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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GUSTAVO DE SOUSA VIEIRA

A FRAÇÃO CULTURAL DAS CLASSES MÉDIAS PAULISTANAS


Posições políticas, estilos de vida e fronteiras simbólicas

CAMPINAS
2024
GUSTAVO DE SOUSA VIEIRA

A FRAÇÃO CULTURAL DAS CLASSES MÉDIAS PAULISTANAS

Posições políticas, estilos de vida e fronteiras simbólicas

Dissertação apresentada ao Instituto de


Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de mestre em
sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Michel Nicolau Netto

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO
DEFENDIDA PELO ALUNO GUSTAVO
DE SOUSA VIEIRA E ORIENTADA PELO
PROF. DR. MICHEL NICOLAU NETTO.

CAMPINAS

2024
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Vieira, Gustavo de Sousa, 1995-


V673f VieA fração cultural das classes médias paulistanas : posições políticas, estilos
de vida e fronteiras simbólicas / Gustavo de Sousa Vieira. – Campinas, SP :
[s.n.], 2024.

VieOrientador: Michel Nicolau Netto.


VieDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Vie1. Classes sociais. 2. Classe média. 3. Direita e esquerda (Ciência política).


4. Cultura – Aspectos sociais. 5. Estilo de vida. I. Nicolau Netto, Michel, 1978-.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

Informações Complementares

Título em outro idioma: The cultural fraction of the middle classes in São Paulo : political
positions, lifestyles and symbolic boundaries
Palavras-chave em inglês:
Social classes
Middle class
Right and left (Political science)
Culture - Social aspects
Life style
Área de concentração: Sociologia
Titulação: Mestre em Sociologia
Banca examinadora:
Michel Nicolau Netto [Orientador]
Adalberto Moreira Cardoso
Carolina Martins Pulici
Data de defesa: 29-04-2024
Programa de Pós-Graduação: Sociologia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-4683-4257
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/5598732945965261

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta


pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29 de
abril de 2024, considerou o candidato Gustavo de Sousa Vieira aprovado.

Prof. Dr. Michel Nicolau Netto (IFCH/Unicamp)

Prof. Dr. Adalberto Moreira Cardoso (IESP/UERJ)

Profa. Dra. Carolina Martins Pulici (EFLCH/Unifesp)

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no


SIGA/Sistema de Fluxos de Dissertações/Teses e na Coordenadoria do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
AGRADECIMENTOS

Há anos trago no núcleo da forma como vejo o trabalho acadêmico e


intelectual a ideia de que eles são sempre uma produção coletiva, até quando parecem
obra de genialidade (talvez, sobretudo nesses casos). De um conjunto de incômodos
iniciais até a finalização deste texto, um sem-número de pessoas passou pela
realização desta pesquisa e nela deixou sua marca, seja por meio de um breve
comentário, de uma recomendação ou de uma leitura minuciosa, seja estando ao meu
lado quando precisava de acolhimento, compartilhando comigo uma risada ou
enviando desde longe uma mensagem de carinho. A todo o conjunto daquelas e
daqueles que deixaram suas marcas em mim neste período, e por meio de mim
também neste texto, registro meu agradecimento.
Inicio agradecendo aos vinte e sete interlocutores que toparam me ajudar com
a pesquisa respondendo a meu questionário e me dando entrevistas. Aqui encontra-
se o exemplo mais evidente de ajuda sem a qual esta pesquisa não se realizaria. A
todas e todos que tiraram horas de seus dias para ajudar, sem receber nada em troca,
um mestrando preocupado com a viabilidade de sua pesquisa, agradeço grandemente
e espero ter sido capaz de oferecer um trabalho a altura da ajuda que me forneceram.
Agradeço a minhas amigas e amigos do Grupo de Estudos em Bourdieu
(GEBU), que me acolheram desde o início de minha graduação e que vêm
constituindo parte fundamental de minha formação. Com o GEBU aprendi que a vida
acadêmica só vale a pena ser vivida se for compartilhada. Sem as trocas que
estabeleço no GEBU este trabalho jamais teria ganhado vida.
Agradeço ao professor Adalberto Cardoso e à professora Carolina Pulici por
terem tão gentilmente aceitado participar de minha banca de defesa. Ambos são
referências centrais para as pesquisas que faço, leram com cuidado meu trabalho e
me proporcionaram uma discussão de alto nível na defesa. Foi uma honra contar com
suas ideias para a avaliação e desenvolvimento final de meu trabalho.
Agradeço também à professora Rachel Meneghello e ao professor Sávio
Cavalcante por sua participação em minha banca de qualificação. Sem as gentis e
atentas leituras e sugestões de ambos é certo que este trabalho seria
consideravelmente mais inconsistente. Extendo o agradecimento também à
professora Bárbara Castro, que me ajudou em diversos momentos do
desenvolvimento desta pesquisa.
Agradeço a Michel Nicolau Netto, que há sete anos me orienta e que se torna
cada dia mais uma inspiração de sociológo e de pessoa.
Acima de tudo, agradeço à minhas amigas, meus amigos e minha família, que
fazem com que tudo que eu faça tenha sentido. Àqueles e àqueles que
compartilharam comigo os dias no IFCH, na Casa das Jabuticabeiras, no Flor de
Maio, ou que são fruto de encontros fortuitos pela vida, agradeço por serem quem são
e por aceitarem fazer parte da minha vida. À minha avó Anna, meu pai Mauro, minha
mãe Nara e meus irmãos Gabriel e Naísa, agradeço por terem me proporcionado tudo
aquilo que em algum momento eu precisei para estar onde estou e para me tornar
quem sou.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de
Financiamento 001, e da FAPESP, processo nº 2021/04485-5, Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). As opiniões, hipóteses e conclusões ou
recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não
necessariamente refletem a visão da FAPESP.
RESUMO

Esta pesquisa trata da relação entre estilos de vida, posições políticas e demarcação
de fronteiras simbólicas entre a fração cultural das classes médias paulistanas. Em
linha com a abordagem que vem sendo chamada de Análise cultural de classes, as
frações de classe culturais são definidas como o conjunto de agentes pertencentes a
uma mesma classe social que dependem mais do capital cultural que do capital
econômico para a reprodução de sua posição social e para a demarcação de suas
hierarquias de status. No caso da fração cultural das classes médias paulistanas, ela é
apresentada como sendo composta por indivíduos inseridos em posições
intermediárias de ocupações relacionadas à ciência, arte, academia, produção
cultural, docência, jornalismo, assistência social, e algumas profissões liberais. O
objetivo principal da pesquisa é entender quais os efeitos específicos da fração de
classe sobre as tomadas de posições e sobre as construções identitárias. A hipótese de
trabalho é a de que entre esta fração de classe seria possível encontrar tomadas de
posições fortemente marcadas pelo esforço de valorização do capital cultural e de
denegação do capital econômico, o que inclinaria os agentes para a demarcação de
uma fronteira simbólica que os opõe à fração econômica da mesma classe. Para testar
esta hipótese são observadas as particularidades das tomadas de posições desses
agentes nos domínios dos posicionamentos políticos e dos estilos de vida, o que é
feito por meio da aplicação de questionários sobre posições políticas e estilos de vida
com vinte e sete indivíduos pertencentes, majoritariamente, à fração cultural das
classes médias da cidade de São Paulo, e da realização de entrevistas em
profundidade sobre os mesmos temas com vinte e três deles. Os dados produzidos
mostram que, para o caso dos posicionamentos políticos, a integração às posições
estruturais típicas das frações culturais tende a ser marcada pela cobrança por
posicionamentos políticos de esquerda, que, por sua vez, tendem a ser os mais
vantajosos para a valorização do capital cultural em comparação com o econômico.
Da mesma forma, para os estilos de vida, as posições típicas das frações culturais são
também identificadas por práticas e gostos culturais orientados para a valorização da
cultura legitimada, igualmente estratégicos para a valorização do capital cultural
como critério de hierarquização social. Desta forma, os resultados apontam para os
efeitos estruturantes do capital cultural sobre a fração cultural, inclinando-a para a
valorização do capital cultural, denegação do econômico e, com isso, para a
demarcação de uma fronteira simbólica contra a fração econômica. Porém, como
efeito não intencional dessa construção identitária, as estratégias de valorização do
capital cultural operam ainda no sentido de restringir a entrada das classes populares
nas posições culturais intermediárias.

Palavras-chave: Classes sociais; Classe média; Direita e esquerda (Ciência política);


Cultura - Aspectos sociais; Estilo de vida.
ABSTRACT

This research deals with the relationship between lifestyles, political position takings
and the demarcation of symbolic boundaries between the cultural fraction of the
middle classes in the city of São Paulo. In line with the approach that has been called
Cultural class analysis, cultural class fractions are defined as the set of agents
belonging to the same social class who depend more on cultural capital than on
economic capital for the reproduction of their social position and for the demarcation
of their status hierarchies. In the case of the cultural fraction of the middle classes in
São Paulo, it is presented as being composed of individuals inserted in intermediate
positions in occupations related to science, art, academia, cultural production,
teaching, journalism, social assistance, and some liberal professions. The main
objective of the research is to understand the specific effects of class fraction on
position taking and identity constructions. The working hypothesis is that among this
class fraction it would be possible to find positions taken strongly marked by the
effort to value cultural capital and deny economic capital, which would incline agents
towards the demarcation of a symbolic boudaries that opposes them to the economic
fraction of the same class. To test this hypothesis, the particularities of the positions
taken by these agents in the domains of political stances and lifestyles are observed,
which is done through the application of questionnaires on political positions and
lifestyles with twenty seven individuals belonging, mostly, to the cultural fraction of
the middle classes of the city of São Paulo, and carrying out in-depth interviews on
the same topics with twenty three of them. The data produced shows that, in the case
of political stances, the integration in the structural positions typical of cultural
fractions tends to be marked by demands for left-wing political positions, which, in
turn, tend to be the most advantageous for valuing the cultural capital compared to
economic capital. Likewise, for lifestyles, the typical positions of cultural fractions are
also identified by cultural practices and tastes oriented towards the valorization of
legitimized culture, equally strategic for the valorization of cultural capital as a
criterion of social hierarchy. In this way, the results point to the structuring effects of
cultural capital on the cultural fraction, tilting it towards the valorization of cultural
capital, denial of economic capital and, therefore, towards the demarcation of a
symbolic boundaries against the economic fraction. However, as an unintentional
effect of this identity construction, strategies for valuing cultural capital still operate
to restrict the entry of popular classes into intermediate cultural positions.

Keywords: Social classes; Middle class; Right and left (Political science); Culture –
social aspects; Life style.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Espectro das frações de classe econômicas e culturais ................................................. 50


Figura 2. Representação esquemática do espaço social ................................................................ 58
Figura 3. Renda familiar per capita dos entrevistados.................................................................. 64
Figura 4. Escolaridade x renda familiar per capita ........................................................................ 73
Figura 5. Localização residencial dos entrevistados na cidade de São Paulo............................. 78
Figura 6. Estilos de vida e posições políticas entre a população belga ..................................... 278
LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Entrevistados .................................................................................................................... 66


Quadro 2. Caracterização demográfica dos entrevistados ............................................................ 69
Quadro 3. Capital econômico dos entrevistados (em ordem crescente de renda familiar per
capita)................................................................................................................................................... 70
Quadro 4. Escolaridade dos entrevistados ...................................................................................... 72
Quadro 5. Companheiros dos entrevistados ................................................................................... 75
Quadro 6. Escolaridade dos familiares dos entrevistados ............................................................ 80
Quadro 7. Trajetória de escolaridade entre os familiares e os entrevistados ............................. 80
Quadro 8. Trajetória de classe dos entrevistados .......................................................................... 83
Quadro 9. Autoposicionamento esquerda-direita ....................................................................... 118
Quadro 10. Avaliação sobre a situação econômica do Brasil ...................................................... 120
Quadro 11. Opinião sobre distribuição de renda no Brasil ......................................................... 120
Quadro 12. Opinião a respeito da responsabilidade pela pobreza ............................................. 121
Quadro 13. Opiniões sobre economia ............................................................................................ 121
Quadro 14. Opiniões sobre atribuição pública ou privada de atividades fundamentais ........ 122
Quadro 15. Opiniões sobre racismo ............................................................................................... 123
Quadro 16. Opinião sobre responsabilidade governamental por políticas de promoção racial
............................................................................................................................................................. 124
Quadro 17. Opinião sobre cotas raciais em universidades públicas .......................................... 124
Quadro 18. Opinião sobre movimentos sociais de pessoas negras ............................................ 124
Quadro 19. Satisfação com o funcionamento da democracia no Brasil .................................... 126
Quadro 20. Opinião sobre importância do voto........................................................................... 126
Quadro 21. Disposição para votar em caso de voto facultativo .................................................. 126
Quadro 22. Disposições autocráticas ............................................................................................. 127
Quadro 23. Apoio a intervenção militar ........................................................................................ 127
Quadro 24. Participação e realização de atividades políticas ..................................................... 128
Quadro 25. Participação em organizações e associações políticas ............................................ 129
Quadro 26. Opiniões sobre religião ............................................................................................... 129
Quadro 27. Opiniões sobre população LGBT+ 1 .......................................................................... 130
Quadro 28. Opiniões sobre população LGBT+ 2 ......................................................................... 130
Quadro 29. Opinião sobre ensino de respeito à diversidade sexual nas escolas ..................... 130
Quadro 30. Opinião sobre respeito e amor aos pais .................................................................... 131
Quadro 31. Opinião sobre respeito à hierarquia familiar ........................................................... 131
Quadro 32. Opinião sobre respeito à hierarquia ocupacional .................................................... 131
Quadro 33. Opinião sobre respeito à hierarquia social ............................................................... 132
Quadro 34. Opiniões sobre relações de gênero ............................................................................ 132
Quadro 35. Opinião sobre divisão dos trabalhos de cuidados com filhos ................................ 133
Quadro 36. Opiniões sobre aborto ................................................................................................. 133
Quadro 37. Opinião sobre movimentos sociais feministas ......................................................... 133
Quadro 38. Posições políticas ......................................................................................................... 134
Quadro 39. Disposição nacionalista............................................................................................... 135
Quadro 40. Opinião sobre defesa incondicional da liberdade de expressão............................ 135
Quadro 41. Opinião sobre direitos humanos ................................................................................ 135
Quadro 42. Divergências políticas ................................................................................................. 136
Quadro 43. Contabilidade de “não sei” em questões políticas ................................................... 137
Quadro 44. Opinião sobre quais os maiores problemas de o Brasil enfrenta hoje ................. 140
Quadro 45. Fontes de informações sobre política........................................................................ 153
Quadro 46. Opinião sobre o posicionamento político da população brasileira ....................... 163
Quadro 47. Usos do tempo livre ..................................................................................................... 176
Quadro 48. Interesse por atividades de tempo livre ................................................................... 176
Quadro 49. Frequência a lazeres externos .................................................................................... 182
Quadro 50. Interesse por lazeres externos.................................................................................... 183
Quadro 51. Preferências musicais .................................................................................................. 188
Quadro 52. Preferências literárias ................................................................................................. 188
Quadro 53. Preferências audiovisuais ........................................................................................... 189
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CDHU Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de


São Paulo

ENEM Exame Nacional do Ensino Médio

ESEB Estudo eleitoral brasileiro

INSEE Institut national de la statistique et des études économiques

LAPOP Latin American public opinion project

MASP Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand

MBA Master of Business Administration

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra

OSESP Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo

PCB Partido Comunista Brasileiro

PCO Partido da Causa Operária

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

POF Pesquisa de Orçamentos Familiares

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado

PT Partido dos Trabalhadores

PUC Pontifícia Universidade Católica

RMSP Região Metropolitana de São Paulo

SM Salário Mínimo

STF Supremo Tribunal Federal

UNESP Universidade Estadual Paulista

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

USP Universidade de São Paulo

WVS World values survey


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 14
Frações culturais e fronteiras simbólicas .................................................................................... 21
O caminho da pesquisa .................................................................................................................. 30

CAPÍTULO 1. ESTRUTURA SOCIAL: QUEM É A FRAÇÃO CULTURAL DAS


CLASSES MÉDIAS PAULISTANAS? ....................................................................33
1.1 Análise cultural de classes e a definição das frações de classe econômica e cultural ...... 35
1.1.1 A construção do espaço social .......................................................................................... 35
1.1.2 Precisando a definição de capital cultural ...................................................................... 38
1.1.3 Uma economia antieconômica ......................................................................................... 41
1.1.4 Problemas de operacionalização...................................................................................... 43
1.1.5 O espectro das frações de classe econômicas e culturais.............................................. 49
1.2 Classes médias no Brasil.......................................................................................................... 52
1.3 Como eu construí as classes em minha pesquisa ................................................................. 61
1.4 Posições sociais e condições de vida dos entrevistados ...................................................... 65
1.5 Síntese ........................................................................................................................................ 91

CAPÍTULO 2. POSIÇÕES POLÍTICAS: COMO SER DE ESQUERDA SENDO


DE CLASSE MÉDIA? ............................................................................................... 93
2.1 Classes médias e política no Brasil ......................................................................................... 95
2.2 Frações culturais e a esquerda política ............................................................................... 102
2.3 Pressupostos teóricos e empíricos para o estudo de posicionamentos políticos .......... 107
2.3.1 Instituições políticas ....................................................................................................... 108
2.3.2 Economia ......................................................................................................................... 110
2.3.3 Moral ................................................................................................................................ 111
2.3.4 Outras questões ............................................................................................................... 113
2.3.5 Esquerda e direita ........................................................................................................... 114
2.4 Posições políticas dos entrevistados.................................................................................... 117
2.5 Definições de esquerda e direita dos entrevistados........................................................... 138
2.6 A dimensão moral da igualdade........................................................................................... 141
2.7 Formação das posições políticas .......................................................................................... 148
2.8 Fragmentações internas na esquerda ................................................................................. 156
2.9 Síntese ..................................................................................................................................... 164

CAPÍTULO 3. ESTILOS DE VIDA: A VALORIZAÇÃO DA CULTURA


LEGITIMADA ........................................................................................................... 166
3.1 A estratificação social dos estilos de vida ............................................................................ 167
3.2 Um estilo de vida “cultural” .................................................................................................. 175
3.3 Estratégias de valorização do capital cultural .................................................................... 187
3.4 Fronteira cultural e violência simbólica ............................................................................. 198
3.5 A política dos estilos de vida ................................................................................................. 210
3.6 Síntese ..................................................................................................................................... 218

CONCLUSÃO: OS EFEITOS DO CAPITAL CULTURAL ................................. 221

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 226

APÊNDICE A. ENTREVISTADOS .......................................................................237


APÊNDICE B. QUESTIONÁRIO ......................................................................... 245
APÊNDICE C. ROTEIRO DE ENTREVISTAS .................................................. 265
APÊNDICE D. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA SOBRE POSIÇÕES POLÍTICAS
E ESTILOS DE VIDA ..............................................................................................274
14

INTRODUÇÃO

Elaine tem 29 anos, trabalha como criadora de conteúdo sobre beleza e


maquiagem para mídias sociais, nasceu e morou na cidade de São Paulo a vida toda.
Politicamente, Elaine é de esquerda. Caseira, em seu tempo livre ela prefere receber
amigos em casa para comer algo, jogar jogos e conversar a sair para lazeres externos,
mas eventualmente sai para comer num bar ou restaurante, ou vai ao cinema ou ao
teatro com o namorado ou com amigos. Sua irmã compartilha das mesmas posições
políticas de esquerda, mas quando eu pergunto para Elaine se as atividades de lazer
entre as duas também são semelhantes, a resposta é negativa:

Elaine: Eu acho que a minha irmã tem um grupo de amigos que eu diria que
é mais coxinha. Então ela frequenta uns lugares, tipo uns bares, que eu fico,
"nossa! eu nunca frequentaria esse lugar". Tipo, se minha irmã falar
"amanhã eu vou num show de sertanejo", não vai ser uma surpresa pra mim.
Os amigos dela são pessoas que têm interesses diferentes, então, por
exemplo, eu nunca vi a minha irmã ir com os amigos dela num museu, ou
num cinema. É pouquíssimo comum isso acontecer. São pessoas que... ah, eu
acho que são pessoas mais conservadoras. Várias amigas dela da faculdade
são do interior, e que têm uma vida bem familiar, bem conservadora mesmo.

Eu perguntei, então, o que significa ser coxinha e como Elaine identifica isso
nos amigos da irmã.

Elaine: Acho que um jeito claro de identificar isso é que, por exemplo, no ano
passado, ano de eleições, entre os meus amigos, assuntos envolvendo política
sempre fazem muito parte do nosso dia a dia, sempre, mas principalmente
num ano de eleições. E a minha irmã, se eu perguntar pra ela, "em quem sua
amiga tal votou?", ela nunca falou sobre isso com as amigas, é uma coisa que
elas não discutem muito [...]. Com os meus amigos mais próximos, são
assuntos muito comuns entre a gente, temos opiniões políticas muito
parecidas, a gente traz muitas discussões sempre. Eu estava conversando um
dia desses com dois amigos num bar sobre questões de gênero, sobre
transição de gênero, sobre se relacionar com uma pessoa e depois de um
tempo ela mudar o gênero, mas entre a minha irmã e as amigas dela, não é
uma coisa que elas conversam. É muito diferente. Até trazendo pra um ponto
de vista mais... por exemplo, falando que neste fim de semana teve Oscar,
que nem é uma coisa tão política, eu acho que as amigas da minha irmã nem
sabem que teve Oscar, não se fala sobre essas coisas. Elas ficam muito numa
coisa superficial e muito... rasa, mesmo, sendo brutalmente honesta. É até
motivo de discussão, às vezes, entre eu e minha irmã, de eu falar "como você
consegue ficar saindo com essas pessoas?". E daí ela também aponta muito
que às vezes parece que eu tô querendo me gabar: "nossa, você e seus amigos
são muito profundos! Meu Deus! Como vocês são profundos! Vocês são
muito diferentes!".
15

Eu classifiquei Elaine como uma pessoa de esquerda, no parágrafo inicial, por


conta de seu conjunto de posicionamentos a respeito de uma série de temas de
política institucional, economia e moral, que obtive após ela responder ao
questionário de minha pesquisa. Lá, em perguntas com possibilidades de resposta
predefinidas1, ela marcou que acredita que a desigualdade de renda, a pobreza e a
violência são os maiores problemas que o Brasil enfrenta atualmente, que defende a
proteção de direitos humanos e se opõe a medidas que atentem contra as instituições
democráticas, que é progressista quanto aos direitos da população LGBTQIAP+, que
defende o direito ao aborto e a atuação do movimento feminista, que defende cotas
raciais e a atuação do movimento negro, que acredita que a distribuição de renda é
muito injusta no Brasil e que o Estado deveria se responsabilizar pela promoção de
maior igualdade econômica, que concorda com a prática da ocupação de terras para
pressionar o governo a fazer reforma agrária e que é contra a pena de morte e a prisão
de pessoas com menos de 18 anos de idade. Por outro lado, quando eu perguntei para
ela, na entrevista2, o que significava ser de esquerda, Elaine só conseguiu responder a
partir da oposição à direita:

Elaine: Eu acho que pra mim é muito mais uma questão de saber com o que
eu não me identifico. Então, quando eu penso na direita, eu penso em
conservadorismo, em pessoas que são pró-armas, que são contra as
minorias, que não reconhecem a existência de pessoas trans e não-binárias.
Eu acho que isso já faz eu me afastar muito desse lado, muito.

O mais interessante, no entanto, é que a descrição que ela fez do círculo de


amigos da irmã, que classificou como coxinhas e conservadores, aponta muito mais
para um conjunto de estilos de vida do que para posicionamentos políticos em si. Os
amigos da irmã são conservadores não apenas por suas posições políticas, mas
também por que não discutem política em seu tempo livre, por que frequentam
shows de música sertaneja ao invés de cinema e museus, por que não acompanham o
Oscar. Os amigos da irmã são pessoas mais "rasas", algo típico de sua origem
interiorana, que dá maior importância para a convivência familiar do que para a
formação cultural.
Por trás da descrição de Elaine do que opõe seu círculo de amigos ao círculo de
amigos da irmã opera todo um conjunto de esquemas de classificação que aproxima

1
O questionário completo encontra-se no Apêndice B. Questionário.
2
O roteiro de entrevistas completo encontra-se no Apêndice C. Roteiro de entrevistas.
16

posicionamentos políticos e estilos de vida. A localidade de origem e residência é uma


primeira forma de prever e classificar os comportamentos. Se, por um lado, a vida no
interior pode remeter a um imaginário romântico de simplicidade e calmaria, oposto
a racionalidade mercantil e aos estímulos intensos e incessantes das grandes
metrópoles3, por outro, no estado de São Paulo, historicamente, os partidos
conservadores têm melhor desempenho no interior que nos centros urbanos4, e o
volume de equipamentos culturais como teatros, cinemas e museus é maior na capital
do que na maior parte das cidades do interior5. Capital versus interior podem se
transformar, assim, em progressismo versus conservadorismo, ou em vida cultural
versus vida familiar.
A música sertaneja entra facilmente nesse esquema, não só por sua origem
histórica no interior de São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e Paraná e por
tematizar com frequência a vida interioriorana – expressa até mesmo no vestuário
marcado pelos chapéus, fivelas e botas de couro6 –, mas também, mais diretamente,
pelo notório apoio de músicos do estilo às candidaturas de Bolsonaro em 2018 e
2022, além de terem frequentado o Palácio do Planalto em grupo em mais de uma
ocasião durante a presidência de Bolsonaro7.

Elaine: O sertanejo tem uma coisa de remeter muito a um tipo de pessoa que
eu não gosto. Eu já imagino uma coisa meio coxinha mesmo, uma galera
meio nada a ver comigo. Eu acho também que o sertanejo tem uns cantores
que são muito machistas, que apoiaram Bolsonaro, então eu já crio um
preconceito com isso desde já.

Na posição oposta ao sertanejo no esquema, encaixa-se facilmente a classe


artística ligada ao teatro, cinema e artes plásticas. Eles têm majoritariamente
posições políticas de esquerda, foram massivamente críticos do governo Bolsonaro e,
em troca, atacados em discurso e por meio de censuras e de cortes orçamentários

3
Oposição bem representada pela conferência de Georg Simmel (2005), As grandes cidades e a vida do
espírito.
4
O padrão varia, mas a predominância do voto conservador em cidades menores, com níveis mais altos de
analfabetismo, piores indicadores socioeconômicos e com parte maior de população rural que urbana pode ser
identificado desde o período bipartidário da Ditadura Militar. A mesma associação vale para o voto progressista
nas cidades maiores, com maior taxa de alfabetização, melhores índices socioeconômicos e maior população
urbana. Ver Meneguello; Curi; Catelano (2020), Arquer (2020), Fernandes (2020).
5
Ver Leiva (2014).
6
Para a história de origem e para o estilo da música sertaneja, ver Caldas (1987) e Requena (2016).
7
AGÊNCIA O GLOBO. Bolsonaro reforça aposta em sertanejos para campanha à reeleição. Último Segundo, IG,
12 de junho 2022. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2022-06-12/bolsonaro-
sertanejos-campanha-reeleicao.html>. Acesso em: 12 de abril de 2023.
17

entre 2019 e 20228. As artes plásticas, os museus e o cinema entram, então, no lado
esquerdo do esquema, em oposição ao sertanejo, que entra no lado direito.

Elaine: Eu convivi muito com pessoas das artes, e eu tenho uma admiração
muito grande. Acho que é algo de ver que a pessoa ama tanto aquilo ao ponto
de ser o ganha-pão dela, de ela ter mil esforços, mil sacrifícios. Então acho
que tem uma admiração no sentido de que eu também queria ser como essas
pessoas mas eu não tive a coragem de bancar essa escolha. Então eu acho
que eu tenho muito essa admiração. Pessoas que, cara, a vida dela é a arte!
Eu acho isso muito legal! E também de estar servindo aos outros, sabe? A
profissão da pessoa é literalmente estar ali entretendo as outras pessoas,
todos os dias, fazendo o mesmo espetáculo. Então isso me gera muita
admiração. E também os assuntos, as coisas que essas pessoas conversam,
filmes, exposições, não sei o que... é uma coisa que me dá um... ai, nossa! Eu
quero saber mais! Me dá essa admiração grande.

Por fim, quando Elaine salta das discussões sobre política que tem com seus
amigos para o desconhecimento sobre o Oscar entre os amigos da irmã, ela amarra
novamente os posicionamentos políticos e os estilos de vida, mas agora enquadrando
o sistema num par de oposições mais elementar e abstrato: raso vs. profundo. O lado
de Elaine é o profundo, é o metropolitano, progressista, das artes, da cultura; o lado
dos amigos da irmã é o raso, do interior, conservador, da vida familiar.

Elaine: A minha irmã tem amigas que já têm filho, por exemplo. Eu acho que
é uma coisa que também tem uma influência muito forte do interior. É até
uma influência que eu senti da minha família. Tipo, a minha avó... eu
namorei por muitos anos antes de conhecer o meu atual namorado, e a
minha avó ficava, "e aí? não vão casar? não vão ter filhos?". Então, eu sinto
que é uma coisa muito forte do interior, dessas pessoas mais conservadoras,
mais... que tem uma mentalidade de que a vida é trabalhar, casar, ter filhos...
viver felizes para sempre, sabe?

O que emerge nessas falas de Elaine é um esquema de classificação constituído


por meio da prática, da convivência contínua com padrões que, por mais que existam
objetivamente em maior ou menor medida, são apreendidos por ela de maneira mais
impressionista e intuitiva do que reflexiva, mas que, uma vez constituído, é
mobilizado por ela cotidianamente para interagir e para se posicionar.

8
Durante a gestão de Bolsonaro, as despesas do governo com projetos culturais caíram um terço, o número de
projetos aprovados via Lei Rouanet caiu mais de um terço, o valor captado via Lei de Incentivo á Cultura foi
20% menor, os gastos com a Agência Nacional de Cinema caíram quase um terço e o prazo médio para a
aprovação de um projeto de artes visuais aumentou 77 dias. Aumentou ainda a concentração de projetos
aprovados na Região Sudeste (Braga; Gorziza; Buoso, 2022).
18

Na constituição desse esquema, alguns fatores atuam de maneira destacada. A


comparação entre interior e capital, por exemplo, é, em grande parte, resultado da
percepção de Elaine a respeito da trajetória dos pais.

Elaine: Pensando na minha mãe com os irmãos dela, meus tios: eu sei que a
minha mãe tem muito mais esse interesse desde sempre, de mostrar pra
gente essas coisas [de arte e cultura] do que a minha tia, que teve uma
criação igualzinha a da minha mãe, morou sempre mais ou mesmo no
mesmo lugar, mas nunca saiu do interior, não veio para São Paulo. Eu acho
que o fato de os meus pais terem vindo pra São Paulo também deu uma
virada. Se eu comparar os meus pais com os meus tios, meus pais eu ainda
acho que são pessoas mais conservadoras, mais de dir... putz, não sei se mais
de direita... mais de direita, assim, meus pais não são super de direita, super
conservadores, mas são mais inclinados para uma coisa mais tradicional,
mas ainda assim eu sinto que eles terem vindo pra São Paulo tirou eles um
pouco desse lugar. Meus tios, por exemplo, não tem um amigo gay. Não
convivem com pessoas que não sejam muito parecidas com eles. Os meus
pais eu sinto que já saíram bem mais disso. Até de um ponto de vista político,
mesmo: meus pais votaram no Lula ano passado, o que pra minha família do
interior é uma coisa... putz, faz com que eles sejam uns comunistas, de
esquerda. Então, eu acho que os meus pais, por terem vindo pra São Paulo,
tiveram a chance de conviver com pessoas que mostraram uma outra
realidade pra eles, ainda que de forma super privilegiada.

Essa percepção a respeito da trajetória dos pais é reforçada por uma


comparação entre a amostra que Elaine tem da população do interior e a que tem da
população da capital, ambas enviesadas: do interior, a família dos pais e o círculo de
amigos da irmã são mais conservadores, mas o círculo de sociabilidade de Elaine na
capital é composto majoritariamente por pessoas do mundo da arte e da cultura, que
são, por sua vez, majoritariamente de esquerda. Esse círculo de sociabilidade foi
construído tanto pela passagem de Elaine por uma escola construtivista durante a
educação básica, quanto, posteriormente, por sua formação superior num curso da
área da estética.
É importante ainda o fato de que os pais de Elaine não têm posições políticas
tão consolidadas e não fizeram pressão para que as filhas reproduzissem sua
identidade política. Assim, ao longo de sua vida, Elaine transitou da reprodução das
posições políticas flexíveis dos pais (ela disse que em certa eleição, quando mais
jovem, votou ao mesmo tempo em Eduardo Suplicy e em candidatos do PSDB) para a
consolidação de uma identidade política de esquerda na medida em que foi
construindo esse círculo de sociabilidade em que predominam membros da fração
cultural das classes médias paulistanas; círculo este que disponibilizou para ela um
conjunto diferente de referências e de repertórios de interpretação do mundo,
notadamente alinhados à esquerda.
19

Finalmente, a identidade de esquerda de Elaine é constantemente reforçada na


medida em que ela se informa sobre política primariamente por meio dos amigos ao
seu redor, mas também por outros influenciadores que abordam assuntos políticos de
forma mais acessível e descontraída na internet. Desta forma, Elaine vive cercada de
pessoas de esquerda, das artes e da cultura, e se informa sobre política por meio deles
ou de outras pessoas que estão em posições profissionais e políticas semelhantes.

Elaine: E eu acho que também tem uma influencia muito grande das coisas
que eu gosto, cultura, arte, essas coisas também influenciam muito as
minhas opiniões políticas.

Gustavo: Por exemplo...

Elaine: Ah, por exemplo, muito normal, muito comum, num teatro, ter
algum tipo de manifestação contra o Bolsonaro no ano passado. Era muito
comum isso acontecer. Eu tenho certeza que isso me faz pensar, "eu estou do
lado certo. É isso! Me identifico com essas pessoas", sabe? Me dá uma
impressão de que eu estou fazendo a coisa certa, sabe?

Para a prática de Elaine, é menos relevante saber se, de fato, todas as pessoas
do interior são conservadoras, ou qual o coeficiente de correlação entre o gosto por
música sertaneja e o voto em Bolsonaro. Ela mesma mostrou na entrevista que sabe
que essas oposições não são tão claras: ela gosta da música sertaneja se for mais
antiga (“não vou dizer que eu não gostaria, por exemplo, de um show do Chitãozinho
e Xororó, que são uns sertanejos mais antigos e que têm umas músicas que eu acho
muito bonitas”), ela sabe que têm pessoas conservadoras na capital e progressistas no
interior e sabe que nem todas as pessoas do mundo da arte e da cultura são
progressistas. Mesmo assim, o que importa é que esse esquema organiza na cabeça de
Elaine uma espécie de mapa mental de referências em que traços de estilos de vida e
posicionamentos políticos se aproximam ou distanciam relacionalmente, e que ela
carrega esse esquema consigo para a prática, para quando precisa interagir com
outras pessoas e precisa, então, ir tateando, buscando sinais que a permitam saber
com quem deve ou não se associar, com quem deve ou não interagir.
Surpreende Elaine, no entanto, que a irmã, que compartilha de suas posições
políticas, consiga ser amiga dessas pessoas que estão no polo oposto ao seu. O
esquema de classificação empregado por Elaine, que une posições políticas e estilos
de vida, constrange sua possibilidade de estabelecer laços afetivos e de
pertencimento: é impensável para ela conviver com pessoas como os amigos da irmã.
Para que consiga construir pertencimento, a irmã de Elaine – que eu não entrevistei
20

– precisa ou operar com um sistema de classificação diferente do da irmã, ou dar


importância diferente para os critérios de classificação. Talvez, para ela, não tenha
tanta importância que eles não concordem politicamente, desde que seus gostos e
práticas culturais sejam os mesmos. Ou seja, para Elaine, a imbricação entre posições
políticas e estilos de vida opera na prática como um demarcador de fronteiras entre
os tipos de pessoas com as quais ela quer e com as quais não quer conviver, ao passo
que para sua irmã, a afinidade de posições políticas importa pouco, e ela demarca
suas fronteiras de pertencimento coletivo com base nos estilos de vida sem associá-
los diretamente às posições políticas. Aparentemente, incomoda mais à irmã de
Elaine ser taxada de "rasa" do que os posicionamentos políticos conservadores de
seus amigos.
Terem sido criadas pelos mesmos pais, no mesmo local, e tendo passado pelas
mesmas escolas, parece central para que Elaine e sua irmã tenham posições políticas
semelhantes. Por outro lado, naquele movimento de transição da adolescência para a
idade adulta, no qual Elaine decidiu ir para um curso superior mais voltado para a
área cultural e, junto disso, construiu seu círculo de amizades com pessoas com
posições políticas coerentemente de esquerda, sua irmã foi para uma carreira de
profissional liberal, e formou ali um círculo de sociabilidade com pessoas com as
quais têm identidade de estilos de vida, mas não de posicionamentos políticos.
Aquele repertório de referências para a interpretação do mundo que chega
rotineiramente para Elaine por meio de seus amigos e por influenciadores,
construindo e reforçando suas posições de esquerda e fazendo com que se torne cada
vez mais impensável para ela se associar a pessoas que pensem de forma diferente,
não chega da mesma forma para sua irmã. Com isso, Elaine é muito mais investida no
conflito político, associa com intensidade estilos de vida e posições políticas e se
mostra muito pouco disposta a se associar a pessoas do lado oposto do conflito
político, o que não ocorre com sua irmã.

Elaine: Minha irmã é minha melhor amiga, a gente se dá muito bem, mas é
bem diferente isso entre a gente. Ela é uma pessoa que transita melhor entre
pessoas diferentes. Mesmo com a nossa família. Nas eleições, quem brigava
com todo mundo era eu. Teve até uma briga que eu tive com os meus avós
que eu joguei na cara deles, "a minha irmã pensa igualzinho a mim, a única
diferença é que ela não fala nada! Vocês estão achando que sou só eu, mas é
ela também!". Então, ela é bem uma pessoa de, "ai, não quero briga, não vale
a pena falar sobre isso, não vou postar em quem eu vou votar no Instagram",
e eu já sou, "não, mas cada voto faz a diferença!". Então, nós somos bem
diferentes nesse sentido. Ela é uma pessoa bem mais passiva. Eu chamo
muito ela de mureteira [risos].
21

Nessa análise do caso de Elaine encontram-se os temas centrais que busco


tratar neste texto, bem como uma tentativa de demonstrar pelo exemplo a tese que
procuro evidenciar: a fração cultural das classes médias paulistanas – fração
caracterizada socialmente por uma maior dependência do capital cultural que do
econômico para sua reprodução social – demarca suas fronteiras simbólicas de
pertencimento coletivo a partir de um amálgama entre critérios políticos e culturais.
Diferente da irmã de Elaine, que, apesar de compartilhar dos mesmos
posicionamentos políticos e estilos de vida, não ocupa a mesma posição de classe que
Elaine, uma vez que, como profissional liberal, ela não sente da mesma forma a
pressão do capital cultural sobre si, outros dos meus entrevistado igualmente
pertencentes à fração cultural das classes médias apresentam também a tendência à
mobilização dos repertórios da esquerda política e das referências culturais
legitimadas para encontrar seu valor enquanto indivíduos diante da fração econômica
da mesma classe. Por isso é que alguns dos marcadores políticos e estilísticos
utilizados por Elaine são comuns a outros membros da fração cultural das classes
médias paulistanas, um dos mais simbólicos deles sendo justamente um dos mais
explorados por ela: nenhum dos meus vinte e sete entrevistados gosta de música
sertaneja, e quatorze deles colocaram o estilo na lista dos que menos gostam.
Minha pesquisa trata da relação entre estilos de vida, posições políticas e
fronteiras simbólicas entre a fração cultural das classes médias paulistanas. Ao longo
deste texto, apresento quem é esta fração, qual sua condição e posição de classe, quais
seus posicionamentos políticos, estilos de vida e critérios de demarcação de
pertencimento coletivo. Para iniciar, abaixo, apresento rapidamente o argumento que
procuro sustentar ao longo do texto e quais os referenciais teóricos que embasam
minha abordagem.

Frações culturais e fronteiras simbólicas

Neste trabalho, estou alinhado com a concepção teórica desenvolvida pela


linha de estudos que vem sendo chamada de Análise cultural de classes. Nesta linha,
as classes sociais são analisadas a partir de sua existência em duas dimensões da vida
social: uma material e uma simbólica. Na dimensão material, a classe é
compreendida como um agregado de agentes que possuem um conjunto
22

relativamente semelhante de capitais: recursos que funcionam sob o modelo do


patrimônio e que indicam a possibilidade de exercício efetivo e legítimo de poder. Na
dimensão simbólica, a análise se orienta para captar as representações mobilizadas
pelos agentes para demarcar identidades, tanto a do grupo ao qual entendem que
pertencem quanto a dos grupos que entendem como diferentes do seu. O objetivo
fundamental nesta linha de análises é entender a relação entre a dimensão material e
a dimensão simbólica da existência das classes sociais, notando, para isso, como os
diferentes tipos de capitais em disputa entre as diferentes classes são mobilizados
para a reprodução social e para a legitimação das desigualdades9.
Na abordagem da análise cultural de classes, cada grande classe social é
diferenciada a partir do volume de capitais que os agentes possuem, independente de
qual o tipo de capital: alto volume identifica as classes dominantes, volume
intermediário identifica as classes médias, baixo volume identifica as classes
populares. Porém, dentro de cada classe, podemos diferenciar as frações de classe
com base no tipo de capital predominante entre os agentes: aqueles que possuem um
alto volume de capital econômico e pouco capital cultural formam a fração de classe
econômica, enquanto aqueles que possuem alto volume de capital cultural e baixo
volume de capital econômico formam a fração de classe cultural10. Quando falamos
sobre a fração cultural das classes médias, portanto, falamos sobre um conjunto de
agentes que, do ponto de vista material de sua posição de classe, possuem um volume
intermediário de capitais quando observados internamente à estrutura de classes na
qual estão inseridos, e que possuem, proporcionalmente, mais capital cultural que
econômico.
Contudo, essa definição de fração de classe só faz sentido se tivermos bastante
clareza sobre qual é, precisamente, a definição de capital cultural. Capital cultural
significa o domínio incorporado da cultura legitimada. Diferente de pesquisas que
trabalham com uma redução do capital cultural ao diploma possuídos pelos agentes,
para compreender a definição de fração de classe cultural precisamos entender que a
cultura é hierarquizada e que os agentes dispõem de diferentes meios para se
apropriarem da cultura mais legitimada, e que as diferentes formas por meio das
quais eles podem demonstrar seu domínio incorporado dessa cultura legitimada –

9
A referência fundamental aqui é A Distinção (Bourdieu, 2017), mas a análise cultural de classes se
desenvolveu posteriormente a partir de uma série de críticas e reformulações com relação aos trabalhos de
Bourdieu. Uma descrição mais aprofundada será feita no primeiro capítulo desta dissertação.
10
Um volume equilibrado de capital econômico e cultural identifica a fração de classe balanceada
23

dentre as quais o diploma é apenas uma, e por vezes nem sequer a mais eficaz – são
mobilizadas por esses agentes estrategicamente para legitimar e para reproduzir no
tempo sua própria posição de classe.
Mas, ao mesmo tempo, trabalhar com essa definição de capital cultural e de
fração de classe é entender também que, além de munir os sujeitos de um conjunto
de estratégias para legitimar e reproduzir sua posição social, o capital cultural exerce
sobre aqueles que o possuem um conjunto de efeitos sobre suas tomadas de posição;
efeitos estes que, uma vez captados empiricamente, são eles próprios indicadores da
posição de fração de classe dos agentes. Como mostrarei abaixo, fazer parte de uma
fração de classe cultural é, tendencialmente, sentir sobre si a necessidade impositiva e
contínua de valorização de seu capital cultural, bem como a necessidade de operar
nas mais diversas esferas da vida social denegando o poder e a relevância do capital
econômico. Num nível mais amplo, pertencer à uma fração de classe cultural é, quase
inevitavelmente, se esforçar o tempo todo para se afastar das frações de classe
econômicas, se esforçar para se diferenciar delas e para encontrar critérios de
definição de valor alternativos ao critério econômico.
Aqui é que entramos mais claramente na dimensão simbólica da análise.
Pertencer à uma fração de classe cultural é estar predisposto a demarcar um conjunto
específico de tipos de fronteiras simbólicas, ou seja, estar predisposto a mobilizar um
conjunto específico de critérios para demarcar seu pertencimento coletivo e construir
sua hierarquia de prestígio em oposição às frações de classe econômicas 11. No caso
específico das frações culturais, caracterizadas socialmente por sua posse de capital
cultural e predispostas a denegar o capital econômico, seu grande esforço simbólico
de demarcação de pertencimento coletivo é marcado pelo reconhecimento do
domínio da cultura legitimada como signo de valor pessoal, e, em complemento, pela
rejeição da noção de que a posse de capital econômico seja um símbolo relevante de
status. Esse esforço – adequado estruturalmente à sua posição na estrutura de classes
–, constrange os agentes a tomarem posições que os permitam se aproximar de seus
semelhantes, rejeitar os diferentes, e valorizar ainda mais seu capital cultural: os
lugares em que escolhem residir e pelos quais preferem circular pela cidade, os

11
Claro esteja que o argumento funciona da mesma forma para a fração econômica, traçando suas fronteiras
simbólicas para se separar e encontrar seu valor diante das frações culturais. A referência fundamental nos
estudo sobre fronteiras simbólicas são os trabalhos de Michèle Lamont, em particular Money, morals, and
manners (Lamont, 1992) e The dignity of working man (Lamont, 2000). Apresentarei melhor o conceito a
seguir.
24

círculos de amigos e relacionamentos amorosos em que se engajam, suas decisões


educacionais e de trajetória profissional, em quem decidem votar nas eleições e como
se identificam e se posicionam politicamente, o que fazem em seu tempo livre, que
músicas ouvem, que livros leem, que filmes assistem, como decoram suas casas, que
roupas vestem, que pratos comem, e assim por diante. Os efeitos da posição social, e,
no que me interessa em particular aqui, os efeitos da fração de classe cultural,
inclinam os agentes para um esforço de valorização da cultura legitimada e de
denegação da lógica do capital econômico nos domínios mais diversos de suas vidas.
Toda essa explicação, feita num nível discursivo ainda muito abstrato, visa
sintetizar num quadro amplo os resultados da pesquisa realizada; resultados estes
conquistados a partir do choque entre minha apropriação dos referenciais teóricos da
análise cultural de classes e a análise dos dados quantitativos e qualitativos que
produzi no decorrer do desenvolvimento da pesquisa. O caso que analiso nesta
dissertação, e que me permitiu construir a explicação acima, é o da fração cultural das
classes médias paulistanas, composta por agentes inseridos em posições
intermediárias de ocupações relacionadas, majoritariamente, à ciência, arte,
academia, produção cultural, docência, jornalismo, assistência social, e mesmo
algumas profissões liberais. Entre este conjunto de agentes encontramos, com
alguma variedade dada em função de outros marcadores de sua posição social – com
destaque aqui para a origem de classe e o subcampo específico de atuação
profissional12 – tomadas de posições fortemente marcadas pelo esforço de valorização
do capital cultural e de denegação do capital econômico. Esses efeitos estão em sua
valorização das escolas “alternativas” em oposição às “tradicionais” na hora de
matricular seus filhos no ensino básico, em sua predileção para residir em bairros
como Santa Cecília e Vila Mariana, em seus círculos de amigos e relacionamentos
amorosos compostos majoritariamente por outros membros de frações culturais, em
seus posicionamentos políticos alinhados à esquerda e marcados por uma valorização
moral de sua preocupação com a igualdade econômica, em seu estilo de vida boêmio
e em suas práticas e preferências culturais por meio das quais se esforçam para
exibir, e com isso valorizar, seu conhecimento refinado e aprofundado da cultura

12
E não descarto, evidentemente, os efeitos de variáveis como o gênero, a raça, a idade, a sexualidade e a
localização geográfica nas tomadas de posição, mas a análise comparativa dos efeitos dessas outras variáveis
demandaria um recorte empírico mais amplo do que o que faço aqui. O foco do trabalho é nos efeitos da
fração de classe cultural, ou seja, do capital cultural, sobre as tomadas de posições. Por isso todo o discurso é
feito no sentido de valorizar os efeitos estruturais do capital cultural, e não por acreditar que ele é o único fator
explicativo das tomadas de posição.
25

legitimada. De maneira mais generalizante, o que encontramos no fundo de todos


esses casos é a valorização de um determinado tipo de pessoa em oposição a outro, e
esse tipo de pessoa com a qual se identificam e que valorizam é justamente aquele
que, como eles, é caracterizado socialmente por sua posse de capital cultural.
Com tudo isso, espero deixar claro que a frente teórica e de problemas
sociológicos principal com a qual pretendo discutir neste trabalho é a dos estudos
sobre classes sociais e estratificação social. Partindo do referencial teórico
supracitado, ofereço aqui uma explicação que visa contribuir para uma forma
específica de se compreender a estrutura de classes nas modernas sociedades
capitalistas. Não se trata de um modelo radicalmente oposto ao que é apresentado em
diferentes correntes da sociologia contemporânea – o que se nota, por exemplo, por
sua abordagem materialista e relacional e por sua preocupação com as oportunidades
de vida e com a identificação dos mecanismos de reprodução das desigualdades –,
mas de um que chama a atenção para a centralidade da dimensão simbólica para a
reprodução das desigualdades e que propõe que os tipos de recursos (capitais) que os
agentes possuem têm efeitos sobre suas tomadas de posições e construções
identitárias que não podem ser secundarizados na análise. É uma defesa da
compreensão de que o capital cultural tem efeitos relevantes o suficiente sobre as
disposições dos agentes para que seja inserido em posição de igualdade com o
econômico na análise de classes, permitindo assim a separação analítica de uma
fração de classe sobre a qual é predominante.
Além desta frente principal, por ter focado empiricamente na forma como a
fração cultural das classes médias paulistanas se posiciona politicamente e em quais
são seus principais traços de estilos de vida, entendo que este trabalho fornece
contribuições também para a sociologia que vem tentando explicar o papel
desempenhado pelas classes médias no atual contexto de acirramento do conflito
político no Brasil, e, de outro lado, para a sociologia da cultura preocupada com o
tema da distinção cultural e da construção social dos gostos.
No caso da literatura sobre classes médias e política, forneço a partir de meus
dados e referencial teórico o argumento de que a parte das classes médias que se
posiciona politicamente à esquerda é fundamentalmente sua fração cultural. Com
isso, abro uma divergência com os estudos que entendem que a divisão política das
classes médias é organizada fundamentalmente com base nos estratos: a alta classe
média se inclinaria à direita e a baixa classe média à esquerda. Por mais que não
26

descarte os efeitos dos estratos sobre as tomadas de posições, me baseio aqui numa
literatura que vem argumentando a respeito do esquerdismo do capital cultural para
mostrar que as posições políticas de esquerda, sobretudo nos campos da economia
(mais estatistas que privatistas) e da moral (mais progressistas que conservadores) 13,
são tomadas de posições estruturalmente adequadas às necessidades de valorização
do capital cultural e de denegação do econômico que identificam as frações de classe
culturais. Além desse argumento estrutural, ofereço a partir dos dados que produzi
com meus entrevistados um argumento processual, em que defendendo que o
processo de associação dos agentes às posições culturais da estrutura de classes é
marcado por forte coerção para que se adequem aos repertórios culturais da esquerda
política. Assim, argumento que a classe média de esquerda é sobretudo a fração
cultural das classes médias, pois parte das fronteiras simbólicas traçadas pela fração
cultural para demarcar seu pertencimento coletivo é uma fronteira política,
construída com base em repertórios da esquerda política.
Para a literatura sobre distinção cultural e construção social dos gostos,
contribuo mostrando a diversidade das estratégias de valorização do capital cultural
mobilizadas pelos agentes da fração cultural das classes médias paulistanas.
Comparando minha amostra com a de outras pesquisas sobre o Brasil, fica claro que
os membros da fração cultural das classes médias possuem maior domínio da cultura
legitimada que uma parte das classes mais altas (notadamente aquela de ascensão
recente, os "novos ricos"), mas que mesmo assim encontram algumas dificuldades
para se apropriarem da cultura legitimada em sua plenitude (sobretudo por conta de
sua falta de capital econômico). Eles demarcam seu pertencimento coletivo por meio
da valorização de um estilo de vida que reivindica para si tudo que entendem como
"cultural", e que encontra no arquétipo da boemia uma referência simbólica de
proximidade. Ao mesmo tempo, eles desenvolvem uma relação ascética de extrema
seriedade com suas práticas e preferências culturais, denotando que seus
investimentos aqui precisam ser precisos, pois carregam consigo a estabilidade do
reconhecimento de seu valor por seus pares de fração de classe. Assim, no conjunto
de critérios de demarcação de pertencimento coletivo da fração cultural das classes
médias paulistanas, une-se à fronteira política baseada nos posicionamentos de

13
Leio o conflito político como passível de ser decomposto analiticamente em três dimensões: uma político-
institucional (democracia x autoritarismo), uma econômica (estatismo x privatismo), e uma moral
(progressismo x conservadorismo). Apresento esta leitura no item 2.3 Pressupostos teóricos e empíricos para o
estudo de posicionamentos políticos.
27

esquerda uma fronteira cultural, esta baseada no estilo de vida "cultural" e nas
estratégias de valorização da cultura legitimada. O dilema oriundo dessa imbricação
entre fronteiras políticas e culturais, no entanto, é que, se pelo lado da política a
fração em análise se esforça para se aproximar das classes populares, pelo lado da
cultura ela exibe um meritocratismo que opera dificultando a entrada de agentes
oriundos da base da estrutura de classes para as posições culturais das classes
médias.
A conclusão do trabalho é fundamentalmente a que sintetizei de maneira
genérica acima: o capital cultural exerce um efeito específico sobre os agentes que
dependem dele mais que do econômico para reproduzirem sua posição social e para
demarcarem seu valor social, o que faz com que dentro de uma classe social possamos
separar o conjunto de agentes pertencentes à fração de classe cultural daqueles
pertencentes à econômica, na medida em que esse pertencimento de fração de classe
terá importantes efeitos sobre suas construções identitátias e tomadas de posições em
esferas da vida como os posicionamentos políticos e os estilos de vida. O trabalho
mostra isso para o caso da fração cultural das classes médias paulistanas, como já
indicado pela análise do exemplo heurístico de Elaine, uma de minhas entrevistadas,
na primeira seção desta introdução

***

Ainda com o objetivo de localizar este trabalho teoricamente, acredito ser


importante apresentar, de maneira extremamente breve, alguns conceitos que serão
mobilizados ao longo do texto, por mais que eu acredite que eles ganharão maior
clareza com o decorrer da leitura. Destaco, aqui, três conceitos fundamentais:
fronteiras simbólicas, repertórios culturais, e estratégias de ação.

