio Pereira de Almeida, que ela
queria transformar em pastelão.
Sejamos justos: Abílio não era grande autor, mas teve o mérito de tratar temas
tabus. Nos palcos paulistas, nenhuma moça jamais tinha abortado. Com ele, viu-se
que se abortava à farta antes da pílula.
No caso de Dercy, não posso falar em recaída: eu quis mesmo trabalhar com ela,
expressa vontade. Como teria gostado de trabalhar com o palhaço Piolim, que
conheci na juventude, ou qualquer daqueles atores de circo e revistas musicais, que
tinham estilo próprio e grande domínio do público. Queria conhecê-los. Vê-los no ato
da criação. Tinham estilo: Brecht sabia disso, seu efeito de afastamento lembra
palhaço de circo, gente séria. [5 ]
Dercy era indirigível, mas eu queria tentar! Lembrava do Otelo (batizado de
Grande pelo Orson Welles, quando no Brasil). Ele me dizia: “A única pessoa que pode
contracenar com a Dercy sou eu!”.
“Por quê?”
“Outros querem disputar e perdem porque ela é mais engraçada e come todos.
Janta. Eu, não: eu deixo ela vir! Ela vem e fala, e fala, arranca gargalhadas, e faz o
que quiser, e quando faz uma pausa, aí entro eu com a minha! Ela ganha a parte
dela, eu a minha, sem brigas!”
Minha direção consistia em rir ou não rir das coisas que fazia: rindo, repetia
sempre… até se fartar; se eu não achasse graça, buscava outro jeito. Bem diferente
dos ensaios no Arena, em que debatíamos o significado profundo de cada gesto, a
importância metafísica de cada olhar, fazíamos a exegese filosófica de cada pausa!
Com Dercy o riso era linguagem… Pelo riso eu me comunicava com ela. [6 ]
Fui dirigir Dercy e aprendi. O ritmo de atores palhacescos, ou palhaços inteiros, é
coisa que só se aprende vivenciando. Dercy tinha tanta experiência de público que,
todas as noites, olhava por um buraco no pano de boca – tenho a impressão de que
todos os teatros à italiana têm buracos nos seus panos, de propósito – e dizia: “Hoje
o público está ruim: vai levar três minutos antes da primeira risada”.
Ou então: “Hoje é mole: vão rir logo que abrir o pano…”. Dito e feito.
Dercy não era atriz no sentido lato, era o que em inglês se chama entertainer –
alguém dotado de qualidades específicas, marca registrada, logotipo. No Brasil
existem excelentes entertainers: entra peça sai peça, não mudam nada, não se
transformam, todos os personagens são sua imagem. Não importa se representam
Romeu num dia, Julieta dia seguinte: tudo igual. Não é demérito: é condição. Só é
ruim quando o entertainer interpreta personagem maior e o reduz à sua dimensão.
Havia patrulha ideológica: o politicamente correto campeava e Abílio era
malvisto. Não por suas peças, mas seus temas: não era politicamente correto perder
tempo com as mazelas da burguesia. Mesmo pra meter o pau. A burguesia não
merecia nem porrada!
Abílio conhecia a classe alta – sua principal virtude dramatúrgica consistia em
dizer, aos berros, o que todo mundo sabia, ao pé do ouvido. Falava de adultérios
burgueses, do silencioso tabu do aborto – impensável. Falava de tramas financeiras.
Sabíamos de tudo, mas Abílio falava. Conhecia pessoalmente seus personagens,
jantava com eles nos Jardins.
Dona Violante tratava da prostituição envolvendo ricos paulistanos. Todo mundo
sabia que milionários sustentavam amantes coristas de teatro de revista, buscadas na
saída dos artistas em cadillacs de luxo, rabos de peixe, mas era tema tabu. Todo
mundo conhecia histórias rocambolescas, suicídios, escândalos românticos, fogo nas
vestes, veias cortadas a gilete, mas… silêncio. A nobre burguesia paulista era
intocável: sedas e cetins, plissados e bailes filantrópicos.
Abílio escancarava. Me fazia lembrar uma história que ouvi em torno de rica
mesa, quando jantei com uma família tradicional, senhores e senhoras distintos e
finos, metade do diálogo em francês. No meio da sobremesa, depois de árvores
genealógicas, alguém perguntou: “Tia, onde foram parar aquelas prostitutas
francesas e polonesas que antes alegravam os nossos saraus? Não são mais vistas,
desapareceram. Onde estarão?”.
A tia, lacônica: “Entraram todas pra nossa família…”.
A digna dama gostava de escandalizar… Mas tocou na ferida e pigarros se
ouviram antes que o jantar se reanimasse. Era verdade: milionários paulistas se
apaixonavam por prostitutas parisienses que, na travessia do Atlântico,
reencontravam a virgindade perdida… Em São Paulo, Pigalle se santificava…
Violante, cafetina, era séria. Para desmistificá-la, era necessário apresentá-la, no
começo, mistificada. A personagem deveria mostrar-se honrada e santa para que
fosse depois a desonra revelada.
Nos ensaios, consegui o milagre: Dercy interpretando senhora da sociedade, cheia
de dignidade. Obedecia minhas marcas – não digo religiosamente, em se tratando de
Dercy, mas como obediente normalista! Juro! À medida que as revelações da trama
explodiam, aparecia a verdadeira Violante escrachada. Dercy de sempre.
Ensaios sem espectadores. Eu estava maravilhado com o conseguido… Tão
maravilhado que cheguei a fazer coisa eticamente incorreta, mas perdoável, dadas
minhas boas intenções: convidei atores do Arena para observarem o ensaio,
mergulhados no escuro do fundo da sala. Eles se maravilharam. Eu havia conseguido
o impossível: Dercy, sob o controle artístico de um diretor.
Veio a estreia, veio a plateia, veio o instinto incontrolável.
Como o escorpião da fábula que pede ao sapo que o carregue nas costas para
atravessar o rio: diante da relutância do sapo, o escorpião promete por sua honra
que não vai mordê-lo, convence-o da sua sinceridade, pois que, se o mordesse,
morreriam os dois – o escorpião afogado, o sapo envenenado. No meio da travessia, o
escorpião não se aguenta, morde o cangote do sapo e, antes que morram, desculpase:
“Perdoe, meu querido sapo, mas foi mais forte do que eu – é a minha natureza!”.
Também assim Dercy, ao ver a plateia, ao ouvir risadas, não se conteve e, desde a
primeira cena, escrachou: era mais forte do que ela a sua natureza.
CHAPETUBA FUTEBOL CLUBE
Voltei ao Arena no fim de 1958 para dirigir Chapetuba Futebol Clube, de Vianninha.
Nunca ensaiei tanto: seis meses. Vianna teve tempo de fazer dez versões do texto
durante os ensaios. Acontecia não aceitar nossas ideias, mas rescrevia do mesmo
jeito, com mais energia e clareza. Foi nesse ano que o seminário se estruturou de
verdade.
Ao entrar no Arena, o visitante se encontrava com laboratórios até no wc.
Ninguém seria capaz de dizer uma fala sem antes ter feito exercícios. Chico de Assis
me contou que, quando ensaiava Cafuné, o jogador analfabeto, teve dificuldades em
entender como se sentiria um analfabeto olhando um jornal. Chico tinha sido
alfabetizado aos quatro anos de idade… Não podia sentir a angústia de Cafuné
analfabeto. Solução: laboratório! Chico procurou em todas as bancas até encontrar
um jornal árabe e passava horas a fio tentando decifrá-lo: solitário laboratório… que
deu belos resultados: Chico estava ótimo no papel! Conhecendo o Chico, tenho a
certeza de que acabou sabendo ler e escrever árabe, além de berbere e outras línguas
geograficamente próximas… [7 ]
Já estávamos com a mania das estreias off-São Paulo e fomos estrear em Marília,
100 mil habitantes, 80% japoneses ou descendentes. O local, estádio de basquete com
a sonoridade ansiosa em amplificar gritos mas pouco adequada às paixões delicadas:
a plateia não ouvia nada e os atores não se ouviam, o iluminador não sabia em que
cena estávamos. Desastre. No fim do espetáculo, espectadores vinham perguntar: “A
bola entrou?”.
Voltamos correndo para nossa intimista arena e tivemos que reensaiar e amainar
os gritos estertóricos do estádio de Marília. Aprendemos que cada espetáculo tem o
tamanho do teatro onde se representa: muda o espaço, muda o tamanho do
espetáculo.
A partir dessa experiência, passei a fazer ensaios espaciais sempre que
excursionava. Com Fernanda Montenegro fazendo Fedra, encontrávamos teatros
disparatados pelo país afora: eu pedia aos atores que subissem nas mezzanines, fossem
para o fundo do palco ou circulassem pelos corredores e, sempre andando, deviam
dialogar à distância para se apropriarem do espaço, ao invés de apenas se
acomodarem à cena.
Chapetuba estreou no começo de 1959 e ficou em cartaz cinco meses. Não foi o
sucesso retumbante de Black-tie, mas foi sucesso. Me lembro que atores de outros
elencos espantavam-se com nosso estilo sanguíneo, suado. Alguns, do Teatro
Brasileiro de Comédia, diziam: “É comovente, mas não é teatro: vocês não
interpretam: vivem…”.
Como em Wuppertal: o que é viver, o que interpretar? Pode-se interpretar sem
viver ou viver sem interpretar?
Muitos pensavam assim: nossos atores faziam a plateia chorar, mas não eram
atores: seres normais, vivendo e não interpretando. Como desafio, perguntavam se
seríamos capazes de fazer a mesma coisa em peças clássicas. Na minha cabeça,
respondia que sim; porém essas respostas só podem ser dadas no teatro.
Anos mais tarde, durante a nacionalização dos clássicos, demos a resposta: pode.
Não é preciso que a peça seja brasileira, trate do cotidiano; a vida do ator não está no
acessório, acidental: está no nervo, no coração. Melhor dito: se um clássico é
universal, é porque também é brasileiro, do contrário não seria universal.
Artisticamente, estávamos em desacordo com esses atores do TBC, mas nos
dávamos bem – excelentes artistas. O TBC era o primo rico, sustentado por
milionários, bons salários que não atrasavam nunca, não conheciam crises
econômicas. Se a caixa ficava vazia por um dos raros fracassos, vinha socorro e a
caixa se enchia: pura magia!
Fernanda Montenegro, em conversa com Sábato Magaldi na TV, disse que uma das
vantagens que sentiu quando entrou para o TBC foi que passou a comer mais
saborosas macarronadas. No Arena, comíamos nos bares das esquinas. Nos fracassos,
pão e banana…
Teatro pequeno e subvenções menores, estávamos condenados a viajar: com
sucesso médio tínhamos que ir para o interior fazer espetáculos em clubes locais,
que pagavam preço de gente grande.
Se a peça fosse sucesso, remorsos: pra que fazer teatrinho, 160 pessoas, quando o
nosso público bem amado estava no Nordeste? Queríamos mostrá-la aos
camponeses: povão, que, como nós, desejava a reforma agrária e o não pagamento
da dívida externa, escravagista!
Antes de continuar lançando estreantes brasileiros, antes d’A farsa da esposa
perfeita, de Edy Lima, Gente como a gente, de Roberto Freire, Pintado de alegre, de Flávio
Migliaccio, Fogo frio, de Benedito Ruy Barbosa, todos estreantes e todas dirigidas por
mim, resolvemos fazer excursão pelo interior.
Foi o meu batismo de fogo.
1 Julián Boal, As imagens de um teatro popular (1999). Recomendo sua leitura atenta!
2 O povo melhorava de vida e queria melhorar mais. Quando tem condições de vida razoáveis o povo torna-se
mais consciente; quando na miséria, a fome e o medo impedem que se manifestem. É o que acontece hoje no
ano quase de 2001.
3 Conselho aos meus amigos: em casa de padre, comam muita sopa!
CAPÍTULO 14
O GORDO E O MAGRO NO SEMINÁRIO DE SANTO ANDRÉ
A ideia do Espectador Ativo, Protagonista que transbordasse limites ao invés de se
conformar com sua participação sentada, resignada, já estava na minha cabeça
quando voltei pra São Paulo. Algo além de Brecht, que apenas pedia ao espectador
que pensasse com sua cabeça mas não lhe dava espaço em cena para expressar esse
pensamento.
Eu queria espectador ativo!!! Não mais um teatro que levasse mensagens, não
queria ser carteiro de missivista desconhecido (Partido? Revelação Divina?). Queria
que os espectadores, democraticamente, usassem a mesma linguagem teatral usada
pelos atores. Como fazê-lo? Boa pergunta para uma resposta que só viria muitos anos
mais tarde.
Jango, mesmo não fazendo revolução, longe disso, tinha valor simbólico – era de
esquerda… Os militares não o queriam, a maior parte da burguesia brasileira o
detestava, o governo dos Estados Unidos o execrava e nós o havíamos imposto – a
legalidade no poder!
Jango na presidência, prova irrefutável de que o slogan era certo: “O povo, unido,
jamais será vencido!”. O problema era unir, ontem como hoje.
Havia espaço! Podia-se respirar! Hoje nos sentimos oprimidos, reprimidos,
comprimidos, deprimidos. Difícil dar um passo: a perna ocupa demasiado lugar, se
avança. O peito, se respira. A cabeça, quando pensa.
O padre Batalha não me saía da cabeça: “Existem ocasiões em que ser espectador
é anticristão. Não fazer nada é crucificar o Cristo! No Brasil estão crucificando o
Cristo todo santo dia! Todo cristão tem o dever de salvar o Cristo. Não basta engolir a
hóstia. As pernas servem pra correr, não pra ficar de joelhos cravados no chão.
Ajoelhar diante de Deus, sim; da injustiça, não!”.
Apaixonado, percebia que seu discurso se tornava radical, voltava aos temas
bíblicos, onde se dava melhor: “Temos que fazer a escolha entre Caim e Abel,
Salomé e João Batista, Davi e Golias – não podemos ficar neutros, assistindo ao
massacre. Viver é escolher o lado. O futuro não existe: constrói-se! Ser cristão é
escolher o caminho justo! Abstinência não é abstenção!”.
Padre Batalha não me saía da cabeça. Mesmo quando exagerava: “Não sou
mensageiro de Deus: sou a Mensagem!”. Quem não exagera?
OS FUZIS DA SENHORA CARRAR
No início de 1962, Renato dirigiu Os fuzis da senhora Carrar, onde Brecht falava da
neutralidade impossível. Dostoiévski: “Somos responsáveis por tudo, diante de
todos!”. Fique claro: responsáveis não pelo que fazem os outros, mas pelo que, em
resposta, fazemos nós! Ou deixamos de fazer.
Carrar nos trouxe um ator excelente, diretor e cenógrafo, Paulo José, de Porto
Alegre. Dessa vez, não deixamos o gaúcho escapar: pouco antes, haviam vindo do Sul
Fernando Peixoto e Ítala Nandi; o Arena demorou em recebê-los – entre um ensaio e
outro – e os dois foram pro Oficina, irmão. Fernando, mais adiante, trabalhou
conosco várias vezes. Ítala ficou amiga. Muito.
Brecht havia escrito Carrar depois da destruição de Guernica pelos nazistas. Vinha
nos lembrar, antes da catástrofe anunciada, que ninguém é neutro, nem deve
esconder seus fuzis. Brecht era referência estética e moral. No Brasil, Carrar foi
premonição.
Se o Théâtre National Populaire não nos servia de paradigma, o Berliner Ensemble
servia menos – teatros ricos, bem nutridos, gordos. Magricelas, estávamos
condenados a inventar nosso caminho! O caminho do caminhante se faz ao
caminhar…
O SEMINÁRIO DE SANTO ANDRÉ
Fui organizar um Seminário de Dramaturgia no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo
André (SP). Uma vez por semana, a um grupo de dez operários, expliquei Hegel,
Aristóteles, Maquiavel, leis da dialética – não para serem obedecidas, mas utilizadas
na carpintaria teatral.
Evitava palavras difíceis. Quando dizia alguma inevitável, explicava seu
significado – os operários adoravam descobrir palavras novas. Quanto maior o
vocabulário, maiores as possibilidades de pensar. Não temos que ser rastaqueras
falando com pessoas incultas: temos que saber usar a palavra no momento justo.
Quem aprendeu a falar papai e mamãe, pode aprender catarse, metaxis ou
Verfremdungseffekt. Não estou brincando: pode. No seu devido tempo, com propósito
claro…
Foi a primeira vez que dei um curso só para operários. O CPC-UNE continuava: seus
autores eram intelectuais vindos do teatro profissional, da sociologia, das
universidades – gente culta. No sindicato, quem escrevia sobre operários eram
operários. Os intelectuais não tinham dúvidas; em Santo André andava-se em busca
de certezas escorregadias.
Os CPCS tinham cursos de literatura, bordado, história sindical, feijoadas,
macarronadas. Grupos de poesia sobrando gente: donas de casa escrevendo poemas.
Dramaturgia era mais difícil, longo esforço: necessário criar personagens
consistentes, elaborar enredos.
No fim do seminário cada qual tinha uma peça: a de Jurandir foi a mais elogiada.
A greve contava greve acontecida na região do ABC, berço do Partido dos
Trabalhadores. Fiquei eufórico com sua capacidade de criar personagens autênticos,
como se dizia. Multidimensionais, não estruturas ocas. Jurandir, grande criador de
personagens!
A direção do sindicato deu dinheiro pra montagem; operários disputavam papéis.
Alguns, depois de ensaiar semanas, davam-se por satisfeitos, iam jogar pingue-
pongue. Outros desistiam por discordâncias ideológicas.
ESPECTADORES INVADEM PALCO E SEMEIAM A SAUDÁVEL CONFUSÃO DA QUAL NASCE A VERDADE
Operários no palco e na plateia: novidade. Sobe o pano: tumulto. Espectadores
aplaudiam ou vaiavam, a cada réplica: torcidas organizadas, contra e a favor.
Saudados como heróis, uns; outros, amaldiçoados com palavrões. Algazarra maior na
sala do que no palco.
O Gordo, personagem fura-greves, era vaiado a cada réplica, e o ator que o
interpretava teve medo. Pedi silêncio e respeito, jurei que o intérprete, em hipótese
alguma, identificava-se politicamente com o personagem. Tome vaias: parecia teatro
infantil quando entra a bruxa má.
Um espectador aproximou-se do palco, gritando: “Mentira! Eu não disse nada
disso, nunca pensei assim… Vocês são mentirosos, teatro de calúnias… Quem me
conhece sabe quem sou, seus…”, e foi declamando o repertório escatológico da d.
Hidegarde da minha infância.
Era o Magro, operário que, na vida real, servira de modelo ao Jurandir para criar
seu vilão! De propósito, Jurandir havia escolhido um ator gordo para representar o
Gordo, que representava o Magro. Mais a peça avançava, mais o Magro protestava,
ultrajado. Chegou à ameaça: “Cala essa boca ou eu te quebro a cara…”. Jamais
espectador dirigiu-se tão desaforado a um personagem. Première mundial!
Como o Gordo continuasse, o Magro pulou no palco. Estávamos preparados pra
briga, porém, no cenário, o Magro mostrou-se menos belicoso, apenas desejoso de
dar sua versão dos fatos – tinha esse direito! – simultaneamente com a ação da peça.
Fazia comentários contraditórios ao texto: des-tradução simultânea, desdizendo o
dito e o feito.
Segundo sua versão, ele não tinha sido contra a greve mas contra a ideia de fazê-la
naquele momento. A greve – que acabou derrotada – teria sido prematura.
O Gordo esbravejou, lançando-se fora do texto: “A greve foi derrotada porque
pelegos como você, covardes, ficaram em casa ou foram pra fábrica fazer
contrapiquetes!”.
Na confusão, outros operários – modelos de outros personagens – subiram ao
palco e cada um encarnou no seu ator, a cena se fragmentou em explosivos diálogos
simultâneos entre modelos de personagens versus atores e personagens. Cada um
era dois – ator e personagem – que se tornavam três: ator mostrando
brechtianamente o personagem com o modelo diante deles.
Jurandir, fiel repórter, tinha memória; todo mundo se sentiu contemplado em sua
peça, para bem ou mal.
Eu entrei atônito na discussão exaltada, quando os ânimos permitiram alguma
centralização da palavra, e argumentei que, se os operários não se reconheciam nos
personagens, tanto melhor: prova de que os personagens não eram eles – eram
ficção! Por que tanto fuzuê?! Ora pinoias!!! Mas se, ao contrário, disseram aquelas
frases que agora ouviam, nesse caso, era verdade – não se podiam queixar. Mas, com
certeza, o Gordo (personagem) não era o Magro (gente), apesar da referência adiposa.
“Não me venha com essa conversa mole!”, discordou o Magro. “Esse foi o jeito que
vocês encontraram pra falar mal de mim, sem falar de mim! Por isso é teatro… Mas
eu não caio nessa…”
Pedi aos espectadores que, por gentileza, desocupassem o palco, mas o Magro
estava interessado em restaurar sua imagem conspurcada: “Eu nunca disse isso. O
Jurandir, que durante a greve devia estar embaixo da cama, escondido, está dizendo
que eu disse. Então, ele está dizendo pra todo mundo que eu disse o que eu não disse
e, mesmo que tivesse dito, não seria o caso de ficar dizendo outra vez… Ele está
dizendo que eu disse, mas como não disse, então quero ter o direito de dizer o que
foi que eu disse e estou pronto a dizer de novo!”.
Eu quis defender a autonomia da arte: “Quem está falando no palco é o Gordo,
não é você, ô Magro!!! Se você diz que não disse, é porque não disse, e quem diz isso
que ele está dizendo, não é você, é o personagem! Ficou claro: não é o Magro, é o
Gordo!”.
Não me lembro qual de nós estava mais confuso, mesmo cristalino o raciocínio.
“Gordo e Magro, em teatro, é tudo a mesma coisa. Você fala de um querendo dizer
o outro. Pra isso serve o teu teatro, pra difamar! Agora sai daí e deixa eu te mostrar
como é que as coisas aconteceram de verdade…”
O Gordo não quis sair, o Magro ficou ao seu lado: “Não saio porque você não
conhece o enredo, não pode fazer o meu personagem”.
“Não conheço o enredo mas conheço a greve; não conheço o teu personagem mas
me conheço a mim. Sai!”
Dois caturros, teimosos burros, nenhum saía. Como sempre gostei de
experimentar, propus que fizessem, com disciplina, o que já estavam fazendo com
algazarra: “Deixa o Gordo dizer o texto escrito e você corrige, logo depois… Assim,
na hipótese de que você se pareça, em parte – veja bem: eu disse ‘em parte’ –, com o
personagem, você esclarece a nuança da diferença…”.
“Ele fala e eu corrijo?”
“Não é bom assim? Democracia, ô cara!”
“Não precisa nem falar, já sei o que ele vai dizer. Deixa que eu corrijo antes dele
errar…”
A discussão recomeçou até que ambos aceitaram a proposta: o Gordo dizendo seu
texto, o Magro fazendo correções. O Gordo dizendo o texto do Jurandir, o Magro
inventando o seu: dando sua versão. O Gordo continuava, vinha o Magro, antianjo da
guarda: “Mentira! A verdade é que…”, se defendia.
Quem era o Ator? Quem, Personagem? Quem, Espectador? O Magro, ao contar,
não vivia a cena como a vivera durante a greve real, mas sim vivenciava, ordenando
eventos e falas. Sentia emoção, agora controlada pela razão e pelo desejo de
convencer – não queria experimentar outra vez as mesmas emoções da greve de
ontem, mas explicá-las hoje. Emoção revisitada.
O Gordo, ao contrário, desejava acusá-lo e revivia a cena porque, mais uma vez, via
o Magro tentando iludir seus companheiros. Para ele, a mesma situação da greve se
reproduzia agora, provocando-lhe a mesma emoção. O Magro mentira antes, mentia
agora. Sua emoção – a do Gordo – era a mesma: revivia.
Aí aprendi uma lição sobre viver, reviver e vivenciar. E ficou-me na memória aquela
imagem extraordinária do ser humano lutando contra o personagem, o homem
contra sua imagem; imagem que, dele, apresentava outro homem. Lutando contra si
mesmo, ou parte de si, no outro.
Um homem desejando apresentar imagem de si, construí-la ao vivo, mas sendo,
ele mesmo, nesse instante, uma imagem: imagem do construtor de imagens.
Ele não era a imagem que apresentava, nem aquela que, dele, apresentava o
outro. Era a imagem do fabricante de imagens. Era também, em certa medida, todas
essas imagens.
A plateia se perguntava quem seria ele: o Gordo ou o Magro? Seria possível que o
Magro fosse aquele Gordo que víamos em cena, ou seria ele o segundo Gordo que ele
próprio, o Magro, tentava criar naquele instante? Em cena estavam dois personagens
Gordo, estavam também o Magro e o ator que os haviam criado: quem seria quem?
Ainda não era Teatro-Fórum, mas foi um fórum dentro do teatro. Eu ficava
fascinado vendo essa multidão de pessoas e personagens. Quem ficção, quem
realidade? Interpenetração da ficção na realidade.
Em Santo André comecei a pensar em explorar essa fronteira: a verdade da ficção
e a ficção da verdade.
A SENHORA GORDA
Anos depois, aconteceu a verdadeira intervenção de um spect-ator, que originou o
Teatro-Fórum: no Peru, em 1973, quando eu estava dirigindo uma oficina dentro de
um programa de alfabetização integral: espanhol, quéchua, cinema, pintura… todas
as linguagens possíveis.
Uma espectadora entrou em cena, substituiu a Protagonista e mostrou como faria
se estivesse no seu lugar – mostrou-se interpretando a si mesma, ao interpretar o
personagem.
Essa história já contei duas vezes, no Teatro do oprimido e n’O arco-íris do desejo. Não
vou contar uma terceira, fiquem sossegados. Vou comentar.
Curioso: em cada um desses livros, conto a mesma história de uma maneira
diferente, o que me conforta na certeza de que os processos psíquicos da memória e
da imaginação são indissociáveis – ninguém lembra sem imaginar, ninguém imagina
sem lembrar.
Lembrando hoje o que ontem lembrei, a coisa lembrada agora é diferente da
lembrança antes. Cada dia é novo dia. Já não sou quem fui horas atrás. Meu ser é devir.
Não sou nunca: eu me torno, sempre. Sou aquele que ainda não é, e sou também o que
já deixou de ser. Eu me torno ao me aproximar de ser aquilo que nunca serei, pois,
se vier a sê-lo, já estarei em trânsito para outro ser que ainda não sou nem serei, ao
ser o primeiro, sempre em trânsito. Inevitável.
Eu juro que entendo isso que eu estou dizendo: espero que vocês também,
queridos leitores… Se não, me perdoem!
É complicado? Não é: leiam outra vez. Outra mais. Quem foi que leu essas três
vezes? Você ainda é o mesmo de três leituras atrás? Impossível!
Voltando à nossa história, imaginando o mínimo e lembrando o máximo, lembro
que em Chaclacayo, 1973, a senhora gorda entrou no palco quando estávamos
fazendo um espetáculo em que a plateia oferecia alternativas de como deveria se
comportar a protagonista; os atores improvisavam, seguindo suas sugestões.
Tratava-se de uma peça sobre uma esposa que descobria que o marido, que vivia à
sua custa, tinha uma amante em outra cidade onde dizia estar construindo uma casa
para ela, esposa. A história era verdadeira e a protagonista, mulher de meia-idade,
estava sentada no palco, visível por todos, esperando sugestões: o marido, o de
verdade, chegaria no dia seguinte, de volta da amante. Na peça, o marido batia à
porta quando eu interrompi a ação e perguntei ao público o que deveria fazer a
esposa. Fingir que não sabia nada, reagir, chorar, revoltar-se, mordê-lo no pescoço,
um pontapé na bunda?
Todas as ideias eram experimentadas, mesmo a da senhora gorda, que dizia que a
esposa deveria perdoar… “depois de uma conversa muito clara!”. Atendendo à
sugestão, a atriz-esposa tentava todas as claridades possíveis, mas a senhora gorda
dizia sempre que não era assim: até que eu a convidei para subir ao palco e mostrar,
ela mesma, que diabo de “conversa muito clara” queria ela.
Encantada, subiu, agarrou uma vassoura, deu vassouradas esplêndidas no marido
– excelente ator! Jamais esquecerei sua bela interpretação sincera, emocionada,
stanislavskiana, quando prometia, embaixo da vassoura, nunca mais traí-la!!! – tenho
a certeza de que aquele ator jamais traiu ninguém, nem a mais ocasional namorada!
Só depois da pancadaria – conversa clara! – a senhora gorda perdoou o marido
traidor, não sem antes obrigá-lo a ir à cozinha buscar comida para ela: estava
faminta da pancadaria.
A partir daí, adotei o Teatro-Fórum, explicando que os espectadores são livres
para fazer o que quiserem… menos espancar o elenco!
Em Santo André, vi atores representando personagens e modelos de personagens
criando outros personagens – eles mesmos; eram, a cada instante, gente real e
personagens. Saltavam entre um e outro.
Em Chaclacayo, foi simples: a verdade acontecida, a vida vivida, tornava-se arte;
no palco, mostrava-se essa imagem do real – imagem: a cena, a peça. Os
espectadores, gente real, penetravam nesse espaço estético: aí se dualizavam.
Continuavam sendo quem eram e passavam a ser personagens. Suas vidas,
dualizadas – eles e suas imagens –, tornavam-se mais compreensíveis; vidas tornadas
duas, cada um tornado dois – ele pode conduzir-se a si mesmo, traçar seu passo,
inventar caminhos. O ator, ele, comanda o personagem, que é ele também! O
espectador pode, na ficção teatral, experimentar ações para utilizá-las depois, na sua
vida.
Em Santo André, antes de 1964, vi em cena personagens e atores, personagens e
seus modelos, em luta desordenada. Em Chaclacayo, em 1973, frio mês de julho,
começou a verdadeira democracia do Teatro do Oprimido.
O Nordeste me alertou; Santo André me mostrou o problema; Chaclacayo, a
solução.
CAPÍTULO 15
A METÁFORA E A DESCOBERTA DOS CLÁSSICOS
Renato, convidado para dirigir o Teatro Nacional de Comédia no Rio, proposta
irrecusável, quis vender o teatro. Formamos uma empresa: Guarnieri, que retornava
à casa paterna, Flávio Império, Juca de Oliveira, Paulo José e eu. Compramos o Arena.
Decidimos inventar o caminho que batizamos de nacionalização dos clássicos.
Queríamos buscar nossa identidade, descobrir nossas feições, não mais diante do
espelho naturalista, que revelava a face rude, mas em retratos de outros tempos,
lugares, que nos permitissem ver nosso rosto verdadeiro, refletido em rostos de
outras épocas.
Nacionalizar era moda; Brizola, no sul, tinha nacionalizado (estatizado)
companhias estrangeiras, Jango ameaçava estatizar (nacionalizar) empresas de
interesse estratégico – todas, de certa forma. A imprensa era nacionalista ou
entreguista, sem meio-termo.
Nacionalizar tinha, na política, forte sentido apropriatório: recuperar o nosso. Em
teatro, não se confundia com o Teatro Antropofágico, proposto por Oswald de
Andrade em 1922 e retomado pelo Oficina, nosso contemporâneo – nele, a
apropriação se fazia pelo canibalismo.
Antropófagos acreditam que, comendo o inimigo, o canibal incorpora suas
virtudes. Comendo o herói derrotado, o gourmet torna-se herói como ele, mudando
sua identidade, passando a ser o que era, mais o outro. Uma das indústrias do Vietnã
em guerra foi a manufatura de instrumentos caseiros com os destroços de aviões
inimigos…
No Brasil sempre existiu canibalismo teatral. Grupos como o Oficina, maravilhoso
antropófago; outros, menos talentosos, destroçam textos: Molière e Shakespeare são
sem piedade fagocitados! Servem de pretexto para diretores dizerem sua palavra – a
que não escreveram.
Nós respeitávamos as estruturas da obra nacionalizada; nela nos buscávamos.
Ressaltávamos o que, nela, havia de nós e, de nós, nela – queríamos redescobrir
nossa identidade, não trocá-la. A analogia só pode existir entre semelhantes
diferentes. Mantínhamos as diferenças buscando semelhanças.
Arte antropofágica faz o antropófago se assemelhar ao estrangeiro. Nós, nele,
queríamos nos reconhecer, ver como éramos – e continuarmos sendo. Parecidos
diferentes.
Escolhemos clássicos: nenhuma arte é universal se não for também brasileira.
Mantivemos distância dos movimentos antropofágicos do tipo tropicalismo – nunca
desejamos nos transformar no Outro, menos ainda no Invasor, mesmo deglutido.
Para nós, Caliban is beautiful!
Caliban não é canibal, como já se escreveu. Se com Miranda fizesse o amor,
povoaria a ilha de calibanzinhos, não de pequenos Prósperos – mesmo se vestissem
ricas roupagens avoengas.
Quando favelados, no Carnaval, se transformam em Luís XVI, Maria Antonieta e
cortesãos, estarão antropofagicamente canibalizando a corte francesa ou
metaforizando seus desejos? Fico com a segunda hipótese. Com a primeira ficaria se
rasgassem fantasias, se as pisoteassem, ridicularizassem, ou se as transformassem
em outras vestes: eles as respeitam – falam de si, no Outro.
A primeira peça escolhida foi A mandrágora, de Maquiavel, dirigida por mim,
Paulo José protagonista, cenógrafo e figurinista. Elenco só de cobras, como se dizia.
Além de Paulo, Guarnieri, Juca e Riva, algumas estreias: Isabel Ribeiro (do curso do
Kusnet), Myriam Muniz (da EAD), Maria Alice Vergueiro (do teatro amador) e Fauzi
Arap, que veio do Oficina e já era ótimo! Música de Damiano Cozzella (letras d’O
príncipe – única adaptação que fizemos do texto, no mais, respeitado).
Com A mandrágora descobrimos a metáfora – que não se come como o naturalista
macarrão à bolonhesa: metáfora se goza! Abandonamos de vez o realismo em busca da
realidade. Brecht: “O dever do artista não é mostrar como são as coisas verdadeiras,
mas como verdadeiramente são as coisas”. Bravo, Bertolt!
A MANDRÁGORA E METÁFORA
Maquiavel era o que hoje se chama cientista político… no bom sentido. Interpretava
seu momento. Como político, teorizou a prática principesca renascentista, mostrou
que, na sociedade em que viveu – e nestas em que vivemos! –, tudo é possível,
dependendo dos meios usados para se obter o que se deseja.
Na luta política, o bem supremo é o poder: se não nos detiver nenhum escrúpulo
impertinente, chega-se lá; na luta amorosa, o bem supremo é a pessoa amada: se
tudo ousarmos, sem preocupações morais, lá também se chega. Na Mandrágora,
Lucrécia é, metaforicamente, o poder.
Metáfora é a concreção de uma abstração, transposição de palavras e significados.
Quando falamos em raiz do mal não designamos a parte enterrada de uma árvore:
pensamos nas origens daquilo que consideramos nefasto. Raiz, metáfora, é origem:
nada a ver com vegetais.
Com a nacionalização dos clássicos, buscávamos a metáfora, cansados do realismo
tautológico. Ao “Isto que vocês estão vendo é exatamente isto que vocês estão
vendo!” quisemos contrapor o “Isto é aquilo!” e o “Aquilo é isto” metafóricos.
Cansados de repetir cenas parecidas, diálogos e figurinos. Tínhamos medo de repetir
pensamentos. Horror!
Em A mandrágora, a metáfora vinha corporificada em história sensual, não fábula
abstrata.
Se escrevo uma fábula sobre o Brasil – como a bela Radeau de la Meduse – jangada
em que náufragos se entredevoram, como se está fazendo hoje em nosso país…! –, os
espectadores brasileiros irão facilmente reconhecer, na fábula abstrata, nossa
realidade concreta. A fábula, porém, não existirá sem referência a nós; é inventada a
partir de nós e a nós retorna. Como cigarra e formiga: ninguém acredita que
formigas e cigarras dialoguem: a fábula só existe referida a nós, humanos: ela nos
simboliza – não tem vida própria.
Quando isso acontece, existe relação binária: primeiro, a fábula, que é metáfora da
nossa realidade e não se consubstancia em nova realidade autônoma, mantendo-se
no mundo dos símbolos – símbolo é algo que substitui a coisa, não é a coisa, como
bandeira não é a pátria –, e, segundo, a realidade do espectador. Só estes termos
existem: a fábula irreal e a realidade.
No caso, porém, de peça escrita longe no tempo e distante no espaço, onde se
transubstancia uma sociedade viva e não se inventa simples fantasia, existirá sempre
uma relação triangular: primeiro, a realidade do autor – ela existe ou existiu
(Florença, Renascença); segundo, a organicidade da história (A mandrágora, história
de amor e esperteza); terceiro: a realidade do espectador, hoje, aqui.
História e personagens, embora metáforas, têm vida própria. Reis e princesas
medievais eram realidades, existiam em contexto; dentro da peça, conservam
dimensão humana, mesmo transformados em metáfora; ao contrário desses reis e
princesas, ex-realidades agora metáforas, a raposa nunca teve realidade fora da
fábula, sempre foi apenas metáfora: raposa come galinha, não come uva, nem verde
nem madura, a não ser em La Fontaine: gastronômica licença poética.
La Fontaine e Maquiavel falavam de gente que existia: metaforizavam suas
sociedades recorrendo à fantasia etérea, um, ou à realidade corpórea, o outro. Como
os personagens florentinos têm a tridimensionalidade humana, nós lhes atribuímos
a existência viva que negamos aos animais do francês. Raposas e uvas são alegorias;
são, mas não existem. Timóteo, Lucrécia, Ligúrio existem – e são. Tanto essas alegorias
como essas pessoas são também símbolos. Ninguém se apaixona pela cigarra – que é,
mas não existe! – por mais belo que seja o canto; por Lucrécia, tudo é possível.
A comédia renascentista é história carnal: mulher bela, recatada, religiosa
extremista, objeto do desejo (mais tarde, do amor) do jovem Calímaco. Ele pretende
conquistá-la sabendo ser quase impossível vencê-la – quase não significa de todo. Com
engenho e arte (e falta de escrúpulos!), chega-se lá.
Ligúrio, personagem virtuoso, possuidor da virtú maquiaveliana, representante do
“Posso porque quero, não porque deva!” e “Meu poder é meu querer!”, não se
intimida nem recua diante de comportamentos menos atentos à moral. Ligúrio
inventa mil ardis para perverter frei Timóteo, o confessor, e ludibriar Nícia, o
marido, mil astúcias para conquistar a esposa fiel e entregá-la ao amigo, a troco de
amizade e boa soma.
Os personagens da Mandrágora eram símbolos de uma realidade social, porém,
como personagens, existiam independentes do que simbolizavam. Eram símbolos e
existiam como gente. Ser e existir. Raposas são, mas não existem; virtuosos existem e
são.
A metáfora vivia em dois planos: luta pelo poder, história política; no enredo,
transformava-se em luta pelo amor de uma mulher. Planos paralelos. Maquiavel
falava do poder político usando linguagem de amor. Porém, no seu tempo, suas
plateias, que viviam na realidade da peça, sabiam do quê e de quem se tratava,
vendo, nos personagens amorosos da trama, personagens da vida política: dos
símbolos, voltavase aos simbolizados. Havia trânsito entre esses níveis.
No Brasil, plateias ignoravam Florença: a peça contava uma história de amor e
adultério – a relação com a política florentina, ou a nossa, que lhe daria sentido
metafórico, não se fazia ou, pelo menos, não era consciente.
Enigma: nós nos perguntávamos a que se deveria o imenso sucesso. À comédia
picante ou à simbologia metafórica? Trama amorosa ou intriga política?
Duvidávamos que, ouvindo falar em fome de amor, o espectador pudesse pensar
em sede de poder. Para nossa plateia, Freis e Messeres eram raposas e uvas: símbolos;
Florença não era Brasil. Mas, para o espectador florentino, Florença era a pátria!
“Terá ido longe demais nossa metáfora?”, nós nos perguntávamos.
Escrevi ensaios explicando o sentido alegórico, o conteúdo político. O espetáculo
era visto por milhares, meus ensaios, lidos por centenas.
Pensei em outras metáforas: O cerco de Numância, de Cervantes, representada em
cidades sitiadas. Faz pouco, na Bósnia, durante bombardeios sérvios, e, faz muito, em
Cuba, no início do injusto bloqueio. Metáfora e realidade, cena e sala, eram
evidências cristalinas.
A mandrágora mostrou sermos capazes de vestir seda e cetim sem aveludarmos a
voz, sem que nossos atores se transformassem em cabides. Serviu para pagarmos
salários atrasados.
Salário: nos primeiros quinze anos da minha vida profissional, nunca se podia
pensar em estética sem levar preventivamente a mão ao bolso.
JULGAMENTO EM NOVO SOL
Escrevi, com Nelson Xavier, Julgamento em Novo Sol, que, dirigida por Chico de Assis,
foi representada em congresso de camponeses em Belo Horizonte. Tratava de uma
revolta bem-sucedida – no Brasil, só no teatro as revoluções são bem-sucedidas…
Hoje, com a formação do MST, renasce a esperança.
Ouvi dizer – não vi – que o ator que fazia o papel de latifundiário foi perseguido
pelos congressistas, que, mesmo sabendo que se tratava de um ator – militante do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) que nem de longe comungava com seu
personagem –, mesmo assim quiseram perseguir o personagem que se escondera na
recôndita pessoa do ator: se tinha sido capaz de representar tão bem o malvado
coronel, alguma coisa desse personagem o ator guardava dentro de si… Teve que sair
pelos fundos com barba e bigodes emprestados pelo colega que fazia o padre….
A lei nos obrigava a montar um clássico nacional para ganhar magras subvenções:
escolhemos Martins Pena, O noviço, que me deu o prazer da total irresponsabilidade.
Era nacional, não precisava ser nacionalizado. Em nenhum momento pensei no que é
que isso quer dizer? Queria dizer subvenção!
Voltamos ao Rio com A mandrágora, preocupados em entender a plateia
confrontada à metáfora. Teatro Santa Rosa, dos meus amigos Leo Jusi e Glaucio Gil.
Foi a última vez que vi Glaucio em vida: morreu de enfarte diante das câmeras de
televisão, durante um programa que animava. Morreu ao vivo.
No Rio, o CPC distribuía poemas por todo o país, interpretados pelos Jograis, nome
do primeiro elenco de atores profissionais que interpretava poemas. Auto do bloqueio
furado, escrito no dia em que Kennedy decretou o bloqueio naval contra Cuba, foi
ensaiado na manhã seguinte e representado nas escadarias do Teatro Municipal
menos de 24 horas depois do bloqueio decretado. Falava-se em furar o bloqueio que
ainda não estava sequer completo… Rapidez dramatúrgica!