Fronteiras simbólicas são tipos de linhas que os indivíduos traçam quando


categorizam pessoas, e com isso estabelecem distinções avaliativas. Mais
especificamente, refere-se a diferentes formas de acreditar e de justificar que "nós"
somos melhores que "eles". O conceito foi cunhado pela socióloga canadense Michèle
Lamont, que vem desenvolvendo-o em pesquisas empíricas com diferentes grupos
28

desde os anos 199014, sempre orientados para entender as distinções conceituais


usadas para categorizar objetos, pessoas, práticas e até tempo e espaço. A demarcação
de fronteiras simbólicas é parte intrínseca do processo de constituição da identidade:
elas emergem quando precisamos nos definir, a partir de nossas similaridades e
diferenças com relação a outros, produzindo sistemas de tipificação. Assim é que a
demarcação da identidade a partir do que se pode chamar de trabalho de fronteira,
da definição do eu em oposição ao outro, é sempre um processo relacional. Ao mesmo
tempo, esse processo gera sinais de segurança, dignidade e honra. Num nível
macrosocial, as fronteiras operam para reforçar as normas coletivas de comunidades,
fornecendo um senso de organização e de ordem ao ambiente (Lamont, 1992, p. 38).
O primeiro grande estudo empírico de Lamont sobre o problema das fronteiras
simbólicas foi publicado no livro Money, morals, and manners (1992). Ali, a autora
entrevistou dezenas de homens membros da classe média alta dos EUA e da França
para identificar como seu trabalho de fronteiras variava em função do país, do local
de moradia, do grupo profissional e da trajetória. A ideia, justamente, era selecionar
homens que vivem lado a lado em termos de classe e de localidade, mas que vivem
em mundos diferentes separados por suas fronteiras de classificação. Esses homens
constituem seus grupos em oposição uns aos outros em termos de quais
características pessoais valorizam nos outros ao seu redor, formando com isso
hierarquias de valorização diferentes, uma vez que são baseadas em critérios
diferentes (Lamont, 1992, p. 26). Com isso, Lamont identificou indutivamente três
critérios predominantes de demarcação de fronteiras simbólicas entre seus
entrevistados: fronteiras morais (baseadas em honestidade e desonestidade, moral
judaico-cristã, humanismo, promiscuidade e impureza, integridade, solidariedade,
lealdade), fronteiras socioeconômicas (baseadas em prestígio profissional, raça,
situação financeira, origem de classe, poder, visibilidade em círculos sociais de
prestígio, redes de contatos) e fronteiras culturais (baseadas em inteligência,
educação, cosmopolitismo, refinamento, conhecimento de alta cultura) (Lamont,
1992, p. 31). Money, Morals, and Manners é, de certa forma, o primeiro grande guia
para os estudos posteriores sobre o tema das fronteiras simbólicas.

14
Hoje, há ampla literatura sobre fronteiras simbólicas para além dos trabalhos de Lamont. Ver revisões em
Lamont; Molnar (2002) e em Pachucki; Pendergrass; Lamont (2007).
29

Repertórios culturais são blocos relativamente coerentes de ideias, localizados


histórica e geograficamente, às vezes mais e às vezes menos institucionalizados, que
formam as tradições intelectuais em disputa e que informam os agentes na sua
interpretação do mundo social. O conceito provém também da obra de Lamont, que o
mobiliza quando está tentando explicar os motivos que inclinam os agentes a traçar
um ou outro tipo de fronteira simbólica. A ideia é que o trabalho de demarcação de
fronteiras não varia apenas de acordo com a posição social dos agentes, mas também
segundo os repertórios aos quais eles têm acesso; repertórios estes que variam de
acordo com o tempo e o local, e que são disponibilizados desigualmente de acordo
com as posições sociais. Os repertórios culturais são construídos historicamente nos
campos de produção cultural (com destaque, neste caso, para os campos de produção
intelectual e midiática) e passam a circular na sociedade, constituindo os referenciais
intersubjetivamente compartilhados que auxiliam os agentes a organizar e dar
sentido para sua experiência. Assim, as pessoas não traçam fronteiras apenas com
base na própria experiência, trajetória, interesse e posição social, na medida em que
têm suas escolhas limitadas pelos repertórios culturais a que têm acesso em seu
ambiente (Lamont, 1992, pp. 153-154): às vezes os indivíduos traçam as fronteiras
simbólicas quase que automaticamente de acordo com os repertórios culturais
oferecidos por seu meio; outras vezes, seu trabalho de fronteira é mais diretamente
influenciado por sua posição social e oportunidades (Lamont, 1992, pp. 172-173). É a
esses blocos relativamente coerentes de ideias que me refiro quando falo, por
exemplo, nos repertoria da esquerda política, ou nos repertórios da cultura
legitimada.

Estratégias de ação são disposições para a ação, não necessariamente


reflexivas, orientadas para as tomadas de posição que os agentes entendem, explícita
ou implicitamente, como as mais vantajosas para a reprodução ou melhoria de sua
posição social. Aqui, estou fazendo referências à teoria bourdieusiana do habitus15,
que postula que a homogeneidade das condições materiais de existência promove a
homogeneidade dos sistemas de disposições para a ação, e, com isso, a
homogeneidade das práticas, sem que para isso precise existir cálculo consciente ou
referência a normas explícitas. Assim, quando observadas com referência a posição
dos agentes na estrutura social, as práticas parecem ser direcionadas

15
Ver sobretudo o capítulo Estruturas, habitus, práticas, de O senso prático (Bourdieu, 2013b).
30

intencionalmente para as escolhas mais vantajosas, mas essa aparência se deve ao


fato de que as disposições para a ação são produto da socialização naquelas mesmas
condições materiais de existência. Por isso é que as ações dos agentes assumem,
quando observadas analiticamente, o caráter sistemático de estratégias de ação, ainda
que não sejam, na maior parte das vezes, o resultado de intenções estratégicas.
Portanto, quando eu citar, por exemplo, que os posicionamentos políticos de
esquerda são estrategicamente orientados para a valorização moral da fração cultural
das classes médias diante da fração econômica , ou quando eu descrever toda a série
de estratégias de valorização do capital cultural desenvolvidas pelos meus
entrevistados, não existe nessa concepção de estratégia o pressuposto da necessidade
de cálculo racional. O cálculo pode até existir, mas tende a ser pontual: a maior parte
das estratégias desenvolvidas pelos atores são não-reflexivas, resultantes de uma
percepção tácita sobre quais as maneiras de agir mais vantajosas em cada contexto;
percepções estas formadas com base em seu contínuo e nunca encerrado processo de
socialização. Assim, na medida em que existe uma socialização específica para que se
possa ocupar adequadamente as frações de classe culturais, existe também um
conjunto de estratégias de ação compartilhado pelos agentes daquela posição social
adequado à valorização de seu capital cultural.

Tendo lançado algumas luzes sobre as balizas de minha abordagem teórica,


exponho a seguir qual foi o percurso metodológico que me guiou do projeto inicial até
os resultados da pesquisa.

O caminho da pesquisa

O projeto original de minha pesquisa era estudar a relação entre estilos de vida
e posições políticas, sua possível imbricação e seus possíveis impactos no trabalho de
demarcação de fronteiras simbólicas entre pessoas de variadas classes sociais
residentes na cidade de São Paulo. A ideia era desenvolver a pesquisa com recorte na
cidade de São Paulo pois minha pesquisa está vinculada ao projeto temático Fapesp
Para Além da Distinção: gostos, práticas culturais e classe em São Paulo16, que vem
estudando estilos de vida e classes sociais na capital paulistana. Assim,

16
Projeto nº 2018/20074-2, coordenado por Renato Ortiz. Michel Nicolau Netto, orientador da minha pesquisa,
é pesquisador associado do projeto.
31

desenvolvendo a pesquisa junto do projeto temático, fazia sentido localizar


empiricamente a pesquisa na cidade de São Paulo, pois eu teria uma riqueza maior de
dados para incorporar à análise. Do ponto de vista empírico, o desenho de pesquisa
inicial envolvia recrutar um contingente de membros de diferentes classes e frações
de classe para participarem da pesquisa, e com eles aplicar questionários e realizar
entrevistas em profundidade tratando de seus estilos de vida, posicionamentos
políticos e fronteiras simbólicas.
Após uma série de dificuldades com as tentativas iniciais de recrutamento de
participantes, decidi que seria melhor recortar mais a população de pesquisa e tentar
contato inicialmente por meio de redes de conhecidos pessoais, para em seguida
recorrer ao método bola de neve até ter um conjunto amplo e diverso de
entrevistados17. A decisão, então, foi por recortar a pesquisa nas classes médias da
cidade de São Paulo, e buscar aí variabilidade de posições sociais por meio do
recrutamento de indivíduos de grupos profissionais diferentes (o que é um indicador
prévio de fração de classe). Os critérios básicos para o recrutamento foram: ser
residente na cidade de São Paulo, ter entre 30 e 40 anos, ter ensino superior
completo e fazer parte de um dos grupos profissionais predefinidos18. Montei uma
chamada de recrutamento para a pesquisa com esses critérios e passei a circulá-la via
contatos próximos (amigos, colegas e professores do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp) ao longo do primeiro semestre de 2023, e após conseguir
cada contato eu ia expandindo meus recrutados por meio da técnica bola de neve 19.
Os recrutados respondiam ao meu Questionário online (via Google Forms) e a

17
No início, a ideia era construir minha população de pesquisa com o auxílio de escolas de ensino básico de
diferentes perfis da cidade. Minha proposta era recrutar para a pesquisa uma população de pais e mães ou
responsáveis por estudantes de ensino básico de São Paulo que possuem diferentes perfis sociais. A ideia era
que as escolas funcionariam como um indicador de posições de classe e um dispositivo metodológico para
acessar uma amostra populacional que oferecesse ao mesmo tempo diferenças substanciais entre perfis sociais
de indivíduos (em termos de classe social, gênero e raça/etnia) e a possibilidade de um estudo controlado e
contínuo. O problema é que quando fui a campo, no segundo semestre de 2022, para buscar o contato das
escolas, a estratégia se mostrou inviável, pois as escolas dificultaram minha entrada de diferentes maneiras.
Com o desenho previamente planejado frustrado, me vi obrigado a repensar a abordagem, tentando construir
minha população de pesquisa de outra forma. Houve uma breve tentativa de fazer isso por meio do contato
com instituições e associações de bairros, mas ela mostrou resultado nulo. Neste momento, na virada de 2022
para 2023, foi que resolvi recortar mais a população de pesquisa e recorrer a redes de contatos pessoais e bola
de neve.
18
Apresento melhor esses critérios no primeiro capítulo, na seção 1.3 Como eu construí as classes em minha
pesquisa.
19
Cabe registrar que nenhum dos entrevistados era meu conhecido pessoal. Eu sempre chegava ate eles, ou
eles até mim, por indicação de terceiros.
32

entrevista era realizada também online (via Google Meet)20. Contudo, dado o viés que
caracteriza minha condição educacional e profissional (um pesquisador de pós-
graduação da área de Ciências Humanas) e a de minhas redes de contatos, eu recrutei
muito mais facilmente membros da fração cultural das classes médias paulistanas do
que das outras frações: vinte e sete membros da fração cultural responderam ao meu
Questionário online e vinte e três deles me deram entrevistas21. O sucesso do
recrutamento entre a fração cultural e a dificuldade entre as demais frações foi o
motivo principal para recortar meu objeto de análise neste texto apenas na fração
cultural das classes médias.
Com base nesse conjunto de dados sobre os membros da fração cultural das
classes médias da cidade de São Paulo, decidi que o texto que fazia mais sentido
escrever era um que tivesse como centro entender quem é a fração cultural das
classes médias paulistanas, e nesta direção encaminhei meu esforço teórico de leitura
e reflexão ao longo do último ano de pesquisa (entre o início de 2023 e o início de
2024). Localizado, como mencionei acima, nesta linha que vem sendo chamada de
análise cultural de classes, meu objetivo nesta pesquisa é apresentar quem é a fração
da cultural das classes médias paulistanas, qual sua posição e condição dentro da
estrutura de estratificação social, como ela se posiciona politicamente, qual seu estilo
de vida e como ela demarca suas fronteiras simbólicas. Permanece o intento inicial de
entender como posições políticas e estilos de vida se imbricam no atual contexto de
acirramento do conflito político no Brasil22, mas agora essa é uma preocupação
subordinada ao projeto mais amplo de entender quais as particularidades da fração
cultural das classes médias.
O texto está organizado em três capítulos. No primeiro, eu apresento quem é a
fração cultural das classes médias paulistanas do ponto de vista de sua posição e
condição particular na estrutura de estratificação social. No segundo, apresento seus
posicionamentos político, notadamente de esquerda. No terceiro, apresento seus
estilos de vida, o que permite perceber a preocupação dos membros da fração com a
cultural legitimada. Na conclusão, argumento sobre os efeitos do capital cultural
sobre as tomadas de posições dos agentes.

20
Detalhes sobre os pressupostos que basearam a construção do Questionário e do Roteiro de entrevistas são
apresentados ao longo da dissertação.
21
Detalhes aprofundados sobre o perfil dos entrevistados serão apresentados no item 1.4 Posições sociais e
condições de vida dos entrevistados. Encontram-se sintetizados também no Apêndice A. Entrevistados.
22
Sintetizado na seção 3.5 A política dos estilos de vida.
33

CAPÍTULO 1. ESTRUTURA SOCIAL: QUEM É A FRAÇÃO CULTURAL DAS


CLASSES MÉDIAS PAULISTANAS?

Em Money, morals, and manners, Michéle Lamont, preocupada em entender


as diferenças no trabalho de demarcação de fronteiras simbólicas entre homens
estadunidenses e franceses que pertencem a mesma classe social (a alta classe média,
construída empiricamente com base numa combinação de grupo ocupacional e nível
de escolaridade), realizou 160 entrevistas em profundidade pautadas pelo mesmo
roteiro de questões, e posteriormente, analisando as entrevistas, identificou três tipos
principais de fronteiras simbólicas traçadas por seus entrevistados: socioeconômicas,
culturais e morais. Em seguida, a autora foi em busca de fatores estruturais que
ajudassem a explicar as diferenças nos tipos de fronteiras demarcadas por seus
entrevistados, e percebeu que o grupo ocupacional era um fator explicativo
consistente, desde que pensado com base no quanto a ocupação é orientada para, e
dependente de, geração de lucro econômico: quanto mais orientada para o
aferimento de lucro econômico é a atividade profissional de um membro da alta
classe média, maior sua inclinação para traçar fronteiras socioeconômicas, uma vez
que os sujeitos tendem a medir o sucesso com base em termos econômicos (situação
financeira, origem de classe, poder, visibilidade em círculos sociais de prestígio);
inversamente, quanto menos orientada para o aferimento de lucro econômico é a
atividade profissional, maior a inclinação do agente para medir o sucesso com base
em fatores culturais (inteligência, educação, cosmopolitismo, refinamento,
conhecimento de alta cultura), e, com isso, a traçar fronteiras culturais.
Desta forma, sem discriminar previamente seus entrevistados com base no
grupo ocupacional e partindo de um dado referente a um tipo específico de tomada
de posição (a demarcação de fronteiras simbólicas), Lamont evidencia a pertinência
analítica de se diferenciar grupos internamente as classes com base no tipo de
racionalidade prática que é exigida dos agentes para o exercício cotidiano de suas
funções.
Como desenvolverei ao longo deste capítulo, me parece que a constatação de
Lamont indica a pertinência de se diferenciar frações de classe com base no tipo de
capital possuído de maneira privilegiada pelos agentes – fator oculto no
34

procedimento analítico promovido pela autora quando classificou seus entrevistados


a partir da maior ou menor orientação para o lucro econômico. A autora mostra que
mesmo dentro dos limites de um determinado conjunto de condições materiais de
existência e de oportunidades de vida que caracterizam uma classe social, o tipo de
capital que os agentes possuem – se mais econômico ou mais cultural – é um
importante fator de estruturação de suas identidades, tomadas de posição e das
hierarquias de prestígio que estabelecem.
Com base na literatura e em informações produzidas a partir de entrevistas
com um conjunto de agentes pertencentes, em sua maior parte, às classes médias da
cidade de São Paulo, apresentarei neste capítulo o que estou chamando neste
trabalho de frações de classe culturais e apresentarei um conjunto de dados que
indicam o efeito do capital cultural sobre as tomadas de posições, diferenciando os
agentes que se encontram nas posições culturais internamente a uma classe daqueles
que se encontram nas posições econômicas da mesma. Para tanto, argumento que a
inserção em grupos ocupacionais que demandam alta maestria simbólica e as
tomadas de posições que indicam a denegação da lógica econômica, são bons
indicadores prévios desse pertencimento de fração de classe.
O objetivo deste capítulo, portanto, é discutir o que estou chamando de fração
cultural, qual sua condição estrutural e quais os efeitos tendenciais do capital cultural
sobre suas tomadas de posição, bem como, com base nos dados sobre os membros de
minha amostra, indicar as condições de vida do grupo que estou chamando de fração
cultural das classes médias paulistanas. O capítulo está dividido em quatro sessões
principais: (1.1) Análise cultural de classes e a definição das frações de classe
econômica e cultural, em que apresento o conceito de classes sociais e de frações de
classes com o qual estou trabalhando; (1.2) Classes médias no Brasil, em que
apresento breve revisão sobre alguns temas-chave sobre as classes médias no Brasil e
mostro como minha definição de fração cultural pode se encaixar nessa bibliografia;
(1.3) Como eu construí as classes em minha pesquisa, em que eu apresento os
pressupostos e os instrumentos que serviram de base para recrutar e montar minha
amostra; e (1.4) Posições sociais e condições de vida dos entrevistados, em que
apresento as características demográficas, econômicas e sociais de meus
entrevistados. Encerro com uma síntese e apontamentos sobre como minha amostra
se adequa ao modelo de fração de classe cultural que construo ao longo desta
dissertação.
35

1.1 Análise cultural de classes e a definição das frações de classe


econômica e cultural

A discussão sobre classes sociais na sociologia é muito extensa. Não tenho,


neste trabalho, a intenção de fazer revisões teóricas sistemáticas sobre classes sociais.
Para boas revisões recentes, ver Bertoncelo (2009), Atkinson (2015) e Savage (2016).
Aqui, acompanho o entendimento de Erik Olin Wright (2015a) de que diferentes
concepções de classes sociais servem para responder diferentes perguntas.
Preocupado, neste trabalho, em entender a relação entre posições de classe, tomadas
de posições e demarcação de pertencimentos coletivos entre frações internamente a
uma mesma classe social, priorizo neste trabalho o modelo analítico que vem sendo
chamado de Análise cultural de classes (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2019, 2022).
Trata-se de um modelo inspirado nos trabalhos de Pierre Bourdieu (notadamente em
A Distinção [Bourdieu, 2017]) e que tem como preocupação fundamental entender
como as diferentes classes são marcadas por diferentes estilos de vida.
A seguir, apresento a base estrutural do modelo da análise cultural de classes,
a partir do qual é possível diferenciar as frações econômica e cultural: o espaço social.

1.1.1 A construção do espaço social

De forma breve, o conceito de classe social em Bourdieu – como quase


qualquer outro conceito em seu sistema teórico – é pensado a partir da relação entre
duas camadas da existência social: uma material e uma simbólica. Do ponto de vista
material, a sociedade é entendida como um espaço multidimensional de distribuição
de recursos que indicam a possibilidade de exercício de poder (capitais) em que os
agentes estão mais próximos ou mais distantes objetivamente em função dos capitais
que possuem. Esse espaço relacional e multidimensional de distribuição de capitais é
nomeado por Bourdieu de espaço social. Ao se recortar pedaços no espaço social é
possível identificar o que ele chamava de classes teóricas, ou classes no papel. No
entanto, a classe teórica, por mais que possa ser captada empiricamente, ainda não
fala muito sobre a existência ontológica do grupo, menos ainda sobre sua possível
mobilização política numa luta com outras classes. Aqui entra a camada simbólica da
luta de classes: a luta de classificações. Para que uma classe exista ela precisa ser um
grupo classificado, representado, construído simbolicamente de forma que os agentes
36

– tanto os que a compõem quanto os que compõem as demais classes – acreditem em


sua existência. Portanto, para que uma classe social exista socialmente e possa ser
mobilizada numa luta de classes, é preciso tanto que exista um conjunto de agentes
com condições materiais de existência semelhantes (o que se pode captar a partir da
estrutura de distribuição de capitais), quanto que esse conjunto de agentes
compreenda subjetivamente que formam um grupo relativamente homogêneo, com
identidade e interesses relativamente semelhantes23.
Cabe notar, no entanto, que muitas vezes é pouco clara a forma como Bourdieu
propõe que se capte empiricamente essa contraparte simbólica da luta de classes,
entendida como um embate de classificações, o que faz com que essa parte da análise
seja constantemente subestimada ou simplesmente ignorada nas pesquisas empíricas
sobre classes sociais que trabalham com o referencial bourdieusiano. Por sua vez, a
parte material, a construção do espaço social, vem sendo usada como modelo em
pesquisas empíricas sobre classes sociais em diversos lugares do mundo desde, pelo
menos, a década de 199024. Assim, é mais fácil entender teórica e metodologicamente
como proceder na construção empírica do espaço social, o que é fundamental para
meu trabalho pois é com base em recortes no espaço social que Bourdieu identifica o
que chama de frações de classe.
Fundamentalmente, este espaço relacional de distribuição de capitais que
Bourdieu chama de espaço social é pensando a partir de três dimensões: (1) volume
de distribuição de capitais, (2) composição (ou estrutura) de distribuição de capitais e
(3) trajetória de acúmulo de capitais. O primeiro, que podemos chamar,
metaforicamente, de "vertical", é o que separa os agentes e grupos a partir do volume
total de capital que possuem, independente de qual é o tipo de capital. A partir de
recortes nessa dimensão "vertical" é que Bourdieu identifica as grandes classes
sociais: dominantes (posições superiores no espaço social: alto volume de capitais),
médias (posições intermediárias no espaço social: médio volume de capitais) e
populares (posições inferiores no espaço social: baixo volume de capitais).
Internamente a essa dimensão "vertical", a segunda dimensão – metaforicamente,
23
Alguns textos fundamentais de Bourdieu sobre classes sociais: Bourdieu (1987, 1989, 2004, 2005a, 2013a,
2017). Boas revisões teóricas sobre a concepção bourdieusiana de classes: Weininger (2005), Wacquant (2013).
24
Para além dos trabalhos dos bourdieusianos na França, o trabalho mais antigo que conheço que construiu
uma estrutura de classes com base no modelo bourdieusiano do espaço social é o de Lennart Rosenlund
(2009), que analisou o espaço social da cidade de Stavanger, na Noruega, em meados da década de 1990. O
modelo também foi aplicado em anos recentes para estudar a estrutura de classes do Reino Unido (Savage,
2016; Atkinson, 2017), Dinamarca (Prieur; Rosenlund; Skjott-Larsen, 2008), Portugal (Pereira, 2005), Austrália
(Bennett et al, 2020) e Chile (Méndez; Gayo, 2018).
37

"horizontal" – separa, dentro de cada grande classe social, as frações de classe, com
base no tipo de capital predominante, se econômico ou cultural. Assim, as frações
culturais são os grupos internamente a cada grande classe social que possuem mais
volume de capital cultural que econômico, as frações econômicas são os grupos
dentro de cada grande classe que possuem mais capital econômico que cultural, e
entre as duas seria possível ainda identificar grupos com equilíbrio dos dois tipos de
capitais. Por fim, a terceira dimensão do espaço social, transversal a todas as classes e
frações de classe, é a que diferencia os grupos internamente a cada posição em função
da trajetória de acúmulo de seus capitais: se estão em ascensão (aumentando seu
volume de capitais em comparação com as gerações anteriores), declínio (perdendo
volume de capitais em comparação com as gerações anteriores) ou reprodução
(mantendo o volume de capitais em comparação com as gerações anteriores).
A proposta de um modelo analítico “tridimensional” para a construção da
estrutura de classes é resultado da crítica de Bourdieu ao que entende ser uma visão
redutiva da estrutura de desigualdades, mas também se baseia na hipótese de que as
três dimensões de diferenciação das posições sociais (classe, fração de classe e
trajetória de classe) marcam diferenças nas condições materiais de existência dos
agentes de forma relevante o suficiente para diferenciar seus habitus25, e com isso
suas construções identitárias e tomadas de posição. Assim, dentro de uma mesma
classe, as construções de identidade, as posições políticas e os estilos de vida variam
entre as frações de classe, e dentro de uma mesma fração de classe elas variam em
função das trajetórias de classe.
Além disso, só a partir da concepção das frações de classe como segmentos
diferenciados dentro de cada classe com base no tipo de capitais possuídos (e não,
como é mais comum, com base exclusivamente no volume de capitais, que daria
origem a camadas ou estratos: “classe média alta”, “classe média baixa” etc.) é que se
pode entender aquilo que o autor discute longamente no segundo capítulo de A
Distinção sob o título de estratégias de reconversão (Bourdieu, 2017, pp. 122-159).
Criticando uma ideia de "mobilidade social" que considera irreal e ingênua, Bourdieu
propõe que os deslocamentos no espaço social podem ser verticais (ascendente ou
descente dentro de um mesmo setor do espaço), ou transversais (passagens de um
setor para outro do espaço). Os deslocamentos verticais seriam mais comuns, pois
implicam apenas uma modificação no volume de capitais, ao passo que os

25
Sistema de disposição para práticas formado ao longo do processo de socialização. Ver Bourdieu (2013b).
38

transversais são mais incomuns por serem mais arriscados, na medida em que
implicam uma reconversão entre diferentes tipos de capitais, o que pode ameaçar o
volume de capitais que assegura a posição de classe no eixo “vertical” do espaço
social.
Ainda, o argumento a respeito das estratégias de reconversão, possível apenas
ao se conceber as frações de classe com base em diferenças na composição dos
capitais, desdobra-se permitindo que se investigue a luta pela definição da taxa de
conversibilidade entre os diferentes tipos de capitais. Isso significa entender que
além da luta entre as classes, há uma luta interna aos diferentes setores no eixo
“horizontal” do espaço social – ou seja, entre as frações de classe – em que se disputa
a definição de qual o capital dominante, qual o capital mais valioso, se o econômico
ou o cultural, bem como quais são as possibilidades e mecanismos de conversão de
um tipo de capital em outro.
Desta forma, o modelo da análise cultural de classes coloca no centro de sua
proposta explicativa a relação entre (1) as posições estruturais dos agentes num
espaço relacional de distribuição de capitais, (2) a formação de coletividades sociais
subjetivamente significativas e (3) as tomadas de posições dos agentes, e para
explicar essa relação o modelo se baseia na hipótese de que um dos principais fatores
de estruturação é a diferenciação dos agentes entre aqueles que possuem,
relativamente aos demais, mais capital econômico que cultural e aqueles que
possuem mais capital cultural que econômico.

1.1.2 Precisando a definição de capital cultural

Contudo, para que se entenda a proposta do espaço social, é fundamental que


se tenha clareza a respeito do que, precisamente, define os diferentes tipos de
capitais, e em particular o capital cultural, que gera maior confusão em suas
tentativas de operacionalização nas práticas de pesquisa. Isso pois, em diversos
estudos, é comum que o capital cultura seja reduzido ao diploma ou a algum outro
indicador de capital escolar (como anos de escolaridade ou escolaridade dos pais, por
exemplo), o que representa uma simplificação drástica daquilo que o conceito
procura captar.
39

Uma definição mais ampla de capitais na obra de Bourdieu pode ser


sintetizada como os recursos que indicam a possibilidade de exercício de poder, que
demarcam os critérios de hierarquização de reconhecimento26 e que funcionam sob o
modelo do patrimônio, ou seja, podem ser acumulados, reconvertidos e transmitidos.
A transmissão, aqui, é característica importante, pois fala sobre a possibilidade de
que os capitais sejam herdados de gerações anteriores da família ou grupo ao qual se
pertence. É mais fácil de entender no caso do capital econômico, pois se refere aos
recursos financeiros que se expressam e podem ser captados sem grandes
dificuldades com base num indicador reconhecido quase universalmente: o dinheiro.
A terminologia que foi primeiro empregada por Bourdieu, junto de Passeron,
para falar daquilo que depois passou a ser conceituado como capital cultural foi
capital linguístico. A ideia era que existe uma cultura universalizada ensinada na
escola e que corresponde, majoritariamente, à cultura das classes dominantes. Assim,
o conjunto de conhecimentos e competências ensinados e exigidos pela escola estaria
em continuidado com aquele que é adquirido pelas crianças de famílias burguesas ao
longo de seu processo de socialização familiar, o que cria senso de pertencimento e
garante vantagens no processo de aprendizagem para as crianças da classe dominante
e, em complemento, promove e justifica a exclusão educacional das crianças de classe
popular (Bertoncelo, Netto, Ribeiro, 2022, p. 6). Nesta primeira definição já se
encontrava, portanto, o fundamento da definição de capital cultural: o domínio
incorporado da cultura legitimada.
Ao longo da obra de Bourdieu, no entanto, os sentidos em que empregou o
conceito de capital cultural variaram sensivelmente, ainda que sempre com referência
a essa definição minimalista. Lamont e Lareau (1988) mostram que o conceito foi
aplicado pelo autor para falar sobre padrões de excelência acadêmica informais que
são atributo das classes dominantes (conhecimento informal sobre a escola,
conhecimento da tradição cultural humanística, competência linguística, atitudes e
estilos de personalidade etc.), mas também para falar sobre critérios formais ou
informais mobilizados em processos de seleção e exclusão social. Assim, para as
autoras, uma definição mais direta e adequada de capital cultural se baseia em
entendê-lo como um conjunto de sinais de status culturais (atitudes, preferências,
conhecimento formal, comportamentos, bens e credenciais) amplamente
26
No caso em que um capital é reconhecido como capital simbólico, isso é, como indicador de status, prestígio,
valor social. Qualquer capital reconhecido como atestado de valor social, e portanto como demarcador de
posições de prestígio, é capital simbólico (Bourdieu, 2001).
40

compartilhados e usados como critérios de exclusão social (isso é, de acesso a


empregos e recursos) e cultural (de grupos de status) (Lamont; Lareau, 1988, pp.
155-156).
A definição de Lamont e Lareau contempla um ponto importante: o capital
cultural pode assumir diferentes estados. Bourdieu (1998) destaca três fundamentais:
o estado incorporado (disposições duráveis interiorizadas pelos agentes ao longo de
seu processo de socialização), o estado objetivado (bens culturais materiais: quadros,
livros, obras de arte, instrumentos etc.) e o estado institucionalizado (garantias
institucionais e jurídicas de domínio da cultura legitimada: diplomas, credenciais,
certificados, premiações). Assim, ainda que o diploma escolar seja um indicador
adequado de capital cultural (o que é discutível, como tratarei abaixo), ele tem a
capacidade de indicar apenas o estado institucionalizado do capital cultural.
Além disso, é importante destacar que o capital cultural objetivado e
institucionalizado só podem operar efetivamente se existir o capital cultural
incorporado. Douglas Holt (1997) destaca este ponto quando discute com os críticos
estadunidenses da teoria bourdieusiana da distinção, argumentando que eles não
contemplam a divisão entre capital cultural abstrato (o domínio incorporado da
cultura legitimada na forma de disposições) e capital cultural particular (os objetos
específicos produzidos em diferentes campos que representam a cultura legitimada).
Assim, Holt argumenta que mais do que consumir os objetos certos, o central para a
valorização do capital cultural é o consumo de objetos e a realização de práticas que
são "difíceis", que exigem um conhecimento específico e que, com isso, são restritos
ao pequeno grupo com o conhecimento incorporado necessário para a realização
correta daqueles consumos e práticas. Dito de outra forma, nenhuma prática, objeto
ou credencial é sinal de status cultural por si só, mas apenas se ele representar o
domínio da cultura legitimada necessário para decodificá-lo corretamente.
Em síntese, o capital cultural deve ser entendido como todo o conjunto de
recursos interiorizados, objetivados ou institucionalizados que representam o
domínio da cultura legitimada, que operam sob o modelo do patrimônio (podem ser
acumulados, reconvertidos e transmitidos) e que funcionam como critérios de
exclusão e hierarquização social. É a posse privilegiada desse conjunto de recursos
que caracteriza as frações culturais de cada grande classe no espaço social.
41

1.1.3 Uma economia antieconômica

A despeito de compreender e de demonstrar a importância do capital cultural


na organização de hierarquias sociais e na reprodução das desigualdades, Bourdieu
afirma em diversas passagens de A Distinção se tratar de um capital dominado, e,
com isso, que mesmo internamente à classe dominante a fração cultural é uma fração
dominada. Este argumento, e com ele toda a diferenciação que Bourdieu propõe entre
uma fração econômica e uma cultural, são desdobramentos de sua teoria mais ampla
a respeito da emergência, na modernidade capitalista, de campos relativamente
autônomos regidos por uma lógica de denegação do econômico.
Postulando um relação intrínseca e necessária entre campo e capitais 27,
Bourdieu argumenta que o conjunto de recursos que podem operar na prática como
indicadores de um capital são definidos com base nas lutas contínuas internas aos
diferentes campos. Isso significa que o capital econômico, por exemplo, tem suas
formas de materialização prática definidas com base nas lutas internas ao campo
econômico, onde também são disputados entre diferentes grupos o valor relativo de
diferentes subespécies do capital econômico. O mesmo ocorre com o capital cultural,
disputado e definido em lutas internas ao campo de produção cultural (Bourdieu,
2021).
O campo de produção cultural é composto por uma série de subcampos em
que o capital cultural é predominante, e que disputam entre si o valor relativo de seu
capital simbólico específico enquanto forma legitimada de capital cultural. Aqui
estão, por exemplo, o campo artístico (em que se produz e se disputa a arte
legitimada, ou, o capital artístico), o campo científico (que produz e disputa o capital
científico), o campo literário (capital literário), o campo acadêmico (capital
acadêmico) e outros. Todas essas são subespécies do capital cultural, na medida em
que representam a cultura legitimada que funciona como critério de exclusão e
hierarquização social. O quanto cada uma dessas subespécies funcionará em relação
às demais é motivo de disputa interna ao campo de produção cultural.
No entanto, a despeito de suas especificidades e da disputa que travam entre
si, todos esses subcampos do campo de produção cultural funcionam sob um mesmo
modelo, que é determinado estruturalmente pelo fato de que o campo de produção
27
Como explicita em um de seus cursos no College de France: "Eu direi, neste nível, que no fundo há tantas
espécies diferentes de capital quanto há campos: há uma interdependência entre a definição de um campo e a
definição do capital que está em jogo nele" (Bourdieu, 2021, p. 287).
42

cultural se constitui em oposição ao campo econômico: eles se organizam com base


numa denegação do econômico. Esse é o modelo de operação da economia dos bens
simbólicos, uma economia que só pode funcionar mediante a denegação – isso é, o
recalcamento – dos interesses "econômicos". Assim, ao lado da busca pelo capital
econômico, que nunca deixa de ser relevante, nos campos de produção cultural as
hierarquias são definidas pelo capital simbólico específico do campo e que denega o
capital econômico (Bourdieu, 2008, pp. 19-20).
Essa denegação do econômico é condição estrutural necessária para a
organização das disputas e das hierarquias internas ao campo de produção cultural e
de seus subcampos, pois se trata de campos que se constituíram historicamente a
partir de um processo de luta para o estabelecimento de critérios de legitimidade e
hierarquização alternativos ao critério econômico, dominante no capitalismo. Isso
significa que além de lutarem entre si para disputar o capital simbólico legítimo de
seus campos, os agentes em disputa no campo de produção cultural precisam lutar
cotidianamente contra a pressão dos critérios de legitimação econômicos que tentam
se impor, ou seja, contra a pressão do capital econômico e, o que dá no mesmo,
contra os efeitos oriundos do campo econômico.

Se o princípio de hierarquização externa se tornar dominante, o campo da


produção cultural se tornará um campo como os outros, e em última
instância a produção cultural será medida pelo mesmo critério, pelo mesmo
metro do que qualquer outra produção. É por isso que, por exemplo, quando
discutimos o preço do livro, as pessoas dizem: "mas você não pode tratar o
livro como um mercado igual aos outros, livros não são panelas etc.". Ao
invocar isso, elas defendem a especificidade das resistências de um critério
autônomo irredutível (Bourdieu, 2021, p. 355).

A autonomia é relativa pois o força do capital econômico sempre se fará sentir


em alguma medida, tendo em vista o imperativo de capitalização generalizada de
todas as esferas da vida que caracteriza o capitalismo. Ainda assim, quanto mais
autônomo for um campo, mais atenuada será a força do capital econômico, ou seja,
menor será sua capacidade de estruturar as hierarquias de prestígio reconhecidas
pelos agentes nesse campo. Por isso é que, na terminologia de Bourdieu, a lógica de
hierarquização dos espaços em que predomina o capital cultural é a lógica de uma
economia antieconômica, ou, uma lógica econômica às avessas (Bourdieu, 2021, p.
363).
Com isso é possível entender o motivo porquê Bourdieu argumenta que,
mesmo internamente a classe dominante, a fração cultural é sempre uma fração
43

dominada: por mais que internamente aos campos cujas disputas são pautadas pelo
capital cultural (aqueles em que lutam os membros das frações culturais: acadêmicos,
intelectuais, artistas, religiosos, cientistas etc.) o capital econômico seja relativamente
menos efetivo, ele tende a ser mais efetivo quando se observa o espaço social como
um todo, ou seja, há uma possibilidade maior de que a estrutura de um campo
pautado pelo capital cultural seja impactada pela ação do capital econômico do que o
oposto, o que aponta para a própria dominância do capital econômico sobre o
cultural e, da mesma forma, das frações econômicas sobre as culturais. Uma prova
rápida disso apresentada em A Distinção se encontra quando Bourdieu mostra que as
frações econômicas apresentam condições mais fáceis de reprodução social do que as
culturais, uma vez que a transmissão do capital econômico entre diferentes gerações é
menos dependente do sistema de ensino do que a do capital cultural, o que permite
que a transmissão direta dos capitais entre as gerações não seja tão marcada por
intermediações externas (Bourdieu, 2017, pp. 111-112).
A compreensão dessa relação desigual entre os campos econômico e cultural
adiciona, portanto, mais uma característica para a diferenciação das frações
econômicas e culturais do espaço social. Além da posse privilegiada do conjunto de
recursos que indicam o domínio da cultura legitimada (o capital cultural), os agentes
em posições culturais do espaço social valorizam de maneira destacada o capital
cultural como critério demarcador de hierarquias de prestígio, bem como precisam
denegar cotidianamente o capital econômico e a pressão da lógica econômica sobre
seus espaços de atuação e circulação, o que determina sensivelmente suas
construções identitária e suas tomadas de posição.

1.1.4 Problemas de operacionalização

Se do ponto de vista lógico a explicação de Bourdieu sobre as frações de classe


parte das condições materiais de existência – analisadas relacionalmente com base
no espaço social – para as tomadas de posição, com a mediação do habitus, do ponto
de vista da produção empírica não é problemático para Bourdieu que as frações de
classe sejam depreendidas com base nas tomadas de posição. Exemplo disso se
encontra no fato de que Bourdieu e sua equipe não dispunham de dados suficientes a
respeito da distribuição dos diferentes tipos de capitais para mostrar a existência de
44

diferentes frações de classe internamente à classe popular, mas defenderam sua


existência por possuírem dados sobre a diferenciação das tomadas de posição, como
Bourdieu revela na nota 27 do capítulo 2 de A Distinção:

Para as classes populares, fortemente hierarquizadas segundo o volume


global do capital, os dados disponíveis não permitem apreender as diferenças
na segunda dimensão: apesar disso, a origem de diferenças tanto nos estilos
de vida quanto nas opiniões religiosas ou políticas encontra-se, sem dúvida,
nas diferenças que separam, por exemplo, os operários sem qualificação de
origem rural de uma fábrica do interior, não diplomados, vivendo no campo
em uma propriedade rural herdada, e os operários com qualificação de uma
empresa da região parisiense, pertencentes à classe operária desde várias
gerações e dotados de uma especialidade ou de certificados técnicos
(Bourdieu, 2017, p. 517).

Este caso é emblemático para falar sobre as dificuldades metodológicas que se


impõem quando pretendemos captar as frações de classes em linha com o modelo da
análise cultural de classes. O que Bourdieu e sua equipe fizeram na maior parte das
vezes durante a pesquisa que teve como resultado o livro A Distinção foi utilizar a
estrutura ocupacional como uma base inicial para construção do espaço social, e
então observar, a partir de comparações entre os grupos profissionais agregados,
como indicadores de diferentes tipos de capitais se distribuíam entre eles, utilizando,
sobretudo, diplomas (do indivíduo e de seu pai) como indicadores de capital cultural,
e renda, propriedades e investimentos econômicos como indicadores de capital
econômico. A partir dessa estratégia, com os dados a que teve acesso, a equipe
confirmou a existência das frações de classe diferenciadas com base na composição
de capitais no caso das classes médias e dominantes: nas médias, havia maior volume
de capital cultural entre os intermediários culturais e professores primários, maior
volume de capital econômico entre os pequenos comerciantes e artesãos, e entre as
duas frações, com equilíbrio dos dois tipos de capitais, encontravam-se os técnicos,
secretários e quadros médios administrativos e do comércio; nas classes dominantes,
identificaram maior volume de capital cultural entre os produtores artísticos e
professores de ensino superior e secundário, maior volume de capital econômico
entre os patrões do comércio e da indústria, e entre as duas frações encontravam-se
os profissionais liberais, quadros do setor público e privado e os engenheiros, todos
com equilíbrio de capitais. Para as classes populares, como a citação longa acima
45

demonstra, a equipe não tinha dados para comprovar a existência das frações, mas
postulou sua existência com base nas diferenças de tomadas de posições28.
Contudo, se na pesquisa de A Distinção a equipe conseguiu provar que existia
uma diferença consistente de distribuição dos tipos de capitais entre os diferentes
grupos ocupacionais a partir dos quais a análise foi realizada 29, vem sendo um
problema de operacionalização comum em pesquisas contemporâneas baseadas no
modelo bourdieusiano de análise do espaço social a definição dos indicadores mais
adequados para medir os diferentes tipos de capitais. Um bom exemplo desse
problema e uma proposta de solução podem ser encontrado na pesquisa de Will
Atkinson sobre a estrutura de classes do Reino Unido.
Em Class in the New Millennium (Atkinson, 2017), o autor partiu de dados
agregados sobre os grupos ocupacionais e usou um conjunto de dados secundários
para construir o espaço social britânico: renda, patrimônio e herança para medir
capital econômico, nível de escolaridade do indivíduo e de sua mãe para medir capital
cultural, proximidade com pessoas em posições de poder para medir capital social.
Não fez muito diferente do que fez a equipe de A Distinção, portanto. O problema
para a análise das frações de classe, como já adiantei, é que medir o volume de capital
cultural com base exclusivamente nos diplomas (do indivíduo ou de seus familiares) é
demasiado redutivo, uma vez que ele indica apenas a forma institucionalizada do
capital cultural. Construindo as frações de classe dessa forma, é possível identificar
nas frações culturais os intelectuais, cientistas e professores – grupos que têm na
forma institucionalizada do capital cultural um capital simbólico particularmente
operativo em seus campos de atuação. No entanto, medindo o capital cultural
exclusivamente a partir dos diplomas, grupos como o dos artistas e produtores
culturais não parecem ter mais capital cultural do que alguns grupos que, se
observarmos suas tomadas de posição (políticas e de estilos de vida), fariam parte da
fração econômica (gerentes de empresa com pós-graduação, por exemplo). O ponto é
que, como argumenta Atkinson, os artistas e produtores culturais, assim como os

28
Monique de Saint Martin (2015), que fez parte da equipe de A Distinção, dá alguns detalhes sobre os
procedimentos de categorização dos dados do INSEE (Institut national de la statistique et des études
économiques) feitos pela equipe para diferenciar as frações de classe. Ainda assim, lendo A Distinção, eu tenho
a mesma impressão exposta por Brisson e Bianchi (2017), que afirmam que faltam explicações sobre a relação
entre categorias oficiais/previamente definidas e categorias post-hoc/criadas pelos pesquisadores na descrição
dos procedimentos de pesquisa.
29
Mais especificamente, identificaram uma distribuição quiástica dos tipos de capitais entre as frações da
classe média e da dominante, ou seja, na medida em que cresce o capital cultural de uma fração, diminui seu
capital econômico, e vice versa.
46

intelectuais e cientistas, também possuem volume de capital cultural mais alto


quando comparado com outras frações de classe, mas seu capital cultural não é
necessariamente institucionalizado, mas sim objetivado (na forma de bens culturais
valorizados que possuem) e, acima de tudo, incorporado (na forma de domínio
profundo e refinado da cultura legitimada). Esses outros grupos também fazem parte
das frações culturais pois eles possuem o que o autor chama de uma maestria
simbólica (symbolic mastery) muito especializada, necessária para sua atuação
profissional, mas que é difícil de ser captada com precisão pelos indicadores
tradicionais de capital cultural constantemente mobilizados em grandes pesquisas
quantitativas. Com base neste argumento – qual seja, o de que as tomadas de posição
são indicadores adequados de capital cultural se apontarem para práticas que só
podem ser realizadas se os agentes possuírem alta maestria simbólica, ou seja, capital
cultural incorporado –, Atkinson insere os artistas e produtores culturais como
subcategorias da fração cultural da classe dominante britânica, reforçando que as
credenciais não são a melhor forma de captar seu alto volume de capital cultural30.
A operacionalização das frações de classe da forma como foi feita por Atkinson
– bem como no exemplo das classes populares em A Distinção – abre espaço para
que se entenda que as próprias tomadas de posição podem ser utilizadas como
indicadores das posições a que correspondem. Ou seja, mesmo sem sair da hipótese
bourdieusiana fundamental a respeito da relação entre posição estrutural e tomada
de posição (isso é: a cada posição no espaço social corresponde uma tomada de
posição, um estilo de vida etc.), podemos inverter a relação no momento da
operacionalização empírica da pesquisa para lançar como hipótese que, se há
diferenças coerentes e constante ao logo do tempo de tomadas de posição entre
grupos sociais relativamente homogêneos, deve haver entre eles diferenças de
posição estrutural no espaço social. O problema de pesquisa, então, passa a ser a
busca pelos fatores estruturantes (o volume, os tipos ou a trajetória de acúmulo de
capitais) que organizam essas diferenças de tomadas de posições.

30
"Cultural producers/mediators – artists, writers, musicians and curators, or, in other words, members of the
fields of cultural production and mediation, to whom the same caveat on internal dispersion just registered
applies – form the second subcategory [da fração cultural da classe dominante]. They also possess very high
levels of cultural capital compared to their middling economic capital, though not necessarily institutionalised
in the easily measurable form of credentials, as for the intellectuals, so much as embodied as symbolic mastery
and objectifed in the form of cultural works" (Atkinson, 2017, pp. 17-18). Note-se que o autor não apresenta a
distribuição dos indicadores de capitais desagregados ao nível dos grupos profissionais, apenas no nível mais
agregado chamado de fração cultural dominante.
47

Neste sentido, o exemplo de Atkinson e seu argumento a respeito da maestria


simbólica necessária para o exercício de determinadas profissões vem a calhar. Em
contextos em que o acesso ao ensino superior se generaliza (caso do Reino Unido,
mas, em menor medida, também o caso do Brasil), o diploma universitário perde
grandemente sua potência como indicador de capital cultural, o que não significa que
o capital cultural em si perda sua potência de estruturação dos habitus e das práticas.
O argumento oferecido por Atkinson para o problema passa, então, por entender que
as ocupações em si são indicadoras da posse de maior volume de capital cultural, na
medida em que dependem, para seu exercício, de alto capital cultural incorporado –
aquilo que Holt chamou de capital cultural abstrato e Atkinson de maestria
simbólica. Ou seja, se um grupo de indivíduos ocupa posições ocupacionais que
demandam conhecimento cultural específico e aprofundado (caso de professores,
artistas, produtores culturais e cientistas, por exemplo), é porque eles possuem mais
capital cultural do que aqueles que estão numa posição de classe social semelhante
mas que exercem profissões que não dependem de tal maneira do capital cultural,
mesmo que não seja possível identificar entre eles desigualdade consistente de
distribuição de capital econômico e cultural com base nos indicadores quantitativos
de que se dispõe31.
Em meu entendimento, é esse o fundamento estrutural que estava por trás da
diferenciação feita por Lamont, citada na abertura deste capítulo, quando a autora
dividiu seus entrevistados com base na dependência e utilidade para a geração de
lucro econômico32. Ainda que Lamont não trabalhe na perspectiva bourdieusiana e

31
Aliás, o tema recorrente na literatura a respeito da inflação dos diplomas em contextos de generalização do
acesso ao ensino superior fala claramente sobre a perda de potencial dos diplomas de funcionar como
indicador de capital cultural, não da perda de importância do capital cultural em si.
32
Mais precisamente, a autora dividiu seus entrevistados em 4 agregados ocupacionais: primeiro, ela separou
um grupo com ocupações diretamente envolvidas na produção e distribuição capitalista, ou seja, nos
mecanismos institucionais de produção de lucro (donos de empresas, gerentes, vendedores e tecnologia
aplicada) de um com ocupações que não são diretamente envolvidas nesses mecanismos (ocupações da mídia,
academia, artes etc.). Então, subdividiu esses grupos com base nos setores de atividades, daqueles mais
dependentes do lucro àqueles menos dependentes do lucro (ou seja, no limite, está o setor público). Desta
maneira, produziu 4 grupos organizados num espectro crescente de dependência da, e utilidade para a,
geração de lucro: Grupo 1. especialistas culturais e sociais assalariados trabalhando no setor público ou sem
fins lucrativos, tendo assim baixa dependência e instrumentalidade para a geração de lucro: religiosos, artistas,
políticos, educadores, ocupações sociais, científicas e do serviço público. Grupo 2. especialistas culturais e
sociais do setor privado e com fins lucrativos: cientistas trabalhando para o setor privado, bancários e
contadores trabalhando para o Estado, jornalistas do setor privado, dentistas autoempregados, psicólogos
clínicos etc. Grupo 3. trabalhadores com fins lucrativos assalariados no setor privado: engenheiros, contadores,
advogados corporativos, atuários, banqueiros de investimento, gerentes de fábrica. Grupo 4. trabalhadores
orientados para o lucro autoempregados e profissionais autoempregados: advogados, corretores de imóveis,
48

não tenha construídos as classes em sua pesquisa a partir de recortes no espaço


social, o procedimento que ela operou separou as ocupações típicas de fração cultural
daquelas típicas de fração econômica: de um lado estavam aquelas que, para ser
realizadas, dependem de alta maestria simbólica – ou seja, que são realizadas por
agentes com maior capital cultural incorporado –, de outro, aquelas que, para serem
realizadas, precisam de uma afirmação categórica da racionalidade econômica. Ao
mostrar, com os dados de suas entrevistas, que essa divisão em frações é um fator
explicativo adequado para o trabalho de demarcação de fronteira simbólica dos
agentes, Lamont evidenciou o papel estruturante das frações de classe sobre os
processos de construção identitária e de organização de hierarquias de prestígio.
Um último exemplo pertinente para se captar empiricamente as frações de
classe pode ser encontrado nos trabalhos de Vegard Jarness. Tal qual Lamont,
Jarness também evidencia a cisão entre frações internas a uma mesma classe com
base em oposições discursivas produzidas por meio de entrevistas aprofundadas
sobre fronteiras simbólicas. Trabalhando com diferentes frações das classes médias
norueguesas33, Jarness (2017, pp. 362-369) mostra que tanto a fração cultural quanto
a econômica expressam antipatia pelo que entendem como uma “elite”, mas que o
conteúdo dessa elite varia entre as frações: para a cultural (acadêmicos, professores,
artistas e produtores culturais), trata-se da elite econômica, os "ricos", ao passo que
para a fração econômica (CEOs, gerentes e advogados de melhor situação econômica)
trata-se da elite cultural, os "esnobes". Os membros da fração cultural descrevem os
membros da fração econômica como tendo valores egoístas e individualistas,
orientados para o luxo material e para símbolos de status dispendiosos, usando para
classificá-los termos pejorativos: são vulgares, indiscretos, chamativos, bregas,
superficiais, inautênticos, vazios. Já os membros da fração econômica entendem que
os membros da fração cultural exibem o estilo de vida de uma esquerda ultrapassada
e mostram-se ressentidos com a recepção de dinheiro público por artistas e
produtores culturais. Implicitamente, os membros da fração econômica valorizam o
"cara normal" em oposição a tentativa de se mostrarem culturalmente superiores que
identificam na fração cultural. Assim, Jarness oferece mais um exemplo de como as
tomadas de posições guardam correspondência com posições diferentes na estrutura
de classes e, mais que isso, mostra que o principal esforço explícito de construção

arquitetos, conselheiros financeiros, vendedores. Para mais detalhes, ver Lamont (1992), cap. 6: The nature of
internal class boundaries.
33
Especificamente, da cidade de Stavanger.
49

identitária dos membros de cada uma das frações da classe média que entrevistou é
direcionado justamente para traçar uma fronteira simbólica que os separe da fração
oposta.

1.1.5 O espectro das frações de classe econômicas e culturais

Em síntese, a definição que carrego ao longo desta dissertação é a de que o


conjunto de posições sociais que integram uma mesma classe social, além de
poderem ser subdivididos com base em estratos (alta, média ou baixa) ou em
antiguidade (tradicional ou nova), podem também ser organizados relacionalmente
numa espécie de espectro que vai da maior para a menor força do capital
econômico/capital cultural para a estruturação de hierarquias de prestígio. Isso é,
quanto mais os agentes circulam e se encontram envolvidos cotidianamente por
campos ou círculos sociais em que o capital cultural (em suas diversas subespécies:
artístico, científico, acadêmico, literário etc.) é o princípio fundamental de
hierarquização das posições sociais, mais eles estão próximos de um polo de fração
cultural do espaço social. O limite típico-ideal é um polo no qual o capital econômico
é completamente denegado, completamente irrelevante para estruturar hierarquias,
da mesma forma que um membro típico-ideal de uma fração de classe econômica é
aquele que age completamente com base na racionalidade econômica.
Assim, nos campos e círculos sociais tipicamente culturais, é centralmente o
capital cultural que está em disputa entre os agentes. Ou seja, os agentes
desenvolvem estratégias orientadas para a valorização de seu capital cultural, ao
mesmo tempo em que precisam se opor continuamente, explícita e implicitamente,
ao poder de estruturação do capital econômico.
50

Figura 1. Espectro das frações de classe econômicas e culturais

Este modelo geral toma formas específicas nos diferentes campos e


subcampos, mas a ideia é que, em diferentes contextos e conjunturas, os casos
particulares seguirão sempre a estrutura do modelo. Nos campos acadêmico,
científico e artístico, por exemplo, a importância do capital cultural e, em
complemento, a denegação do capital econômico, devem ser sentidos de maneira
mais forte, na medida em que os agentes que os compõem possuem alta maestria
simbólica e que há critérios e instâncias de legitimação mais claros e específicos
operando na hierarquização das posições que não se baseiam no capital econômico.
Outro é o caso de campos, subcampos ou círculos sociais como o do jornalismo, da
arquitetura ou da medicina, que também agregam agentes com alta maestria
simbólica e que também são marcados, em alguma medida, por critérios de
legitimação alternativos ao econômico, mas que não têm instâncias de consagração
antieconômicas tão bem institucionalizadas quanto os campos acadêmico, científico e
artístico. Por isso, aqui, a luta entre afirmação e denegação do econômico é mais viva
que nos campos acadêmico, científico e artístico. Por fim, há espaços que sentem a
força dos critérios de legitimação antieconômicos e que agregam agentes que também
possuem e valorizam a maestria simbólica, ainda que sejam carentes de instâncias de
consagração antieconômicas bem delimitadas, como é o caso da educação básica e da
assistência social34.
Cabe repetir: não estou propondo aqui uma classificação bem delimitada de
posições, com barreiras rígidas separando uma fração de classe da outra. A definição
deve ser lida na forma de um espectro. Há campos e círculos sociais que denegam

34
Esses exemplos são formulados de forma interessada pois versam sobre os grupos ocupacionais dos
membros de minha amostra, mas são hipotéticos: a estrutura de cada campo, subcampo ou círculo social deve
ser captada empiricamente. O objetivo aqui é apenas explicitar que a definição que construo é a de um
espectro.
51

mais fortemente e menos fortemente o princípio econômico de hierarquização, e isso


tem consequências para as construções identitárias e para as tomadas de posição dos
agentes. Como exposto acima, a definição se baseia no pressuposto mais geral de que
a modernidade capitalista é caracterizada por um imperativo de capitalização
(econômica) que se espalha pelas mais diversas esferas da sociedade, mas também,
ao mesmo tempo, é marcada pelos processos de autonomização relativa de campos
sociais que têm estruturas e disputas organizadas justamente com base na denegação
do capital econômico. Os campos baseados na denegação do imperativo econômico
são sempre dominados em relação ao campo econômico, mas, ainda assim, são
capazes de orientar os habitus e, com isso, as tomadas de posições dos agentes que
neles se inserem e travam disputas a ponto de podermos diferenciá-los como
pertencentes a uma fração de classe específica: a fração cultural.
Para sustentar a definição ao longo desta dissertação, os capítulos 2 e 3
apresentarão análises a respeito de dois conjuntos de tomadas de posições de agentes
que entendo que fazem parte da fração cultural das classes médias paulistanas;
tomadas de posições estas que, eu argumento, são fortemente estruturados pela
posição de fração de classe: os posicionamentos políticos e os estilos de vida. Nos
posicionamentos políticos, mostrei que a integração dos agentes a posições do espaço
social típicas das frações culturais tende a ser marcada pela cobrança por posições
políticas de esquerda, que, por sua vez, tendem a ser as mais vantajosas para a
valorização do capital cultural em comparação com o econômico. Da mesma forma,
nos estilos de vida, as posições típicas das frações culturais são marcadas por práticas
e preferências culturais orientadas para a valorização da cultura legitimada,
igualmente estratégicas para a valorização de seu capital cultural como critério de
hierarquização social. Além dessas análises detidas nos próximos dois capítulos, na
seção 1.4 Posições sociais e condições de vida dos entrevistados também darei
indicações de como tomadas de posição em domínios como o das escolhas
educacionais, matrimoniais e habitacionais são marcadas igualmente pela fração de
classe.
Construída a definição das frações culturais, passo, a seguir, para uma revisão
sobre o tema das classes médias no Brasil, feita de forma interessada e orientada para
uma compreensão bem embasada teoricamente a respeito da posição social dos
membros de minha amostra.
52

1.2 Classes médias no Brasil

Também não pretendo fazer aqui uma grande revisão teórica sobre o tema das
classes médias, apenas identificar alguns temas-chave a respeito de sua condição e
posição na estrutura social brasileira. Há boas revisões sobre o tema em Salata
(2016), Cardoso e Préteceille (2021) e Leal (2022). É interessante notar, no entanto,
como observam Adalberto Cardoso e Edmond Préteceille, que boa parte dos
trabalhos sobre classes médias no Brasil e no mundo continua sendo pautada por
temas colocados por Charles Wright Mills em A Nova Classe Média (Mills, 1969
[1951]):

A heterogeneidade estrutural dos white collar e a vulnerabilidade de seus


estratos mais baixos, o medo da desclassificação (ou perda de status) e a
ansiedade a ele associada, que se manifesta nos estilos de vida e nos padrões
de consumo, o anseio de mobilidade social, a inflação de credenciais
educacionais provocando insegurança de renda, os mecanismos de obtenção
e garantia de prestígio, a relação com as outras classes, a participação e os
valores políticos (Cardoso; Préteceille, 2021, p. 22).

Jana Leal auxilia bastante, aqui, ao sintetizar as principais características


estruturais e culturais das classes médias brasileiras apontadas pela literatura 35. A
revisão da autora permite discriminar oito características fundamentais:

1. Tendem a ocupar postos não manuais e profissionalizados que exigem


melhor qualificação profissional. Essas profissões tendem a representar
também maior prestígio, em comparação com as ocupações manuais típicas
da classe popular;
2. Renda mais elevada que as classes populares. Assim, é comum a busca
pela resolução de problemas pessoais com base em instituições privadas
(educação, segurança e transporte, por exemplo). Estando mais comumente
em ocupações formalizadas, tendem a ter também maior acesso a direitos
trabalhistas que a classe popular, altamente informalizada no Brasil;
3. Buscam por ensino básico em instituições privadas e acesso a ensino
superior, que tendem a garantir maior acesso às credenciais necessárias para
acessar as posições profissionais típicas das classes médias. A educação
básica de qualidade e o diploma de ensino superior aparecem, então, como

35
Ver o capítulo 2 de Leal (2022), em particular as pp. 67-93.
53

condição fundamental para a reprodução das posições de classe média, tendo


em vista que garantem o acesso aos capitais necessários;
4. Ideologia meritocrática como forma de justificativa de sua posição
social. Isso não exclui a ativação de mecanismos de apadrinhamento (capital
social). Típica ainda a ação política em direção ao fechamento institucional
do acesso aos postos profissionais que ocupam;
5. Compartilhamento da concepção de mundo hierárquica e inercial que
corrobora para a reprodução da ordem desigual brasileira;
6. Contratação de serviço doméstico também como esforço pelo
afastamento de funções manuais consideradas degradantes. Ao mesmo
tempo, a contratação de trabalho doméstico é mecanismo de reprodução dos
capitais, pois garante um tempo livre que pode ser investido em outras
atividades.
7. Luta constante contra a mobilidade social descendente e contra a
desclassificação, o que tende a gerar constante sentimento de medo,
frustração e insegurança.
8. Consumo e estilo de vida marcado pelo esforço de diferenciação com
relação às classes populares e aproximação das classes dominantes.

No entanto, se por um lado é importante ter em mente essas características,


identificadas com base no acúmulo da literatura sobre classes médias no Brasil, por
outro, cabe notar que os critérios mobilizados para a identificação empírica das
posições de classe no Brasil são bastante diversos, e apenas pontualmente estiveram
alinhados com a proposta teórica de análise do espaço social descrita acima.
De partida, cabe notar que, diferente de uma construção da estrutura de
classes com base numa análise da distribuição relacional de diferentes tipos de
capitais, a maior parte das análises sobre classes no Brasil não parte da empiria, mas
de modelos de divisão de classes definidos previamente pelos pesquisadores, com
critérios para o estabelecimentos das fronteiras estruturais entre as classes variando
sensivelmente em função do referencial teórico. Como aponta Edison Bertoncelo
(2009, pp. 33-34) em sua revisão sobre a literatura sociológica contemporânea
dedicada ao problema das classes, abordagens tanto no campo marxista quanto no
weberiano se assemelham por utilizarem a estrutura ocupacional como indicador da
estrutura de classes, o que faz com que as classes sejam construídas como agregados
54

ocupacionais. Os modelos de construção da estrutura ocupacional variam, na medida


em que são baseados em diferentes pressupostos teóricos, mas em todos os casos se
trata da construção apriorística de um modelo de estrutura de classes pelos
pesquisadores, modelo este que se pressupõem que dará conta de captar
adequadamente a estrutura desigual de oportunidades de vida e as estratégias de
ação social36. Como consequência, a análise empírica da estrutura social acaba
limitada de partida pelo modelo definido a priori, ou seja, a análise da distribuição
dos diferentes tipos de capitais é, centralmente, um teste a respeito da adequação do
modelo teórico à realidade. Com isso, a análise só pode alcançar aquilo que o modelo
prévio definiu, e se existe alguma diferença estrutural de posições na sociedade que
não foi prevista na construção do modelo, essa diferença provavelmente não será
captada.
Dos modelos apriorísticos propostos a que tive acesso, aquele que melhor
parece dar conta de captar a diversidade de posições no espaço social é o que foi
proposto por Cardoso e Préteceille (2021), particularmente orientado para a análise
da complexidade das posições de classes médias 37. Construído com base em cortes na
estrutura ocupacional, os autores definem a classe média como aqueles grupos
profissionais que se diferenciam das classes populares e das superiores por sua
posição na divisão do trabalho, seu nível de qualificação, sua escolaridade e renda,
mesmo sendo majoritariamente assalariados (Cardoso; Préteceille, 2021, p. 46).
Diferenciam-se, assim, para cima, das classes econômicas e hierárquicas dominantes,
os proprietários, grandes dirigentes de empresas e altos cargos do serviço público, e,
para baixo, dos operários e outros trabalhadores das classes populares marcados pela
precariedade do vínculo empregatício e pela baixa qualificação e remuneração,
incluindo aqui a pequena burguesia urbana popular (Cardoso; Préteceille, 2021, p.

36
Os modelos mais famosos são o proposto por Erik Olin Wright e o proposto por John Goldthorpe e seus
colaboradores. Ver Bertoncelo (2009) para explicação pormenorizada.
37
Mais que apenas uma impressão, a potencia do modelo de Cardoso e Préteceille é evidenciada pelo trabalho
comparativo de Lucas Page Pereira (2021). O autor construiu o espaço social do Brasil com base numa série de
dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e comparou diversos modelos dedutivos de
construção da estrutura de classes brasileira em termos de sua adequação para captar a diversidade de
posições do espaço construído indutivamente. Com isso, mostrou que o modelo de Cardoso e Préteceille, junto
com o proposto por José Alcides Figueiredo Santos (2015), são os que captam uma diversidade maior de
posições no espaço social.
55

259)38. A categorização proposta pelos autores envolve ainda uma diferenciação


interna entre três camadas, separadas, igualmente, com base no tipo de ocupação:

• Classe média alta (6,4% da população ocupada no Brasil em 2014 39):


Engenheiros e altos cargos comerciais e administrativos das empresas; Categoriais
superiores da função pública; Quadros e profissões intelectuais superiores
(professores de ensino superior, pesquisadores, farmacêuticos e médicos
assalariados); Profissionais da informação, das artes e espetáculos.
• Classe média média (12% da população ocupada no Brasil em 2014):
Profissões intermediárias administrativas da administração pública; Profissões
intermediárias administrativas e comerciais das empresas; Técnicos; Contramestres e
agentes de supervisão do trabalho; Profissões intermediárias: Professores do ensino
fundamental e médio e instrutores; Profissões intermediárias da saúde e do trabalho
social; Clérigos e religiosos.
• Classe média baixa (8,5% da população ocupada no Brasil em 2014):
Assalariados civis e agentes do serviço público; Trabalhadores não manuais de
escritório (white collar).

Somando, portanto, os autores identificam que em 2014 as classes médias


definidas desta maneira eram 27% da população brasileira.
O modelo de Cardoso e Préteceille se mostrou adequado para medir boa parte
das condições de vida. Ele permitiu que os autores mostrassem que existe entre as
classes e camadas, assim definidas, um hierarquia de renda e de credenciais
educacionais, bem como que a faixa etária, o gênero e a raça guardam relações com a
hierarquia de classes: quanto mais alta a posição social, maior a parte de brancos, de
homens e de pessoas mais velhas (Cardoso; Préteceille, 2021, p. 87). Com base na
mesma classificação, Jana Leal foi capaz de mostrar também que a diminuição das
desigualdades entre as classes assim definidas durante o período 2002-2008, com o
aumento relativamente maior da renda das classes populares e média baixa, fez com
que uma série de itens de consumo e serviços que eram monopolizados por

38
O modelo dos autores é, na verdade, uma adaptação para o Brasil das Categorias Socioprofissionais
(catégories socioprofessionnelles) francesas. Os autores fazem uma explicação pormenorizada da adaptação no
livro.
39
Esse dado é retirado da PNAD de 2014.
56

indivíduos de posição social superior fossem sendo cada vez mais alcançados por
indivíduos de posições mais baixas40.
Analisando o caso específico da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)
com base nessa definição, Cardoso e Préteceille mostram que as classes médias
cresceram de 35% em 2002 para 40% da estrutura de classes em 2014. Houve, no
período, um aumento mais acentuado da alta classe média na RMSP que em outras
Regiões Metropolitanas do Brasil (de 7,7% para 11,8%), crescimento significativo de
profissionais administrativos e comerciais de empresas, engenheiros e técnicos de
nível superior das empresas e de profissões intermediárias da saúde e trabalho social.
No que interessa em particular para minha investigação a respeito da divisão entre
frações de classe econômica e cultural, Cardoso e Préteceille mostram que na RMSP,
em 2014, os professores de ensino superior e profissionais da atividade científica,
profissionais da saúde e do trabalho social, profissionais da informação, artes e
espetáculos, professores de ensino fundamental, médio e instrutores – grupos
ocupacionais que eu acredito que indicam previamente a fração cultural das classes
médias, tendo em vista a maestria simbólica que implicam para sua performance –
eram cerca de 10,6% dos ocupados na RMSP (Cardoso; Préteceille, 2021, pp. 63-64),
o que aponta para o caráter quantitativamente minoritário da fração cultural das
classes médias na região41.
Note-se que nada até aqui, nem nas características identificadas na revisão
bibliográfica de Jana Leal nem no modelo proposto por Cardoso e Préteceille, dá
conta de entender uma divisão da classe média em frações como as que proponho
nesta dissertação. Cardoso e Préteceille, inclusive, se mostram céticos com a
existência de frações de classe no Brasil nos moldes daquelas descritas por Bourdieu
para o caso francês, por dois motivos:

[1] Primeiro, porque o quiasma destacado por Bourdieu descreve uma


estrutura social francesa fortemente marcada pelos "trinta gloriosos", nos
quais a importância dos serviços públicos na formação do capital escolar
pôde torná-lo parcialmente independente do capital econômico. No Brasil
das últimas décadas, ao contrário, o acesso à educação de qualidade se deu
através dos ensinos fundamental e secundário privados, nos quais a
qualidade é função do preço pago pelas famílias, o que associa
estruturalmente educação e renda familiar, correlacionando os dois capitas.
É certo que as melhores universidades são públicas, mas os exames de

40
Ela utilizou dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF).
41
Os clérigos e religiosos também deveriam ser inseridos na soma por conta da especificidade de sua maestria
simbólica, mas a porcentagem de sua presença não é discriminada pelos autores. Pelo mesmo motivo, os
engenheiros também deveriam ser diferenciados dos altos cargos comerciais e administrativos das empresas.
57

admissão (vestibular ou Exame Nacional do Ensino Médio - Enem) têm


desempenhado papel de filtro social semelhante ao das Grandes Écoles na
França, cujo acesso é mais provável para os filhos das elites econômicas do
país (e hoje em dia também do exterior) (Cardoso; Préteceille, 2021, pp.
260-261).

[2] Em segundo lugar, mesmo no caso francês, essa estrutura de quiasma se


vem enfraquecendo em favor de uma hierarquia mais unívoca em razão de
fatores como: no que tange à estrutura dos mercados de trabalho, a redução
dos serviços públicos, a estagnação da renda das classes médias do setor
público e a crescente precariedade de novos entrantes nos segmentos
médios; e, no que tange ao acesso à educação, o crescimento do uso do
segmento privado de educação pelas classes médias e altas, para contornar
os problemas da educação pública e/ou buscar estratégias de maximização
escolar para seus filhos (Cardoso; Préteceille, 2021, p. 261).

Como se nota, os dois motivos se baseiam na associação direta entre capital


cultural e acesso educacional, o que aponta para uma visão mais estreita do conceito
de capital cultural do que aquela que apresentei acima. A despeito da associação já
ricamente documentada entre capital econômico e acesso às credenciais mais
valorizadas (capital cultural institucionalizado), as disposição engendradas pelas
posições sociais típicas das frações culturais ainda podem inclinar os agentes para
diferenças sensíveis – por vezes, para oposições diretas – em suas construções de
identidade e tomadas de posição, tendo em vista a pressão estrutural para valorização
do capital cultural e para a denegação da racionalidade econômica que caracteriza
essas posições. Como dito acima, para ocuparem as posições tipicamente culturais do
espaço social – posições que podem ser identificadas previamente pelo grupo
ocupacional, como sugere Atkinson, ainda que não se reduzam a ele – esses agente
precisam ter volume mais alto de capital cultural incorporado, mas esse volume não
pode necessariamente ser captado pelo acesso às credenciais.
Um exemplo de tentativa de construção de um espaço social da população
brasileira que dê conta das divisões em frações baseadas na estrutura dos capitais é
apresentado por Bertoncelo (2022), que se apoia no argumento de Atkinson de que o
título ocupacional é um indicador adequado da inserção em regiões do espaço social
tipicamente econômicas ou culturais. Recorrendo a dados da POF de 2017-2018,
Bertoncelo utilizou as categorias ocupacionais para construir uma representação
esquemática do espaço social da população brasileira (Figura 2) que o permita
analisar possíveis diferenças nas estratégias de consumo.
58

Figura 2. Representação esquemática do espaço social

Fonte: Bertoncelo (2022)

A representação auxilia a compreender os eixos “vertical” e “horizontal” do


espaço social descritos acima. Para a diferenciação das grandes classes, quanto
mais próximo o grupo estiver da extremidade superior do gráfico, maior seu
volume de capitais, independente de qual o tipo de capital, e quanto próximo
da extremidade inferior menor seu volume de capitais. Para a diferenciação
das frações de classe, partindo de uma linha vertical no centro exato do
gráfico, quanto mais para a esquerda, maior o volume de capital cultural (CC+)
e menor o volume de capital econômico (CE-), e quanto mais para a direita,
maior o volume de capital econômico (CE+) e menor o de capital cultural (CC-
).

Nas posições superiores do espaço, Bertoncelo separa quatro grupos


ocupacionais, (i) dirigentes e executivos de negócios (inclui aqui médios proprietários
com renda familiar per capita superior a dez salários-mínimos), (ii) profissionais
(profissionais liberais, engenheiros, arquitetos, profissionais da administração e
tecnologia da informação), (iii) fração cultural dominante (cientistas, professores
universitários, profissionais de publicidade, artistas plásticos, diretores de cinema) e
(iv) trabalhadores de colarinho-branco (responsáveis por operações financeiras
59

complexas e funções burocráticas especializadas do Estado). Nas intermediárias,


separou (i) gerentes e donos de comércio, (ii) fração cultural média (professores de
ensino básico, produtores e intermediários culturais, técnicos médico-sociais), (iii)
técnicos e (iv) trabalhadores de apoio administrativo. Nas posições inferiores,
separou (i) trabalhadores de vendas, (ii) trabalhadores de cuidado, (iii) pequenos
proprietários urbanos e rurais e (iv) trabalhadores elementares.
Como se nota, em comparação com o modelo de Cardoso e Preteceille, este de
Bertoncelo reduz as classes médias, uma vez que insere grande parte do que o modelo
anterior chama de classes médias nas posições superiores. No entanto, com base no
seu modelo de agregações, Bertoncelo é capaz de mostrar não apenas que as posições
"verticais" diferenciam as formas de consumo (das posições inferiores para as
superiores, diminui a proporção de gastos de "necessidade" [como alimentação,
remédio, luz, energia, água e esgoto], e cresce a de gastos com patrimônio econômico
[veículos, imóveis e serviços com imóveis], lazer, cultura e educação [cursos, viagens,
assinatura de revistas e jornais, compra de ingressos para equipamentos culturais]),
mas também que o consumo é diferenciado entre as frações no eixo "horizontal": em
todas as classes, o investimento em lazer, cultura e educação é proporcionalmente
maior nos grupos ocupacionais dispostos à esquerda no esquema, ao passo que os
gastos com patrimônio são mais elevados nos grupos dispostos à direita (sobretudo
com veículos). Observando com maior atenção os gastos com alimentação a divisão
em frações também se evidencia: em todas as classes as frações culturais gastam
proporcionalmente mais com alimentos "leves" e "frescos" (hortaliças, herbáceas,
frutas, cereais, gelatina, geleia, chá e pescados) e as frações econômicas gastam mais
com alimentos "pesados" (carne bovina, embutidos, margarina).
O modelo empregado no artigo por Bertoncelo é também o que serviu de base
para o recrutamento de interlocutores para os grupos focais realizados pelo projeto
temático Para além da distinção, que está estudando classes sociais, práticas
culturais e gostos na cidade de São Paulo. A equipe de pesquisa usou como base a
classificação empregada por Bertoncelo e a ampliou inserindo uma serie de outros
indicadores de capitais econômico e cultural42. Com isso, recrutaram interlocutores
organizados em seis frações do espaço social:

42
Bairro; gênero; idade; ocupação; empresa; situação trabalhista; filhos e idade dos filhos; escolaridade;
universidade que cursou; curso realizado; pais tiveram acesso ao ensino superior? Você é o único da sua
residência com ensino superior completo? Você é/ou foi cotista? Você é ou foi bolsista Fies? Você frequentou
durante infância/ adolescência algum programa de acesso à cultura de Ongs, prefeitura (Ceus) ou outra
60

 Estrato profissional inferior com baixo capital econômico e cultural:


costureira (2), cuidadora de idosos, segurança, diarista, motorista de
aplicativo, pedreiro, pintor; agente educativo, apenas um ingressou no nível
superior (cursando); idade entre 28 e 45 anos; renda familiar entre R$ 1 mil e
R$ 2 mil, 5 homens e 4 mulheres; 5 brancos, 4 negros (pretos ou pardos).
 Estrato profissional inferior com capital cultural mais alto que o econômico:
artista plástico, produtor cultural, professora de dança, auxiliar de biblioteca,
auxiliar de enfermagem, professor de violão, grafiteiro, auxiliar de
desenvolvimento infantil; 1 com ensino superior completo, 2 cursando e 2
com superior incompleto; renda familiar entre R$ 1 mil e R$ 2.500; idade
entre 30 e 40 anos, 3 mulheres e 5 homens; 3 brancos e 5 negros.
 Estrato profissional médio com capital econômico mais alto que o cultural:
gerente administrativo, analista de suporte, pequena comerciante, gerente de
compras; superior completo em faculdades de baixo prestígio; idade entre 28
e 40 anos; renda familiar per capita entre R$ 2.500 e R$ 6.000; 5 mulheres e
4 homens; 5 brancos e 4 negros.
 Estrato profissional médio com capital cultural mais alto que o econômico:
violinista, professor de música, fotógrafa, atriz e professora de artes cênicas,
professora de linguagens, artesã; ensino superior completo; idade entre 25 e
39 anos; renda familiar per capita entre R$ 1.300 e R$ 4.500; 5 homens e 5
mulheres; 5 brancos, 2 amarelos e 3 negros.
 Estrato profissional superior com capital econômico mais alto que o
cultural: executivo de empresa, diretor geral, engenheiro, gerente comercial;
ensino superior; universidades privadas; pais com ensino superior; idade
entre 36 e 52 anos; renda familiar per capta entre R$ 6 mil e R$16 mil; 5
homens e 4 mulheres; todos brancos.
 Estrato profissional superior com capital cultural mais alto que o
econômico: diretor de fotografia de cinema e TV, jornalista-redatora,
professora universitária, advogado, diretor de filmes, professor e produtor de
audiovisual, gestora cultural e atriz, professora de teatro e atriz, musicista;

instituição? Qual? Seus filhos abandonaram a escola ou não estão nas seriações adequadas à idade? Seus filhos
frequentam algum programa de acesso à cultura de Ongs, prefeitura (Ceus) ou outra instituição? Qual? Renda
familiar; Número de moradores; Renda per capita; Raça / cor; Identidade de gênero; Orientação sexual. Para
detalhes sobre a construção dos grupos focais, ver Mira; Castro; Michetti (2023) e Bertoncelo; Netto (2023).
61

pós-graduação, universidade pública; idade entre 31 e 49 anos; pais com


ensino superior; renda familiar per capta entre R$ 4 mil e R$ 14 mil; 5
mulheres e 2 homens; 6 brancos, uma indígena.

Assim como Bertoncelo em seu artigo, com essa estrutura de diferenciação das
classes a equipe conseguiu captar uma série de padrões de tomadas de posições
culturais que unificam as frações de classe internamente e as separam mutuamente.
Notadamente, as tomadas de posição em termos de gostos e práticas culturais dos
membros das frações culturais sempre são orientadas por estratégias de cultivo
cultural (consumo mais especializado, sério e engajado, maior domínio de nomes e
variabilidade estilística, atenção maior aos especialistas e intermediários culturais),
recusa do que entendem como padronizado, valorização do "autêntico" e do
"alternativo" e denegação do valor econômico (bem exemplificada pela recusa aos
shopping centers), enquanto os membros das frações econômicas expressam uma
relação com a cultura marcada por ideias de entretenimento e diversão, além de
fazerem julgamentos sobre a cultura mais baseados em preceitos morais que
estéticos.
Os resultados dos grupos focais serão explorados com mais minúcia no
terceiro capítulo, quando eu estiver tratando dos estilos de vida da fração cultural das
classes médias paulistanas, mas já servem para adiantar que os indícios que me
ajudam a sustentar meu argumento a respeito das frações econômica e cultural se
encontram mais em pesquisas voltadas para a análise das tomadas de posições,
sobretudo as que tratam de estilos de vida e posicionamentos políticos. Nessas
pesquisas é possível encontrar diferenças consistentes de tomadas de posição entre
agentes que experimentam as mesmas condições materiais de existência e
oportunidades de vida – portanto, que se encontram na mesma classe social – e que,
eu argumento, são mais bem explicadas pela diferença nos tipos de capitais possuídos
pelos agentes do que por qualquer outro fator.

1.3 Como eu construí as classes em minha pesquisa

A forma como se constrói o grupo que se irá pesquisar é um posicionamento


político e científico diante do grupo que se constrói. Essa é a ideia de Bourdieu na
aula de 12 de Maio de 1982 de seu Curso de Sociologia Geral (Bourdieu, 2020). Não
62

deixo de pensar também na forma como Roy Wagner apresenta a cultura em A


invenção da cultura: o antropólogo vai para um ambiente em que as práticas são
radicalmente diferentes das suas (alteridade radical) e com isso promove uma tripla
“invenção”: "inventa" a cultura do outro, “inventa” sua própria cultura e “inventa” a
própria ideia de cultura (Wagner, 2010). De certa forma, é esse o problema que
enfrentamos quando precisamos recrutar indivíduos de classe média – ou de
qualquer outra classe, ou de qualquer outro grupo social – para participar de uma
pesquisa. Esse recrutamento é em si também um posicionamento político e científico.
Eu crio as classes médias na forma como as construo no momento de recrutá-las para
participar da minha pesquisa. Essa criação, esse posicionamento ativo, é inevitável, e
por isso é bom que se tenha consciência dele. Trata-se, afinal, apenas de um caso
particular do problema geral da construção do objeto sociológico.
Como decidi criar as classes médias no momento de recrutá-las para a
pesquisa? Minha maior aproximação foi com a definição feita por Adalberto Cardoso
e Edmond Préteceille (2021), me baseando também na divisão social do trabalho e
buscando indivíduos que são, em sua maior parte, assalariados (com exceção de
algumas profissões executadas como profissionais liberais), mas que se distinguem
das classes populares por sua maior qualificação, escolaridade e renda. Então, com
base numa versão modificada do modelo proposto pelos autores, eu dividi os grupos
ocupacionais diferenciando-os a partir de uma pressuposição de desigualdade de
estrutura de capitais entre frações, sendo essa pressuposição inspirada no argumento
de Atkinson a respeito das diferenças de maestria simbólica subjacente às diferentes
atividades profissionais: a fração cultural (que tende a possuir proporcionalmente
mais capital cultural que econômico), a fração econômica (que tende a possuir
proporcionalmente mais capital econômico que cultural) e a fração balanceada (que
tende a possuir um equilíbrio entre capital econômico e cultural). A divisão de
ocupações entre as três frações ficou da seguinte forma:

Grupo A [fração econômica]


• Empregador, proprietário ou sócio de estabelecimento
• Cargo de gerência e supervisão (diretor, gerente, chefe de departamento,
encarregado ou supervisor)

Grupo B [fração balanceada]


63

• Profissional liberal (advogados, médicos, contadores, arquitetos,


engenheiros etc.)
• Profissionais da saúde e trabalho social
• Profissões administrativas
• Membro das Forças Armadas e de segurança (delegados, militares, etc.).

Grupo C [fração cultural]


• Profissional intelectual ou científico (professores universitários, cientistas,
palestrantes)
• Professor de educação básica e técnica (infantil, primário, secundário,
técnico)
• Profissionais do mundo da informação, artes e entretenimento (jornalistas,
artistas, produtores culturais, intermediários culturais)

Além do critério ocupacional, defini dois outros critérios no momento do


recrutamento: (1) como minha pesquisa recorta apenas a cidade de São Paulo, residir
na cidade era o primeiro critério fundamental para a participação na pesquisa; (2)
outro critério fundamental foi baseado na educação: recrutei apenas indivíduos com
ensino superior completo, para garantir com isso um nível de escolaridade que
apontasse para uma separação das camadas populares, ao menos em termos de seu
capital escolar.
No que tange a renda, acompanho também Cardoso (2020) no entendimento
de que sujeitos pertencentes à mesma faixa de renda podem ter oportunidades de
vida muito diferentes (status diferentes, capacidade de reprodução de classe
diferentes, possibilidades diferentes de sustentar projetos de ascensão social, estilos
de vida diferentes), e por isso não estabeleci previamente uma faixa de renda mínima
para meus recrutados. Com isso, o limite inferior de renda mensal per capita entre
meus 27 entrevistados foi de R$303,00, e o limite superior foi de R$18.180,00.
64

Figura 3. Renda familiar per capita dos entrevistados

É claro que Vanessa dificilmente ocupará as posições intermediárias do espaço


social com uma renda per capita de R$303,00 por mês, o que indica que, por mais
que se encaixe nos demais critérios estabelecidos (ela tem dois diplomas de ensino
superior em áreas típicas das frações culturais: pedagogia e assistência social) ela
está, provavelmente, na fração cultural das classes populares, não das médias. É
análogo o caso de Débora (que é jornalista), com uma renda mensal per capita de
R$18.180,00: ela provavelmente ocupa uma posição na parte superior do espaço
social, não na intermediária, e portanto deve fazer parte da fração cultural das classes
dominantes. Ainda assim, para ambos os casos, como mostrarei ao longo do texto, as
pressões estruturais típicas das frações culturais se fazem sentir quando observamos
suas tomadas de posição, por mais que variem pelo fato de serem de classes
diferentes. Decidi mantê-las na amostra para que funcionem como comparação com
aquilo que se identifica entre a maior parte dos entrevistados, permitindo que se
perceba com maior clareza os efeitos específicos do capital cultural independente da
posição de classe definida com base no volume de capitais (se popular, média ou
superior).
65

Cabe relembrar ainda que meu recrutamento foi feito em duas etapas:
primeiro eu enviei a chamada de recrutamento e solicitei a circulação para contatos
pessoais (sobretudo colegas e professores da Universidade Estadual de Campinas) e
então, após os primeiros recrutamentos, eu fui rodando uma bola de neve para
ampliar a amostra. Se, por um lado, tal estratégia pode impor limites e vieses na
amostra, tendo em vista o ponto de partida da chamada de recrutamento, por outro,
eu fui capaz de montar uma população de pesquisa que cumpre adequadamente meu
critério ensejado de homogeneidade (todos fazem parte de grupos ocupacionais que
indicam previamente pertencimento a frações culturais do espaço social) e que,
internamente a este critério, apresenta considerável heterogeneidade de
características sociais, econômicas e demográficas, como mostrarei a seguir.
Na próxima seção, apresento uma caracterização detalhada de meus
entrevistados, descrevendo a diversidade de suas inserções profissionais,
propriedades econômicas, trajetórias e credenciais educacionais, estrutura familiar,
locais de moradia e origem de classe. Nessa caracterização, faço, desde já, indicações
sobre os efeitos de seu pertencimento de fração de classe sobre algumas de suas
tomadas de posição.

1.4 Posições sociais e condições de vida dos entrevistados

Vinte e sete pessoas responderam ao meu Questionário e eu fiz entrevistas em


profundidade com vinte e três delas. Suas ocupações se dividem entre a ciência e a
academia (um antropólogo, uma bióloga, quatro estão cursando pós-graduação na
área de ciências humanas, dois cursando pós-graduação na área de artes, uma
cursando pós graduação na área de trabalho social), a docência (uma é formada em
pedagogia [mas está desempregada], quatro dão aula no ensino básico, dois dão aula
no ensino superior, três dão aula em outros tipos de cursos), a arte (cinco deles são
músicos), a comunicação (seis são jornalistas, uma é assessora de comunicação e uma
é produtora de conteúdo para mídias sociais), e a assistência social (três são
assistentes sociais [uma delas desempregada no momento], sendo uma delas gerente
num serviço de assistência social). Destoando levemente, há uma um arquiteto, um
médico, uma assistente acadêmica (que também é advogada), uma assessora de
imprensa (que também é jornalista) e um terapeuta holístico (que também é músico).
Todos ocupam, portanto, posições profissionais que apontam, em maior ou menor
66

medida, para campos ou regiões do espaço social cuja ocupação depende de um


volume considerável de capital cultural incorporado na forma de maestria simbólica.

Quadro 1. Entrevistados

Pseudônimo Profissão
Adriano Músico
Alessandra Professora de educação básica
Alex Antropólogo
Daiane Assistente acadêmica e advogada
Débora Jornalista
Elaine Produtora de conteúdo para mídias sociais
Flávio Arquiteto
Guilherme Jornalista
Isabel Professora de educação básica e superior
Jorge* Professor e contador
Leandro Jornalista
Lucia* Professora
Luciano Músico
Manuel Jornalista
Marcio* Músico
Mário Médico
Marlene Assistente social
Rafaela Música e professora
Regina Professora de educação básica
Rita Gerente de assistência social
Roberto Músico e terapeuta holístico
Ronaldo Jornalista
Rosângela Assessora de comunicação e jornalista
Samuel Músico e professor
Sueli* Bióloga
Vanessa Assistente social e pedagoga desempregada
Vinicius Professor de educação básica

A respeito dos quatro membros da amostra que eu não entrevistei (Lucia*,


Jorge*, Marcio* e Sueli*) eu só tenho as informações disponíveis no Questionário43, o
que faz com que a caracterização deles seja mais superficial do que a dos outros vinte
e três. Para que isso se mantenha em mente durante a leitura, coloquei um asterisco
junto do nome deles ao longo do texto, a fim de lembrar que as informações sobre os
quatro são mais superficiais, uma vez que eles não foram entrevistados44. Todos os
nomes utilizados são pseudônimos retirados de uma lista de prenomes mais comuns

43
O bloco de questões de identificação social, demográfica e econômica ia da questão 65 a 86 do Questionário.
No Roteiro de entrevistas, ia da questão 1 a 7 e da 69 a 73.
44
Por isso também, há momentos do texto em que me refiro a minha amostra citando o número 23 (pois me
refiro a informações oriundas das entrevistas) e outros em que me refiro usando o número 27 (pois me refiro a
informações oriundas do questionário).
67

no Brasil45. A especificidade e clareza de diversas informações de caracterização dos


entrevistados variam tanto pelo fato de que parte delas é retirada das entrevistas –
em que nem sempre eu conseguia alcançar informações muito específicas ou,
simplesmente, notava apenas após a realização que havia me esquecido de perguntar
algo –, quanto por ter decidido ocultar ou não revelar de maneira clara no texto
algumas informações para não expor a identidade dos entrevistados. Também para
facilitar a leitura, fiz pequenas descrições do perfil social dos entrevistados e juntei
alguns quadros sintéticos com as informações sobre os entrevistados no Apêndice A.
Entrevistados. Como ao longo do texto eu menciono e trago citações dos
entrevistados pelo pseudônimo atribuído, será necessário que a(o) leitora(or) recorra
frequentemente ao Apêndice A para se lembrar de quem estou falando. Para facilitar
um pouco esse processo, no caso da leitura em arquivo digital, em todos os nomes no
texto há um hiperlink que leva direto ao apêndice.
No que se refere aos grupos ocupacionais, cabe notar que uma parte dos meus
entrevistados é composta por grupos que, na classificação de Bertoncelo (2022), eram
tratados não como frações culturais, mas como "profissionais" (os profissionais
liberais), e que em minha chamada de recrutamento eram considerados por mim não
como fração cultural mas sim como "fração balanceada" (advogados, médicos,
arquitetos, profissionais do trabalho social). Isso significa que meus entrevistados se
dividem entre grupos ocupacionais – indicadores de posição no espaço social – que
estão em diferentes pontos do espectro típico-ideal de denegação do econômico em
que baseio a analise das frações de classe culturais. O efeito dessas diferentes
posições ocupacionais sobre suas tomadas de posição pode ser percebido, por
exemplo, quando Flávio (que é arquiteto) afirma que o que mais o incomoda em seus
colegas de trabalho é a busca incessante pelo lucro:

Flávio: O que me incomoda acho que é justamente colegas que estão


visando... claro, a gente acaba tendo que visar o lucro porque, no fim das
contas, a gente tem conta pra pagar, né? Todo mundo quer, além da conta
pra pagar, quer ter uma graninha extra pra viajar no fim do ano, quer ter
uma graninha extra pra comprar um sofá novo, pra ir no restaurante que
abriu. Mas eu acho que fica muito fácil se perder aí e lidar com questões
muito antiéticas e que vão te trazer mais lucro financeiro [...]. Então, o que
eu mais reprovo na profissão são arquitetos que se vendem demais ao
capitalismo selvagem, ao lucro acima de tudo.