O QUE É A INTER-RELAÇÃO?
No Rio, Milton Gonçalves foi substituído por Ary Toledo, às pressas. O espetáculo
tinha sido ensaiado minuciosamente. Fiz até marcações de pupilas dos olhos do
Fauzi (frei Timóteo), na cena em que Ligúrio (Guarnieri) tenta convencê-lo a
convencer Lucrécia a fazer amor com Calímaco. O frade está quase convencido, falta
o derradeiro argumento. Ligúrio balança moedas que tilintam: o ruído do ouro atrai
os olhos, mas não o rosto imóvel do santo homem. A plateia, a dois metros de
distância, ria às gargalhadas. Os que estavam sentados atrás imaginavam o santo
rosto ajudados pelas mãos de Fauzi que se crispavam – em arena, o diretor deve
marcar os movimentos dos atores por todos os lados, em 360 graus.
Rigor de relojoaria. O importante, porém, não era a ourivesaria dos movimentos:
era a forte inter-relação dos personagens. Nenhuma palavra atirada ao vento. Cada
suspiro encontrava ouvido atento, cada movimento, olhar vigilante. Tudo se fazia a
dois. Podia-se cortar à faca a atmosfera entre os atores, tal a densidade.
A peça começa com longo monólogo de Calímaco diante de Siro, que quase não
abre a boca: “Bem me lembro… Creio que sim… É verdade, senhor…”. Nada mais.
Paulo José teve êxito enorme: era teatral. No Rio, o monólogo tornava-se apenas
informativo.
Por quê? Paulo era o mesmo. Siro, não: ótimo ator, Milton havia ensaiado Siro e
cada “Pois não” que dizia era cheio de terceiras intenções… Paulo e Milton
interagiam. Ary, coitado, mal teve tempo de decorar os monossílabos, foi empurrado
para o palco, onde repetia deixas. Rompia-se a inter-relação, acabava o teatro.
Insisto: teatro faz-se a dois! Teatro é amor, que a dois se faz!
Outro exemplo: em Tartufo, Guarnieri representava o protagonista e Lima,
Orgonte. Tartufo, de joelhos, declara seu amor à mulher de Orgonte quando entra
em cena Damis, seu filho. Damis ameaça denunciálo. Entra o pai, ouve a denúncia.
Lívido, pergunta se é verdade. Nos primeiros dias a pausa demorava segundos até
que Tartufo respondesse: “Deus é testemunha”, dizia, depois de olhar um crucifixo
na parede.
A pausa foi crescendo. Guarnieri desenvolveu seu subtexto e a cada espetáculo
pensava mais longos pensamentos enquanto olhava Orgonte, Damis, o crucifixo…
Chegou ao recorde de dois minutos e duas vezes palmas em cena aberta, na mesma
pausa: os colegas vinham ver, relógios marcando o tempo. Era teatro: inter-relação.
O MELHOR JUIZ, O REI
Os atores se inter-relacionavam tanto no palco que as inter-relações eram inevitáveis
fora dele… Joana Fomm, atriz do Santa Rosa, apaixonou-se e veio para São Paulo.
Época das grandes paixões! Joana, inteligente e bela, fez a camponesa Elvira, de O
melhor juiz, o rei.
Lope de Vega: no texto, modificamos o final, para que pudéssemos restaurar a
ideia central de Lope – queríamos estabelecer a ponte entre a metáfora e a nossa
realidade; Pelayo se fantasiava de rei e praticava as duas justiças.
Paulo, Guarnieri e eu traduzimos. No elenco, Joana, Dina Sfat, Paulo, Abrahão
Farc, Guarnieri e Juca. Flávio, cenógrafo, fez roupas de nobres usando tapetes,
correias de cavalos, cones de confeitaria: lixo reciclado.
O nobre Don Tello se apaixona pela camponesa Elvira e, na noite de suas bodas
com Sancho, Tello, padrinho de casamento, manda raptá-la. Quer exercer o seu
direito de pernada. Na Idade Média, senhores feudais tinham o direito de fazer amor
com todas as noivas do seu feudo, na primeira noite: Tello queria exercê-lo; para ele,
nada mais justo.
Sancho e Pelayo, seu amigo, inconformados, vão em busca do rei. Ao voltarem
com ele, Elvira já foi violada. O rei, magnânimo, pune Tello e regala os noivos com
presentes compensatórios da virgindade perdida.
O rei faz justiça. Lope queria, assim, venerar a figura real que se opunha ao poder
local: o poder central contra os “coronéis”. Era bom, na Espanha, no seu tempo. No
Brasil, poderia parecer elogio aos tiranos. Os golpistas, aqui, rondavam o poder.
Queríamos exaltar o poder popular! O que tinha sido feito no palco de Santo
André e no cenário galego poderia ser feito nas ruas do Brasil.
Na nossa versão, o rei estava ocupado com suas guerras e necessitava do apoio de
Tello e seus jagunços. Não vinha: uma virgindade a mais ou a menos, que importava?
Pelayo se disfarçava de rei e fazia, ele mesmo, justiça dupla. Primeiro, a da
nobreza – se está apaixonado, Tello deveria casar-se com Elvira. Nesse ponto, no
Nordeste, espectadores enfurecidos quase acabavam com o espetáculo. Depois, a
segunda justiça, camponesa: Tello é condenado à morte. Elvira, viúva, virgindade a
menos, herança a mais, casa-se com seu amado. Aplausos.
Claro que o fato de ser a justiça praticada por um camponês, não pelo rei, sugeria
ao público ser possível ao povo fazer o mesmo. Estávamos certos de que a censura
proibiria a peça – não cortou nem uma linha. Antes do bote, a serpente é permissiva!
No Nordeste, O melhor juiz foi representado para plateias populares, gente
pendurada até em árvores e nos postes de luz. E montada nos indefectíveis cavalos
melômanos…
Quando entrava Sancho em cena, Juca, vestido de camponês medieval, provocava
risos, chacota. Juca, com talento e sangue-frio, ria, mostrava seu figurino e explicava
que íamos apresentar peça acontecida “muito antigamente”, explicava semelhanças
da situação de outrora com a de agora.
Os espectadores se acalmavam e Juca dizia que ele próprio interpretava o noivo
que falava em versos como os cantadores do Nordeste, versos como estes: “Nobres
campos de Galícia/ que dais sustento às milícias/ de flores de cem mil cores, aves que
cantais amores, feras que andais sem governo etc.”. Pronto: já estava dentro do texto
da peça. Já os espectadores aceitavam essa forma de espetáculo.
As plateias faziam uma decodificação automática da metáfora. Em debates,
quando alguma referência era feita ao nobre Tello, espectadores entendiam que se
tratava de um coronel local.
Paulo Freire espalhava seu método em Pernambuco, alfabetizando a valer. As
Ligas, fortes, numerosas. A Igreja, mais progressista. O presidente Goulart,
empurrado a tomar medidas populares, ameaçando estatizações, negociando com
sargentos e marinheiros rebelados. A meu ver, nada revolucionário, apenas
democrático. Mesmo assim…
O melhor juiz, sucesso ao ar livre, não coube no Arena. Demasiados camponeses
entulhados em vinte metros quadrados…
Comparei a peça de Lope com os operários de Santo André – estes haviam escrito
e interpretado sua própria peça, até um fórum haviam feito. Aqueles operários eram
o nosso tão buscado povo – e eles, esse povo tinha escrito sua própria peça,
interpretado seu texto, invadido a cena.
N’O melhor juiz, um ator, classe média como eu, na pele de um personagem fictício
– o personagem era povo, nós não – entrava em cena. Pelayo era pálida ideia dos
operários de Santo André.
Tive pena: Pelayo reproduzia, na ficção, o que Jurandir e seus amigos haviam feito
na realidade. Um ator se fantasiava de povo para corrigir o rei – ator, não camponês.
O melhor juiz era retrocesso. Já havíamos feito o passo à frente. Havíamos dado ao
nosso querido povo os meios de produção teatral, ensinado a fazer teatro sem pôr em
suas bocas nossas palavras: permitindo que expressassem seus pensamentos, sem
tutela. Com Pelayo, tomávamos de volta a palavra. Prometeu, arrependido de dar ao
homem o fogo, soprava a chama.
Quando eu era criança, o menino dono da bola, quando perdia, recolhia a bola.
Estávamos fazendo o mesmo: abandonando os operários de Santo André, voltando
ao teatro e à velha lição de moral, famigerada mensagem. Dizíamos “É assim que
vocês devem fazer!” a quem já tinha feito melhor que nós!
Artistas, queríamos dizer nossos pensamentos. Mais tarde, compreendi que não
era necessária a escolha excludente: fazer teatro ou ensinar. Descobri minha dupla
vocação: artista e professor.
Hoje, artista, quero escrever peças, dar testemunho – e não quero que ninguém se
meta! Como professor, quero ensinar – testemunhem, e não me quero meter.
MEU PAI SE CANSOU DE VIVER
Durante a peça de Lope, morreu meu pai. Juca, amigo, me deu a notícia, triste e
solidário. Doente desde os 64 anos, meu pai morreu no dia em que completou 71. No
caixão, telegramas de felicidades: “Que esta data se repita por muitos anos…”.
Vi meu pai banhado em flores. Segurei suas mãos geladas. Me veio à memória o
dia em que teve a perna direita amputada. Minha família havia passado a noite em
claro, no hospital, antes da cirurgia. Como eu estava descansado, lhe fiz companhia
à noite, enquanto minha família repousava.
Meu pai dizia que preferia morrer a que lhe cortassem a perna. De madrugada
perguntou se ainda estava inteiro: ainda sentia dores no pé cortado. Respondi,
sincero, que não – não estava. Vi lágrimas nos seus olhos. Ele quis ter certeza, ver. Eu
o ajudei a se levantar. Meu pai dizia que não se cansava de trabalhar, mas podia se
cansar de viver. Disse que preferia a morte – mas preferiu viver, mesmo sem a perna.
Naquela noite, lembrou episódios da sua vida, contou coisas de Portugal. Falava
devagar, dormia, acordava, voltava a falar, lembrando, como sonho entrecortado.
Falava comigo e, de repente, era como se o seu pensamento mergulhasse no sono e,
quando acordava, voltasse à tona adiante, em outra história. Meu pai passava a
limpo sua vida. Dizia o que fez e o que pensava que deveria ter feito. Corrigia o
rascunho da sua vida.
Me lembrei de um personagem de As três irmãs, de Tchekhov, que se pergunta: “E
se a nossa vida fosse apenas um rascunho que pudéssemos rescrever?”. Hoje, quando
deprimido, penso rescrever a minha. Diante deste computador, penso outra
biografia, inventada: a vida que eu gostaria de ter vivido. Mas, se fosse premeditada,
seria vida?
Diabetes é doença insidiosa: anos mais tarde, os médicos foram obrigados a cortar
também a perna esquerda; mais uma vez, eu estava a seu lado quando acordou da
anestesia, mais uma vez o ajudei a sentar na cama e ver a falta. Mais uma vez molhei
minhas mãos em suas lágrimas, e nas minhas. Quando penso na palavra dor, penso
nesse dia.
Em sua cadeira de rodas, meu pai se dizia cansado de viver, já que não podia
trabalhar. Para ele, viver era trabalhar. Pra mim, hoje, quase.
Olhando flores, vendo meu pai, olhos fechados, quis entender. Quero sempre
saber o significado de cada acontecer. Meu pai, morto: havíamos trocado, em vida,
palavras e silêncios, caminhadas da padaria à casa, da casa à padaria. Nossos
silêncios eram a mais florida linguagem.
Ali, uma vez mais, silenciosos; um de nós, morto. Quis entender. Não entendi
nada. Quis encontrar o significado: significados não havia.
Meu pai estava morto. Era tudo. Só isso. Só.
O FILHO DO CÃO E A ILHABELA
Guarnieri, homem da cidade, tinha escrito O filho do cão, mais uma vez a reforma
agrária, cuja ausência continua sendo um dos dois principais entraves à vida no
Brasil: o outro é a dívida externa.
A dívida externa dos países endividados jamais será paga, como sabem
economistas e estadistas. Um dia vai explodir – não é opinião: é a inexorabilidade da
matemática inescrupulosa do Deus-Mercado! Todo mundo sabe disso e sabe também
que a explosão pode ser adiada com novos empréstimos, novos planos de
austeridade ainda mais draconianos, cortes no orçamento, fechamento de escolas e
hospitais – medidas que farão aumentar a potência megatônica da explosão que virá.
Bancos e nações credoras não querem o ressarcimento da dívida – mesmo que
fosse possível! – porque ela é o vínculo escravatício! No século passado, o senhor
possuía fisicamente o escravo. Neste, inventou-se a dívida externa. Para os senhores,
mais em conta.
O Brasil, fim de milênio, paga mais de 1 bilhão de dólares mensais pelo serviço e
juros de sua dívida. Se pensarmos que cada hospital popular ou escola pública custa
cerca de 1 milhão, pagamos, por mês, mais de quinhentas escolas e quinhentos
hospitais. Pode-se, assim, viver? Não! Cada vez que as autoridades assinam a
transferência desses bilhões para bolsos que já estão gordos, a caneta dourada assina
a sentença de morte de milhares de brasileiros. E quem assina são brasileiros; quem
prendia negros fugidos do cativeiros eram negros: capitães do mato. Antes, como
agora.
Eu não aguentava mais, me sentia perdido e precisava descansar. Ouvia o texto e
tinha a impressão de já tê-lo ouvido em outras peças.
O trabalho no Arena era rude, incessante, diversificado: fazíamos administração,
publicidade, programação, trabalho artístico. Varrer a arena, nós. Lavar os pratos,
sempre nós. De vez em quando, batia a exaustão. Meus colegas me viam perdido,
pálido. Eu estava pálido, perdido. Dividido entre querer e dever, como entre duas
mulheres amadas. É metáfora… e não é.
Meus amigos perceberam minha dicotomia, me propuseram descansar. Parei por
exaustão, perplexidade. A bilheteria não podia parar: Paulo José assumiu a direção
do Cão.
Ilhabela: luz elétrica entre seis e oito do entardecer. Depois, luz das velas, da lua e
das estrelas.
Luz propícia para a meditação…
CAPÍTULO 16
GOLPE A GALOPE, MONTANHA ABAIXO
“Tem champanhe! Eu vi”, disse o Candidato, estremunhando na poltrona do
Professor-Sempre-Chefe.
Na cristaleira, três garrafas. Contei convidados: quinze. Uma pra cada cinco. O
vinho costumava ser chileno, francês ou espanhol. O cheiro de dendê prometia
quitutes baianos. Multiculturalismo.
“Champanhe só depois da fala do general. Uísque ou cachaça, pra ninguém ficar a
seco…”, propôs o Professor.
31 de março de 1964, esperando notícias na TV. O Candidato era o mais loquaz dos
ecléticos presentes: artistas de teatro, cinema e música, professores, jornalistas (não
desgrudavam do telefone, falando baixo, secretos), um oftalmologista chileno, um
filósofo humanista, um psicólogo de óculos e um veterinário de muletas – culpa de
um cavalo neurótico. Donos da casa: o Professor-em-Chefe e a Professora-Subchefa.
O golpe vinha a galope das Alterosas, com ramificações pelas planícies. Haveria
sangue heroico ou apenas telefonemas grosseiros? Bombas ou xingamentos? Tiros ou
telegramas?
Dez da noite. Parte do Exército mineiro, sublevada, esperava o fim das
negociações entre generais e “governadores pulhas” (Darcy Ribeiro dixit), para
continuar avançando contra o Rio ou voltar pro quartel. Contavam-se homens e
armas como quem avalia cartas no truco, antes do blefe mortal.
A capital já era Brasília e o Exército mineiro – se queria golpe de verdade –
deveria avançar contra o Planalto, viagem demorada. O golpe perderia o suspense
cinematográfico, exigia rapidez. Tanques de guerra gastavam mais gasolina do que
as Mercedes dos comandantes – seria preciso encher tanques nos postos Esso ou
Shell, à beira da estrada. Haveria risco de se encontrar um fotógrafo desgarrado: foto
de tanque de guerra enchendo tanque de gasolina desmoraliza qualquer exército.
Especialmente se a moça que empunha a mangueira tiver saia curta, vermelha…
Não fica bem.
O general mineiro tinha lido nos manuais de guerra que era necessário avançar,
avançava: o Rio, governo de Lacerda, facilitaria negociações.
Poderia ter escolhido o Espírito Santo – simbolismo da capital, Vitória –, mas o
impacto seria menor do que a invasão de Copacabana e Ipanema, espantando sungas
e biquínis, mesmo que os tanques corressem o risco de engarrafamento na rua São
Clemente, em Botafogo, a caminho de algum palácio. Tanque de guerra engarrafado
no trânsito, ao lado de bicicletas e caminhões de refrigerantes, desmoraliza qualquer
golpe de Estado.
Tropas desertoras espalhadas pelo país levantavam-se em armas, negociando. Um
general no Amazonas queria invadir o Acre, mas não sabia por quê, além do desejo
irresistível; outro, em Tocantins, estava pronto para ocupar Mato Grosso, se
necessário – não era. Desistiram porque foram convencidos de que tais ações,
trabalhosas, não davam Ibope.
O general do Sul, Cruel, fiel ao governo – vinha a ser contraparente do presidente
–, havia-se levantado em defesa da legalidade. Mesmo assim, negociava com outro
general levantado pela razão oposta, que negociava com generais espalhados pelo
país, levantados ou adormecidos. Generais negociavam com seus pares e com
governadores pulhas. Não faltavam generais. Nem negociações. Nem pulhas. Nada.
Não estávamos gostando de ver nosso general, o Cruel fiel, conversar com
governadores, que conversavam com o embaixador dos Estados Unidos. Mau sinal.
Enfim, assuntos castrenses… em inglês.
O povo não negociava: esperava o fim. Governadores pulhas negociavam com
governadores fiéis, que não eram pulhas – mas trocavam ideias com os pulhas.
Generais e brigadeiros negociavam com o Almirante gringo, que comandava um
navio de guerra: casualidade. Por incrível coincidência, o navio ancorado a cinco
minutos das nossas costas tinha canhões distraídos apontados para as ensolaradas
praias cariocas e capixabas. Marines armados até as amígdalas e o esôfago.
Coincidência pura! Eles iam só passando…
Mais casual coincidência: o Almirante tinha o número vermelho dos generais,
sublevados ou não, e falava com todos, em inglês, língua que todos dominavam com
perfeição, principalmente os intérpretes.
Na casa do Professor, esperávamos a palavra do Sul. Por que a demora? Queríamos
beber champanhe.
Governadores honestos continuavam negociando com negociadores que tinham
acesso aos negociantes que negociavam com os negociadores pulhas, e assim por
diante. Até que os negociadores chegassem ao General Fiel, continuariam fardados
negociando com paisanos, paisanos com estrangeiros, estrangeiros com pulhas,
fardados ou não. E assim por diante.
Cruel era o fiel da balança: para o lado que balançasse seu coração e apontasse a
coronha do seu fuzil, esse lado ganharia. O terceiro era o mais forte Exército
brasileiro porque guardava nossas fronteiras com nossos arqui-inimigos em futebol:
Argentina e Uruguai.
Esperando o fim das negociações, o país boquiabria-se. Marido enganado, o povo
seria o último a saber, tarde demais. Negociações nos telefones, champanhes na
cristaleira. O golpe de 1964 foi grande negociação; para alguns, grande negócio.
Otimismo: Jango tomara posse graças a nós, claro – éramos valentes! –, mas
também graças ao apoio do III Exército, que não faltaria, comandado pelo
contraparente. Contraparente serve pra isso. Jango, fortalecido, começaria a fazer as
reformas prometidas: moratória da Dívida que estrangulava o país – moratória é
Dever, não é Calote! – e a Reforma Agrária que acabaria com o êxodo rural.
Dez e cinquenta, noite escura. “Pra que horas estava marcado o general?”,
perguntou um esquecido.
“Dez… São onze. Não estou gostando…” Quem falava assim era o único
pessimista naquela roda – eu. Otimistas demonstravam, cientificamente, ser
impossível golpe no Brasil. Sobretudo, explicava o Candidato, por causa de uma
força Cósmico-Religiosa poderosíssima, que se chamava Correlação de Forças.
Correlação de Forças do nosso lado, ninguém nos segurava, porque incluía sputniks
e todo o arsenal nuclear da União Soviética, que ameaçava o mundo com guerra
atômica definitiva – hecatômbico Armagedon – caso os Estados Unidos ousassem
tocar num só fio de cabelo da nossa soberania nacional. Canhões distraídos eram
puro acaso… O almirante ianque passeava no convés, pijama de seda, fumando
charuto: nada mais pacífico do que charuto e pijama de bolinhas.
O oftalmologista chileno achava que golpe no Brasil era viável porque não
tínhamos a vetusta tradição democrática do seu país: “En Chile nunca habrá golpes
militares! Lo decidimos todo hablando diplomaticamente, como caballeros… Golpes en Chile?
Jamás!”.
O Candidato achava que, terminado o arreganho dos inconformados com o
Avanço Inexorável da História – que não retrocede nunca, jurava! –, deveríamos ser
generosos com os rebelados: alguns dias de prisão domiciliar para que purgassem o
mau passo dado e pagassem preço moderado pelo nosso tremendo susto.
Por que golpe? Jango fazia reformas, coisa pouca… promessas que o vento leva.
“Estertores do Autoritarismo”, explicava o Candidato.
Candidato a quê? A tudo! O Candidato sempre se candidatava. Onde se abrisse
vaga, lá estava. Bolsa de estudos na Turquia ou cátedra em Campina Grande, vaga de
consultor jurídico de uma fábrica de guaraná ou exame de sangue grátis: entrava na
fila. Era Candidato. Gente assim acaba entrando.
Naquele dia, o Candidato candidatava-se a Primeiro Explicador Universal: se a
guerra era prolongamento da diplomacia, como dizia Clausewitz, havia muita
diplomacia a percorrer antes da guerra deflagrada. Quem acreditava ficava tranquilo.
Havia os intranquilos.
O filósofo humanista contra-argumentava: “Temos que aceitar a verdade universal
de que o Homem…” – ainda se dizia Homem: hoje, Ser Humano, avanço do feminismo!
– “… é carnívoro, animal predatório. Sendo o que é, tritura, devora. Não apenas
animais inferiores: engole seus semelhantes, tem apetite. O Homem não está
humanizado. Longo é o caminho para que o homem seja Homem!”.
“E daí?”, perguntava a perplexidade circundante.
“Face a essa fatalidade biológica e moral, os homens aceitam que não têm jeito, a
natureza desumana fala mais alto! E se dedicam à carnificina total e vence o forte!
Ou se humanizam.”
“O Homem nunca vai se humanizar!”, contrariava um jornalista. “Caso contrário,
nossa profissão acaba. O Homem não pode fazer isso com a gente!”
“Aqueles que, apesar de tudo, se humanizam, concordam que a Humanidade é
uma só e temos que instaurar regimes socialistas no mundo inteiro que protejam os
fracos e ofereçam oportunidades iguais a todos, filhos dos ricos ou pobres: abaixo a
Origem das espécies, de Darwin, livro primoroso, mas que temos o dever de desmentir
com nossas ações humanitárias!”
O filósofo era dialético, por isso seu raciocínio fazia extensos circunlóquios: “Nós,
humanistas, concordamos com a tese: o Estado tem obrigação de oferecer educação e
saúde a todos. Direitos Humanos – somos a Humanidade e estamos no mesmo barco.
Mas… quem acha o contrário, quem copia Freud no mau sentido – Freud dizia que o
Homem é porco-espinho, gosta de viver em manadas, mas espeta e mata quando
abraça – esses põem veneno nos seus espetos. Cada qual por si e Deus que se cuide,
porque nem Deus, nem a própria Santidade está a salvo do pega pra capar terreno!
Somos socialistas humanistas ou canibais pré-históricos!”.
Um jornalista deu-se conta do mau passo linguístico e corrigiu: “Olha aqui:
Santidade é o papa Joãozinho, Eminência, o cardeal Ratzinger, Majestade é o rei dom
João VI, que comia frangos, Alteza Imperial, a princesa Isabel, que libertou os escravos.
O Professor é Sua Excelência. Eu, a duras penas, sou Vossa Senhoria. Agora, vamos e
venhamos: Deus é Deus. Não vamos subverter hierarquias, poxa! Vamos deixar Deus
no seu devido lugar!”.
“Deus onde está? Deus pensa que é o quê?”
“Deus não tem lugar: é onipresente… Todo-Poderoso, pinoias! Omni-ciente, omni-
potente, omni tudo! Quem já teve a sorte de ter nascido Deus precisa ser mais
alguma coisa nesta vida?!”
O nível intelectual da conversa não era mais elevado do que minhas recordações
daquela noite. As garrafas de champanhe continuavam virgens à espera do general,
mas a de uísque já ia pela metade a segunda.
“Você precisa ler Marx…”, anunciava o Professor, Primeiro Marxista. Todo mundo
tinha lido, mas só ele entendia Marx. “Não se pode comparar luta de classes com
javali e jacaré…”
Tinha razão. Jacarés e javalis não se telefonam e o golpe estava sendo gestado
através dos bons serviços de Graham Bell. Alguém, na rádio Tupi, ouvia conversas de
gente que comia os fios, nervosa. Faltava 1 milhão de dólares para que uma decisão
séria e comprometida com a Verdadeira Democracia fosse tomada. Ninguém dizia
em que bolso iria parar esse milhão.
O psicólogo, olhos minúsculos e óculos triplos, como todo bom psicólogo, era
diplomado na arte de escutar silencioso, fazendo “ahn, ahn…”, a título de estímulo
ao orador. Custava a dizer palavras inteiras. Como o silêncio se alongava, resolveu
dar pequena contribuição à festa; sem culpa formada, provocou a maior crise
psicoideológica:
“O Weber tem razão…”, começou, capturando instantaneamente a atenção geral.
Bastava pronunciar o nome encantatório e todos olhavam na direção de Weber, o
Papa. “Disse Weber que entre as energias físicas e psíquicas existe uma relação
causal mensurável!”
Estranho linguajar weberiano. Energia o quê?!! O psicólogo pigarreou – impossível
não pigarrear numa hora dessas: até eu, pessoa simples, nascido na Penha, teria
pigarreado, valente! Pigarreou e foi em frente:
“Vejam bem: sensação e percepção. Para que o sujeito perceba uma nova sensação
é necessário um aumento de intensidade do estímulo. Para cada nova sensação, novo
aumento. Esse aumento é percentualmente fixo. Por exemplo: você tem um peso de
duzentos gramas na cabeça e precisa de uma variação de dez gramas para sentir a
diferença. Pois bem: se o peso for de um quilo, precisará de uma variação de
cinquenta gramas, rigorosamente cinco vezes dez. Vocês não acham que o Weber
tinha razão?”
Ninguém ousaria discordar do mestre, guru, ídolo, paradigma. Mas o que teria a
ver o peso na cabeça com os tanques mineiros?
“Se os trabalhadores forem privados dos seus direitos fundamentais lentamente,
menos de dez gramas de cada vez, não sentem e vão se acostumando às piores
condições de vida; não se revoltam e o mundo segue em paz. Mas, se a privação for
brutal de uma vez só, eles se rebelam!”
Os sociólogos estranharam essa afirmação de Weber e sua aplicação prática à
situação brasileira, que Weber nem conhecia. Espantados com esse Weber secreto,
que agora revelava sem-vergonhice patronal. O humanista, com a corda solta, ousou
contrariar:
“Maquiavel disse o contrário: o Príncipe deve fazer o mal todo de uma só vez,
sejam lá quantos gramas forem, quilos ou toneladas, tudo de uma tacada só! Se tiver
que matar cinquenta, mata duzentos: os súditos ficam sabendo que quem tinha que
morrer já está enterrado. O bem, diz Maquiavel, deve ser feito a conta-gotas, pra que
os súditos fiquem esperançosos, querendo mais.”
O psicólogo, com certezas weberianas, contra-atacou, para escândalo da maioria,
sociólogos eméritos.
“Como é que se cozinham rãs pra carne ficar gostosa?”, perguntou. Ninguém era
cozinheiro, nem comia batráquios. “É assim: elas são postas vivas em panela de
barro, pouco sal, nenhuma pimenta e, pra que não saltem pra fora da panela, fogo
brando. A temperatura aumenta devagar; as rãs não percebem a estratégia do
cozinheiro e, quando se dão conta da calentura, o sangue já ficou sólido nas veias,
elas inconscientes, prontas pra mesa, ao molho vinagrete, com alho, cebola, pimenta
e pimentão… Morrem cozidas, sem protestar.”
O veterinário sentiu-se mal com a imagem torturante do assassinato a fogo
brando; pouco afeito às palavras, gemeu solidariedade às rãs sacrificadas à
gastronomia exótica. “Na China era pior”, pensou. “Comiam o cérebro de macacos
vivos, com limão, a cabeça quebrada a marteladas, embaixo da mesa, que tinha um
buraco no meio…”
“Rã tem sangue?”, pergunta delicada. “Acho que não mas, pro nosso raciocínio
científico, não importa…”
Como ninguém fizesse reparo, o psicólogo pôde concluir dizendo que assim tinha
sido no Brasil, ao longo dos anos: operários perdiam pouco a pouco seus direitos, a
inflação comendo os minguados salários. Já estavam acostumados e nem percebiam
que o sofrimento aumentava. Por isso, o golpe era improvável: ninguém ousaria
implantar ditadura quando a democracia burguesa servia aos patrões, anestesiando a
classe operária.
Podiam dormir tranquilos: golpes não haveria! As rãs aí estavam para prová-lo!
O mal-estar silenciava: a maioria desacordava, solidão envergonhada. Magister
dixit! Melhor seria calar-se até que alguém inaugurasse assunto fresco. Se Weber
tinha dito essa barbaridade, talvez tivesse razão. Os presentes veneravam Weber,
celeste: como contrariar o Divino Pai? Ouvindo seu nome, jogavam-se de bruços
como integristas islâmicos, às cinco da tarde. Mas… em que página de que livro teria
o Mestre escrito essa selvageria sobre rãs, fazendo com que, calados, fossem
obrigados a comer esse sapo? Ou seria o exemplo das rãs apenas uma desastrada
contribuição pessoal do psicólogo? Pisavam ovos.
O Músico, compositor popular, comentou: “O Weber, heim? Quem diria? Pensei
que ele só se preocupasse com árias, duetos, recitativos… E, na calada da noite, o
homem ficava cozinhando rãs em banho-maria e chupando os ossos…”.
“Você está enganado. O Weber não gostava de música! Para ele, a psicofísica era
tudo na vida! Só pensava nisso! O homem era tarado pela psicofísica”, comentou o
psicólogo, provocando a ira musicóloga e o espanto sociológico.
“Weber é um dos compositores que eu mais admiro. Tenho certeza de que ele
nunca falou essa besteira sobre arte culinária batraquicida. Isso é calúnia!”
O Músico estava na quinta dose, o que explicava o ardor. Arremeteu: “Debussy
chegou a dizer que Weber foi o primeiro compositor que se preocupou com a
relação que deve existir entre a alma da natureza e a alma do personagem, na ópera!
Fique você sabendo disso! Você que nem sabe o que é ópera… e muito menos alma!”.
“Olha aqui: de que Weber você está falando?”, protegeu-se o psicólogo.
“Carl Maria von Weber, o verdadeiro criador da Ópera Alemã! Foi ele que
permitiu que Wagner existisse, fique você sabendo! Sem Weber, nicht Wagner!
Nasceu em 1786, morreu jovem em 1826, fique você sabendo!”
“Ahhhhh, agora entendi: não é desse Weber que eu estou falando, não…”
Não era o suave compositor aquele cruel cozinheiro – o músico respirou aliviado.
Entre os sociólogos, a ansiedade aumentou. Quem seria então o Weber
antiecologista? Não podiam admitir que fosse o deles. O Professor e seus amigos
queriam saber que raio de Weber era o Weber psicólogo: se não era o da ópera,
quem seria o das rãs?
Era Ernst Heinrich Weber, anatomista alemão. O psicólogo reconquistou a
admiração sorridente. Era outro, terceiro Weber, famoso como seus homônimos,
mas não tanto.
Sorrisos. Alegria. Uísque!
– “Aaahhhhhhhhhh! Não é o MAX, o NOSSO WEBER!!!!! Eu tenho a certeza de que o
NOSSO MAX jamais comeria sapos, ainda mais sabendo que eram torturados desse
jeito!”, foi o comentário judicioso do Professor, mais weberiano do que nunca,
sempre marxista, sempre Chefe.
O mundo voltava a ter certa lógica, a ser cognoscível. Tanque de guerra na rua
voltava a ser a coisa mais natural do mundo. O Professor, aliviado, comentou: “Uma
coisa é certa: se os golpistas tomarem o poder – digo, por hipótese! –, temos que
encontrar a fórmula para aderir”.
Espanto!
“Se tomam o poder, estávamos errados, eles certos. Quem toma o poder tem
razão! Por que perseverar no erro, se perdermos? Temos que aderir…”
Os comentários que se seguiram percorriam a inteira gama desde “Cretinice pura
e opaca!”, “Entreguista, mascarado de nacionalista!” até “Cartesianismo cristalino!”.
Arco-íris opinativo.
O Professor, nos momentos decisivos, decidia a última palavra. Ameaçou abrir
uma champanhe. Prestava-se mais atenção à rolha saltarilha do que às ideias que
defendia.
“No Brasil, dada a complexidade do nosso tecido social, no qual convive a mais
extremada miséria nos latifúndios do Nordeste, com a sofisticada tecnologia
industrial no Sul, levando-se em conta que vivemos em uma democracia…” – olhou
o relógio: meia-noite e o General Fiel, nada! – “… democracia – até a meia-noite, pelo
menos, este país ainda é democracia! – seja lá quem for que exerça o poder, deverá
compor com todas as forças econômicas, mesmo as do passado colonial. O Brasil,
sem ampla aliança que inclua até as forças mais retrógradas, o Brasil não é
governável… Para que a esquerda governe, precisa deixar que a direita governe
também! Se nós tivermos que nos unir aos reacionários depois das eleições, por que
não antes? Para continuarmos sendo de esquerda, podemos ser obrigados a nos
afastar da esquerda, a satisfazer algumas vontades dos reacionários porque, senão,
será o golpe e eles farão o que quiserem… Temos que ser realistas! Unir a meia
esquerda com a extrema direita pode parecer ideia esdrúxula, mas tem sua razão de
ser… Acho que Marx, se fosse vivo…”
“Marx morreu em boa hora, sem esperar por você…”, alguém murmurou.
Sendo o Professor considerado, por ele mesmo, o Primeiro Marxista, essa
afirmação explodiu como bomba de hidrogênio. Aderir ou não? Havíamos ido longe
demais, nós, da esquerda, acenando ao povo com o espectro da reforma agrária,
sovietes no poder etc., ou tínhamos ficado aquém do necessário, não ousando nem
ao menos o que até Getulio teria feito?
Lembro ter ouvido uma palavra sensata, uma: “Se derem o golpe, não vão precisar
que ninguém adira! Ganhando sem nós, por que vão fazer alianças conosco?”.
O Professor, jamais perdedor, tomou a pressão do grupo: “Vocês, o que acham?”.
Ele dava sempre a impressão de que estava ao lado de todo mundo, mesmo se o
mundo estivesse explodindo por todos os lados… Era importante dar a impressão de
poder, mesmo sem o ter… mas isso era detalhe. Queria a pompa!
A conversa se fragmentava em temas cruzados: ser estadista é achar soluções; se o
presidente acha que deve pagar os juros da dívida, que devemos continuar escravos
para evitar retaliações, pra que serve ser presidente? Basta um bom administrador!
Basta de intermediários: Lincoln Gordon [1 ] pra presidente!
Esperávamos o General Fiel para que festejássemos o fim do golpe fracassado. Se
lembro bem, era uma da manhã. O locutor anunciou importante pronunciamento
político.
Veio um Governador, cujo lema de campanha eleitoral confessava: “Ele rouba,
mas faz!”. Sorridente, mão na carteira gorda. O general havia aderido e o Governador
distribuía sorrisos: para não perder o hábito, roubou nossa paz, nossa esperança.
O Professor guardou o champanhe na prateleira. Decisão rápida: “Melhor irem
andando. Apago as luzes pra não chamar a atenção. Melhor sair um a um, dois a
dois. Três, pode parecer conspiração…”.
O Candidato, na frente da retirada, comentou: “Eu tinha certeza de que o Max
Weber nunca escreveu nada sobre rãs… Não falei pra não criar constrangimento,
você não acha, Professor?”.
“Amanhã a gente se telefona…”, tranquilizou o mestre, abrindo a porta.
Rua escura, voltando pra casa, pela primeira vez na vida escutei o silêncio. Ouvi.
Como é sonoro o silêncio! Pode ser ouvido a quilômetros de distância. Quanto mais
distante, mais assustador.
Uma sirene da polícia… ou seria ambulância? Meus sapatos no chão… ruído
estranho. Chutei uma pedra no caminho. Estariam prendendo gente, antes da
madrugada? Era proibido por lei… Que lei? Ou estariam levando feridos amotinados
para hospitais? Silêncio.
Sozinho. Ninguém passava na rua. Silêncio. Uma porta se fechava. Ouvi uma
chave torcida. Ouvi meu respirar. Ouvi um vulto de mulher que deslizava na janela
silenciosa. Ouvi o suave murmúrio das minhas mãos roçando o ar, cortando o vento.
Ouvi o vento, a brisa. Ouvi o silêncio.
Depois do silêncio, outra sirene e outra mais… Depois silêncio…
êncio… silêncio… silêncio………… s… . . s . . s …
Sozinho.
CAPÍTULO 17
OPINIÃO EZUMBI – OS MUSICAIS
Depois daquele sólido silêncio tenebroso, tínhamos medo de telefones, grampeados.
Até conversas em voz baixa no botequim em frente ao Arena, grampeadas. Nós nos
demos encontro no cenário de O filho do cão.
Mundo cão. Revisamos armários, estantes. Cartas cubanas, agendas, endereços,
edições do Granma, [1 ] livros de Mao, Che, Fidel, Marx, Engels, Sartre… anotados com
carinho, foram escondidos ou jogados no lixo.
Antecipado São João ideológico: fogueiras.
Notícias davam conta: o Exército, estacionando tanques no meio-fio; a Marinha,
ancorando navios ao largo; a Aeronáutica, aterrissando onde havia pista, tinham
abandonado seus deveres militares e se convertido em força policial. Vasculhavam,
atrás de nós e do povo. Quem, alguma vez, tivesse dito coisa que pudesse ser
aparentada a pensamento assemelhado à esquerda – exemplo, a afirmação de que
comunista não comia criancinha e, caso comesse, não seria na praça Vermelha, em
público festim! – era preso e levado para navios adaptados ao propósito carcerário,
quartéis, prisões comuns ou delegacias de bairro. Onde houvesse porta e cadeado, aí
se encerravam presos.
A primeira medida da ditadura foi cultural: proibidos os Centros Populares de
Cultura em todo o território nacional. Por extensão, Ligas Camponesas, sindicatos,
uniões estudantis, qualquer forma de diálogo.
Decidimos abandonar o Arena por semanas, meses. Depois de vagar de casa em
casa amiga, dormindo cada noite em outra cama – alguns com crianças no colo –,
descobrimos que as polícias estaduais não conheciam a vida pregressa dos
perseguidos em outros estados. Graças a Deus não existiam computadores, Bill Gates
ainda era pobre e chupava pirulito. Solução: quem mudasse de estado teria ficha
policial mais pura que barriga de anjo em dia de festa de debutantes no Céu.
Passei semanas em Poços de Caldas, casa de amigos intelectuais: montanhas de
livros cobrindo paredes, lidos e anotados! Em Poços, eu lia emprestado desde que
nascia o sol até depois que se punha. Três vezes por semana, ia ao cinema da cidade,
onde um só projetor passava um rolo de cada vez: três intervalos, com direito a
pipoca e guaraná. Tentei parar de fumar – três maços por dia, era demais. Consegui
chegar a sete cigarros. Mas só pensava nisso: a próxima tragada. Anos mais tarde
larguei o vício, aos 35, quando desmaiei na rua, tanta nicotina nervosa tinha
comprimida nos pulmões.
Meus cunhados, Ivan e Sílvio, foram me buscar de carro e me levaram pra
Itaipava, descansar da fuga e, depois, pra casa de minha mãe, no Rio.
Procurei amigos cariocas: estavam em São Paulo. Pela primeira vez me senti
sozinho, em teatro. Sou homem de grupo: antes de viajar para os Estados Unidos
tinha amigos no Teatro Experimental do Negro e no Serviço Nacional de Teatro; em
Nova York, o Writer’s Group; na volta, Glaucio Gil e Leo Jusi; em São Paulo, o
Arena… agora, ninguém. Sou homem de grupo. Um dos prêmios mais bonitos que
ganhei na vida foi na cidade de Gävle, na Suécia: Prêmio Haddock, o peixe que só
vive em cardume. Sou cardume! No Rio, fui peixe na areia quente!
O primeiro golpe não foi mortal. Prendiam, mas não havia sido instaurada a
tortura como método usual de interrogatório: as Forças Armadas ainda
apresentavam tênues vestígios de civilização. Os presos eram encarcerados dentro da
lei que previa cinquenta dias de prisão sem motivo; tempo indefinido, motivo
havendo.
Perseguidos voltavam, perdido o medo. Fui a São Paulo, meus colegas viajavam.
Trabalhador, eu não parava quieto. Queria teatro. Responder à violência do golpe
com a insolência de novas peças. Voltei ao Rio pensando em novo espetáculo. Quem
o produziria?
Na democracia, tínhamos adversários; agora, inimigos. Antes, aceitando a
democracia, éramos obrigados a aceitá-los; agora, como dialogar com o diabo?
Tive uma ideia que me pareceu genial. Filmava-se, antes de 1964, o cinema
verdade: personagens interpretados pelas próprias pessoas inspiradoras da história.
Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, que só foi concluído vinte anos
depois do golpe, com personagens reais vivendo em cenários ainda mais tristes, era
talvez o mais belo exemplo. Em outras palavras: documentários reais com aparência
de ficção.
Se existia cinema verdade, por que não teatro verdade?
A primeira ideia veio simples: O processo, de Kafka, revelava o que, no Brasil,
acontecia. K. acorda de manhã, como havíamos acordado no 1º. de abril de 1964, e
descobre em seu quarto dois policiais que vieram intimá-lo: está sendo acusado por
alguém (não se sabe quem), de alguma coisa (não se sabe o quê), e será julgado (não
se sabe quando), por um juiz (não se sabe qual), em algum tribunal (não se sabe
onde). K. termina sentenciado à morte e executado.