45
A lista toma como base o Censo de 2010. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_prenomes_mais_comuns_no_Brasil>, acessado em 27/06/2023.
68

A denegação do econômico se espalha por uma gama extensa das tomadas de


posições de meus entrevistados, como mostro neste e nos dois próximos capítulos,
mas para aqueles que fazem parte de campos em que o capital cultural é um fator
mais rígido de estruturação das hierarquias (caso dos artistas, cientistas e
acadêmicos), a denegação do econômico é uma regra de conduta subjacente que não
precisa ser verbalizada explicitamente de forma tão intensa quanto a que se encontra
numa fala como esta de Flávio, pois lá a deslegitimação oriunda de uma busca
obstinada por capital econômico é rapidamente reconhecida, e por isso fortemente
evitada. As tomadas de posição de Flávio, baseadas em estratégias de valorização de
seu capital cultural – citarei diversas delas ao longo desta dissertação – apontam para
seu pertencimento às frações de classe culturais. No entanto, por fazer parte de um
grupo profissional localizado, provavelmente, entre as frações de classe
"balanceadas", Flávio precisa fazer um esforço explícito de denegação do econômico
em seu ambiente profissional muito maior do que aquele que é requisitado
estruturalmente dos artistas, cientistas e acadêmicos, por exemplo. Casos como o de
Flávio fornecem, desta forma, bons exemplos para o argumento de que a posição
social não pode ser reduzida à ocupação: ele faz parte das frações culturais,
desenvolve rigorosas estratégias de valorização de seu capital cultural, denega a
economia econômica, mas essa não é a regra em seu círculo profissional.
Ainda para dar consistência ao pertencimentos dos integrantes de minha
amostra às frações culturais, cabe remeter à classificação de Lamont (1992), que
diferencia os grupos ocupacionais com base na dependência e orientação da atividade
para a geração de lucro econômico. Com essa lente, nota-se que a maior parte da
amostra se encaixa no grupo dos especialistas culturais e sociais do setor privado e
com fins lucrativos (10/23: Leandro, Manuel, Guilherme, Débora, Daiane, Ronaldo,
Luciano, Samuel, Marlene, Rita) e no grupo dos especialistas culturais e sociais
assalariados trabalhando no setor público ou sem fins lucrativos (9/23: Alex, Rafaela,
Regina, Alessandra, Isabel, Vinicius, Adriano, Luciano, Samuel). Ou seja: a maior
parte da minha amostra faz parte de grupos profissionais que, na pesquisa feita por
Lamont, apresentava a tendência para traçar fronteiras simbólicas culturais e negar
as fronteiras simbólicas socioeconômicas. Aqueles com atividades profissionais mais
orientadas para a geração de lucro econômico entre meus entrevistados são Elaine,
Flávio, Roberto e Rosângela, que a despeito de também serem especialistas culturais
69

precisam desenvolver estratégias para perseguir o lucro econômico por serem


autoempregados46.
A despeito de o recrutamento ter sido feito pelo método bola de neve, há
considerável heterogeneidade de perfil demográfico na amostra. Eu entrevistei
quatorze homens e treze mulheres, com idades que variam entre 29 e 60 anos. Vinte
são brancos, quatro são pardos, um é amarelo, uma é preta e uma preferiu não
declarar47. Vinte e quatro são heterossexuais, dois são homossexuais e um é
bissexual. Quatorze são casados, quatro estão em relacionamento estável, três são
divorciados e seis são solteiros. Onze deles têm filhos. Há na amostra dois católicos,
dois espíritas, uma umbandista, uma evangélica e um judeu; todos os demais são
ateus ou agnósticos.

Quadro 2. Caracterização demográfica dos entrevistados


Orientação
Pseudônimo Idade Gênero Cor/raça Estado civil Filhos Religião
sexual
Adriano 34 Homem Heterossexual Branca Solteiro Não Não
Relacionamento
Alessandra 38 Mulher Heterossexual Branca 2 Umbanda
estável
Alex 34 Homem Bissexual Branca Casado Não Não
Daiane 31 Mulher Heterossexual Branca Casada Não Não
Débora 40 Mulher Heterossexual Branca Casada Não Não
Relacionamento
Elaine 29 Mulher Heterossexual Branca Não Não
estável
Flávio 29 Homem Homossexual Branca Solteiro Não Judia
Relacionamento
Guilherme 41 Homem Heterossexual Branca 1 Não
estável
Isabel 35 Mulher Heterossexual Branca Casada Não Não
Jorge* 39 Homem Heterossexual Branca Divorciado Não Não
Leandro 40 Homem Heterossexual Branca Casado 2 Católica
Lucia* 34 Mulher Heterossexual Branca Casada Não Não
Luciano 38 Homem Heterossexual Branca Divorciado 1 Não
Manuel 60 Homem Heterossexual Branca Divorciado 1 Espírita
Marcio* 32 Homem Heterossexual Amarela Casado Não Não
Mário 38 Homem Heterossexual Branca Casado 1 Espírita
Marlene 34 Mulher Heterossexual Parda Solteira Não Não
Considera-se
Rafaela 43 Mulher Heterossexual Solteira Não Não
uma mistura
Regina 36 Mulher Heterossexual Branca Casada 1 Não
Rita 45 Mulher Heterossexual Parda Casada 3 Não
Roberto 40 Homem Heterossexual Branca Casado Não Não
Ronaldo 58 Homem Heterossexual Branca Casada 1 Não
Rosângela 52 Mulher Heterossexual Parda Casada 2 Não

46
Eu não perguntei se Mário, que é médico, trabalha no setor público ou privado, mas de qualquer forma ele
também está entre os grupos majoritários.
47
Rafaela, que marcou a opção "outra" para a questão sobre cor/raça no Questionário e escreveu: "Me
classificam como branca, mas sou uma mistura. Nunca gosto de responder isso em formulário".
70

Samuel 31 Homem Heterossexual Branca Solteiro Não Não


Relacionamento
Sueli* 32 Mulher Heterossexual Branca Não Católica
estável
Vanessa 35 Mulher Heterossexual Preta Casada 2 Evangélica
Vinicius 38 Homem Homossexual Pardo Solteiro Não Não

No que tange seu capital econômico, quando comparados com o cenário atual
de desigualdades no Brasil, os integrantes de minha amostra estão majoritariamente
em estratos elevados de renda48: comparando com dados da PNAD de 2022, uma
entrevistada (Débora) se encaixa no estrato do 1% com renda mensal per capita mais
alta entre a população brasileira, dez (Guilherme, Mário, Alex, Elaine, Luciano,
Marcio*, Flávio, Isabel, Rosângela, Lucia*) no estrato dos 5% com renda mais alta,
seis (Adriano, Daiane, Manuel, Roberto, Jorge*, Vinicius) no estrato dos 10% com
renda mais alta, e cinco (Regina, Ronaldo, Samuel, Rafaela, Leandro) no estrato dos
20% com renda mais alta49. Ainda assim, a presença de uma parte de entrevistados
com faixa de renda mais baixa e com menor volume de propriedades financeiras
aponta para a heterogeneidade de condições econômicas da amostra, reforçando a
hipótese de que, a despeito de todos ocuparem posições profissionais que indicam
pertencimento a frações de classe culturais, a amostra é majoritariamente composta
por membros das posições intermediárias do espaço social, mas possui também,
provavelmente, uma parte de indivíduos pertencentes às posições inferiores
(provavelmente, o caso de Vanessa, talvez também o de Rita, Sueli*, Alessandra e
Marlene) e às superiores (possivelmente, o caso de Débora, Lucia* e Rosângela).

Quadro 3. Capital econômico dos entrevistados (em ordem crescente de renda familiar per
capita)
Renda Possui Possui
Faixa de renda
Pseudônimo Profissão familiar per Residência outra veículo
familiar
capita (R$) residência próprio
Assistente social e Entre R$1.213,00 e Casa própria
Vanessa 303,08 x Sim
pedagoga R$2.424,00 não quitada

48
No Questionário, eles marcavam a renda familiar mensal em faixas, que eu construí com base no salário
mínimo (na época, R$1.212,00). No entanto, para saber a renda per capita, eu tirei a média entre os dois
extremos das faixas de renda e dividi pelo número de pessoas que eles afirmaram, no questionário, que vivem
dessa renda, com exceção da faixa mais alta, que era de mais de R$36.360,00. Neste caso, dividi a extremidade
inferior pelo número de pessoas entre as quais a renda se divide. Os únicos casos aqui são Rosângela e Débora.
Apesar de permitir uma aproximação do que é a renda per capita dos entrevistados, cabe notar que esse
procedimento gera certa distorção pelo fato de que as faixas de renda disponibilizadas no questionários não
eram todas iguais (ver a questão 83 do Questionário). Agradeço ao professor Adalberto Cardoso por chamar a
atenção para este ponto.
49
De acordo com a PNAD (2022), o limite inferior do 1% com renda mais alta era de R$17.447,00, o dos 5% era
de R$6.882,00, o dos 10% era de R$3.901,00 e o dos 20% era de R$2.521,00.
71

desempregada
Gerente de Entre R$6.061,00 Casa própria
Rita 1136,31 Sim Sim
assistência social e R$12.120,00 quitada
Entre R$2.425,00 Apartamento
Sueli* Bióloga 1515,25 x x
e R$3.636,00 alugado
Apartamento
Professora de Entre R$3.637,00
Alessandra 1616,17 próprio não x x
educação básica e R$6.060,00
quitado
Entre R$3.637,00 Casa própria
Marlene Assistente social 1616,17 x x
e R$6.060,00 quitada
Professora de Entre R$6.061,00 Apartamento
Regina 3030,17 x x
educação básica e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Entre R$6.061,00
Ronaldo Jornalista 3030,17 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Apartamento
Entre R$2.425,00
Samuel Músico e professor 3030,50 próprio x x
e R$3.636,00
quitado
Entre R$18.181,00 Apartamento
Rafaela Música e professora 3535,08 x x
e R$24.240,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Leandro Jornalista 3787,63 x x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$6.061,00 Casa própria
Adriano Músico 4545,25 Sim Sim
e R$12.120,00 quitada
Assistente
Entre R$6.061,00
Daiane acadêmica e 4545,25 Casa alugada x Sim
e R$12.120,00
advogada
Entre R$6.061,00 Apartamento
Manuel Jornalista 4545,25 x Sim
e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Músico e terapeuta Entre R$6.061,00
Roberto 4545,25 próprio x Sim
holístico e R$12.120,00
quitado
Entre R$3.637,00
Jorge* Professor e contador 4848,50 Casa alugada x Sim
e R$6.060,00
Professor de Entre R$3.637,00
Vinicius 4848,50 Casa alugada x x
educação básica e R$6.060,00
Apartamento
Entre R$18.181,00
Guilherme Jornalista 7070,17 próprio não x x
e R$24.240,00
quitado
Apartamento
Entre R$18.181,00
Mário Médico 7070,17 próprio Sim Sim
e R$24.240,00
quitado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Alex Antropólogo 7575,25 x Sim
e R$18.180,00 alugado
Produtora de
Entre R$12.121,00 Apartamento
Elaine conteúdo para 7575,25 x x
e R$18.180,00 alugado
mídias sociais
Entre R$12.121,00 Apartamento
Luciano Músico 7575,25 Sim x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Marcio* Músico 7575,25 x x
e R$18.180,00 cedido
Apartamento
Entre R$6.061,00
Flávio Arquiteto 9090,50 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Professora de Apartamento
Entre R$18.181,00
Isabel educação básica e 10605,25 próprio não x Sim
e R$24.240,00
superior quitado
Assessora de Apartamento
Mais de
Rosângela comunicação e 12120,00 próprio x Sim
R$36.360,00
jornalista quitado
72

Apartamento
Entre R$24.241,00
Lucia* Professora 15150,25 próprio não x Sim
e R$36.360,00
quitado
Apartamento
Mais de
Débora Jornalista 18180,00 próprio x Sim
R$36.360,00
quitado

Ainda para captar o capital econômico, perguntei sobre tipo de residência, se


possuem outras residências e se possuem veículo próprio. Oito vivem em
apartamentos alugados, sete em apartamentos próprios quitados, quatro em
apartamentos próprios não quitados, um num apartamento cedido, três em casas
alugadas, três em casas próprias quitadas e um em casa própria não quitada. Quatro
deles possuem outras residências e treze possuem veículos próprios. Note-se ainda
que, para quem aluga o apartamento ou casa ou ainda paga prestações, por exemplo,
esse é um custo a mais que é descontado da renda per capita, o que os joga um pouco
mais para baixo nessa dimensão da estratificação.
A seguir, para analisar o capital escolar entre meus entrevistados, eu organizei
seu nível de escolaridade hierarquizando-os a partir do título mais alto que já
possuem ou que estão cursando no momento. Dez têm apenas uma graduação
completa e uma tem duas graduações completas, uma tem uma graduação e
especialização e uma tem uma graduação e está cursando pós (não especificou de que
tipo), dois têm uma graduação e mestrado, dois têm duas graduações e mestrado,
uma tem uma graduação, MBA e mestrado, duas têm uma graduação, mestrado e
doutorado, duas têm duas graduações, mestrado e doutorado, um tem uma
graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado.

Quadro 4. Escolaridade dos entrevistados

Pseudônimo Escolaridade
Regina Graduação
Leandro Graduação
Adriano Graduação
Roberto Graduação
Elaine Graduação
Flávio Graduação
Débora Graduação
Manuel Graduação
Ronaldo Graduação
Rita Graduação
Vanessa Graduação (duas)
Mário Graduação; especialização
Marlene Graduação; Pós [não especificou]
73

Rafaela Graduação; Mestrado


Guilherme Graduação; Mestrado
Daiane Graduação (duas); Mestrado
Alessandra Graduação (duas); Mestrado
Rosângela Graduação (duas); MBA; Mestrado
Luciano Graduação; Mestrado; Doutorado
Samuel Graduação; Mestrado; Doutorado
Vinicius Graduação (duas); Mestrado; Doutorado
Isabel Graduação (duas); Mestrado; Doutorado
Alex Graduação; Mestrado; Doutorado; Pós-doutorado

Para identificar, ainda que de maneira muito superficial, a relação entre


condições econômicas e acesso educacional entre meus entrevistados, construí na
figura abaixo uma representação simplificada da posição dos vinte e três membros
entrevistados da amostra em termos de renda per capita e diploma. Com base
exclusivamente nestes dois indicadores, Débora está no topo da hierarquia de capital
econômico, Alex no topo da de capital escolar, e Rita, Ronaldo, Regina e Leandro
estão na base de ambas as hierarquias. Como se nota, não parece existir relação
direta nem inversa entre os dois tipos de capitais na amostra.

Figura 4. Escolaridade x renda familiar per capita


74

Cabe lembrar, no entanto, que a análise do capital escolar reduzida


unicamente ao grau dos diplomas é enganosa, pois oculta uma desigualdade de
rendimentos possíveis que tem lastro na hierarquia das instituições de ensino. Aqui
encontra-se um fator de estruturação de desigualdade que separa aqueles que
estudaram em instituições públicas ou privadas de maior prestígio, como USP (Alex,
Vinicius, Isabel, Samuel, Mário, Luciano, Alessandra, Daiane, Rafaela, Regina), PUC
(Isabel, Rosângela, Elaine), Unicamp (Alex) e Unesp (Alessandra), daqueles que
estudaram em instituições pouco reconhecidas (caso de Rita, Vanessa e Marlene).
Assim, a despeito de ter dois diplomas de ensino superior, certamente parte da
explicação para a situação financeira mais baixa de Vanessa se relaciona com o fato
de que ambas as suas graduações foram em instituições privadas de pouco prestígio,
uma delas feita por ensino à distância.

Vanessa: Eu acredito que a minha escola foi a faculdade... a presencial. Eu fiz


a pedagogia à distância, é uma merda! Sou contra a faculdade à distância,
você não aprende nada, principalmente pra pessoas que sempre estudaram
em escolas públicas, que tem mais dificuldade. Então sou contra faculdade à
distância.

As estratégias educacionais, orientadas para a valorização do capital cultural,


começam a aparecer ainda no ensino básico, e constituem um domínio das tomadas
de posição exemplar para que se note os efeitos estruturadores da classe e da fração
de classe. Membros da amostra com origem de classe popular (tratarei mais da
origem social abaixo, mas já adianto o assunto) passaram mais comumente por
escolas públicas (caso de Adriano, Guilherme, Leandro, Marlene, Vanessa e Vinicius),
ao passo que aqueles com origem de classe média ou superior passaram mais
comumente por instituições privadas (como Alessandra, Alex, Daiane, Débora,
Flávio, Rafaela, Roberto e Rosângela).
O dado a respeito dessa estratificação do sistema de ensino no Brasil já foi
amplamente debatido na literatura50. No entanto, para meu argumento, é relevante
notar que entre as famílias com a possibilidade de escolher entre diferentes escolas
particulares para os filhos – notadamente, as de classes médias e superiores –, as
escolhas são também parcialmente condicionadas por uma compreensão da
diversidade de abordagens pedagógicas que reflete a divisão em frações de classe.

50
Ver, por exemplo, Nogueira (1998, 2006), Costa (2008) e Alves (2010).
75

Rafaela, por exemplo, reclama de ter passado por escolas "coxinhas" no ensino
fundamental, tendo gostado mais da escola em que estudou no ensino médio, que era
mais de esquerda. Outros entrevistados também fizeram falas análogas, associando
com tom pejorativo as escolas particulares em que estudaram a elite econômica e a
posições morais conservadoras (Daiane, Débora, Flávio). São exemplos de uma
interpretação da parte privada do sistema de ensino básico que o lê a partir de uma
divisão entre escolas tradicionais e escolas alternativas, sendo as segundas
constituídas com base numa crítica as primeiras, lidas como conteudistas e
disciplinadoras, ao passo que as alternativas valorizariam mais ideias de democracia,
autonomia, liberdade de escolha e metodologias mais orientadas para "aprender a
aprender" que para decorar conteúdos predefinidos (Razera, 2018). Trata-se de uma
divisão entre modelos organizacionais e pedagógicos que reflete as necessidades
diferenciadas de formação das novas gerações entre diferentes tipos de famílias, que
necessitam, por sua vez, de instituições que promovam diferentes tipos de relação
com a cultura legitimada para a reprodução de seus capitais51.
Para entender com mais cuidado as condições imediatas de vida dos
entrevistados, tanto no que tange suas fontes de capitais quanto no que se refere ao
contexto de referencias culturais imediatas que eles têm em ambiente doméstico, é
importante saber os níveis de escolaridade e as ocupações dos companheiros e
companheiras daqueles que são casados ou estão em relacionamento estável. Entre
estes, apenas Regina e Vanessa estão em relacionamento com alguém que não tem
diploma de ensino superior (e ambas disseram na entrevista que seus companheiros
estão cursando ensino superior atualmente, então este cenário deve mudar no futuro
próximo). Entre os demais, com apenas uma exceção52, todos estão em
relacionamentos com pessoas formadas também em áreas típicas da fração cultural
(psicologia, arquitetura, jornalismo, direito, biologia).

Quadro 5. Companheiros dos entrevistados


Maior diploma
Pseudônimo Estado civil Ocupação
(área)
Adriano (músico) Solteiro - -
Alessandra (professora de Relacionamento Superior [não Professor de

51
É o que mostra Ana Maria Almeida (1999) estudando diferentes tipos de escolas das elites paulistanas. Cabe
notar ainda, como destaca Karen Razera (2018, p. 23), que as escolas alternativas surgiram em peso no Brasil a
partir da década de 1960, estimuladas por movimentos de contestação contracultural e opondo-se ao modelo
escolar imposto pelo Regime Militar. Surgem, portanto, a partir de setores associados à esquerda política.
52
Débora, cujo marido é formado em administração de empresas.
76

educação básica) estável perguntei a área] educação básica


Diretora
Alex (antropólogo) Casado Superior (psicologia)
pedagógica
Daiane (assistente Músico e
Casada Superior (direito)
acadêmica e advogada) produtor musical
Superior
Débora (jornalista) Casada (administração de Gerente
empresas)
Elaine (produtora de
Relacionamento Superior
conteúdo para mídias Designer
estável (arquitetura)
sociais)
Flávio (arquiteto) Solteiro - -
Relacionamento
Guilherme (jornalista) Superior (jornalismo) Jornalista
estável
Analista no
Isabel (professora de Pós-graduação
Casada Ministério
educação básica e superior) (direito)
Público
Jorge* (professor e
Divorciado - -
contador)
Empresária do
Leandro (jornalista) Casado [não perguntei]
ramo imobiliário
Lucia* (professora) Casada - -
Luciano (músico) Divorciado - -
Manuel (jornalista) Divorciado - -
Marcio* (músico) Casado - -
Mário (médico) Casado Superior (biologia) Bióloga
Marlene (assistente social) Solteira - -
Rafaela (música e
Solteira - -
professora)
Professor e
microempresário
Regina (professora de
Casada Ensino médio no ramo de
educação básica)
suplementos
alimentares
Proprietário de
Rita (gerente de assistência uma oficina de
Casada [não perguntei]
social) funilaria e
pintura
Arquiteta e
Roberto (músico e terapeuta Superior
Casado terapeuta
holístico) (arquitetura)
holística
Ronaldo (jornalista) Casado Superior (jornalismo) Jornalista
Rosângela (assessora de
Casada Superior (jornalismo) Jornalista
comunicação e jornalista)
Samuel (músico e professor) Solteiro - -
Relacionamento
Sueli* (bióloga) - -
estável
Vanessa (assistente social e
Casada Ensino médio Policial penal
pedagoga desempregada)
Vinicius (professor de
Solteiro - -
educação básica)

Em linha com suas áreas de formação, os companheiros e companheiras da


maior parte da amostra atuam em profissões de fração cultural (docência, direção
pedagógica, música, design, jornalismo, análise jurídica, arquitetura, biologia), com
77

exceção dos companheiros de Débora (que é gerente), Leandro (que é empresária),


Rita (que é proprietário de uma oficina) e Vanessa (que é policial penal), além de um
caso em que há duas ocupações que indicam frações diferentes (o companheiro de
Regina é professor e microempresário). Com essas informações, o que se evidencia é
a tendência da maior parte dos membros da amostra de estabelecer vínculos
amorosos com outros membros das frações culturais.
Como mostram Cardoso e Préteceille (2021), as famílias brasileiras são
marcadas por forte endogamia de classe: em 2014, estava na casa dos 70% a parte das
famílias em que ambos os cônjuges faziam parte da mesma classe 53. Assim, as
informações sobre minha amostra se alinham a este dado exemplificando
qualitativamente a tendência aos relacionamentos amorosos intraclasse, e estimula
ainda que se investigue os efeitos da fração de classe também sobre esse conjunto de
tomadas de posição – as estratégias matrimoniais. Para tanto, é fundamental que se
entenda tanto que os círculos de amizade dos agentes da amostra – um dos espaços
por excelência para a origem de relacionamentos amorosos – são constituídos
majoritariamente por outros membros das frações culturais54, quanto que as escolhas
por parceiros(as) são também estratégicas para a valorização de seus capitais.
No que tange seus locais de moradia em São Paulo, meus entrevistados estão
mais concentrados entre o Centro e a Zona Oeste da cidade. Quatro moram na Santa
Cecília (Centro), três na Vila Mariana (Sul), uma na Vila Clementino (Sul), dois em
Pinheiros (Oeste), uma nos Jardins (Oeste), dois no Butantã (Oeste), um na Vila
Romana (Oeste) e um na Lapa (Oeste). As exceções, em termos de centralidade
geográfica na cidade, são um entrevistado que mora em Tatuapé (Leste), uma em
Itaquera (Leste), uma em Iguatemi (Leste), uma em Ermelino Matarazzo (Leste),
uma em Santana (Norte), uma na Vila Gustavo (Norte), um em Jaraguá (Norte) e em
Campo Belo (Sul). Para resguardar a identidade dos entrevistados, não identifiquei
qual deles mora em cada lugar. No entanto, é importante evidenciar que há uma
correlação entre o capital econômico e a centralidade da residência na cidade entre
eles: os seis membros da amostra com renda mais baixa (Vanessa, Rita, Marlene,
Alessandra, Ronaldo e Regina) estão entre essas exceções de centralidade da
moradia.

53
Alta, média ou popular, construídas da forma como descrito no item 1.2 Classes médias no Brasil. Dados da
PNAD. Ver Cardoso e Préteceille (2021), capítulo III: Condições de vida.
54
Desenvolvo melhor a informação sobre os círculos de amizade de meus entrevistados no capítulo 3, mas eles
provém sobremaneira da universidade e dos ambientes de trabalho.
78

Figura 5. Localização residencial dos entrevistados na cidade de São Paulo

A despeito de ser fortemente estruturada em função do capital econômico, a


escolha pelo local de moradia é também um exemplo de tomada de posição pautada
pela fração de classe. Como mostra Edison Bertoncelo (s/d) com base em dados do
Censo de 2010, grupos profissionais que podem ser classificados como parte das
classes médias ou dominantes da cidade de São Paulo estão mais concentrados em
distritos centrais como Moema (74,7%), Jardim Paulista (72,9%), Itaim Bibi (71,8%),
Perdizes (69,6%), Vila Mariana (68,8%) e Alto de Pinheiros (67,2%). Porém, eles se
dividem entre diferentes regiões quando observados a partir da estrutura de seus
capitais: dirigentes ou médio proprietários (fração econômica) estão mais presentes
em Moema, Alto de Pinheiros, Itaim Bibi e Morumbi; médicos, advogados,
engenheiros, dentistas, veterinários, profissionais da administração e da tecnologia
da informação (fração profissional) estão mais presentes no Jardim Paulista, Vila
Mariana e Saúde; já professores universitários, profissionais científicos, profissionais
da comunicação e publicidade, diretores de cinema ou museu e artistas plásticos
(fração cultural) estão mais concentrados em distritos como Pinheiros, Consolação,
Perdizes e Butantã55.

55
Carolina Pulici (2010, p. 32) sugere que a divisão social da apropriação urbana de São Paulo pelas classes
médias e dominantes relaciona-se também à trajetória de acúmulo de capitais: "Ainda que não se possa falar
numa homologia inequívoca entre o sistema de posições sociais e o espaço geográfico da cidade de São Paulo,
79

A distribuição das frações de classe por diferentes regiões geográficas no


espaço físico é exemplo do que Bourdieu chamou de efeitos de lugar (Bourdieu,
2013c). Tal qual nas extensas análises do autor sobre a divisão de Paris entre as
margens esquerda e direita do rio Sena – divisão entre arte e negócios, burgueses e
intelectuais, ortodoxia e heterodoxia, que se desdobra nos diferentes tipos de teatros,
lojas, galerias e salas de cinema56 –, a seleção dos locais de moradia por pessoas de
diferentes classes e frações de classe expressa a tendência estrutural de tradução do
espaço social em espaço físico. É pela percepção das diferenças de estilos de vida
expressas na distribuição de diferentes bens pelo espaço físico, bem como pela
adequação dessas diferenças de caracterização das regiões do espaço físico aos meios
mais importantes para a valorização de seu capital (no caso das frações culturais é
fundamental, por exemplo, o acesso aos equipamentos culturais) que o espaço social
vai se traduzindo em espaço físico, e com isso as frações vão se diferenciando
geograficamente57.
Por fim, o conjunto de dados abaixo diz respeito às diferenças de herança e de
trajetória de acúmulo de seus capitais entre os entrevistados, explorando as
informações sobre as gerações anteriores de suas famílias. Eu perguntava nas
entrevistas sobre nível de escolaridade e profissão das duas gerações anteriores. No
quadro abaixo, apresento a escolaridade dos responsáveis dos entrevistados
(incluindo as duas gerações), destacando entre parênteses a quantidade daquele
diploma no ambiente familiar de origem. Vinicius, Rita e Manuel vêm de famílias em
que não havia nenhum membro com algum nível de escolarização. Seis deles vêm de
famílias com membros escolarizados, mas sem diploma de ensino superior, doze vêm

pode-se deduzir, com alguma segurança, que lugares como Jardim Europa, Jardim América, Jardim Paulistano,
Jardim Paulista, Cidade Jardim e Alto de Pinheiros concentram parte de uma ‘burguesia’ paulistana mais antiga,
da mesma forma que alguns residenciais de Alphaville constituem lugares emblemáticos de grupos que
ascenderam economicamente de forma tardia".
56
Ver Bourdieu (2008, pp. 38-39). Mas cabe remeter também à análise de Bill Bishop (2008) sobre os Estados
Unido em que o autor mostra a crescente separação dos condados do país em termos de estilos de vida e
posicionamentos políticos. Apresentarei melhor os resultados de Bishop no capítulo 3.
57
Andrew Sayer (2005, pp. 185-186) lembra ainda que a segregação socio-espacial é funcional para a
convivência em sociedades estratificadas na medida em que "makes living in a class society more bearable not
only because it hides material inequalities and symbolic violence but because it facilitates sharing of internal
goods (which tend to be class-differentiated too) and provides scope for recognition of worth among equals".
Isso é particularmente importante para essa classe média que, como mostrarei no capítulo 2, tem posições
políticas coerentemente de esquerda e que constrói sua identidade de fração de classe parcialmente com base
no valor moral que encontra ao representar a si própria como o grupo que se preocupa com o problema da
desigualdade econômica que caracteriza o Brasil.
80

de famílias em que o diploma superior é o mais alto e dois vêm de famílias em que
havia um familiar com diploma de pós-graduação.

Quadro 6. Escolaridade dos familiares dos entrevistados

Pseudônimo Escolaridade dos responsáveis


Vinicius Nenhum diploma (2)
Rita Nenhum diploma (2)
Manuel Nenhum diploma (2)
Vanessa Nenhum diploma (1); Fundamental (1)
Guilherme Fundamental (1)
Marlene Fundamental (1); Médio (1)
Regina Médio (2)
Adriano Médio (2); Técnico (1)
Ronaldo Técnico (2)
Débora Fundamental (1); Graduação (1)
Daiane Médio (1); Graduação (1)
Leandro Médio (1); Graduação (1)
Luciano Médio (1); Graduação (1)
Rafaela Médio (1); Graduação (1)
Elaine Graduação (2)
Flávio Graduação (2)
Isabel Graduação (2)
Roberto Graduação (2)
Mário Graduação (2)
Rosângela Graduação (2)
Alex Médio (2); Graduação (2)
Alessandra Graduação (1); Doutorado (1)
Samuel Graduação (1); Doutorado (1)

O quadro abaixo visa evidenciar melhor a trajetória de acúmulo de capital


escolar (medido apenas com base no diploma) a partir do cruzamento da informação
sobre o entrevistado com a de seus familiares. Com isso, nota-se que sete estão em
trajetória de reprodução do nível de escolaridade de sua família, quinze em trajetória
de ascensão e apenas uma em trajetória de queda. Vinicius representa a maior
ruptura na amostra: saiu de uma família em que não havia nenhum membro
escolarizado e hoje possui duas graduações e cursa o doutorado. O que se nota,
portanto, é a tendência majoritária de aumento do nível das credenciais entre as
gerações.

Quadro 7. Trajetória de escolaridade entre os familiares e os entrevistados


Maior nível
de
Pseudônimo (profissão) Escolaridade Trajetória
escolaridade
entre os
81

responsáveis

Nenhum
Manuel (jornalista) Graduação Subiu 3 posições
diploma
Vinicius (professor de Nenhum
Doutorado Subiu 5 posições
educação básica) diploma
Vanessa (assistente social e
Fundamental Graduação Subiu 2 posições
pedagoga desempregada)
Guilherme (jornalista) Fundamental Mestrado Subiu 3 posições
Regina (professora de
Médio Graduação Subiu 1 posições
educação básica)
Marlene (assistente social) Médio Pós-graduação Subiu 2 posições
Adriano (músico) Subiu 1 posição
Ronaldo (jornalista) Técnico Graduação Subiu 1 posição
Rita (gerente de assistência
Subiu 1 posição
social)

Débora (jornalista)
Leandro (jornalista)
Elaine (produtora de conteúdo
para mídias sociais) Mantiveram a
Graduação Graduação
Flávio (arquiteto) posição
Roberto (músico e terapeuta
holístico)
Mário (médico)

Daiane (assistente acadêmica


e advogada)
Rafaela (música) Graduação Mestrado Subiram 1 posição
Rosângela (assessora de
comunicação e jornalista)
Luciano (músico)
Isabel (professora de educação Graduação Doutorado Subiram 2 posições
básica e superior)
Alex (antropólogo) Graduação Pós-doutorado Subiu 3 posições

Alessandra (professora de
Doutorado Mestrado Caiu 1 posição
educação básica)
Samuel (músico e professor) Doutorado Doutorado Manteve a posição

Cabe lembrar, no entanto, que essas trajetórias são enganosas se observadas


unicamente a partir do diploma. Alessandra parece estar em declínio pois seu pai
tinha doutorado, mas ela está cursando mestrado no momento, então pode vir a se
tornar reprodução ou acessão no futuro58. Além disso, cabe lembrar novamente que
diplomas do mesmo nível podem ter "valores" – isso é, capacidade de alocação no
espaço social e nas hierarquias de reconhecimento – diferentes em função do
prestígio das instituições de ensino, e, ainda mais, que a eficácia dos diplomas muda
com o tempo. Contextos de expansão do acesso ao ensino superior como o que

58
Claro, o mesmo vale para vários outros, que ainda podem adquirir mais diplomas no futuro. São limitações
da análise sincrônica.
82

ocorreu no Brasil nas últimas décadas costumam vir acompanhados de uma inflação
dos diplomas, ou seja, eles passam a "valer menos"59. Como mostra André Salata
(2022, pp. 13-14), é este, de fato, o cenário pelo qual o Brasil vem passando: a
despeito da expansão do sistema de ensino, as desvantagens atreladas à classe de
origem permanecem pouco alteradas, o que faz com que as novas gerações tenham
que acumular cada vez mais anos de estudos para manter a mesma posição social de
seus pais. Assim, as "subidas" e "descidas" de posição no quadro acima se referem
mais à quantidade de anos de estudos do que, propriamente, à posição dos agentes na
hierarquia de distribuição de capital escolar.
Para ter um indicativo, ainda que superficial, da classe social de origem,
organizei no quadro abaixo as ocupações dos membros das duas gerações anteriores
das famílias dos entrevistados, comparando-as com as deles próprios. Eu os separei
em quatro grupos com base numa ordem simplificada da classe dos membros das
gerações anteriores de suas famílias:

1. Vinicius, Guilherme, Adriano, Marlene, Rita, Vanessa e Manuel60 vêm de


famílias que, tendo por base os grupos ocupacionais, provavelmente faziam
parte das classes populares nas duas gerações anteriores61, e, portanto, estão em
trajetória de deslocamento vertical no espaço social;

2. Débora, Leandro, Regina e Ronaldo vêm de famílias em que a geração das avós e
avôs era, provavelmente, de classe popular, mas a dos pais era provavelmente
de classe média. Nos quatro casos havia em ambiente familiar pelo menos um
membro pertencentes a um grupo ocupacional típico de frações culturais.
Portanto, eles reproduzem posição social em termos de classe e também de
fração de classe;

3. Rafaela, Daiane, Alex, Luciano, Mário, Elaine e Rosângela vêm de famílias com
membros que já faziam parte das classes médias há pelo menos duas gerações, e
na geração de seus pais havia pelo menos um membro pertencente à fração

59
Ver pp. 122-159 de Bourdieu (2017) para o tema.
60
Um dos avôs de Manuel chegou a ser proprietário de um restaurante, mas o empreendimento faliu.
61
Digo provavelmente pois, para uma caracterização adequada, seria necessário tanto um conjunto maior de
informações sobre seus familiares quanto uma reconstrução do espaço social em que se encontravam seus
familiares durante seu período de vida, o que não é possível fazer aqui.
83

cultural das classes médias. Assim, eles têm uma origem um pouco mais elevada
que os membros do grupo anterior, e, assim como o grupo anterior, também
estão reproduzindo a posição de classe e de fração62;

4. Samuel, Alessandra, Isabel, Flávio e Roberto vêm de famílias que parecem ter
estruturas semelhantes às do grupo anterior, porém em posições um pouco mais
elevadas do espaço social. Provavelmente, já havia membros de classe média
desde a geração das avós e avôs, e a geração de seus pais estava, provavelmente,
entre as classes médias e superiores (tendo em vista a docência no ensino
superior e a propriedade de empresas de maior porte). Samuel, Alessandra e
Isabel reproduziram a posição em termos de classe e fração de classe. Roberto
reproduziu a posição de classe mas fez um deslocamento transversal no espaço
social. O pai Flávio era formado em medicina mas proprietário de um hospital,
portanto exercia profissões que indicam frações de classe diferentes .

Quadro 8. Trajetória de classe dos entrevistados


Profissão dos pais ou
Profissão dos avôs e avós Pseudônimo
responsáveis diretos
Pai: caminhoneiro;
Avôs e avós: trabalhadores Vinicius (professor de
Mãe: faxineira, diarista,
rurais educação básica)
cuidadora
Avô: proprietário de pequeno
comércio e matador de aluguel;
Avó: trabalhadora do lar e Pai: fazia bicos;
proprietária de pequeno Mãe: fazia bicos (manicure, Guilherme (jornalista)
comércio; merendeira, corretora)
Avô: metalúrgico;
Avó: funcionária pública
Avó: trabalhadora do lar;
Avô: produtor de tijolos;
Pai: eletricista, chefe de
Avó: trabalhadora rural;
manutenção; Adriano (músico)
Avô materno: pequeno
Mãe: secretária, agente escolar
proprietário rural, trabalhador
rural
Avô: bombeiro; Pai: segurança;
Marlene (assistente social)
Avó: auxiliar de limpeza Mãe: operária
Avôs e avós: trabalhadores Mãe: faxineira; Vanessa (assistente social e
rurais Pai: vendedor ambulante pedagoga)
Pai: comerciante; Rita (gerente de assistência
Avôs: trabalhadores rurais
Mãe: não mencionou social)
Avô: dono de padaria e
Mãe: trabalhadora do lar;
restaurante; Manuel (jornalista)
Pai: pedreiro
Avô: mestre de obras;

62
A despeito de Leandro, que eu inseri no grupo anterior, e Alex, que eu inseri neste, não terem me informado
a profissão de nenhum membro da geração de seus avôs e avós, eu os separei por conta do nível de formação:
Alex tem avôs e avós que completaram ensino superior ou magistério, o que não ocorre no caso de Leandro
84

Avós: trabalhadoras do lar

Avós: trabalhadoras do lar;


Avô: trabalhador rural e
Pai: pequeno comerciante;
pequeno comerciante de Débora (jornalista)
Mãe: psicóloga e psicanalista
verduras;
Avô: pedreiro
Mãe: doméstica;
[não citou] Madrinha: cobradora de ônibus; Leandro (jornalista)
Tio: padre
Avô: funcionário de empresa;
Pai: funcionário de empresa,
Avó: empregada doméstica e
gerente de empresa, proprietário
lavadeira; Regina (professora de
de empresa;
Avô: funcionário de educação básica)
Mãe: trabalhadora do lar,
manutenção;
professora de educação infantil
Avó: trabalhadora do lar
Pai: técnico em
Avôs: ferroviários; telecomunicações;
Ronaldo (jornalista)
Avós: trabalhadoras do lar Mãe: professora de corte e
costura
Avô: mecânico;
Avó: trabalhadora do lar;
Pai: jornalista;
Avô: jornalista e corretor de Rafaela (música e professora)
Mãe: jornalista
imóveis;
Avó: trabalhadora do lar
Avô: auditor do INSS; Daiane (assistente acadêmica
Mãe: advogada
Avó: trabalhadora do lar e advogada)
Pai adotivo: trabalha com
empreendimentos populares e
imóveis de alto padrão;
Pai biológico: técnico
administrativo no serviço
[não citou] Alex (antropólogo)
público; Mãe: psicóloga e
psicanalista; Madrasta:
empregada doméstica,
funcionária de banco, funcionária
de hotel, trabalhadora do lar
Avô: vendedor de produtos
diversos; Pai: médico psiquiatra;
Avó: funcionária dos correios; Mãe: professora de educação Luciano (músico)
Avô: arquiteto; básica
Avó: não trabalhava
Avô: comerciante;
Pai: engenheiro;
Avô: funileiro; Mário (médico)
Mãe: engenheira
Avós: trabalhadoras do lar
Avô: proprietário de loja e
Pai: médico;
comerciante;
Mãe: psicóloga, Elaine (produtora de
Avó: pedagoga e professora;
microempreendedora, conteúdo para mídias sociais)
Avô: professor;
trabalhadora do lar
Avó: professora
Avó: costureira;
Mãe: engenheira civil; Rosângela (assessora de
Avô biológico: trabalhador
Pai: jornalista comunicação e jornalista)
rural; Avô adotivo: engenheiro
Avô: mecânico;
Pai: advogado;
Avó: trabalhadora do lar;
Mãe: psicóloga e professora de Samuel (músico e professor)
Avô: contador;
ensino superior
Avó: trabalhadora do lar
85

Avó: costureira e trabalhadora


do lar;
Pai: professor de ensino básico e
Avô: metalúrgico e professor de Alessandra (professora de
superior;
nível técnico; educação básica)
Mãe: professora de ensino básico
Avô: trabalhador rural;
Avó: trabalhadora rural
Avô: advogado;
Avó: advogada;
Avô: dentista e proprietário de Pai: oficial de justiça; Isabel (professora de
comércio; Mãe: oficial de justiça educação básica e superior)
Avó: pedagoga, professora e
proprietária de loja
Avó: officer;
Avô: proprietário de uma
fábrica de tecidos;
Pai: proprietário de um hospital;
Avó: trabalhadora da indústria Flávio (arquiteto)
Mãe: dentista
têxtil;
Avô: trabalhador da indústria
têxtil
Avô: farmacêutico e
proprietário de farmácia; Pai: grande empresário; Roberto (músico e terapeuta
Demais avôs e avós: Mãe: grande empresária holístico)
farmacêuticos
- - Jorge* (professor e contador)
- - Lucia* (professora)
- - Marcio* (músico)
- - Sueli* (bióloga)

Essa classificação simplificada esconde uma série de efeitos de trajetória


relevantes para as tomadas de posições dos membros da amostra. Alessandra, por
exemplo, está classificada no grupo 4 por ser filha de um professor universitário, mas
na verdade ela acompanhou ao longo de sua vida uma trajetória de ascensão de sua
família: durante sua infância eles moravam numa casa de habitação popular da
CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São
Paulo) e o pai era professor de matemática na educação básica; ao longo da vida de
Alessandra, ele foi adquirindo os títulos mais altos de pós-graduação e só quando ela
já era mais velha é que ele passou num concurso e se tornou professor numa
universidade pública. É oposto o caso de Roberto: seus pais eram proprietários de
uma empresa de grande porte e proporcionaram a ele um contexto de completo
conforto material ao longo de toda a sua vida, mas a empresa faliu recentemente de
forma repentina, e agora Roberto vem tendo que aprender a lidar com um cenário de
limitação financeira com o qual nunca havia se deparado na vida.

Roberto: É uma falência de proporções bastante grandes. Embora eu não


tenha participado ativamente das decisões que levaram à falência, eu
respondo legalmente por elas. E isso acabou me trazendo muitos desafios,
tanto de ordem prática, porque ainda tem dívidas grandes, pendentes,
86

relacionadas ao meu nome, me trazendo uma série de limitações práticas,


pra trabalhar, pra ganhar dinheiro, para o dinheiro chegar até mim, como
também de ordem psicoemocional, de lidar com os conflitos familiares que
estão por trás disso, de lidar com os vários movimentos que uma falência de
proporções milionárias acabam gerando.

A falência recente foi, inclusive, o fator decisivo para que Roberto, que é
músico e formado em música, passasse a exercer profissionalmente o trabalho que
realiza hoje, como terapeuta holístico e facilitador de autoconhecimento a partir de
cavalos, que até então era apenas um interesse descompromissado da necessidade de
retorno financeiro.

Roberto: Esse evento específico foi um ponto de estrangulamento


importante, em que aí eu revi as minhas prioridades, as minhas escolhas, e aí
começou a se descortinar esse caminho, essa descoberta, daquilo que eu cada
dia mais vou reconhecendo como meu propósito. É onde eu me realizo mais,
é onde eu consigo expressar mais os meus dons e talentos no mundo, nesse
trabalho na conjunção entre o autoconhecimento e o trabalho com os
cavalos, estar com os cavalos, que já eram paixões, já eram coisas presentes
em minha vida, mas eu nunca tinha pensado sequer em trabalhar
profissionalmente com isso. Nesse momento, com essa ruptura da falência,
revendo minhas prioridades e minhas escolhas, é que eu fui descortinando
esse caminho.

Mas mesmo que simplificadora, a classificação é útil não apenas para


descrever a heterogeneidade dos ambientes de origem, mas também para mostrar
que, ao menos entre meu conjunto de entrevistados, há forte tendência de
reprodução intergeracional das frações culturais. Ao passo que dezesseis dos meus
vinte e quatro entrevistados já vêm de famílias em que pelo menos um membro era
pertencente às frações culturais das classes médias ou superiores, apenas sete
entrevistados partiram de famílias de classe popular e entraram na fração cultural
das classes médias a partir de um deslocamento vertical no espaço social, e apenas
um (Roberto) entrou na fração cultural a partir de um deslocamento transversal,
tendo partido de uma família posicionada, pelo que indica a ocupação de seus pais
(proprietários de uma empresa de grande porte), na fração econômica das classes
superiores.
Além disso, comparar a classe de origem e de chegada é uma forma de inserir
na análise a estratificação dos entrevistados no terceiro eixo de organização do espaço
social: a trajetória de acúmulo dos capitais, fator explicativo de parte das diferenças
de constrangimentos estruturais que se impuseram aos agentes da amostra ao longo
de suas vidas. Os efeitos de trajetória são notáveis no caso de suas escolhas
87

educacionais e profissionais. Nas entrevistas, descrições a respeito do estímulo dos


familiares à formação superior dos filhos foram quase unanimes, mas elas variam de
acordo com a origem de classe. Se para os oriundos de posições inferiores do espaço
social o diploma acadêmico – quase sempre, o primeiro na história de sua família – é
encarado como símbolo de ascensão social por si só, para os que provém de posições
intermediárias e superiores, como adiantado na revisão feita por Jana Leal (2022),
ele é visto como condição necessária para a reprodução da posição social, e logo como
um recurso de aquisição impositiva – na maior parte das vezes, imposto
implicitamente a partir da construção de um imaginário de futuro natural. Alex, por
exemplo, é o sexto “uspiano” de sua família, o que estreitou fortemente sua
capacidade de imaginar um futuro que não fosse marcado pela passagem por uma
universidade de alto prestígio.

Alex: Eu venho de um contexto de uma classe média bem estabelecida. Eu sou


o sexto uspiano da minha família. É uma família que nunca teve negócio,
nunca tocou um negócio, não tem negócios de família, porque o negócio da
família mesmo é estudar. A educação formal é um grande valor da minha
família materna. Então, eu fiz USP, minha prima fez USP, meu primo fez USP,
meus dois tios fizeram USP, meu avô fez Escola Politécnica nos anos 1940.

A escolha pelas carreiras profissionais típicas das frações culturais também são
marcadas por constrangimentos diferentes de acordo com a classe social de origem.
Para os que vieram de posições mais baixas no espaço social, alguns relatos indicam a
necessidade de que as áreas de formação apontassem previamente para alguma
garantia de seguridade material. Adriano, por exemplo, entrou em contato com a
música na infância, por meio de um projeto social oferecido pela empresa em que o
pai (que era eletricista e, depois, chefe de manutenção) trabalhava, mas só decidiu
seguir formação na área quando passou a receber uma bolsa para estudar.

Adriano: E é muito engraçado porque nessa época [durante a adolescência]


eu ainda não tinha certeza que eu ia ser músico. Porque era uma coisa muito
difícil, cara. Tipo, eu ia estudar aonde? Que faculdade eu ia fazer? Pô, não
tenho dinheiro pra pagar a faculdade, como é que eu vou fazer? Será que eu
consigo uma bolsa? Será que eu passo numa prova, num ENEM da vida?
Tipo, tiro uma nota boa no ENEM pra conseguir uma bolsa na faculdade?
Porque eu no instrumento era uma coisa, eu tocava muito bem, mas na parte
teórica da escola, cara, eu não conseguia aprender. E aí eu ia fazer como?
Então era uma coisa muito incerta, né [...]. Eu quase desisti da música nessa
época, porque eu fiquei meio desesperado, não sabia se eu ia conseguir
passar numa faculdade, se eu ia ter que pagar, então eu comecei a pensar
numas coisas meio incertas. Mas aí é isso, cara, eu continuei, fiz a prova da
Academia de Música da Osesp e consegui passar. Isso aí foi o meu grande
alívio, porque além de estudar de graça, eu ainda recebia uma bolsa de mil
88

reais, e eu nunca tinha ganhado mil reais na minha vida [risos], tá ligado? E
eu já tocava em orquestra jovem, tocava na orquestra infantil de Guarulhos,
tocava na orquestra do projeto social, que também dava uma ajudinha de
custo. Só que isso aí tudo dava, sei lá, nem quinhentos reais por mês,
entendeu? Com 17 para 18 anos. Então, era muito difícil, e aí eu tinha que
ajudar minha família, então não sobrava dinheiro nenhum. Era uma vida de
cão, mesmo. Aí eu consegui entrar na Academia e foi onde mudou tudo.

Da mesma forma que a carreira, a escolha pela instituição de ensino superior


também é fortemente limitada pelas possibilidades materiais no caso daqueles
oriundos das classes populares. Leandro, inicialmente, queria estudar direito, mas
readequou sua pretensão para o jornalismo enquanto fazia cursinho pré-vestibular, e
após prestar a prova três vezes sem sucesso para entrar na USP decidiu estudar numa
universidade privada. Em linhas próximas, Marlene começou a cursar psicologia
numa instituição privada, mas após um semestre ela e sua família não tiveram mais
condições de pagar as mensalidades. Ela então foi trabalhar como operadora de
telemarketing e apenas quatro anos depois reingressou no ensino superior, mas agora
para cursar serviço social e numa instituição com mensalidades mais baratas.

Marlene: Quando eu finalizei o ensino médio, em 2006, eu passei o ano de


2007 sem entrar em nenhuma instituição até eu definir o que eu queria, e aí
em 2008 eu comecei a fazer faculdade de psicologia, porque entre serviço
social e psicologia, a psicologia me daria mais opções de atuação. Aí eu
comecei a fazer faculdade em uma instituição privada. Eu pagava uma
mensalidade... é até engraçado, Gustavo, porque... engraçado no sentido
irônico, mesmo. Porque eu não tinha condições de pagar a mensalidade,
minha família também não tinha, meus pais... meu pai é segurança, hoje já
aposentado, e ele é aposentado por tempo de contribuição, e a minha mãe
era operária em fábrica, também aposentada por tempo de contribuição, o
que é uma raridade. Mas naquela época, a gente não... já existia a internet,
obviamente, mas como eu não tinha acesso a computador, nem nada do tipo
– já existiam também LAN houses, mas eu não sabia sequer mexer –, então,
nesse sentido, eu era muito ingênua. Eu me recordo que eu não sabia, por
exemplo, como pesquisar sobre ENEM, como que eu poderia ingressar numa
instituição pública [...]. Eu acreditava que eu ia seguir o caminho dos meus
pais, que era trabalhar em fábrica. Então, eu nem cogitava, muito, fazer
faculdade. Eu ingressei nessa faculdade particular, e eu me recordo que a
gente pagou a primeira mensalidade, eu fiz um semestre de psicologia, fiquei
devendo todas as outras parcelas, mas na metade desse primeiro semestre eu
já percebi que, muito embora eu gostasse da área da psicologia, eu não me
via atuando como profissão. Não era o que naquele momento eu queria. E aí
eu saí da faculdade, saí devendo a faculdade [risos]. Isso foi em 2008, e eu só
voltei a estudar em 2012. Na época, eu trabalhava como operadora de
telemarketing. E aí, por incentivo de uma colega de trabalho, ela falou,
"Marlene, tenta voltar a estudar, é importante, ter uma formação". E aí eu
retirei meio que da gaveta, e eu fiquei pensando, "mas eu vou fazer o que?". E
aí eu cogitei voltar pra psicologia, mas depois, pesquisando um pouquinho
do serviço social, ainda dentro daquela perspectiva de assistencialismo, eu
decidi. Fui também pra uma instituição particular, mas era uma instituição
bem simples. Eu me formei na Unicastelo, que hoje já não existe mais, e a
mensalidade não era tão cara, era uma mensalidade bem, bem barata. E aí eu
decidi fazer, porque eu já estava, na época, com 23 para 24 anos, e eu achava
89

que eu perderia muito tempo se eu tentasse uma instituição pública, até


tentar ENEM, até tentar vestibular, e fazia muito tempo que eu já tinha saído
do ensino médio, então eu tinha muito receio de não conseguir passar em
uma prova. Então eu optei por esse caminho da instituição particular, que
não era das melhores, era extremamente precária, era uma instituição
simples, mas que foi muito importante.

Estes exemplos apontam para a limitação das possibilidades de futuro


imagináveis determinadas pela classe social de origem, dadas tanto pela posse de
capital econômico (a possibilidade de bancar financeiramente uma determinada
formação e inserção profissional), quanto de capital cultural (o conhecimento
especializado sobre o mercado e as estratégias educacionais e profissionais necessário
para tomar decisões a respeito da formação e inserção profissional). Essa
desigualdade entre os herdeiros e os não-herdeiros da cultura acadêmica já foi
bastante discutida pela literatura63, mas é relevante notar aqui que, entre meus
entrevistados com origem em posições sociais mais elevadas do espaço social, a
escolha pela profissionalização em áreas de fração cultural é por vezes encarada como
o desenvolvimento quase natural de um interesse prévio – surgido na infância ou
adolescência –, que praticamente não guarda relação com a necessidade de retornos
financeiros. Sobretudo entre os músicos provenientes de famílias de classe média ou
superior (Rafaela, Luciano, Samuel, Roberto), sem sentirem fortemente a pressão das
necessidades materiais em seu ambiente social de origem, a formação superior é
encarada mais como a realização de uma vocação que como a escolha por uma
profissão.

Gustavo: Como foi a sua decisão por estudar música, propriamente, na


faculdade?

Roberto: Foi uma decisão que teve a oportunidade de contar com o apoio e
com... ausência de conflitos familiares. E eu diria que foi uma decisão fácil
até, no sentido de que eu não conseguia me ver fazendo outra coisa, me
parecia muito natural fazer isso. Não sei nem se foi propriamente uma
escolha ou talvez quase que uma falta de escolha. Porque parecia não ter
outra coisa mesmo pra fazer, então [risos], então vamos por aqui. E foi um
mergulho profundo. Porque música é uma daquelas áreas em que a gente
mergulha nela muito antes de chegar na graduação. Então, acho que foi isso.

É verdade que uma versão da narrativa da vocação aparece também entre


alguns dos entrevistados oriundos de famílias de classe popular. Entre parte dos
63
É o tema central de Bourdieu e Passeron (2014). Mariana Martineli Lima (2020) mostra sua pertinência para
explicar desigualdades nas trajetórias de formação universitária no Brasil atual. Retomarei o tema quando
estiver discutindo as diferenças nos estilos de vida dos dois grupos internamente a minha amostra no capítulo
3.
90

jornalistas e dos que seguiram a carreira docente e/ou acadêmica apareceu a ideia de
que algum professor notou que eles "escreviam bem" ou que “eram de humanas”
durante o ensino básico, o que estimulou sua inclinação para cursos superiores
típicos das frações culturais. Ainda assim, a origem na base e a origem no topo do
espaço social exerce efeito. Tal como no exemplo de Roberto, e em oposição ao de
Adriano, Rosângela, que estudou jornalismo, também teve a condição de decidir por
sua área de formação superior com grande desprendimento de necessidades
materiais:

Rosângela: Eu fiz jornalismo, acredito que a maioria das pessoas também,


com o sonho de trabalhar numa redação, de ser aquele porta-voz da
sociedade, né, aquele intermediador entre o poder e o cronista da sociedade
etecetera etecetera...

O processo de associação às posições culturais do espaço social é


indissociavelmente um processo de adesão a certos estilos de vida e a certos
posicionamentos políticos marcados pela valorização do capital cultural e denegação
do econômico, sendo a adesão aos grupos profissionais tipicamente culturais apenas
uma das tomadas de posição que integram esse processo. Como mostrei em trabalho
anterior64, o ambiente universitário tem como um de seus principais marcadores de
identidade as áreas de estudos: ser "de humanas" ou "de exatas" é uma das formas de
demarcação de fronteiras simbólicas que separa os estudantes e que tem implicações
sobre sua sociabilidade neste ambiente. Trata-se de uma versão da divisão entre as
frações econômicas e culturais traduzida nos termos próprios do campo universitário.
Por isso é que essa adesão às posições culturais é mais complexa que apenas escolher
o curso, e com ele a carreira profissional, que se irá seguir. É um processo que passa
por desenvolver certos gostos e práticas culturais desde a infância e adolescência
(notadamente aqueles que valorizam a cultura legitimada), se aproximar de certos
ideais políticos (notadamente de esquerda) e desenvolver certas habilidades
valorizadas (escrever bem, dominar uma prática artística). Tudo isso deve ficar mais
claro nos dois próximos capítulos. Neste momento do texto, o relevante é entender
que esse processo é diferenciado em função da classe de origem: de acordo com os
dados de meus entrevistados, o processo de associação às posições do espaço social
marcadas por uma denegação da racionalidade econômica é mais fácil de ser

64
VIEIRA (2022), em que analisei as classes sociais e os estilos de vida de estudantes da Universidade Estadual
de Campinas.
91

desenvolvido por aqueles que não sentem tão fortemente a pressão das necessidades
econômicas.

1.5 Síntese

Com base na literatura, particularmente em diálogo com o modelo teórico da


análise cultural de classes, eu construí neste capítulo uma definição do que chamo de
frações de classe culturais. Sinteticamente, a definição propõe que, dentro de um
mesmo conjunto relativamente homogêneo de condições materiais de existência e de
oportunidades de vida que configuram uma classe social, seria possível diferenciar
frações com base nos tipos de capitais predominantes entre os agentes – se mais
econômico ou mais cultural –, e que essa diferenciação na composição de sua posse
de capitais implica em consequências para suas construções identitárias e tomadas de
posições, sendo a mais nuclear das tendências estruturais que se impõe às frações de
classe culturais aquela que os inclina para estratégias de valorização de seu capital
cultural e denegação da racionalidade econômica.
Caminhando com a literatura, eu produzi um conjunto de dados por meio de
entrevistas em profundidade com uma amostra de indivíduos da cidade de São Paulo
que eu argumento que podem ser adequadamente classificados como pertencentes às
frações de classe culturais, sobretudo das classes médias. O argumento se baseia na
proposta de Will Atkinson (2017) de que ocupações que demandam particular
maestria simbólica são bons indicadores prévios de pertencimento às frações
culturais do espaço social. Os dados produzidos com os entrevistados operam ao
longo do texto tanto como indicadores que ajudam a definir as características mais
estruturais que definem as frações culturais (são pessoas com maior volume de
capital cultural e com tendência para denegar a economia econômica), quanto como
fonte de informações que ajudam numa construção mais complexa e precisa do
modelo teórico, ao fornecer exemplos de tomadas de posição típicas de agentes em
posições culturais do espaço social. Assim, minha intenção com os dados qualitativos
que produzi não é que sirvam como comprovações representativas do todo, mas sim,
nos termos de Bachelard (2008), como casos particulares do possível.
Minha amostra é composta majoritariamente por acadêmicos, cientistas,
professores, profissionais das artes, profissionais da comunicação e assistentes
sociais. Eles estão predominantemente em estratos mais elevados da distribuição de
92

renda, mas para além da relativa homogeneidade de sua condição econômica e da


posse de diplomas de ensino superior (além das ocupações que implicam maestria
simbólica), eles apresentam consistente variabilidade de características demográficas
e de origem de classe. Na análise de suas condições de vida já é possível identificar
parte dos efeitos das frações culturais sobre suas tomadas de posição, como se nota
por suas estratégias matrimonias, educacionais e nas escolhas por locais de moradia.
O longo dos próximos dois capítulos, desenvolvo as análises a respeito das
tomadas de posições dos agentes em seus posicionamentos políticos e de estilos de
vida. Para ambos, pretendo fornecer evidências de que demandas estruturais
próprias das posições sociais de fração cultural são parte relevante dos fatores
explicativos de suas tomadas de posição.
93

CAPÍTULO 2. POSIÇÕES POLÍTICAS: COMO SER DE ESQUERDA SENDO


DE CLASSE MÉDIA?

Formulei no primeiro capítulo uma explicação teórica do que defino neste


trabalho como a fração cultural das classes médias, e mostrei como minha leitura se
assenta na abordagem mais ampla da análise cultural de classes. Mostrei também que
há outras definições teóricas, partindo de diferentes pressupostos sociológicos, que
definem a classe média a partir de outros conjuntos de critérios. Porém, como ocorre
quase que em regra na sociologia, existe considerável hiato entre a definição científica
que damos de determinado objeto e aquela que se pode encontrar de maneira
hegemônica fora do campo científico, ou seja, no senso comum.
No caso específico da percepção de senso comum a respeito das classes médias
no Brasil, o trabalho de André Salata (2016) evidencia de maneira bastante completa
que o que a maior parte das pessoas entende como classe média no Brasil refere-se,
na verdade, majoritariamente à camada mais alta das classes médias e a uma parte
das classes altas. Com base nos trabalhos históricos de Owensby (1999) e
O’Dougherty (2002), Salata nota que a construção simbólica das classes médias no
Brasil foi feita ao longo do século XX com base numa imagem importada de
"modernidade". Ser de classe média passou a ser entendido como ter um padrão de
vida comparável ao da população dos países desenvolvidos da Europa e América do
Norte, notadamente, um padrão de vida estável, diploma de ensino superior, padrão
de renda alto e acesso regular a lazer e diversão. Salata mostra com base em dados de
pesquisas quantitativas e qualitativas contemporâneas que essa construção simbólica
permanece operativa no Brasil, na medida em que apenas entre pessoas que estão nos
estratos de renda mais altos a identidade de classe média é predominante. Com isso,
os símbolos estabelecidos historicamente como critérios de pertencimento à classe
média no Brasil são praticamente impossíveis de serem alcançados pela maior parte
daqueles que estão nos estratos intermediários de distribuição de renda.
Para a fração econômica das classes médias, cujas estratégias de reprodução
social e critérios de demarcação de identidade se assentam sobre uma afirmação do
capital econômico, a possibilidade de ser confundida, no senso comum, com as elites,
não é nada problemático. Pelo contrário, a obtenção de capital simbólico oriundo de
ser confundida com parte da classe economicamente dominante lhe garante uma
94

segurança adicional para ocupar a posição que ocupa no espaço social, na medida em
que funciona como atestado do mérito a partir do qual justifica sua posição social.
Por outro lado, para a fração cultural das classes médias aqui se encontra um
problema considerável. Seu esforço de construção de identidade, adequado à posição
dominada que ocupa no espaço social, passa precisamente pela negação do
imperativo econômico, e portanto ser confundida com a elite econômica é bastante
arriscado. E o problema torna-se ainda maior na medida em que essa representação
que aproxima as classes médias das classes dominantes vem acompanhada, na maior
parte das vezes, de uma identificação com posições políticas conservadoras.
É por conta desses riscos simbólicos que marcam a posição que ocupam
diante de uma representação hegemônica com a qual não se reconhecem que uma
parte substantiva do esforço explícito de construção identitária da fração cultural das
classes médias é orientado precisamente para criticar a "classe média"; não a
sociológica, mas a do senso comum. Atacar a "classe média", seu elitismo,
conservadorismo e demofobia, é uma estratégia (não necessariamente reflexiva)
adequada estruturalmente às posições culturais da classe média, pois é uma forma de
traçar com clareza uma fronteira contra a fração econômica de forma a colocá-la
numa posição de inferioridade moral, valorizando, com isso, no plano valorativo, as
posições que são estruturalmente dominadas. Os exemplos de críticas mordazes à
"classe média" partindo de agentes localizados na fração cultural das classes médias
são abundantes, mas poucos foram tão emblemáticos quanto o discurso exaltado feito
pela filósofa Marilena Chauí num debate sobre a "ascensão conservadora", realizado
em 2012 na USP e com a presença de Lula no palco ao lado da intelectual:

Eu odeio a classe média! A classe média é o atraso de vida. A classe média é


estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante,
arrogante, terrorista. É um... é uma coisa fora do comum a classe média [...].
A classe média é uma abominação política, porque ela é fascista. Ela é uma
abominação ética, porque ela é violenta. E ela é uma abominação cognitiva,
porque ela é ignorante65.

O trecho se tornou viral nas mídias sociais ao longo da última década. Nos
círculos de esquerda, foi compartilhado de maneira apologética por sintetizar com
clareza os defeitos morais da "classe média". Nos de direita, tornou-se um exemplo

65
O vídeo está disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=fdDCBC4DwDg&ab_channel=Fayvit>,
acessado em 29/01/2024. Gustavo Firmino (2023) também se lembrou deste vídeo em sua tese sobre classes
médias no Brasil
95

do ódio alimentado pela esquerda à "classe média". De qualquer forma, pelo conflito
de interpretações que viceja, a fala de Chauí – figura com capital simbólico volumoso
o suficiente para que ocupe posições dominantes no campo acadêmico, científico e
intelectual, e com isso nas frações culturais do espaço social como um todo – é um
emblema do quanto as tomadas de posições políticas de esquerda se adequam e, com
isso, identificam fortemente a fração cultural das classes médias66.
Ao longo deste capítulo discutirei precisamente como a fração cultural das
classes médias paulistanas se posiciona politicamente. Após revisão da literatura
sobre (2.1) classes médias e política no Brasil e sobre (2.2) a relação entre as frações
culturais e a esquerda política, apresentarei (2.3) meus pressupostos teóricos e
empíricos para o estudo de posicionamentos políticos, e então (2.4) os dados
quantitativos e qualitativos que produzi sobre os posicionamentos políticos de meus
entrevistados, evidenciando a forte e coerente aderência desses agentes às posições
políticas de esquerda. Após descrever os dados, oferecerei uma explicação estrutural e
uma explicação processual para mostrar tanto que os posicionamentos políticos de
esquerda são estruturalmente adequados às posições culturais do espaço social,
quanto que o processo de incorporação dos agentes às posições culturais é, com raras
exceções, um processo também de associação a repertórios políticos de esquerda.
Com isso, o argumento fundamental que procuro construir e sustentar ao longo deste
capítulo é o de que as posições políticas de esquerda são um dos mais importantes
critérios de demarcação de fronteiras simbólicas de pertencimento coletivo para os
membros da fração cultural das classes médias paulistanas.

2.1 Classes médias e política no Brasil

Adalberto Cardoso (2020), recuperando historicamente as discussões a


respeito das tomadas de posições políticas das classes médias, mostra que em
diferentes momentos e por diferentes autores as classes médias já foram vistas como
tendo orientação política mais à esquerda e mais à direita.
Pelo lado da esquerda, há leituras sobre uma possível aproximação entre as
classes médias e as classes populares em contextos de proletarização (Klingender,

66
E a fala de Chauí não é relevante apenas como emblema, mas também porque, na medida em que a filósofa
ocupa uma posição dominante, é também uma tomada de posição com alto poder de influência sobre os
agentes que ocupam posições culturais no espaço social, auxiliando, desta forma, na reprodução da relação
entre as posições sociais e as tomadas de posições políticas.
96

1935) e sobre a importância das classes médias para a estabilidades das democracias
(Lipset, 1959). Cardoso lembra também da centralidade de partes das classes médias
– sobretudo a juventude e a parte mais intelectualizada – para a revolução cultural
dos anos 1960 (Gorz, 1973) e para os "novos movimentos sociais" (Touraine, 1969). A
aproximações dessas partes das classes médias com repertórios da esquerda foi
marcante o suficiente ao longo do século XX para que Klaus Eder (2001) propusesse a
interpretação de que diversos movimentos sociais de esquerda (feminista,
ambientalista, antirracista etc.) funcionam como mecanismos de produção de
identidade para membros das classes médias.
Pelo lado da direita, por sua vez, há diversas leituras a respeito do
conservadorismo das classes médias baseado em seu esforço de aproximação das
classes altas e, sobretudo, de seu medo da proletarização e desclassificação social.
Speier (1934), por exemplo, analisando o contexto da Alemanha do entreguerras,
argumentou que as características estruturais que separavam as classes médias das
classes populares e as aproximavam das altas (posições de autoridade no trabalho e
maior nível educacional), junto de seu maior sentimento nacionalista, as inclinou
para o apoio ao Partido Nazista.
Já Wright Mills (1969), em seu trabalho clássico sobre as classes médias,
argumenta a respeito de sua passividade política. Em sua leitura, os membros da
nova classe média não teriam motivo para defender de partida nenhum projeto
político próprio (diferente da classe trabalhadora e da burguesia), e por isso estariam
dispostos a aderir a qualquer projeto político que aparente ter mais chances de
vencer. Em sentido próximo, Marcuse (1964) também argumentou que as classes
médias não têm condições de desenvolver consciência de classe nem um projeto
político próprio, sendo mais provável sua adesão ao capitalismo "unidimensional",
nas palavras de Cardoso (2020, p. 49): "uma sociedade de classe média dominada
pela ciência, pela técnica e pela razão instrumental, militarizada, marcada pela
prosperidade geral e pelo consumismo individualizado".
No caso brasileiro, a despeito das visões simplistas que se encontra no senso
comum, a literatura especializada a respeito da relação entre classes médias e política
é clara ao mostrar como o amplo conjunto de posições sociais intermediárias do
espaço social apresenta heterogeneidade de posicionamentos políticos. Tanto no
trabalho clássico de Décio Saes Classe média e sistema político no Brasil (1985),
quanto no recente Classes médias e política no Brasil: 1922-2016 (2020), de
97

Adalberto Cardoso, é possível perceber que ao longo do século XX as classes médias


se encontraram politicamente fracionadas entre posições de direita e esquerda 67.
Saes remonta ao processo de formação do Estado nacional e expansão da
economia cafeeira ao longo do século XIX para identificar o surgimento e
consolidação das classes médias brasileiras. Já desde este momento, o autor
identifica duas camadas diferenciadas. De um lado, uma camada média tradicional,
formada por ex-aristocratas rurais expulsos ou empobrecidos que migraram para os
centros urbanos e passaram a ocupar postos nas burocracias, serviços e
administração, além de profissões liberais (advogados, médicos) e militares. Do outro
lado, uma baixa camada média teria surgido de antigos trabalhadores rurais que
migraram para os centros urbanos e passaram a ocupar postos não-manuais mais
baixos, de menor complexidade e remuneração. Com base nesses estratos o autor
identifica a fragmentação das posições políticas das classes médias ao longo da
Primeira República (1889-1930): ao passo que a camada média tradicional tendia a
ter afinidade e a defender os interesses das oligarquias rurais por conta da
importância de seus laços familiares e sociais com elas, como estratégia para
assegurarem suas posições sociais e o prestígio correspondente, a baixa camada
média tinha maior autonomia para formar posições ideológicas em oposição às
oligarquias rurais, e com isso apresentou tendência mais crítica e antioligárquica,
sobretudo por conta do temor de proletarização que identificava com a política
liberal.
Essa divisão ideológica entre a adesão às ideias das elites econômicas por parte
de uma camada mais alta das classes médias (aqui, chamada de tradicional) e uma
disposição para posições críticas, anti-hegemônicas ou mais próximas das classes
populares por parte de uma camada média mais baixa é o fator fundamental para a
explicação das fragmentações políticas internamente às classes médias na obra de
Saes. Assim, durante a Era Vargas e o intervalo democrático (1930-1964), por
exemplo, o autor identifica nas camadas médias tradicionais a oposição a qualquer

67
Fundamental destacar que, por mais que suas análises tenham muitos pontos de semelhança e que, em
grandes linhas, tratem do mesmo conjunto de agentes, as definições de classe média dos dois autores são
diferentes. Já descrevi a de Cardoso no capítulo 1, baseada na identificação dos grupos profissionais que se
diferenciam das classes populares e das superiores por sua posição na divisão do trabalho, seu nível de
qualificação, sua escolaridade e renda. Para Saes, trabalhando no referencial marxista, as classes médias são
compostas pelos trabalhadores, assalariados ou não, que desempenham trabalhos não-produtivos (ou
indiretamente produtivos) e que se autorrepresentam ideologicamente como "não-manuais", em oposição ao
conjunto dos trabalhadores “manuais” (operários, pequenos camponeses e artesãos, trabalhadores da massa
marginal etc.) (Saes, 1985, 2005).
98

medida que caminhasse no sentido da consolidação de uma democracia de massas,


como efeito de seu esforço para manter seu acesso quase exclusivo ao sistema político
que funcionava como símbolo de prestígio (Saes, 1985, pp. 106-107), ao passo que o
populismo varguista teria dado estrutura para uma organização sindical mais forte
das baixas camadas médias, aproximando-as do sindicalismo operário (Saes, 1985,
pp. 114-115). Cardoso destaca também que o projeto varguista baseado em
nacionalismo, desenvolvimentismo, liberalismo mitigado e garantia de direitos
sociais, políticos e trabalhistas para a classe popular foi encampado e combatido por
diferentes setores das classes médias (ainda que a maior parte delas tenha se oposto
ao projeto): o nacional-desenvolvimentismo foi defendido pela baixa classe média,
por parte da mídia (Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Última Hora) e por setores
progressistas das classes médias (intelectuais, universitários e baixo oficialato
militar), além de parte da burguesia industrial, operários e lideranças camponesas, ao
passo que o projeto liberal-autoritário arregimentou os segmentos reacionários das
classes médias, outra parte da mídia (Diários Associados, O Globo, Estado de S.
Paulo) e o alto oficialato militar, além da burguesia financeira, comercial e agrária e
de parte das massas empobrecidas do campo e da cidade (Cardoso, 2020, pp. 99-
100).
No golpe militar-civil de 1964, Saes identifica uma divisão das classes médias
entre três setores com posições sociais e posicionamentos políticos distintos: a
camada tradicional deu apoio ao golpe por ter como objetivo eliminar o populismo e
retornar ao sistema oligárquico que assegurava seu acesso às posições profissionais
de prestígio, a recém-surgida nova camada média (especialistas e detentores de
autoridade técnica ou administrativa no seio da empresa monopolista moderna:
gerentes, quadros, chefes de serviço, economistas, técnicos médios, engenheiros) deu
apoio ao golpe menos pelo interesse de assegurar suas posições que por uma
afinidade ideológica com uma organização baseada em ordem e hierarquia, e a baixa
camada média se opôs ao golpe por se manter envolvida com um culto nostálgico do
Estado populista, na expectativa de que seu retorno pudesse concretizar um cenário
de progresso e bem-estar social (Saes, 1985, pp. 153-192). A despeito dessa
tripartição, Saes destaca que o principal setor das classes médias a fazer oposição ao
Regime foi o movimento estudantil, que passou a defender um projeto baseado em
revolução popular e antiimperialismo, ainda que parte das baixas camadas médias
tenha também organizado luta contra os militares em prol de melhoria de condições
99

de vida (sobretudo os bancários) (Saes, 1985, pp. 206-212). Posteriormente, já no


cenário de crise econômica, Saes destaca que mesmo parte da camada tradicional
(notadamente o alto funcionalismo público, advogados e outros profissionais liberais)
passou a se opor ao Regime (Saes, 1985, pp. 223-225).
Na leitura de Cardoso, por sua vez, a oposição ao Regime Militar internamente
às classes médias se encontrava acima de tudo no movimento estudantil e nos setores
culturais. O movimento estudantil, em particular, já vinha radicalizando suas
posições à esquerda desde o início dos anos 1960. Concordando com Forachi (1965) e
Ridenti (2010), Cardoso entende que, além da inspiração que encontravam num
contexto de surgimento de movimentos contra-hegemônicos ao redor do mundo
(Revolução Cubana, Revolução Cultural Chinesa, Maio de 1968 na França, revoltas
estudantis nos EUA, contracultura, movimento hippie), parte da explicação para o
radicalismo político universitário se encontrava na frustração de expectativas criadas
durante os governos populistas. Esses estudantes eram filhos das novas classes
médias urbanas e, em sua maior parte, eram a primeira geração de suas famílias a
entrar para a universidade, mas a escassez de vagas fazia também com que grande
parte deles enfrentasse o “problema dos excedentes”, qual seja, o de ser aprovado no
vestibular mas não conseguir uma vaga na universidade.
A intensa atuação do movimento estudantil nos anos posteriores ao golpe foi
um dos fatores que alimentou a decisão dos militares de endurecer a perseguição à
oposição e a fechar cada vez mais o Regime, mas, por outro lado, a perseguição aos
estudantes foi também fator fundamental para que parte maior das classes médias
também passasse a se opor aos militares, tendo em vista que eram seus filhos que
estavam sendo torturados e assassinados. Em particular a partir de 1968 os setores
culturais das classes médias – artistas e produtores culturais, parte da imprensa,
Igreja Católica, Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa –
foram cada vez mais engrossando as fileiras de oposição ao Regime em solidariedade
aos estudantes. Com isso, ao passo que grande parte das classes médias pôde aprovar
ou ficar indiferente à violência militar na medida em que via suas condições de vida
melhorarem com o Milagre Econômico, a facilidade de acesso ao crédito e a
ampliação de seu acesso ao consumo no início dos 1970, no sentido oposto a
publicização crescente das torturas e assassinatos da ditadura foi uma força agindo
no sentido de estimular o afastamento de outros setores das classes médias em
relação aos militares. O assassinato de Vladimir Herzog, em 1975, foi particularmente
100

simbólico neste processo, pois em torno dele se uniram jornalistas e sindicatos de


imprensa, Igreja Católica, estudantes, políticos e lideranças do mundo cultural em
crítica uníssona ao Regime Militar (Cardoso, 2020, pp. 180-192).
Na literatura que vem se esforçando para entender e explicar o atual cenário de
acirramento do conflito político no Brasil a partir de 2013 vem se reproduzindo uma
vez mais a interpretação de que as classes médias se dividem entre posições de
esquerda e de direita lastreadas, respectivamente, na baixa e na alta classe média.
Nos trabalhos de autores marxistas como Firmino (2017, 2023), Cavalcante (2018) e
Cavalcante e Arias (2019), por exemplo, encontra-se o argumento de que no contexto
do ciclo dos governos petistas, marcado pelo crescimento de políticas sociais,
redistributivas e afirmativas, pelo aumento da formalização do emprego, pela
expansão do acesso ao ensino superior e pela valorização do salário mínimo, grande
parte das classes médias brasileiras – acima de tudo sua camada alta – se viu
particularmente atacada, tanto, num sentido mais amplo e ideológico, ao ver
questionada sua ideologia orgânica (a meritocracia) a partir da promoção de políticas
sociais afirmativas, quanto, num sentido mais prático, porque a ampliação do acesso
ao ensino superior levou a um aumento da competição internamente às instituições
que até então eram praticamente monopolizadas pelas classes médias, o que as
colocou diante da ameaça de desclassificação social. Junto disso, a expansão do
consumo entre as classes populares (fruto, entre outros fatores, da ampliação do
salário mínimo e da facilitação do acesso ao crédito) ameaçou ainda seus bens e
espaços distintivos de estilos de vida (sendo os maiores símbolos os shoppings e
aeroportos), importantes para manter a caracterização subjetiva da identidade de
classe média. O resultado foi a adesão majoritária da alta classe média às trincheiras
políticas de oposição ao PT, bem representada por seu apoio à Operação Lava-Jato e
ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016.
Do outro lado, estes autores contemplam em suas análises o dado de que uma
parte não desprezível das classes médias compôs também a trincheira da esquerda
durante o conflito político da última década no Brasil. A explicação oferecida por eles
para este posicionamento é a de que a parte das classes médias que se colocou à
esquerda no período é composta centralmente por dois grupos: um de pessoas mais
jovens, que se formaram politicamente num contexto de ativismo contra
discriminações raciais e de gênero, e um de funcionários públicos, particularmente
em categorias profissionais que sofrem mais fortemente com cortes de investimentos
101

em educação pública, arrocho salarial de servidores públicos e suspensão de


concursos públicos; setores estes com histórico de organização sindical e de adesão
ao projeto de "reformismo forte" que já foi sustentado pelo Partido dos Trabalhadores
(como, por exemplo, trabalhadores assalariados dos campos da educação, cultura,
saúde, segurança e comunicação). Aqui se encontraria, portanto, fundamentalmente
a baixa classe média (Cavalcante; Arias, 2019, Firmino, 2023).
Na análise de Adalberto Cardoso sobre o mesmo período o autor argumenta
que há dois projetos políticos diferentes que se afirmaram na esfera pública brasileira
ao longo do século XX e que são claramente identificáveis a diferentes segmentos das
classes médias. Um é conservador: ele é mais articulado e sustentado por setores
mais coesos, não tem compromisso com a superação de desigualdades sociais e se
assenta em estilos de vida e visões de mundo ancorados na ética burguesa de
trabalho, liberalismo, individualismo, meritocracia e elitismo. O outro é progressista:
ele tem menos unidade interna que o projeto conservador e é sustentado por setores
menos coesos do que os que sustentam o projeto conservador, se baseia em ideias
como igualdade, solidariedade e justiça social e se assenta na ética do trabalho
assalariado e nas lutas do operariado e, depois, das classes médias baixas dos
serviços, do serviço público e das atividades culturais e intelectuais que constituíram
bases de sustentação dos estados de bem-estar social no Ocidente (Cardoso, 2020,
pp. 16-17).
Cardoso argumenta que as classes médias estiveram no âmago do acirramento
do conflito político no Brasil iniciado em 2013. Em linha com o argumentos dos
autores citados acima, Cardoso também entende que a reação da parte majoritária
das classes médias às políticas do ciclo petista teve base na adesão à ideologia
meritocrática, discurso anticorrupção e medo da desclassificação social (adicionando
ainda na matriz discursiva da classe média conservadora a presença do
anticomunismo). Para o setor da classe média que se posicionou contra o
impeachment de Dilma, Cardoso remonta ao histórico do projeto político
progressista para explicar a defesa das conquistas democráticas e dos legados dos
governos do PT, pautado pelas ideias de justiça social e participação democrática –
projeto que o autor chama de desenvolvimentismo democrático com inclusão social,
em oposição ao projeto conservador que chama de liberalismo autoritário (Cardoso,
2020, pp. 257-260). Como aconteceu ao longo do século XX, agora novamente a
classe média de direita estaria conseguindo construir sua identidade coletiva de
102

maneira mais coesa que a de esquerda, organizando sua visão de mundo em torno
dos temas do anticomunismo, antipetismo e crítica à corrupção.
O fundamental é que, para Cardoso, a dinâmica política iniciada em 2013 no
Brasil deu condições para um processo de formação de classe: setores mutuamente
excludentes das classes médias se identificaram internamente na oposição com o
grupo oposto, construindo sistemas de signos organizados com base em projetos
políticos e visões de mundo opostos.

2.2 Frações culturais e a esquerda política

A explicação dos posicionamentos políticos dos agentes com base em sua


classe social, a despeito de ser um argumento básico da sociologia desde o século XIX
(vide a explicação marxista que relaciona de forma direita posição de classe,
consciência de classe e ação de classe [Olin Wright, 2015b]), não é um ponto
plenamente passivo na literatura sobre comportamento político. Nos estudos sobre
comportamento eleitoral, por exemplo, a relação entre classe e voto foi motivo de
intensa polêmica ao longo das décadas. Como mostram Oddbjørn Knutsen (2007) e
Eduardo Ferraz (2009) em revisões sobre o tema, de um consenso estabelecido nos
anos 1960 sobre a pertinência da classe para explicar os posicionamentos eleitorais
dos agentes, a literatura passou, nas décadas seguintes, para um quase completo
descarte da classe como fator explicativo dos posicionamentos políticos, e
posteriormente, entre os anos 1990-2000, para uma revitalização da classe como
variável explicativa do voto.
Como destaca Ferraz, essa oscilação é, em grande medida, resultado de
diferentes concepções a respeito tanto do que se chama de classe social quanto da
forma como se enquadra e como se constrói nas pesquisas empíricas o conflito
político-eleitoral. O consenso inicial foi estabelecido usando como método analítico o
índice de Alford, baseado numa simples subtração entre os votos em partidos de
esquerda por trabalhadores não-manuais e os votos em partidos de esquerda por
trabalhadores manuais. A simplicidade dos pressupostos teóricos é evidente: a classe
trabalhadora (manual) deve votar nos partidos de esquerda e as classes médias e altas
(não-manuais) devem votar nos de direita. Assim, no índice de Alford, tanto a
estrutura de classes era lida de maneira binária (trabalhadores manuais x não-
103

manuais) quanto era lido de maneira binária também o conflito político (esquerda x
direita, pensado fundamentalmente a partir do conflito econômico/distributivo). A
despeito do simplismo, o índice deu conta de mostrar adequadamente a existência de
altos níveis de voto de classe em diferentes países nos anos do pós-Segunda Guerra,
ainda que variando nacionalmente (Knutsen, 2007). O problema é que a partir da
década de 1960 os valores de voto de classe baseados no índice passaram a decrescer,
e com isso veio a reboque toda uma literatura que passou a desacreditar o papel da
classe como fator explicativo do comportamento político-eleitoral68.
Por sua vez, a revitalização da classe como fator explicativo do voto veio de
uma leitura mais complexa tanto da estrutura de classes quanto do conflito político.
O principal modelo de estrutura de classes mobilizado nas pesquisas passou a ser o
neoweberiano proposto por John Goldthorpe, Robert Erikson e Lucienne
Portocarrero, baseado na distribuição de recursos produtivos e nos tipos de contratos
(Breen, 2005). Já o conflito político passou a ser lido como tendo, além da dimensão
econômica/redistributiva, também uma dimensão cultural/valorativa. Aqui, sente-se
fortemente a influência dos trabalhos de Ronald Inglehart (1990), que propôs ainda
na década de 1970 que os conflitos políticos nas democracias ocidentais estariam
cada vez mais sendo marcados não apenas pela oposição entre diferentes modelos de
política econômica, mais ou menos estatista ou privatista (laissez-faire x
redistribuição pelo Estado), mas também pela oposição "cultural" entre
libertarianismo e autoritarismo (proteção da liberdade individual x manutenção da
ordem social). Para Inglehart, o conflito "cultural" estaria ganhando cada vez mais
espaço nas disputas políticas ao longo da segunda metade do século XX.
Com isso, autores como Houtman e Achterberg (2010) passaram a argumentar
que a relação entre classe e voto seria mais bem explicada por um modelo que
separasse "duas esquerdas" e "duas direitas", tendo em vista que os posicionamentos
políticos não seriam unidimensionais (assentados apenas na economia), mas sim
bidimensionais (econômicos e culturais/valorativos), e que fatores diferentes
inclinam os agentes para cada um desses polos do conflito político. Ao passo que
aquilo que os autores chamam, propriamente, de "voto de classe" se basearia nas
condições econômicas dos agentes e explicaria seus posicionamentos políticos na

68
Este é só um dos exemplos dos ataques que a teoria das classes sociais de maneira ampla sofreu na
sociologia ao longo da segunda metade do século XX por parte de autores que questionaram sua potência
enquanto fator explicativo das dinâmicas sociais. Há ampla literatura a respeito, mas talvez nenhuma defesa da
classe tenha sido tão contundente quanto a de Erik Olin Wright em Class counts (Olin Wright, 1997).
104

dimensão econômica, existiria também um "voto cultural", baseado no nível de


escolaridade dos agentes69 e que explicaria seus posicionamentos na dimensão
cultural/valorativa. Desta forma, Houtman e Achterberg conseguem mostrar
(analisando o caso dos Países Baixos) que os partidos tradicionais de esquerda (com
posições fundamentalmente estatistas) conquistam mais votos entre as classes
populares e os partidos tradicionais de direita (com posições fundamentalmente
privatistas) conquistam mais votos entre as classes médias e altas, e ao mesmo tempo
os partidos da nova esquerda (com pautas fundamentalmente progressistas no campo
moral) conquistam mais votos entre os mais escolarizados e os partidos da nova
direita (com pautas fundamentalmente conservadoras no campo moral) conquistam
mais votos entre os menos escolarizados. O “voto de classe” e o “voto cultural”,
portanto, operam em direções opostas e mobilizam pautas de dimensões políticas
diferentes para interpelar a setores diferentes do eleitorado.
Autores trabalhando em linha com o modelo da análise cultural de classes, por
sua vez, dedicaram particular atenção para a relação entre as posições sociais e os
estilos de vida, mas atenção bastante limitada para a relação entre posições no espaço
social e tomadas de posição políticas, o que surpreende se levarmos em conta que
Bourdieu dedicou integralmente um dos oito capítulos de A Distinção ao tema das
tomadas de posições políticas. No oitavo capítulo do livro (intitulado Cultura e
política) Bourdieu discute como os comportamentos políticos são dispostos pelo
habitus, marcados pela classe e, desta forma, como guardam relação de homologia
com os estilos de vida. De acordo com seu argumento, a disposição para discutir
política e o domínio dos assuntos políticos são homólogos ao domínio da cultura
legitimada, sendo a disposição para refletir sobre a política apenas um caso particular
de um modelo geral de disposições para reflexão que marca os grupos com maiores
acúmulos de capitais. Isso significa que mais do que uma oposição entre esquerda e
direita, entre progressistas e conservadores ou entre democratas e autoritários, a
maior oposição de classe no domínio dos comportamentos políticos seria entre um
grupo que adquire, durante sua socialização familiar e escolarização, a disposição e a
sensação de necessidade de pensar, opinar e tomar partido publicamente sobre temas
da política, e outro que aprende durante toda a vida que deve delegar para
especialistas sua relação com a política. De qualquer forma, tanto as classes mais
69
Os autores chamam de “capital cultural”, mas estão se referindo apenas ao nível de escolaridade. Por conta
do reducionismo nas aplicações do conceito de capital cultural que já critiquei no primeiro capítulo, não
reproduzirei o conceito de Bourdieu aqui.
105

altas quanto as mais baixas têm essas disposições lastreadas no habitus típico de sua
classe, sendo que a disposição para interpretar o mundo social e participar da vida
pública, inclusive com inserção partidária e em movimentos sociais, se associa com
determinados tipos de estilos de vida.
Um esforço recente na análise cultural de classes de grande interesse para esta
dissertação é o que aparece nos artigos de Flemmen, Jarness e Rosenlund (2019;
2022). Preocupados também em entender a relação entre posições no espaço social e
tomadas de posições políticas (para o caso empírico da Noruega), os autores estão
discutindo diretamente com a teoria das "duas esquerdas" e "duas direitas", mas
constroem a classe com base em diferentes indicadores de capital econômico e
cultural70 e os posicionamentos políticos com base em diferentes questões
concernentes a economia e moral. Com isso, os autores criticam a relação puramente
bidimensional que relaciona, por um lado, classe de renda a posições sobre economia
e, por outro, nível de escolaridade a posições sobre moral, mostrando que a separação
não é tão estanque entre as diferentes dimensões do conflito político, que na verdade
se sobrepõem, e mostrando também que o efeito do capital econômico e do capital
cultural se sobrepõe em configurações determinadas. No caso norueguês, o primeiro
eixo do espaço das posições políticas (isso é, aquele que dá conta da maior variância
entre as diferentes variáveis71) sobrepõe opiniões sobre economia e sobre moral na
separação entre a esquerda e a direita, e o tipo de capital que caracteriza os agentes
(se mais econômico ou mais cultural) é um fator explicativo dessas oposições entre
esquerda e direita mais adequado que o volume total de capitais. Ou seja, fazer parte
das frações de classe culturais (isso é, possuir maior volume de capital cultural que
econômico) é a característica que apresenta mais forte homologia com ter posições
políticas estatistas e progressistas, e vice versa (frações econômicas em homologia
com posições privatistas e conservadoras). Assim, as frações de classe são fatores
explicativos da oposição entre direita e esquerda mais adequados do que a posição de
classe no eixo "vertical" (volume global de capitais).
Flemmen, Jarness e Rosenlund reconhecem que para além da oposição
fundamental entre direita e esquerda baseada no tipo de capitais há também

70
De capital econômico: renda total, posse ou aluguel de residência, depósitos bancários, poupança e
investimentos, valor da residência, posse de casa de férias, propriedades adicionais e número de carros. De
capital cultural incorporado: nível de escolaridade dos responsáveis e volume de objetos "culturais" em seu
ambiente familiar de origem (livros, música, artes). De capital cultural institucionalizado: nível educacional e
área de formação. De capital cultural objetivado: número de livros que leu no último ano.
71
A técnica utilizada foi a análise de correspondências múltiplas específica
106

fragmentações internas na direita e na esquerda marcadas pelo volume de capitais: a


esquerda liberal (isso é, progressista) é de posição social mais alta, e a que não se
importa com essas questões é de posição social mais baixa, e na direita as posições
sociais mais altas são tipicamente anti-igualitárias na economia e as posições mais
baixas são mais conservadoras (Flemmen; Jarness; Rosenlund 2019, p. 895). Mesmo
assim, o forte efeito do tipo de capital sobre as tomadas de posições políticas é
reforçado pelo dado de que, em todas as frações de classe, aqueles agentes com estilos
de vida marcados pela valorização da cultura legitimada também se inclinam mais
para posições políticas de esquerda, e o oposto também se comprova (estilos de vida
que se opõem a cultura legitimada se associam positivamente com posições políticas
de direita) (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2022, pp. 273-274). Com isso em mente é
que os autores lançam como hipótese o que chamam de "esquerdismo do capital
cultural" (cultural capital leftism), argumentando que o posicionamento político à
esquerda pode ser interpretado como um exemplo de tomada de posição que denega
o poder do capital econômico, tal qual os estilos de vida marcados pela valorização da
cultural legitimada.

Favoring stances such as stronger workers’ rights, Market regulation and


increased taxes to fund social spending represents a challenge to the power
of economic capital, similar to the way in which support for stronger public
funding of cultural institutions is favorable to holders of cultural capital,
since this shields this group from market competition. This interpretation
seems to be bolstered by the observation that, within the class category
richest in cultural capital, leftist voting is strongest among those whose
lifestyle also negates economic capital (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2022,
p. 273).

Os autores destacam que não estão propondo um modelo causal. Eles


reconhecem que é possível que os posicionamentos políticos sejam baseados em
interesses racionalizados (como quando aqueles que têm alto capital econômico se
opõem a taxações, ou quando aqueles com alto capital cultural defendem
investimentos públicos em produções culturais), mas esses posicionamentos podem
também ser frutos de um senso prático ou de afinidade emocional lastreados em suas
posições estruturais, estimulando-os a defesa e valorização de diferentes tipos de
capitais. De qualquer forma, o dado que exige explicação é o de que existem, pelo
menos para o caso norueguês, configurações sistemáticas de associação entre frações
de classe baseadas no tipo de capital que se possui em maior volume e
posicionamentos políticos de esquerda e de direita.
107

O argumento de Flemmen, Jarness e Rosenlund sobre o "esquerdismo do


capital cultural" me interessa em particular pois ele permite uma aproximação e uma
base a partir da qual posso partir para interpretar minha amostra de entrevistados.
Os membros da fração cultural das classes médias paulistanas são coerentemente de
esquerda, tanto em suas posições sobre economia quanto sobre moral, e eu sugiro
que tais posicionamentos podem ser adequadamente explicados por sua posição
estrutural de fração de classe. Abaixo neste capítulo descrevo esses dados e formula
essas explicações. Antes, porém, é fundamental explicar os pressupostos com base
nos quais enquadrei e construí o conflito político para a minha pesquisa. É o que faço
na próxima seção.

2.3 Pressupostos teóricos e empíricos para o estudo de posicionamentos


políticos

Para construir a parte do Questionário sobre posicionamentos políticos, além


de ter revisado pesquisas teóricas e empíricas do campo de comportamento político,
eu analisei todos os questionários aplicados no Brasil pelas quatro principais
pesquisas de opinião pública que contemplam o país: o ESEB (Estudo eleitoral
brasileiro; questionário sobre crenças, comportamentos e alinhamentos políticos), o
Lapop (Latin American public opinion project; questionário sobre valores,
comportamentos e condições socioeconômicas), o Latinobarômetro (questionário
sobre comportamentos, valores e atitudes) e o WVS (World values survey;
questionário sobre valores políticos). Ao todo, são 40 questionários (5 do ESEB, 8 do
Lapop, 22 do Latinobarômetro e 5 do WVS). Eu analisei as questões aplicadas e
selecionei as que interessavam mais para a minha pesquisa, construindo um banco de
questões. Então, eu agreguei as questões no banco em eixos temáticos, e depois eu
selecionei dentro dos eixos temáticos as questões que me interessavam mais para
inserir no questionário, fazendo pequenas modificações quando fosse pertinente para
meu interesse de pesquisa. O questionário passou ainda por uma série de testes e
revisões de conteúdo por pares, que fizeram valiosas sugestões.
A versão final do bloco do Questionário destinado ao mapeamento das
posições políticas contou com 48 questões (da 16 a 64), que no questionário online
eram organizadas em 14 sessões: percepções sobre o Brasil, democracia, interesse por
política, participação política, esquerda e direita, diversidade sexual, religião, outras
108

pessoas (na verdade, é uma questão sobre preconceitos), relações sociais (na verdade,
é uma questão sobre hierarquias sociais), família, homens e mulheres, raça, economia
e posições políticas (na verdade, questões sobre punitivismo e nacionalismo).
O bloco do Roteiro de entrevistas sobre posições políticas tinha 8 questões (da
46 a 54). Para ele, tentei construir questões que me permitissem explorar
informações que seriam difíceis de acessar por meio do questionário (como a relação
dos entrevistados com a política, sua socialização política e as posições políticas de
seus familiares e amigos) e que me permitissem captar os sentidos que os
entrevistados atribuem para alguns termos que se encontravam no questionário e que
são importantes na definição das posições políticas (como esquerda, direita e
democracia), bem como um aprofundamento em sua percepção a respeito do Brasil
atual (pedindo que me explicassem quais acreditam serem os maiores problemas que
o Brasil enfrenta atualmente).
A partir da revisão bibliográfica que fiz sobre comportamento político, tanto do
ponto de vista teórico quanto buscando me ambientar nas principais pesquisas da
área já realizadas no Brasil, e, junto disso, revisando os questionários das grandes
pesquisas de opinião pública aplicadas no Brasil nas últimas décadas, a construção de
meus instrumentos de pesquisas dedicados a explorar as posições políticas dos
entrevistados foi marcada por uma série de pressupostos, sendo o principal deles a
ideia de que as posições políticas podem ser separadas analiticamente em três
grandes eixos de diferenciação: um político-institucional (democracia x
autoritarismo), um econômico (estatismo x privatismo) e um moral (progressismo x
conservadorismo). Como indiquei na revisão acima, o segundo eixo é o que vem
sendo tratado em grande parte da literatura como “velha cultura política”, e o terceiro
como “nova cultura política”, ao passo que o primeiro não costuma ser tratado como
um domínio dos posicionamentos políticos analiticamente autônomo. Tentarei
evidenciar brevemente, abaixo, os pressupostos teóricos que estão por trás da
separação analítica que proponho.