Nada mais parecido com o Brasil naqueles dias tenebrosos.
Pensei convidar para o elenco pessoas que, como K., estivessem perseguidas sem
saber por quê, ou pessoas que eu pensava que estivessem perseguidas. Pensei em
jornalistas como Newton Carlos, Ziraldo, Jaguar, Janio de Freitas, Moacir Werneck de
Castro, Carlos Heitor Cony; no editor da Civilização Brasileira, amigo querido, que
mais tarde editaria meus livros, Ênio Silveira; intelectuais como Sérgio Buarque de
Holanda (a quem eu já tinha convidado e ele quase aceitara – quase, quase! – fazer
Galileu Galilei, de Brecht); Antonio Candido (além de crítico impecável, padrinho do
meu primeiro casamento); o general de esquerda Nelson Werneck Sodré, Marcio
Moreira Alves – o deputado que, mais tarde, serviu aos militares de pretexto para o
quinto ato, discursando na Câmara, sugerindo que moças de Brasília não
namorassem cadetes… Elenco não faltava! Belos atores!
No meu delírio, eu queria Oscar Niemeyer, Paulo Freire, Hélio Pellegrino, Houaiss,
Callado, Vinicius, Jobim, Carlos Drummond, Ferreira Gullar, Otto Maria Carpeaux,
queria todos os meus amigos e meus desconhecidos admirados, queria todos os
perseguidos da terra!!! Se é pra sonhar, por que preto e branco? Cinemascope
gigante! Eu sempre quis beber o mar – tempestade é aperitivo!
Quando explicava a ideia, as pessoas gostavam, desde que… o elenco fosse
formado pelos outros, não por elas. Alguns nem ficaram sabendo do meu carinhoso
propósito; outros, procurei pessoalmente: ninguém tinha tempo. Ou jeito. Ou os
dois. Mas achavam a ideia ótima! Porém, inexequível.
TARTUFO
O golpe contava com o apoio de grupos de extrema direita, Tradição, Família e
Propriedade e Liga das Senhoras Católicas… Essas senhoras organizavam ku-klux-
klanescas e diabólicas Marchas com Deus pela Liberdade! Percorriam ruas de São
Paulo, ameaçadoras, com a insolência dos galinhas-verdes da minha infância.
Religiosíssimas, educadíssimas, descobrindo a liberdade das ruas, diziam palavrões a
quem quer que tivesse cara de povo. Felicíssimas, escoltadas por policiais a cavalo,
vociferavam, alto e bom som: Filhos da puta! e outras delicadezas que, antes, só em
pensamentos envergonhados, no banheiro a sete chaves.
Passeatas de salto alto. Senhoras ricas caminhavam excitadas pelas ruas
proletárias, o que jamais teriam feito em calmarias políticas. Figurinos de missa
dominical, reafirmando sua condição de católicas não discutam comigo! Atrás do bloco
de salto alto, ia o bloco das babás, governantas, criadas fiéis; atrás, motoristas
motorizados: cada senhora trazia seu automóvel para qualquer emergência
desmaiada. Seguranças armados, poucos: a época não estava madura para essa
profissão. Hoje, está podre.
As senhoras usavam o procedimento mais antirreligioso que se possa imaginar:
Deus deixava de ser Juiz Supremo e passava a seu aliado na luta contra a esquerda.
Na verdade, marchas anti-Deus. Em suas rezas, reduziam Deus ao seu tamanho de
rezadeiras: deuzinho coscuvilheiro. Tartufo, de Molière.
Se queríamos continuar falando sobre nosso tempo, investigando a metáfora,
estava escolhida a peça! Guilherme Figueiredo havia publicado sua primorosa
tradução e os ensaios começaram.
Chegamos a negociar com Oscar Ornstein, no Teatro Copacabana, Guarnieri e eu,
em longas conversas e curtos uísques. Nossa imagem assustava empresários
profissionais: Boal e Guarnieri, juntos, perigo à vista – o que será que estarão
tramando!?
A ideia mãe de O processo acabou germinando, transformada em Opinião. Membros
do CPC da UNE, Gullar, Tereza Aragão, Denoy de Oliveira, que o produziram, e outros
que se tornaram autores do texto – Vianninha, Paulo Pontes, Armando Costa e João
das Neves – discutiam no Rio, como nós em São Paulo, a melhor resposta à ditadura.
Nosso ponto de encontro foi o show verdade: espetáculo no qual cantores, cantando,
contariam suas histórias.
A resistência contra a ditadura se organizava, depois do susto. Nos meios
intelectuais era ferrenho o repúdio aos militares e civis golpistas: subversivos que
haviam liquidado a legalidade. Inaugurou-se um restaurante intelecto-popular,
Zicartola (de Cartola e sua esposa, dona Zica), que servia comida brasileira, música
popular e inconformismos variados. Nara Leão conduzia alguns shows desse diálogo
gastronômico-político-lítero-musical, com nomes consagrados, como o dela, e
revelações: Zé Keti e João do Vale. O grupo escolheu esses três artistas para o
primeiro show. Começaram as entrevistas pessoais. Nosso antigo local da Siqueira
Campos voltou a se chamar Arena de São Paulo.
Ensaiei Tartufo enquanto se organizava o texto de Opinião. Convidamos alunas da
EAD, Assunta Perez, Myriam Muniz e Vanya Sant’Anna, que, na peça seguinte, se
casaria com Guarnieri.
Estreamos dia 2 de setembro de 1964, evitando provocações no dia 7! Tremendo
sucesso. Quem conhecia o texto espantava-se com o discurso do Oficial que vem
prender Tartufo e faz o elogio do Príncipe. Molière escrevia elogios ao monarca para
que Luís XIV autorizasse a representação: o texto criticava a nobreza, que, incômoda,
assistia aos espetáculos da corte. No monólogo final, dito magistralmente por Paulo
José, que falava com 300% de sinceridade, a plateia se encantava com a ironia do
texto, séculos depois de escrito. Elogiar o general Castello Branco, só mesmo Jean-
Baptiste Poquelin… [2 ]
Pessoas que nunca tinham ouvido falar de Molière aproximavam-se de nós,
Guarnieri e eu, e nos diziam coniventes, voz secreta: “A peça que vocês escreveram é
ótima! Essa ideia de assinar com pseudônimo pra enganar a censura, esse Molière
que vocês inventaram, fantástico, maravilha! Sabe que tem gente pensando que
Molière existe? Podem ficar tranquilos que não vamos contar a ninguém que ele é só
um pseudônimo de vocês!”.
Enquanto Molière em São Paulo dizia o que pensávamos, fui para o Rio dirigir
Opinião.
A PALAVRA É UM SER VIVO
Vianninha me entregou trezentas páginas de monólogos, diálogos e letras de música.
O espetáculo daria sete horas, feito na íntegra. Conversei com Nara, João e Zé pra
saber o que era essencial no depoimento de cada um: queríamos dizer a verdade,
mas não em tanto tempo: teatro quente, poeira, verão carioca, úmido. As trezentas
páginas minguaram: cinquenta.
Criamos nova forma teatral – eu queria teatro, não show: os atores deviam cantar
uns para os outros como quem se fala, se ama; não pra plateia ou microfones, como
quem se exibe, sola. Os cantores tinham dificuldade em se concentrar, vendo-se,
olhos e rostos. Cantar, para a maioria, era ato solitário no meio da multidão: a sós,
no meio da turba. Vendo luzes da ribalta, tudo bem: um ser humano à sua frente
desconcentrava o cantor.
O medo de olhar cara a cara era medo de se descobrir, de se ver no rosto do outro.
É impossível cantar olho no olho sem sentir a revelação da palavra pronunciada;
impossível ouvir só a música, puro som dançarino, sem a carne viva do poema. Se
canto para o microfone, a palavra é som, ritmo, volume, melodia, timbre… menos
significado, coração batendo. Eu queria que cada cantor se visse nos outros, quando
olhava. Que significasse o que dizia. [3 ]
Para mim, a palavra é um ser vivo. Ao escrever este texto, sinto alegria sensual,
corporal, vendo as palavras fugindo dos meus dedos e reaparecendo, alegres, na tela
do computador. Quando saem de mim, da minha cabeça e do meu sangue, primeiro
me miram e se deixam ver, em humano diálogo com a tela; depois, pedem licença:
vão partir. Em busca de alguém: você, leitor. Palavras são amigas que buscam novos
amigos.
Palavras devem ser acariciadas, amadas. Só assim se revelam. São mulher: só com
amor se revelam.
Beijo minhas palavras quando partem, como quem beija um filho, antes da
viagem. São filhas.
Palavras são irmãs: nascemos do mesmo ventre, em nossas veias brinca alegre o
mesmo sangue. Queremos, minhas palavras e eu, dizer os mesmos pensamentos,
amar o mesmo amor. Porém cada palavra tem sua própria individualidade
insubstituível. Sinônimos não são palavras que têm o mesmo significado, é
impossível: apenas significam parecido. Gêmeos univitelinos quase iguais, difíceis de
distinguir, não são a mesma pessoa.
Minhas palavras são gente querida, pulsam, respiram! Minhas palavras são eu, são
parte de mim: a melhor. Se quero saber quem sou, tenho o melhor espelho: as
palavras que digo, escrevo. Peças, livros. Sou eu. Outros pensam de outro jeito. É seu
direito. Quem sou eu para pensar que só o que eu digo é certo?
“Quando canto, não posso ver! Quero que a luz me cegue!”, disse um cantor.
“Cego, canto bem! De olhos abertos, não sei o que digo! Como Ray Charles, Stevie
Wonder, Andrea Bocelli e os ceguinhos cantadores das feiras do Nordeste. Sou
assim.”
Sei que os castrati atingiam agudos que, sem decepações, jamais atingiriam. Nem
por isso vamos cortar o que Deus fez! Nem fechar os olhos, feitos para ver.
Nosso show-verdade era diálogo: João lia a carta que escreveu ao pai, ao fugir de
casa, menino; lia para Nara, lágrimas rolando, lágrimas que vestiam suas palavras.
Nara respondia com ternura, olho no olho, carinhosa: “Carcará. Pega, mata e come!”.
Era diálogo, teatro, não show… Me entendam: não tenho nada contra shows, adoro,
mas… faço teatro!
Eu queria que dialogassem com as letras da música, de forma dramática, não
lírica. Isso me obrigava a cortar uma canção pela metade, usar só alguns versos.
Havia resistências: “Se a plateia escuta e gosta, vai querer escutar inteira!”.
Eu queria que escutasse não apenas a música, mas a ideia que se vestia de música!
Opinião não seria um show a mais. Seria o primeiro show de uma nova fase. Show
contra a ditadura, show-teatro. Grito, explosão. Protesto. Música só, não bastava.
Música ideia, combate, eu buscava: música corpo, cabeça, coração! Falando do
momento, instante!
Não foi fácil convencer João e Zé a serem atores: deveriam ser eles mesmos e
personagens, não só cantores. Nara entendia rápido e me ajudava a convencê-los.
Excelentes cantores, envergonhados atores. É difícil representar personagem, ainda
mais a si mesmo, diante de plateia atenta. Concordavam em ser uma coisa ou outra,
eles ou personagens: ao mesmo tempo, era complicado. No entanto, era isso o
teatroverdade.
Cada um representava a si mesmo e a sua classe. Zé vinha do morro descendo
para o asfalto; João, o Nordeste vindo ao Sul. Nara, moça de Copacabana, inteligente,
representava ela mesma e outras moças que, como ela, não perdiam a cabeça
malhando o corpo.
Eu sentia carinho enorme pelos três. Especial por Nara, que tanto me ajudou,
amiga. Minha vida pessoal mudava, naquele momento difícil, eu me separava da
minha primeira mulher; Nara me ajudou a ver caminhos, conselheira.
Dori Caymmi foi o diretor musical. A “imensa” orquestra se compunha de violão,
bateria e flauta. Mais nada. O cenário, madeira de obra. Refletores, meia dúzia,
celofane à guisa de gelatina. Figurinos, a roupa do dia a dia.
Microfones, três; a mesa de som, repousando em cima de pernas desiguais,
madeira tosca, resvalava a cada descuido, enviando disparos agudos. Opinião
alternava momentos de pura beleza com explosivos desastres eletrônicos…
Ganhavam os primeiros.
Era difícil trabalhar com pessoas-personagens. Imaginem um diretor explicando
ao ator a sua concepção do personagem e o ator (personagem) respondendo que não
é nada disso. Assim foram os ensaios de Opinião. Eu falava com o personagem e quem
me respondia era o ator. Falava de significados e me respondiam os significantes.
Não só na parte artística os ensaios foram complicados – nas relações humanas.
No começo, como não tínhamos onde ensaiar, Nara emprestou a sala de sua casa,
onde moravam os pais, na avenida Atlântica, vigiando o mar. Os ensaios eram
curtos: João se cansava e eu dizia que era a bebida. Ele jurava que não.
O dr. Jairo, pai de Nara, notou que as garrafas de single malt escocês esvaziavam-se
com rapidez. Fez sutil observação: esvaziamentos haviam começado depois de os
ensaios se transferirem pra sua casa…
Envergonhados, tomamos a decisão: nunca mais tocar nas garrafas que se
exibiam, sensuais, ao alcance da mão nervosa.
João explicou, com seriedade, que precisava beber porque, se um pouco de álcool
não entrasse pela goela adentro, a voz não lhe sairia pela garganta afora. Propus que,
depois de cada ensaio, fôssemos ao bar da esquina tomar cachaça.
“Tem que ser antes”, explicou João, “se não, a voz não sai! Eu conheço minha
garganta melhor que ninguém! É caprichosa.” Pensou e acrescentou: “Depois do
ensaio pode ser, mas aí já não é a mesma: é a cachaça do depois, e eu estou falando da
cachaça do antes… Essa ajuda a ensaiar; a outra, a dormir em paz…”.
Argumentei que, antes, a cachaça atrapalhava a concentração. João prometeu não
ficar de porre, precisava só de um gole pra ensaiar direito, eu reclamei, ele pediu, eu
protestei, ele não se conformava, eu desafiei: “João: amanhã trago uma garrafa cheia
até o gargalo! Vou me servir tantas doses quanto você. Nem mais, nem menos! Não é
concurso pra ver quem resiste, mas se você ficar com sono primeiro do que eu,
nunca mais permitirei nem cheiro de bebida durante os ensaios. Combinado?”.
João, que bebia desde menino, desde manhã cedo, riu do desafio e disse que,
antes dele, eu estaria dormindo em cima da mesa.
Cumpri a ameaça e trouxe cachaça mineira. João se servia uma dose, eu bebia
outra. O ensaio avançava, ele uma, eu outra, eu falava, ele uma, eles cantavam, eu
outra, uma dose pra lá, outra pro lado de cá.
Eu me sentia grogue mas aguentava, não queria passar a vergonha de ser
humilhantemente derrotado, até que João pousou a cabeça na mesa e roncou. Fiquei
admirado: como era possível que tivesse ganho de um bebedor contumaz? Embora
não fosse motivo de orgulho, me orgulhava: que resistência! Eu, campeão! Viva!
Nara esclareceu o mistério: vindo para o ensaio, havia encontrado João no
botequim, já meio bêbedo. As doses do ensaio tinham sido suave saideira: estava de
porre antes de começar o “concurso”…
Eram assim os ensaios: carinho, trabalho, arte e… infantilidade.
Veio a estreia. A plateia aliada, parte essencial do espetáculo, gritava nosso canto,
cantava nosso grito. Opinião éramos nós e a plateia!
Opinião foi o primeiro protesto teatral coerente, coletivo, contra a desumana
ditadura que tanta gente assassinou, torturou, tanto o povo empobreceu, tanto
destruiu o que antes chamávamos Pátria. Como coadjuvante sem cara – assim ficou o
Brasil perdido no mundo, e nunca mais se levantou –, gigante nocauteado em berço
de miséria.
Depois de três décadas de alienação, da Pátria resta a música.
A BILHETERIA NÃO PODE PARAR
Nara se dava ao espetáculo. Sua bela voz tinha corpo, suas canções exigiam corpo e
alma! No palco, o prazer de cantar o que o povo berrava na rua. Além do calor, chão
de poeira.
As cordas vocais de Nara não aguentaram: depois de semanas esplendorosas, seu
médico mandou dizer que ela não podia mais.
Nara indicou a solução: em Salvador, cantava uma cantora divina, Maria Bethânia,
que poderia substituí-la. Bethânia, quem? Ninguém conhecia. Alguém viu? Ninguém
tinha ido à Bahia.
Mesmo verdade, seria solução a longo prazo: o teatro lotado, não podíamos
esperar. Bethânia, supondo que fosse boa cantora, necessitaria quinze dias de ensaio.
Alguns discordavam de convidar Bethânia – o espetáculo seria desfigurado: o
texto girava em torno das diferentes origens geográficas e culturais dos seus
participantes, e Bethânia vinha também do Nordeste, como João. A Zona Sul ficaria
sem representante e, afinal, o show era em Copacabana…
Mesmo em dúvida, telefonamos para Santo Amaro da Purificação; a família Veloso
concordou, com uma condição: Bethânia, dezessete anos, só viria se fosse
acompanhada por um dos seus irmãos mais velhos. Vieram.
Na mesma noite, procuramos Suzana, filha de Vinicius, que ensaiava com
Ziembinski. Protestando ser atriz que cantava e não cantora, concordou em cantar
conosco se o Zimba permitisse. Ele autorizou uma semana. Se Bethânia aprovasse,
entraria Suzana, dando tempo pra Bethânia ensaiar. Suzana cantou sua história.
Eu me lembro da quinta-feira quando chegou Bethânia, ainda Berré, agarrada ao
braço ao irmão. Queria que eu ouvisse seu canto: eu não tinha tempo. Mergulhado
nos ensaios, não podia ouvi-la; preocupado e me sentindo culpado de jogar Suzana
no fogo só porque o show não pode parar – quando está lotado, não pode mesmo:
quando não, para sozinho… Show pode: bilheteria, não.
Pedi desculpas a Bethânia e prometi que depois da estreia ouviria todos os
repertórios que ela quisesse cantar. Só então reparei no irmão magro, tímido, e
perguntei seu nome.
“Meu nome é Caetano.” “Do quê?” “Veloso.” “Ah…”
Voltei aos ensaios. Suzana estreou num sábado, do jeito que ela queria: uma atriz
que cantava. Tão boa atriz, interpretava uma grande cantora. Aplaudimos as duas.
Obrigado, Suzana e Ziembinski.
BERRÉ, BETHÂNIA
Depois da estreia, chamei Bethânia e Caetano. Fiquei de costas para a entrada do
teatro, no meio da arena, os dois sentados na minha frente, prontos para o teste.
Ouvindo a primeira música, tive a certeza de que a convidaria. Pedi mais.
Impressionado com sua voz, pedi que fosse cantando, e canta mais e outra mais. Já
não era teste, puro prazer de espectador privilegiado – ela cantando só pra mim.
Com Caetano acompanhando ou sozinha, foi cantando para o meu silêncio, nós três
sozinhos. Eu queria mais. Canta, Bethânia, canta.
Sozinhos? Ouvi barulho atrás de mim; olhei e vi a plateia quase lotada.
Espectadores, já na rua ou no bar da esquina, ouvindo a voz estranha, insólita, bela,
vieram assombrados: de novo, o teatro se encheu.
Essa foi a verdadeira estreia de Berré no Rio de Janeiro: a noite do teste!
Bethânia, figura impressionante: menina magra convicta, sólida voz que voava,
enchendo a cena, descendo escadas, fugindo pelas janelas, transbordando ruas,
avenidas, praias. Cedo, a voz de Bethânia transbordaria por toda Copacabana, Rio de
Janeiro, Brasil, mundo afora.
A figura impressionava: eu queria que a plateia ouvisse sua voz, antes de vê-la. Ver
a voz, antes de ouvir a imagem.
Ela tinha pedido pra cantar “É de manhã”, de Caetano, como sua primeira música.
Eu pedi que começasse a cantá-la no camarim. Escureci a arena para que Bethânia
entrasse no escuro em busca da sua flor. Vinha vindo a barra do dia, “a barra do dia
evem”, e, quando o galo começou a cantar, no fim da canção, só então a luz se abriu
como a flor, banhando sua imagem de alvorada.
Era de manhã, sim, Bethânia, como dizia a canção do teu irmão: era a linda
manhã da tua bela carreira, que nunca terá noite.
O POVO – ACHADO E PERDIDO
Triste felicidade. O Arena, no Nordeste, havia encontrado o nosso povo; o CPC, no Rio,
encontrara o seu. Embora dialogando com o povo, continuávamos donos do palco, o
povo na plateia: intransitividade. Em Santo André, pessoas e personagens
engalfinhavam-se em cena – isso aconteceu em um dia, um só: o verão precisava de
mais andorinhas – águias, carcarás.
Consolo: nossos cantores eram a encarnação do povo em cena; outros, em
discórdia, diziam que eles ali estavam na condição de cantores, não na de povo.
Outros redefiniam o conceito de povo, para incluir setores da burguesia interessados
na emancipação econômica nacional – isto é, os bons burgueses. Ameaçava-se
esvaziar a noção de povo. Se eu, tu, ele, nós, vós, eles, se tudo é povo, povo não existe.
Corria-se o risco da expropriação. O povo perderia sua identidade, nome próprio:
todo mundo passava a se chamar José da Silva e Maria Ninguém.
Continuava a divisão de classes, perdão, palco e plateia: um falava, outro escutava.
A plateia cantava no coro, mas não interferia no enredo. Agora, com a repressão,
nem palco nem plateia: o povo tinha sido expulso dos teatros, sindicatos,
associações, paróquias – povo proibido. Teatro outra vez assunto de classe média e
intelectuais. Cada povo no seu canto, cada vaca no seu box. Dando leite, trabalhando.
Opinião provocou a mesma polêmica na nossa fase realista: não é musical nem é
teatro – é o que então? Fui pra São Paulo inventar, com Guarnieri, Edu e elenco, o
nosso bem-amado Zumbi.
ZUMBI, DOS PALMARES AO III EXÉRCITO
Zumbi foi a cristalização das experiências que havíamos feito. Sabíamos que não
iríamos dialogar com o povo. Mostraríamos a nossa cara. Não me chamo José, não
me envergonho. Nunca passei fome nem senti frio, sempre morei em conforto.
Éramos classe média. Pois bem: o cenário seria tapete vermelho felpudo, classe
média como nós (hoje detesto tapete vermelho felpudo…). Figurinos? Como nos
vestíamos? Jeans. Pois jeans e camisas coloridas, cada qual de sua cor. Foi essa a
cenografia minimalista de Flávio Império.
O espetáculo era como se um grupo de amigos invadisse a sala de visitas, onde
outros amigos, a plateia, vestida de classe média, nos esperasse. Pra que não
houvesse a mais mínima esvaída sombra da mais remota e longínqua dúvida, o
elenco cantava em coro: “O Arena conta a história /pra você ouvir gostoso:/quem
gostar nos dê a mão,/e quem não, tenha outro gozo!”.
Tinha que ficar claro: quem contava a história era o Arena!
Sistematizei o Sistema Coringa: nenhum personagem seria propriedade privada
de nenhum ator. Todos tinham o direito de interpretar qualquer personagem,
homens papéis de mulheres e vice-versa. Atores se destacavam dos personagens, que
passavam de mão em mão. Verfremdungseffekt levado às consequências últimas.
Para que nenhum personagem ficasse associado a nenhum ator, nunca seria
interpretado pelo mesmo ator em cenas sucessivas e todos deveriam manter o
mesmo gesto social de cada personagem. Cada personagem tinha um jeito de ser,
imagem preferencial que seria reconhecida, fosse qual fosse o intérprete do
momento.
Isso permitia que apresentássemos personagens da maneira que eu vinha
buscando desde O processo, onde cidadãos perseguidos interpretariam personagens
como eles, vivendo em sociedade autoritária.
Em Opinião, cantores confundidos com personagens, cada qual era um e outro; em
Zumbi, os atores se retiravam dos personagens e os revelavam à distância: é ele, não
sou eu.
Opinião era show-verdade. Não poderíamos continuar fazendo shows-verdade,
convidando três generais golpistas, três senhoras de salto alto, três operários
desempregados, três camponeses subnutridos, três professores universitários sem
trabalho, três o que quer que fosse, para que dessem seus depoimentos: não viriam.
Os personagens que queríamos apresentar tinham que ser separados dos atores. Para
isso servia a interpretação coletiva, o rodízio.
A interpretação coletiva permitia separar o essencial da circunstância. Na nossa
etapa realista, boa parte do trabalho do ator consistia em desenvolver singularidades
do personagem que não tinham incidência sobre o seu significado social. Aqui, esse
significado era mostrado como máscara social. As singularidades pertenciam ao ator; o
essencial, ao personagem.
O espetáculo era interrompido pelo Coringa, mestre de cerimônias, exegeta,
explicador, diretor de cena, animador de programa de auditório, contrarregra como
o kurogo, [4 ] e podia interpretar qualquer personagem, quando necessário. Explicava
significados escondidos. O Coringa – sempre o mesmo ator – nos representava a nós,
Arena. Começo do diálogo com a plateia, que eu viria mais tarde a desenvolver
plenamente com o Teatro do Oprimido.
A presença do Coringa permitia salutar caos estético: todos os estilos e gêneros
teatrais seriam permitidos no mesmo espetáculo. Essa variedade, dado que não
tínhamos cenários e poucos figurinos, era limitada à interpretação dos atores.
Curinga, essa função multidimensional, multifária, nasceu com Zumbi. O nome
vem do baralho: joker, giolli, comodin. E do Japão, kurogo…
Começamos a ensaiar o primeiro ato da peça quando o texto ainda estava sendo
escrito; eu fazia a marcação do primeiro ato quando o diálogo do segundo ia em
meio.
Em Zumbi, outra vez, a metáfora. Usamos a República Negra formada por escravos
que se libertavam – os capturados ainda escravos, escravos permaneciam em
Palmares, que ocupava superfície maior do que a península Ibérica. Palmares se
desenvolveu por um século no Nordeste do país até ser destruída por uma coligação
de portugueses e holandeses, quando o seu poder comercial ameaçava a hegemonia
branca. Palmares resistiu até o último homem. Numância.
Queríamos resistir.
O texto usava jornais. Um discurso do comandante analfabeto, Don Ayres,
destruidor de Palmares, foi copiado ipsis litteris do ditador Castello Branco falando ao
III Exército: nosso Exército se converteria em gigantesca polícia, o verdadeiro inimigo
(nós!) estando dentro e não fora das nossas fronteiras. Como foi possível essa ideia
monstruosa entrar na minúscula cabeça daquele general? De onde veio? Veio do
Norte!
Zumbi nos deu alegria, até financeira. Durante anos, quando um espetáculo não
atraía público, voltava Zumbi: o teatro, magicamente, transbordava.
Curiosidade: o Arena não tinha ar-condicionado, apenas um sistema de exaustão
de ar com a boca escancarada. Nunca entendemos por que razões animalescas,
quando o elenco atacava “Upa, neguinho” – só nesse e em nenhum outro número
musical! –, um bando de ratazanas aparecia, focinho e parte do corpo à mostra, e
ficava ouvindo a música, em respeitoso silêncio.
Sempre soube que animais gostam de música: são Francisco cantava afinado, a
bicharada vinha escutar. Mas ratos?!?! Estranho. Silenciado o violão, as ratazanas
davam-nos as costas e só voltariam no próximo “Upa, neguinho”, dia seguinte…
Nunca saberemos por que o “Neguinho”. Por que não “Dandara” ou a “Canção do
trabalho”? “Tempo de guerra”? Quem saberá um dia que ventos sopram na alma de
uma ratazana?
BAHIA EM TEMPO DE GUERRA
Vítimas do sucesso: os cantores de Opinião, especialmente Bethânia, tornaram-se
estrelas demasiado luminosas. Seguiram seu destino em solo.
Bethânia me pediu que dirigisse um espetáculo só com ela. Juntamos músicas de
que ela gostava, outras que eu preferia, e demos o título de Tempo de guerra,
inspirado numa canção do Zumbi, inspirada em Brecht. Salvador: a estrela voltava à
sua terra.
Bethânia queria ajudar seus amigos baianos, lançá-los no Sul, onde eram
desconhecidos. Além de Caetano, ela me apresentou Maria da Graça (que virou Gal
Costa), Gilberto Gil, Tom Zé e Piti e com eles fiz um segundo ato, músicas de
Caetano e Gil, e um texto lírico de Caetano sobre a madrasta que enterrava a
enteada no jardim – e os cabelos cresciam como flores. Estreamos o novo Tempo de
guerra no Oficina.
Decidimos fazer um musical contando histórias de nordestinos que vinham para
o Sul em busca de trabalho, fugindo da fome. As canções de Arena canta Bahia foram
escolhidas pelas letras, para contar uma história de retirantes. Não era seleção das
mais belas músicas baianas: eu queria mostrar famílias que sofriam seca e buscavam
miragens de esperanças. Gente com medo de sonhar colorido: sonhava preto e
branco. Sonhavam gotas de orvalho, sem coragem de sonhar oceanos.
Caetano não se conformava: inconcebível espetáculo cujo título continha a
palavra mágica, Bahia, Caymmi estando ausente.
Sempre gostei de Caymmi. Confesso um segredo: “Marina” é das poucas músicas
que me atrevia a cantarolar, jovem – a léguas de qualquer tom inteligível, mesmo
assim, cantava! –, no meu Chuveiro Iluminado, portas hermeticamente fechadas, à
prova de som e bala. Caymmi conseguiu fazer isso comigo – me autorizou a cantar!
Obrigado, Dorival.
Não se tratava, porém, de gostar ou não, mas de escolher músicas que
condenassem a ditadura, cada vez mais desumana.
Eu explicava ao Caetano que, fazendo show carioca contra a ditadura, incluiria
todos os “acender as velas” que encontrasse pelo caminho, todos “podem me
prender”, mas nunca o pato, que vinha cantando “quém, quém, quando o marreco
sorridente pediu para entrar na roda também, muito bom, muito bem”…
Claro que gosto do João Gilberto, baiano carioca, mas nem patos, gansos,
marrecos e outros galináceos serviriam para combater a ditadura que preparava a
noite de chumbo que já temíamos, mas de cuja amplitude nem sequer
suspeitávamos.
Em Arena canta Bahia, ninguém dizia, lírico, que era doce morrer no mar; não se
brigava com Marina porque pintou os lábios. Caymmi é bom, Caetano, eu sei. Gosto
dele e de você. No meu Chuveiro Iluminado, onde não corro riscos, cantarolo Dora,
Irene… Ninguém ouvirá meu canto e a banheira é rasa.
PLÍNIO MARCOS E O MANETA VALENTÃO
Os ensaios serviram para me confortar na opinião de que a palavra é um ser vivo. No
palco do TBC, ensaiando, passamos o primeiro ato. Musicalmente, perfeito. Os
cantores cantavam a música, mas nada saía de dentro deles, além da voz.
Pedi que ensaiassem outra vez o ato inteiro, mas… sem a música: apenas texto,
procurando senti-lo, compreendê-lo. A atmosfera do ensaio mudou e a atenção dos
cantores, ao invest da musicalidade, concentrou-se no conteúdo do que cantavam.
Falava-se de nordestinos, como eles. “Eu vim da Bahia… mas algum dia, eu volto pra
lá…” Gil não se conteve e chorou.
Foi lindo ver um cantor dizer o texto, emocionado. Chorar porque ninguém pode
dizer “algum dia, eu volto pra lá” sem pensar em lá, sem pensar nas razões da
partida, gente que fica pra trás… Por que partir, voltar pra quem?
Gil chorou; o elenco, olhos úmidos: o espetáculo tinha coração. Teatro tem que
ser em carne viva. Do contrário, é entertainment…
A censura desconfiou da ausência de patos e marrecos e inaugurou a tortura
chinesa. Pior que piorar, ficou sádica, rindo da nossa dor.
Nossa intenção política era evidente; antes da estreia, o censor cortou o que
poderia parecer crítica. Reconstruímos o roteiro cinco vezes, mestres na arte da
metáfora, e ele acabou aceitando a última versão.
Sucesso! Perdição nossa: os espectadores compreendiam significados
desapercebidos ao censor: ele voltava, mostrando novos cortes. Caetano, memória
prodigiosa, lembrava todas as canções jamais escritas; escolhíamos a que, não sendo
ideal, servia às nossas metáforas. O duelo com o censor tinha um lado criativo.
Até que um dia – tudo tem limite! – corríamos o risco de não ter mais repertório
para substituir as canções cortadas. Tentei convencer o censor: resistiu, enérgico –
subversão, nunca mais! Abaixo o socialismo, o comunismo, o anarquismo, a Utopia
de Thomas More, A cidade do sol de Campanella, a República de Platão, abaixo tudo!
Jornais de São Paulo publicavam espaços brancos no lugar dos textos cortados e
logo foram proibidos de publicar espaços brancos. Outro jornal publicava receitas de
cozinha nos espaços censurados e, não raro, o leitor se aparvalhava lendo que “A
cúpula militar reuniu-se secretamente e decidiu que… as beringelas devem ser
mergulhadas em água quente antes de ir ao forno, quando só então será colocado o
queijo parmigeano”.
Berinjelas no lugar de medidas repressivas. A censura proibiu a arte culinária. O
jornal usou versos de Os lusíadas, de Camões: “A equipe econômica, depois de se
reunir com o presidente, decidiu que… as armas e os barões assinalados, que da
ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados, passaram ainda além da
Taprobana…”.
Resolvi fazer o mesmo e dei ultimato ao censor: ou permitia as músicas ou eu
faria substituições ridículas que ele não poderia proibir. Quais? “Parabéns pra você”
e “God Save the Queen”!
O censor refletiu e me tranquilizou: podia dar a minha aula, descansado. Liberou
geral. Fui para a Escola de Arte Dramática.
Vieram me chamar: do teatro, pediam que eu regressasse porque o censor havia
chamado a polícia e os cantores, trabalhando, seriam presos logo depois do
espetáculo; aproveitavam para cantar músicas proibidas – pra que economizar na
transgressão?
Voltei e tudo já estava resolvido, atores liberados. Não sem alguns episódios
cômicos.
Por exemplo: Plínio Marcos, autor de Navalha na carne, então em cartaz no Arena,
era o administrador da nossa companhia. Sincero, dizia o que pensava usando
linguagem próxima à dos seus personagens lúmpens – em cada frase, dois ou três
palavrões que não poupavam a ascendência direta do censor. Este, maneta – tinha só
o braço direito, com o qual cortava, ávido, nossas peças –, enfurecido, agarrou Plínio
pela camisa, com sua única mão, ameaçador: “Se você não parar de xingar a minha
mãe, eu te dou um soco!”.
“Duvido! Você não vai dar soco em ninguém!”
“Duvida por quê?”
“Se quiser me dar um soco, vai ter que me largar… e aí eu fujo…”
No intervalo, o elenco informou à plateia que seriam presos tão logo terminasse a
função; espectadores solidários foram comprar sanduíches e depositá-los no palco,
como corbeilles de flores em noite de estreia…
“Não tem um conhaquezinho, não?”, perguntou uma voz feminina e logo
apareceram garrafas de cachaça na ribalta.
Nos dias seguintes, rotina: cortes. O espetáculo mais esquálido e plateia
minguada. Em um mês saímos de cartaz por falta de público.
Hoje, cada um desses cantores, sozinho, lota Maracanãs.
1 Granma: jornal cubano, assim chamado em homenagem ao barco no qual Fidel e seus companheiros
desembarcaram em Cuba.
2 Verdadeiro nome de Molière.
3 Os olhos são a parte mais vulnerável do corpo humano – a não ser quando voluntariamente o fazem, as pessoas
não se olham olho no olho por muito tempo. Sabem que os olhos revelam até pensamentos inconscientes, aquele
fluxo do pensamento que não chega sequer a ser verbalizado pelo pensante. Olhos emitem mensagens que não
sabemos quais são. Não queremos oferecer aos outros nossos olhos, nosso olhar, porque não queremos que o
nosso interlocutor leia em nossos olhos aquilo que nós próprios não podemos ler; não queremos revelar segredos
que guardamos escondidos até de nós mesmos, e que os olhos, traiçoeiros, divulgam sem pudor…
4 Ator que, na forma teatral japonesa de Kabuki, vestido de preto e supostamente invisível, realiza tarefas como
a de retirar cadáveres ou cenografias de cena, para que a ação possa continuar sem obstruções.
CAPÍTULO 18
HEROÍSMO E INCONFIDÊNCIA
Zumbi foi, para nós, revolução. Precisávamos entendê-la antes de avançar. Um crítico
conhecido escreveu que nossa peça não era peça, nosso espetáculo não era teatro,
nossos atores eram bailarinos e cantores… Zumbi não era revista porque não tinha
cortinas políticas nem coristas, nem cataratas de água jorrando multicoloridas; não
era musical da Broadway porque não tinha casal romântico nem grandiosidade
cenográfica; não era ópera sem árias e sem duetos, sem vozes líricas em cinco
oitavas; não era circo sem palhaços. Não era nada. Sound and fury. Copiando
Shakespeare, só lhe faltou dizer… and meaning nothing. Isso não disse: sabia que Zumbi
significava alguma coisa, embora não soubesse o quê.
Colegas diziam parecido, exaltando nossas acrobacias, que não era competição de
atletismo, nossa coreografia, que não era balé e nossas vozes – não éramos Elis
Regina. Então o que era? Sucesso!
Sempre que inventei um novo estilo tive que suportar a crítica: “O que você fez é
ótimo mas não é teatro!”. Tenho vontade de dizer: Eu sou teatro! Teatro é o que faço! –
vontade calada, não digo!
Quando são opiniões sinceras, mesmo equivocadas, aceito. Opiniões, cada qual
tem as que maneja. Pior é quando essas opiniões significam ausência de subvenções.
Na França, íamos pedir dinheiro ao Ministério da Cultura, recebíamos os maiores
elogios – nosso trabalho, extraordinário, inovador, divino, maravilhoso! Quanto ao
dinheiro, vinha o conselho: devíamos procurar o Ministério da Educação, nosso
teatro era magnificamente pedagógico. Na Educação explodiam louvores, gritos de
entusiasmo, hip hurras! Dinheiro? Fôssemos procurar o Ministério da Saúde: nosso
trabalho era terapêutico, nada melhor do que o Teatro do Oprimido para curar
neuroses, psicoses e síndrome de Down… Íamos ao Ministério da Saúde, indicavam
Relações Exteriores, já que nosso método era aplicado em todos países africanos, ex-
colônias.
Se quiséssemos montar Hamlet, seríamos enviados ao Ministério da Metafísica,
porque essa história de ser ou não ser, francamente… não é teatro… Indagações de
além-tumba… Religião, ocultismo, esoterismo, espiritismo – não Arte com A
maiúsculo.
O INSPETOR GERAL
Nova metáfora: O inspetor geral, de Gógol. Sua relação com a realidade brasileira era a
mesma de Tartufo. Não precisávamos modificar o texto para que fosse cristalino.
Vantagem: Tartufo era retrato de um tipo genérico de gente que existia no Brasil; era a
concreção do pensamento das senhoras católicas de salto alto e cavalheiros de charuto que
defendiam tradições imperiais. O inspetor tinha endereço certo: o governador de
Gógol era o nosso governador. Sua esposa, a sua.
Na verdade, em cada uma dessas peças do período de nacionalização dos clássicos,
a metáfora funcionava de maneira diferente, ora voando alto – A mandrágora, onde
vagamente se entendia a relação entre amor e poder –, ora colada à pele de
personagens contemporâneos – O inspetor geral. Meio-termo, Tartufo, que falava de um
tipo de gente imprecisa: podia ser este ou aquele.
Nosso governador, como o de Gógol, admitia ser ladrão, porém com atenuantes:
era o dinâmico construtor de São Paulo… “Ele rouba, mas faz!” – o slogan que
inventou, ainda hoje outros políticos brasileiros usam com descaro! Outros, não
usam o slogan, apenas o exemplo.
Golpistas são vorazes; o governador, o mais comilão. Gula chacalesca. Nosso
governador foi dos primeiros a serem deglutidos pelo golpe que havia ajudado a
parir.
O inspetor geral, metáfora pegada à pele, lotava sempre. Plateias reconheciam
nome e sobrenome. Gógol nos ensinava a ver aqueles que apenas olhávamos na
nossa política.
No meio do mandato, o governador sofreu impeachment: pego com a mão no
cofre escancarado – roubava demais da conta, à vista de todos. A corrupção, no
Brasil, sempre existiu. Roubava-se e rouba-se à farta. Um nosso embaixador na
Europa era conhecido nas pouco diplomáticas rodas da diplomacia como o Monsieur
Le Dix Pour Cent – cobrava essa parcela em suas intermediações comerciais
aveludadas. Dizem que, no fim da ditadura, o desconto usual teria passado a vinte.
Hoje ninguém sabe. Só sei que o povo passa fome. Sei que o Brasil é rico.
No dia em que foi destituído a lotação da peça caiu pela metade. Tinha perdido o
interesse. O inspetor estreou no dia 13 de maio – aniversário da libertação dos
escravos – de 1963.
Libertação? Ficou mais econômico para os senhores empregar operários livres – a
quem nada pagavam, além do pálido salário – do que manter escravos em suas casas
e plantações. A estes, os senhores se obrigavam oferecer abrigo e comida! Quem se
libertou, dia 13 de maio, foram os senhores – libertaram-se das cargas econômicas,
onerosos vínculos escravatícios. Escravos foram postos na rua sem indenização pelo
tempo de cativeiro, sem segurança alimentar ou habitacional. Sem esperanças. Até
hoje, favelas!
Durante o Inspetor, fui convidado a dirigir em Buenos Aires, Teatro IFT. Escolhi O
melhor juiz: engraçado traduzir nosso texto para o estilo de Lope. Segunda peça, A
mandrágora.
Não aprendi nada de novo e pouco ensinei; de novo e importante, vim de Buenos
Aires com Cecilia Thumin, como esposa, e Fabián Silbert, meu filho.
Lembro do exato momento em que me senti pai. Fabián tinha ano e meio quando
nos conhecemos e se habituou a me trazer o jornal na cama, pela manhã. Imitava o
jornaleiro que, na rua, gritava às cinco da tarde: Diariôôôôôôô…
Lendo aquele diário, pela manhã, senti que podia ser pai. Tornei-me. Sem-
duvidamente, como diria Jorge Andrade. A partir daquele momento, sou pai. Graças
ao Diáriôôôôôôôô do Fabián Silbert.