2.3.1 Instituições políticas

Um dos conjuntos de problemas fundamentais para se entender os


posicionamentos políticos dos cidadãos diz respeito à forma como percebem e se
relacionam com as instituições políticas da democracia moderna. A adesão à
109

democracia é um dos temas fundantes dos estudos sobre comportamento político,


notadamente tematizada na obra de Gabriel Almond e Sidney Verba The Civic
Culture (1989 [1963]), focada em entender as condições de existência e estabilidade
da democracia a partir dos valores e das características cognitivas e emocionais dos
cidadãos.
Como destaca José Álvaro Moisés (2013, p. 42) em sua revisão sobre o tema, a
definição acadêmica básica de democracia é baseada nos procedimentos e
mecanismos competitivos de escolha de governos por meio de eleições. Com base
tanto na abordagem minimalista de Schumpeter (1950), quanto na procedimentalista
de Dahl (1971), diferentes teorias definiram a democracia representativa com base na
"competição, participação e contestação pacífica do poder", o que envolveria como
condições mínimas:

1) direito dos cidadãos escolherem governos por meio de eleições com a


participação de todos os membros adultos da comunidade política; 2)
eleições regulares, livres, competitivas, abertas e significativas; 3) garantia de
direitos de expressão, reunião e organização, em especial, de partidos
políticos para competir pelo poder; e 4) acesso a fontes alternativas de
informação sobre a ação de governos e a política em geral (Moisés, 2013, p.
42).

No mesmo sentido, Rachel Meneghello (2013) aponta que as instituições


representativas são o cânone da legitimidade do regime democrático, na medida em
que são elas que, de forma indireta, investem o povo de autoridade. Por isso, o grau
de confiança nas eleições, no poder legislativo e nos partidos políticos são indicadores
fundamentais de adesão à democracia representativa.
Assim, do ponto de vista da percepção e relação com as instituições políticas, o
objetivo das questões que construí era captar posições num eixo que opõe
democracia a autoritarismo, entendendo como democracia a adesão às instituições
políticas fundamentais para o funcionamento da democracia representativa (eleições,
partidos políticos, Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal) e como
autoritarismo a baixa adesão a essas instituições, ou, mais fortemente, o apoio a
propostas políticas antidemocráticas, autocráticas e autoritárias. Por isso, as questões
19 a 22 do Questionário versavam sobre o nível de satisfação com o funcionamento da
democracia no Brasil, a percepção a respeito da influência do voto sobre o que
acontece no Brasil, a abertura para atitudes autocráticas por parte do presidente
(desrespeitar a Constituição, manter a ordem com uso da força, controlar a mídia,
110

fechar o Congresso, fechar o STF) e apoio a uma intervenção militar. Para captar os
diferentes sentidos dados pelos entrevistados ao termo "democracia", a questão 54 do
Roteiro de entrevistas perguntava "O que significa democracia para você e por que
você declarou este nível de satisfação?".

2.3.2 Economia

Um segundo bloco de questões fundamental para entender as posições


políticas diz respeito às concepções a respeito da economia, em particular da gestão
política da economia e, mais especificamente, (1) a concepção a respeito dos
determinantes e das consequências da desigualdade econômica e (2) a proporção
desejada de presença do Estado e do mercado na gestão dos recursos e serviços
públicos.
Aqui, as posições se organizam em sua proximidade ou afastamento em
relação ao liberalismo econômico. O pressuposto fundamental do liberalismo
econômico é o de que o mercado é o melhor alocador de recursos, pois é livre e
impessoal, e portanto instituição ideal para organizar a distribuição de recursos em
sociedades complexas marcadas pela divisão do trabalho (Olin Wright, 1994). Em sua
versão clássica, a base do liberalismo era o princípio do laissez-faire: oposição radical
a intervenções do Estado que atrapalham a liberdade e a tendência natural de
autorregulação dos mercados, dos contratos e do sistema de preços. Em sua versão
neoliberal, permanece a concepção de que o mercado é o melhor alocador de
recursos, mas não existe a concepção de que a ordem competitiva é natural, mas sim
a de que deve construída, e que nesse processo de construção o Estado não deve ser
negado, mas sim mobilizado para estimular em todas as esferas da sociedade a
disposição para a concorrência generalizada (Dardot; Laval, 2016).
Desta forma, a concepção liberal (e a neoliberal) atribui ao mercado o papel de
legitimação e justificação da desigualdade econômica, explicada por meio da
ideologia da meritocracia: na medida em que o mercado (desde que funcionando da
maneira mais livre possível) é um alocador neutro de recursos, a desigualdade
econômica é explicada fundamentalmente com base em diferenças de dom,
desempenho e esforço entre as pessoas. Assim, o liberalismo econômico e a ideologia
meritocrática não se comprometem com uma sociedade livre de desigualdades, mas
com uma em que as desigualdades refletirão o mérito das pessoas, o que faz com que
111

a responsabilidade por sua condição econômica seja jogada em grande medida para
os indivíduos (Saes, 2007; Sandel, 2020).
Em oposição à concepção liberal e meritocrática a respeito dos determinantes
da desigualdade estão as concepções que Erik Olin Wright (1994) chama de
"exploratórias". Nessas, a desigualdade é explicada pela parte dos esforços de um
grupo apropriada por outro grupo, o que constitui sua definição de "exploração".
Mais que isso, um grupo precisa ser despossuído de bem-estar para se sujeitar à
exploração do outro grupo. E não apenas isso, mas os grupos dominantes,
exploradores, produzem ideias que justificam e ocultam a exploração. Aqui, portanto,
a explicação da desigualdade deve ser buscada no nível estrutural da organização
social – no limite, no modo de produção capitalista. Por isso, na medida em que o
mercado não é uma instituição neutra na alocação de recursos, mas sim uma que
legitima a exploração entre grupos, não se pode atribuir a ele a responsabilidade pelo
combate às desigualdades, que deve então ficar a cargo do Estado. Deste lado,
portanto, em oposição ao liberalismo privatista, se encontra a defesa do oferecimento
de serviços de bem-estar social pelo Estado gratuitamente para toda a população.
Tendo em vista essa forma de entender os debates sobre economia e
desigualdade econômica, as questões que construí buscavam captar posições num
eixo que opõe estatismo a privatismo (ou liberalismo econômico), bem como a
adesão à ideologia meritocrática. As questões 51 a 56 do Questionário versavam sobre
a avaliação dos entrevistados a respeito da situação econômica atual do Brasil, sobre
sua percepção a respeita da distribuição de renda no Brasil e sobre os determinantes
da desigualdade, sobre a importância do combate a desigualdades e sobre a abertura
para intervenção do Estado na economia. Não havia no Roteiro de entrevistas
nenhuma questão específica sobre economia.

2.3.3 Moral

O terceiro bloco de questões fundamental para entender os posicionamentos


políticos é o das questões morais e valorativas. A oposição entre posições morais
conservadoras e progressistas pode ser lida a partir de uma contraposição entre
adesão e rejeição ao projeto moderno baseado no princípio de que todos os cidadãos
são iguais. Diferentes vertentes do conservadorismo mais clássico (que pode ser
encontrado em autores como Burke [1999 {1790}] e Fitzhug [1972 {1854}]) se opõem
112

ao princípio moderno da igualdade entre os indivíduos – vista como abstração


artificial que desconsidera as determinações individuais que caracterizam a própria
"natureza humana" – a partir do entendimento de que existe uma desigualdade
natural que deve ser correspondida por uma desigualdade jurídica, e que, assim, ao se
conceder o mesmo estatuto jurídico para sujeitos desiguais, estará se concedendo
também poder de decisão a um grande grupo de pessoas pouco qualificadas (uma das
bases da crítica conservadora à democracia). Numa versão neoconservadora (que
pode ser encontrada em autores como Irving Kristol [1995], William Buckley Jr.
[2000] e Russell Kirk [2014]), há uma reação direta ao que entendem como ameaça
ao Ocidente pelos comunistas/multiculturalistas/políticas identitárias/politicamente
correto, identificados a partir das lutas contraculturais dos anos 1960. Na leitura
desses autores neoconservadores, o conflito central é para combater grupos políticos
que representam uma ameaça aos valores baseados na família, tradição, religião e
forte hierarquia social, representados por movimentos sociais como os feministas,
negros e LGBTQIAP+.
É com o objetivo de analisar um confronto político baseado nessa leitura que
se organizam os estudos sobre guerras culturais, por exemplo. Para James Hunter
(2022), o conflito político central que pode ser identificado nos Estados Unidos a
partir dos anos 1960 é baseado na moral, nos valores, nas visões de mundo: de um
lado, os tradicionalistas ou ortodoxos, que entendem que os alicerces de ordenação
da sociedade herdados do passado são os melhores guias para o presente, e, de outro,
os progressistas, que ambicionam a criação de um mundo emancipatório, inclusivo e
tolerante, mas que encontram um empecilho nas instituições legadas do passado.
De forma análoga, na linha de estudos sobre comportamento político a
oposição entre conservadorismo e progressismo foi marcada pela já antecipada tese
da modernização, de Ronald Inglehart (1990). A ideia é que o processo de
modernização (industrialização, urbanização, complexificação da estrutura
ocupacional, elevação da qualidade do capital humano, entrada massiva de mulheres
no mercado de trabalho) seria acompanhado de uma alteração no sistema de valores
e atitudes: de um tradicional e mais conservador em que se prioriza a sobrevivência,
religião como código de normas regulador das relações sociais, respeito à autoridade
e papel central do homem, para um moderno e mais progressista que seria mais
secular, racional, igualitário e preocupado com a auto-expressão (defesa do aborto,
direitos da população LGBTQIAP+ e proteção do meio ambiente).
113

Para captar as posições num eixo que opõe conservadorismo a progressismo


criei diferentes blocos de perguntas no Questionário (vão da questão 30 a 50). Os
blocos cobrem perguntas que versam sobre temas a respeito dos quais oposições
entre visões modernas e tradicionais vêm se mostrando particularmente candentes:
diversidade sexual (direitos e visibilidade da população LGBTQIAP+), religião
(adesão a medidas laicas e visão de mundo secular), hierarquias sociais
(internamente a família, posições profissionais e posições de status), família (respeito
aos pais e valores para a criação de filhos), gênero (desigualdades de gênero, visão
tradicional sobre homens e mulheres, atuação de movimentos feministas) e relações
raciais (desigualdade racial, opiniões racistas, adesão a cotas, atuação de movimentos
sociais de pessoas negras). No Roteiro de entrevistas, coloquei duas perguntas para
tentar me aprofundar em respostas do bloco de questões sobre moral do
Questionário, uma sobre tipos de pessoas que os entrevistados não gostariam de ter
como vizinhos72 e uma sobre os valores que consideram particularmente importantes
de serem transmitidos para os filhos73.

2.3.4 Outras questões

Além desses três grandes eixos de construção dos posicionamentos políticos,


outros blocos do Questionário buscavam captar também percepções dos
entrevistados a respeito do Brasil (perguntando quais eles consideram os maiores
problemas que o Brasil enfrenta atualmente), sua participação política (em
organizações/associações e em atividades de protesto e manifestação), sobre a forma
como se informam sobre assuntos políticos, sobre posições punitivistas (prisão
perpétua, pena de morte, acesso a armas de fogo, prisão de menores de 18 anos,
participação do exército na segurança pública), nacionalistas e sobre alguns outros
temas polêmicos do debate público sobre política no Brasil (liberdade de expressão,
direitos humanos e ocupações de terras). Essas outras questões foram retiradas
parcialmente dos questionários das outras pesquisas revisados para a construção de
meus instrumentos, mas são também parcialmente informadas por impressões

72
Questão 36: Na lista abaixo há vários tipos de pessoas. Marque quais delas você NÃO gostaria de ter como
vizinhos. Se for o caso, não precisa marcar nenhum.
73
Questão 41: Aqui está uma lista de qualidades que se pode estimular e ensinar aos filhos em casa. Quais
delas você considera especialmente importantes? Escolha no máximo três.
114

derivadas da leitura da bibliografia e da observação mais ou menos sistemática do


noticiário e do debate político imediato.
Já no Roteiro de entrevistas, para além das questões que buscavam captar o
significado atribuído pelos entrevistados a termos do debate político presentes no
Questionário (como democracia, direita e esquerda), boa parte dele era dedicada a
produzir informações sobre dimensões importantes do comportamento político que
seriam mais trabalhosas de serem produzidas por meio de um instrumento marcado
pelas opções fechadas como é o caso do questionário, como a formação de suas
posições políticas, sua socialização política e suas redes de comunicação política.

2.3.5 Esquerda e direita

Havia também uma pergunta no Questionário sobre onde os entrevistados se


autoposicionam no espectro político que opõe esquerda e direita, numa escala que ia
de 0 a 1074. No entanto, em minha concepção, não se pode confundir o
autoposicionamento político (entendido subjetivamente pelos entrevistados) com o
posicionamento político (construído objetivamente pelo pesquisador a partir de
diferentes variáveis). Por mais que eu também controle as concepções de esquerda e
direita a partir das falas nas entrevistas75, a questão sobre autoposicionamento
político serve para entender onde os entrevistados acreditam que estão politicamente
em relação aos outros que veem ao seu redor, bem como para ter uma primeira
aproximação do que entendem como "esquerda" e "direita", mas a posição objetiva
mais a esquerda ou mais a direita deve ser compreendida em primeiro lugar com base
nos posicionamentos nos diferentes eixos de diferenciação previamente
apresentados.
Aqui entra o problema da definição teórica mais adequada de "esquerda" e
"direita". Sintetizando um pouco o debate, Peter Mair (2007) destaca que a escala é
uma constante nas análises políticas e na organização das opiniões públicas desde seu

74
Questão 28: Na política as pessoas falam muito de esquerda e de direita. Gostaria que você usasse um
número de zero (0) a dez (10) para dizer se você se considera de esquerda ou de direita. Zero significa que é de
esquerda e dez que é de direita, sendo que o cinco (5) significa que é de centro.
75
Questão 48 do Roteiro de entrevistas: No questionário tinha também uma escala de posicionamentos
políticos, na qual o 0 representava o máximo da esquerda e o 10 representava o máximo da direita. Lá você
marcou que se considera na posição [inserir respostas do questionário]. O que significa ser de [inserir respostas
do questionário] para você e por que considera que está nesta posição? / Questão 49: E por outro lado, o que
significa ser de [inserir respostas do questionário] para você?
115

surgimento durante a Revolução Francesa, mas que recebeu significados diferentes


de diferentes intérpretes. Em Anthony Downs (1999), o espectro esquerda-direita é
reduzido ao quanto de intervenção do governo na economia se julga aceitável. A base
de separação seria, portanto, o tamanho do controle do governo sobre a economia. Já
para autores como Martin Lipset (1959) e Norberto Bobbio (1995), a organização da
separação entre direita e esquerda se daria centralmente em torno da defesa da
igualdade: a esquerda buscaria maior igualdade e a direita buscaria (ou estaria
disposta a aceitar) maior grau de desigualdade. Pensar a escala em termos do conflito
de classe é outra forma proeminente. A esquerda seria associada a programas,
ideologias e valores políticos de distintos grupos vinculados ao socialismo ou ao
comunismo. Aqui se torna mais difícil definir a direita, se ela for pensada como tudo
que não é esquerda, pois o conjunto de posições é demasiado variado; daí alguns
teóricos defenderem a pertinência de se identificar uma posição de centro. Na maior
parte dos casos, no entanto, esquerda e direita foram termos usados para se referir a
diferentes posições sobre economia e políticas de Bem-Estar Social, isso é,
divergências sobre o quanto o governo deve regular a economia e o quanto deve haver
de abertura para o livre mercado, liberdade individual e ortodoxia econômica. Outras
questões que surgem e passam a ser enquadradas no espectro esquerda-direita
costumam ser secundárias a esta divisão com base no conflito de classe.
Mair (2007) destaca que na Europa a capacidade das pessoas de se localizarem
no espectro esquerda-direita foi alta ao longo do século XX, mas a pertinência da
escala varia quando se coloca diferentes países em comparação. Há indícios de que a
capacidade da população de se localizar na escala guarda relação com a experiência
do país em competições políticas democráticas (isso é, varia de acordo com a cultura
política). Ainda assim, cabe notar que tanto na Europa quanto fora dela as pessoas
atribuem diferentes sentidos para a oposição esquerda-direita: posições ideológicas,
diferentes partidos, diferentes grupos sociais, posições morais. Em pesquisas
empíricas, muitas pessoas não sabiam o significado dos termos, e outras ainda
invertiam seus sentidos.
No caso brasileiro, Rafael Madeira e Gabriela Tarouco (2011), tratando em
particular da esfera dos partidos e dos políticos profissionais, entendem que após o
final do regime militar o critério fundamental para definição de esquerda e direita
estava ligado centralmente à proximidade dos partidos e grupos políticos ao antigo
Regime Militar, baseando-se portanto num critério político-institucional. No entanto,
116

a partir dos anos 1990, tendo como contexto a agenda econômica neoliberal
(privatização e desregulamentação da economia), o critério central para a definição
de esquerda e direita no Brasil passaria a ser centrado na economia, com a esquerda e
a direita sendo organizadas na oposição ou adesão às reformas privatistas na
economia.
Contudo, analisando discursos e projetos de lei formulados por parlamentares
brasileiros entre 2010 e 2017, Marcos Quadros e Rafael Madeira (2018) notaram que
vem havendo um enquadramento positivo do rótulo "direita" associado à agenda
conservadora e mais enérgica na área da segurança pública. Assim, a direita estaria
superando a condição "envergonhada", que marcava este lado do espectro desde o
fim da ditadura militar, a partir de posições reativas ao avanço de pautas
progressistas que tiveram maior espaço durante os governos do PT, contrapondo-se a
elas com defesa da tradição, ordem e ceticismo diante da mudança. Trata-se,
portanto, de uma caracterização da direita baseada fundamentalmente em pautas
morais.
Com isso, uma definição teórica ampla de direita para o Brasil pode ser
construída com base na dimensão institucional (autocrática e autoritária), econômica
(privatista) ou moral (conservadora), como faz Sebastião Velasco e Cruz (2015) num
texto de preocupação mais histórica:

Quando falamos em direita no Brasil hoje pensamos imediatamente nos


nostálgicos do regime militar; nos defensores da redução da maioridade
penal e da fuga para frente repressiva como solução ao problema da
insegurança coletiva; nos intolerantes culturais e religiosos de todo tipo; nos
defensores das “soluções de mercado” para todos os problemas e todas as
áreas de políticas públicas; nos detratores dos programas de promoção
social, como o Bolsa Família; nos defensores radicais da austeridade fiscal,
da política de juros altos e da internacionalização sem peias da economia
brasileira; nos críticos da política externa, que denunciam os seus arroubos
autonomistas e defendem, em seu lugar, o retorno a uma política de
subordinação aos Estados Unidos; por fim, ao conjunto dos inconformados
com o funcionamento dos mecanismos de escolha democrática, que nunca
chegaram a aceitar a vitória, no pleito de 2014, da presidenta Dilma (Velasco
e Cruz, 2015, p. 14).

Claro que esses eixos de posições que eu descrevi se sobrepõem uns aos outros
de maneiras diferentes a depender do contexto, formando posições políticas mais
complexas do que as descrições sintéticas que fiz acima. Há, para citar apenas um
exemplo, um conjunto de pesquisa que vem falando sobre a união entre
conservadorismo e liberalismo, tanto ao longo do século XX quanto em suas
117

especificidades na contemporaneidade76. Ainda assim, por trás do meu entendimento


de que as posições políticas podem ser separadas a partir desses três eixos de
diferenciação, está o pressuposto de que existe uma autonomia relativa entre eles. Ou
seja, uma pessoa pode ser democrata, privatista e conservadora, outra pode ser
democrata, estatista e conservadora, outra pode ser democrata, estatista e
progressista, e assim por diante. Por isso, tenho um receio inicial com uma definição
de direita (e de esquerda) que passa necessariamente por todos os diferentes eixos
como a de Velasco e Cruz supracitada, que desconsidera tanto que a direita pode se
constituir historicamente com base em apenas um desses eixos, quanto que a
esquerda por vezes ocupou, ela também, posições diferentes nesses eixos. Isso não
significa deixar de lado a potência explicativa dos termos “esquerda” e “direita” – que
afinal é derivada não apenas de sua construção teórica enquanto conceitos, mas
sobretudo de sua capacidade de organização política, construção identitária e
mobilização prática no conflito político –, mas sim de buscar uma construção mais
minuciosa das posições políticas do que uma que reduza o conflito simplesmente a
dois lados estanques.
Expostos meus pressupostos, passo para a análise das posições políticas dos
meus entrevistados.

2.4 Posições políticas dos entrevistados

Primeiro, apresentarei, nesta seção, as respostas dos entrevistados ao


Questionário aplicado online antes da realização das entrevistas. Ele foi construído e
organizado segundo os pressupostos supracitados e será por mim analisado pensando
também na autonomia relativa entre as dimensões econômica, político-institucional e
moral. A análise deixa claro, no entanto, que o padrão mais comum entre os
representantes da fração cultural das classes médias paulistanas que entrevistei é um
que combina estatismo na economia com democratismo na dimensão político-
institucional e progressismo na dimensão moral. Ou seja, pelos diferentes eixos a
partir dos quais a esquerda política já foi definida e se autodefiniu no Brasil e alhures,
meus entrevistados são objetivamente de esquerda.

76
Cooper (2017), Rocha (2018), Brown (2019), Netto; Cavalcante; Chaguri (2019).
118

Note-se, de partida, que todos os entrevistados se consideram politicamente de


esquerda. A única exceção é Marcio*, que se posicionou no centro exato. Na pergunta
do Questionário sobre autoposicionamento no espectro político – como dito, uma
escala numérica de 0 a 10 em que o 0 era o extremo da esquerda e o 10 o extremo da
direita –, nenhum deles se marcou para além da posição 5 77. A posição mais marcada
por eles foi a 2, escolhida por 12 entrevistados.

Quadro 9. Autoposicionamento esquerda-direita

Autoposicionamento
n Entrevistada(as)
esquerda-direita
Alessandra,
0 2
Rita
Debora,
Guilherme,
Jorge*,
1 6
Manuel,
Roberto,
Samuel
Adriano,
Alex,
Daiane,
Elaine,
Flávio,
Isabel,
2 12
Lucia*,
Marlene,
Rafaela,
Ronaldo,
Rosângela
Vinicius,
Luciano,
3 3 Regina,
Sueli
Mário,
4 2
Vanessa
5 1 Marcio*
6 0
7 0
8 0
9 0
10 0

Como discutirei na próxima seção, cabe notar que há sensíveis variações no


que os entrevistados entendem como “esquerda” e “direita” e nos adjetivos que usam

77
Na verdade, Leandro marcou no Questionário a posição 9, mas esclareceu na entrevista que foi por engano,
e que na verdade se vê entre as posições 3 e 4. Por ser um engano, não o incluí no quadro.
119

para descrever sua posição política: a maior parte define subjetivamente a esquerda
prioritariamente com base na dimensão econômica, e só posteriormente em termos
morais e político-institucionais. Ainda assim, a análise das respostas deles para o
conjunto de questões sobre instituições políticas, economia e moral no Questionário
aplicado antes da entrevista mostra que, a despeito das variações de classificação
subjetiva, eles estão mais próximos das definições teóricas de estatismo,
progressismo e democracia discutidas na seção anterior. Desta forma, tendo em vista
que os sentidos prioritários de definição da esquerda na cultura política brasileira
passam pelas três dimensões (Madeira; Tarouco, 2011; Quadros; Madeira, 2018), é
possível afirmar que os entrevistados são, objetivamente, de esquerda.
A dimensão econômica é a que recebe maior destaque nas falas dos
entrevistados. A preocupação com a desigualdade econômica que caracteriza a
sociedade brasileira é um tema que transpassa as falas de quase todos os
entrevistados, aparecendo espontaneamente quando estão discutindo suas
preocupações políticas, o que deixa transparecer a centralidade do conflito econômico
na organização de seus posicionamentos. Alguns relacionam a desigualdade
econômica propriamente ao capitalismo e à luta de classes (Daiane, Débora,
Guilherme, Manuel), outros, de maneira mais ampla, referem-se apenas a sua
convicção de que há um conjunto de condições fundamentais que precisam ser
garantidas para que todos possam viver uma vida digna (Flávio, Isabel, Mário,
Rafaela, Regina, Rita, Roberto, Rosângela).

Débora: Eu acompanhei esse crescimento da pobreza na minha cara. Coisas


que a gente tinha deixado de ver, a gente voltou a ver nos últimos anos.
Pessoas morando na rua, pessoas passando fome. É muito brutal. Então, eu
acho que não tem problema maior do que a desigualdade nesse país. Eu acho
que passa por muitas, muitas, muitas questões, mas ela, em qualquer crise
que se apresenta, em qualquer governo bosta que se apresenta, é quando
esse fosso se abre de novo como se nada tivesse acontecido. É uma coisa bem
desesperadora.

Fica claro, como seria de se supor, que há diferenças no conteúdo das falas e
na forma como os entrevistados entendem o problema da desigualdade e sua possível
solução, mas pela predominância do tema como preocupação fundamental é possível
perceber que a desigualdade econômica é um posicionamento primordial a unificar
politicamente o conjunto dos entrevistados.
120

Algumas das variações na forma como veem o problema da desigualdade


econômica e os caminhos para sua solução aparecem no bloco de perguntas do
Questionário dedicado aos posicionamentos sobre economia. A maior parte deles (21
marcações) acha que o Brasil se encontra atualmente numa situação econômica ruim,
que a distribuição de renda no Brasil é muito injusta (21 marcações) e que a pobreza é
um problema social, não individual.

Quadro 10. Avaliação sobre a situação econômica do Brasil


Como você avalia a
situação econômica
n
do Brasil
atualmente?

Ótima 0

Boa 0

Regular 2 (Luciano, Vinicius)

Ruim 21
4 (Alessandra,
Péssima Adriano, Roberto,
Jorge*)

Péssima 0

Quadro 11. Opinião sobre distribuição de renda no Brasil


Como você acha que
é a distribuição de n
renda no Brasil?
Muito justa 0

Justa 0

Nem justa nem injusta 0

6 (Alessandra, Isabel,
Injusta Manuel, Leandro,
Vanessa, Marcio*)

Muito injusta 21

Não sei 0
121

Quadro 12. Opinião a respeito da responsabilidade pela pobreza


Pensando na questão da pobreza, algumas
pessoas acreditam que o indivíduo é
totalmente responsável pela sua própria
condição financeira, outras acreditam que se
trata de uma questão totalmente social. n
Marque na escala, de zero (0) a dez (10), sua
opinião sobre o assunto, sendo que o 0
significa a primeira opinião e o 10 significa a
segunda opinião:
0 0

1 0

2 0

3 0

4 0

5 1

6 0

7 3

8 8

9 8

10 7

Com base numa série de percepções e propostas para a gestão da economia fica
clara também a inclinação estatista dos entrevistados, opondo-se a propostas que
inclinem a política econômica em direção à iniciativa privada. As questões que
revelaram maior contraste de posições aqui foram a que perguntava se eles acreditam
que é preciso limitar a diferença salarial de pessoas que trabalham em uma mesma
empresa (13 concordaram, 7 discordaram e 6 não souberam responder) e a que
afirmava que só se pode ficar rico à custa do empobrecimento dos outros (13
concordaram com a afirmação, 12 discordaram e 2 não souberam responder).

Quadro 13. Opiniões sobre economia

Marque se você concorda ou discorda


Concordo Discordo Não sei
das seguintes afirmações

As leis e os impostos do governo impedem as 2 (Rita,


24 1 (Isabel)
empresas de terem lucros Marcio*)
É preciso limitar a diferença salarial de
pessoas que trabalham em uma mesma 13 7 6
empresa
122

3 (Mário,
É preciso dar mais liberdade para as
1 (Leandro) 23 Guilherme,
empresas demitirem os empregados
Marlene)
Em um país como o Brasil, é obrigação do
2 (Marcio*,
governo diminuir as diferenças entre os 25 0
Lucia*)
muito ricos e os muito pobres
É justificável que o governo ofereça menos
serviços públicos, como saúde e educação, 0 27 0
para reduzir os impostos
Se o país for rico, não importa que haja
0 27 0
muitas desigualdades econômicas e sociais
Quanto menos o governo interferir na 1
1 (Marcio*) 25
economia, melhor para o país (Marlene)
A renda deve ser distribuída de forma mais 2 (Manuel,
25 0
igualitária entre as pessoas Regina)
No longo prazo, quem trabalha muito 2 (Rosângela,
24 1 (Rafaela)
sempre vai ter uma vida melhor Lucia*)
Só se pode ficar rico à custa do 2 (Sueli*,
13 12
empobrecimento dos outros Isabel)
2 (Vanessa,
É preciso taxar grandes fortunas no Brasil 24 1 (Daiane)
Marcio*)

Ainda sobre a relação entre Estado e empresas privadas, a questão que listava
uma série de atividades e pedia para que os entrevistados optassem entre sua
realização pelo governo ou por empresas privadas revelou, novamente, a inclinação
estatista dos componentes da amostra. Há consenso pleno a respeito da
responsabilidade do governo nas áreas da saúde, educação básica e superior, água
potável e saneamento básico. A área com mais defensores da atribuição privada é a
do financiamento dos partidos políticos, mas mesmo aqui tal posicionamento é
minoritário (7 entrevistados, contra 14 que entendem que a atribuição deve ser do
governo).

Quadro 14. Opiniões sobre atribuição pública ou privada de atividades fundamentais


Da seguinte lista de atividades,
quais você acha que deveriam ser
responsabilidade do governo e Empresas
Governo Não sei
quais deveriam ser privadas
responsabilidade das empresas
privadas?
Saúde 27 0 0
5 (Manuel,
5 (Luciano,
Rosângela,
Marlene,
Combustível 17 Ronaldo,
Vinicius, Regina,
Leandro,
Daiane)
Marcio*)
Educação básica 27 0 0
Educação superior 27 0 0
123

1 (Leandro,
Eletricidade 24 1 (Regina)
Rosângela)
Segurança 26 1 (Ronaldo) 0
4 (Mário, Regina,
Financiamento dos partidos políticos 14 7
Rafaela, Marcio*)
Água potável 27 0 0
Saneamento básico 27 0 0
Aposentadorias / Previdência social 25 1 (Ronaldo) 1 (Regina)

A oposição ao Estado mínimo e a ideia de que o combate à desigualdade


econômica e os serviços básicos devem ser responsabilidade do Estado foi reafirmada
por diversos deles nas entrevistas. Por mais que tenham concepções diferentes a
respeito de o quanto a presença do Estado sobre a economia deve se estender
(Guilherme e Rafaela, por exemplo, afirmaram que, havendo um nível básico de
igualdade de condições de vida assegurado pelo Estado, não é prejudicial que exista
espaço para a competitividade de mercado), é comum entre eles a ideia de que o
Estado é a instituição mais adequada para combater o problema da desigualdade
econômica e, com isso, para garantir uma vida digna para todos, muito mais que o
mercado.

Alex: Eu sou uma pessoa que acredita e batalha pela intervenção do Estado
nas questões econômicas, nas questões de redistribuição de renda, de
garantir direitos, serviços de qualidade. Eu não acho que as coisas se
resolvem pelo livre mercado, eu não acho que a gente pode confiar que os
empresários e a classe privada vai fazer o bem. Eu não acho que uma pessoa
só porque gere uma empresa ela deve gerir uma cidade, porque uma cidade
não é uma empresa.

O problema do racismo e da desigualdade racial no Brasil é outro que unifica o


grupo em suas posições políticas. As respostas ao bloco de perguntas sobre o tema no
Questionário são bastante homogêneas e inclinadas para o antirracismo e para a
atribuição ao Estado da responsabilidade pela promoção da igualdade racial.
Também é amplo o apoio a atuação dos movimentos sociais da população negra.

Quadro 15. Opiniões racistas


Marque se você concorda ou
discorda das seguintes Concordo Discordo Não sei
afirmações
As coisas que as pessoas negras
sabem fazer melhor são a música e 0 27 0
os esportes
Se tivessem as mesmas 27 0 0
oportunidades, as pessoas negras
124

teriam sucesso em qualquer


profissão
De maneira geral, as pessoas
negras são tratadas muito pior do 27 0 0
que pessoas brancas no Brasil

Quadro 16. Opinião sobre responsabilidade governamental por políticas de promoção racial

Você acha que o governo tem a obrigação


de criar políticas públicas direcionadas à n
melhoria das condições de vida da
população negra?
Sim 25
Não 1 (Manuel)
Não sei 1 (Luciano)

Quadro 17. Opinião sobre cotas raciais em universidades públicas

Você concorda ou discorda que as


universidades públicas tenham cotas
n
raciais, ou seja, que elas reservem vagas
para pessoas negras?
Concordo 25
2 (Manuel,
Discordo
Ronaldo)
Não sei 0

Quadro 18. Opinião sobre movimentos sociais de pessoas negras

O que você acha da atuação dos


n
movimentos sociais das pessoas negras?
Os movimentos sociais de pessoas negras são
22
bons para pessoas negras e não negras
Os movimentos sociais de pessoas negras são
1 (Regina)
bons apenas para as pessoas negras
Os movimentos sociais das pessoas negras são 2 (Guilherme,
bons apenas para seus próprios membros Manuel)
2 (Isabel,
Não sei
Marcio*)

Em suas falas, diversos entrevistados destacaram o problema histórico do


racismo no Brasil e o relacionaram também ao problema da desigualdade econômica.
Aqui, foi comum o entendimento de que a desigualdade racial se manifesta até o
presente por conta da forma negligente como foi realizada a abolição da escravidão
no Brasil, e que isso faz com que o problema fundamental no entendimento dos
membros da fração, a desigualdade econômica, seja ainda mais acentuado entre a
população negra.
125

Alessandra: Racismo é algo que faz parte por conta do racismo estrutural,
que está profundamente ligado à desigualdade. A desigualdade social tem
cor no Brasil, ela é preta, e eu tenho muitos alunos que são pretos, pardos, e
eu temo muito por eles, pela questão da polícia. Eu sei como se arruma
desculpa pra matar pobre preto no Brasil.

Gustavo: Certo. Você citou o racismo estrutural, profundamente ligado à


desigualdade. O que isso significa, um pouco mais especificamente?

Alessandra: Que a desigualdade social vem dessa questão da escravidão sem


a restauração financeira que precisava. Então, os escravos foram libertos, as
pessoas escravizadas foram libertas, e jogadas ao vento. Então isso vem se
arrastando desde o... como diz uma amiga minha, um eterno 14 de maio de
1888. A gente ainda vive num dia que nunca acabou.

A fala de Isabel, que também marcou o racismo e a desigualdade racial no


Questionário como um dos principais problemas que o Brasil enfrenta hoje, é
exemplo de uma percepção a respeito do tema menos baseada numa leitura histórica
e mais em sua experiência cotidiana, em que pessoas negras são exceção.

Isabel: Eu não tenho muita clareza, na verdade, sobre a relação entre classe e
raça. Eu sei que tem algo bem específico da raça, que existe independente da
classe. Mas exatamente o que é essa relação eu não saberia te dizer. Mas...
fato é que eu tenho pouquíssimos amigos negros. Eu tenho uma grande
amiga negra, que é do meu trabalho, e eu vejo tudo que ela passa, em ser
uma mulher negra e intelectual, sabe? E... sofrer várias questões, sabe?
Então... pra mim tá claro que eu frequento ambientes brancos, na minha
família só tem branco e ninguém se casou com um negro. Então, tem algo aí
de muito errado, de uma segregação racial bem forte no Brasil. Fora as
questões mais objetivas, de encarceramento negro, da violência policial, da
morte dos homens negros... Então, com certeza esse é um assunto bem
importante.

Do ponto de vista das instituições democráticas, as respostas mostram a


predominância do apoio às instituições fundamentais da democracia representativa e
a complementar crítica de propostas institucionais autoritárias e autocráticas. Os
membros da amostra se mostram majoritariamente insatisfeitos com o regime
democrático no Brasil (7 estão satisfeito, 4 nem satisfeitos nem insatisfeitos, 16 pouco
ou nada satisfeitos), mas há uma crença compartilhada na influencia do voto sobre o
futuro do Brasil (variando apenas o nível dessa influência), o que ajuda a entender a
disposição dos entrevistados para votarem mesmo se o voto não fosse obrigatório (24
afirmaram que o fariam).
126

Quadro 19. Satisfação com o funcionamento da democracia no Brasil


O quão satisfeita(o) você está com o
funcionamento da democracia no
Brasil? n
Satisfeito 7
Nem satisfeito nem insatisfeito 4
Pouco satisfeito(a) 11
Nada satisfeito(a) 5
Não sei 0

Quadro 20. Opinião sobre importância do voto


Algumas pessoas dizem que o nosso
voto influencia muito no que
acontece no Brasil, outras dizem que
n
o nosso voto não influencia nada no
que acontece no Brasil. Com qual das
opiniões você está mais de acordo?
Nosso voto influencia muito no que
17
acontece no Brasil
Nosso voto influencia um pouco no que
10
acontece no Brasil
Nosso voto não influencia nada no que
0
acontece no Brasil
Não sei 0

Quadro 21. Disposição para votar em caso de voto facultativo


Você votaria caso o voto não
n
fosse obrigatório?
Sim 24
Não 0
3 (Alessandra,
Não sei Marlene,
Marcio*)

Na oposição entre atitudes democráticas e autocráticas, a proposta de que o


presidente possa manter a ordem com o uso da força, desde que exista autorização
constitucional, em momentos em que o Brasil está passando por um momento de
sérias dificuldades, foi a que mais dividiu a amostra (7 concordam, 16 discordam, 3
não souberam opinar). Nas demais atitudes, bem como na aceitação de uma possível
intervenção militar no Brasil, a inclinação da maior parte da amostra é claramente
democrática.
127

Quadro 22. Disposições autocráticas


Quando o Brasil está passando por um
momento de sérias dificuldades, você
Concordo Discordo Não sei
concorda ou não que o presidente
deveria:
3 (Adriano,
Desrespeitar a Constituição Guilherme, 24 0
Vinicius)
3
Manter ordem com o uso da força, desde que (Débora,
7 16
exista autorização constitucional Mário,
Vinicius)
4 (Débora,
1
Controlar a mídia Guilherme, Rita, 22
(Mário)
Vinicius)
Fechar o Congresso e acabar com partidos
0 27 0
políticos
Fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) 0 27 0

Quadro 23. Apoio a intervenção militar


Você acha que existem situações nas quais deveria
ocorrer uma intervenção militar no Brasil? Caso
n
acredite, marque abaixo em quais situações. Caso
não acredite, deixe em branco.
Quando o Brasil está passando por uma crise econômica 0
Quando a criminalidade está muito alta 1 (Vanessa)
Quando o desemprego está muito alto 0
Quando o Brasil está perdendo os valores tradicionais 0
Quando há muitos protestos sociais 0
Quando há muita corrupção 0

Nas entrevistas, a preocupação com a manutenção da democracia no Brasil


também foi destacada por parte dos entrevistados, sobretudo a partir da percepção de
que suas instituições sofreram ataques recentemente no Brasil. Flávio, por exemplo,
citou os ataques em Brasília ocorridos no dia 08 de janeiro de 2023.

Flavio: Eu fiquei um pouco confuso, pra ser sincero, no questionário, pra


responder se eu estava satisfeito ou não estava satisfeito; eu acho que tinha
até a opção "muito satisfeito", se não me engano. E eu só não marquei a
opção "muito satisfeito" porque a gente tá passando por um momento... eu
acho que eu respondi esse questionário num momento muito bom, inclusive
– muito bom pra responder ao questionário, não muito bom socialmente –,
porque foi logo após os ataques que a gente teve à sede dos três poderes
democráticos. Então, eu disse “satisfeito” porque estão atacando a
democracia. Mas eu respondi "satisfeito" porque, ao mesmo tempo, eu vi
esse 08 de janeiro como uma vitória da democracia. Foi um ataque muito
violento, foi um ataque sustentado pelas forças policiais, foi um ataque
sustentado pelo atual ex-presidente de República, que tem uma base muito
significativa e muito sólida de eleitores e de admiradores. Então, é um ataque
que tinha de tudo pra tragicamente se suceder, e não aconteceu. Então eu
128

respondi "satisfeito" porque a nossa democracia não tá vinculada a três


edifícios de concreto e vidro construídos.

Uma parte dos entrevistados (Alex, Debora, Guilherme, Ronaldo) usou a


defesa da democracia como um critério para traçar uma fronteira com o que
identificam como extrema-esquerda, que agregaria vertentes mais abertas a medidas
autoritárias e a defesa de ditaduras (Guilherme e Ronaldo, por exemplo, disseram
não compactuar com o que acontece na Nicarágua, Venezuela, em Cuba e na China).
Do outro lado, Alessandra – que, note-se, se colocou na posição 0 no espectro de
autoposicionamento político, e que na entrevista se declarou anarquista – foi a
entrevistada que fez críticas mais diretas a democracia representativa.

Alessandra: Eu acho que a democracia é uma invenção pra manter o Estado.


Então, uma coisa que o professor Acácio Augusto fala, que é um professor
anarquista da Unifesp, é que a democracia não está em crise: essa é a
democracia, esse é o funcionamento da democracia. Então, basicamente, eu
acho que esse conceito de democracia é uma farsa. Foi uma ideia que surgiu
numa ilha minúscula na Grécia e que foi transplantada como se fosse, como
se pudesse funcionar em sociedades muito mais complexas. Então é por isso
que eu não acredito em democracia. Mas mesmo dentro do que seria a
democracia, o que acontece, como dizem muitas pessoas que moram em
comunidades, ou os povos indígenas, "aqui a democracia nunca chegou”.

Alex e Isabel foram, por assim dizer, os pontos médios entre a defesa rigorosa
da democracia e a crítica a ela. Para ambos, trata-se de uma instituição na qual
precisamos acreditar – nas palavras de Isabel, "precisamos depositar nosso afeto" –,
pois a alternativa autoritária oferecida pela extrema-esquerda seria prejudicial.
Retorno a seguir a este tema quando estiver discutindo as definições de esquerda dos
entrevistados.
Também é possível notar a preocupação dos entrevistados com a participação
política por meio de manifestações civis: todos já assinaram pelo menos um abaixo-
assinado, 21 já participaram de manifestações ou protestos de rua, 19 já utilizaram a
internet ou mídias sociais para a manifestação política, e 15 já participaram de greves.
A participação em organizações e associações, no entanto, é pontual.

Quadro 24. Participação e realização de atividades políticas

Atividades políticas n
Assinar um abaixo-assinado (inclusive na internet) 27
Participar de manifestações ou protestos de rua 21
Utilizar a internet ou redes sociais para manifestação política 19
129

Participar de greve 15
Participar de ocupação de prédios públicos 4
Participar de bloqueio de estradas 0
Participar de ocupação de terras 0

Quadro 25. Participação em organizações e associações políticas

Participação em organizações e associações n


Organização/associação artística, cultural ou
8
educacional
3 (Isabel,
Sindicato Rita,
Rosângela)
2 (Rafaela,
Associação profissional
Vanessa)
Partido político 1 (Flávio)
Coletivo político 1 (Rita)
Organização/associação humanitária ou instituição
1 (Manuel)
de caridade
Organização/associação de consumidores 0
Grupo de autoajuda, grupo de ajuda mútua 0
Organização/associação esportiva ou recreativa 0

A maior parte das questões dos blocos destinados a explorar suas posições
morais mostrou orientações fortemente progressistas entre os membros da amostra.
As questões sobre religião, por exemplo, mostraram convergência para a união entre
laicismo e tolerância religiosa.

Quadro 26. Opiniões sobre religião


Marque se concorda ou discorda
Concordo Discordo Não sei
das afirmações a seguir.
Políticos que não creem em Deus não
0 27 0
servem para trabalhar no serviço público
Líderes religiosos não deveriam 2 3 (Débora,
influenciar o voto das pessoas nas 22 (Guilherme, Elaine,
eleições Ronaldo) Isabel)
Seria melhor para o Brasil se mais
1
pessoas muito religiosas estivessem no 0 26
(Guilherme)
serviço público
Toda vez que existe conflito entre religião
1 (Marlene) 26 0
e ciência, a religião sempre está certa
O respeito a todas as religiões deve ser 2 (Leandro e
25 0
ensinado nas escolas públicas Guilherme)
Há uma maior chance de pessoas serem
0 27 0
honestas se elas forem religiosas
130

As questões que tratam dos direitos e da representação da população


LGBTQIAP+ mostram, por sua vez, a forte inclinação da amostra para a defesa da
ampliação de seus direitos e de sua representação na esfera pública.

Quadro 27. Opiniões sobre população LGBT+ 1


Você aprova ou desaprova que
pessoas LGBT+ (lésbicas, gays,
Aprovo Desaprovo Não sei
bissexuais, transexuais e outras)
tenham direito a:
Se candidatar para cargos públicos 27 0 0
Se candidatar para cargos públicos 27 0 0
Ter filhos biológicos 25 1 (Jorge*) 1 (Ronaldo)
Ter filhos adotivos 27 0 0

Quadro 28. Opiniões sobre população LGBT+ 2

O que você acha sobre demonstrações


públicas de carinho entre pessoas n
LGBT+?
Eu defendo que possam fazer isso 22
4 (Luciano,
Manuel,
Não defendo, mas não me incomodo
Ronaldo,
Vanessa)
Deveriam manter sua vida íntima em ambientes
1 (Rita)
particulares
Não sei 0

Quadro 29. Opinião sobre ensino de respeito à diversidade sexual nas escolas

Você concorda ou discorda que as escolas


devem ensinar as crianças sobre respeito à n
diversidade de orientações sexuais?
Concordo 25
Discordo 0
2 (Luciano,
Não sei
Ronaldo)

Falando sobre o papel da família na organização social, apenas 7 entrevistados


(Guilherme, Luciano, Manuel, Mário, Rita, Roberto e Vanessa) acreditam que sempre
se deve amar e respeitar os pais sem se importar com suas qualidades e defeitos,
contra 17 que discordam da afirmação. Houve mais contraste na pergunta que
propunha o cenário em que uma filha ou filho de 18 anos quer viajar com as amigas
ou amigos com tudo pago: 6 entrevistados (Guilherme, Leandro, Lucia*, Manuel,
131

Roberto e Vanessa) acreditam que os pais devem decidir sobre a possibilidade da


viagem, mas 11 acreditam que a decisão cabe a/ao filha/filho.

Quadro 30. Opinião sobre respeito e amor aos pais

Com qual destas duas frases a seguir você


n
concorda mais?
7 (Guilherme,
Luciano,
Sempre se deve amar e respeitar os pais sem se
Manuel, Mário,
importar com suas qualidades e defeitos
Rita, Roberto,
Vanessa)
Não se deve ter obrigação de respeitar e amar os
pais quando eles por suas atitudes não tenham 17
merecido
3 (Alex, Isabel,
Não sei
Rafaela)

Quadro 31. Opinião sobre respeito à hierarquia familiar

Uma filha ou filho de 18 anos quer viajar


com as amigas ou amigos com tudo pago, n
o que os pais deveriam fazer?
Os pais deveriam decidir e dizer se a filha/filho
6
pode ou não viajar
Os pais deveriam deixar a filha/filho decidir por
11
si
Não sei 10

Duas outras questões procuravam mapear o senso dos entrevistados sobre


hierarquias sociais, e mostraram sua inclinação para a crítica de sua manutenção em
ambientes de trabalho e de sociabilidade: uma sobre a necessidade de diferenciação
dos pronomes de tratamento entre pessoas de diferentes posições hierárquicas
profissionais, outra sobre a diferenciação dos ambientes permitidos para circulação.

Quadro 32. Opinião sobre respeito à hierarquia ocupacional

Você acha que um funcionário deve poder


chamar seu patrão de “você” ou acha que n
deveria chama-lo sempre de “senhor”?
O funcionário deveria poder chamar o patrão de
25
“você”
O funcionário deveria chamar o patrão apenas
0
de “senhor”
2 (Rafaela e
Não sei
Marcio*)
132

Quadro 33. Opinião sobre respeito à hierarquia social

Você acha que os funcionários de um


prédio ou edifício deveriam ter o direito n
de utilizar o elevador social?
Sim, eles deveriam ter o direito de usar o
27
elevador social
Não, eles devem poder utilizar apenas o elevador
0
de serviços

Não sei 0

Apenas 3 entrevistados (Alex, Marlene e Rita) marcaram o machismo e a


desigualdade de gênero na questão sobre os maiores problemas que o Brasil enfrenta
hoje, mas o bloco de perguntas específico para o tema mostrou que se trata também
de uma preocupação compartilhada por outros membros da fração. No bloco de
afirmações sobre o tema, nota-se a oposição da maior parte dos membros da amostra
a concepções tradicionais sobre o papel de homens e mulheres na sociedade e o apoio
a medidas que visem reduzir desigualdades de gênero (como a reserva de vagas para
a candidatura de mulheres em eleições e a equidade salarial e do tempo das licenças
paternidade e maternidade), ainda que com dissensos pontuais. A maior divisão foi
na frase que afirmava que, em geral, as mulheres têm mais sensibilidade e compaixão
do que os homens: 14 concordaram e 11 discordaram.

Quadro 34. Opiniões sobre relações de gênero


Marque se você concorda ou discorda das
Concordo Discordo Não sei
seguintes afirmações
Uma mulher precisa ter filhos para se sentir
1 (Manuel) 26 0
realizada na vida
Um homem precisa ter filhos para se sentir
1 (Manuel) 26 0
realizado na vida
4 (Daiane,
Tanto o marido quanto a esposa devem Lucia*, 2 (Samuel,
21
contribuir para o orçamento da casa Flávio, Sueli*)
Roberto)
7 (Ronaldo,
Marcio*,
3 (Elaine,
A licença paternidade deve ter a mesma duração Adriano,
17 Samuel,
da licença maternidade Vinicius,
Manuel)
Luciano,
Rita, Lucia*)
A discriminação contra as mulheres não é mais
2 (Isabel, Rita) 25 0
um problema no Brasil
Em geral, as mulheres têm mais sensibilidade e 2 (Marcio*,
14 11
compaixão do que os homens Samuel)
Em geral os homens são mais racionais que as 5 (Manuel,
22 0
mulheres Roberto,
133

Elaine,
Ronaldo,
Lucia*)
É justo que um homem possa ganhar mais que
uma mulher, mesmo desempenhando as 0 27 0
mesmas funções
É justo que o Estado exija que os partidos 2
políticos reservem ao menos 30% das 24 (Guilherme, 1 (Debora)
candidaturas para as mulheres Rita)

Com pontuais exceções de Marlene e Rita, os entrevistados defendem a divisão


equânime dos trabalhos de cuidado com os filhos entre homens e mulheres, e quase
todos se mostraram favoráveis à permissão ao aborto (Mário e Rita apenas em caso
de estupro, Isabel não soube opinar, e entre os demais houve discordância sobre até
quantos meses o procedimento poderia ser realizado). A discordância foi mínima
também na questão sobre a atuação dos movimentos sociais feministas.

Quadro 35. Opinião sobre divisão dos trabalhos de cuidados com filhos

Em um casal de um homem e uma


mulher com filhos, quem você acha que Dividido
O homem A mulher
deve ter mais responsabilidade em cada igualmente
uma das seguintes atividades?
Dar banho/trocar fralda do filho recém-
0 0 27
nascido
Marcar consultas médicas e cuidar da saúde 0 1 (Rita) 26
Cuidar da alimentação e dar comida 1 (Marlene) 0 26
Escolher a escola 0 0 27
Ajudar a fazer lição de casa 1 (Marlene) 0 26

Quadro 36. Opiniões sobre aborto

Com qual das frases a seguir sobre o


n
aborto você concorda mais?
O aborto deve ser proibido em qualquer
0
situação
O aborto deve ser permitido se a mulher
2 (Mário, Rita)
ficar grávida por causa de estupro
O aborto deve ser permitido em qualquer
situação, desde que seja até o terceiro mês de 16
gestação
O aborto deve ser permitido em qualquer
8
situação e em qualquer mês de gestação
Não sei 1 (Isabel)

Quadro 37. Opinião sobre movimentos sociais feministas


O que você acha da atuação dos
n
movimentos sociais feministas?
134

Os movimentos feministas são bons para


20
homens e mulheres
Os movimentos feministas são bons apenas
1 (Leandro)
para as mulheres
Os movimentos feministas só são bons para
1 (Guilherme)
as próprias feministas
5 (Isabel, Marcio*,
Não sei Manuel, Vanessa,
Ronaldo)

Nas entrevistas, foi comum que os entrevistados afirmassem preocupação com


a expansão do conservadorismo de base religiosa e a preocupação com os direitos das
minorias sociais. Contudo, apareceram também alguns contrastes entre entrevistados
que destacaram a centralidade das pautas organizadas em torno dos direitos e da
visibilidade de minorias sociais em seus posicionamentos políticos e outros que
disseram que, apesar de também considerá-las importantes, acreditam que são
secundárias em relação à desigualdade econômica. Retorno a este tema adiante.
Havia ainda algumas outras questões sobre posições políticas diversas que
permitem ver a inclinação dos entrevistados à esquerda, ainda que com algumas
divergências importantes. A maior parte se mostrou favorável à prática da ocupação
de terras para pressionar o governo a fazer a reforma agrária, e foi majoritária
também a parte que se mostrou contrária à pena de morte, à interferência do exército
no combate à violência nas ruas das grandes cidades, à venda de armas de fogo para
qualquer pessoa e à prisão para menores de 18 anos de idade. Houve, no entanto,
uma divergência equilibrada na questão sobre prisão perpétua (12 favoráveis e 12
contrários).

Quadro 38. Posições políticas


Marque se concorda ou discorda das
Concordo Discordo Não sei
seguintes práticas
4 (Regina,
3 (Ronaldo,
Da ocupação de terras para pressionar o Lucia*,
20 Manuel,
governo a fazer a reforma agrária Luciano,
Marcio*)
Roberto)
3 (Rafaela,
Da prisão perpétua 12 12 Marlene*,
Elaine)
4 (Ronaldo,
Manuel,
Da pena de morte 23 0
Leandro,
Marcio*)
De o exército interferir no combate à 2 (Manuel,
24 1 (Isabel)
violência nas ruas das grandes cidades Rita)
Da venda de armas de fogo para qualquer 0 26 1 (Samuel)
135

pessoa
5 (Manuel,
Da prisão para menores de 18 anos de Rita, Ronaldo, 2 (Roberto,
20
idade Adriano, Rafaela)
Marcio*)

A questão que buscava medir nacionalismo (sobre o orgulho que sentem ao


ouvir o hino nacional) também mostrou se tratar de um sentimento incomum entre
os membros da fração. Eles se unem ainda na defesa da proteção de direitos humanos
e na defesa da proibição do direito de emissão pública de opiniões que firam direitos
de minorias (apenas Mário, Samuel, Ronaldo, Rosângela e Vanessa defenderam que
as pessoas tenham o direito de emitir qualquer tipo de opinião).

Quadro 39. Disposição nacionalista


O quão orgulhoso(a) de ser
brasileiro(a) você se sente quando n
escuta o hino nacional?
Orgulhoso 3
Pouco Orgulhoso 11
Nada orgulhoso 5
Não se importa 7
Não sei 1

Quadro 40. Opinião sobre defesa incondicional da liberdade de expressão


Você acha que as pessoas deveriam ter
o direito de emitir publicamente n
qualquer tipo de opinião?
Não, opiniões que firam direitos de minorias
18
devem ser proibidas
5 (Manuel,
Samuel,
Sim, as pessoas devem ter o direito de dar
Ronaldo,
qualquer tipo de opinião
Rosângela,
Vanessa)
Não sei 1 (Isabel)

Quadro 41. Opinião sobre direitos humanos


O que você acha sobre a questão dos
n
direitos humanos no Brasil?
Precisamos de ainda mais proteção de
26
direitos humanos
A proteção de direitos humanos está
1 (Manuel)
adequada
A proteção de direitos humanos deve ser
apenas para as pessoas que agem 0
corretamente
136

Não sei 0

Com base nos padrões mais homogêneos de respostas para esse conjunto de
perguntas, é notável que minha amostra de entrevistados pertencentes à fração
cultural das classes médias paulistanas tem posições políticas marcadas, sobretudo,
pela preocupação com a igualdade econômica e racial, que são estatistas em suas
opiniões sobre economia, democratas em suas opiniões sobre instituições políticas e
progressistas em suas posições morais. São, desta forma, a partir dos diferentes eixos
de diferenciação previamente expostos, politicamente de esquerda. Ainda assim, há
pontuais divergências para todos os domínios de questões sobre posicionamentos
políticos. Sistematizei essas divergências no quadro 42 abaixo. Nela, tomei como
posições divergentes a escolha por alternativas no Questionário que tiveram no
máximo 7 marcações numa questão que teve alguma outra alternativa com pelo
menos 14 marcações (mais de metade da amostra), excluindo as questões que
aceitavam respostas múltiplas. São os nomes que coloquei entre parênteses em
alguma das alternativas nos quadros acima, excluindo-se o “não sei”. A “divergência”,
portanto, é uma posição discordante e minoritária numa questão em que existe um
consenso.

Quadro 42. Divergências políticas


Outras
Democracia Economia Moral Total
questões
Manuel 0 3 8 6 17
Ronaldo 0 3 5 4 12
Rita 1 1 6 2 10
Marcio* 0 5 1 3 9
Guilherme 2 0 6 0 8
Leandro 0 4 2 1 7
Lucia* 0 2 4 0 6
Vanessa 1 2 2 1 6
Adriano 1 1 1 1 4
Roberto 0 1 3 0 4
Rosângela 0 3 0 1 4
Vinicius 2 1 1 0 4
Luciano 0 1 2 0 3
Marlene 0 0 3 0 3
Alessandra 0 2 0 0 2
Isabel 0 1 1 0 2
Jorge* 0 1 1 0 2
Mário 0 0 2 0 2
Regina 0 1 1 0 2
137

Daiane 0 0 1 0 1
Débora 10 0 0 0 1
Elaine 0 0 1 0 1
Flávio 0 0 1 0 1
Samuel 0 0 0 1 1
Alex 0 0 0 0 0
Rafaela 0 0 0 0 0
Sueli* 0 0 0 0 0

Manuel e Ronaldo destacam-se, o primeiro com 17 e o segundo com 12


divergências, seguidos por Rita, que teve 9 desvios do padrão. Os três desviaram
majoritariamente nas questões morais e nas questões sobre punitivismo e liberdade
de expressão, mostrando-se um pouco menos progressistas que seus pares. Por outro
lado, Alex, Rafaela e Sueli* seguiram o padrão mais comum de respostas em todas as
questões.
Também contei a quantidade de "não sei" no bloco de questões, a fim de saber
quais os entrevistados com maiores dificuldades de se posicionarem politicamente.
Aqui, destacam-se Isabel, com 9 questões nas quais não conseguiu se posicionar, e
depois Rafaela e Marcio*, com 6. Flávio, Jorge*, Leandro, Adriano, Rita e Rosângela
não marcaram "não sei" em nenhuma questão.

Quadro 43. Contabilidade de “não sei” em questões políticas


Outras
Não sei Democracia Economia Moral Total
questões
Isabel 0 2 5 2 9
Rafaela 0 2 2 2 6
Marcio* 1 1 4 0 6
Marlene 1 3 0 1 5
Regina 0 4 0 1 5
Luciano 0 1 2 1 4
Mário 2 2 0 0 4
Débora 1 0 2 0 3
Elaine 0 0 2 1 3
Manuel 0 0 2 1 3
Ronaldo 0 0 3 0 3
Samuel 0 0 3 0 3
Daiane 0 2 0 0 2
Guilherme 0 1 1 0 2
Roberto 0 0 0 2 2
Sueli* 0 1 1 0 2
Vinicius 1 1 0 0 2
Alessandra 1 0 0 0 1
Alex 0 0 1 0 1
Lucia* 0 0 0 1 1
138

Vanessa 0 0 1 0 1
Adriano 0 0 0 0 0
Flávio 0 0 0 0 0
Jorge* 0 0 0 0 0
Leandro 0 0 0 0 0
Rita 0 0 0 0 0
Rosângela 0 0 0 0 0

Captar as divergências e os "não sei" é util não apenas para saber sobre os
agentes, mas também para saber quais são as questões que mais geram discordância
e dificuldade de tomada de posição. É o caso da prisão perpétua, que divide a amostra
ao meio (12 concordam e 12 discordam), da ideia de que só se pode ficar rico às custas
dos outros (13 concordam e 12 discordam), da proposta de que se limite a diferença
salarial de pessoas que trabalham numa mesma empresa (13 concordam e 7
discordam), da ideia de que as mulheres costumam ter mais sensibilidade e
compaixão que os homens (14 concordam e 11 discordam) e dos limites da autoridade
dos pais sobre o filhos (para a questão da filha ou filho de 18 anos que quer viajar com
as amigas ou amigos com tudo pago, 6 entrevistados acham que os pais deveriam
decidir, 11 acham que os pais deveriam deixar a/o filha/o decidir e 10 não souberam
opinar). Aqui encontramos a parte nebulosa da fronteira política, aquelas tomadas de
posição a respeito das quais os membros da fração cultural das classes médias não
tem clareza e acordo o suficiente para que possam ser mobilizadas na demarcação do
pertencimento coletivo.

2.5 Definições de esquerda e direita dos entrevistados

A despeito dos padrões que podem ser identificados objetivamente nas


respostas ao conjunto de perguntas, e a despeito também de quase todos terem se
autoposicionado à esquerda no espectro político, o recurso ao método qualitativo
permite que se capte algo fundamental, mas que dificilmente pode ser acessado pelo
método quantitativo: a hierarquia dos critérios de definição das fronteiras políticas. É
importante, portanto, observar suas construções discursivas a respeito daquilo que
chamam de “esquerda” e de “direita. Por isso, nas entrevistas, eu pedi para que eles
me explicassem o que, em sua opinião, significa ser de esquerda, e por que se veem
desse lado do espectro político.
139

Há um primeiro nível em que os entrevistados definem a esquerda a partir de


ideias mais genéricas, como ter preocupação social (Regina), lutar contra injustiças
(Adriano, Daiane), se preocupar com o comunitário (Alessandra) e lutar para que as
pessoas tenham uma vida melhor (Isabel, Mário). Contudo, para a maior parte dos
entrevistados, essas ideias costumam se organizar um pouco mais a partir da relação
entre igualdade, dignidade e centralidade do Estado. O argumento básico em sua
definição é este: a esquerda é a corrente política que entende que o Brasil é um país
extremamente desigual, que acredita que esse é o maior e mais urgente problema
político a ser enfrentado, que é preciso enfrentá-lo para garantir uma vida digna para
as pessoas, e que a melhor instituição para fazer isso é o Estado, não o mercado. A
partir disso, um pouco mais de especificidade os encaminha para definir a esquerda
com base na defesa de serviços públicos de qualidade para todos (Alex, Rafaela,
Regina, Roberto, Rosângela), políticas públicas e programas sociais de qualidade
(Flávio, Luciano, Mário, Marlene, Rafaela, Regina, Roberto), políticas públicas de
reparação (Luciano, Mário), distribuição de renda (Alex, Flávio), relações econômicas
mais regulamentadas e maior intervenção do Estado na economia (Alex, Flávio,
Guilherme, Leandro, Mário, Regina) e garantia de direitos sociais e trabalhistas
(Marlene, Rita, Roberto, Samuel, Vinicius). Para tudo isso, no entanto, o fundamento
básico que transpassa a definição de esquerda dada por quase todos os entrevistados,
e que faz com que eles se autoposicionem no lado esquerdo do espectro político, é
esse: defender uma sociedade mais igualitária, a garantia de uma vida digna para as
pessoas, e entender que isso deve ser promovido pelo Estado. Portanto, das
diferentes dimensões dos posicionamentos políticos captadas pelo Questionário, a
dimensão econômica é a mais relevante na definição subjetiva de esquerda feita pelos
membros da fração cultural das classes médias paulistanas.

Regina: Eu vejo que o governo deve regular as coisas. Eu não acredito no


liberalismo [risos], assim, né, que é o outro lado. Eu vejo que as questões
básicas devem passar pela responsabilidade... eu, vejo, assim, eu gostaria de
continuar pagando impostos, desde que isso seja revertido. Eu não sou
aquela pessoa que fala assim, "tá, eu não quero pagar imposto, eu quero tudo
particular". Eu acho que o governo precisa fornecer educação, saúde,
segurança, né. Essas questões básicas, digamos, pra que as pessoas possam
ter uma vida digna. Então, eu me vejo por isso mais à esquerda.

No Questionário, a pergunta que pedia para que os entrevistados indicassem,


numa lista predefinida de opções, quais consideram os maiores problemas que o
140

Brasil enfrenta hoje, reforça o dado discursivo de que a pobreza e a desigualdade de


renda (ambos com 14 marcações) são vistas como os problemas centrais.

Quadro 44. Opinião sobre quais os maiores problemas de o Brasil enfrenta hoje
Qual o maior problema que o
n
Brasil enfrenta hoje?
Pobreza 16
Desigualdade de renda 16
Racismo e desigualdade racial 13
Educação 9
Corrupção 8
Ameaça ao meio ambiente 7
Violência 5
Machismo e desigualdade de gênero 3
Desemprego 1
Inflação / Subida de preços 1
Saneamento básico 1
Saúde 1
Consumo de drogas ilícitas 0
Perda de valores tradicionais 0
Trânsito 0
Transporte público 0
Não sei 0

As dimensões moral e institucional aparecem também nas definições de


esquerda, mas numa posição secundária. A ideia de que a esquerda é a corrente que
se preocupa com a proteção e a garantia de direitos de minorias sociais, mulheres,
negras e negros, população LGBTQIAP+ e indígenas apareceu espontaneamente nas
definições de esquerda de Débora, Flávio, Guilherme, Luciano, Marlene, Regina,
Samuel e Vinicius. Já a defesa das instituições democráticas foi citada
espontaneamente nas definições de esquerda de Alex, Débora, Flávio e Guilherme, e
pareceu ser marcada, pontualmente, por referências ao contexto de ataques às
instituições democráticas por Bolsonaro e pelo bolsonarismo, como no trecho citado
na seção anterior em que Flávio comenta sobre sua preocupação após os ataques de
08 de janeiro de 2023 em Brasília.
Por outro lado, quando questionados sobre a definição de direita, os
entrevistados mobilizaram com maior equilíbrio critérios econômicos (defesa do livre
mercado) e morais (conservadorismo). Na economia, entendem que a direita é a
corrente política que acredita que o mercado consegue se autorregular e promover
melhorias sociais (Alex, Daiane, Guilherme, Mário, Rafaela), que acredita no
princípio liberal (Daiane, Flávio, Luciano), que acredita na meritocracia (Isabel,
141

Regina, Vinicius), que defende a propriedade e a iniciativa privada (Flávio, Luciano,


Mário, Rafaela) e que ignora a desigualdade econômica que caracteriza o Brasil
(Flávio, Ronaldo, Vinicius). Na moral (ou, como disseram alguns, nos costumes), a
direita é moralista (Daiane), acha que o Estado deve ficar de fora de questões morais
(Alex), não reconhece a existência de pessoas trans e não-binárias (Elaine), se acha
superior por conta de sua raça, cor e origem social (Isabel, Vinicius), é intolerante e
defende a opressão de minorias (Isabel, Vinicius), defende a família tradicional e as
pautas religiosas (Débora, Leandro, Marlene, Vinicius), é retrógrada (Manuel) e
apegada ao passado (Regina). Junto disso, definições mais pontuais apontam a
direita como a corrente que apoia ideias colonialistas (Adriano), que quer conservar
os próprios privilégios (Alessandra, Flávio, Samuel), que é individualista (Débora,
Flávio, Regina), que é consumista e imediatista (Luciano), que defende maior dureza
na segurança pública (Guilherme) e que é pró-armas e a favor da violência (Elaine,
Isabel).
Portanto, na construção classificatória do conflito político feita pela fração
cultural das classes médias paulistanas, temos, de um lado, a esquerda, que é o lado
preocupado fundamentalmente com o problema da desigualdade econômica e que
entende que o Estado deve intervir para promover igualdade e, desta forma, garantir
uma vida digna para todos, e, do outro lado, a direita, que é caracterizada por sua
despreocupação com o problema da desigualdade, seu liberalismo privatista na
economia e suas posições morais conservadoras.

2.6 A dimensão moral da igualdade

Mas há um problema que exige atenção. A despeito de ser um tema unificador


das posições políticas da fração cultural das classes médias e de ser o fator primordial
em suas definições subjetivas de esquerda, a preocupação com a desigualdade
econômica e a defesa de serviços públicos gratuitos e universais não é um ponto tão
conflitivo nos posicionamentos das classes médias brasileiras, pelo menos num nível
mais amplo de observação. Nas pesquisas de opinião feitas nas manifestações
favoráveis e contrárias ao impeachment de Dilma Rousseff entre 2015 e 2016,
constituídas majoritariamente por membros das classes médias, foi possível perceber
que, pelo menos entre o conjunto da classe média que se manifestava nas ruas, a
142

defesa de serviços públicos e gratuitos como saúde e educação era um ponto


compartilhado por direita e esquerda (Ortellado; Solano, 2016). Com isso, Firmino
(2023) sugere que o ideário privatizante é muito mais forte entre as lideranças da
direita do que entre a classe média que se mobilizou nas ruas.
Os questionários aplicados nas manifestações perguntavam de maneira
genérica sobre as posições políticas dos entrevistados, e por isso podem ocultar
divergências mais específicas78. Ainda assim, Ortellado, Ribeiro e Zeine (2022)
reforçam o dado a respeito das semelhanças entre direita e esquerda nas questões
econômicas a partir de análise longitudinal de pesquisas sobre valores políticos no
Brasil realizadas desde os anos 199079. Os autores não encontraram forte
alinhamento entre identidade de esquerda e de direita diferenciando posições sobre
temas socioeconômicos (opiniões sobre Estado, desigualdade, meritocracia e
corrupção), mas sim entre temas morais (direitos da população LGBT, autonomia
sexual e reprodutiva, suicídio e eutanásia). Assim, os autores mostram que o
alinhamento político e a polarização das posições políticas no Brasil são mais fortes –
e vêm crescendo ao longo dos anos – em temas morais do que nos outros domínios.
Desta forma, ainda que gerem menor consenso entre os entrevistados e que
sejam secundários em suas definições subjetivas de esquerda, os temas morais são os
maiores polarizadores do conflito político no Brasil, e com isso são definidores
objetivos mais adequados das posições políticas. Não por acaso, ainda que em posição
secundária, as opiniões progressistas são também relevantes na definição de
esquerda de parte da minha amostra, e ganham centralidade (junto da dimensão
econômica) em suas definições de direita. Além disso, cabe destacar que mesmo
aqueles entrevistados com um conjunto maior de posicionamentos morais
conservadores diante das perguntas de meu Questionário (Manuel e Ronaldo) ainda
apresentam posições moralmente progressistas na maior parte das questões.
Mas para além das questões que organizei no Questionário como aquelas que
tratavam propriamente do domínio dos valores morais (diversidade sexual, religião,
hierarquias sociais, família, gênero e relações raciais), minha sugestão é que a
centralidade da preocupação com a desigualdade econômica ganha, ela mesma, um

78
Poderia captar divergências maiores entre direita e esquerda se perguntasse, por exemplo, "Você estaria
disposta(o) a pagar mais imposto para que o Brasil venha a ter serviços públicos de maior qualidade?", ou,
"Você acha que se uma pessoa tiver dinheiro ela deve ter o direito de acessar um tratamento de saúde melhor,
uma escola melhor?".
79
Dados do Lapop (2006, 2008, 2010, 2012, 2014, 2016 e 2018) e do World Values Survey (1991, 1997, 2006,
2014, 2018).
143

caráter moral entre os membros da fração cultural das classes médias, na medida em
que esse posicionamento é lido como um dos principais símbolos de seu valor moral,
ou seja, do que faz deles pessoas boas, justas, admiráveis e legítimas de ocuparem as
posições sociais que ocupam. Se, como mostram Quadros e Madeira (2018), a direita
vem se "desavergonhando" atualmente no Brasil fundamentalmente com base numa
pauta moral enraizada na defesa da família tradicional, religiosidade cristã e defesa
moralista dos bons costumes, a esquerda, em contraponto, encontra seu valor moral
ao compreender a si própria como o lado do conflito político que consegue ver que o
verdadeiro problema fundamental que o Brasil precisa enfrentar é o da desigualdade
econômica. No caso da fração cultural das classes médias, apresentarem-se como
aqueles que compreendem, que se importam, que discursam contra e que agem
politicamente (ainda que apenas no momento do voto) para combater a radical
desigualdade econômica que marca o Brasil é uma forma de justificar seu valor,
sobretudo tendo em vista que se trata aqui de pessoas que ocupam uma posição na
estrutura de classes caracterizada por condições materiais de existência muito
confortáveis.

Flávio: Um valor que eu passaria para um filho, ou... eu tenho um sobrinho


agora que eu sou muito grudado nele, ele ainda não tem esse discernimento
social, mas um valor que eu acho que eu quero passar para o meu sobrinho,
para um filho que um dia eu vá ter, é isso de você se importar com o
próximo, de você saber que você tem a sua vida, de ter uma noção de
privilégio, de você saber que não é todo mundo que tem três refeições por dia
na mesa. Eu acho que isso é um grande aprendizado, você saber que não é
todo mundo que tem troquinha de roupa todos os dias é um grande
aprendizado. E você saber que, de alguma forma, a gente tem que estar ativo
pra tentar mudar um pouco as injustiças que existem no mundo [...]. Eu fui
criado, infelizmente, numa sociedade em que a gente aprendeu que existiam
pessoas melhores que outras, por N motivos: pela cor da pele, pelo
sobrenome, pela bairro em que mora, pela escola em que estudou, pela
faculdade em que estudou, se estudou numa escola, se estudou numa
faculdade. Eu aprendi que tudo isso ditava se alguém era melhor ou pior, se
alguém era mais capaz ou menos capaz, se era mais merecedor ou menos
merecedor. E eu acho que uma coisa que eu quero ensinar pra gerações que
vem aí, meus filhos, filhos de amigos, é que essas questões que eu acabei de
citar não ditam se uma pessoa é melhor ou pior, se é mais merecedora ou
menos merecedora. Eu acho que o respeito às condições do outro, condições
de gênero, sexuais, condições de renda, condições de etnia, condições
geográficas de onde residem, não devem ditar, não podem ditar, o quanto
essa pessoa é merecedora de ter um acesso a questões básicas de
sobrevivência.

O que sugiro, portanto, é que, diferente da esquerda de classe popular, para


quem a preocupação com a desigualdade econômica e a luta em prol da constituição
de um consistente Estado de bem-estar social teria efeitos materiais diretos sobre
144

suas condições de existência, para a esquerda de classe média o discurso de


preocupação com a desigualdade é menos orientado para a melhoria de suas
condições de vida do que para a demarcação de sua identidade de fração de classe.
Assim como a elite novaiorquina estudada por Rachel Sherman (2017), que constrói
suas fronteiras simbólicas e encontra seu valor moral ao discursar e praticar o que
entendem como um consumo prudente (oposto à ostentação) e um retorno de seus
ganhos à sociedade (sobretudo via filantropia)80, a fração cultural das classes médias
paulistanas constrói parte substancial de suas fronteiras simbólicas de demarcação de
pertencimento coletivo com base nas posições políticas de esquerda, entendidas
subjetivamente por eles com base, predominantemente, na preocupação com a
desigualdade (sobretudo econômica). Mostrar-se preocupado, mostrar que entende a
desigualdade que marca o Brasil, mostrar que luta para promover maior qualidade de
vida para as classes populares, é parte central das estratégias de atribuição valor
moral e de construção de identidade desses agentes que encontram mecanismos para
a reprodução de suas posições sociais menos no capital econômico que no cultural.

Ronaldo: Especialmente aqueles que são preocupados com as outras


pessoas. Isso é o que mais me causa admiração. Aqueles que são
preocupados realmente com o bem-estar de outras pessoas. Sabe, isso me
causa grande admiração e vontade de me aproximar dessas pessoas. Isso
realmente pra mim é o valor fundamental que eu faço questão inclusive de
passar pro meu filho [...]. Então, eu acho que a preocupação com as outras
pessoas pra mim é admirável, e é isso que eu falo pra ele: a primeira coisa é
respeitar e realmente querer fazer o bem para que as outras pessoas também
possam viver direito. Isso eu falo pra ele direto; isso pra mim é o mais
importante. O resto, garoto, se você for bom músico, se você for um grande
matemático, pra mim, tanto faz. O que eu mais quero é que você seja uma
boa pessoa, e, pra mim, ser uma boa pessoa é isso: poder realmente
contribuir para que todos possam viver bem.

A operacionalização de um discurso igualitarista como critério de demarcação


de fronteiras morais apareceu também entre os homens estadunidenses e franceses
de alta classe média entrevistados por Michèle Lamont (1992). A autora mostrou que
eles mobilizam ideias de solidariedade, justiça social e compaixão na separação entre
pessoas consideradas morais e imorais, diferindo nacionalmente com base numa
influência mais forte do humanismo burguês entre os franceses (que os inclina para o
suporte ao sistema público de seguridade social) e do individualismo entre os

80
Sherman entrevistou 50 indivíduos de diferentes grupos profissionais pertencentes aos estratos de renda
mais altos de Nova Iorque, preocupada em entender como eles tomam decisões de consumo, como sentem e
direnciam seus privilégios, como encontram valor moral diante de um cenário de crescimento de desigualdades
econômicas e como legitimam e justificam para si e para os outors sua própria riqueza.
145

estadunidenses (que os inclina para a filantropia). Em trabalho posterior, Lamont


(2000) mostrou que a demarcação de fronteiras morais é ainda mais forte entre
homens estadunidenses e franceses de classe popular. Na base do espaço social,
porém, a moralidade não se associa tão fortemente ao igualitarismo, mas sim a
valores como a ética do trabalho, responsabilidade, cuidado com a família e com as
crianças e punição a quem promove desordem. Como fica claro nas entrevistas
realizadas pela autora, entre a classe popular a moral funciona como o principal
critério para uma definição de sucesso alternativa ao sucesso econômico, ou seja,
como uma forma alternativa de manter dignidade e de dar sentido para suas vidas.
Ambos os casos analisados nos trabalhos de Lamont me parecem relevantes
para entender a tomada de posição igualitarista da fração cultural das classes médias
paulistanas. Assim como os trabalhadores de classe popular, a fração cultural das
classes médias também precisa buscar critérios alternativos ao econômico para
legitimar sua posição social, e, assim como fazem os trabalhadores de classe média-
alta estadunidenses e franceses, boa parte desses critérios podem ser buscados num
discurso igualitarista de justiça social típico dos repertórios políticos de esquerda.
Este mesmo modelo foi encontrado também nas pesquisas de Gwen Van Eijk (2013)
com membros das classes médias e altas holandesas e de Jørn Ljunggren (2017) com
a elite cultural norueguesa, além do supracitado estudo de Rachel Sherman sobre a
elite novaiorquina. Em todos estes trabalhos vemos membros das frações culturais
das classes médias e superiores discursando sua consciência a respeito da
desigualdade e esforçando-se para dar provas de que lutam por uma sociedade mais
justa, e que neste conjunto de percepções e de tomadas de posições identificam um
marcador de valor moral. São repertórios bastante semelhantes aos que emergiram
de meus entrevistados quando eu fazia perguntas sobre seu trabalho de demarcação
de fronteiras simbólicas81.

Isabel: Eu acredito em fazer um trabalho significativo, e eu tenho uma sorte


gigantesca, porque eu passei num concurso para um dos poucos lugares em
que é possível você trabalhar com educação básica com o mínimo de
dignidade; e eu falo isso porque eu já estive na rede estadual. Então, eu
valorizo muito o meu trabalho. Eu não sou rica, mas eu tenho uma vida
confortável. E... eu trabalho com e para pessoas das classes populares. A
grande maioria dos meus alunos vem das redes públicas [...]. Então, eu acho
que ser de esquerda tem a ver também com ter buscado esse lugar, de

81
As perguntas mais diretas sobre demarcação de fronteiras simbólicas vão da 55 a 68 no Roteiro de
entrevistas. Elas tratavam em particular de atitudes e traços de personalidade que despertam admiração e
rejeição no convívio cotidiano dos entrevistados.
146

trabalhar com pessoas, e tentar ser o mais respeitosa possível, e amorosa, e


dar amor, e receber amor, e às vezes... passar raiva também, e ter que lidar
com isso... Então, eu acho que tem um pouco a ver com isso [...]. Ser de
esquerda, pra mim, é trabalhar pra fazer a vida das pessoas melhor, pra
deixar as pessoas mais seguras, mais amadas, com mais chances de
encontrarem segurança material, e de fato me preocupar e fazer mais do que
às vezes é o esperado.

Este esforço para se mostrar igualitarista diante da percepção da desigualdade


foi escrutinado também por Andrew Sayer em seu The moral significance of class
(2005); referência fundamental, junto dos trabalhos de Lamont, no que foi chamado
por Flemmen, Jarness e Rosenlund (2019, pp. 881-882) de “virada moral nos estudos
de classe”. Sayer desenvolve no livro a defesa de que os estudos sobre classes sociais
deem maior centralidade para o papel desempenhado pela moral, entendida de forma
ampla como os julgamentos avaliativos corriqueiros que os agentes fazem uns sobre
os outros, nas análises sobre justificação, legitimação e reprodução das classes
sociais. Para o argumento que desenvolvo aqui, vale a pena levar em conta a atenção
dedicada por Sayer para os dilemas oriundos de um discurso igualitarista por parte
de membros das classes médias: se tentar ignorar a existência das desigualdades
tende a ser visto como insensível, reforçar que as desigualdades existem pode, por
outro lado, parecer paternalista, reforçando, mais do que contestando, a desigualdade
(Sayer, 2005, p. 172). Assim, o discurso igualitarista proferido por agentes em
posições mais altas no espaço social não é exatamente fácil de ser feito; há maneiras
possíveis e corretas de fazê-lo, mas elas exigem cuidado. Entre meus entrevistados, o
dilema apareceu, por exemplo, quando alguns deles (como Alessandra) questionaram
a coerência dos membros da classe média que discursam sobre igualdade mas
mantém seus “privilégios”. Por outro lado, uma das estratégias discursivas
predominantes de que os entrevistados se valem para dar maior consistência e
demonstrar a coerência de seu igualitarismo é recorrendo a exemplos advindos de
situações cotidianas em que eles ou pessoas que admiram podem demonstrar sua
disposição para agir dando assistência a pessoas mais necessitadas.

Gustavo: O que você mais admira em outras pessoas?

Alessandra: Eu acho que coerência com a luta, com essa luta igualitária.

Gustavo: Como assim?

Alessandra: Ah, por que tem muita gente que tem um discurso e faz outra
coisa. Então, pessoas que tenham coerência com essa luta igualitária. Não tô
falando de santa ceciliers [risos], pessoas que muitas vezes tem um padrão
147

de vida alto, que o discurso é de esquerda, mas que não abre mão dos
próprios privilégios.

***

Adriano: Eu desde pequeno sempre me posicionei muito à esquerda, hoje eu


sei disso. Eu sempre me posicionei a favor do meu amiguinho do meu lado,
do cara que tá vivendo a mesma coisa que eu, de sempre cuidar do
coleguinha pra que ele conseguisse acompanhar as coisas junto comigo, ou
pedir ajuda pro meu coleguinha pra que a gente conseguisse subir juntos
[...]. Então, eu sempre tive essa percepção, talvez pela criação que eu tive.
Minha mãe sempre foi uma pessoa muito justa, sempre gostou muito de
ajudar as pessoas, mesmo não tendo nada. Meu pai, quando eu era criança
eu andava muito com o meu pai, ele me levava pra firma dele quando ele ia
trabalhar, às vezes, ele me levava pro campo de futebol de onde ele cresceu,
que ele foi jogador da várzea, onde moravam os amigos dele. E os amigos
dele eram muito pobres; a gente era pobre, mas os amigos dele eram muito
pobres. E ele sempre levava alguma coisa que podia, ou a cesta básica que ele
tinha ganhado na firma que ele não ia precisar usar no mês, ele levava
roupas do trabalho dele que ele não ia usar e ele dava pros amigos dele, pra
eles poderem trabalhar, levava luva da firma, bota da empresa. Sempre que
ele podia, ele ajudava as outras pessoas.

Do ponto de vista estrutural de suas posições sociais, faz todo o sentido, isso é,
é bastante compreensível, que o discurso crítico contra a desigualdade econômica
tenha maior aderência entre a fração cultural do que entre a econômica.
Desdobrando a hipótese de Flemmen, Jarness e Rosenlud (2022) a respeito do
"esquerdismo do capital cultural", podemos entender que, enquanto agentes
dominados mesmo que em posições dominantes, uma vez que são caracterizados
socialmente mais por sua posse de capital cultural (um capital estruturalmente
dominado) do que de capital econômico (o capital dominante no capitalismo), esses
agentes tendem a estar inclinados estruturalmente para as posições políticas de
esquerda, isso é, aquelas caracterizadas, na maior parte das vezes, justamente pela
preocupação com a desigualdade econômica (ou seja, de capital econômico) e
baseadas na crítica ao capitalismo – seja uma crítica orientada para reformá-lo
(social-democrata) ou para superá-lo (socialista, comunista ou anarquista). Assim, as
posições políticas de esquerda, lidas como defesa da igualdade econômica, em
oposição ao lado que entendem que ignora a desigualdade que marca a sociedade
brasileira, são funcionais (o que não significa que isso seja compreendido
reflexivamente) para a demarcação de fronteiras simbólicas contra a fração
econômica, que é entendida como elitista e moralmente conservadora. Isso é, a
identidade política de esquerda entre a fração cultural das classes médias é também
um efeito estrutural de sua posição de fração de classe.
148

Em resumo, sugiro que o tema da desigualdade, para a esquerda de classe


média, tem função de validação moral e de demarcação de sua identidade de classe, e
me parece que a organização de seus posicionamentos políticos em torno desse tema
é bastante adequada à posição que ocupam na estrutura de classes. É um discurso
orientado para que encontrarem valor diante da fração econômica da mesma classe,
que é estruturalmente dominante em relação à fração cultural82.

2.7 Formação das posições políticas

O vínculo estrutural entre as frações culturais e as posições políticas de


esquerda é evidenciado quando se nota que na narrativa dos entrevistados a respeito
da formação de suas posições políticas existe uma afinidade quase inequívoca entre
seu processo de associação aos grupos profissionais típicos das frações culturais e sua
associação à esquerda política. Para investigar sua socialização política, nas
entrevistas eu tentei explorar as influências e a história de formação de seus
repertórios perguntando sobre como sua relação com a política se transformou ao
longo de sua vida e como era a relação de seus pais com a política83.
Uma parte dos entrevistados vem de famílias que já eram de esquerda, e,
portanto, estão em trajetória de reprodução de posições políticas. Adriano vem de
uma família de classe popular em que os pais sempre votaram no PT, o que, junto dos
exemplos de solidariedade que ele via em seu pai (operário engajado em lutas pelas
condições de trabalho na empresa onde trabalhava) e sua mãe (que participava de
pastorais da Igreja Católica), fez com que ele tivesse familiaridade com repertórios da
esquerda desde a infância. São semelhantes os casos de Manuel, Rita e Vinicius,
também de origem popular e com pais interessados em política e orientados para
posições de esquerda (a irmã mais velha de Manuel, por exemplo, militou no
82
Note-se que algo semelhante ao que sugiro aqui para a classe média de esquerda pode acontecer também
para a classe média de direita com o tema da corrupção. Ele foi e segue sendo uma das principais bandeiras das
classes médias de direita, mas, assim como o tema da igualdade e da garantia de serviços públicos de
qualidade, não é um ponto que gera tanto dissenso entre esquerda e direita. Outras pesquisas já mostraram
que a esquerda também demonstra preocupação com o tema da corrupção (Cardoso, 2020; Ortellado, Ribeiro,
Zeine, 2022; Firmino, 2023), e ela foi também citada por 8 dos meus entrevistados como um dos maiores
problemas que o Brasil enfrenta atualmente. Assim, me parece uma hipótese plausível a de que o discurso
anticorrupção seja mais propriamente um meio da classe média de direita constituir suas fronteiras simbólicas
e fundamentar seu valor moral.
83
Questão 46 do Roteiro de entrevistas: Você marcou no questionário que [inserir respostas do questionário
sobre nível de interesse por política]. Eu gostaria que você falasse um pouco mais sobre qual a presença da
política na sua vida. / Questão 51: E como era a relação da sua família com assuntos políticos? Era algo comum,
intenso, ou não se discutia muito?
149

movimento estudantil durante a Ditadura Militar, e seu pai, nascido em Portugal, foi
do movimento anarquista na juventude). A mãe de Débora, por sua vez, sempre foi
engajada politicamente (Débora se lembra bem dela fazendo campanha por Lula em
1989), e seu pai, por mais que tenha votado em Maluf e Collor no passado,
posteriormente também se tornou eleitor de Lula. Rafaela, Rosângela e Samuel vêm
de famílias que já faziam parte da fração cultural das classes médias, também tinham
posições políticas de esquerda, e transmitiram essas referências para os filhos desde a
infância.
Outro conjunto de entrevistados vem de famílias em que havia pessoas de
diferentes posições políticas ou que mudaram da direita para a esquerda ao longo da
vida. Alex teve fortes referências políticas em seu pai adotivo (bem de esquerda), na
mãe (mais discreta, de centro-esquerda) e em um irmão da mãe (muito engajado,
professor universitário, militou no MST), a despeito de seu pai biológico, e todo esse
lado da família, ser de direita. Os pais de Guilherme eram pouco interessados em
política e votavam no PSDB, mas ele encontrou influências de esquerda num tio que
era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O pai de Alessandra também
votava no PSDB, mas quando se tornou professor universitário passou votar no PT, o
que deu a ela referências iniciais de esquerda.
Por outro lado, os entrevistados que vêm de famílias fortemente de direita
(caso de Daiane, Isabel, Mário, Regina e Ronaldo), moderadamente de direita (como
Elaine, Leandro e Roberto), ou de famílias que não se importavam com política ou
não tinham posições claras (como Flávio e Luciano), encontraram conjuntos de
repertórios de esquerda em outros ambientes que não o familiar. Aqui, destaca-se a
escola – sobretudo o colegial/ensino médio – como espaço em que entraram em
contato com ideias de esquerda, geralmente por meio de algum professor de
Humanidades que levava essas discussões para a sala de aula. Foi por aqui que
Regina e Flávio tiveram suas primeiras referências de ideias de esquerda, e pela
escola também Alex, Guilherme, Rafaela e Samuel reforçaram os repertórios de
esquerda que já traziam de casa.
Além da escola outro espaço que serviu para um contato inicial com o ideário
de esquerda entre alguns membros da amostra foi em grupos ligados à Igreja
Católica. Esse foi o caso já mencionado de Adriano, que participava de pastorais da
Igreja junto com a mãe, de Daiane, que participava de grupos de jovens católicos e,
ali, de atividades de voluntariado e filantropia, e de Vinicius, que também fez parte de
150

grupos de jovens da Igreja Católica, num grupo que guardava proximidade com a
Teologia da Libertação. Em todos esses casos, as atividades de voluntariado fizeram a
mediação para que eles tivessem contato mais direto com a desigualdade econômica e
a enquadrassem num referencial de luta por dignidade, o que posteriormente viria a
compor seus repertórios de opiniões políticas de esquerda.
Cabe notar, no entanto, que a religião também fornece repertórios
conservadores, o que serve de base para um posterior afastamento, no caso em que
posições políticas de esquerda são consolidadas mais fortemente com o passar dos
anos. Leandro, por exemplo, tinha um tio padre, com posições políticas de direita, o
que gerou conflitos em 2002 quando Leandro declarou que votaria em Lula. Leandro
teve contato inicial com repertórios de esquerda não na família nem na escola, mas
no cursinho pré-vestibular. Marlene frequentava igrejas evangélicas antes de entrar
para a faculdade (de serviço social), mas foi se afastando por se incomodar com o
discurso religioso conservador justamente no momento em que passou a ter contato
mais intenso com os repertórios de esquerda que acessava na faculdade.
Após a escola, e de maneira ainda mais intensa, a faculdade é citada quase
indiscriminadamente pelos entrevistados como um lugar de formação (para aqueles
que ainda não tinham posições políticas claras) ou de consolidação de suas
identidades políticas de esquerda. Apenas Adriano, Débora, Elaine, Mário, Manuel e
Rafaela não citaram nas entrevistas o ambiente da faculdade quando falavam da
formação ou consolidação de suas posições políticas. Entre os demais, todos falaram
sobre a predominância de colegas de esquerda quando estavam na faculdade, contato
com o movimento estudantil (mais intenso no caso das faculdades públicas, mas
citado também por entrevistados que estudaram em particulares) e debates
corriqueiros sobre política com viés predominantemente de esquerda no ambiente
universitário. Além dos colegas, esse contato vinha também de professores e como
parte das discussões nas disciplinas de formação. Desta forma, a faculdade – espaço
que marca com maior clareza a vinculação dessas pessoas à fração cultural –, é
também um dos que cobra de maneira mais direta o compartilhamento de ideias de
esquerda para a formação de vínculos sociais. Não se trata, evidentemente, de um
requisito acadêmico para a obtenção do diploma, mas em cursos em que discussões
políticas são cotidianas, em que há intensa atuação de movimento estudantil e em
que a maior parte dos discentes é de esquerda, o compartilhamento, ainda que num
nível inicial, de repertórios que identificam esse lado do espectro político torna-se um
151

capital na formação dos laços e critério de demarcação de fronteiras simbólicas. Este


conjunto de relatos deixa particularmente claro que ser de esquerda é um critério de
pertencimento coletivo à fração cultural, e os efeitos dessa fronteira são sentidos
fortemente pelos agentes no período da faculdade.
Como é de se imaginar, esse efeito da fronteira política sentido pelos agentes
na faculdade se estende para os ambientes de trabalho. Rodeados, assim como
estavam durante a graduação, por pessoas de esquerda, segue sendo difícil formar
laços sem que se compartilhe minimamente daquele conjunto de repertórios. Desta
forma, mesmo Adriano e Elaine, que não citaram espontaneamente a faculdade
quando comentaram sobre a formação de suas posições políticas, falaram sobre ter
uma formação política marcada pelas conversas com seus amigos com quem
compartilham área profissional, que são, eles também, majoritariamente de
esquerda.
Claro que essa influência varia de acordo com a área de formação e atuação
profissional, mas os diferentes caminhos levam igualmente para os repertórios de
esquerda. No caso dos acadêmicos que entrevistei de cursos de ciências humanas,
todos tinham discussões sobre política como grande parte do conteúdo curricular, o
que se somava às suas posições prévias de esquerda e a influencia dos amigos e
colegas ao redor para que consolidem e refinem seus posicionamentos. Os jornalistas,
por sua vez, podem até ter menos contato com temática política enquanto conteúdo
curricular em sua formação acadêmica, mas todos os que entrevistei citaram que
discussões sobre o cotidiano da política brasileira é tema importante de sua formação
e inserção profissional. As três assistentes sociais que entrevistei fizeram também
relatos bastante homogêneos sobre a faculdade e a atuação profissional terem sido o
espaço fundamental de sua inclinação para a esquerda, sobretudo por conta do
contato direto com experiências de vulnerabilidade e a correlata valorização de
políticas de assistência social. Já no caso dos artistas, os que eu entrevistei disseram
que discussões sobre política são escassas enquanto conteúdo curricular e requisito
profissional. Ainda assim, para aqueles que vão para a área da docência (entre os
artistas de minha amostra, é o caso de Luciano, Rafaela e Vinicius), o trabalho como
professores mostra-se um ambiente importante de consolidação do ideário de
esquerda. Diversos deles que dão ou deram aula em ensino básico e em ensino
superior citaram a experiência docente como momento importante de formação de
convicções políticas, sobretudo por proporcionar contato cotidiano com desigualdade
152

(diante dos estudantes) e, nos últimos anos, por vivenciarem de maneira rápida e
direta os efeitos de cortes de verba na educação promovidos por governos de direita.
É o caso de Isabel, que veio de uma família de direita e que nunca havia se importado
muito com política ao longo da vida, mesmo tendo feito graduação numa
universidade pública e num curso de ciências humanas, mas que, por mais que já
simpatizasse previamente com a esquerda, só aderiu a este lado do espectro político
de maneira engajada a partir do momento em que se tornou professora.