Mais pai me tornei quando Fabián aprendeu a dizer a palavra mágica: pai. Ouvir
essa palavra dita por uma criança que te olha no olho, cara a cara, é forte. Emociona,
responsabiliza. Fui adotado por ele. Aceitei. Embarquei solteiro… e retornei ao Brasil
família.
Meu próprio pai me vinha em sonhos falar de responsabilidades paternas. Não era
só de mim que eu tinha que cuidar. A vida era difícil, o teatro cada vez mais
marginalizado, precisávamos de segurança! Tentei organizar minha vida nova.
CORINGAS E HERÓIS
O tema era a resistência à ditadura. Liberdade cidadã e estética. Escolhemos a
Inconfidência Mineira.
O Sistema Coringa definiu-se. Estávamos contentes com a separação de
personagens e atores. No distanciamento brechtiano, o personagem encarnava no
mesmo ator: só Helene Weigel era a Mãe Coragem. Aqui, cada personagem flutuava
de ator em ator. Simples acorde de violão – zás! –, atores e personagens trocavam de
par.
A perda da empatia e seu tremendo poder de convencimento, no entanto, que
pena! Queríamos reconquistá-la. Decidimos que o protagonista seria sempre o
mesmo ator. Em Arena conta Tiradentes, David José era o único Alferes. Os demais se
revezavam.
Razão e emoção, queríamos tudo, na maior intensidade, alta voltagem. O
Protagonista não entendia; o Coringa dava Explicações, para que não restasse dúvida
quanto às intenções, à situação social e política da sua época e da nossa.
Introduzimos as Entrevistas – o Coringa entrevistava personagens, quando
necessário, misturando níveis de consciência e de tempo. O Coringa, cidadão aqui e
agora, tinha o saber da nossa época e, no passado, a consciência do futuro: hoje; o
personagem, Inconfidente, distante no tempo, sabia o que era possível saber no seu
lugar e momento.
As Entrevistas substituíam os monólogos; fizéssemos Hamlet, provavelmente o
Coringa interrogaria o príncipe sobre as vantagens de ser ou não ser, e quais razões
da escolha. Introduzimos também a Exortação final para estimular espectadores a
resistir ao fascismo que se instalava.
Tiradentes – a música entrava de vez em nossas vidas. Nossos atores cantavam
afinados, mesmo se Carlos Castilho, regente, costumasse dizer, com maldade:
“Cantor, o músico acompanha; ator, a gente persegue…”.
Ciúmes: em recitais, o cantor pode seguir a orquestra. No calor de um drama, é a
orquestra que deve se sensibilizar pela emoção do ator: ela o persegue, sim, Castilho,
e deve. A emoção do ator é o verdadeiro regente da orquestra!
Chego a afirmar que isso já aconteceu no início da ópera como gênero teatral e
musical (1600, Euridice, de Jacopo Peri e Ottavio Rinuccini), e mesmo antes, na
Camerata Fiorentina (1585) quando o pai do Galileu Galilei, Vicenzo, propôs a
individualização do canto (monodia contra a polifonia) e a predominância da palavra
sobre a música: a música deveria servir à exaltação da poesia. Vamos parar por aqui:
não quero promover discórdias entre poesia e melodia – quero casá-las! [1 ]
Dois tipos de polêmica se instalaram. A primeira, sobre o papel dos intelectuais
em tempos de turbulência ou de paz. As cenas dos inconfidentes foram inspiradas
pela noite de 31 de março de 1964, na casa do Professor.
Aquela noite inútil tinha ficado em nossa memória como simbólica: intelectuais
davam-se o direito de indicar caminhos e… cruzar os braços. Como se ser intelectual
significasse o direito adquirido de não fazer nada além de pensar. Em Cuba,
intelectuais cortavam cana. Que direito tínhamos nós de exigirmos que os outros
fizessem tudo? Não seríamos nós parte desses outros? Fôssemos à luta!
Dúvida: deve um pianista cortar cana? Um cirurgião? Sou mais útil fazendo aquilo
que qualquer um pode fazer ou aquilo que só eu sei?
Fomos dramaturgos cruéis, sem maldade. Críticos impiedosos, sem ironia.
Convidamos participantes da noite de 31 para leituras de Tiradentes, sem armadilhas
– vieram sem se dar conta. Alguns se reconheceram sem se incomodar. Outros nem
se deram por achados. Hoje, com o tempo distante e a memória esfumaçada, ainda
menos se hão de achar.
Éramos contraditórios: acusávamos intelectuais de promoverem revolucionários
bate-papos, mas não fazíamos mais do que isso. Éramos intelectuais. Como nossos
criticados: escrevíamos, mas… ninguém pegava em armas.
Onde as armas? A curiosidade se acendeu em nós. A partir de Tiradentes, alguns de
nós começaram a pensar em ação efetiva: amaldiçoar ditaduras mentecaptas e
carrascas era pouco! Alguns queriam cumprir o que julgavam dever.
A segunda polêmica veio nos artigos de Anatol Rosenfeld sobre o espetáculo:
gostava, embora questionando a empatia. Respondi e continuamos nos respondendo,
estimulando-nos com nossas ideias não coincidentes. Que maravilha discordar, sem
desprezar a opinião alheia, sem se achar dono da verdade.
Não me aborrecem opiniões; inteligentes, respeito, mesmo se discordo. Me
desagrada a “infalibilidade papal” dos críticos, cuja palavra acreditam definitiva,
inapelável. Quando condenatória, destrói o espetáculo. A maioria escreve como juiz
que sentencia sem o sagrado direito de defesa.
Sonho com a instauração de hábito salutar: polêmica, não crítica. Seria lindo se,
no mesmo espaço do jornalista, o artista pudesse opinar. Não revide: diálogo.
Quando convidado, anos 1960, pela Última Hora, para ser crítico teatral, iniciei
uma coluna de debates onde eu era o coordenador. Dava meus palpites. Era ótimo:
todos podiam escrever, inclusive leitores.
Em Tiradentes, os críticos condenavam o culto ao herói. Brecht: “Feliz o povo que
não necessita heróis”. Eu concordava, gênero e número, mas não em grau.
Acrescento: o Brasil não é feliz, por isso, caro Bertoldo, necessitamos de heróis! Em
toda parte, a toda hora! Que proliferem, prolíficos! Heróis às mancheias! Urgente!
Para mim, o mito não é, em si, mistificador. Mito é a simplificação do indivíduo
histórico, guardando-se os traços essenciais do seu caráter, sua vida que, assim,
aparece magnificada no que se lhe atribui como essência. Torna-se mistificação
quando se magnificam circunstâncias não essenciais e joga-se no lixo da história o
que é importante. Guarda-se o pitoresco, perde-se o principal.
Cristo. Se mostrarem apenas seus padecimentos na cruz, estoicismo, se
esconderem seu poder mobilizador popular, estarão mistificando o mito. Che,
mostrando o cadáver, olhos entreabertos, rodeado de assassinos, isso é mistificação: o
homem derrotado. Mostrando-se o Che herói de Santa Clara, o homem que venceu
Batista, será então o mito sem mistificações. Num e noutro caso, não é necessário
contar a vida inteira do herói, falar na marcenaria paterna de Jesus ou da medicina
do Che – no entanto, é imprescindível selecionar o que se quer mostrar – nessa
escolha, estará o mito ou… a mistificação.
Por falar em Che, já que estamos nisso; em Jesus, já que estamos nele; em
revolução, já que é disso que se trata… vamos a isso.
GRUPOS ARMADOS
Em 1966, grupos armados começaram a se estruturar. Religiosos sinceros aderiram à
tese da luta armada: forma imediata de servir ao Cristo, como pregava no púlpito e
fazia na prática o padre Batalha. O Partidão perdeu militantes importantes,
descrentes na tese de duas burguesias, uma nacional, outra estrangeira: Marighella e
o velho Joaquim Toledo, meus amigos, fundaram a Ação Libertadora Nacional (ALN);
João Amazonas e o velho Arruda, o Partido Comunista do Brasil (PC do B). Tantos mais
foram-se embora, desgostosos. Estudantes e operários, perdidas suas estruturas
estudantis e sindicalistas, perdiam tudo, menos a esperança. Expulsos dos seus
territórios habituais, em algum lugar tinham que se encontrar.
Clandestinos: do contrário, seriam presos. Visto deste ângulo, a responsável pela
luta armada foi a própria ditadura que outra porta não deixou aberta. Conversava-se
escondido e se deslizava para a luta armada sem que se soubesse como. Um
encontro, uma confidência, e logo a pessoa já se sentia comprometida. Por isso, digo:
deslizava-se.
A luta armada era prolongamento natural dos encontros políticos: ninguém se
dava conta de como havia acontecido e já se havia tornado militante. Não havia
solenidade, como quem entra hoje para um partido político, discursos e brindes,
empadinhas de camarão. Bastava fazer, a um combatente, favor ou diligência –
transportar uma carta confidencial e perigosa, oferecer sua casa para que alguém se
escondesse à noite – e pronto, já se estava na resistência. Passo a passo, aprofundava-
se o comprometimento.
Muitos praticavam ações guerrilheiras sem calcular o perigo. Veio a repressão e
deram-se conta: jogavase com a vida. [2 ] Guerrilha: risco de vida. Alguns fugiram ou
morreram; outros se arrependeram – tarde.
Che proclamava: Ser solidário é correr o mesmo risco! Havia gente solidária, sabendo
que o risco era morte. Criar um, dois, três, mil Vietnãs! – pedia o Che. Era o desejo
revolucionário: enfrentar a violência imperialista em todo o mundo, ao mesmo
tempo! A CIA achava que um solitário Vietnã, minguado que fosse – o Brasil, por
exemplo –, já seria os mil Vietnãs sonhados pelo Che.
Lógico, havia gente honesta, patriota, que preferia não entrar para a luta armada
por conhecer seus próprios limites ou porque nela não acreditava. Coerentes com o
que pensavam.
Militares e civis que haviam subvertido a democracia – que nos chamavam de
“subversivos” quando eles próprios haviam derrubado o governo legítimo! – sabiam
que não contavam com apoio popular, só senhoras de salto alto e seus maridos de
charuto Havana, única concessão dos reacionários ao comércio com a ilha. O povo
buscava se organizar, sem ter como fazê-lo. Tinha que se esconder: encontrar-se já
era ato de clandestinidade. Grupos foram-se formando: conversas clandestinas…
Havia demasiados partidos e dissidências, dissidências das dissidências e
dissidências das dissidências dissididas, frações e microfrações, microfrações das
dissidências fracionadas. Meus companheiros que me perdoem: era difícil saber
quem estava em que organização, quem era aliado de quem, qual a organização mais
marxista, mais maoista, mais trotskista, qual a mais guevarista. E qual seria a mais
brasilianista?
Guerrilha literária: Regis Debray, sem ter culpa, foi causa de equívocos graves.
Seu livro sobre a teoria dos focos, baseada em diálogos bolivianos com o Che, fez
imenso mal à luta armada no Brasil. Foi tomado ao pé da letra. A batalha de Santa
Clara, para alguns combatentes brasileiros, poderia ser aqui reproduzida: bastaria
dividir nosso país em dois, criando-se focos e focos, até que ficasse metade do país de
cada lado e então… em sonhos… seria fácil. Acordados, percebíamos que Cuba era
longa linguiça e o Brasil, arredondado; ela pequenina, nós gigantescos. Sonhar era
cômodo… pra que abrir os olhos?
Eu me lembro que um importante líder guerrilheiro que, querendo me convencer
da justeza de suas estratégias, abriu em cima da mesa um colorido mapa do Brasil
cheio de montanhas e rios, mostrou a progressão inexorável das conquistas
populares: focos e focos, faltando só atravessar o rio São Francisco para que todas as
forças revolucionárias se reunissem num glorioso Exército de Libertação Nacional,
marchando sobre Pequim, digo, Brasília.
Lembro de que fiz pergunta sincera: nesse rio não tinha jacaré, crocodilo, perigo?
Tão fácil atravessá-lo? Nos mapas, jacaré não existe, nem malária, tifo, mosquito,
febre amarela: apenas cores azuis, amarelas e verdes. Nos mapas, as guerras são
rosas…
Nem sempre era assim. O censor podia não discutir e cortar sem piedade. No Black-
tie, Lélia Abramo interpretava a mulher de um operário. Quando descobria que o
marido estava preso na polícia política, gritava: “No DOPS? [1 ] Vão matar o meu
marido de pancada!”.
O censor cortou. Lélia não teve dúvidas: no dia da estreia soltou esta: “No DOPS?
Minha Nossa Senhora!!!”, e botou as mãos na cabeça. O impacto foi muito mais
teatral.
A negociação era um dos capítulos inevitáveis do processo de encenação. Rotina.
Não só os espetáculos teatrais eram sujeitos à censura: exposições de artes plásticas,
leituras, balé, shows, programas de televisão. Tudo que tivesse público. Quanto
maior, maior rigor.
Na TV, um amigo meu dirigia um programa, Collage: imagens e músicas! Misturava
o rugido de um leão africano com as ondas do mar no Havaí, chuva caindo no teto de
uma cabana com o ganido de um cão triste.
O censor descobria sempre ocultas mensagens subversivas. Quase férias, meu
amigo se preparava para viajar. Reuniu assistentes e pediu que imaginassem o
roteiro mais inofensivo, água com açúcar e cheiro de açucenas, que não pudesse ser
tachado de subversivo ou político.
Os censores viam subversão até em nuvem branca no céu azul, porque mostrava
sutilmente a controvérsia: por que branca? Não podia ser azul como o resto do céu?
Subversão, corta!
“Não vou perder um dia de sol no escritório da besta…” – isso aconteceu no
começo da ditadura, que ainda não usava microfones secretos.
Um assistente, olhando o vaso de plantas, reparou em uma minhoca que se
espreguiçava, lânguida: “Que é que tem essa minhoca?”.
“Está se espreguiçando…”
“Minhoca se espreguiçando vai ser estreia universal em TV. É plástico. Estético.
Vamos filmar a minhoca.”
Diretor e assistentes observaram os movimentos da minhoca. “É… tem alguma
coisa de sensual…”
“Misteriosa, cega como morcego! Pior, não tem radar de morcego. As minhocas
nem ao menos sabem de que lado está a cabeça. É obsceno.”
“Isso nos interroga sobre a essência humana…”
“Essência humana, um caralho! Eu quero é fazer esse programa logo e ir pra
praia. Olha o sol… Leva a minhoca pro estúdio…” E a minhoca foi sequestrada.
Eletricistas, cameramen, assistentes, maquiadoras, script-girls, o rapaz do
cafezinho, todo mundo alvoroçado querendo ver a estrela, que apareceu reclinada
em um vidro para criar sensação de espaço. Silêncio! Luzes! Câmeras! Ação!
Filmagem.
A minhoca, assustada, imóvel. Vendo – perdão, sentindo, minhoca é cega sem
radar, não vê: sente! –, sentindo a atenção que despertava, pôs-se a fazer meneios,
requebros. Câmeras filmando.
Terminaram e foram ver o vídeo. Primeiro minuto, fantástico! Parabéns! Segundo
minuto, tedioso: a coreografia, sempre a mesma: a minhoca cega não sabia ocupar
harmoniosamente o espaço, ficava decaída a um canto do vidro, como bailarina
dançando de lado. Terceiro minuto, insuportável: repetição enfadonha, ipsis
movimentus, dos mesmos balanceados. Desanimando, alguém teve a ideia cruel. “Se
está monótono, a culpa não é da minhoca.”
“Quem tem culpa, se não essa starlet desengonçada?!” – o diretor perdia
esperanças de praia, irritado com o fraco desempenho da minhoca.
“Ideia: quando ela começar a se repetir, a gente dá um estímulo, como se fosse
atriz humana. Todo ator precisa ser estimulado.”
“Ô, rapaz! Como é que se estimula atriz que, além de ser minhoca, o que já não é
virtude, tem a agravante de ser cega? Existe aí algum especialista em minhocas
cegas?”
“Não precisa especialista, basta bom senso. Vamos gravar outra vez. Quando ficar
chato, a gente pega um conta-gotas com ácido sulfúrico e deixa cair uma gota…
depois outra, mais outra…”
“Vai estimular assim no raio que o parta!” – meu amigo ficou horrorizado.
Ninguém tinha coragem de tomar a decisão cruel. Não por carinho pela minhoca:
medo da Sociedade Protetora dos Animais.
“A Sociedade só protege animais corpulentos. Barata, pulga, minhoca, gafanhoto,
cigarra, formiga, até rato, está tudo isento de proteção. Pode maltratar à vontade,
furar olho, arrancar perna. Não é pecado nem crime. Bicho pequeno não tem
neurônios, é insensível!”
“Se não tem neurônios…” – frase terrível, condenação à morte da bailarina pouco
inspirada. Ainda bem que, além de cega e sem cabeça definida, a minhoca era surda,
não ouviu.
Voltaram para o estúdio e as estruturas televisivas se puseram em movimento:
luzes, câmeras, microfones e… ação!
O primeiro minuto, bem ensaiado, saiu melhor e, como previsto, o interesse
decaiu depois.
Primeira gota de ácido. Pânico: a minhoca deu um salto, novas gotas foram
necessárias para fazê-la nadar e conter-se no retângulo de vidro. A emoção redobrou
com os saltos ornamentais. Ferida de morte, a minhoca perdia elasticidade na
proporção inversa das gotas de ácido sulfúrico que lhe caíam no lombo. Felizmente,
o segundo minuto estava concluído.
Continuaram gotejando ácido. Embora plácido, o terceiro minuto foi horripilante:
o esbelto corpo da minhoca se dissolveu no líquido, lento, até desaparecer. Mistério:
depois de dissolvido o animal, o ácido parecia ter adquirido uma espécie de vida e
latejava, pulsava, respirava. Lindo! Teria alguma forma rudimentar de alma aquela
minhoca?
Em silêncio – fúnebre! –, examinaram o vídeo. Se fosse possível ignorar a
Sociedade Protetora, era forçoso aceitar que – do ponto de vista estritamente
estético, repito, sem considerações de ordem ética ou biológica – o vídeo podia ser
considerado uma minúscula obra de arte.
Faltava som: collage cola alguma coisa com alguma outra, e a imagem com a
música. “Qual?”, perguntou o assistente. “Pega o primeiro disco que encontrar na
prateleira. Pra combinar com minhoca, nenhuma música é mais apropriada do que
outra. Não existe música de minhocas!”
Sem olhar – isso fazia parte da estética do Collage –, o assistente pegou o primeiro
disco que tocou sua mão: A cavalgada das valquírias, de Wagner! Mixou e mandou pro
censor. O diretor foi fazer as malas com maiôs, chinelos e chapéus de palha.
Antes de entrar no carro pra descer a serra, toca o telefone. Em bermudas, atende:
o censor achara o programa ofídico – foi o que disse, referindo-se à minhoca,
aparentada às cobras! –, demasiado politizado e com mensagem subversiva à flor da
pele.
Tirar férias é assim: problemas de última hora, sempre. Não havia remédio: tinha
que negociar. Foi falar com o fiel servidor da ditadura.
O censor começou elogiando a sofisticação das mensagens subversivas. Os artistas
brasileiros eram mestres na arte das alegorias, elipses e metáforas. Ele, censor,
especialista em detectá-las.
“Onde é que você viu subversão no meu programa?”
“Na minhoca: ela em pessoa. Um símbolo. Minhoca vive embaixo da terra. Vocês
querem dizer, com essa alegoria, que o povo brasileiro, qual triste minhoca, vive
escondido, humilhado. Esse foi o segundo símbolo que eu detectei!”
“Qual o terceiro?”
“O ácido sulfúrico! Pra vocês, subversivos, ácido significa o governo militar que
pra vocês é o torturador da população.”
O diretor, sem ânimo pra responder, perguntou assim mesmo: “E Wagner? Por
acaso Wagner também tem simbologia…?”.
“Claro: foi por aí que comecei, foi o primeiro símbolo. A música de Wagner me
deu a chave para interpretar o resto.”
“O que é que Wagner simboliza?”
“Hitler tinha intensas simpatias pelo Wagner. Pra vocês, Wagner significa
nazismo, porque vocês pensam que nós, militares, somos nazistas! Mas nós somos
apenas democratas seletivos!”, explodiu o censor, esquecendo-se de que não tinha
nenhuma patente militar e era apenas um civil a mais, comum e silvestre.
Democrata seletivo… Pinochet afirmou que não era ditador: o Chile vivia uma
democracia onde todos opinavam livremente. Todos eram: ele, os três chefes das
Forças Armadas e o chefe dos carabineiros. Le Monde escreveu: “Pinochet acaba de
inventar o submarino a vela…”.
1 Teatro não é a reprodução da realidade, é a sua representação e, como tal, de algum ponto de vista é feita –
ponto esse situado na sociedade, não no cosmos.
2 No exílio, fiz outras feiras, a mesma ideia mural, a mesma perplexidade: a latino-americana, na igreja Saint
Clement’s, em Nova York (fiquei sabendo da existência dos Obie Awards: ganhamos um, na temporada de 1971-
72), e a portuguesa, com A barraca, no Museu de Arte de Lisboa. Feiras, em momentos de perplexidade, são
importantes. É bom saber o que os outros pensam!
CAPÍTULO 21
NAVEGANDO PELO MUNDO, BUSCANDO PORTO SEGURO, ENCONTREI A PRISÃO A CAMINHO DE
CASA
A Feira teve impacto na classe teatral. Cada um, vendo a coragem alheia, tornava-se
valente. Na França, estudantes acreditavam que fariam a Revolução Francesa
duzentos anos depois – bastaria a greve geral. No México, estudantes acreditavam
que derrubariam o meio secular domínio do PRI, contraditoriamente chamado
Partido Revolucionário Institucional!!! Nós acreditávamos que a classe teatral
proclamaria a nova Independência ou Morte: faltava o cavalo branco, a espada e o
córrego.
Cacilda! Impossível esquecer sua figura frágil, voz trêmula, palavras claras:
desobediência civil. Cacilda proclamou? Obedeçamos a Cacilda! Todas as noites, a
classe se reunia em assembleias eufóricas. Sem sermos nomeados, Antônio Pedro e
eu nos revezávamos na presidência. Representávamos o Arena e Roda-Viva, visados
pela repressão.
Nunca vi nada parecido: a classe conversando noite adentro. Como evitar
invasões, raptos? Como se proteger de bombas lacrimogêneas, que tipo de
bicarbonato no lenço? Que fazer com espiões infiltrados nas nossas hostes
guerreiras? Como evitar ataques da cavalaria inimiga? Seria ético com cavalos
jogarmos bolinhas de gude para que tropeçassem, correndo o risco de serem
sacrificados – cavalo de perna quebrada, mata-se!
Alguns diziam pelo não: animal não tem ideologia, faz o que mandam, é inocente.
Outros, sim: cavalo tem ideologia, claro, cachorro pitbull é pior, reacionário. Vejam
como cavalo, erradamente do ponto de vista ético, toma o partido do toureiro contra
o chifrudo. Animais deveriam se aliar a outros animais, não aos humanos. Cachorros
policiais mordem quem não usa uniforme! Respeitam até mata-mosquitos e porteiro
de cinema: roupa civil, passam o dente, aprofundam. Sentença: do ponto de vista
político, ser animal não é atenuante! Bola de gude no chão e arame farpado nas
veias!
Esse raciocínio iluminava a fúria antiecologista: “Arame farpado e bolinhas de
gude na rua para que os cavalos paguem pelos seus crimes é dever cívico,
demonstração de patriotismo! O animal montado ajuda o animal montante a nos dar
de cassetete: receba o justo castigo!”.
Além de temas bélicos, assembleias questionavam o repertório certo para a
situação incerta. Que peças fazer na entressafra de golpes, que prenunciava golpe
iminente?
Brasileiro gosta de comemorar o gol antes de bater o pênalti – é sabido.
Decepciona-se com frequência. Muitos de nós achavam que venceríamos, apesar do
golpe em gestação; já comemoravam a nova independência: abolida a censura, só
nos faltava fazer a reforma agrária e decretar a moratória da dívida externa…
Bastaria que a Cacilda quisesse, ela que decretara a desobediência, qual Gandhi
redivivo…
Bastaria que proclamássemos nossa desobediência a dom João III, que, no século
XVI, doou capitanias hereditárias a latifundiários sem caráter! Desobediência contra
agiotas internacionais, aves de rapina. Fácil. Só querer. Faltava bater o pênalti. Botar
o sino no pescoço do gato!
Não nos dávamos conta de que essa guerrilha teatral nos isolava do povo operário
e camponês que tanto havíamos buscado: a necessidade de nos defendermos nos
afastava deles. Estávamos encurralados, nós e nossa plateia, classe média como nós.
Atores interioranos, que nunca tinham ouvido falar de Molière, começaram a
aparecer nos teatros, na Maria Antônia, [1 ] em filas de cinema, mesas de bares.
Gostavam de ouvir, fazer perguntas; nada sobre Sófocles, mas sobre amizades.
Alguns de nós desconfiavam: seriam atores esses barbudos que nunca tinham ouvido
falar em Shakespeare?
Conspirava-se a granel. Nunca se viu clandestinidade tão às claras, extrovertida!
Clima de guerrilha: quem não era de direita, era, ipso facto, guerrilheiro. Exagero… só
mais ou menos.
No fim de uma daquelas permanentes assembleias, Ítala Nandi e eu fomos os
últimos a sair do teatro, entretidos que estávamos conversando política. Entramos
em um táxi e vimos que um carro nos seguia. Pedimos ao motorista que desse curvas
e voltasse ao mesmo lugar – se continuassem atrás de nós, evidente que nos
seguiam. Seguiam. Pedimos ao motorista que nos levasse ao Gigetto. Artistas vieram
à porta do restaurante e o carro cinza desapareceu: naqueles bons tempos ainda
tinham medo de nós. Depois, perderam o medo; cresceu o nosso.
As assembleias discutiam o tema da censura. Senhoras de salto alto se assustavam.
Uma delas, muito rica, assistiu, por inadvertência, Roda-Viva. Haviam-lhe dito que um
dos personagens centrais era a Virgem Maria e ela era apaixonada pela Virgem,
fanática! Só que não lhe haviam contado que se tratava de virgem de programa de
auditório, chacrinesca.
Como, além dos saltos altos, era católica e deputada estadual, fez escândalo
arquidiocesano!!! Políticos se assustaram com seu tremelibundo susto. Jornalistas se
assustaram com o susto dos políticos assustadiços e a TV Tupi, assustadíssima,
promoveu mesa-redonda com políticos e artistas. Objetivo: esmagar os artistas diante
da Opinião Pública!
Escolhemos nossos debatedores: o impetuoso Plínio Marcos, ponta de lança; o
maduro e responsável Fernando Torres, dominando a grande área; e eu, fazendo a
ligação, podendo me deslocar para a defesa ou o ataque. Time equilibrado. Deles, só
me lembro de dona Conceição, ferrenha. Havia mais dois, mas não se notavam – ela
bastava.
Ganhamos com gols de placa. Um deles, maravilhoso, aconteceu quando
Fernando falava do Belo Escatológico da Roma cesárea, das farsas profanas dos anos
mil que punham em dúvida a virgindade divina, da literatura medieval pornográfica,
quando dona Conceição, horrorizada, gritou ferocíssima: “Está vendo, está vendo? E
tudo isso foi dar em quê? Em quê? Foi acabar em quê toda essa pornografia???”.
“No Renascimento, minha senhora, no Renascimento…”, respondeu Fernando
Torres, suave como só ele sabia ser, carinhoso. Dona Conceição – perdoem, mas esta
cafonice eu tenho que escrever, não me contenho, não me segurem! –, dona
Conceição lançou dardos letais com o seu olhar mortífero!!!
Ela decolava, levitava, gritava apoplética, dava socos na mesa. Ninguém podia
falar, não deixava. Os copos d’água mineral tremiam, garrafas de plástico
despencavam! A gente levantava o dedo, pedindo a palavra, e recebia rajadas de
gritos medonhos e baforadas de cuspe.
Dona Conceição cuspia – não conseguia dizer duas ou três palavras sem
cuspezinho voador. Delicadamente, nós nos protegíamos com lenços desfraldados.
Aproveitei o microfone aberto e comecei a irradiar a atuação de dona Ceição. O
diretor de TV, Luiz Gallon, além de pessoa sensata, excelente artista, começou a
brincar com as imagens dela, sob todos os ângulos, e com a minha irradiação: em
casa, os telespectadores apenas ouviam minha voz – não a dela! –, comentando os
trejeitos agressivos e destemperados da deputada, o cuspe voador, o punho cerrado,
o copo d’água entornado. O efeito, obra de arte.
Em linguagem futebolística, demos um banho.
Interesses políticos são políticos. Jornais, nas entrelinhas, relatavam nossa
contundente vitória naquele debate memorável; nas manchetes, atacavam nossos
excessos; diziam que confundíamos liberdade com libertinagem…
Tudo que acontecia na imprensa repercutia em nossas assembleias. Um escritor,
que jamais tinha sido premiado, propôs que devolvêssemos os prêmios que
havíamos recebido de um jornal paulistano. Tratava-se de prêmio prestigioso, o Saci,
espécie de Oscar, Tony ou Obie nativo. Devolver representava tapa na cara do jornal,
mas causaria também certa dor nostálgica nos premiados.
Eu, por exemplo, que não corro atrás de prêmios, embora os tenha recebido com
estimulante frequência, não queria devolver os meus – eram meus, ora! A maioria
dos assembleístas, não premiada, gritava ensandecida, pedindo que as lindas
estatuetas de Brecheret fossem jogadas no chão do hall do jornal. Bofetada e
pontapé.
Antônio Pedro e eu nos manifestamos contra a devolução. Devolver deveria ser
decisão pessoal de cada premiado. A assembleia não tinha o direito de propor que
alguns, para desagravo de todos, se desfizessem dos seus prêmios. Mais: estávamos
em guerra contra a censura e contra os políticos reacionários. Para que abrir novo
front [2 ] contra um dos mais influentes jornais do país?
Quem jamais tinha sido premiado continuou gritando exigências. Antônio Pedro
convocou nova assembleia para o dia seguinte com a presença maciça dos
premiados, candidatos à renúncia. Dia seguinte: o Maracanã seria apertado.
Às quatro e meia da manhã, ninguém tinha ido embora. Eu rouco, afônico,
Antônio Pedro na presidência, fez-se a votação: ganhou o bota-fora!
O jornal foi tomado pela polícia. Chegamos, cada premiado com seus prêmios, eu
com minhas duas estatuazinhas tão bonitinhas. Não nos deixaram entrar. Decidiu a
maioria que jogássemos as estátuas nos jardins do jornal.
O dono do jornal, mal informado, pensou que tivesse sido eu o instigador da
devolução: ordenou que meu nome não fosse nunca mais publicado, inteiro, em seu
jornal. Passei a me assinar minúsculo “aboal”. Hoje, são águas passadas. Na época,
aboal me doeu. A proibição do nome durou décadas: sobrevivi. Hoje meu nome sai
inteiro. [3 ]
NAVEGAR É INEVITÁVEL!
O cerco apertava. Fui convidado, por uma organização clandestina, a visitar Cuba.
Sonho. Embarque: 14 de dezembro de 1968. Dia 13, à noite, Costa e Silva, verdugo de
turno, promulgou o Ato Institucional n°. 5 – liberdades civis suspensas. Fascistas
mostravam a cara. Fascista: poder nas mãos de um punhado de pulhas, poder do
fascio. Aconteceu no Brasil.
Quem era Costa e Silva? O anedotário popular dizia que usava óculos pretos para
não comer a farda verde – tentação irresistível. Dizia-se que, quando ouvia no quartel
a convocação para “o grosso da tropa”, ele se apresentava, patriótico – sentia que era
para si só a convocação. No avião, voando, ouviu a explicação da aeromoça de que
voavam a 10 mil metros de altura. Revelou espanto: “Eu sabia que o Brasil era
grande, mas não imaginava que fosse tão alto…”.
Sob seu reinado começaram as torturas sistemáticas.
Viajei para Havana na noite seguinte ao quinto ato. Outra vez ouvi o silêncio, no
meio da algazarra do aeroporto. Silêncio barulhento – fazia-se em torno de mim, no
meio da gritaria. Eu me perguntava: “Será que alguém desconfia? Meu destino, Cuba,
estará no meu rosto?”. Achava que sim.
Dentro da bagunça sonora, empurrões, eu evitava ouvir a voz de prisão. Como
Josef K., sentia que seria preso. Os militares estariam ouvindo meus pensamentos?
Eu não conseguia calar indignações! Tinha certeza de que meu ódio à prepotência
falava alto, mesmo se a boca calava.
Embarquei para Paris, a quem fui apresentado no dia 15 de dezembro de 1968,
manhã fria, escura. Amor à primeira vista: gostamos um do outro. Lá, passei dias
bebendo bourgogne rouge contra o frio, comendo compridos sanduíches de gruyère,
encontrando exilados, sentindo a alegria do pluralismo: nas bancas, jornais da
direita à esquerda. Comprei Classe Ouvrière e fui visitar Émile Copfermann, crítico de
teatro, um dos diretores de Maspero, meu primeiro editor francês.
Com Émile, que se tornou fraterno amigo, falei da minha admiração pela
liberdade de expressão na França: livros de todos autores, mesmo extremistas,
músicas revolucionárias, Gallo negro, gallo rojo, [4 ] conversas de esquina – tudo
permitido. Émile, delicado, me aconselhou a não exibir meu jornal – a total
liberdade era aparente.
Embarquei pra Roma, telefonei ao consulado cubano, dizendo cheguei. Tudo
combinado: deram-me apenas o local do encontro, rua tal, esquina tal, meio-dia.
Nem um minuto mais cedo, nem dois mais tarde – horário sueco, ao meu gosto: em
ponto. Eu deveria chegar às doze badaladas, fingir que ia cruzar a rua, sem cruzar:
alguém me perguntaria as horas. Minha resposta seria: “Meu nome é João”.
Morri de vergonha, sentindo-me personagem de filme de espionagem ou
suspense, um Hitchcock qualquer.
Meio-dia, fingi que ia atravessar a rua, a mão de um transeunte bateu no meu
ombro: “Per favore…”. Claro que eu me chamava João: era, em ponto, meio-dia.
Fomos a um bar, entreguei-lhe uma nota de cem cruzeiros, quantia insignificante.
Meu recente amigo conferiu o número da cédula com o que tinha no bolso, bateu
certo, e me entregou o bilhete de avião para Praga, no dia seguinte.
Em Praga, do lado de dentro do aeroporto, mudei de nome, identidade, endereço,
filiação, passaporte: era outro, verdadeiro Homem Novo. Devia passar a noite no
Hotel Intercontinental. Não deveria falar com ninguém – não havia perigo: eram
tchecos. Caía neve – desde que saíra dos Estados Unidos, catorze anos antes, nunca
mais havia visto neve. Queria conhecer a cidade, mas o frio cortava nariz e orelha.
Tomei um bonde e fui até o fim da linha. O frio mordia e eu queria voltar para o
hotel no mesmo bonde. Veio o condutor e insistiu: eu tinha que saltar. Com gestos,
expliquei que não estava acostumado ao frio, sou carioca. Ele mostrou, gesticulando,
que eu deveria descer e tomar o mesmo bonde, cem metros adiante. Com gestos
claramente pronunciados para que não houvesse dúvida, expliquei que isso seria
prova da mais estúpida burocracia: pra que descer, no frio, subir e sentar no mesmo
banco, se já estava nele sentado? Ele explicou que ordens não se discutem.
Caminhei cem metros, o bonde avançou os mesmos cem, tornei a sentar no
mesmo banco, o condutor sorriu, satisfeita sua autoridade. Meu primeiro contato
com a burocracia leste-europeia não foi engraçado.
Voltei pro hotel: o circuito turístico de bonde foi tudo que conheci de Praga. Pra
me recuperar da discussão gestual, entrei no bar. Todos tomavam cerveja – pedi
também. Com gestos, expliquei: estupidamente gelada. O garçom, de mau humor,
disse não. Mostrei dinheiro. Ele me mostrou a porta. Até hoje, não entendi por que
todo mundo podia beber cerveja e eu, não. Até hoje, ficou-me a sede da cerveja
tcheca. Um dia ainda voltarei lá, nem que seja só pra matar a sede que me ficou na
garganta! Juro que ainda hei de tomar uma cerveja tcheca em Praga! No verão.
De Praga, uma praga: o aviãozinho roncador da Cubana de Aviación, anêmico
remanescente ferido da Revolução Soviética. Vejam o trajeto: Praga-Shannon, na
Irlanda; Shannon-Halifax, no Canadá; Halifax-Havana. Mais de trinta horas, com
paradas pra encher o tanque e tapar fissuras com esparadrapo. Não exagero: juro
que vi esparadrapo no avião! Bloqueio é nisso que dá! Heroísmo: esparadrapo no
avião!
Ver Fidel na praça da Revolução, sete horas sem intervalo, explicando economia
ao povo, foi fantástico. Como são belas e simples as coisas simples e belas! Fidel
explicando, a gente entendendo.
É claro que a economia mundial é complexa. Mesmo assim, podemos entender: a
questão é saber explicar. Astronomia é das ciências mais complexas, mas certas
certezas são fáceis de acertar: sei que o sol se levantará de manhã e o ocaso será no
fim do dia – jamais ao contrário. Usando-se duas laranjas fica claro. Com limão
galego pode-se compreender a astronomia.
Fidel explicava com palavras simples e, quando falava difícil, explicava a palavra,
que se tornava simples. Qualquer palavra, quando entendida, é simples. Até mesmo
a minha velha amiga flabbergasted. Simplicidade pura! Verfremdungseffekt, então,
facílimo – é só olhar a cara do palhaço Piolim.
Vi em Fidel – sua voz, seu gesto – seu amor às palavras: Fidel amava seus
interlocutores, o povo cubano. A palavra era esse amor que aos dois unia. Seu
discurso era ato de amor. Retribuído.
TEMPORADA EM NOVA YORK
Depois de um mês cubano, teatros, passeios, muito malecón, voltei. Pouca gente ficou
sabendo o que fui fazer na Europa, menos ainda em Cuba – só a gente necessária. E
outros desnecessários…
Censura, caninos à solta. Nenhum censor ousaria descontentar senhoras de salto
alto. Beco sem saída.
Por feliz coincidência, Richard Schechner, professor da Universidade de Nova
York, diretor do Performance Group e de The Drama Review, chegou ao Brasil,
acompanhado de Joanne Pottlitzer, do Theatre of Latin America. Schechner pensava
consagrar uma edição da sua revista ao teatro latino-americano, um ano mais tarde.
Schechner e eu ficamos velhos amigos desde o primeiro dia. Joanne convidou
Zumbi para temporada em Nova York. Agosto de 1969, o Arena embarcou com
camisas coloridas, violão, tambores e flauta.
Saint Clement’s Church. A temporada de uma semana virou mês, a igreja
arquissuperlotadérrima. O New York Times publicou crítica elogiosa na madrugada
seguinte à estreia – era engraçado o telefone: mal caía no gancho, saltava alegre,
tocando outra vez.
Quando jantávamos, Antônio Pedro, Lima Duarte e eu, no Joe Allen’s, decidíamos
economizar na comida e pedíamos, os três, chili com carne, 99 centavos a cuia.
Nossa diária era onze dólares. Pra beber? Bem… Châteauneuf-du-Pape – e lá se iam
dólares pela goela abaixo.
Jornais exaltaram o espetáculo; convites choveram. Um empresário mexicano,
Manolo, leu as críticas e decidiu nos convidar para uma turnê mexicana. Não
tivemos culpa: convidou sem ver…
Voltamos ao Brasil e preparamos longa excursão. O cerco apertava, queríamos
contatos no estrangeiro. A solidariedade internacional poderia ser útil, em casos de
repressão. Ditadores têm vergonha do que fazem: denunciados, diminuem seus
malefícios. Denunciem sempre!
O INESQUECÍVEL SEÑOR QUEZADA
A viagem ao México foi desastre; Estados Unidos, tragédia!!! Do ponto de vista
artístico, êxito inenarrável.
Comecemos pelo desastre: Manolo, empresário comercial, queria só espetáculos
recomendáveis para senhoritas da matinê das quintas-feiras. Lendo as críticas – sem
ver o espetáculo –, extasiouse e nos contratou sem saber o que estava contratando.
Com Zumbi levamos Bolívar, texto meu, música de Theo de Barros.
Zumbi estreou no Palacio de las Bellas Artes, 1500 lugares lotados, decotes, black-
ties, meninas com fitas rosas nos loiros cabelos. Na plateia mexicana ninguém tinha
cara asteca, maia, oaxaca, chichimeca – Bélgica pura! Nossa peça era inadequada a
tais elegâncias… Além do texto virulento, mostrava cenas de dúbia moralidade:
Lima, o destruidor capitão Don Ayres, fazia gestos orgásmicos, a mão tocando o sexo,
rítmica. Não era espetáculo para meninas loiras, fitas nos cabelos, não era… O New
York Times havia gostado; os pais das meninas, não, nada!
Da nossa parte, não houve provocação: mostramos o espetáculo de Saint
Clement’s. Manolo contratou o que não viu.
Casais saíam indignados, falando alto. Meninas puxadas por pais enfurecidos,
olhando pra trás, curiosas. O núncio apostólico, portador de três pontes de safena,
quase teve a síncope definitiva. Militares vociferavam. Senhoras idosas tropeçavam
no tapete e… o sr. Manolo, lívido de espanto, desmaiou.
Manolo resolveu retirar anúncios que havia mandado publicar. O espetáculo
continuou, clandestino. A Cidade do México fica a dois quilômetros de altura: atores
se cansavam e, como diretor artístico, tudo o que eu fazia era ficar com a bomba de
oxigênio em posição de sentido: cada ator que saía de cena vinha direto para a
minha bomba solícita e eu a pespegava no seu nariz. O ator respirava fundo e voltava
para o rarefeito ar do palco.
Depois da capital, excursão pelo país – Manolo honrou seu contrato. Nomeou o
inesquecível señor Quezada para nos acompanhar.
Puebla, San Luis Potosí, Guadalajara, cidades iam passando, fazíamos espetáculos
para vinte espectadores – nem os funcionários do teatro eram advertidos da nossa
chegada. Cartazes, nós os desenhávamos e colávamos na fachada dos teatros. Íamos
pelas ruas anunciando nossa chegada. Teatros desolados, desabitados… Quando, por
sorte, representávamos em cidades de estudantes, como Guanajuato, lotávamos
repletos. Quando não, tristeza.
O señor Quezada pedia, carinhoso: “Por favor, hoy hay muchas niñas en el público.
Modere sus pelotitas…”.
Lima atendia ao pedido e, naquele dia, os orgasmos eram menos rítmicos, mais
silenciosos. Um dia, Quezada pedia menos empenho nas pelotas porque viria ver o
espetáculo uma velha amiga do señor Manolo, que continuava acamado, depois do
desmaio da estreia. Outro dia, porque viria o bispo. Em outras ocasiões, as pelotas
estavam liberadas. Antes de cada função, Lima perguntava: “Señor Quezada, hoy será
con pelotas o sin pelotas?”.
De acordo com a assistência, Quezada dava as indicações. Último espetáculo da
última cidade: Lima perguntou e Quezada respondeu: “Hoy es la última función: hágalo
con todas las pelotas que quiera…”.
Nem só com pelotas fez-se a viagem. Amores, romances. Em Morelia, encontramos
toureiro cigano, moreno. Detalhe impressionante: o pé direito rachado em dois por
um animal valente. Toureiro, mesmo de pé inteiro, já exerce certa atração sobre as
mulheres – não sei por quê, mas é assim. Imagine toureiro cigano com pé dilacerado,
muletas: irresistível. Isabel Ribeiro apaixonou-se. Quando chegamos a Lima, no Peru,
fim da viagem, Isabel me perguntou se poderia trocar o bilhete de volta, Lima-Rio,
por outra ida, Lima-México. Isabel casou-se com o toureiro mexicano de pé cortado.
Perdemos excelente atriz, ganhou o teatro mexicano.
Além de amores, ódios. Todas as manhãs, no hotel, belíssimas varandas de flores
dando para o corralón, nessa mesma Morelia, colonial espanhola, às quatro da
madrugada éramos acordados por um hóspede louco que, com sua corneta, explodia
o toque de alvorada. De pijama, na varanda, protestávamos contra o músico militar,
que se escondia antes que chegássemos. O mais furioso era Renato Consorte,
maravilhoso ator, esbravejando contra a alvorada, reclamando ao porteiro e ao
gerente. Odiávamos o cornetista. Quem mais o odiava era o Renato Consorte.
Até que um dia decidimos acordar antes das quatro, esperando surpreender o
corneteiro implacável. Às quatro em ponto, apareceu. Imaginem quem era?
Acertaram: Renato Consorte!
Era o jeito do Renato. Perdoávamos suas graças. Até Zé Bicão e Hélio Ary
perdoaram, tenho certeza. Os dois dividiam o mesmo quarto com Renato. Uma
madrugada, Zé Bicão e Hélio sobressaltaram-se na cama, acordados pelo barulho
infernal de uma orquestra de mariachis, largos chapéus de aba, cantando “La
cucaracha” e outras pérolas mexicanas. Perdoaram Renato, não a música!
Renato tinha um acidente trágico em sua história: havia caído com um avião na
rota São Paulo-Rio. Foi um dos dois únicos sobreviventes. Durante seis meses, esteve
internado em hospital, amplas queimaduras de todos os graus, perna suspensa,
braços também.
Depois de seis meses estava melhor, deslocando-se em cadeira de rodas. Os
médicos, à noite, tinham o hábito de subir uma ladeira, ao lado do hospital, pra
beber cachaça no botequim, mais acima. Renato, sentindo-se melhor, certa noite
pediu para acompanhá-los. Depois da natural hesitação, os médicos subiram a
ladeira, empurrando Renato em sua cadeira de rodas. No botequim, os esculápios
beberam além da dose confiável. Resultado: o médico que o conduzia gesticulou com
mais veemência e a cadeira de rodas rolou ribanceira abaixo em alta velocidade;
Renato, o passageiro, arrebentou-se no muro. Mais seis meses no hospital,
remendando os frescos ossos fraturados…
ESTREIA NÃO DESEJADA
Do México, fomos pra Califórnia, Berkeley, e seguimos com teatros cheios, aplausos,
alegria. Ohio, tragédia.
Tudo ia da melhor maneira possível no melhor dos mundos imagináveis, quando
tivemos que participar, braços cruzados, de uma estreia desastrosa: os Correios dos
Estados Unidos, que nunca na sua longa história haviam parado sequer um dia, cujo
lema anuncia orgulhoso que nem terremotos, maremotos, neves ou tempestades são
capazes de interromper o seu trabalho, fizeram sua primeira e, até hoje, única greve
geral.
Sem mala direta, universidades cancelaram nossas apresentações. Estávamos em
um hotel de bangalôs. Nevava todas as tardes. Jogávamos futebol na neve – garrafas
de conhaque ajudando a combater o frio.
Comíamos à farta pensando que o ragu estava incluído no contrato: coquetéis de
camarão, lagosta, Châteauneuf-du-Pape… Não estava: o contrato omisso, a comida
por nossa conta. Gastamos o lucro da temporada. Voltamos gordos.
Joseph Papp, solidário, ofereceu quase de graça uma de suas salas em Nova York,
no Public Theatre. Foi o que nos salvou. Passamos pelo Peru antes de voltar.
Retorno, angústia. Eu não queria viver lá fora; impossível viver aqui. Lá,
poderíamos fazer bom teatro e já seria muito. No Brasil, impossível esquecer o povo
massacrado, fechar os olhos. Quem, no Brasil, nos anos 1970, poderia pensar em
metafísica? Metafísica tem hora!
Alguns se meteram na luta armada, desapareceram. No Arena e em outros
teatros, tentava-se resistir. Cada qual ao seu modo.
É difícil enfrentar, com cenários, tanques; com figurinos, fuzis. Perdemos.
NÚCLEO DOIS
Cecilia Thumin e Heleny Guariba organizaram um Curso de Interpretação em 1970.
Dezembro, alunos (Celso Frateschi, Denise del Vecchio, Dulce Muniz e outros)
decidiram continuar.
Veio-me à cabeça antiga ideia que eu havia desenvolvido com Vianninha, mas
nunca realizado: espetáculos diários com jornais da manhã. Nossa ideia era ler os
matutinos, selecionar matéria teatralizável, ensaiá-la à tarde e representar, cada
noite, espetáculo diferente.
Trabalhamos semanas com Marcos Weinstock, cenógrafo, e Mario Masetti,
músico. Estreamos em setembro, teatrinho minúsculo, setenta lugares apertados, ao
qual chamamos Areninha, no segundo andar do Arenão! Sábato Magaldi escreveu:
nosso espetáculo era um exercício de liberdade – em plena ditadura, prisões,
torturas, mortes. Coragem nossa… e dele!
Teatro-Jornal: primeira edição mostrava a grupos organizados de paroquianos,
estudantes, moradores de bairro, como fazer teatro para eles mesmos, usando as
doze técnicas do Teatro-Jornal.
Queríamos oferecer aos nossos espectadores não o produto acabado, mas os meios
de produção. Em Santo André, o Teatro do Oprimido foi fecundado: aqui, o embrião
tomava corpo.
Confessávamos que não sabíamos o que dizer, não queríamos aconselhar
caminhos que desconhecíamos. Mas não renunciávamos a fazer teatro. Eles que
fizessem também. Oferecíamos nosso saber. Se não sabíamos o que dizer, sabíamos
ensinar a dizer.
A liberdade perdida: não os sonhos. As peças que queríamos montar estavam
proibidas. Havíamos perdido tudo: peças, teatro censurado, subvenções, figurinos,
tudo. Menos nossos sonhos.
Entre nós e nossos espectadores não havia diferença, agora que não tínhamos
nada que nos vestisse de artistas: éramos cidadãos, humanos. Podíamos – nós e eles –
fazer teatro. Oferecíamos nosso saber, pedíamos o deles. Troca.
O Teatro do Oprimido nasceu na nudez, simplicidade.
Começamos a formar grupos de Teatro-Jornal, mais de trinta. Representávamos
em qualquer lugar, longe da polícia: atrás da igreja, na sala de anatomia da faculdade
de medicina – o cheiro insuportável do formol afastava militares –, em casa de
operário, padre ou professor… Onde quer que fosse, seria. Escrevíamos nossos
espetáculos e, duas horas depois, estavam prontos para a plateia. Teatro instantâneo,
fulminante.
Nosso sonho era propagar as técnicas para que todos pudessem fazer teatro, usar
essa linguagem tão rica para pensar o que fazer.
ARTURO UI E AS MILANESAS
Mesmo trabalhando com o Núcleo Dois, formando grupos de Teatro-Jornal por toda
parte, tínhamos que continuar o Arenão. Falar do nosso tempo. Nada melhor que A
resistível ascensão de Arturo Ui, Brecht: mostrava que a ascensão do fascismo que nos
avassalava era resistível. O ditador de plantão chamava-se Garrastazu, um Médici
conhecido como o das Mortes: era nosso dever ético combatê-lo.
Guarnieri voltou no papel de Adolfo-Arturo. Antônio Pedro fez vários
personagens. Weinstock fez a cenografia, em ferro: botas batiam duras, soava o som
sinistro do fascismo. O cerco aumentava, em cena e fora dela!
A Associação Argentina de Atores fez festival em Buenos Aires. Convidados,
levamos Zumbi – ao invés de uma só representação, ficou mês e meio em cena,
passando pelo Uruguai… Levamos também o Teatro-Jornal, que ajudou na formação
de grupos locais.
Voltamos a São Paulo, novo convite: Festival de Nancy. Começava nossa
internacionalização. Protetora.
Para Nancy, reensaiávamos Bolívar. Trabalhávamos dia e noite. Angústia. O cerco
apertava, tenaz torquês. Perigo.
Acabado o ensaio, Cecilia me telefonou. As milanesas estavam cheirosas. Fui
pisando em ruas molhadas. Fazia escuro e chovia – três homens armados saíram de
um fusca. Dois, reconheci: interioranos que nunca tinham ouvido falar de Eurípides.
Torcendo meu braço, perguntaram se ia ser necessário me algemar ou se eu iria por
bem.
Não tive escolha: foi sequestro. Eu estava preso.
1 Hoje Centro Universitário Mariantonia, que abrigou a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.
2 Ao empresário Sebastião Camargo se atribui a frase “Só os bobos brigam!”. Tem razão em parte: só os bobos
brigam brigas inúteis!!!
3 Soube depois que a maioria dos premiados pôde reaver suas estátuas, passada a ressaca; se alguém souber por
onde andam as minhas, por favor, informe…
4 Hino revolucionário espanhol.
CAPÍTULO 22
PRISÃO E CADEIA: A LIBERDADE DE PROMETEU
PRISÃO
Janelas tinham grades. Mesas, metralhadoras. Homens, armas. Caras, carrancas.
Palavra: ódio. Interrogatório, rotina. Respondi a perguntas diferentes com palavras
iguais; empobreceu-se meu vocabulário: não!, não fui eu, não conheço, não vi, não
sei, não me disseram, nunca soube de nada, não! Não sei onde foi, onde fica, não sei
quem vem, quem vai, não sei sim nem sei não, não sei se… Claro que não.
Conhece? Já viu mais gordo? Esteve na passeata? Não? Procure lembrar: quem
estava? Não foi a tal lugar: não importa, descreva? Não ouviu conversa? Diga sobre o
que conversaram?
Iam me soltar: eu pré-cheirava milanesas. Não querendo assumir
responsabilidades, o subchefete telefonou ao superchefão drogado: feliz, mandou
que me hospedassem por uma noite. Queria falar comigo. Eu quis telefonar. Não!
Afinal, uma noite só… raciocínio embrutecido do brutamontes.
O carcereiro veio tranquilo, cantando música romântica de Roberto Carlos.
Guardou o que eu tinha nos bolsos, depois de esvaziá-los: dinheiro, chaves, lenço e
documentos. Eu tinha tudo.
No corredor, portas trancavam celas coletivas, rostos sofridos; espiando dentro,
corpos deitados. [1 ] No fundo, outra porta dava para um corredor curto ligando
quatro celas para presos solitários. Segurança máxima. Eu não era perigoso; a cela,
sim, feita para prisioneiros imponentes: grades grossas, inventadas para
guerrilheiros medonhos. Fiquei trancado.
Sempre que digo “portas”, entenda-se de ferro, pesadas, rangendo! Sempre que
digo “celas”, entenda-se gente amontoada, triste. Sempre que digo “triste”, entenda-
se tristeza extrema, sensação de morte.
A cela que me hospedou – fiquei só! – estava no ângulo reto: através de janelinhas
– a minha e a do corredor –, via o longo caminho; imaginava o curto, à direita. Tinha
dois passos apressados de comprida, menos de dois tímidos de largura. Pia e latrina,
rato no ralo. O silêncio, diferente dessa estreiteza, era amplo, imenso, infinito. Pela
terceira vez, ouvi silêncio, gritado: ali se berrava sem som, cinema emudecido.
Queria som verdade, real ruído, e me assustavam barulhos silenciosos que escutava
sem ouvir: joguei o sapato no chão, vi e ouvi. Joguei sapato no teto, dei soco na
parede, pontapé no catre, raiva silenciosa. Doeu. Através das paredes grossas
imaginei gemidos torturados.
Torturados à vera, gemiam: longe, eu não ouvia. Escutava a imaginação
imaginando gritos – gritos que existiam, no terceiro andar. Gritos havidos e por
haver. Mais haveria. Meus também.
O número oito, deitado em papel, é símbolo de infinito. Andei, desenhando oito
no chão da cela, empurrando paredes, esbarrando na latrina, percorrendo mil oitos
infinitos para que infinita fosse a caminhada. Queria correr, fugir, sabendo que não
iria.
Verdade: tem-se, na cela apertada, impressão de caminhar desertos, andando-se
em oito. Inconveniente: tonteira. Deserto: sede. Deitado, olhos fechados, eu
avançava, retornando ao lugar. Não foi o que fiz, a vida inteira? Correr veloz, ligeiro,
sem sair do lugar; voando sem decolar? Ouvindo sons, sendo surdo? Movendo meu
corpo imóvel, gritando a palavra muda? Assim minha vida, terá sido? Lavrador do
mar, como Bolívar, Simon? Lavrei palavras. Desejos lavrei, esperanças. Lavrei ondas,
lavrei mar. Lavrador do ar!
Fiz tanto – não tinha nada: homem só, mãos vazias. Corpo cercado de concreto
por todos os lados… menos dentro de mim.
Fechava os olhos, explodiam na memória rostos de Cecilia e Fabián, mulher e
filho, assustados. Abria olhos arregalados: não queria vê-los na cela estreita, vê-los
presos, sequer imaginá-los – abria os olhos para que se fossem! Onde estariam? Não
queria vê-los prisioneiros, sequer na memória enjaulada. Fechava os olhos, voltavam,
Fabián, Cecilia. Sobressaltado, levantava as pálpebras com os dedos: via paredes sujas
e eles desapareciam. Se piscava, voltavam: queria vê-los voando, distantes, longe de
grades, paredes, limites. Em segurança.
De repente, uma canção: “É doce morrer no mar” – Caymmi. Noutra cela, cantiga
mineira. Noutra, gaúcha. Antes de dormir, prisioneiros se ofereciam canções. O
carcereiro perguntou se eu queria cantar. Respondi: não sabia. Nem tinha ganas.
Não dormi, sonolento; não descansei, exausto. Lâmpada acesa – jamais se apaga! –
espantava o escuro, sem clarear meu medo. Pensei no meu filho: gostava de me
ouvir contar histórias do violão mágico. Histórias do Imperador dos Pássaros.
Naquela noite, Fabián dormiu sem histórias, sem violões, sonhando passarinhos…
Não só o prisioneiro é preso… Família e amigos, mesmo soltos, são trancados na
mesma cela.
Um prisioneiro é grande multidão.
SOLIDÃO LIVRE, MURADA
Estado hipnagógico: ainda não é sono, já não é vigília. Nessa região de bruma escura,
lembrei a infância no portão, sozinho, vendo o mundo passar. Repetia-se a solidão.
Na infância, diante de mim os caminhares possíveis, espaços se abriam. Agora,
paredes me cercavam, portas trancadas. Sempre gostei de chaves no bolso: foram
confiscadas.
O neurótico representa sempre o mesmo papel, como atores sem imaginação,
iguais a si mesmos, repetindo-se, monótonos. No meu devaneio hipnagógico jurei
que não seria nunca aquele neurótico que interpreta o mesmo tormento, a mesma
solidão: não quero ser só! Será possível cumprir a jura? Não ser só, tão sozinho?
Olhei meu corpo e perguntei em que parte de mim estaria a solidão, diluída. Não
nas mãos, nem no rosto, consabido. Não no olhar, cheio de gente. Escondido no
fígado, rins, no baço. Ah, solidão: se pudesse extraí-la, como apêndice inflamado,
cabelos compridos! Ah, se pudesse…
Se, por obra e graça de um deus extraviado, fosse possível à mão divina do meu
corpo arrancar a solidão… que vazio! Talvez eu ficasse por demais sozinho, sem
minha fiel companheira, a solitária solidão.
A noite me dava medo e eu temia o amanhecer.
De manhã, vozes da manhã. Ao lado, voz amiga, prisioneira. Temi reconhecê-la. O
carcereiro quis saber: quem era eu, quem não, de onde vinha, por que o pernoite. A
voz amiga, que me havia escutado sem ver, na cela ao lado, perguntou: “Augusto?”.
Eu: “Heleny?”.
Era ela. Havia meses estava em presídio; tinha sido chamada de volta à delegacia
política para acareação com prisioneiros recentes.
Heleny deu conselhos. Primeiro: não confessar nunca, nada. Nem a mínima reles
confissão de detalhe inconsequente. Lembrou Nelson Rodrigues: mesmo que o
marido surpreenda a mulher nua na cama, o amante ao lado, nu, mesmo flagrada,
deve negar, sempre: foi um mal-entendido. Mesmo nua: mal-entendido… Na polícia,
igual: negar sempre. Com vantagem: o marido é posto em dúvida mesmo vendo a
nudez da mulher; o torturador, esse, não viu nem sabe nada: suspeita. Se interroga, é
porque outro torturado, não resistindo, denunciou. A história estava cheia de falsas
denúncias… e novos tormentos, verdadeiros.
Negue, diga não, não sei, não fui, não foi. Mentir é dever cívico!
O segundo conselho veio com feições brechtianas: Heleny contou que os
torturados exageravam os efeitos da tortura para se livrarem de males maiores.
Stanislavskianos, simulavam com perfeição pequenas dores que exibiam,
magnificadas. Lembrei Pessoa:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Por fingimento, não deveria me preocupar vendo Albertina, minha primeira mulher,
prisioneira, reaprendendo a andar. Mas… ficasse frio, descansado: ela exagerava a
dor, não era tanta. Torturados, stanislavskianos; eu, porém, devia ser brechtiano:
racional afastamento, muito Verfremdungseffekt, [2 ] não acreditar no que via.
Isso me ajudou a suportar a visão de Albertina, reaprendendo a caminhada.
Pensei que fosse melodramática encenação: atriz, apesar do over-acting, sincera.
Soube, depois, que não: Heleny queria me poupar a dor de ver a verdade, naquele
lugar. Hoje, vejo. Sofro a frágil imagem.
Esperei, impaciente, a manhã. Café ralo, pão dormido, pão dos pobres. Meio-dia,
almoço: macarrão de fios colados, cachos de cabelos, madeixas impenetráveis. Não
pude comer. Esperei a tarde, veio a noite. O jantar, restos do almoço. Não fui
chamado. Dormi sono de angústia, acordando a cada aceno do vento: chovia, o vento
vaiava na janela, mais alta que o meu pulo, menor que o desejo.
O chefão mandou me buscar. Tenho nojo de escrever seu nome [3 ] – assassino,
contraventor, drogado e traficante, exercia o comando da guerra contra
guerrilheiros. Inventor do Esquadrão da Morte, corruptos atiradores de elite,
especializados em matar, pelas costas, prisioneiros algemados. O Esquadrão havia
começado suas atividades assassinando presos comuns. Eficientes, a ditadura
resolveu utilizá-los contra a guerrilha. Quando armadilhavam a vítima desarmada,
eram invencíveis. Jamais se envolviam em lutas de igual para igual.
Fui levado ao escritório gradeado. Atravessei burocracias de aparência asséptica:
datilógrafas datilografavam, office boys serviam café, funcionários discutiam futebol
– repartição pública. Alguns levantavam os olhos e se espantavam comigo,
algemado.
O chefão telefonava: artista conhecido, estava orgulhoso pela captura – eu servia à
sua vanglória. Vagaroso, sem me olhar, examinou informações. Adjetivos:
subversivo, rebelde, revoltoso, autor de textos contra o governo, publicados no
estrangeiro. Nenhum substantivo ou fato incriminador.
Perguntou se alguém lembrava alguma acusação maior ou se podia me soltar.
Balançaram a cabeça: ninguém. Por que tinham me prendido? Não sabiam. Senti
milanesas. O barbudo, limpando o fuzil, lembrou. Havia depoimento de um
prisioneiro que me citava. Convinha examinar. Tremi.
Sentei, esperando o livro dos depoimentos – não existiam computadores. O
chefão leu, jogou a caneta na mesa, mudou de cara, franziu os sobrolhos que tinha
ou simulava, deu a ordem: voltei à sua assustadora presença. De pé, ouvi a ameaça:
“Não me faça perder tempo!”.
João, companheiro clandestino, havia me denunciado como portador de carta
cubana descrevendo armamentos, entregue ao nosso líder. José, no pau de arara,
teria confirmado a versão.
“Confessa! Comigo, não tem conversa: in dubio, pau no réu!”
Tenho orgulho de ter seguido o conselho de Heleny à risca e ao risco, ao pé da
letra: eles não sabem nada, se você confessar detalhe, vão torturar até confessar o
que não fez. Não confessei. Nada. Nunca! Nem pendurado no pau de arara; nem aos
militares, no arremedo de tribunal onde fui julgado.
Não guardo mágoa dos que confessaram: conheço a dor – difícil resistir. Nem me
julgo herói, se resisti: não sei até que proximidade da morte teria resistido. Sei que
resisti. Fico orgulhoso, sem orgulho! Não sei se me entendem. Eu me entendo e
concordo comigo, pelo menos dessa vez.
Naquele dia, vendo ser inútil insistir, o chefão me mandou de volta ao cubículo.
Dois dias se passaram até que subi de novo. Reparei que um dos policiais vestia
minha suéter verde – apesar de verão, fazia frio. Na mesa, vi meus dois revólveres –
legalizados! – e calças, camisas, livros, fotografias, documentos, cartas. Vi meu anel
de químico industrial, presente de pai e mãe, orgulhosos com o filho doutor. Foi essa
a última vez que vi meu anel.
Invadiram minha casa. Angustiado, pensei na família. Com certeza tinham
escapado, pois não estavam ali. Fiquei aliviado. Era comum a prática da tortura
grupal de familiares: marido e mulher, pais e filhos.
Chegaram João e José: acabrunhados, diante de mim. Curioso: trinta anos se
passaram e lembro, como ontem, seus rostos tristes… e camisas amarrotadas. Nas
celas não havia ferro de passar.
Outra vez segui o conselho de Heleny: expliquei que era natural a confissão dos
dois. Justifiquei a declaração falsa que haviam prestado, introduzindo elementos que,
sem me incriminarem, não os acusavam. Tentei alinhavar explicações plausíveis.
O chefão não acreditou. Mais dois dias, duas noites.
SALA DE TORTURAS
Vieram três mastodontes. Algemado, subi escadas, sabendo o caminho. No terceiro
andar, dois corredores – me dirigi ao de sempre. Me perguntaram se, desta vez,
estava disposto a confessar. Respondi: não sabia nada. Um gorila ordenou a troca de
caminhos. Abriu a porta: quatro orangotangos aguardavam. Última oportunidade:
confessa? “Não!”
Quiseram me assustar descrevendo torturas. Tupac Amaru, guerrilheiro indígena
peruano, foi amarrado pelos espanhóis a quatro cavalos; um estampido afugentou os
animais, em quatro direções: Tupac Amaru morreu estraçalhado. No Brasil usavam-
se jipes. “Cadeira do dragão” era de alumínio: o prisioneiro sentado nu, amarrado;
punha-se fogo embaixo. O calor insuportável, o prisioneiro podia-se levantar,
encaixando a cabeça em capacete eletrificado… Escolhia entre o choque elétrico na
cabeça e fogo em nádegas e pernas. A “Psicodélica” fazia-se em quarto pouco maior
que um elevador, paredes cobertas de espelhos: alto-falantes tocavam diferentes
ritmos na mais alta potência, luzes de todas as cores se acendiam e apagavam.
Depois de minutos, o corpo do prisioneiro saltava, sem comando; estrebuchava, sem
controle. Pelo resto de sua vida ouviria sons, olhos cegos.
Os gorilas sentiam prazer em descrever, como sentiam em torturar. Afogamentos
em baldes d’água, unhas arrancadas, olhos furados…
A tortura é procedimento odioso. Como o amor, faz-se em nudez. O pau de arara,
simples e “popular”, é ainda hoje utilizado para presos comuns, no Brasil inteiro:
quem disser o contrário, sabe que mente! Fios elétricos são colocados em dedos e
artelhos; a eletricidade percorre o corpo, ajudada por água salgada com que se banha
o prisioneiro, no começo da sessão: depois o suor salgado faz as vezes. A corrente
elétrica varia segundo o reostato que regula a voltagem, a ira do torturador ou sua
pressa. O corpo é pendurado pelos joelhos em haste de ferro ou madeira – daí o
nome pau de arara –, mãos algemadas, cruzadas abaixo dos joelhos, para suportar o
peso do torturado, que dá um nó.
No começo, a dor é apenas suportável. Depois, não: sofre-se demais. Os dedos
incham, bolas roxas do sangue que não circula. Gritos ressoam no silêncio sólido.
Gritos de dor, medo, ameaças, promessas de morte.
Eram demais as punhaladas da dor. Quis ganhar tempo, perguntei de que me
acusavam. Não sabia: as equipes que torturavam não eram as mesmas que prendiam
– a cada qual, sua especialidade mortífera; pertencente às duas, apenas o barbudo.
Olhou a lista de acusações graves. A primeira dizia que eu difamava o Brasil quando
viajava ao exterior. Perguntei como difamaria. Lendo na lista, disse que eu difamava
a pátria porque afirmava, no estrangeiro, que no Brasil existia tortura.
Impossível não rir, mesmo pendurado pelos joelhos…
O reostato aumentou a carga. Secou meu riso magro. Argumentei que, se
denunciava, dizia verdade: a prova era eu, pendurado. O chimpanzé concordou.
Amenizando a violência, explicou: como era eu artista conhecido, estavam me
torturando, sim, mas… “com todo respeito”.
Como seria torturar sem respeito? Respondeu: os fios elétricos poderiam ter sido
colocados no ânus ou no pênis, ou no dente, canal aberto. Os cigarros poderiam ser
apagados em carne viva, não no cinzeiro.
Era difícil enxergar: o suor caía pelos olhos, nublava. Eu mal podia ver os cro-
magnons que conversavam com os neanderthais, enquanto impacientes homo habilis
não sabiam o que faziam: cumpriam ordens! O pedigree da humanidade pré-
histórica estava à espera de confissões que justificassem um dia de trabalho.
Depois de uma ou duas horas – foram séculos, pendurado – me desceram do
engenho, joelhos desencaixados, respiração explosiva.
“Amanhã tem mais. Aqui todo mundo confessa: cedo ou… tarde demais, na cova
rasa – aqui não tem caixão… nem compaixão…”
Não dormi. Sequelas ficam, corpo e alma. Imagens resistem na retina, jamais se
apagam! Vozes gritam nos ouvidos, jamais se calam. Marcas ficam nos joelhos que
não se ajoelham.
MEU IRMÃO
Meu irmão não concordava com minhas ideias. Não importa: era irmão. A família,
sete dias, sete noites, havia me procurado. Hospitais, ambulatórios, enfermarias: não
me tinham visto, seria até uma honra… Delegacias, necrotério, manicômio, minha
sombra nunca tinha estado lá.
Meu irmão era oficial do Exército, na reserva desde os 25 anos, CPOR no serviço
militar e tinha o direito de andar armado. Andava. Por intuição, quis visitar o DOPS. [4 ]
Gorilas juravam que eu não estava: na lista, meu nome não constava. Meu irmão
comprovou que, na cela número F-1, segurança máxima, estava o perigoso meliante
Francisco de Souza.
Enquanto lia, um investigador, vindo de sessão de martírio, perguntou: “E agora,
o que se faz com o corpo???!!!”.
Meu irmão me pensou morto. Ataque nervoso, puxou o revólver, jurou matar se
não me pudesse ver, vivo ou como estivesse!
Na inesperada explosão do meu irmão militar – surpresa da ameaça insólita,
pânico confuso – decidiram me mostrar, barba de sete dias. Estive com meu irmão
três minutos, gorila de permeio. Cecilia e Fabián estavam a salvo. O sequestro se
transformou em prisão. Antes que confessasse o que fiz, confessaram o que tinham
feito: fui sequestrado, não preso.
Graças ao meu irmão, saiu nos jornais: meu obrigado, tardio.
A SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL
A notícia correu maratonas. No Brasil, pouco se podia fazer, além de se buscar
advogado. O garrastazu das mortes tinha mandado fechar até a rádio da Arquidiocese
de São Paulo [5 ] por defender presos políticos e condenar atrocidades militares.
Recorrer a quem, se o governo era o bandido?
A pressão foi intensa. Nos Estados Unidos, Arthur Miller redigiu carta, enviada à
ditadura e publicada nos Estados Unidos, exigindo minha libertação. Assinavam
centenas de nomes ilustres: Schechner, Michael Miller e a totalidade dos professores
da Universidade de Nova York, além dos de muitas outras universidades; Joanne
Pottlitzer e membros do Theatre of Latin America; Robert Anderson e páginas cheias
de famosos solidários. Na Inglaterra, na França, Émile Copfermann, Bernard Dort,
Peter Brook, Jean-Louis Barrault, John Arden, Arianne Mnouchkine, Vitez, Garran,
centenas escreveram às embaixadas. Jack Lang, presidente do Festival de Nancy,
pediu aos participantes que protestassem. Telegramas choveram até do Japão, o que
impressionou os militares: o Japão fica exatamente do outro lado da Terra e eles
sabiam que a Terra continuava redonda – fascista não gosta, prefere pensá-la
quadrada! Se até no Japão artistas se preocupavam comigo… eu era
importantíssimo!!!
Tamanha solidariedade impressionava os ditadores. Um prisioneiro ficava
encarcerado dois anos, sem ser acusado; três ou quatro, sem julgamento. No meu
caso, em um mês fui ouvido.
Queriam provar que minha prisão era justa: queriam me transformar em
guerrilheiro perigoso, atribuir-me ações que jamais pensei fazer. Chamado a depor –
interrogatório na presença de testemunhas –, eu estava contente, tão certo de que
seria solto que não prestei atenção ao que o escrivão escrevia. Ardiloso, quando
perguntou se eu admitia ter entregue ao líder da nossa organização a carta cubana,
respondi que não. Redigindo, o escrivão escreveu que eu admitia que não tinha sido
ao líder a quem eu entregara a carta: confessava, então, tê-la trazido… Assinei, sem
ler, o texto do depoimento. Alegre estava, triste fiquei.
O juiz concluiu: eu havia trazido a carta, mesmo que não a tivesse entregue
pessoalmente. Meu “crime” estaria provado. Decretou: eu deveria ser ouvido em
tribunal. Dois meses passei no presídio Tiradentes. Aprendi que, quando se fala a
juízes, escrivães ou jornalistas, deve-se dizer, claro, o que se quer ver publicado ou
conste dos autos. Quando se fala muito, fala-se demais: quem escreve nossos
pensamentos ganha a liberdade de, com palavras verdadeiras, redigir textos falsos.
Paguei por não saber. Aprendi.
A CADEIA
Quando entrei na cela coletiva fui recebido por quinze companheiros: “Bom que
você veio: a cama do Arena ficou vazia hoje de manhã; Isaías foi transferido. Você
herda cama, xícara, chinelos… A escova de dentes ele levou. Egoísta”. Desde 1969,
aquela cela abrigava pelo menos um membro do Arena: cama cativa.
Diziam que a esquerda só se unia na cadeia. Ali estavam membros dos partidos de
esquerda, dissidências, dissidências dissidentes das dissidências fragmentadas. Era
possível se unir. Por que esperar a prisão?
Na cela podíamos ler, ver TV preto e branco: lembrar o mundo.
Celas políticas eram organizadas. De manhã, a partir das sete podia-se falar em
voz alta. Das nove à uma, voz baixa: hora de estudar, meditar, introspecção. Depois
do almoço, aulas. Cada um ensinava o que sabia, como nos CPCs. Violão, francês
(aprendi!), história dos partidos políticos (alunos discordavam dos mestres…), teatro
(eu, professor!), filosofia e culinária (aprendi feijoada!). Capoeira muitos sabiam, mas
não havia espaço. Artes marciais, só recordações.
Podíamos receber visita: Frei Betto, prisioneiro antigo, gozava da regalia de visitar
celas. Amigos, conversávamos. Foi quem me ensinou a ler a Bíblia do jeito certo;
além de livro religioso, a Bíblia é história.
Duas vezes por semana, banhos de sol. Advogados chamavam clientes, que
ganhavam horas adicionais, esperando a vez. César Vieira, pseudônimo artístico do
advogado de presos políticos Idibal Pivetta, tinha sido meu aluno na Escola de Arte
Dramática; vinha visitar clientes, fingia ser meu advogado e me chamava para
audiências: eu ganhava o privilégio de desentorpecer músculos caminhando, agora
em círculo, antes de conversar com ele e ouvir notícias.
Todos tinham que trabalhar: limpeza, lavagem dos pratos, comida. Tive outra
carreira fulminante, como em Atlantic City: comecei varrendo o chão, passei a
lavador de pratos e terminei cozinheiro, uma vez por semana. Sempre gostei de
cozinhar multiculturalmente, cozinha sincrética; na França, fazia feijoada com
champignons, vatapá com trufas – delícias que só eu sei fazer. Posso ensinar. Gosto.
Durante minha estada na prisão, o Arena embarcou pra Nancy – aumentou a
pressão contra a ditadura. Meu processo correu depressa.
Quartas à tarde, visitas: minha mãe vinha toda semana, trazendo um sobrinho: os
meninos tomaram gosto de avião. Eu aproveitava as visitas maternas para fazer sair
desenhos que rabiscava, a fim de lembrar episódios que gostaria de contar, quando
livre. Minha mãe, revistada, dizia que os desenhos eram para meu filho. Assim
desenhei um romance, Milagre no Brasil, e Torquemada, peça.
Nas visitas encontrávamos companheiras presas. Insisti com Heleny para que,
solta – possibilidade iminente! –, viajasse para Buenos Aires onde tínhamos amigos.
Heleny falava do seu dever: retornar à luta. Foi assassinada dias depois de livre. A
ditadura não prendia duas vezes: matava.
No dia da audiência, um camburão veio nos buscar: entramos no veículo sem
janelas. Ao sairmos, entre o carro e o tribunal, filas de jovens soldados com
metralhadoras nos aguardavam: como se fôssemos Guevaras… [6 ]
Quando fomos julgados – eu participava de um grupo chamado dos Sete
Arquitetos –, no julgamento estavam apenas três professores da Maria Antônia, além
das famílias dos réus. Era perigoso mostrar-se amigo.
João e José, aos juízes, deram versão diferente – ali, não temiam tortura. Os
acusados davam versões diferentes das que haviam dado na clausura do cárcere
secreto.
Antes da sentença final, o juiz me concedeu o direito de viajar e me juntar ao
elenco. Minha presença em Nancy daria a impressão de magnanimidade: a ditadura
precisava mostrar cara menos sórdida.
Assinei documento prometendo voltar terminado o festival e estar presente no
tribunal na hora da sentença. O funcionário que me fez assinar a promessa de
retorno avisou: “Não prendemos ninguém segunda vez: matamos! Não volte nunca.
Nesta linha: assine! Prometa voltar”. [7 ]
Foi o único conselho da ditadura que segui à risca: só voltei em dezembro de
1979, meses depois da anistia.
MEMÓRIA ESCRITA E FALADA
Palavra é ser vivo. Vive em mim, entre pessoas, flutua. Não posso dar minha palavra:
posso me dar. Ela sou.
A palavra falada – à qual damos adeus –, essa palavra se dissolve em quem a
escuta e consome: pronunciada sem retorno. Dádiva. Parte de mim que se despede.
O que retorna, resposta, é outra palavra, não a mesma.
Com a palavra escrita é diferente: retorna ao escrevente que a cuidou só para si.
Retorna nua e pura, como partiu. Leitor, se existir, é contingência.
Escrita, a palavra é mais rica do que pronunciada, tem mais personalidade.
Contemplando a palavra escrita, o escritor descobre outras, parentes. Algumas
amigas, outras se odeiam. Algumas se dispensam cortesias, outras não se podem ver.
As palavras amor e ódio se amam; inteligência e ditadura se odeiam.
Contemplando a imaginação desenhada no papel, pintado o rosto do pensamento,
o corpo da emoção – isto é a Palavra! –, o escritor lembra e imagina. A palavra, ser
vivo, respira – treme em minhas mãos, no diálogo amoroso. É minha! Palavra tem
sentimentos: quero que me ame. Preciso cuidá-la para que não ande em más
companhias, com palavras que não a merecem.
A palavra pronunciada não é jamais a que se escuta; a palavra que leio, a que
escrevi, essa é a mesma, traz minhas lembranças, não alheias. Quando leio o que
escrevi, falo comigo. Ou me desentendo, outra forma de entender.
Sobre tortura e prisão, falei com amigos, jornalistas, desconhecidos, analista.
Queria denunciar: imperativo. Entender: urgente e necessário!
Todo crime deve ser revelado – não revelá-lo é crime.
Esta é a quarta vez – quinta ou sexta! – em que volto ao tema, desenhado em
letras. Preciso entender o acontecido. Para que sobrevenha o entendimento, é
necessário ver o fato desenhado no perfil da palavra escrita; vê-la surgir
transubstanciada no computador: magia eletrônica. Ritual em busca da pureza
perdida: quem escreve se purifica, liberta-se, banha-se nu, vendo-se a si. Antes de me
revestir, ao ver o mundo, quero me ver. Quero saber o alcance da mão, a lonjura do
pé. Quero saber: escrevo. Apreendo, aprendo.
No divã, lembrei: não basta! O silêncio do analista é Palavra que retorna,
transformada. Preciso escrever minha Palavra – ver a Palavra da minha escolha, tocá-
la com meus dedos. Saudades da tinta nanquim.
Quero me lambuzar de palavras azuis.
NO ESPAÇO MURADO, O INFINITO!
Quando criança, vivia em casa grande, jardim e quintal: amigos encontraram, na
horta, ninho de ratos. Organizou-se expedição raticida: a família ratona foi
exterminada a pedradas, sem contemplações. Nem sequer vimos o focinho daqueles
mortos sem compaixão. Não atirei uma única pedra, mas senti culpa por não ter
evitado a hecatombe roedora.
Quando cantávamos “Upa, neguinho”, família de ratazanas aparecia na boca do
sistema de ar. Música terminada, desapareciam. Hoje, sabemos que certos
compositores e ritmos estimulam atividades humanas ou animais: crianças que
ouvem Mozart tornam-se mais inteligentes do que as que são submetidas a metais,
bumbos e tambores, rock e heavy metal; vacas, ouvindo Bach, produzem mais leite –
não de melhor qualidade, mais vitaminas e sais minerais, não: apenas maior
quantidade –, já é progresso…
A influência da música na lactação e no trabalho muscular é tão verdadeira que
multinacionais utilizam variado repertório musical para estimular operários,
segundo o produto que fabricam. Tratores e caminhões exigem Wagner e Verdi;
tecelagem pede Monteverdi e madrigais medievais; sensíveis computadores estão
mais próximos de Chopin e Debussy. Bossa nova serve para ir à praia…
No ralo da minha cela, no primeiro dia, um focinho. Nos seguintes, a pequena
cabeça de um camundongo. A confiança aumentava; bela tarde de verão, apareceu o
corpo inteiro, minúsculo. Encorajado pelo meu olhar admirativo, o animalito
aventurou-se pela cela. Todos os dias vinha me ver, antes do crepúsculo. Visita curta
– face a face: face a focinho. Olhar profundo, mistérios da natureza.
Aquele foi o único camundongo com quem tive algum tipo de relação afetiva. Ele
sabia que eu gostava dele; eu sentia que de mim gostava. Nunca procurei assustá-lo:
nos seus olhos inquietos, tentava desvendar o mistério da vida.
Embora não estivesse louco – juro! –, conversava com o bicho. Tive coragem de
lhe dizer coisas que jamais diria ao meu igual. Aquele camundongo guarda meus
segredos inconfessáveis. Os que até de mim escondo, sabe-os o rato.
Transferido, prisão maior, fiquei contente: companheiros numerosos. Triste
quando me fui, sem tempo de me despedir daquele que tinha sido o único amigo em
quatro semanas de solitária reclusão. Secreto confidente. Eu conversava com um
camundongo! Sim, carambolas. Por que não?! E você? Nunca falou com nenhum
bicho? Então… tenho também o mesmo direito.
Em papel amarrotado, desenhei autorretrato, joguei o papel no ralo na esperança
de que o camundongo o visse e, quem sabe? – ninguém conhece os mistérios
profundos da psiquê roedora! –, talvez entendesse o meu gesto de afeto, talvez uma
lágrima rolasse furtiva dos seus olhos.
Não sei se camundongos choram: não fiquei encarcerado bastante para alcançar
certezas. Só sei que, quando sem medo, são carinhosos.
Depois da cela, ratos e camundongos saíram definitivamente da minha vida.
Mesmo assim, lembro daqueles bichos que me proporcionaram culpa e carinho.
Principalmente o pequenino prisioneiro. Foi na prisão, diante do animal, que me
descobri a mim mesmo. Juro!
Descobri, com espanto, que não era dono de mim. Não me podia programar. O
amanhã seria igual ao hoje, que não era diferente do ontem. Nada mudava… a menos
que alguém – não eu! – decidisse o contrário. Todo o poder ao carcereiro! Sempre
gostei de chaves no bolso: os meus estavam vazios.
“Mim” – eu disse mim? Qual dos muitos mim que trago comigo? Mim presente?
Concordo – era impotente. Meu corpo preso: eu, porém, abranjo mais que o instante!
Pernas presas: a imaginação vagava livre. Do mim passado, desse eu era dono. Do mim
futuro distante, era também. Na cela encontrei Proust buscando o tempo perdido. Já
era tempo: eu perdera o meu.
Nos muros, recobrei a liberdade. Certa liberdade. Na prisão, fiquei livre. Uma certa
forma de ser livre.
No cotidiano da vida repetida, não me via – tinha pressa, indo e vindo: na cela, eu
me olhava e via –, era obrigado. Lá fora, horários, caminhos, deveres, gentilezas –
rituais não me davam tempo de refletir, dizer bom-dia ao espelho, sem tempo de
falar comigo. No espaço, não tinha tempo. Agora, que tinha tempo… faltava espaço.
Na desintegração difusa do tempo – agora sem antes nem depois: só o instante,
eterno, existia! – e na exiguidade do espaço, ali pensei em mim, ouvi o som do
silêncio, mais uma vez na vida!
Na cela, acariciei palavras sussurradas sem destinatário – bumerangues, voltavam
para mim, morada certa. Me procurei: quem sou? Me diziam: delinquente – eu era
impureza que deveria ser retirada do convívio social, para que o mundo se
purificasse da minha existência. Para mim, se falha tinha havido, foi no pouco que
fiz: deveria ter feito mais.
Preso, era julgado segundo a ideologia deles. Um ato não vale pelo que é, mas
pelas circunstâncias em que é praticado. Eu sempre quis a legalidade, subvertida por
quem me julgava dentro da lei falsificada.
Mesmo sendo inocente e os carcereiros culpados, a prisão me suspendia no tempo
e confinava no espaço: metralhadoras ao redor! Mas não havia muros no espaço para
dentro de mim mesmo: sou infinito.
Podem levantar montanhas à minha volta e apertá-las contra meu peito, algemar
meus pés e alambrar minhas mãos: meu pensamento é livre como o de Prometeu
acorrentado.
O titã fez o que era certo: aos homens deu o fogo. Democratizou o fogo. Os
deuses, porém, não estavam maduros para a democracia. Queriam o fogo só para si.
Temiam que, começando pelo fogo – sentindo o afago do fogo! –, os homens
quisessem a terra que sustenta os pés, a água que sacia a sede, o fruto que mata a
fome: temeram que os homens quisessem a Terra e o Céu.
Os deuses queriam que Prometeu reconhecesse o crime, que não foi seu ato: foi
seu exemplo. O fogo podia ser perdoado, havia fogo para todos, sobrava: a liberdade,
não!
Prometeu era livre pra dizer não a Zeus, deus maior, e disse: a Zeus repetiu que os
homens mereciam o fogo. No seu coração existiam apenas virtudes: a coragem de
afirmá-las era virtude a mais. Nos corações menos titânicos, menos deificados como
o meu pobre coração, ao lado de poucas virtudes, tenho ilusões. Na cela, pude
repensá-las. Corpo aprisionado, memória livre; imaginação ilimitada. Atravessava
paredes, alada, voava.
Encaixotado, pensei alternativas. Minha vida: fiz o que pude! Que caminhos
poderia ter andado e não andei? Que vida desperdicei?
Metaforicamente, o Teatro do Oprimido nasceu na prisão. Gosto de dizer: nele, o
cidadão, no presente, estuda o passado e inventa o futuro. O palco, a arena, como a
cela ou pátio da cadeia, podem ser esse lugar de estudo; o teatro, instrumento
adequado, linguagem dessa fala, busca de si.
Prisão deve ser tempo de reflexão, espaço de aprendizado. Lugar de descobertas.
No hospital, o corpo doente não é imobilizado para que, por si só, se cure. O corpo é
assistido. No hospital, o médico; na prisão, o educador. Nós, prisioneiros políticos,
éramos nossos educadores. Tenho certeza, saímos melhores do que entramos – mais
decididos a recusar a ditadura.
A cela não deve – seria crime! – tornar-se vida em sursis. O urso hiberna; quando
acorda, na primavera, é o mesmo que adormeceu no outono. O prisioneiro – supõe-
se – quando se torna livre, deve ser outro. Mas como poderá ser diferente se tiver
apenas hibernado?
Quando fui preso político pensava nos prisioneiros comuns, amontoados em celas
comuns. Vida suspensa, pena de morte proporcional: ali matava-se parte das suas
vidas – o tempo das penas! Jovens eram e são assassinados dos dezoito aos trinta, dos
vinte aos 35!
Se, além dos muros, existe estrutura social – as que conhecemos são doentias e
contagiosas, geradoras de delinquentes! – dentro dos muros, uma organização social
deve ser inventada. Em nossa cela, no presídio ironicamente chamado Tiradentes, [8 ]
éramos políticos e nos educávamos – nas comuns, prisioneiros eram amontoados,
sem futuro. O povo acorrentado. O povo que eu buscava, ali amontoado. Até na prisão,
a divisão de classes existia. Até entre presos políticos, outras divisões: frontal à minha
cela, estava a Cela dos Lordes – guerrilheiros de famílias ricas. Com mais direitos,
recebiam de suas casas seus manjares.
Presos comuns são – em parte – delinquentes. Na prisão, prepara-se seu retorno à
sociedade. É preciso que, a ela, à qual não estavam adaptados – a prova: cometeram
crimes! –, se adaptem. Quem cumpre esta tarefa de ensinar a aprender,
concretamente, através de atos, ações, é o teatro. E quem permite que o espectador
se transforme em protagonista é o Teatro do Oprimido.
1 Carregamos museus em nossa memória: de cera, históricos e também museus de horror. Todas as cenas que
descrevo neste capítulo, todas as imagens, estão arquivadas na minha memória. É fácil consultá-las: basta
recordar um nome, um episódio, cor, frase ou palavra, e elas retornam, tão vivas como quando viveram.
2 O efeito de afastamento de Bertolt Brecht: o ator revela seu personagem, sem com ele se fundir e confundir, no
momento da representação.
3 … fleury…
4 Valhacouto de bandidos oficiais, pagos pelo contribuinte.
5 Essa rádio só foi reaberta oficialmente no dia 18 de março de 1999.
6 A ditadura desejava com aquele aparato intimidar a população com a inútil exibição de força.
7 Em 1998, obrigada por lei federal, a Casa Militar da Presidência da República me entregou a relação de todas as
informações que o serviço secreto da ditadura tinha colecionado a meu respeito: aí se lê que a ditadura me
considerou oficialmente banido – não apenas exilado: banido. Por não ter retornado para ouvir a sentença, fui
proibido de regressar ao território nacional! Banido: proibido de voltar à casa. Banido: desterrado, extirpado! Eu,
como tantos amigos queridos, fui tratado como os poetas inconfidentes, também banidos. Fora daqui! Exílio!
8 Mártir da nossa Independência…
EXÍLIO, DEGREDO: PALMEIRAS, GORJEIOS, SABIÁS…
CAPÍTULO 23
BUENOS AIRES, NO MUY QUERIDO…
No Rio, família. Esperei o “visto”: não se viajava sem permissão da polícia, que
examinava antecedentes criminais, impostos, expressões fisionômicas, digitais…
Impossível sair no primeiro avião.
Em São Paulo, fui ao apartamento onde vivi sete anos, para os adeuses. Enchi duas
malas de intimidades, saudades, vi a destruição de móveis, sumiço de objetos, fotos,
dinheiro, documentos – raiva! Voltei ao Rio, daí Europa.
Circulei agradecendo, faminto de teatro. Findo o festival, encontrei Antônio
Pedro, Frateschi, Denise… Nossa despedida foi feita de esperançosos “até breve!” –
pensava que voltaria logo.
Em Buenos Aires, sem emprego, salário. Sorte, meus sogros estavam-se mudando
e nos deixaram um apartamento a prestações, mobiliado. De herança paterna, eu
tinha quatro salas na Penha – rendiam, de aluguel, trezentos dólares. A prestação,
noventa dólares: com 210 podíamos viver bem. Tempos antigos… quem não teria
saudades?
NÃO SE NOTAVA QUE EU EXISTIA
Em 1966, fui por cinco semanas, fiquei cinco meses; agora imaginava cinco meses,
fiquei cinco anos. Sensação estranha: a cidade não precisava de mim! Se não
existisse, eu não faria falta. Na minha terra eu fazia diferença, mesmo mínima. Em
Buenos Aires, nenhuma. [1 ] Me sentia invisível. Me olhava no espelho vazio e todo
mundo tinha ido embora – até eu! Difícil fazer a barba quando não se vê a imagem…
Claro que o Brasil inteiro podia viver sem mim – por muito tempo viveu, diga-se!
–, mas fiz diferença, sei.
OPRIMIDO EM NOVA YORK
Ainda estava eu na prisão, Schechner me convidou pra encenar peça na
Universidade de Nova York. Escrevi perguntando se era verdade ou estratagema
cordial para que me libertassem. Era verdade. Fui com a família morar três meses
perto da universidade, então na Second Avenue.
Fui agradecer a Arthur Miller; através dele, aos signatários da carta que exigia
minha libertação. O New York Times documentou o encontro e a embaixada brasileira
espionou a notícia. Encontrei Dore Ashton, crítica de artes plásticas e batalhadora
pelos direitos humanos. A espionagem ficou sabendo. Sabia tudo!
Dirigi, na universidade, Torquemada – espiões na plateia; na Saint Clement’s, a
Feira latino-americana de opinião – diplomatas espionando. Escrevi um romance, Milagre
no Brasil – milagre o povo continuar vivo, apesar do governo. [2 ]
Os alunos não conseguiam imaginar a angústia prisioneira. Obtive autorização da
universidade para que passassem 24 horas dentro do cenário: catorze atores e eu,
comendo, limpando a cela, conversando, tocando violão. Só podiam dialogar como
personagens. Temas da peça, não da universidade.
O dia inteiro, personagens no cenário – maravilhoso. Aconselho!
Feira – perplexidade. Cenas simultâneas, canções, poemas. O espectador escolhia o
caminho: espetáculos recomeçavam, incessantes.
Depois de hora e meia, aparelhos de televisão mostravam o interrogatório de um
espectador “sequestrado” em sala fechada. Nossas perguntas eram as conclusões do
Senado estadunidense sobre as relações criminosas entre os ditadores latinos e a CIA.
Nada alterávamos: nossas conclusões eram as dos senadores. Depois de cada
afirmação medonha, perguntávamos: “O senhor sabia?”. Resposta invariável: “Nem
suspeitava!”.
Última pergunta: “O senhor sabia que em Nuremberg a resposta que o tribunal
mais ouvia dos acusados nazistas era: ‘Eu não sabia’?”.
Nazismo era história antiga como hunos, godos e visigodos e Átila, Flagelos de
Deus. Em silêncio, espectadores se dirigiam à nave central, onde acontecia a última
peça, Animália, do Guarnieri.
A Feira não explicava as relações entre economia mundial e secas do Nordeste,
Wall Street e torturas, mas, com emoção, obrigava os espectadores a pensar. Julien
Beck chorou. Ele e seu elenco tinham sido presos no Brasil – sabia do que falávamos.
Era belo ver esculturas: torturados sul-americanos ao lado das sagradas imagens
de Jesus no Calvário, Pedro na Cruz Invertida, Sebastião e suas Chagas. A cenografia
de Hélio Oiticica utilizava toda a igreja. Caleidoscópio de figuras, ideias, canções.
Com esse espetáculo descobri os prêmios Obie: ganhamos o de melhor espetáculo
off-Broadway! No Brasil ninguém ficou sabendo. Só o serviço secreto, omnisciente,
omnipresente.
ERA PRECISO ACEITAR O NOVO PAÍS
Na Argentina, vivia-se momento aprazível: branda ditadura do Lanusse, prometendo
redemocratizar. Já não era ditadura, nem ainda democracia: “ditadura democrática”.
Como a “democracia autoritária” do sanguinolento Pinochet, “submarinos a vela”!
Lanusse propôs o Grande Acordo Nacional, da extrema direita à esquerda
extrema. O processo avançava de muletas, trocando pernas, caindo de bruços.
SOLIDARIEDADE
O que me espanta e encanta, em tempos de crise, é a solidariedade. Meu recomeço
de vida foi maravilhoso… antes da caída no inferno.
Paco Urondo, jornalista, dramaturgo, poeta… Sem que eu pedisse, ofereceu: “Você
é escritor que perdeu a máquina de escrever: pintor sem braços. Te dou a minha.
Posso usar as do jornal”. Aceitei as do jornal, meu coração batendo samba.
Tigre Cedrón, irmão do Tata cantor de tangos, fazia um filme e tinha dinheiro em
caixa. Eu procurava produtores para O grande acordo internacional do tio Patinhas,
parodiando Lanusse… não me corrigia. El Tigre propôs produzi-lo: “Se você
recuperar o empréstimo, me paga; se fracassar, filmo algumas cenas a menos. Meu
filme está longo demais…”.
Impossível esquecer. Amigos, não esqueço. Paco foi assassinado pelos militares,
não esqueço. Tigre morreu, exilado em Paris – não posso esquecer.
O VIOLÃO DO BADEN
Na Argentina, não conheço um só diretor de teatro que não seja professor. Fui
também e pude ganhar meu sustento. O Tio ficou em cartaz seis meses, filas
volteando o quarteirão.
A peça me fez refletir sobre a deontologia do diretor. Quais deveres éticos
precedem opções estéticas? Fosse eu diretor em Ruanda, não faria o que fiz na
minha terra. Faço espetáculos para mim ou penso na plateia? Arte serve pra quê?
Serve?
No Brasil houve, anos 1970, célebre debate: o violão do Baden Powell seria de
direita ou de esquerda? Arte tem ideologia? Alguns diziam que dó-ré-mi-sol não tem,
nem os girassóis de Van Gogh ou os claro-escuros de Rembrandt; outros diziam: pra
quem se tocam essas notas? Que ouvidos irão escutá-las? A quem se mostram esses
quadros? Que olhos irão beijá-los?
Ritmos, melodias e vozes não têm ideologia – não mais que amarelo, azul e verde.
[3 ] Palavras, ao contrário, são logos, conceitos. Quando se articulam em frase, esta
1 A personalidade do exilado corre sério risco da desintegração – é preciso que eu faça falta para saber quem sou:
sou a falta que faço. Se não faço falta, não sou! É o pior que pode acontecer a alguém: tornar-se anônimo para si
mesmo!
2 Neste, contei tudo o que os espiões procuravam, mas nenhum deles leu o livro!
3 Ou têm os significados que, transformados em símbolos, podemos lhes atribuir! Negro é luto? Na Ásia é branco.
Uma rosa na floresta não é rosa, a menos que encontre olhos que a vejam e nariz que a cheire. Ou será rosa,
solitária? Rosa é rosa para si, ou para mim?
4 Aconteceu em agosto de 1993. Meses depois, 21 moradores de Vigário Geral, onze jovens dançarinos de um
baile funk em Acari, 111 prisioneiros desarmados no Carandiru, dezenas de indígenas ianomâmi no Pará – cito só
chacinas por demais escandalosas – foram assassinados, sem defesa!
5 Podem ter conceitos simbólicos que necessitam de acordo prévio: tais acordes passam a significar os hinos
deste país, outros, marcha nupcial ou fúnebre, ou parabéns pra você.
6 Já se estava organizando a Operação Condor, em que fascistas da Argentina, Chile, Uruguai e Brasil,
subservientes à CIA, ajudavam-se mutuamente com ações, informações e assassinatos.
7 A peça que Hamlet encena para denunciar seu tio, o rei Cláudio.
8 Entre as macabras histórias de suicídios que mais me impressionaram estava a de um lago que existe em
Bangcoc, capital da Tailândia: lá, quando uma jovem é engravidada por homem que não assume o filho e é, ao
mesmo tempo, abandonada pela família, tem como solução jogar-se naquele lago infestado de crocodilos. Os
animais não comem logo o corpo afogado: a carne fresca é dura e pouco saborosa. Com o focinho, empurram o
cadáver pra debaixo de pedras e esperam alguns dias antes do festim…
9 Nos Estados Unidos, nos corredores da morte, quando sai o prisioneiro de sua cela a caminho do suplício, o
representante da Justiça deve gritar essa frase –“Homem morto caminhando!” – para que o carrasco pense que
matou um cadáver!
10 Na Associação Argentina de Boxe, falando para mais de 10 mil pessoas, fiz, trêmulo, minha estreia como
orador político. Emocionante!
11 Eu encontrava amigos brasileiros que davam saudades quando partiam: Chico Buarque (Cecilia traduziu
Fazenda modelo), Vinicius (Cecilia traduziu um dos seus livros de poemas) e Sérgio Cabral – que jura que eu teria
tentado convencê-lo a morar na Argentina. É possível! Encontrei Walmor Chagas, Fernando Peixoto, tantos…
12 Dizem que a ditadura chilena matou Victor Jara cortando-lhe os braços, única maneira de separá-lo do seu
violão, sua vida! Dizem outros que foram 35 balas no peito.
13 Um país onde o salário mínimo é menor do que cem dólares mensais não se pode chamar democracia. O
salário mínimo, como disse um político baiano, vale menos do que uma gravata italiana – a comparação é
magnífica na sua monstruosidade: revela a disparidade entre as classes sociais brasileiras.
CAPÍTULO 24
EXÍLIO E TEATRO DO OPRIMIDO
Vendo a vida até agora, vejo: houve coerência!
Busquei um estilo brasileiro em laboratórios, dirigi Seminários de Dramaturgia:
queria que falássemos de nós com nossa voz e nosso rosto. Não gostava do teatro
importado, embrulhado pra presente – pátria existia!
Cansei do realismo e encontrei, nos clássicos, a metáfora. Não para vulgarizar a
cultura universal, milho às galinhas, pérolas aos porcos: para encontrar, em obras
distantes, nossa cara de hoje.
Nos musicais busquei confissões, relações entre um suposto passado heroico e o
presente pusilânime. Meu teatro sempre foi moral!
Sonhei o Espectador-Protagonista – dissesse sua palavra. No Teatro-Jornal
renunciamos a dar ao público o produto acabado e lhe oferecemos os meios de
produção – era preciso que todo mundo descobrisse o teatro que trazia dentro de si. No Peru,
vi vida vibrante invadindo a cena cristalizada. Era a transgressão necessária a qualquer
liberação! Com o Fórum, estruturou-se o Teatro do Oprimido.
O TO permitiu que eu voltasse a escrever sobre mim, testemunha: o Murro e um
romance, Suicida com medo da morte. Na Europa, O arco-íris do desejo – a polícia
patrulhava ruas e se ocultava em nossas cabeças.
Voltei ao Brasil, vi ser necessário articular o Teatro Legislativo. Queria ver nosso
Desejo transformado em Lei.
O TO fazia manifestações políticas, era política; recolhia-se na intimidade das
opressões internalizadas, psicoterapia; nas escolas, pedagogia; nas cidades, legislava.
O TO se superpunha a outras atividades sociais, invadia searas e se prestava às
invasões. Onde o teatro?
Para mim, no exercício da liberdade. Esta minha maior coerência: em busca da
paz – nunca da passividade! – exerci e defendi a liberdade.
Em 1998, comemorou-se o centenário de Brecht (Lorca e Kusnet, também).
Participei de mesas-redondas. Quis explicar minha relação com Brecht e com a
história do teatro. Como via a incessante luta da vida aprisionada pelos rituais
teatrais. [1 ] Em um desses encontros, falei assim:
O PROTAGONISTA INSUBMISSO
Poucos documentos se conservaram sobre o início do teatro na Grécia, cuja tradição
seguimos. Com poucas provas documentais, relatos fragmentados, somos obrigados
a imaginar esse começo: estamos condenados à Imaginação!
Na Grécia antiga – como em qualquer lugar –, depois de árdua tarefa coletiva, os
homens gostavam de celebrar o fim da ordem. Para que seja possível qualquer
atividade em equipe, a disciplina é indispensável. Construindo a casa, o pintor não
pode pintar antes que se ergam paredes; o teto conclui a obra levantada, depois dos
alicerces, jamais ao contrário.
Na construção, disciplina é obrigatória. Findo o trabalho, não. Na festa da
cumeeira, trabalhadores tomam cerveja, alegres, cantam e dançam. A língua se
destrava, os braços se alongam, a licença se espraia – a censura adormece, antes que
a boca se cale. Rompeu-se a disciplina: missão cumprida.
Assim na Grécia, na colheita: lavradores plantavam, disciplinados, sol a sol,
semanas e meses; vinha a colheita da uva e vinha o vinho. Era normal que se
embriagassem, cantassem e dançassem em homenagem a Dionisos, deus da alegria,
deus do porre. Álcool era fundamental, não acidente: estopim da liberdade.
Danças e cantos dos lavradores gregos, finda a colheita, eram tão espontâneos
como, hoje, os do pedreiro, feita a casa. Vinham da alma. Anarquia criadora. Que
podia, porém, ser devastadora.
Foi preciso conter a liberdade dentro de parâmetros, impor limites – mas pode ser
livre a liberdade algemada? A aristocracia achava que sim. Se o trabalho, antes, era
disciplinado, agora, a liberdade tinha que ser vigiada, por perigosa! Podia, caso
extremo, destruir o construído.
Contradição necessária: livre, o corpo inventava a dança, a que trazia dentro;
livre, o corpo bailava no espaço e no tempo! Interveio o coreógrafo, traçou o
movimento, explicou o gesto, marcou o ritmo, limitou o espaço. Veio o poeta,
escreveu seus versos: não mais pensamento liberto, criativo caos: entrava em cena a
premeditada ordem.
O poema e a coreografia foram avanços. Mas a liberdade findou--se. Inaugurou-se
algo mais solene que as explosões de Baco, o Canto Ditirâmbico. Esse canto era o
grito aprisionado, clamor com rima e ritmo, implosão consentida. Selvageria
civilizada. Alegria cronometrada, bem dosada. E o espetáculo, que não era isso,
passou a ser: todos dançando a mesma dança, cantando o mesmo canto religioso.
Thespis era homem polivalente: poeta, coreógrafo, ator e bêbado. [2 ] Escrevia
poemas e, misturado ao coro, cantava. Desenhava movimentos e os executava na
procissão ditirâmbica em coletiva harmonia. Artista obediente, obedecendo-se a si.
Um dia, veio ver seu espetáculo o grande Sólon, legislador, o que acabava de
revogar o Código Draconiano – Dracon até hoje dá medo com seu dente por dente que
se tornou bíblico, olho por olho, cegueira. Sólon via longe, era o legislador que
promulgara uma legislação democrática. Só pra dar ideia de quem era o homem,
digo que, entre outras coisas, Sólon teve intuição genial: determinou que todos os
cidadãos fossem perdoados de todas as dívidas. Jubileu! Tudo zerado: ninguém devia
nada a ninguém. Foi ótimo! Todos os devedores adoraram! Credores, nem tanto!
Sólon perdoou dívidas de até então, mas não aboliu a injusta distribuição das
terras, latifúndios causadores de novas dívidas, maiores. Sólon fazia tudo pela
metade: não acabou com a prostituição, mas foi o primeiro homem público a criar
zonas de meretrício para mulheres públicas. Boa parte da Grécia virou zona!
Sólon, todo-poderoso, veio ver o espetáculo! Sólon, na plateia: foi um Zeus nos
acuda! Tremores de felicidade e medo! Será que vai gostar?!
Sólon, apoiado em bastão de dente de elefante líbio – era coxo! –, sentou-se na
primeira fila. Ditirambos eram cortejos religiosos, andarilhos, mas havia – então,
como agora – lugar para autoridades, espécie de praça da Apoteose, onde os coristas
evoluíam com mais ardor religioso. Sólon, chefe do governo, tinha aí cadeira cativa.
Começou o espetáculo, bem-comportado. No meio do poema, Thespis não se
conteve. Sentiu uma coisa estranha, gritou: “Me segura que eu vou ter um troço!”.
Ninguém segurou. Aí ele saltou fora do coro e… replicou. Sentiu aquela coisa,
aquele troço, e começou a dizer o que lhe veio à cabeça! Estava possuído, como
sacerdotisa de Baco. Falou da cidade, da política, dos homens e das leis! O que, no
começo, parecia caco de ator indisciplinado, piada irresponsável, tornou-se discurso
articulado. Perigoso.
Espanto! Assombro! Medo! Um simples corista ousara replicar! Mais: na frente do
chefe do Estado! Se ele o fez, era possível fazê-lo! E ninguém havia pensado nisso…
Todos continuavam obedientes, falando em coro… e a liberdade era possível! Mas
ninguém sabia.
Thespis replicou a valer, endiabrado! O coro cantava poesia, ele replicava em
prosa. O coro cantava a moral vigente, a religião – ele proclamava suas ideias,
adornadas com suas próprias palavras, escolhidas no instante, a seu bel-prazer.
Que belo prazer!
Perplexidade: o que seria aquilo?!? No coro, todos cantam e dançam em coro, como
convém! Como seria possível a um homem, por mais Thespis que fosse, saltar da
rígida formação coreográfica e contestar, dizer um desafiante não ao obrigatório
sim!?!
Sólon, calado, como quem não quer nada, fingia que não era com ele, não tinha
escutado direito, meio surdo, deixa pra lá, mas… mas… Depois do espetáculo foi aos
camarins visitar os artistas, dar parabéns – legislador popular, devia revelar
cortesias!
Pausado, perguntou a Thespis: “Você não tem vergonha na cara de mentir assim,
conscientemente, diante de tanta gente? O coro tão bonito, dizendo a verdade,
afinado, conformado. Vem você e mente, deslavado!”.
Thespis protestou que não estava mentindo: dissera sua verdade. Sem se dar
conta, Thespis havia criado o Protagonista, o Proto, o Primeiro, o que está só, o que
se rebela, pensa e age por si mesmo – sem mimesis, sem mimetismo, sem imitar
ninguém! –, descobrindo-se quem é, abrindo caminhos, mostrando o possível,
tornando-se aquele que se embrenha no desconhecido. Erra, mas aceita
consequências – sempre existem, castigos vêm a cavalo!
Thespis olhou Sólon, cara a cara, e replicou, inconformado: “Não tenho vergonha,
não, senhor Sólon, porque não menti! Isto que o senhor viu, não é a realidade: é um
jogo!”.
Usou a palavra jogo no sentido de representação, como os franceses dizem jeu ou os
ingleses, play. Na verdade, quis dizer: teatro, ficção, possibilidade, imagem ou, quem
sabe?, representação do real.
“Mesmo assim, é perigoso!”, treplicou Sólon. “O povo pode não compreender esse
seu joguinho e pode-se deixar influenciar… Daqui a pouco, esse jogo, essa mentira,
pode contaminar nossos costumes… Isso não é bom. Só é bom o que o coro canta, o
que estava escrito e foi lido por nós, antes de ser cantado por vocês. Essas invenções
libertárias são perigosíssimas!”
Para assustar Thespis, deu exemplo de castigo atroz: “Veja o que aconteceu com
Prometeu: gente boa, deu passo falso – aos homens deu o fogo, é perigoso! Fogo
queima. Prometeu deu o mau exemplo: mostrou que aquilo que pertence aos deuses
pode ser usado pelos homens. O fogo era jogo, mas queimava: Prometeu acabou
acorrentado no rochedo, o fígado devorado pelos urubus. Por quê? Porque hoje é o
fogo, amanhã o que será? Os homens são gananciosos, querem sempre mais…”.
Concluiu, ameaçador: “Com você, a mesma coisa: não importa o que você disse,
as palavras que pronunciou: importa que você disse que é possível dizer! Falou que é
possível falar. Mostrou que cada um pode pensar com sua cabeça, escolher suas
palavras! Isso é mau! Mau exemplo! Eu sei que pode, sim, mas não quero que se
saiba!”.
Antes de ir embora, resmungou: “Não faça mais isso não, viu? Eu não gosto…
Nada, nada, nada!”. Com essa frase lapidar, quase que o teatro ocidental deixou de
ser inventado…
Thespis teimoso, caturro, mesmo encurralado, queria continuar Protagonista.
Gostoso ser Protagonista: queria continuar protagonizando sua vida, mesmo que
coristas continuassem coreando a letra, cantando afinados no mesmo tom. É difícil
voltar a ser coadjuvante depois de se ter sido Protagonista… Ninguém gosta.
A plateia dessa estreia memorável – tirando os rabugentos, sempre os há! –
adorou a ideia, queria mais. Improvisar é viver! Impasse. Fazer o quê, agora? Thespis
achava que não ficava bem dar a impressão de mentir, e não queria mentir dizendo
que mentia: seria mentira dizer que mentia! – não era verdade que mentisse: dizia a
sua verdade. Que era uma das verdades possíveis.
O coro, ansioso, perguntava: “Como é que é? Faz o quê, agora?”. Ninguém sabia.
“Pode ou não pode?! Corta ou não corta?! A gente gosta, mas o chefão aí parece que
não apreciou não… olhou de soslaio…” Onde a verdade, onde a mentira? Sua
verdade negava a verdade do coro que por sua vez, negava a liberdade. Se alguém
mentia, não era ele! E agora?
Pra que ninguém mentisse e todos pudessem dizer sua verdade, Thespis, homem
criativo, teve outra ideia fantástica: inventou o disfarce – a Máscara (“Esse, que se
parece comigo, não sou eu, é outro: o Personagem!”); e o Figurino (“Não me visto
assim, o Personagem, sim, assim se veste!”); e calçou Coturnos (“Sou baixinho, o
personagem alto, enorme!”) .
Caracterizado, o Personagem não era Thespis: era o Outro. [3 ] Ator e Personagem –
antes uma só carne [4 ] – agora se divorciavam e passavam a dois, Homem e Máscara.
Thespis pôde continuar sendo ele, disfarçado no Outro, dentro do Figurino, em cima
dos Coturnos e atrás da Máscara.
Porque era sem ser, a arte do ator ficou conhecida na Grécia como a arte do
Hipócrita – isto é, aquele que finge ser quem não é. Fingia ser, sendo, porque é claro
que era; se não, não poderia ser… Mesmo que fosse só um parecer, esse parecer era!
Na arte do Ator, existiam dois: o Ator – escondido atrás da Máscara – e a Máscara, ela
própria. A arte do ator era assim chamada: Hipocrisia.
Por favor, não contem a ninguém, mas fica aqui provado que o Teatro e a
Hipocrisia nasceram do mesmo ventre, no mesmo dia. Essa divisão do mesmo ser em
dois, dicotomia – Ator e Personagem –, é, desde então, um dos temas mais
fascinantes do teatro… e da psicologia.
Thespis impôs sua criação, mas foi obrigado a ceder em ponto grave. Na
temporada seguinte, voltou a procurar o seu mecenas, protetor das artes.
Espetáculos, como hoje, custam caro: alguém tem que pagar a produção. Naquela
época, Mecenas (hoje na Broadway chamam-se Angels; na França, Ministère de la
Culture; no Brasil, incentivos fiscais, Lei Sarney-Rouanet). Mecenas são mais velhos
do que a sé de Braga. O de Thespis era um milionário de bom coração, mas sabia o
que queria: era milionário.
“Compreendo, caro Thespis. Você é um verdadeiro artista, criador, gênio – vai
ficar na História, tenho certeza. A ideia de inventar o Protagonista, o que fala o que
quer, diz o que lhe vem à cabeça, é ideia maravilhosa. Sinceros parabéns!”
Thespis feliz, mas o mecenas não tinha acabado, faltava o pior.
“Acontece que eu não sou artista: sou produtor. Meu nome fica ligado ao seu. O
que você disser, em cena, é como se eu dissesse. Veja bem, caro Thespis: não posso
botar meu dinheiro em peça cujo conteúdo só vou conhecer no dia da estreia. Não
faço censura, juro que não, longe de mim! Todo artista deve ser livre. Mas, pra gastar
o meu dinheiro, preciso saber no quê! É justo que você diga o que quiser; é justo que
eu só pague pelo que me agrade. Encurtando a conversa: se você quiser continuar
recebendo o meu dinheiro, me entregue o texto escrito antes de começar os ensaios,
porque não gosto de surpresas desagradáveis, viu?… Quero ler não só as palavras do
coro, mas também os improvisos do seu Protagonista!”
Triste: improvisações não podem ser censuradas, pois deixam de ser criação
instantânea. E o teatro grego – digam os historiadores o que quiserem! – era teatro
censurado: pelos Mecenas, que, com suas primitivas leis de incentivo fiscal, financiavam
só espetáculos que lhes convinham; e pelos sacerdotes de Dionisos. No teatro da
Acrópole ateniense, ainda hoje pode-se ver, imponente, a marmórea e solitária
poltrona do sacerdote de Dionisos! Censor na primeira fila!
Ésquilo, aristocrata, inventou o Deuteragonista. Agora, existiam dois
Protagonistas, um podendo confirmar ou contrariar o outro. Sófocles, outro nobre,
inventou o Tritagonista! Poetas trágicos tinham agora três atores à sua disposição,
três Hipócritas, portando Máscaras: o número de personagens podia ser maior, cada
ator representando mais de um, pois não seria reconhecido, mudando a Máscara,
sombreando a voz.
Consumou-se de vez a Hipocrisia: a separação entre Ator e Personagem, o divórcio
impossível – Thespis era ambos, como todo bom ator. Hipocrisia complexa: o ator
fingia ser quem não era e era quem fingia ser!
A coisa estava indo longe demais: o coro continuava cantando a História Oficial.
Mas, com a invenção do Diálogo, ideias podiam se contrapor e nada garantia que
aquela que o poder desejava ressaltasse soberana. Diálogo é sempre perigoso porque
cria a descontinuidade entre um pensamento e outro, entre duas opiniões,
possibilidades – entre elas, instala-se o infinito; nele, todas opiniões são possíveis,
todos pensamentos permitidos. Quando existem dois e não apenas o Pensamento
Único, Absoluto – a criação é possível! Diálogo é democracia! Monólogo, não!
Só de pensar nisso, Platão, apavorado, nervosíssimo, vociferou: “Olha aqui, ei,
vocês aí: na minha República, teatro não entra! Fora daqui! Nem pensar! Era só o que
faltava, ora veja! Que peste! Teatro, que coisa! Sai pra lá!”.
Gritava pelas ruas, porta em porta: “Este mundo em que vivemos é corrompido!”,
dizia, com toda razão, como se estivesse falando de nós, brasileiros, hoje em dia… “É
a corrupção do mundo ideal, que é mas não existe, esse sim, perfeito, divino,
maravilhoso: o Mundo das Ideias! Somos pálido reflexo, esfuminhada reles sombra
do que deveríamos ser. O teatro é pior ainda! É sombra dessa sombra, pálida palidez,
corruptela da corrupção! Abaixo o teatro!”
Platão esbravejava, furioso! O homem estava danado mesmo. Aristóteles, não –
balançava a cabeça, sorrindo, contente por contrariar o mestre: “Amicus Plato, sed
magis amica Veritas!”, disse em bom grego arcaico, que, na época, era moderno, mas
que nos chegou em latim, língua que Aristóteles absolutamente não dominava,
garanto.
Traduzindo em bom português, Aristóteles disse que era amigo de Platão: “Amicus
Plato”. Era, porém – “sed magis amica Veritas” –, mais amigo da verdade.
Aristóteles explicava: “A coisa não é bem assim como o Platão anda dizendo por
aí, não, ele não entendeu direito. Na minha opinião, o Protagonista pode errar à
vontade e, mesmo que os espectadores se deliciem com seus erros, gozem o mesmo
gozo…” – e usou a palavra Empatia, querendo com isso dizer que os espectadores
ficavam tão identificados com o Protagonista que interrompiam, por um momento,
seus próprios pensamentos e pensavam com a cabeça do Protagonista, anestesiavam
suas emoções e se emocionavam com as dele. Em outras palavras: a Prótese do
Desejo. [5 ] O Protagonista, que se havia divorciado do Ator, casava-se com o
Espectador, subjugado, casava-se com a Prótese instalada dentro dele.
Aristóteles continuava: “Mesmo assim, gozando o gozo proibido, não tem a menor
importância não, porque, como muito bem disse aí o Thespis, isso é jogo, é
representação”.
Os transeuntes platônicos não concordavam: “Estou entendendo, mas, mesmo
assim, sabe-se lá… goza na representação, vai querer gozar depois na realidade…
Não pode não, qué qui é?”.
“Aí é que vocês e o Platão se enganam, redondos! Deixa gozar com o erro, pecar à
vontade, na ficção: basta que, lá pelo meio da tragédia grega, as coisas comecem a
andar mal para o Protagonista (e pro Espectador, que vai de reboque!), e pronto.
Depois de um começo fulgurante, começa tudo a dar pra trás. Vamos chamar essa
reviravolta de Peripécia – é sempre bom dar um nome pra cada coisa: ficam mais
claras, entendem-se melhor. Assim, a tragédia deve ter duas partes: antes e depois da
Peripécia. Antes, o gozo; depois, o sofrimento… E deve acabar, para o Protagonista,
com uma bela duma Catástrofe, se me permitem outro termo técnico, que usarei
doravante.”
“Catástrofe pra ele, muito merecida, entendi. E para os espectadores, nada? Acaba
em quê?”, perguntavam passantes, perplexos.
“Para eles, Catarse!”, e deu um grito: “Isso mesmo: Catarse neles! Os espectadores
têm que sair do teatro pu-ri-fi-ca-dos!!! O erro – que eu, se me permitem, pretendo
chamar de Harmátia –, o erro, primeiramente, é estimulado na emoção da plateia,
pra ser depois expulso pela razão…”.
“É, mas aí a plateia pode se desligar da peça, quando começar a reviravolta, que o
senhor chamou de Peripécia. Pode dizer: ‘Comigo ia ser diferente!’. Goza o gozo e vai
embora com o mau exemplo na memória, o desejo ruim no coração, sem engolir a
moral da história…”
Aristóteles, que podia ter ideias conservadoras, mas era inteligente à beça,
explicava o seu plano maquiavélico: “Vejam bem: os espectadores estão
Empaticamente identificados com o Protagonista, pensam com a cabeça dele,
sentem com o seu coração. Basta que o próprio Protagonista se arrependa, que faça
um belo mea-culpa, e estará tudo resolvido. A essa confissão, eu, nomeando bois, vou
chamar de Anagnorisis. Gostaram?”.
Todos tinham gostado e, ainda melhor, entendido.
“Pela Empatia – coisa preciosa e indispensável, que casa Espectador e
Protagonista, que proteticamente implanta naquele o desejo deste! – os
espectadores, ouvindo a confissão do herói, estarão fazendo sua própria confissão,
prometendo a si mesmos nunca mais errar. Os erros do Protagonista servirão para
consertar o comportamento dos espectadores, pra desentortar o entortado.”
Pra que não ficassem dúvidas, esmiuçava: “Vejam bem: a tragédia é a imitação de
uma ação. Mas imitar não significa copiar, macaquear: significa recriar o princípio das
coisas criadas. É força viva, dinâmica. Assim, a tragédia vai fundo no coração dos
espectadores e modifica seus comportamentos inaceitáveis pela sociedade. A
tragédia torna os espectadores aptos para o convívio social. Mas quem dita as normas
desse convívio não são os espectadores: é o poeta e, por trás dele, o poder político e
econômico: Sólon e os Mecenas”.
Tão maravilhado ficou Aristóteles com o seu próprio raciocínio, tão convencido,
que foi correndo pra casa escrever um livro muito inteligente, ao qual deu o
delicioso nome de Poética – livro que recomendo à leitura atenta de todos. [6 ]
Durante anos, séculos a fio, essa ficou sendo a história oficial da Tragédia. Camisa
de força na explosão thespiana.
A bem da verdade, devo dizer duas coisas: primeiro, é claro que os trágicos
gregos, nem todos e nem sempre, obedeciam a essa Poética – alguns se rebelavam,
muitos morreram antes de ela existir, outros nem tomavam conhecimento dos seus
preceitos; ela, no entanto, existia como modelo e meta. Segundo: Aristóteles não
tinha esse descaramento que eu aqui revelo; era gente fina, habituado aos
subentendidos, nuanças. Eu, coitado de mim, venho da Penha, bairro proletário, ao
norte do Rio de Janeiro, longe das sofisticações. Tenho que ser mais direto, objetivo.
Dizer a verdade nua e crua! É meu destino – a isso estou condenado.
Depois de séculos, Brecht, escrevendo sobre Aristóteles, deu uma sugestão.
Começou dizendo que essa história de Empatia era boa pras classes dominantes, que
dominavam até a ideologia dos personagens; mas, para os trabalhadores, não servia:
ajudava a perpetuar a exploração. Ipso facto: abaixo a Empatia. Em lugar dela, tome
Verfremdungseffekt!
O que era isso, essa coisa, esse nome exótico? Verfremdung-seffekt significava: “ver
de longe, sem se envolver”. Como quem observa, pensa e conclui com a sua própria
cabeça. O Ator já não se esconde atrás da Máscara, sai e mostra-se ao seu lado, e a
contradiz abertamente, com ela entra em conflito. O mesmo que Thespis fazia com o coro,
Brecht fez com o Verfremdungs. A dualidade, que antes se concretizava no desafio
Protagonista versus coro, tornava-se agora Ator versus Personagem. O verdadeiro
Protagonista Insubmisso passa a ser o Ator (e o Poeta) e não o Personagem!
Nos espetáculos de Brecht, no entanto, a relação intransitiva entre palco e plateia
permanece. O palco pertence aos personagens e atores. Mesmo quando o
dramaturgo critica o comportamento do Personagem, quando o denuncia, é o
Dramaturgo ou o Ator que o fazem – não a plateia! Através de canções, comentários,
afastamento, o dramaturgo revela e se revela, expõe seu pensamento. Não se
esconde atrás de personagens, com eles não se amalgama, mas o palco permanece
sua propriedade privada, seu espaço e território.
O espectador, imobilizado, é estimulado a pensar de uma forma apresentada
como a forma correta de pensar, a Verdade; quem o diz é o Dramaturgo, que indica o
caminho: afirma, não pergunta. Estamos longe da maiêutica socrática, perto do
centralismo democrático de alguns partidos políticos.
Mesmo em Brecht, só o dramaturgo toma a palavra – e com ela o poder! –, e não o
cidadão. É verdade que, em certa época, Brecht ensaiou formas mais participativas
de teatro; preconizou a dinamização da plateia. Em alguns dos seus poemas, intuiu a
possível utilização do teatro pelos espectadores, tornados artistas. Mas, em seu
grande teatro, o muro entre palco e plateia não veio abaixo.
Da minha parte, eu amicus Verfremdungseffekt… porém acho que se pode ir além.
Sed magis amica theatrum oppressi…
Não se deixar invadir pelos personagens é grande avanço. Não nos deixemos
invadir. Mas… será só isso? Ator e personagens devem continuar dominando o palco,
seu território, enquanto eu permaneço imóvel na plateia?
Penso que não. Penso que podemos caminhar mais longe: invadir é preciso! O
espectador deve não apenas liberar sua consciência crítica, mas também seu corpo.
Invadir a cena e transformar as imagens que aí se mostram.
O ato de transformar é transformador.
O espectador deve encarnar no Personagem, possuí-lo, tomar seu lugar: não para
lhe obedecer, mas para guiá-lo, mostrar a vereda que julga certa – nisso será,
democraticamente, contraposto às proposições dos outros espectadores, igualmente
livres para a tomada da palavra!
Deve ensaiar, com sua cabeça e coração, estratégias e táticas de luta, formas de
libertação.
O Protagonista Insubmisso separava-se do coro, rebelava-se. A Máscara escondia o
Ator atrás do Personagem. O teatro realista tornava a fundir os dois, dissolvendo o
ator, submetido ao comando empático do Personagem. Brecht propunha-se, outra
vez, a separá-los – Ator e Personagem – para que o Espectador pudesse contemplar os
dois ao mesmo tempo: eu ou ele? Mas Brecht acabava celebrando o casamento entre
o Poeta (através do Ator) e o Espectador, que continuava chefiado, como nos
casamentos antigos: manda o Poeta, o que detém a verdade. O Espectador
continuava esposa antiga…
Eu, Augusto Boal, desejo que o Espectador se assuma como Ator, invada
Personagem e o palco, ocupe seu Espaço e proponha soluções.
Essa invasão é transgressão simbólica. Simbólica de todas as transgressões que
teremos que fazer para que nos libertemos de nossas opressões. Sem transgressão –
não necessariamente violenta! –, sem transgressão dos costumes, da situação
opressiva, dos limites impostos, ou da própria lei, que deve ser transformada – sem
transgressão não há libertação. Libertar-se é transgredir, transformar. É criar o novo,
o que não existia e passa a existir.
Libertar-se é transgredir. Transgredir é ser. Libertar-se é ser.
Invadindo a cena, o espectador pratica, consciente, um ato responsável: a cena é
uma representação do real, uma ficção; ele, porém, espectador, não é fictício: existe em
cena e fora dela – metaxis! [7 ] –, o espectador é uma realidade dual. Invadindo a cena,
na ficção do teatro, pratica um ato: não só na ficção, mas também na realidade
social, que é a sua. Transformando a ficção, ele se transforma a si mesmo. [8 ]
Libertar-se é ser.
Naquele ano de 1976, no entanto, eu ainda não tinha essa clareza. Quando saí da
Argentina, boa parte do Arsenal na mala, fui para Portugal levando esperanças. Não
me dava conta de que a revolução portuguesa se chamava a dos cravos. Cravos são
flores; flores fenecem. Quando chegamos, os cravos revolucionários estavam secos,
perfumes tristes.
CASA PORTUGUESA, COM CERTEZA
Murchos, exalavam memórias. O governo, que me havia convidado, demorava a
assinar contrato. Céu Guerra e Hélder Costa, diretores d’A Barraca, me propuseram
ser o diretor artístico do grupo. A Fundação Gulbenkian aceitou pagar meu salário e
começamos a ensaiar Tiradentes: o colonialismo português. No Brasil, atores
imitavam lisboetas; em Lisboa, o contrário.
O governo assinou, pressionado pela classe teatral, o contrato prometido,
reduzido a seis meses… No fim de dois, artistas se revoltaram contra medidas do
Ministério. Não tive a menor dúvida em me colocar ao lado dos companheiros,
participando em uma manifestação pública. O ministro rescindiu meu contrato. O
cravo não machuca a flor – diz a canção de Nelson Cavaquinho. Eu, que nunca fui
flor, saí machucado: perdi a terça parte do meu salário, o aluguel.
Encenei, de Hélder, música de Zeca Afonso, “Zé do telhado”, e de dezenas de
artistas a Feira portuguesa de opinião, no Museu de Arte Moderna, com o título de Ao
qu’isto chegou!; marginalmente, montei um pálido e esquálido Zumbi.
Eu lecionava no Conservatório Nacional. Outro ministro, o da Cultura, convidou
professores, inclusive Carlos Porto e eu, para reformularmos o conservatório. Em
seis meses chegamos ao que nos parecia o programa perfeito.
O ministro nos recebeu com salamaleques e biscoitos finos. Ouviu nossos
projetos, entusiasmado, quase nos condecorou com pesadas medalhas pátrias. Na
porta, despedindo-se, lembrou detalhe importante: pela manhã, havia assinado
decreto que nos exonerava. Estávamos no olho da rua, todos. Se quiséssemos
retornar, teríamos que fazer exame diante de banca constituída pelos professores
mais reacionários do país. Perdi o segundo terço do meu salário…
Os cravos tiveram o trágico destino de todas as flores: a lata do lixo.
Passei dois anos em Portugal. Não fiz nada novo em relação ao Teatro do
Oprimido. Apenas um espetáculo de Fórum, no Porto, na rua onde um torturador do
serviço secreto havia sido capturado e, depois de assembleia popular, libertado; livre,
matou um revolucionário. Um grupo encenou a captura e, na rua, no lugar do fato
verdadeiro, fez-se o Fórum.
O fato de ser feito anos depois, no lugar da ação real, intensificava o debate;
diacronia nada melancólica – exaltava. Passado revisitado. Reflexão.
Visitei Justes, terra dos meus pais. Encontrei tia Bárbara, noventa anos
encurvados, vestido de luto fechado: serviu vinho, pão e presunto. Valeu a viagem:
visitei a janela de onde minha mãe olhava meu pai. Bendita janela! Caminhei na rua
em que se deram as mãos pela primeira vez. Imaginei o riso, arrepios.
Lisboa, dois anos, longa espera. Almoçando em minha casa com Paulo Freire, sua
primeira mulher, Elsa, assessores, e mais Darcy Ribeiro, minha mãe, chegada do
Brasil, disse que trazia carta do Chico Buarque. Eu havia escrito ao Chico duas ou
três, sem resposta. Pedi pra ler, ela me deu uma cassete: “Meu caro amigo”, com sua
voz e o Francis Hime ao piano. Ouvimos em silêncio as lembranças que nos
mandavam.
Catarse coletiva. O recado, coisa preta, era conselho: não volte, não é tempo ainda!
Darcy conta esse episódio no seu Aos trancos e barrancos. Não conta, porém, nossa
tremenda emoção, ouvindo o “Meu caro amigo”: não sou eu que vou contar…
Adivinhem. Como hão de adivinhar a importância, para exilados e banidos, da
solidariedade dos que ficaram. Carta de amigo, mesmo rabiscada a lápis, era consolo
e estímulo. Os que não se exilaram nunca, talvez não tenham ideia do bem que nos
faziam, escrevendo, contando até corriqueiras banalidades: bastava. A lápis…
Imaginem carta cantada…
Nunca joguei fora uma carta. Se não chegavam novas, relia as que tinha.
Em Portugal, escrevi tristezas. Pra quebrar meu imobilismo lusitano, trabalhava
em outros países criando grupos de TO. Jack Lang me convidou pra trabalhar em
Nancy. Curioso: meus alunos, vindos de diversas profissões, apaixonavam--se pela
ideia de que “somos teatro, mesmo que não façamos teatro”; meus dois assistentes –
casal de estudantes venezuelanos – abominavam tudo que não fosse Beckett, Artaud,
Ionesco. Eu também gostava, mas, apesar, queria inventar outro teatro, urgente: eles
faziam cara de tédio. Só entendiam o teatro consagrado, diplomado com carimbos
universitários. O não sacramentado parecia-lhes amadorismo. Confesso, me davam
raiva. Foi a eles – contra eles! – que dediquei a frase que me deu dissabores: Todo
mundo pode fazer teatro: até mesmo os atores!
Frase insolente, escrita com relativa raiva, mas que podia ser entendida em
candidez. Frase inocente, ingênua. Pena que tenha sido mal interpretada por quem
nela leu desprezo – coisa que nunca tive.
Dá-se o contrário: sou diretor que ama seus atores. Para mim, o ator é o centro do
universo teatral. A frase esclarecia que todos temos a vocação do teatro. Usamos na
vida real a linguagem teatral – corpo, espaço, voz, ideias, paixões! Como Monsieur
Jourdain, que falava em prosa sem se dar conta: falamos teatro! Teatro é a linguagem
humana por excelência.
Escrevi essa frase em Jogos para atores e não atores. Até o título parecia acintosa
provocação, como se jogos pudessem ser praticados por qualquer um, desnecessária
a especialização. Atores reclamaram.
Tentei consertar e escrevi: “Todo mundo pode fazer teatro: até mesmo os bons
atores!”. Deus nos acuda. Minha intenção, honesta, clara e simples: maus atores
representam sempre um só personagem – eles mesmos. Estão excluídos do
verdadeiro teatro por incapazes da aventura da criação, pois essa é a arte do ator.
Mesmo maravilhosos entertainers, sempre iguais a si mesmos, não são atores no
sentido técnico da palavra.
De todas as profissões, a do ator é a mais bela: enquanto cada um é quem é –
esquizofrênicos podem se dividir em dois ou mais personagens obsessivos, sempre
os mesmos! –, o ator pode ser, hoje, Einstein, Chaplin, Gandhi e, amanhã, lixeiro,
coveiro, pária analfabeto.
Eu quis dizer – creio ter dito! – que o ser humano é capaz de mergulhar nas suas
profundezas e emergir com personagens insuspeitados, potencialidades escondidas,
submersas na sua recôndita pessoa. Ser ator significa mergulhar esse mergulho,
despertar personagens que borbulham na panela de pressão do nosso inconsciente.
É belo ser ator. Somos todos capazes – menos aqueles que fazem, da profissão de ator,
seu único personagem.
Loreta e Carlos Valadares, exilados na Suécia, convenceram Inger Ziefeld, Claes
Von Rettig e Margareta Södeberg a me convidarem, sem me conhecerem, para
lecionar no Instituto de Arte Dramática de Estocolmo e dirigir oficinas nos Festivais
de Skeppsholm. Henry Thorau convenceu diretores alemães; Anne Martinoff me
levou a sindicatos da Bélgica e, de amigo em amigo, cidade em cidade, passei por
Suíça, Noruega, Dinamarca, Itália e acabei em Bollène, sul da França, em oficina para
professores do Movimento Freinet, mostrando técnicas pedagógicas do Arsenal do
TO. Dirigi oficina em Paris, no Aquarium da Cartoucherie de Vincennes, para atores
profissionais.
Vieram convites decisivos: de Émile Copfermann para publicar, nas Edições
Maspero, o Théâtre de l’Opprimé; de Bernard Dort, para ocupar uma cadeira na
Sorbonne-Nouvelle, Paris III: o titular estava em Londres. Já não tínhamos nada a
fazer em Lisboa: em setembro de 1978 fomos viver em Paris. De Portugal, levei
saudades de tudo o que não aconteceu… E lembranças de poucos amigos que
aconteceram.
PARIS E OS TIRAS NA CABEÇA
A Sorbonne foi importante. As aulas me obrigavam a me sistematizar. A matéria da
minha cátedra era eu mesmo: lecionava Teatro do Oprimido. O confortável salário
permitia viver bem. No tempo disponível, eu trabalhava no estrangeiro.
Copfermann me propôs criar um Centro. Sozinho, divulgando o TO mundo afora,
ele se difundiria lentamente. Concordei. Ele e sua esposa, Jacqueline, organizaram
um grupo de vinte professores, atores, psicólogos, trabalhadores sociais. Durante
meses, ensinei jogos e técnicas do Arsenal. Em janeiro de 1979, trezentas pessoas se
inscreveram, além de toda expectativa. Fizemos quatro oficinas de quarenta
estagiários cada, e formamos quatro equipes de cinco aspirantes a Coringas – cada
equipe orientou uma oficina, durante a semana. Sábado e domingo, os grupos se
reuniram para uma maratona de Teatro-Fórum.
No mês seguinte repetimos o processo, outros 160 estagiários e, no mês de março,
fundamos o Centre d’Étude et Diffusion des Techniques Actives d’Expression
(Ceditade), nome desnecessariamente complicado – esses franceses…
Tomamos a decisão: eu trabalharia no estrangeiro, abrindo espaço na França para
os membros do Ceditade. Erro: eu deveria ter ficado centrado, renunciando à
vocação de holandês voador; ter criado escola em Paris, fixa. Isso, penso agora.
1979 ia se acabando; tive a medida do que significava hierarquia no âmbito
universitário francês. Quando admitido, fui enquadrado como maître assistant. Em
uma reunião de professores, estava eu sentado no fundo da sala – Bernard Dort leu o
relatório da Columbia University que me dava direito ao posto de maître de
conferences. À minha frente, fez-se um vazio: vários maîtres assistants se afastaram,
abrindo luz. Tive que assumir pose de maître de conferences…
Substancial aumento de salário: emocionante… Quando fui receber atrasados,
lembrei-me do meu pai: “Augusto, quero que você seja doutor…”. Para alguma coisa
valeu-me a química: maître de conferences na Sorbonne. Além da mania de
sistematizar…
O titular da cátedra retomou seu cargo, eu quis aceitar um posto que se abriu de
maître assistant, não pude: inferior à minha hierarquia…. Hierarquia oblige. Raios!
Veio a anistia. Minha mãe morreu quinze dias antes da minha volta – não pude
vê-la. Recebi sua última carta no dia em que, pelo telefone, veio a notícia da morte:
estava me esperando, depois de tanto exílio. Cheguei tarde: não vi o corpo.
Na França, em 1981, fugaz visita da esperança: venceram os socialistas. Tivemos a
certeza de que seríamos ajudados no nosso trabalho pedagógico, terapêutico, social e
artístico: a França prestigia artes, ciências, humanidades. O governo socialista
prometia justiça aos grupos como o nosso. Mais contentes ficamos quando recebi
uma comenda: Officier des Arts et des Lettres!
Émile, francês e experiente, explicou: “Mau sinal: se te deram o reconhecimento
honorífico, o dinheiro será pouco”.
Tinha razão. Jamais recebemos do Ministère de la Culture o suficiente para o
aluguel dos locais que ocupamos. A estrutura de subvenções é tão estratificada que
os grupos culturais acabam recebendo o bastante para continuar fazendo sempre a
mesma coisa. Orçamentos pouco se modificam, projetos culturais também, além dos
monumentos faraônicos: Opéra de la Bastille, Grand Louvre, Très Grande
Bibliotèque, l’Énorme não sei o quê… Bonitos e grandes.
Na França, além da importância cultural, a arte tem enorme potencial econômico;
turistas são atraídos pelos museus, óperas, concertos, balés e teatros tradicionais.
Esperam ver Mona Lisa e Vênus de Milo, Rameau e Lully, Giselle e O quebra-nozes – não
querem surpresas. Multidões de turistas, além de consumirem cultura, comem em
restaurantes, dormem em hotéis e tomam táxis pra fazer compras nas Galleries
Lafayette e na Tati… Gastam.
O orçamento da Cultura, na França, anda por volta de 1% do orçamento do país –
enormidade. Só a Ópera de Paris maneja mais verbas do que Burkina Fasso, país
africano com 9 milhões de habitantes. Cultura na França é rentável.
No Brasil, fartas subvenções vão para o Carnaval. A mesma razão: turismo. Aqui, a
cultura clássica não atrai japoneses ou alemães. Charters não chegam superlotados
para o Museu Imperial ou Quinta da Boa Vista. Para o samba no pé, baianas
rodopiando na avenida, sim! Outra cultura.
No meio do caminho ficam os grupos de arte popular que fazem trabalho
necessário e útil, mas não espetacular: inadequado para vitrines.
Nos anos 1960, existiam comissões estaduais de teatro, cinema, circo, ópera, artes
plásticas, e outras formadas por artistas, jornalistas e pessoas indicadas pelo
governo. Subvenções eram dadas publicamente – discutia-se, esmiuçavam-se
projetos. Hoje, quem decide é o poder econômico privado. Artistas tornaram-se
dependentes dos patrocinadores – estes detêm o poder.
Cultura foi privatizada, como nos tempos dos reis e dos senhores feudais:
empresas podem gastar em arte até 3% ou 5% do que deveriam pagar de impostos. É
lógico que um dono de supermercado não sentirá a menor tentação em financiar
peça de personagens famintos; empresa de tecidos, espetáculo em andrajos. Cada
empresa buscará artistas com os quais deseja ver associados seus produtos, pois
querem vender sabão em pó associado ao corpo da atriz Fulana, para que quem
deseja o corpo se ensaboe com o pó. Artistas correm o risco de se identificar com as
mercadorias: vozes dos seus donos ao invés de donos de suas vozes.
Em reunião diante do ministro da Cultura (1997), ouvi um conhecido dono de
supermercado agradecer: “Já podemos escolher nossos artistas”. Horror! Isso é a
privatização da cultura: a mesma sensibilidade que escolhe secos e molhados decide
a arte. Não tenho nada contra nenhum gosto, adoro feijoada, mas são gostos
diferentes: Bacalhau a Brás e dança moderna têm pouco a ver.
Como cigarro e mulher nua!
CASERNAS NA CABEÇA
Na Europa, comecei a me preocupar com opressões das quais não se falava na
América Latina: solidão, incomunicabilidade, vazios, angústias múltiplas – diferentes
do salário minguado, da falta d’água, fome e violência, greves, mas… muita gente se
suicidava por não poder suportá-las. Mais suicídios havia na Escandinávia, onde
problemas de subsistência estavam resolvidos, do que no Cone Sul, onde as ditaduras
assassinavam a frio, a morno e a quente, mas onde menos pessoas apontavam as
armas para suas próprias cabeças.
Eu tinha o dever de ampliar o arsenal do TO, inventando novas técnicas que
ajudassem as vítimas dessas torturas psicológicas a teatralizarem suas opressões,
compreendê-las e combatê-las.
Em Paris, em 1982, com Cecilia, agora psicanalista, [9 ] iniciei um atelier, “Le Flic
dans la tête” [O policial na cabeça]: se o policial não estava diante da vítima, onde
estaria? Na América Latina, opressão era a polícia. E na Europa? Novos Oprimidos
traziam em suas cabeças seus próprios policiais. Era preciso desalojá-los.
As técnicas introspectivas que descrevo n’O arco-íris do desejo [10 ] partem de relato
individual e buscam pluralizar-se [11 ] – queremos descobrir policiais e quartéis. Se
está na cabeça de um, pode estar na de outros mais: de onde terá vindo? Por que
fresta penetrado? Como expulsá-lo? Como fechar o caminho? O atelier durou dois
anos.
SAUDADES
Continuei preparando a volta, em 1986. A história desse retorno está inteira no
Teatro legislativo. Aqui, basta dizer que entrei para o PT, fui eleito vereador, em quatro
anos formamos dezenove grupos de teatro como política e não mais o velho teatro
político, apresentamos 36 projetos, promulgamos treze leis.
Treze vezes, no Rio de Janeiro, o desejo da população tornou-se lei. Essa talvez
tenha sido a principal conquista do Teatro do Oprimido. Transformar o desejo em
lei.
A Lei é sempre o Desejo de alguém. [12 ] Quando será o nosso? Qual o objeto do
nosso desejo?
Quem somos nós?
1 O teatro sempre foi grito de liberdade e sempre foi prisão – depende de como se usa.
2 É o que se dizia… não sou testemunha.
3 Fica esta constatação clara: esse Outro que Thespis afirmava que não era Thespis era o Desejo de Thespis. Já aí se
consumava a partição do eu – o eu, ator e o eu, personagem. Ambos Thespis!
4 Antes do Protagonista thespiano, o Personagem, a rigor, não existia: o poema que saía pela boca dos coristas
neles havia sido enfiado pelos ouvidos, sem passar pelas regiões mais complexas e obscuras do cérebro… A maior
parte do coro não sabia o que dizia: decorava a letra e o tom. Escola de samba.
5 Leia o Teatro legislativo, onde este conceito é examinado.
6 Além da Poética, leiam também outros livros meus: Teatro do Oprimido, Jogos para atores e não atores, O arco-íris do
desejo, Teatro legislativo e, sobrando tempo, Crônicas de nuestra américa, O suicida com medo da morte, Jane Spitfire… e,
principalmente, este livro até o fim! E também, importantíssimo, As imagens de um teatro popular, de Julián Boal.
7 Pertence, simultaneamente, aos dois mundos, o da realidade e o da representação dessa realidade.
8 Libertando-se, paradoxalmente, o espectador nos liberta e nos permite exercer, plenamente, a nossa arte.
Temos o direito de falar porque somos capazes de ouvir.
9 Em casa, falávamos de psicanálise, Stanislavski e assuntos correlatos. Não sem razão, Julián, menino,
perguntado por Cecilia sobre seus sonhos na noite anterior, respondeu que o verdadeiro significado estava
escondido em sua cabeça. O que seria? “Le désir!”, disse, aos nove anos. E acrescentou, desencorajando análises:
“Ce qui est caché, doit rester caché…”.
10 O arco-íris do desejo é o nome de uma técnica em particular e o título genérico do capítulo do TO que trata de
técnicas introspectivas, como o Tira, a Imagem-Tela etc.
11 Nosso processo é terapêutico sem ser terapia. Existe a função do Coringa, que organiza a sessão, mas não
interpreta: usamos o espelho múltiplo do olhar dos outros – ninguém tem mais autoridade interpretativa do que
ninguém, apenas cada um reflete a imagem que vê com seus olhos, sua sensibilidade, sua história. Procurávamos
partir de um relato individual – história particular. Porém, da história particular procurávamos não singularizá-la
na pessoa no protagonista, mas sim pluralizá-la nos participantes do grupo.
12 Hamurabi, que, no século XVIII aC, promulgou o primeiro Código Penal existente no mundo, dizia que as leis
aí constantes lhe vieram diretamente de Deus – cujo desejo era Lei.
O RETORNO IMPOSSÍVEL E A ESTRANHEZA DO FAMILIAR
CAPÍTULO 25
VOLTEI PRO MORRO – CONTRA TODA EXPECTATIVA, NÃO VI CACHORRO…
Sempre que chegava a novo país, nova língua, metabolismo, tudo novo, pensava: um
dia, volto pra minha caneca de café, minha, só minha.
Em trânsito – sozinho, com a família ou com meu elenco francês –, eu visitava e
achava o Rio estranho; não tinha tempo de ver o que olhava. As pessoas não eram
iguais ao que haviam sido: vozes, timbres, pensamentos, tudo diferente.
Em 1986 fiquei morando e me dei conta do impossível. Ninguém volta do exílio,
nunca! Jamais. Meu país já não era, nem a gente a mesma gente, nem eu, Augusto.
Até o mar não era o mar: aterraram Flamengo, Copacabana. Tudo desigual. Edifícios
escurecendo a praia, fazendo noite antes do sol se pôr. Memórias de luz, areia
escura. Catedral sarcófago, a mais feia do mundo! Até nisso somos os maiores: a mais
feia!
O RELÓGIO DA MESBLA
Pensei: o relógio da Mesbla. Salvação! O relógio seria igual a si mesmo. Jovem,
passava por ele indo pra Química. Imagem quente. A menos que o tivessem roubado
ou destruído – ou, quem sabe? –, talvez os militares o tivessem encarcerado em
fundo calabouço porque seus ponteiros se negavam a dar voltas pra trás! Militares
odeiam relógios: avançam sempre!
Para os braços do relógio poderia voltar, voltando à casa. Ele guardava minhas
intimidades, segredos.
Armado de medo, fui à Cinelândia, vendo meus pés caminhando curvos nos
desenhos da calçada. Tomei distância com a emoção que teria diante da mulher
amada. Levantei os olhos, lenta câmera. Meu coração disparou: o relógio,
desconfiado, me olhou sem levantar os olhos, frio. Ponteiros avançaram
desrespeitando minha presença – caminhando sem partir –, Sísifo sem pedra, sem
alturas maiores do que o mostrador.
O relógio me olhava incomodado como operário quando alguém o vê
trabalhando. Sorri intimidades, reconhecendo ponteiros amigos – tantas vezes me
fizeram apressar o passo! Fiz a leitura sensual de suas horas redondas, imaginando as
que mediram minha ausência.
O relógio, insensível, não se lembrava do amigo desejoso do abraço dos seus
ponteiros suados. Susto: seria aquele o meu, só meu, o relógio da Mesbla? Examinei-
o: transeuntes, preocupados com minha saúde mental, me examinavam: “O senhor é
doente ou é assim mesmo?”, desconfiou um desconfiado.
Respondi que era assim, Deus fez o que pôde, pouco inspirado, nesse dia. “Escute:
esse é o relógio da Mesbla de antigamente? Nada mudou? A medição da angústia? O
lento amor, ódio apressado? Anos a fio, não tomou partido, ficou no muro? É o
relógio da minha fuga, do meu primeiro Eu te amo, juro?”
Juntou pouca gente e muito espanto: cinco passantes, sem afazeres. Expliquei: o
relógio, velho amigo, me olhava com horários estranhos, imerecidos soslaios
agressivos.
Com tristeza, vi edifícios caros na infância. A Candelária trancava portas pesadas
como quem fecha os olhos repletos de sono cansado. Maracanã, gatos abandonados à
sobrevivência neoliberal – não me deu nem Oi, nem quis recordar o triste julho de
1950 [1 ] –, perdoei, levando em conta prazeres que me havia oferecido, sendo eu
moço. Não pude ver o Pão de Açúcar, escondido atrás de dúzias de Pães de turismo,
roteiros tropicais, bananas, abacaxis, coxas mulatas.
Não pude ver o Cristo pisando o Corcovado; coberto de faixas que gritavam
imperativas: Brasil, Ame-o ou Deixe-o! Não pude vê-lo: em suas costas largas haviam
pendurado gigantescas ordens: Beba Diet, Coma Fast, Morra de Câncer e Colesterol! Faça-o
já! Drop dead! NOW!!!
Procurei o Rio no Rio e não pude encontrá-lo. Pudera: eu estava no Rio de Janeiro.
Único lugar onde o Rio de Janeiro já não existia.
CARMEN MIRANDA
Na volta dos Estados Unidos, Carmen cantou “Voltei pro morro”; veio buscar seu
cachorro, chinelas. Que cachorro, Carmen, que chinelas?! Como se pode voltar para
onde nunca se esteve? O que existe não é o que existiu!
O morro de Carmen era virtual. Via Rio, morro, cachorro. Pura imaginação.
Relógio: sobre ele, eu projetava esperanças químicas, horários com namoradas,
remorsos pelos atrasos, culpas, afagos. Ele marcava horas sem saber se era cedo ou
tarde, se longa a espera ou se faltava pouco. Dava esperanças… sem tê-las.
Carmen, [2 ] jamais voltaremos, eu, você, nós dois, jamais reencontraremos cães
vagando sem rumo, sem nós, legítimos proprietários de ilusões perdidas e cães
desenxabidos: nossos morros mais íntimos nunca existiram, nem cachorros amados,
mais queridos. Nós os inventamos com nossos desejos. Você voltou pra Hollywood
sem saber que o Rio nem te via: o que você buscava só existia em você. O meu Rio,
em mim.
Estou convencido: só podemos voltar para onde nunca estivemos – só os
paradoxos são verdadeiros. Lá, onde jamais estivemos, nesse país, cidade, recanto, lá
podemos projetar imaginários. Quantas vezes, ao chegarmos onde jamais pisamos,
dizemos: “Eu me lembro… Já estive aqui…”.
Estou convencido: só lembramos o que não aconteceu.
TENTEI
Meu primeiro espetáculo, depois do exílio, foi O corsário do rei. Peça simples,
botequim onde mesas seriam barcos; toalhas, velas; bêbados, piratas. Simples como
Zumbi, pobre como o Arena.
Os produtores, corajosos, não mediram esforços – que pena! Anão de circo virou
gigante; roto corsário, Armada Invencível; Brancaleone, Sétima Frota. Elenco inchou
elefantíases vertiginosas: 35 atores, quinze maravilhosos professores orquestrados
no fosso, dezenas de maquinistas no porão manipulando navios de guerra, canhões
disparando bolas de fogo, fumaça azulada. Lindo…
… mas a peça não era isso. Fosse a Ceia de Cristo, naquela produção milionária
teria 120 apóstolos em lugar da sintética dúzia; teria garçons carregando porcos,
aves, peixes e olivas para saciar a fome de multidões convivas; mulheres
abasteceriam de pão e vinho gulosos evangelistas e – ah!, sim! – dezenas de Judas!
Um Judas solitário seria incapaz de tanta traição – fiel retrato do Brasil!
Peça pequena é pequena! Minha volta, porém, tinha que ser grandiosa. Quando,
em 1979, voltei depois da anistia, o fiscal da Receita ficou estarrecido: “Quem é você,
que traz tanta gente famosa ao aeroporto? Pelo amor de Deus, me diga quem é…
Não vou revistar tua mala, deixo passar o que for, mas quero saber quem é
você???!!!”, perguntou o funcionário vendo Chico Buarque, Paulo José, Dina Sfat, Ruy
Guerra, Bete Mendes, Fernando Peixoto, Tessy Callado, Yan Michalski, minha família
e outros amigos na porta do avião esperando o meu abraço.
Quis explicar que eu era apenas eu só, bastava. Desisti: o fiscal não entenderia.
Ninguém pode ser só quem é, tem que ser outros. Pra mim, meus amigos eram
amigos meus: para ele, celebridades. Vieram me receber: o fiscal queria saber que
raio de celebridade eu era – tinha que ser. Minha volta, em teatro, estava condenada
a ser a volta de uma Celebridade! A peça, que era jangada, virou Titanic. Tinha que
afundar, mesmo sem iceberg! Muitos icebergs foram disparados contra aquele
espetáculo.
Seduzido pelas facilidades – e pela Moral Sindical: era urgente empregar o maior
número de atores, tempos de crise! –, eu me senti Ingrid Bergman em Hollywood.
“Se eu pedisse um elefante cor-de-rosa, vivo e pulando corda, no dia seguinte me
dariam dúzias de elefantes coloridos, a escolher”, disse ela.
O elefante que me foi dado era branco.
Lembrando, lembro belo espetáculo, músicas e letras, cenografia, atuações, beleza
pura. Só faltava sangue nas veias e o coração não batia.
A crítica desancou, era normal. Não tão normal que dissessem que eu, depois de
tanto exílio, não estava em sintonia com a realidade carioca, onde se apresentavam
bulevares franceses e alcoólicas comédias norte-americanas escritas por autores que
jamais haviam estado sintonizados com o que quer que fosse e nem sabiam se o Brasil
ficava em Buenos Aires ou vice-versa. No Rio, ouvi o argumento ouvido em outros
países: “Você é estrangeiro, não pode nos entender”. Estrangeiro em minha casa.
Não: simplesmente, eu era eu! Não tenho por que ser igual! Igual a quem? Alguém é
igual? Não somos sequer iguais a nós mesmos.
FERNANDA
Em 1985, dirigi Fernanda Montenegro, em Fedra. Foi a terceira vez que se montou
esse autor, profissionalmente, no Rio. Diante do sucesso, Carlos Kroeber brincava: “O
carioca adora Racine!”.
Ano e meio corremos o Brasil. Fernanda: nunca vi quem gostasse tanto de ensaiar.
Se, à meia-noite, depois da exaustão do ensaio, eu propusesse correr a peça inteira,
sua voz falava firme, primeira: “Vamos!”.
Fernanda tem enorme talento, já se viu; tão importante quanto seu talento
imenso é seu imenso desejo de trabalhar. Para um diretor, é belo: artista criando,
querendo mais! Fernanda é daquelas atrizes que nos fazem compreender o teatro.
Perdoem o chavão: amá-lo!
É lindo ver Fernanda em cena: descobrimos essa maravilha que é o ser humano.
Renasce a esperança: talvez o ser humano seja viável…
Nosso espetáculo era selvagem como se a peça tivesse sido escrita por longínquo
bisavô dos trágicos gregos, século x antes de Cristo, trinta antes de nós, e não pelo
rigoroso alexandrino Racine, frequentador da corte de Luís Sol. Foi possível porque o
texto, traduzido por Millôr em versos brancos, casava-se com um tronco de árvore
simulando bicho-fera – único elemento cênico, além do chão de peles de vaca,
contornado de bambus. [3 ]
Eu dizia aos atores: “Fora daqui, a gente faz teatro a vida inteira, sempre;
cruzando os bambus, em cena, não se pode fazer teatro: aqui é vida!”. Dizia o que
penso: no palco, vive-se. A sociedade resmunga: “Não, não é, não pode, não faça, não
queira, não diga!”. Teatro, ao contrário, é a arte que diz Sim!
NOVAS TENTATIVAS
Com Maitê Proença, outra batalhadora, fiz La Malasangre, de Griselda Gambaro, que
também dirigi em Nuremberg. Lá, espetáculo geométrico, linhas retas, alemão; aqui,
geometria variável aleatória! Lá e cá, mecanismos ditatoriais vistos da sala de jantar.
Cansei. Atores precisavam ganhar a vida em TV e cinema – teatro pouco paga.
Acontecia ficarmos esperando para ensaiar e tendo que desistir porque as gravações
atrasavam, filmagens distantes.
Fiquei onze anos sem dirigir no Rio, além das curtas peças do meu Centro do
Teatro do Oprimido (CTO).
A EXPERIÊNCIA LEGISLATIVA
Não vou contar: está no meu Teatro legislativo. Conto só que, ao voltar de Paris, quis
fundar a Fábrica de Teatro Popular. Organizei programa nas escolas públicas do
estado. Cecilia e Rosa Luisa Márquez, diretora dos Teatreros Ambulantes de Puerto
Rico, me ajudaram a dirigir 35 animadores culturais.
O governador eleito em lugar do Darcy não quis saber do projeto. Quase
suicidamos o CTO. Procuramos o PT, oferecemos ajuda nas eleições de 1992 – seria o
ato final do CTO. Aceitaram, com a condição de que eu me apresentasse candidato.
Certo de que não venceria, aceitei.
Venci. Durante quatro anos, vivi exilado do teatro profissional e conheci a arena
sangrenta da Câmara; aprendi o que já sabia – ali é o lugar onde se vai brigar por
apetites pessoais ou corporativos, não pelo povo. Aí se encontram até banqueiros do
bicho e membros de esquadrões da morte. No meio disso tem boa gente, como em
qualquer lugar, até santos!
Em quatro anos criamos dezenas de grupos – camponeses sem terra, crianças sem
abrigo, idosos sem esperança, estudantes negros, favelados, operários sindicalizados,
mulheres espancadas –, com eles fazíamos TO. Suas ideias eram levadas à Câmara
Municipal, onde meus advogados (pelo mandato e pela Comissão de Direitos
Humanos, da qual fui presidente!) metabolizavam sugestões, transformando-as em
projetos: mais de trinta!
Treze desses projetos foram promulgados em Lei Municipal.
O Teatro Legislativo [4 ] foi conclusão de busca, início de perplexidade. No Teatro-
Fórum queríamos que a população expressasse seu desejo. Era pouco. Então… que
transformasse esse desejo em lei. Treze vezes, foi possível.
Fiz experiências análogas em Munique (prefeitura), Paris (com o grupo
antirracista Mouvement contre le Racisme et pour l’Amitié entre les Peuples – MRAP),
Londres e Bradford (Inglaterra).
Em Londres fizemos Sessão Solene Simbólica. Organizada por Michael Morris,
sessão condensada de Teatro Legislativo. Três grupos – dirigidos por Adrian Jackson
(Transporte), Paul Heritage (homeless, os sem-teto) e Ali Campbell (Educação) –
apresentaram-se no Greater London Council, a Câmara de Vereadores, fechada
durante o reinado de Margaret Thatcher. Presidi a sessão, sentado na imponente
cátedra do presidente, inamovível pelo peso, rodeado de escritores conhecidos e
queridos – Lisa Jardine, Tariq Ali e Paul Hellan –, advogados de direitos humanos
(Stephen & Innocents). Julián Boal e uma jovem faziam a ligação da mesa com o
público instalado nas poltronas antes ocupadas pelos legisladores. De pé, Orlando
Seale, ator da Royal Shakespeare Company, e Tim Wheeler, diretor de Mind the Gap,
arte e terapia, vestido de Anjo da Guarda. [5 ] Uma banda de música improvisava.
A Sessão Solene consistia, primeiro, na invocação da proteção divina (pedi a
proteção, como vocês já imaginaram, de dois excelentes Deuses amigos, Apolo e
Dionisos); em seguida, apresentação de cada cena com intervenções de espectadores
em busca de soluções legais. No fim de cada fórum, espectadores redigiam leis a seu
modo, escritores davam-lhes forma literária, advogados feição legal, e eu as punha
em votação.
Era teatro, ficção. Mesmo assim, mostravam-se caminhos: através do teatro, pode-
se fazer a lei. Teatro como política, não apenas teatro político.
Outras experiências começam a acontecer, mundo afora. Em Bradford, promovida
por Tim Wheeler, a Sessão Solene na Câmara local se concentrou em uma única
peça, realizada por portadores de síndrome de Down, na presença do prefeito de
Bradford e de legisladores em exercício, abril de 1999. No Rio, o Congresso de Teatro
e Desenvolvimento, junho, realizou a sua sobre temas locais. Em outubro, no
Kardinal König Haus, Viena, Áustria, em um festival de TO organizado por Lisa Kolb e
o Theatergrouppe Wiegl, foi feita a primeira Sessão Solene na presença de um
ministro de Estado (o de Ciências) e quatro deputados – todos participaram da mesa-
redonda final.
Estas Sessões Solenes servem apenas – e já é tanto! – para mostrar o que é
possível! Alguém faz a lei: por que não nós? Sessões Solenes são simbólicas… mas,
sem os símbolos, o que seria da civilização?
O TO, sem abandonar espaços, busca caminhos: na televisão canadense, através de
satélites, já se fez Teatro-Fórum (Headlines Theatre, David Diamond); nas prisões
inglesas e brasileiras (TIPP Center, Paul Heritage) também. Outras pessoas tentam
experiências semelhantes em todo o mundo. Por exemplo, a fusão de TO e danças
tradicionais populares feita pelo Jana Sanskriti (Sanjoy Ganguli), em Calcutá, Índia.
TEATRO EXECUTIVO
Desde 1997, em Santo André, assembleias populares, que decidem o orçamento da
cidade, começam invariavelmente com a apresentação de peças-fórum montadas
pelos elencos organizados pelo CTO, relacionadas a esse orçamento. Experiência que
promete florir. Hoje, o governo municipal de Santo André já tem o seu Grupo de
Teatro do Oprimido, inteiramente institucionalizado – trata-se, na verdade, de Teatro
Executivo… No Rio, o CTO colabora com o Fórum do Orçamento Municipal (ONG) e já
dá os primeiros e os médios passos. Em Porto Alegre… Minas Gerais… Bahia…
ENCRUZILHADA
Em teatro, comecei falando de mim, do meu bairro. Conhecia a Verdade: dei
conselhos. Descobri: não podia libertar ninguém ocupando o seu espaço, tomando
suas decisões. Sistematizei o TO para que o oprimido fizesse o seu teatro, não eu para
oprimidos ou sobre eles.
Findo o paternalismo. Nós, artistas, somos, no entanto, necessários. Sem
paternalismo mas, de certa forma, pais. Nossa relação com o oprimido-artista, não é
paternalista, mas continua paterna.
Julián Boal, em seu livro As imagens de um teatro popular, reconhece a importância
do Teatro do Oprimido; no entanto, pergunta: como ficará agora a relação entre o
artista-intelectual e o povo-artista? Como será possível desenvolver essa relação
democraticamente, quando se sabe que um método, qualquer método, é elaborado
segundo uma ideologia viva e terrena, e não na pureza ideologicamente asséptica de
um laboratório? Como será possível oferecer esse método aos oprimidos sem que
venha já impregnado da ideologia que o inspirou?
Concordo com Julián, mas acrescento: o TO não é evangelizador como o antigo
teatro político, não traz respostas prontas: faz perguntas. Como Sócrates, que não
metia ideias na cabeça dos seus interlocutores e sim fazia-os parir ideias que já
tinham. É o que dizia o filósofo.
Julián contesta: ao escolher as perguntas, Sócrates induzia o campo das respostas
possíveis. Não metia ideias na cabeça de ninguém, mas estimulava o surgimento de
ideias que respondiam às suas perguntas. Havia indução, embora não coação.
No caso do TO, no entanto – creio –, a estruturação desse método já é o resultado
de um diálogo ideológico. Eu não inventei o Teatro do Oprimido sozinho, em minha
casa, nem recebi as Tábuas de Deus: foi na interação com plateias populares que o TO
foi nascendo, paulatino. Não saiu de mim pronto e acabado: foi-se formando através
de trocas.
Estruturei o método através de décadas de trabalho como, em uma sessão de duas
horas de Teatro-Fórum, o Coringa estrutura intervenções dos espect-atores sem
manipulá-las. Claro que o Coringa intervém com a sua ideologia, mas a plateia viva
aí está a se contrapor, se discorda! [6 ]
O TO foi estruturado com base nas intervenções de plateias vivas, populares. Os
desejos dessas populações organizadas estão integrados na própria estrutura desse
método. Os desejos são dela, mas fui eu que os estruturei. Meu trabalho foi, em
parte, interpretativo e sistematizador – não catequético, embora seja verdade que a
relação artista-plateia popular é delicada.
Mas é claro que eu existo – isso se nota! [78 ]
Esta é a minha atual perplexidade. Criança, uma vez com uma pedra quebrei ovos
trêmulos, pintos quase prontos, para ajudá-los a nascer sem esforço: matei-os.
Aprendi a lição: já não mato pintos! Mas… como ajudá-los a nascer, crescer, sem
quebrar os ovos?
Não sei. Sei que, artistas, devemos ser como o Mágico que faz suas mágicas e
ensina a fazê-las. Gosto de mágicas: faço-as; sou professor e gosto de ensiná-las.
Quero escrever peças, encenar, dar testemunho, falar do que sei, sinto e sonho. O
Teatro do Oprimido, que pretende libertar o artista que existe em cada um de nós,
me libertou a mim para que eu possa sentir o que sinto, sem remorsos; falar de mim,
sem vaidade (se possível…); dar meu testemunho, veraz. [79 ]
Já era tempo. Quem sabe, talvez comece agora algumas novas etapas da minha
vida, de quinze anos cada, como as três primeiras…
Subnota 1 – Quem começou com essa ideia de valorizar a palavra-conceito em relação à música-som, que se
tornaria simples acompanhante; quem propôs o canto monódico em detrimento do polifônico; quem disse que
só assim se poderia valorizar o sentimento humano, quando expresso por um só ser humano em recitativos,
solos e árias, foi Vicenzo Galilei – pai de um outro Galilei que vocês conhecem, o que disse, diante da ameaça da
fogueira inquisitorial: “E pur si muove…”, com isso significando que a Terra não era absolutamente quadrada
como se pensava e desejava. Galilei Pai defendeu suas ideias musicais em sua obra Dialogo della musica antica et
della moderna, escrita em 1581. Vejam bem: pouco antes de que Shakespeare começasse a escrever suas tragédias
nas quais Diabos medievais abstratos passaram a ter nome de gente: Iago, Ricardo III, Lady Macbeth… Indivíduos
se multidimensionalizavam no teatro (Hamlet, Otelo, Lear…) e abriam espaços na música. O pesado estilo
românico já havia cedido espaço ao esguio gótico, mais indivíduo, menos divinizante! Os criadores da ópera
(como os demais renascentistas) desejavam restaurar a tradição clássica grega – a do tempo em que seu comércio
se desenvolvia, sua burguesia se fortalecia. Vejam o paralelo: Thespis propunha o Protagonista contra o coro; os
inventores da ópera, a ária contra o coro polifônico. Num e noutro caso, vitória do Indivíduo!
Subnota 2 – História curiosa: Henrique IV, por motivos políticos, anulou seu casamento com a famosa rainha
Margot, Maguerite de Valois e, por motivos econômicos, casou-se por procuração com Maria de Médicis, filha do
senhor de Florença, próspera cidade – para evitar guerras, diziam. Para que os esponsais marcassem claramente
sua ruptura com o protestantismo e sua recente reconversão ao catolicismo – Paris vale bem uma missa! –,
encomendou um programa musical original, que resultou nessa primeira ópera – sabe-se que havia outra, dos
mesmos autores, Dafné, mas que se perdeu no tempo. No enredo, Orfeu vai buscar Eurídice no Inferno. Vejo,
nisso, semelhança: e vocês, veem também? Inferno e Florença – será?
Tanto na mitologia grega como no enredo italiano, Orfeu perdia Eurídice, esposa adúltera que morreu picada
por uma cobra-d’água enquanto se entretinha com Aristeu, apicultor. Orfeu lhe oferecia as delícias imateriais da
música, Aristeu, as concretudes do mel…
Orfeu, maravilhoso poeta e cantor, encantava seres humanos e animais, plantas e pedras com seu cantar –
encantou as potências infernais, que concordaram em lhe devolver Eurídice com a condição de que ele não
deveria olhar para ela nem lhe falar no percurso de volta, até retornarem ao convívio humano. Orfeu, que não
aguentava de tanta pressa, olhou e Eurídice morreu uma segunda e última vez, agora definitiva.
Henrique IV, quando soube dessa história, ficou uma fera! Henrique casou-se à distância, sem ver a noiva!
Quando soube desse percalço do enredo, o rei deu uma bronca danada em Peri e Rinuccini e falou assim: “Isso
não, nunca! Vocês não sabem com quem estão falando!!! Vocês vão ter que dar um jeito no resumo dessa ópera e,
pro meu casamento, quero que Orfeu agarre Eurídice de qualquer maneira, pelos cabelos se preciso for, pode
olhar pra trás quantas vezes quiser, e ela vem com ele na marra morar comigo em Paris, onde eu mandar! É
assim que eu quero, assim será! Ficam revogadas todas as disposições mitológicas em contrário!!!”.
Vejam vocês: a vontade singular de um só rei é sempre mais poderosa do que a vasta mitologia grega!!!
CAPÍTULO 26
A VIDA, ATÉ AGORA!
Ainda bem que eu nasci! Se não, quem veria o mundo do jeito que só eu? Quem
contaria a história que só eu posso contar? Quem seria tão triste com minha tristeza,
contente com minha alegria? Quem seria capaz de dizer: “Augusto, ainda bem que
nascemos…”?
Só eu!
Refiz caminhos, escrevendo este livro. Revivi a vida vivida. Tentei passar a limpo:
impossível – posso rescrever enciclopédias, não minha vida. Li biografados: se
pudessem, fariam tudo de novo, do mesmo jeito. Eu, recomeçando, nunca faria nada
igual ao que fiz: sei o que não sabia.
Minha vida foi rascunho, frases não terminadas, reticências, borrões, sintaxes
inesperadas. Mas não posso, nem quero, passá-la a limpo: fiz o que pude. Mais
pudesse, mais teria feito.
Não me arrependo nem do erro. Cada feito, foi o fazer possível. Hoje, seria outro,
desigual: passou tempo. Mas, naquele tempo, o tempo ainda não havia passado. Que
me desculpem os que ofendi.
Atravessei continentes, oceanos, becos e veredas – tropecei em pedras, tantas
havia no caminho! Posso me dizer, na solidão da palavra escrita: “Ainda bem que
você nasceu, Augusto. Fez diferença”.
EPIDAUROS: A FESTA DA PALAVRA!
Entrei no grande teatro de Epidauros, lembrei da primeira vez, vinte anos antes.
Subi até o permitido. Nas arquibancadas, pensei na Ifigênia em Áulis, que montei em
Paris, o vento roçando seu pescoço donzelo, antes da lâmina profunda; Édipo,
soberbo, desvendando mistérios; Medeia, desvairada; Os sete, combatendo Tebas.
Por que deslumbramento? Senti no corpo, não só em pensamento – força de mar
na pedra –, senti a tragédia grega como a Festa da Palavra.
Os gregos conseguiram feitos extraordinários na guerra e na paz, fronteiras
estendidas, democracia inventada; na arquitetura, Acrópoles e Parthenons, estátuas
humanizadas; tudo grandioso, feitos e pedras. Porém maiores foram as conquistas do
seu pensamento: palavras e números.
Com Pitágoras, descobriram segredo fundamental, guardado a 7 mil chaves por
deuses ciumentos: o número não depende da coisa numerada. Fantástico! Você, que
me lê, pensa que foi coisa pouca: monumental, porém!
Hoje é fácil imaginar que dois e dois sejam quatro, sem que nos perguntemos a
identidade desses dois dois: basta sabermos que dois, sejam quais forem, mais
quaisquer outros dois, somam quatro, não importa quais.
Antes de Pitágoras era preciso ver a coisa antes de contá-la, como crianças que
aprendem em ábacos, bolinhas deslizando em fios: crianças aprendem a somar e
subtrair deslizando pedras. Cálculo = pedra: para se calcular, eram necessárias.
Antes de Pitágoras, somar sacos de arroz e de feijão era fácil: sacos permaneciam
quietos, sem exibir vontade própria. Mas como somar quinze vacas e sete bois
famintos? Animais, sem paciência para álgebras e outras filosofias, queriam pastar:
para isso nasceram, nada mais justo. Aritméticas pré-pitagóricas sofriam com a fome
vacum: cálculos davam errado por causa de impaciente vaca ou boi extraviado.
Pitágoras separou o número da coisa numerada e o pensamento humano saltou
gigantesco: desfez-se dos ábacos quadrúpedes. Tão vertiginoso foi o progresso que o
filósofo criou religião onde o Número foi içado à categoria de Deus omnipresente,
essência do existente. Pitágoras ficou louco – é natural: até eu ficaria, descobrindo o
Número!
O FMI, ardiloso, faz o que fez Pitágoras, inocente: separa lucros e alíquotas
(abstrações) da miséria e da fome (concretas!): o ser humano não conta – conta o
Mercado-Deus-Número-Alí-quota-Juros-Lucro. Quando os mandantes do FMI,
verdadeiros governantes do Brasil e de boa parte do mundo, vêm ao nosso país,
nunca sobem o morro para ver a tragédia que causam com suas canetas douradas:
fazem contas abstratas – para eles, só o Mercado existe.
Filósofos queriam explicar o mundo e os números não bastavam, eram apenas
quantidades; os gregos queriam saber qualidades. Pensavam relações humanas,
queriam entender o indivíduo em situação, separando o comportamento ocasional
do seu significado perene, que não dependia dessa situação, mas aplicava-se a todas
do mesmo gênero. Criaram a Moral. Do fenômeno – fato isolado – chegava-se à Lei
que o rege: Ascese.
Os trágicos gregos nunca mostravam em cena atos de violência, mortes,
assassinatos, suicídios, olhos perfurados, brutalidades facinorosas: mostravam suas
razões em palavras. As tragédias aconteciam através das palavras. O contrário de
Rambos e James Bonds – na tragédia grega frios punhais não penetravam a carne
quente, face ao público: palavras, sim, palavras perfuravam corações.
Palavras eram entidades, seres vivos, invejavam-se, duelavam, faziam a paz,
namoravam-se e se matavam. Tudo acontecia pelas palavras e através delas. Ação era
a palavra. Dizer era fazer!
O contrário dos filmes norte-americanos que jamais mostram razões e exorbitam
em cenas de violência, carros despencam de pontes de aço e voam mergulhando em
rios nunca em paz, caudalosos; edifícios explodem dilacerando corpos, olhos
desorbitados – eis o cinema holiudesco, que busca assustar, ofuscar, paralisar – longe
do entendimento. A tragédia grega queria compreender: palavras! Esse cine,
confundir!
Em Epidauros, sentado nas arquibancadas que podiam abrigar 20 mil cidadãos
apertados, ouvi vozes duas e meia vezes milenares, dizendo textos de Eurípides,
Sófocles e Ésquilo.
Mesmo que o Teatro de Epidauros tenha sido construído apenas no século III antes
de JC, já depois da morte dos trágicos famosos, juro que foi ali, sentado nas
arquibancadas de pedra, pelo milagre da alquimia da memória e da imaginação, que
ouvi suas vozes graves amplificadas pelas Máscaras, vi palavras que dançavam na
Orquestra (palco) onde jamais pisaram aqueles severos trágicos.
Ouvi Ifigênia aceitando a morte iníqua (heroica!?) para salvar seu pai; Édipo,
jurando descobrir o assassino de Laius, sabendo, inconsciente, ser o assassino que
buscava. Vi Antígona desafiando o tirano, recusando o Estado e proclamando a
Família, o Sangue!
Imaginei multidões silenciosas ouvindo palavras, ao sol fervente, vendo o balé dos
conceitos, acrobacias de logos, a dança das palavras nas bocas frias das máscaras
trágicas. Vi a Festa das Palavras.
Como foi bela a descoberta grega; com os gregos, o ser humano fez-se humano:
nasceu o diálogo.
Palavra de honra!
Na mesma viagem, subi à Acrópole ateniense – acro = o lugar mais alto; polis =
cidade. Nela, vi o Parthenon dedicado à Deusa Virgem, Atena. Abaixo, vasta Ágora,
onde comerciantes comerciavam, cidadãos discutiam, filósofos ensinavam: vida
social existia – democracia.
Vi o Teatro de Dionisos – aí, sim, Ésquilo, Sófocles e Eurípides encenavam suas
peças. Feito de madeira que o tempo devorou: depois, reconstruído em pedra que
vemos em ruínas.
Face ao palco onde dançavam coros, evoluíam protagonistas, vi uma poltrona de
mármore, única, solitária, ladeada de outras menores – nestas, sentavam-se os
poderosos; naquela, o Grande Sacerdote de Dionisos. Diante dele, representavam-se
tragédias: diante da maior autoridade religiosa, ladeada dos poderosos chefes da
cidade.
Eu não pude sentar na poltrona do Grande Sacerdote por duas razões: uma, de
ordem moral – achava que não ficava bem desgastar o mármore, profanar a História;
outra, de ordem prática: o guarda apitou quando, mesmo sabendo que não devia,
tentei.
Pude me inclinar sobre ela, apoiar meu corpo na altura da cabeça sacerdotal. Pude
ver, meus olhos no lugar dos seus, o duelo Creonte versus Édipo, Édipo escorraçando
o cego Tirésias, Antígona desobedecendo a Creonte, Agamenon matando a filha e
sendo morto por sua mulher, Clitemnestra, assassinada por seu filho Orestes,
coadjuvado pela irmã Electra, ambos perdoados por Atena, ali, no Parthenon virginal
(ou terá sido embaixo, no Areópago?). Enfim, Acrópole: o lugar mais alto!
O grande sacerdote dionisíaco assistia e aprovava: a longa saga de crimes era
cadeia de obediências. Não cometer certos crimes seria crime – desobediência ao
dever filial, à cidade e aos Deuses. Os gregos queriam entender o que era essa coisa
abstrata – o Dever – além do Poder.
Deveres que hoje monstruosos: filicídios – haverá algo mais trágico? –, parricídios
e matricídios – algo mais repugnante? No entanto, eram deveres inseridos num
código civilizatório. Crimes necessários à construção de uma ordem Moral. Crimes e
castigos – novos crimes! – que engendravam criminosos castigos.
O Perdão emancipatório anunciava o alvorecer da Civilização. A descoberta do
Perdão – a derrota da Moira, do fatalismo! – foi o começo da Civilização.
A Religião – representada pelo sacerdote sentado em confortável assento de
mármore – era, no seu início, uma forma de saber. Os seres humanos buscavam o
conhecimento. Onde houvesse interrogação irrespondível colocavam um símbolo,
um Deus, deidade, titã, força sobrenatural. Para que fossem entendidos, a esses
símbolos, amados ou temidos, a religião dava feições humanas: Deuses tinham
rostos, carrancas.
Mortais e imortais, homens e deuses eram levados aos teatros para que se
confrontassem. Se o povo queria festejar nos campos, aristocratas queriam
imobilizá-los nas arquibancadas para que escutassem histórias de deuses e homens,
com catástrofe de advertência: não corram risco de desobedecer às leis.
Os poderosos ladeavam o sacerdote, Grande Solitário que representava Dionisos –
um Deus que, no entanto, amava boas companhias, bacantes que o amavam e com
ele dançavam! Ali, o Sacerdote sentava-se solitário. Fiscal. Censor. Vigia.
Foi naquele Teatro de Pedra aristocrático que o Teatro do Vento popular foi
encarcerado.
Nas ruínas, eu me recolhi em pensamento vendo a prisão do teatro de pedra!
Senti no corpo o vento quente, vento que levava para o esquecimento os poemas
espontâneos do povo embriagado pelo bom vinho de Baco; vento que dissolvia os
versos da poesia que jorrava livre nos lábios borrachos dos lavradores.
Fazia vento – o vento que levou consigo a criação espontânea. Hoje, leio poetas
que escreviam para o teatro de pedra, mas imagino poemas embriagados, poemas
que se dissolveram no vento. Imagino desejos.
Não desdenho nenhum teatro, nem o do Vento, nem o da Pedra: cada qual tem
seu lugar e momento. Sonho os dois dialogando: Dionisos e Apolo.
Vivi minha vida, intenso; neste livro, eu a escrevo e descrevo. Comecei contando
detalhes, pormenores, eu, minha família; termino falando abstrações, generalidades
– vocês, com certeza, já notaram: mudou o estilo. Sempre usando palavras, palavras,
palavras – diria Hamlet.
Palavras: para mim, escrever é Festa – viver, nem sempre tem sido.
Palavras que, espero, tenham vida.
DE TODAS AS INEVITABILIDADES, A MORTE
No grande teatro da política mundial, a Grande Mentira é proclamada pelo Grande
Gordo Faminto: a Globalização Inevitável. Governantes dizem: já que é inevitável,
melhor nos adaptarmos.
A finança internacional fez operação pitagórica desumana. Pitágoras nos permitiu
pensar sem a carga dos objetos. Criou uma abstração: o número; os economistas
globais fazem revolução pitagórica ao contrário: coisificam o número que se torna
autônomo. Para eles, o número existe, o ser humano, não necessariamente.
Temos o dever de gritar no ouvido dos nossos governantes que todas as decisões
econômicas são, antes de tudo, decisões éticas! Para que se entenda o comportamento
ético, números não bastam – são necessárias palavras; por exemplo, humanismo,
justiça!
Quando o desemprego aumenta de 10% para 15%, para o economista global a
diferença é 5% – pouca monta. Para ele, não existem, nesse número cinco, lágrimas,
angústias, medos, fome. Existe o número Cinco – nova divindade!
Os economistas globais dividem a humanidade em três: a primeira controla o
Mercado – Deus adorado acima de todas as coisas e seres! Segunda, a humanidade
inserida no Mercado Divinizado, produzindo ou consumindo. Terceira, a
humanidade descartável. Esta existe não só em Bangladesh, Ruanda, Eritreia e
Etiópia – onde tratores empurram mortos para a fossa comum! –, existe até no
interior dos países ricos. Nos Estados Unidos – são dados econômicos deles, não
meus –, 20% da população vive abaixo da linha de pobreza: miseráveis. Claro: a
mísera maioria é latina ou negra.
O Lucro é o Deus pós-Berlim. Quando caiu o Muro, cognominado o da Vergonha,
outros muros se levantaram, sem vergonha. Em torno de ricas mansões: fora, pobres
famintos, fora! – e nas fronteiras de países ricos: fora, estrangeiros, fora!
O Lucro, não os seres humanos, determina as relações entre países, atravancados
de muros da vergonha. O Lucro, não o amor, determina as relações humanas.
Dizem: é inevitável. Mentira!!! Existem pessoas que não sentem repugnância pela
solidariedade humana, ao contrário do Grande Gordo Faminto. Até a Bíblia
recomenda o periódico perdão de todas as dívidas, o Grande Jubileu! Sejamos
bíblicos: não paguemos nada!!! Jubileu 2000!!!
O Grande Gordo Faminto proclama a inevitabilidade da Globalização, eufemismo
inventado para esconder o que já se chamou Interdependência, Imperialismo,
Colonialismo, Império Hitleriano dos Mil Anos, Pax Romana… – nomes que escondem
a verdadeira natureza da Fagocitação Universal em marcha!
Inevitável? Não é verdade! Mesmo que o fosse, nada justificaria que nos
rendêssemos. De todas as coisas inevitáveis, a mais inevitável é a Morte, mas nem por isso
devemos nos dar um tiro na cabeça. Abaixo o suicídio! Abaixo as inevitabilidades:
são, todas, evitáveis. Até a morte é postergável.
Alguns governantes de países subjugados, Capitães do Mato, pregam o Suicídio
Nacional como aconselhariam escravos a permanecer no cativeiro: a liberdade traz
responsabilidades perigosas – traz a escolha!
É preciso brigar contra a rendição fatalista que se alastra como se não houvesse
opção. Escrevendo este livro – palavras! –, faço minúscula parte, faço um passo. Não
é tímido, embora curto. Quem tiver perna mais longa dê maiores passos.
O HOMEM QUE NÃO APRENDEU A MORRER
No interior de São Paulo, encontrei um velho caipira, idade impossível de avaliar
sem documentos, velho de antigamente, velho mesmo. Disse que não sabia sua
idade, mas tinha uma certeza: era imortal.
“Não aprendi a morrer… A Morte não tem parentescos, nunca encontrei quem
saiba morrer direito, nunca ninguém me ensinou.”
Não é o meu caso – a morrer já me ensinaram, até quiseram me ajudar a ir mais
depressa. Autobiografia não é vida: é relato. Morrer, suponho que sei como é, mas
não aprendi a terminar este livro. Como o velho não aprendeu a morrer, ninguém
me ensinou a parar de escrever.
Este livro não termina aqui, embora exponha boa parte do meu vivido. Talvez um
segundo volume, quando eu desistir de continuar ou já sem forças… Quando já não
puder trabalhar, prometo trabalhar, trabalhar intensamente num verdadeiro livro de
Memórias. Esse, sim, já tem até título: Alegações finais! Fica pra mais tarde, pra
quando se fizer tarde.
É cedo ainda… mal começo a viver os novos dados…
Desde que nasci fui criança solitária, sentado na ponte no portão da minha casa,
vendo o mundo passar. Sinto estas confissões passando, fugindo das minhas mãos.
As palavras escapam dos meus dedos e reaparecem na tela, levando a melhor parte
de mim. Onde?
Palavras fogem carregando pensamentos. Vão procurar você, que eu nem
conheço.
Minhas palavras fogem de mim. Como este livro, que agora encerro.
Já não é meu…
P.S. Quem leu a última nota ao pé da página, no capítulo anterior, deve-se ter
perguntado por que fui tão minucioso relatando projetos futuros. Neste livro, eu
quis mostrar minha vida, só até agora. Daqui pra diante e até o fim, será contada nas
Alegações finais que começarei a escrever um minuto depois de, neste, escrever a
derradeira palavra: Fim.
Não acredito nessa palavra: nada termina, podem crer. Creiam em mim. Nada
termina…
Nunca!
FIM
ALEGAÇÕES FINAIS
Meu nome é Augusto Boal… … ….. … … … … nasci no dia 16 de março, de manhã
bem cedo, em dia de verão, na cama dos meus pais… … …
Meu signo é Peixes em Areias Quentes… Signo fortíssimo! Faz tempo… … … … …
… … ….. 1931… ….. ….. … …..na… … … … …. Penha-Circular … … ….. no …. …
…. … … … … ….. … ….
Rio de Janeiro… … Brasil… ….. brazil… … brésil…
.…………
B
Balabanian, Aracy 173
Bandeira, Antônio 128
Bandeira, Denise 180
Bandeira, Manuel 127-28, 173
Barbosa, Benedito Ruy 188, 200
Barbosa, Orestes 383
Barrault, Jean-Louis 123, 190, 322
Barros, Theo de 179, 308
Bastos, Danilo 180
Batista, Xandó 181
Bausch, Pina 163
Beaumarchais, Pierre 286
Beauvoir, Simone de 201
Beck, Julian 298, 335
Becker, Cacilda 295
Beckett, Samuel 365
Beethoven, Ludwig van 75, 112, 164
Bel Geddes, Barbara 142
Bell, Graham 245
Bengell, Norma 296
Beolco, Angelo 281
Bergman, Ingrid 196, 377
Bizet, Georges 383-84
Boal, Aída (irmã) 14, 57
Boal, Albertina Pinto (mãe) 14, 19, 54, 27, 29-32, 36-41, 46, 48, 56-59, 64, 73, 79-80,
90, 92, 94, 103, 105, 118, 146, 207, 254, 283, 324, 364, 368
Boal, Cecilia Thumin 179, 274,
281-82, 311, 313, 315, 322, 344n, 345, 347-48, 370, 370n, 379, 383, 397
Boal, José Augusto (pai) 14, 17, 19, 23, 31, 38, 39-41, 54-59, 73, 79-80, 86-87, 90, 94-95,
97, 102, 104-05, 110, 116, 118-19, 121, 131-32, 135, 138, 145, 154, 166, 172, 207-
08, 238-39, 364, 368
Boal, Julián 211, 211n, 360n, 380-81
Bocelli, Andrea 260
Borghi, Renato 200, 202
Branco, Celso 384
Brando, Marlon 174
Brecheret, Victor 303
Brecht, Bertolt 160, 162n, 171, 183, 183n, 194, 200, 203, 220-21, 224, 230, 255, 268,
275, 277, 281, 312, 316-17, 317n, 351, 361-62
Brizola, Leonel 189, 212, 229
Brook, Peter 170-72, 322
Brunetière, Ferdinand 168
Buarque de Holanda, Sérgio 255
Buarque de Hollanda, Chico 180, 296, 344n, 364, 376
Bueno, Maria Esther 199
C
Cabral, Sadi 128, 173
Caldas, Sílvio 112
Callado, Tessy 256, 376
Camões, Luís de 76, 112, 270
Campanella, Tommaso 270
Campbell, Ali 379
Cardoso, Joaquim 116, 189
Cardoso, Sérgio 155
Carnegie, Dale 112
Carpeaux, Otto Maria 256
Cartola (Angenor de Oliveira) 257
Castello Branco, Humberto de Alencar 258, 267
Castilho, Carlos 275
Castro, Fidel 204, 253, 253n, 306
Catarina da Rússia 105
Caymmi, Dorival 260, 269, 315
Cedrón, Tigre 336, 344
Celestino, Vicente 17, 112
Cervantes, Miguel de 133, 144, 233
Chacrinha (José Abelardo Barbosa de Medeiros) 93
Chagas, Walmor 344
Chaplin, Charlie 366
Charles, Ray 260
Chopin, Frédéric 327
Chou-En-lai 89
Clark, Barrett 132
Clurman, Harold 142
Consorte, Renato 179, 309
Cony, Carlos Heitor 255
Copfermann, Émile 304, 322, 366-67
Corneille, Pierre 175
Cortázar, Julio 177, 293
Costa e Silva, Arthur da 303-04
Costa, Albertina de Oliveira 201
Costa, Armando 206, 257
Costa, Beatriz
Costa, Gal 268
Costa, Hélder 363
Costa, Jaime 123
Costa, Lucio 189, 283
Coutinho, Eduardo 255
Cozzella, Damiano 230
Craig, Gordon 93-94
Crosby, Bing 147
Cruz, Osvaldo 80
Cugat, Xavier 147
D
d’Aversa, Alberto 190
da Vinci, Leonardo 164
Dalai Lama (Tenzin Gyatso) 76, 89
Daniel, Ronaldo 202
Darwin, Charles 245, 287
De Sica, Vittorio 169
Dean, James 142, 174
Debray, Regis 280
Debussy, Claude 248, 327
Della Costa, Maria 181
Descaves, Jean Luc 200
Devine, Georges 190
Di Cavalcanti 128
Dias Gomes, Alfredo de Freitas 201
Djanira (Djanira da Motta e Silva) 128
Dona Zica (Euzébia Silva do
Nascimento) 257
Dorsey, Tommy 147
Dort, Bernard 322, 366-67
Dostoiévski, Fiódor 129, 221
Drummond de Andrade, Carlos 127, 154, 256
Duarte, Lima 157, 179, 207, 307
Duguay-Trouin, René 180
Dunnock, Mildred 142
E
Eichbauer,. Hélio 143, 180, 378n
Einstein, Albert 366
Engels, Friedrich 253
Erickson, Leif 142
Ésquilo 357, 388-89
Estêvão, Carlos 206
Eurípides 168, 313, 388-89
Evans, Dame 172
F
Fagundes, Antônio 280-81
Farc, Abrahão 236
Fellini, Federico 169
Ferreira, Bibi 123, 143
Ferreira, Procópio 123
Ferrer, José 142
Feydeau, Georges 173
Fiani, Márcia 348
Figueiredo, Guilherme 257
Fitzgerald, Ella 142
Fomm, Joana 157, 235
Fraga, Eudynir 170
Fraga, Ody 128
Fraser, Etty 200
Frateschi, Celso 311, 333
Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo) 324
Freire, Paulo 212, 237, 256, 346, 364
Freire, Roberto 188, 196
Freitas, Janio de 255
Freud, Sigmund 245
Friedenreich, Arthur 85
G
Galhardo, Carlos 112
Galilei, Galileu 276
Galilei, Vicenzo 384
Gallon, Luiz 170, 302
Gambaro, Griselda 177, 378
Gandhi, Mahatma 204, 300, 366
García Lorca, Federico 162
García Márquez, Gabriel 179
Garcia, Léa 97
Garran, Gabriel 322
Garrido, Alda 123
Garrincha (Manuel Francisco dos Santos) 189
Gassman, Vittorio 190
Gassner, John 133, 136-39, 143-45, 151, 165-67, 397
Gatica, Lucho 147
Gazzara, Ben 142
Gentil, Afonso 281
Gertel, Vera 157, 170, 193
Gide, André 142
Gil, Gilberto 179, 268, 270
Gil, Glaucio 129, 133, 234, 254
Gilberto, João 189, 269
Gillespie, Dizzy 141
Goetz, Augustus 142
Goetz, Ruth 142
Gógol, Nikolai 273
Gonçalves Dias, Antônio 343
Gonçalves, Dercy 123, 180, 183-84, 184n, 185-86, 209
Gonçalves, Milton 157, 181, 193, 234
Gonzaga, Luiz 89, 112, 282
Gorbachev, Mikhail 88
Gordo e o Magro, O 220, 223-26
Gordon, Lincoln 250
Gorki, Maksim 129-30
Goulart, João 237
Grande Otelo (Sebastião Bernardes de Souza Prata) 97, 118, 137
Gregory, Luciano 181
Guariba, Heleny 281, 311
Guarnieri, Gianfrancesco 157, 161, 167, 170, 178, 180-82, 201, 205, 228, 230, 234-36,
239, 257-58, 265, 280-81, 293, 312, 335, 397
Guerra, Céu 363
Guerra, Ruy 189, 376
Guevara, Che 203-05, 293, 325
Guidacci 154
Gullar, Ferreira 206, 256-57, 348
H
Haddad, Amir 200
Hardy, Oliver ver Gordo e o Magro, O
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich 168, 222, 298
Helena-Grusha, Célia 280
Hellan, Paul 380
Heritage, Paul 379, 381
Hill, Napoleon 112
Hime, Francis 364
Hirszman, Leon 206
Hitler, Adolf 88, 90, 107, 109, 202, 291, 392
Homero 175
Houaiss, Antônio 256
Houghton, Norris 138
Howard, Sidney 143, 149, 174
Hughes, Langston 140-41, 151
Hugo, Victor 112
I
Ibsen, Henrik 139, 168
Império, Flávio 143, 196, 206, 228, 265
Isabel, princesa 245
Ives, Burl 142
J
João III, dom 216, 300
Jackson, Adrian 379
Jacobi, Ruggero 169
Jaguar (Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe) 154, 255
Jara, Victor 344, 344n Jardine, Lisa 380
Jobim, Antônio Carlos 127, 256
Jofre, Eder 199
José, David 275
Jourdan, Louis 142
Jusi, Leo 129, 234, 254
K
Kafka, Franz 255, 281, 292
Kazan, Elia 142
Kennedy, John F. 234
Kerr, Debora 142
Kerr, John 142
King, Martin Luther 141, 204
Kolb, Lisa 380
Kroeber, Carlos 377
Kurosawa, Akira 169
Kusnet, Eugenio 202-03, 230, 351
Kyd, Thomas 172
L
La Fontaine 232
Lacerda, Carlos 241
Lang, Jack 322, 365
Lara, Odete 181
Laurel, Stan ver Gordo e o Magro, O
Leão, Nara 257
Leite, Ferreira 198
Leite, Luiza Barreto 128
Lima, Celeste 181
Lima, Edy 188, 198
Lobo, Edu 178
Luís XIV 257
Luís XVI 230
Luís, Edson 298
Lyra, Carlos 127, 210
M
Machado, Antônio 13n
Magaldi, Sábato 127, 154, 188, 311
Magalhães, Rosa 143
Malina, Judith 298
Manet, Édouard 164
Manga, Hamilton 175-76
Mao, Tsé-Tung 253
Maquiavel, Nicolau 166, 168, 222, 230, 232, 246-47, 359
Marcos, Plínio 269, 271, 293, 301
Margot, rainha (Maguerite de Valois) 385
Maria Antonieta 230
Maria Bethânia 65, 263
Marighella, Carlos 278
Márquez, Rosa Luisa 379
Martí, José 345
Martinez Corrêa, José Celso 200
Martinho da Vila 348
Martins Pena, Luís Carlos 234
Marx, Karl 88, 160, 245, 249-50, 253, 279, 292
Masetti, Mario 311
Mehler, Miriam 181
Mello, Thiago de 348
Melo e Souza, Antonio Candido de 255
Mendes, Bete 376
Mesquita, Alfredo 170, 173
Michalski, Yan 376
Michelangelo (Michelangelo
Buonarroti) 91
Migliaccio, Dirce 157
Migliaccio, Flávio 181, 188, 206
Miller, Arthur 123, 132, 137, 322, 334, 397
Miller, Michael 322
Miller, Sidney 179
Millôr Fernandes 378
Miranda, Carmen 106, 146, 375
Mirbeau, Octave 173
Mnouchkine, Arianne 322
Molière 125, 157, 167, 175, 178, 229, 257-58, 258n, 286, 300, 347
Montenegro, Fernanda 187-88, 295, 377
Monteverdi, Claudio 327, 384
Moraes, Vinicius de 127
Morais Neto, Prudente de 127
More, Thomas 270
Moreira da Silva, Antônio 112
Morineau, Henriette 123
Morris, Michael 379
Moses, Herbert 124
Motta, Zezé 179
Mozart, Wolfgang Amadeus 97,
108, 112, 327, 384
Muniz, Dulce 311
Muniz, Lauro César 170, 183, 293
Muniz, Myriam 157, 230, 257, 280
N
Nanini, Marco 180
Nascimento, Abdias do 97
Neruda, Pablo 293, 346
Neves, João das 203, 206, 257
Niemeyer, Oscar 189, 256
Nimitz, Riva 157, 160
O
O’Casey, Sean 173
O’Neill, Eugene 132
Oiticica, Hélio 143, 335
Oliveira, Denoy de 257
Oliveira, Juca de 157, 228
Oliveira, Manuel de 191
Ornstein, Oscar 257
Oscar, Henrique 198
Oscarito 118
P
Page, Geraldine 142
Pagu (Patrícia Galvão) 167
Pallottini, Renata 170
Papp, Joseph 311
Paulo José 157, 190, 221, 228, 230, 235, 240, 258, 376
Pedro, Antônio 299, 303, 307, 312, 333
Pedroso, Bráulio 169, 293
Peixoto, Fernando 157, 221, 344, 376
Pelé 189
Pellegrino, Hélio 256
Pereira dos Santos, Nelson 189
Perez, Assunta 257
Perez, David 113-14
Peri, Jacopo 275, 284
Perkins, Anthony 142
Perón, Juan Domingo 338, 342-44, 346
Pessoa, Fernando 65
Pinheiro, Ceci 198
Pinochet, Augusto 291, 336
Pinto, Maria Vilela (avó materna) 27-28, 30, 32, 37
Piolim (Luiz Rodrigues Monteiro Júnior) 183n, 306
Pivetta, Idibal ver Vieira, César Platão 270, 358-59
Poe, Edgar Allan 113
Pongetti, Henrique 180
Pontes, Paulo 257
Poquelin, Jean-Baptiste 258
Porto, Carlos 347, 364
Pottlitzer, Joanne 307, 322
Powell, Baden 336
Presley, Elvis 147
Proença, Maitê 378
Q
Quintero, José 142
R
Racine, Jean 175, 377-78
Rangel, Flávio 181, 201
Ratto, Gianni 143, 182, 196
Ratzinger, Joseph 245
Rembrandt van Rijn 148, 337
Renato, José 155-58, 165, 169-70, 173, 179-81, 194, 200, 206-07, 221, 228, 397
Renaud, Madeleine 123
Rettig, Claes Von 366
Ribeiro, Darcy 241, 344, 364
Ribeiro, Isabel 157, 179, 203, 230, 309
Ribeiro, Júlio 112
Rinuccini, Ottavio 276, 384-85
Roberto Carlos 313
Robinson, Sugar Ray 141
Rocha, Glauber 189
Rodgers, Talia 13
Rodrigues, Nelson 124-25, 127, 140, 154, 175, 316
Roosevelt, Franklin D. 168
Rosa, Noel 112
Rosenfeld, Anatol 169, 276
Rossellini, Roberto 169
Rossini, Gioachino 384
Ruzzante (Angelo Beolco detto Ruzzante) 281
S
Sá de Miranda 65
Salgado, Plínio 107
Sampaio, Silveira 173
Sant’Anna, Vanya 170, 257
Santa Rosa 128-29
Sartre, Jean-Paul 190, 200-01, 253
Sayão, Bidu 150, 155
Schechner, Richard 307, 322, 334
Schopenhauer, Arthur 176
Södeberg, Margareta 366
Seale, Orlando 380
Segall, Maurício 296
Sfat, Dina 157, 236, 376
Shakespeare, William 41, 125, 130, 136-40, 142, 144, 167-68, 172, 175-76, 229, 272,
287, 301, 380
Silbert, Fabián 274
Silva, Leônidas da 85
Silva, Orlando 112
Silveira, Ênio 173, 255, 346
Silvério, Joaquim 89
Sinatra, Frank 147
Sinhô (José Barbosa da Silva) 112
Smith, Milton 133, 137-38
Soares, Jô 190, 294
Sócrates 161, 345, 382
Sófocles 167-68, 292, 301, 357, 388-89
Sokol, Ana 112
Souza, Pompeu de 127
Spinoza, Baruch 176
Squarzina, Luigi 190
Stanislavski, Konstantin 41, 128-29, 131, 158-59, 161-63, 162n, 166, 172-75, 194, 201,
370n
Steinbeck, John 157, 170-72
Strehler, Giorgio 123
Strindberg, August 175-76
Stroheim, Eric von 202
Sylvaine, Vernon 173
T
Tavares, Flávio 348
Tchaikovski, Piotr Ilitch 190
Tchekhov, Anton 129-30, 139, 172, 189, 239
Thatcher, Margaret 379
Thorau, Henry 366
Toledo, Ary 157, 234-35, 281
Toledo, Joaquim 278
Tolstói, Liev 129, 189
Tom Zé 268
Torres, Fernando 301-02
Trindade, Solano 128
Turguêniev, Ivan 129
Turner, Lana 196
U
Urondo, Paco 336
V
Valadares, Carlos 366
Valadares, Loreta 366
Vale, João do 257
Valency, Maurice 138
Valentim, Karl 183n
Van Gogh, Vincent 148, 286, 287, 337
Vandré, Geraldo 344
Vargas Villa, José María 112
Vargas, Getulio 89, 106
Vargas, Maria Teresa 196
Vasco da Gama 113
Vaz de Caminha, Pero 216
Vega, Lope de 156, 236
Veloso, Caetano 65, 263
Verdi, Giuseppe 327, 384
Vergueiro, Maria Alice 230
Viana, Mário 91
Vianna Filho, Oduvaldo 157, 397
Vianninha ver Vianna Filho, Oduvaldo 159, 161, 167, 170-71, 173, 181, 186, 193, 203,
206, 257,
258, 284-87, 311
Vieira, César 170, 324, 349
Viglietti, Daniel 344
Vilar, Jean 190, 206
Vilar, Leonardo 143
Visconti, Luchino 169
Vitez, Antoine 322
Vlady, Marina 179
W
Wagner, Richard 112, 248, 290-91, 327, 384
Walsh, Rodolfo 282
Weber, Carl Maria Von 248
Weber, Max 246-47, 249-50
Weber, Ernst Heinrich 248
Weigel, Helene 162, 275
Weinstock, Marcos 143, 311-12
Weiss, Arnaldo 198
Welles, Orson 183
Werneck de Castro, Moacir 255
Werneck Sodré, Nelson 255
Wheeler, Tim 380
Williams, Tennessee 132, 137, 397
Wonder, Stevie 260
X
Xavier, Nelson 157, 193, 233
Y
Youskevitch, Igor
Z
Zamacois, Eduardo 112
Zé Keti 88, 257
Ziefeld, Inger 366
Ziembinski, Zbigniew 197, 263
Zilber, Sylvio 157, 280
Ziraldo (Ziraldo Alves Pinto) 255
ÍNDICE DE PEÇAS
A
Animália 335
Antígona 291-92, 388-89
Aos trancos e barrancos 365
arco-íris do desejo, O 226, 351, 360n, 370, 370n
Arena canta Bahia 268-69
Arena conta Bolívar 179, 308, 313
Arena conta Tiradentes 88, 179, 179n, 275-77, 363
Arena conta Zumbi 88, 178, 253, 265-68, 272, 281, 307-08, 312, 364, 376
Auto da compadecida 201
Auto do bloqueio furado 234
C
Casal de velhos 173
cavalo e o santo, O 97
ceia dos cardeais, A 92
Celebridade 377
Chá e simpatia 142
Chapetuba Futebol Clube 159, 186-87, 195, 200, 284
círculo de giz caucasiano, O 280
comédia atômica, A 183
comportamento sexual do homem e da mulher, segundo Ary Toledo, O 298
conde de Monte Cristo, O 92, 181
corsário do rei, O 180, 376
criação do mundo segundo Ary Toledo, A 281
Cyrano de Bergerac 142
D
Dona Violante de Miranda 183-84
E
El Público 162-63
Eles não usam black-tie 168, 180-83, 187, 195, 197, 199, 288
Em busca da felicidade 92
engrenagem, A 201-02
Enquanto forem felizes 173
Escola de maridos 157
escrava Isaura, A 92
Euridice 275, 384-85
F
falecida senhora sua mãe, A 173
Fanny Hill 286
farsa da esposa perfeita, A 188, 198, 200
farsa de cangaceiro com truco e padre, A 281-82
Fedra 187, 377
Feira latino-americana de opinião 334-35
Feira paulista de opinião 293, 295, 297
Feira portuguesa de opinião 364
filho do cão, O 239, 253
Fogo frio 188, 200-01
fuzis da senhora Carrar, Os 221
G
Galileu Galilei 255
Gata em teto de zinco quente 142
Gente como a gente 142, 188, 196-97
Gimba 181
Gonzaga 340
granada, A 282
grande acordo internacional do tio Patinhas, O 336
greve, A 222
H
Hair 284
Hamlet 130, 144, 155-57, 164, 170, 272, 275, 340, 340n, 384-85, 391
Helena e o suicida 169
Horse and the Saint, The 149
House Across the Street, The 149
House of Flowers 172
I
imoralista, O 142
Incroyable et triste histoire d’Erendira et sa grand-mère diabolique, L’ 179
incubadeira, A 200
inspetor geral, O 273-74
Irmãos Boal e seus primos contam… 92
J
jardim das cerejeiras, O 129
Julgamento em Novo Sol 233
Juno e o pavão 173
L
logro, O 97
M
MacBird 298
Mains Sales, Les 190
Malasangre, La 177, 378
mandrágora, A 166, 230-34, 273-74
Maria Canga 97
Marido magro, mulher chata 170
Martin pescador 97, 149
melhor juiz, o rei, O 235, 237, 274
mês no campo, Um 129
morte do caixeiro viajante, A 123
moscas, As 200
Moschetta, La 280-81
mulher do outro, A ver They Knew What They Wanted Murro em ponta de faca 179,
340, 342, 351
N
Nada mais a Calingasta 177
Navalha na carne 271
noviço, O 234
O
Old Man, The 149
Opinião 88, 253, 257-58, 260-62, 265-66, 268, 344
Otelo 128
P
pagador de promessas, O 201
Pintado de alegre 188, 206
praça é do povo, A 298
príncipe, O 230
R
Ralé 129
Ratos e homens 155, 157, 165, 167, 170
ré misteriosa, A 92
resistível ascensão de Arturo Ui, A 312
Revolução na América do Sul 200, 202-03, 342
Roda-Viva 296-97, 299, 301
S
semente, A 201
Senhora dos afogados 126
Senhorita Júlia 175
Shakuntala 174
Só o faraó tem alma 173
Society em baby-doll 180-81
Soy loco por ti, América 344
T
Tartufo 178, 235, 256-57, 273
Tempo de guerra 268
testamento do cangaceiro, O 207, 209, 210
They Knew What They Wanted 174
Tis Pity She’s a Whore 286
Titus Andronicus 172
Torquemada 324, 334, 338, 340
V
valsa dos toureadores, A 182
Vereda da salvação 201
Vestido de noiva 197
CRÉDITO DAS IMAGENS
pp.4-5, 16, 42, 152, 332, 372, 412-13 Arquivo Agusto Boal p.252 Derly Marques
© Cosac Naify, 2014
© Estate of Augusto Boal, 2000 by arrangement with Literarische Agentur Mertin Inh. Nicole Witt e K.,
Frankfurt am Main, Germany.
ISBN 978-85-405-0842-2
1. Boal, Augusto 1931 2. Diretores de teatro brasileiro – Biografias 3. Teatro brasileiro do séc. XX I. Título
CDD 927.92