Isabel: Eu fiquei 2018 e 2019 surtando, em pânico, e com muito consumo de


jornal. A gente assinava a Folha, mas eu via três jornais por dia na internet, e
aqueles grupos de whatsapp, com um monte de coisa que era verdade e
tantas outras que não eram... então, foi o momento do pânico. E nesse
momento eu já estava concursada, e existia uma série de expectativas de
ameaça com relação ao funcionalismo público, reforma administrativa, e
outras questões mais nuançadas. Então, eu também tinha um certo pânico
pessoal, sabe? "Puta, o que vai acontecer?". E o que aconteceu foi que o
orçamento pro lugar que eu trabalho foi reduzido em uns 60%. É que o
salário não faz parte, mas eu vi um lugar que era super lindinho e hoje tá
com vários problemas de manutenção. Aquela cara de matagal, por exemplo,
parede suja. Eu vi os auxílios permanência diminuírem muito. Eu vi os meus
alunos empobrecerem muito, principalmente comparando o antes da
pandemia e o depois da pandemia. Em termos do funcionalismo, a gente teve
perdas salarias significativas [...]. Mas eu fui aprendendo que tinha resposta.
Eu vi os meus alunos indo pra rua, e eu fui com eles. Em 2019 eu fui em
muitas manifestações. Depois, na pandemia, não fui mais. No ano passado
eu fui em algumas. Sempre quando tinha "contingenciamento" – mas não é,
né, na prática, é cortar a verba.

A esta altura, já formados em cursos que encaminham a maior parte de seus


egressos para profissões de frações culturais, e agora trabalhando, propriamente, em
profissões que identificam as frações culturais da classe média, e ainda cercados
majoritariamente por pessoas de esquerda em seus círculos de sociabilidade
formados na faculdade ou no trabalho (falarei um pouco mais sobre os círculos de
sociabilidade no próximo capítulo), ter uma vida social minimamente ativa, formar
laços de pertencimento a grupos e, mais que isso, formar propriamente sua
identidade profissional e, mais diretamente, sua identidade de fração de classe,
torna-se difícil para alguém que não compartilhe das posições políticas de esquerda.
Junta-se a isso o dado de que, agora já com posições políticas de esquerda
consolidadas, eles se informam sobre política majoritariamente por meio de outros
membros da fração cultural, com os quais compartilham opiniões políticas. A
pergunta no Questionário mostrou que as principais fontes de informações sobre
política dos entrevistados são os jornais (25 menções), portais de internet (16), redes
sociais (10), televisão (10), amigos (7) e podcasts (7).
153

Quadro 45. Fontes de informações sobre política


Como você se informa sobre
n
política?
Jornais 25
Portais de internet (excluindo jornais) 16
Redes sociais 10
Televisão 10
Amigos 7
Podcasts 7
Escola / Universidade 6
Rádio 4
Familiares 1
Igreja 0
Centro comunitário 0
Colegas de trabalho 0
Vizinhos 0

Vários entrevistados disseram que acompanham o noticiário por meio de


grandes veículos de comunicação como Globo News, Folha de São Paulo e Estadão,
considerados fontes confiáveis para informações sobre o cotidiano da política
brasileira, por mais que todos apresentem viés (o Estadão, em particular, foi citado
por Flávio e Rafaela como sendo mais de direita). Citaram também se informar sobre
política por meio de podcasts desses veículos, como o Café da Manhã (da Folha) e o
O Assunto (do Globo). Entre outros veículos citados, estão a BBC (citada por Rafaela),
a CBN (citada por Mário), a CNN (citada por Rita), o UOL (citado por Marlene), o
Nexo (citado por Alex), a Revista Piauí (citada por Daiane, Débora e Mário), TV
Câmara e TV Senado (citados por Adriano), a Agência Pública (citada por Daiane) e
o Intercept (citado por Rafaela). Por outro lado, a Jovem Pan foi mencionada por
Flávio e Luciano como exemplo de mídia de direita da qual procuram se distanciar.
Quatro dos seis jornalistas que entrevistei, Débora, Guilherme, Ronaldo e
Rosângela, fizeram as falas mais críticas à imprensa brasileira, reprovando o que
identificam como falta de profundidade analítica da grande mídia atualmente. Por
isso é que Débora prefere veículos que apresentam reportagens maiores e mais
detalhadas, o que identifica na Revista Piauí, e Guilherme acompanha apenas alguns
repórteres que têm longa trajetória de trabalho cobrindo um mesmo tema. Já
Leandro, que também é jornalista, falou em sua entrevista sobre a potência das
mídias sociais para a informação sobre política, por permitir um contato mais rápido
e direto com os políticos, por mais que entenda que a imprensa deve fazer o papel de
154

filtro para que as informações cheguem ao público com maior qualidade. Este tema
apareceu também nas falas de outros entrevistados: ao passo que Adriano, Elaine e
Roberto falaram sobre os benefícios em termos de velocidade e de proximidade do
contato por meio das mídias sociais, Rafaela citou os perigos de que isso faça com que
se encontre dentro de uma bolha de esquerda, em que apenas as informações que
reforçam as posições políticas com as quais concorda sejam compartilhadas.
Entre amigos, a política é assunto recorrente de conversas, neste que é círculo
social que tem os momentos de reunião para conversar como um de seus principais
lazeres. Comentarei mais sobre isso no próximo capítulo, mas desde já é importante
apontar a forte influência dos amigos no reforço e refinamento das posições políticas
de esquerda, algo que vem sendo bem documentado pela literatura que aponta para o
fechamento e exclusão mútua dos diferentes lados do conflito político para a
interação com lado oposto84.
Por fim, cabe notar que o contexto político brasileiro dos últimos anos
apresentou situações marcantes para a formação e consolidação de repertórios de
esquerda entre os entrevistados. Isabel, por exemplo, que, como já citado
anteriormente, não era uma pessoa muito interessada em política, por mais que
tenha se formado num curso de ciências humanas numa universidade pública, só
passou a se identificar mais fortemente com a esquerda política a partir do
impeachment de Dilma, em 2016, e a identificação se intensificou nos anos seguintes,
sobretudo com a eleição de Bolsonaro para a presidência em 2018. De maneira
semelhante a Isabel, Mário, que é médico e veio de uma família com posições
políticas de direita, também só passou a se identificar com a esquerda a partir de seu
incômodo com o processo de impeachment de Dilma e por perceber uma crescente
precariedade nas condições de vida de seus pacientes a partir do momento em que
Temer assumiu a presidência. O impeachment de Dilma também foi citado como
fator marcante para a identificação com a esquerda de Alessandra e Flávio. Por sua
vez, a eleição de Bolsonaro e os anos de seu governo foram citados espontaneamente
por Daiane, Isabel, Luciano, Regina e Roberto como um momento de consolidação ou
intensificação de seus posicionamentos políticos de esquerda. Foram anos em que
eles consumiram mais notícias sobre política e entraram em mais discussões, o que
ajudou a reforçar convicções que eles já tinham previamente.

84
Ver França et al (2018), citado por Cardoso (2020).
155

Todos estes relatos contribuem para a comprovação da hipótese de Cardoso


(2020) de que a dinâmica política iniciada em 2013 no Brasil deu condições para um
processo de formação de classe em que diferentes segmentos das classes médias
brasileiras construíram internamente suas identidades em oposição ao grupo
politicamente oposto. Sugiro, no entanto, que, diferente da ideia compartilhada por
parte da literatura (como Cavalcante; Árias, 2019 e Firmino, 2023) de que essa
divisão se basearia na oposição entre diferentes camadas (alta classe média x baixa
classe média), que essa formação de identidade de classe separa mais precisamente as
frações culturais (politicamente à esquerda) das econômicas (à direita). Desta forma,
tendo em vista que já existe uma tendência estrutural de inclinação das frações
culturais para as posições de esquerda, o contexto de acirramento do conflito político
iniciado no Brasil em 2013 apenas reforçou, ou, tornou mais difícil de ser contornado,
um processo de construção de fronteiras simbólicas entre as frações de classe que já
tinha tendência estrutural de acontecer.
Note-se, neste sentido, que nas revisões históricas sobre o posicionamento
político das classes médias no Brasil ao longo do século XX, a esquerda sempre foi
composta majoritariamente por membros da fração cultural: estudantes, intelectuais,
acadêmicos e cientistas, artistas e produtores culturais, partes do clero, partes da
mídia, partes dos profissionais liberais, entre outras (por mais que sempre tenha tido
também alguns segmentos que não são especificamente de fração cultural, como os
bancários). Do ponto de vista da formação das identidades de fração de classe, esse
histórico é de grande relevância: além de todas as barreiras de fechamento
institucional que regulam a entrada numa determinada carreira profissional, todo um
conjunto de representações simbólicas construídas historicamente se impõe como um
padrão adequado de comportamento e de autoimagem sobre os pretendentes e sobre
os novos ingressantes em cada uma dessas posições sociais. Tendo sido construídas
ao logo do século XX a partir de sua associação com a esquerda – mais forte ou mais
fraca a depender do grupo profissional, é verdade – a decisão por seguir em carreiras
típicas da fração cultural passa, na maior parte das vezes, pela cobrança pela, e o
correspondente esforço de, adequação às posições políticas de esquerda que
compõem a representação identitária historicamente construída desses grupos.
Assim, após ter oferecido um argumento estrutural para explicar a relação
entre as posições sociais de fração cultural e os posicionamentos políticas de
esquerda (a adequação do discurso crítico contra a desigualdade econômica,
156

tipicamente de esquerda, ao imperativo de denegação da economia econômica e o


correspondente esforço pela valorização do capital cultural que caracteriza as frações
culturais), ofereço nesta seção um complementar argumento, digamos, processual.
Aderir às posições sociais de fração cultural no espaço social é um processo que tem
como uma de suas características, na maior parte das vezes, uma cobrança pelo
compartilhamento de posições políticas de esquerda. Em seu processo de associação
às posições tipicamente culturais, os agentes sentem a coerção derivada de diferentes
fontes para que demonstrem compartilhar das posições políticas de esquerda, e
assim, como fato social, não se adequar ao padrão tende a impor dificuldades de
adaptação e sociabilidade para os agentes divergentes.

2.8 Fragmentações internas na esquerda

Sendo um processo contínuo de socialização e, portanto, diferenciado em


função das trajetórias, a formação das posições políticas não deixa de ter como
resultado uma série de fragmentações internas nos posicionamentos políticos da
fração cultural, que mesmo sendo majoritariamente de esquerda apresenta
internamente fronteiras simbólicas mais específicas diferenciando variadas vertentes
da esquerda85. Na tentativa de captar as variações de autodefinição de identidade
política com cuidado um pouco maior, eu perguntava como eles se classificam
ideologicamente, se é que fazem (reflexivamente) algum tipo de classificação 86. Aqui
é possível captar algumas vertentes da esquerda da forma como são discursadas pelos
membros da amostra.
Adriano e Alex disseram que são socialistas, mas deram definições bem
diferentes de socialismo. Adriano disse que ser socialista é saber como as coisas

85
Aliás, nunca é demais explicitar que tendências estruturais são sempre tendências, não determinações
unívocas e inequívocas. A terceira dimensão do espaço social, a trajetória, é constantemente o melhor fator de
explicação dos casos em que a tomada de posição tendencialmente adequada da classe e da fração de classe
não se realiza em agentes específicos. No caso das tomadas de posições políticas, em particular, Bourdieu era
especialmente atencioso com o peso das trajetórias sobre a organização das tomadas de posição, sobretudo
em casos de ascensão ou de declínio entre as gerações. Isso explicaria, para ele, o fato (identificado para a
França dos 1960-1970) de que existia um hiato maior entre as posições sociais e as tomadas de posições
políticas do que entre as posições sociais e os estilos e vida. Ver Bourdieu (1977). Ver também Tomizaki e Silva
(2021), que chamaram a atenção para este ponto.
86
Questão 47 do Roteiro de entrevistas: Agora, uma pergunta mais direta: como você se classifica
politicamente? Isso é, existe alguma posição, ideologia política ou um conjunto de ideias que você acha que
representa bem a sua forma de pensar?
157

funcionam, que a história do mundo é uma história de pessoas sendo exploradas e


que se as pessoas produzem algo elas têm o direito de ficar com aquilo. Ele disse que
entendeu isso quando leu Karl Marx, e que se identifica um pouco com o comunismo
também, pois sempre pensa na classe trabalhadora. Já Alex se considera um
socialista democrático, mas sua definição quase não se diferencia daquela básica de
esquerda: defesa da intervenção do Estado na economia para promoção da igualdade,
ao mesmo tempo em que acredita na manutenção da democracia.
Samuel disse que faz parte de uma esquerda mais "clássica", e que também
flerta eventualmente com o socialismo e o comunismo. Sua definição de esquerda
"clássica" é construída em oposição à esquerda que chama de "cirandeira", que centra
suas lutas nas questões de identidade e não entende que há uma luta mais
generalizada a ser feita. O termo "clássica" também apareceu nas falas de Flávio e
Vinicius, mas com sentidos diferentes do que apresentou Samuel. Para Flávio, ser de
uma esquerda mais "clássica" é se distanciar de pessoas que ele considera de direita,
mas que ele viu sendo jogadas para a esquerda recentemente por terem, em algum
momento, se colocado em oposição a Bolsonaro (que Flávio considera de extrema-
direita), como João Dória e Sergio Moro. Já a esquerda "clássica" de Vinicius é a que
se preocupa com questões mais amplas, de trabalho e moradia, por exemplo, e se
constrói em oposição à esquerda que ele chama de "liberal", que é uma que abre mais
espaço para a liberdade individual, por exemplo para o consumo.
Guilherme se classificou como um progressista trabalhista. Disse se identificar
desta forma há cerca de 10 anos, influenciado pela experiência que teve morando por
um período em Londres e, como jornalista, cobrindo o governo Lula. Para ele, essa
vertente da esquerda se caracteriza pela ideia de que mudanças estruturais na
sociedade só podem ser promovidas pelo mundo do trabalho. No caso do Brasil, disse
Guilherme, isso significa lutar pela inclusão de todos na sociedade de classes, por
meio de trabalhos dignos e devidamente regulamentados. As lutas que se baseiam em
identidade são importantes, mas apenas mudanças baseadas no trabalho são
irreversíveis, disse Guilherme.
Rosângela se declarou uma social-democrata do nível da Finlândia. Para ela,
aqui se encontra uma esquerda moderna, com um Estado forte e com consistentes
políticas de assistentes aos mais necessitados sem precisar apelar para o
autoritarismo da “ditadura do proletariado”. Rosângela acredita que é um modelo
158

mais adequado aos tempos atuais, em que a luta política não necessita mais de “uma
foice e um martelo”.
Alessandra, por sua vez, está praticamente no lado oposto ao de Rosângela em
termos de posicionamentos políticos internos à esquerda. Ela se identifica como
anarquista, o que, para ela, significa não ter ilusões com as instituições políticas,
saber que o maior problema a ser enfrentado é o Estado, e que enquanto ele existir,
sempre existirá contradições. Essa sua identificação com o anarquismo é recente, no
entanto: disse ela que há cerca de três anos, em conversas com seu companheiro,
começou a perceber suas inclinações anarquistas, sob influência dele. Antes disso,
Alessandra só começou a se identificar de fato com a esquerda a partir do
impeachment de Dilma, em 2016, e antes disso tinha até mesmo "embarcado na onda
da Lava-Jato".
Daiane disse também que tem uma aproximação com o anarquismo, que
também relaciona com a ideia de que o Estado apresenta-se sempre com um
problema. Mas ela foi menos convicta em sua identificação ideológica do que
Alessandra, dizendo que tem dificuldade de se comprometer.
Para além desses que se classificaram com base em correntes políticas e
ideológicas mais bem definidas, a maior parte dos entrevistados não se classificaram
politicamente com muita especificidade para além da ideia de que são de esquerda,
seja por não ter paciência para discussões sobre vertentes políticas (Débora), por
acreditar que tem um posicionamento que mistura características de diferentes
vertentes (Leandro) ou por acharem que não tem conhecimento aprofundado o
suficiente sobre vertentes da esquerda para conseguir ter um posicionamento mais
claro (caso de Elaine, Roberto e Vinicius).
Na medida em que Alessandra e Rita foram as únicas entrevistadas que se
colocaram na posição 0 no espectro político, subentende-se que todos os demais
acreditam que existem pessoas que estão à sua esquerda. Desta forma, ainda com o
tema dos fracionamentos internos à esquerda em mente, eu perguntava quem eles
acham que está a sua esquerda no espectro político. Com isso, foi possível identificar
com ainda mais cuidado a forma como se estruturam algumas fronteiras dentro da
própria esquerda.
A maior parte dos entrevistados entende que aqueles que estão à sua esquerda
formam o que se pode chamar de "extrema-esquerda", e para a maior parte deles isso
significa a disposição para aderir a propostas autoritárias. Adriano entende que aqui
159

estão as pessoas radicais, adeptos da ação direta. Daiane disse que são os estalinistas,
que querem "sair tacando fogo nas coisas". Flávio disse que eles beiram o
anarquismo, defendem controle total do Estado, uma ditadura de esquerda, e que
neste nível, quando foge da democracia, não se diferenciam muito da direita.
Guilherme, Ronaldo e Rosângela também disseram que aqui estão aqueles que
defendem Estados totalitários, como Nicarágua, Venezuela, Cuba e China. Leandro
disse que se trata da esquerda marxista, trotskista, uspiana. Roberto também os
chamou de extremistas, e Rafaela e Mário disseram que são aqueles que não deixam
espaço para o mercado e para a competitividade. Alex foi além, disse que são pessoas
com uma visão anacrônica do que significa luta de classes, que entendem que a classe
social está acima de outros critérios de luta política (ideia da qual ele discorda) e que,
dessa forma, além de flertarem com o autoritarismo, também podem ser machistas,
racistas e homofóbicos. Foi comum também que alguns deles identificassem alguns
partidos políticos como representantes da “extrema-esquerda”, notadamente o PSTU
e o PCO (citados por Alex, Flávio e Guilherme).
Com isso, é possível perceber que, ao passo que a defesa da igualdade,
relacionada a uma certa concepção de dignidade, e a defesa da maior intervenção do
Estado na economia, oposta à primazia do livre mercado, formam a base
fundamental da definição de esquerda compartilhada pelos entrevistados, a defesa da
democracia e das instituições democráticas é um dos principais critérios a demarcar
fronteiras internamente ao grupo em suas identidades políticas. Manuel, em sua
entrevista, disse que já ficou claro que a luta por meio do Estado não deu certo, e de
forma semelhante Alessandra, como já citado previamente, disse que a democracia é
uma farsa, uma invenção para manter o Estado. Estes são justamente os tipos de
posicionamento que entrevistados como Alex, Débora, Guilherme, Ronaldo e
Rosângela criticam e do qual se afastam, não entendendo ser uma opinião da
esquerda com a qual se identificam ou, mais ainda, não entendendo se tratar
verdadeiramente de um posicionamento de esquerda. Assim, por mais que a maior
parte da amostra seja crítica de posicionamentos autoritários e que representam uma
ameaça às instituições fundamentais da democracia representativa (eleições, partidos
políticos, STF, Congresso etc.), a defesa da democracia é um tema que, em alguma
medida, cria fronteiras simbólicas internamente a fração cultural das classes médias.
Além da dimensão político-institucional de organização dos posicionamentos
políticos, a dimensão moral também emergiu nas entrevistas como elemento que
160

divide internamente a esquerda, notadamente discursada quando os entrevistados


comentavam sobre o papel ocupado pelas lutas políticas organizadas em torno de
minorias sociais. Como mostrei acima, o tema do racismo e da desigualdade racial é
entendido pela maior parte da amostra como um dos mais urgentes problemas que o
Brasil enfrenta atualmente, mas em suas definições de esquerda e na construção de
sua identidade política, apareceu certo dissenso entre entrevistados que colocam a
luta organizada em torno das minorais sociais no centro de sua definição de esquerda
e aqueles que consideram que a classe e a luta em torno da esfera econômica devem
ter centralidade.
Ao passo que Débora, Flávio e Regina disseram que ser de esquerda é defender
direitos iguais para grupos minoritários, pessoas pretas, mulheres, população
LGBTQIAP+ e indígenas, Guilherme, Manuel e Samuel defenderam em suas falas que
essas lutas só fazem sentido se estiverem vinculadas à luta mais ampla baseada na
classe, e teceram críticas à parte da esquerda que defende que essas lutas tenham
protagonismo. Para Guilherme, trata-se da centralidade do trabalho que ele identifica
como característica do progressismo trabalhista. Guilherme disse na entrevista que
entende que os problemas do machismo e do racismo precisam ser superados, mas
que os movimentos sociais organizados em torno dessas pautas estão mais dividindo
a esquerda do que construindo políticas realmente transformadoras. Samuel, por sua
vez, disse que há uma luta maior do que a luta em torno de questões raciais, de
gênero e sexualidade, por mais que esses direitos sejam absolutamente necessários. É
a esquerda que se organiza em torno dessas pautas que ele chamou de "cirandeira".
Manuel, de forma mais direta, disse que a grande parte desses movimentos falta
“política”, e atribuiu a si próprio o adjetivo “conservador” quando traçou, na
entrevista, uma fronteira contra a parte da esquerda que se organiza com base em
pautas de minorias sociais87:

Manuel: Quando tem um fundo político, eu admiro. Mas eu vejo muito


pouco isso, um fundo político, em todas as discussões. Eu acho que quando
se fala do movimento negro, do movimento gay, da diversidade, tem que ter

87
Lembrando que Manuel foi o entrevistado com mais discordâncias morais na amostra (8). Ele marcou no
Questionário que o governo não tem a obrigação de criar políticas públicas direcionadas à melhoria das
condições de vida da população negra, que não acha que as universidades públicas devem ter cotas raciais, que
os movimentos sociais das pessoas negras são bons apenas para seus próprios membros, que não defende
(mas não se incomoda com) demonstrações públicas de carinho entre pessoas LGBT+, que sempre se deve
amar e respeitar os pais sem se importar com suas qualidades e defeitos, que uma mulher e um homem
precisam ter filhos para se sentirem realizados na vida e que em geral os homens são mais racionais que as
mulheres. Guilherme e Rita vieram logo após, com 6 discordâncias cada nas posições sobre moral.
161

política dentro disso. Se não tiver política, é chover no molhado. Eu ainda


sou conservador, um cara de esquerda conservador. Eu fico puto que levam
milhões de pessoas pra [Avenida] Paulista na Parada Gay e não colocam 20
pessoas contra o Bolsonaro na Paulista. A gente não conseguiu colocar, essa
mobilização política não tem. É importante que tenha a Parada Gay? Sim, é
muito importante, mas, meu Deus, nós temos que reunir esses movimentos
populares contra o que foi esse cara, e não conseguimos. Então, eu acho que
as discussões hoje são muito baseadas no ódio, em histeria, e a gente não
consegue organizar... Pô, na Paulista, não conseguimos organizar nada [...].
A mesma coisa a questão do racismo. Nós estamos seguindo a linha
americana. Estados Unidos é o ódio que prevalece, o negro odeia o branco, o
branco odeia o negro, tem bairros separados. Cara, é o ódio, e tá se fazendo
isso aqui, quando tem que ter política. O negro vai conseguir chegar, por
exemplo, em cargos maiores, a ganhar mais, se ele tiver oportunidade, mas é
uma oportunidade que não é através de cotas. É uma oportunidade que lá,
onde ele mora na favela – e a maioria é uma população negra –, ele vai ter
condições de morar, de estudar, de trabalhar [...]. Eu acho que a discussão,
mais do que cotas, tem que voltar. Senão, ele não vai conseguir nada.

Assim, fica claro que a posição dos agentes internamente às frações culturais –
e à esquerda política – na dimensão moral de organização dos posicionamentos
políticos é, tal como a dimensão político-institucional, um fator de demarcação de
fronteiras simbólicas internas. Eles se unem, portanto, fundamentalmente a partir de
seu igualitarismo estatista na economia, mas se fragmentam, de um lado, entre
subgrupos mais democratas ou mais autoritários e, de outro lado, entre subgrupos
mais progressistas ou mais conservadores.
Ainda que eu não tenha pedido, alguns entrevistados também separaram
espontaneamente, em suas falas, a direita e a extrema-direita. A direita mais
"moderada" (como disse Guilherme), ou não tão "aberrante" (como disse Alex), é
uma que acredita na democracia, mas que é mais privatista na economia e
conservadora nos costumes (Alex), e que desgosta de protestos e movimentos sociais
(Guilherme). Aqui estão políticos como João Dória (citado por Flávio), Fernando
Henrique Cardoso e Simone Tebet (citados por Alex), Geraldo Alckmin, Katia Abreu,
Ratinho Júnior e Eduardo Leite (citados por Guilherme). Já a extrema-direita é
aquela que quer eliminar quem pensa diferente dela (Alessandra), que tem total
descrença na democracia, são ultraconservadores e ultraliberais, suprematistas e
fascistas (Alex), defendem valores punitivistas e violentos e são negacionistas
(Guilherme). Guilherme acha que são pessoas menos inteligentes, ou mais cínicas,
que a média, e Vinicius os chama de “canalhas”, argumentando que se sua mãe, que é
analfabeta, não defende ideias de direita, quem defende é por canalhice. Aqui, na
extrema-direita, é que Alex, Flávio e Guilherme localizam Bolsonaro.
162

Há ainda uma polêmica sobre as pessoas de direita da classe popular,


relevante pois se apresenta também como mais um fator de fragmentação interno à
essa esquerda de classe média. Adriano definiu inicialmente a direita, na entrevista,
como "nascer rico". Eu perguntei a ele se, então, não há pessoas de direita de classe
popular, e ele – que, lembrando, tem origem social de classe popular – respondeu
dizendo que são pessoas que apenas estão perdidas:

Adriano: Elas tão muito perdidas. Ou é a questão de ser leigo, ou é questão


de não ter interesse de saber o que é; não sei se por medo, sei lá, por que tipo
de negação. Ou porque não entende o que é a política de verdade. Falta de
conhecimento de classe, de consciência de classe, com certeza! Isso, com
certeza. Ou a pessoa não tem consciência de classe porque ela não quer se ver
pobre, ou porque ela conseguiu ganhar um salário de 6, 7 mil por mês e já
acha que tá na direita.

Samuel fez uma fala semelhante à de Adriano sobre o tema, dizendo que as
pessoas de direita de classe popular são apenas pessoas mal informadas, com pouco
acesso para saber qual a real condição do Brasil, e Marlene, que assim como Adriano
também tem origem de classe popular, foi ainda mais clara na demarcação de uma
fronteira contra os discursos da esquerda que considera elitistas:

Marlene: Eu tenho uma certa criticidade com relação à esquerda hoje, como
ela muitas vezes é posta, eu acho que ela é um pouco até elitizada, muitas
vezes. Posso citar como um exemplo dessa minha fala essas últimas eleições
presidenciais, que teve esse embate muito forte entre o Bolsonaro e o Lula, e
que a população de uma forma geral muitas vezes, e até pessoas que
levantavam e defendiam a bandeira Lula, a esquerda, mas muitas vezes se
apoiavam num discurso de pobre de direita, trabalhador lutando contra seus
direitos. Claramente, sim, eu concordo em partes que tem muitos
trabalhadores que acabam defendendo pautas conservadoras, mas eu sempre
trago uma leitura com uma criticidade. Eu acho que é muito violento a gente
colocar essa posição só na coluna dos trabalhadores, só culpabilizando eles,
"o pobre ele é culpado pela eleição do Bolsonaro" [...]. Porque, eu entro
muito naquilo que a gente estava debatendo anteriormente: a política ela não
é só o que a gente aprende na Academia. Claramente que na Academia, como
eu falei, tem todo um embasamento, tem toda uma leitura. Mas muitas
vezes, se você for trocar uma ideia, conversar com um trabalhador, alguém
que, sei lá, tá na Cidade Tiradentes, ou no extremo da Zona Sul, e você for
trocar uma ideia sobre as condições de vida, como ele vê a sociedade, muitas
vezes ele vai trazer críticas riquíssimas, que estão, inclusive, em livros de
autores renomados, mas que ele não tem um aprofundamento, e por diversas
questões, ou porque não foi oportunizado, ou porque foi uma pessoa que
precisou, entre discutir política e ir para os estudos, precisou ir trabalhar em
um emprego que muitas vezes é precarizado... [...] Eu acho que também é
uma desculpa que eu ouço muito, inclusive hoje eu ouvi de uma pessoa, que
é até militante, no meu trabalho, que falava, "poxa, não é desculpa uma
pessoa querer ter um viés conservador em uma sociedade que tem tantas
informações disponíveis", e eu concordo, mas mais uma vez eu trago uma
ressalva: assim como a gente tem informações disponíveis, informações úteis
e com embasamento, nós também temos informações que são baseadas em
163

achismos, as famosas fake news, que tomou uma proporção gigantesca.


Então, eu vejo que a esquerda não é próxima da classe trabalhadora, de
quem está de fato na periferia, ou quando ela se aproxima ela não se
apropria daquela realidade ou dá oportunidade de ouvir esses trabalhadores.

Note-se que, para a maior parte dos entrevistados, o Brasil é hoje um país
predominantemente de direita. No Questionário havia uma pergunta sobre qual eles
acham que é a posição política da maior parte da população. Apesar de todas as
alternativas terem sido selecionadas por menos de metade da amostra, a impressão
de que a maior parte da população brasileira é de direita foi a opção mais selecionada
(por 12 pessoas).

Quadro 46. Opinião sobre o posicionamento político da população brasileira

Você acha que a maior parte da


população brasileira é de n
esquerda ou de direita?
A maioria é de direita 12
A maioria é de centro 6
A maioria é de esquerda 4
Existe equilíbrio entre esquerda e
2
direita
Não sei 3

Os relatos organizados nesta seção deixam claro, portanto, que existe uma
considerável diversidade de posições internamente ao padrão estabelecido de
posicionamento político cobrado como critério de pertencimento aos membros da
fração cultural das classes médias. Todos os entrevistados são objetivamente de
esquerda na maior parte de suas posições políticas e se identificam subjetivamente
como pertencentes à esquerda política, mas, internamente ao campo no qual se
posicionam, travam uma série de lutas simbólicas que se assentam,
fundamentalmente, sobre três pilares: (1) o quanto consideram importante o
compromisso com as instituições políticas da democracia representativa, (2) o quanto
de centralidade consideram que deve ter a luta política organizada em torno de
minorias sociais, e (3) qual sua interpretação a respeito das pessoas de classe popular
com posições políticas de direita. Desta forma, ao que tudo indica, as posições de
esquerda definidas de forma minimalista como uma preocupação com a desigualdade
econômica que deve ser combatida com políticas organizadas pelo Estado são a
grande baliza política dentro da qual diferentes posições podem ser assumidas,
164

variando de acordo com a posição social e com a trajetória dos membros dessa fração
de classe.

2.9 Síntese

Após ter descrito no capítulo inicial quais as posições estruturais e condições


de vida que definem e identificam a fração cultural das classes médias paulistanas,
apresentei neste segundo capítulo dados que apontam para uma profunda conexão
entre posições políticas de esquerda e posições culturais do espaço social. Os
componentes de minha amostra exemplificam uma trajetória social em que a
construção do pertencimento à fração de classe que ocupam se dá em forte afinidade
com a adesão a repertórios culturais da esquerda política. Para aqueles que já vinham
de famílias com membros pertencentes a posições sociais de fração cultural foi mais
comum que o contato com os repertórios de esquerda se iniciasse em ambiente
familiar, mas para quase todos a faculdade e o mundo do trabalho constituem
espaços de sociabilidade determinantes para a identificação com a esquerda.
Desta forma, argumento que parte da identidade da fração cultural das classes
médias passa pelo compartilhamento dos repertórios culturais que identificam a
esquerda política. Dito de outra maneira, parte das fronteiras simbólicas que os
membros da fração cultural das classes médias traçam para demarcar seu
pertencimento coletivo formam uma fronteira política baseadas primariamente na
defesa de ideias de igualdade, dignidade, solidariedade e justiça social, e
secundariamente na defesa das instituições democráticas e de valores morais
progressistas. Essa fronteira se tornou particularmente rígida no atual contexto de
acirramento do conflito político no Brasil, o que significa que os critérios de
demarcação de sua identidade política se tornaram particularmente importantes na
definição de seus laços de pertencimento coletivo e, complementarmente, na exclusão
de pessoas de seus círculos de sociabilidade.
Argumentei também que a adesão dessa classe média de esquerda paulistana a
um discurso de preocupação com a desigualdade econômica e de luta contra ela são
mobilizados como uma forma propriamente moral de atribuição de valor alternativa
a atribuição de valor baseada em critérios socioeconômicos, e que essa tomada de
posição é adequada estruturalmente à sua posição de fração de classe – uma fração
minoritária e dominada. Assim, a fração cultural das classes médias paulistanas
165

constrói sua identidade política de fração de classe fundamentalmente na oposição


com aquelas que acreditam que são as posições políticas da fração econômica da
mesma classe. Sugiro, portanto, que os posicionamentos políticos de esquerda da
fração cultural são também um efeito estrutural de sua posição social e que são
orientados fundamentalmente para a demarcação de uma fronteira simbólica
“vertical”, isso é, uma fronteira contra aqueles que estão estruturalmente ao seu lado
no espaço social.
É por conta disso que quando Marilena Chauí discursa exaltada, e seu discurso
é ovacionado, diante de uma plateia de estudantes da USP afirmando que a “classe
média” é uma abominação política, ética e cognitiva, seu discurso é produto e
produtor da fronteira que separa as frações cultural e econômica das classes médias.
Certamente, ninguém naquele auditório tem dúvidas sobre os confortos que
caracterizam suas condições materiais de existência, mas nem por isso se veem como
parte dessa “classe média”. Se eles são fascistas, violentos e ignorantes, nós somos
progressistas, pacíficos e ilustrados. Nós podemos até fazer parte do mesmo estrato
se observarem nossas propriedades, mas há todo um universo de referências e de
tomadas de posições que nos separa. A política é, portanto, um dos mais fortes
critérios a criar uma fronteira para que a fração cultural se separe e encontre seu
valor diante da fração econômica.
166

CAPÍTULO 3. ESTILOS DE VIDA: A VALORIZAÇÃO DA CULTURA


LEGITIMADA

Ainda que marcadas pelo caráter anedótico típico da mídia de massas, duas
reportagens publicadas pela Veja São Paulo entre o final de 2019 e o início de 2020
ajudam a ver que a divisão entre as frações de classe econômicas e culturais são
percebidas popularmente, e que essa percepção se constrói, em primeiro lugar, com
base na oposição dos estilos de vida. Eram os faria limers e os santa ceciliers.
Assim como as reportagens foram produzidas uma em oposição a outra, elas
contam uma história de luta entre dois estilos de vida antagônicos88. Entre os faria
limers, tudo gira em torno da busca ascética pelo lucro econômico. "Falar de negócios
é uma prática 'non stop' na região da Faria Lima". Por isso, o valor da vida dos
sujeitos é pautado pelo quanto ele vale economicamente. Tudo deve ser caro, pois se é
caro tem valor: as roupas, os carros, os móveis, os objetos, as comidas, as bebidas. As
práticas culturais e intelectuais entram em cena apenas se forem orientadas para o
lucro econômico: leitura de livros sobre finanças, jogar xadrez para deixar o sistema
cognitivo afiado para o trabalho. Todo um ethos que se adequa bem ao
posicionamento liberal na economia discursado por diversos entrevistados da
reportagem.
Já entre os santa cecíliers, a valorização do "alternativo", do “autêntico”, e a
estilização da vida cotidiana é que servem de baliza: bares com cadeira de praia,
cerveja artesanal, apartamentos com chão de taco, samambaia e coleção de vinis. Na
"cultura" cara aos santa ceciliers, a oposição ao valor econômico dá o tom de sua luta
contra a cultura que identifica os faria limers. Ali, o consumo não tem mais valor se
for mais dispendioso, mas precisamente se representar valores alternativos ao
econômico: comprar de pequenos produtores ao invés de grandes redes, contrato de
serviços com base em afinidade política, roupas vindas de brechós, móveis
reaproveitados. As posições políticas transformam-se em estilo de vida também em
oposição mútua: se o investidor da Faria Lima coleciona imagens de touros de ouro,

88
As duas reportagens da Veja foram escritas por Mariana Rosário, a primeira com colaboração de Ana
Carolina Soares e a segunda com colaboração de Mariani Campos. Na mesma semana da publicação da
reportagem sobre os santa cecíliers, alguns dias antes de publicação da revista, o Uol publicou também uma
reportagem dedicada aos santa cecíliers, de autoria de Marcos Candido. Ver Rosário e Soares (2019), Rosário e
Campos (2020) e Candido (2020).
167

em referência ao de Wall Street, os santa cecíliers decoram suas casas com placas da
"Rua Marielle Franco" e imãs de geladeira "Lula Livre".
A popularidade que as reportagens ganharam, sobretudo nos debates nas
mídias sociais, permitiu que as classificações se tornassem parte do senso comum.
Mesmo entre meus entrevistados, os faria limers e os santa cecíliers foram
mobilizados como termos de acusação ou identificação. É evidente que as
classificação carecem de precisão conceitual – e nem é esse o objetivo de termos
produzidos pelo jornalismo. Os faria limers são, mais precisamente, uma parte das
frações econômicas das classes médias e altas de São Paulo, e os santa ceciliers são
uma parte emblemática da fração cultural das classes médias. Ainda assim, na
descrição pitoresca de seus estilos de vida nas reportagens, entrevemos de maneira
espontânea que a luta estilística de frações de classe é uma luta entre duas lógicas
opostas: a do capital econômico contra a do capital cultural.
Neste capítulo, descrevo o estilo de vida da fração cultural das classes médias
paulistanas. Inicio (3.1) com uma breve revisão da literatura sobre a estratificação
social dos estilos de vida, então entro na descrição e análise dos estilos de vida da
fração cultural das classes médias paulistanas, mostrando, primeiro (3.2), como eles
valorizam um estilo de vida “cultural”, e, depois (3.3), como eles desenvolvem a
partir de suas práticas e preferências culturais uma série estratégias de valorização
do capital cultural. Em seguida (3.4), mostro que o estilo de vida valorizado pela
fração estrutura a eficácia de fronteiras culturais e violência simbólica, e então, em
(3.5) a política dos estilos de vida, que seu trabalho de demarcação de fronteiras
simbólicas imbrica fortemente estilos de vida e posicionamentos políticos. Como se
deve notar, o argumento fundamental é análogo ao do capítulo anterior: assim como
seus posicionamentos políticos de esquerda, seu estilo de vida é adequado a sua
posição estrutural e é mobilizado em seu processo de demarcação de fronteiras
simbólicas contra as frações econômicas.

3.1 A estratificação social dos estilos de vida

No modelo proposto e analisado por Bourdieu em A Distinção, os estilos de


vida das classes médias eram marcados acima de tudo pelo que o autor chamou de
boa vontade cultural. Ao passo que as classes dominantes teriam como estilo de vida
168

o senso de distinção, identificado a partir de seu domínio profundo e refinado da


cultura legitimada, distância da necessidade e sua complementar disposição para a
estetização da vida cotidiana, e disposição estética marcada por uma valorização da
forma sobre a função e o conteúdo89, e que, na outra extremidade do espaço social, as
classes populares teriam um estilo de vida marcado pelo gosto de necessidade, em
que a pressão das necessidades materiais os inclina a justificar como uma
preferências aquilo que são obrigados a acessar pela limitação de suas condições de
vida, as classes médias – chamadas genericamente pelo autor de “pequena burguesia”
– teriam um estilo de vida marcado pelo reconhecimento sem conhecimento: elas
entendem a existência e reconhecem o valor da cultura legitimada (no que se
diferenciam das classes populares), mas não têm conhecimento profundo o suficiente
para se apropriar integralmente dessa cultura (no que se diferenciam das classes
dominantes). Com isso, a boa vontade cultural é o espaço por excelência dos
sentimentos de indignidade e docilidade cultural, de subordinação simbólica, de
esforço explícito, rigoroso e ascético para o aprendizado (tardio) da cultura
legitimada, espaço da hipercorreção, da confusão das classificações e do blefe
cultural. Por isso também, é o espaço em que há o recurso mais vigoroso aos
intermediários culturais e às versões vulgarizadas e simplificadas da cultura
legitimada: os manuais, os compilados, as cópias e falsificações, os resumos, as
adaptações, os arranjos simplificados (Bourdieu, 2017, pp. 300-307).
O quanto essa vinculação entre gostos de classe e estilos de vida (classes
dominantes = senso de distinção; classes médias = boa vontade cultural; classes
populares = gosto de necessidade) se mostra adequada enquanto modelo para outros
momentos históricos e contextos sociais vem sendo uma questão para as pesquisas
empíricas até o presente. Não farei aqui revisão sistemática sobre todos esses
estudos90. É necessário, no entanto, entender o quanto o modelo pode se mostrar
adequado para a realidade brasileira presente. Para tanto, grande auxílio é fornecido
pela pesquisa de Carolina Pulici (2010) O charme (in)discreto do gosto burguês
paulista, sobretudo por explicitar qual é, especificamente, a cultura legitimada
passível de operar como capital na São Paulo contemporânea.

89
Internamente ao padrão do senso de distinção, Bourdieu diferenciou o estilo de vida marcado pelo dispêndio
ostentatório e pelo luxo, típico da fração econômica das classes dominantes, do estilo de vida intelectual e
artístico, típico da fração cultural das classes dominantes. Esses gostos se constituem em oposição mútua sem
que com isso saiam do modelo geral do senso de distinção.
90
Bons resumos contemporâneos dessa agenda podem ser encontrados em Pulici (2009) e em Bertoncelo,
Netto, Ribeiro (2022).
169

Pulici realizou entre 2008 e 2009 trinta entrevistas em profundidade com


membros de diferentes frações das classes dominantes residentes na cidade de São
Paulo, explorando tanto suas práticas e preferências culturais e artísticas (por
música, cinema, teatro, literatura, artes plásticas etc.) quanto sua disposição para a
estilização dos ritos da vida mundana (mobiliário, decoração, preferências
gastronômicas, vestuário etc.)91. Destaco três constatações particularmente relevantes
da pesquisa de Pulici para o estudo da relação entre classes sociais, estilos de vida e
capital cultural que importam para a análise posterior de minha amostra.
A primeira é a de que o repertório da arte erudita e da alta cultura de maneira
ampla permanecem valorizados e operantes como capital entre as elites. A despeito
das alegações de que ela teria perdido eficácia como cultura legitimada (Prieur;
Savage, 2013), e a despeito também de ser relativamente pouco acessada quando
comparada ao repertório popular92, a cultura erudita permanece sendo relevante
tanto na demarcação do estilo de vida das elites quanto como mecanismo para a
reprodução de seus capitais. Foi comum entre os entrevistados de Pulici a ocupação
de cargos em instituições culturais de alto prestígio, a prática de mecenato artístico e
a alta frequência a exposições, museus, galerias e leilões de arte, além do
conhecimento aprofundado sobre as belas artes e da frequência assídua a óperas e
concertos de música clássica. A autora notou ainda que a participação em instituições
culturais é útil para o aferimento e reprodução de capital social entre diferentes
frações das elites, não se reduzindo, por isso, à fração mais intelectualizada da
burguesia (Pulici, 2010, pp. 147-148).
A segunda é a de que, se a participação em atividades artísticas e em
instituições culturais relevantes é um traço comum unificando diferentes frações das
elites, não parece existir, por outro lado, um padrão de gosto comum. Ao passo que a

91
É importante mencionar que a estratégia de recrutamento definida por Pulici teve relevante influência sobre
os resultados que obteve. Ela recrutou com base nos bairros da cidade de São Paulo, apoiando-se nos dados
que apontam para a homologia entre posições sociais e ocupação geográfica na cidade. A elite tradicional
entrevistada pela autora é fundamentalmente aquela que reside nos bairros-jardins (Jardim América, Jardim
Europa, Jardim Paulistano e Jardim Paulista), e a elite de ascensão recente é aquela que reside no Alphaville.
Isso fez com que Pulici não conseguisse observar com tanta precisão a oposição entre frações econômicas e
culturais entre seus entrevistados, o que teria conseguido se tivesse recrutado usando como indicador o grupo
profissional. Note-se ainda que sua amostra nos Jardins (23 entrevistados) é bem maior que sua amostra do
Alphaville (7 entrevistados).
92
Pesquisa amostral realizada em 2017 em todas as capitais brasileiras (Leiva, 2018) mostrou que a música
clássica era o estilo favorito de apenas 10% dos brasileiros, com apreço levemente maior entre aqueles com
ensino superior completo (lá é o favorito de 16%) e de classe de renda mais alta (favorito de 12% das classes
A/B). A mesma pesquisa mostrou que 66% dos brasileiros nunca foram a um concerto de música clássica, e que
apenas 11% havia ido pelo menos uma vez no último ano.
170

fração mais "intelectualizada" apresenta gosto mais vanguardista, a fração mais


propriamente "burguesa" entende como gosto legítimo a estética tradicional (Pulici,
2010, pp. 167-168). Assim, entre membros passíveis de serem classificados como
integrantes de um polo artístico e intelectual das elites (notadamente, artistas e
acadêmicos), a autora identificou exemplos de rejeição aos shoppings e às coisas
caras, demonstrações de amor puro pela arte, valorização da forma sobre o conteúdo,
avaliações estéticas predominando sobre as morais, conhecimento profundo das
hierarquias de legitimidade cultural, conhecimento de autores, diretores,
dramaturgos e artistas. Do outro lado, a fração mais "burguesa", ainda que também
tenha profunda formação artística, tende a rejeitar a arte abstrata e contemporânea, e
em todos os domínios culturais, seja nas belas artes ou nas escolhas mundanas de
estilização da vida, prefere tudo que se encaixe sob os adjetivos de "tradicional" e
"clássico".
Além deste fracionamento em polos mais ou menos intelectuais/burgueses, a
terceira constatação relevante é a de que os estilos de vida das elites também variam
fortemente com base na antiguidade de pertencimento às classes dominantes.
Enquanto a elite mais estabelecida é a verdadeira guardiã da cultura erudita e das
práticas de estilização da vida, a elite de ascensão recente – chamada pejorativamente
pela estabelecida de “novos ricos” – reconhece a legitimidade dos gostos dominantes,
mas não os domina adequadamente, exibindo um gosto mais marcado pela cultura
massificada e pelos julgamentos morais sobre a cultura: preferência por cinema de
shopping e filmes estadunidenses, escolha dos filmes em função dos atores e não dos
diretores, rejeição a filmes e peças com cenas consideradas desrespeitosas,
preferência por livros bestsellers, desconhecimento de cultura erudita, consumo de
programação televisiva. Ou seja, é entre a fração de ascensão recente – que, destaque-
se, é mais desprovida de capital cultural e social do que as frações tradicionais,
garantindo sua posição no topo do espaço social com base quase exclusivamente em
seu capital econômico –, que Pulici encontrou os principais exemplo de boa vontade
cultural entre seus entrevistados.
Cabe destacar ainda que a denegação do econômico foi encontrada por Pulici
entre as frações estabelecidas, mas não entre a ascendente. Com isso, ao passo que as
elites tradicionais discursam seu descompromisso com o valor econômico de seus
investimentos em arte e cultura, a elite de ascensão recente entende seus
investimentos em arte como um investimento financeiro orientado para a valorização
171

de seu capital econômico, demonstrando com isso estar distante da relação


propriamente estética com a cultura que valorizaria seu capital cultural.
Assim, a pesquisa realizada por Pulici evidencia que a cultura demarca
fronteiras simbólicas – mais especificamente, fronteiras culturais – entre as elites
paulistanas e as demais classes. O gosto tradicional, a disposição estética, o domínio
da cultura erudita e as práticas mundanas estetizadas são recursos operantes na
construção da identidade das elites paulistanas. Essa fronteira fica particularmente
clara no caso daqueles que ascenderam recentemente, na medida em que eles sentem
sobre si a pressão por adequação ao estilo de vida legitimado exigido para seu
pertencimento simbólico (Pulici, 2010, p. 246).
Constatações que complementam essas de Pulici vêm aparecendo em outras
pesquisas sobre o Brasil contemporâneo. Podemos observar tanto estudos
quantitativos que mostram a estratificação dos gostos e a desigualdades de acesso à
cultura quanto pesquisas qualitativas circunscritas a domínios culturais específicos
mostrando como a posição de classe e fração de classe predispõem os agentes para
diferentes modos de relação com a cultura e como os estilos de vida operam como
critérios de demarcação de pertencimento coletivo. Para o primeiro grupo,
encontramos um bom exemplo na pesquisa de Edison Bertoncelo (2019) sobre a
estratificação do consumo cultural entre a população brasileira 93, que mostra que a
maior posse de capital econômico e escolar predispõe os agentes para uma carga
maior de realização de lazeres externos e a adotarem com maior regularidade
atividades de maior valor simbólico (como frequentar galerias e exposições de arte,
teatro, museus e espetáculos de balé) e a rejeitarem mais intensamente atividades
como assistir programação televisiva. O autor identificou homologia semelhante para
os gostos musicais: quanto maior a renda, escolaridade e a escolaridade dos pais,
maior a preferência por MPB, rock, música clássica, jazz, choro e samba, em oposição
a preferência mais típica por sertanejo, forró, pagode, funk, gospel, brega e axé entre
as posições mais baixas do espaço social.

O que se vê é que, quanto maior o volume de capital econômico e cultural,


mais elevada é a competência dos agentes para "tomar posição" em relação
às possibilidades oferecidas no campo da música e em outros subspaços

93
Ele utilizou dados secundários oriundos da pesquisa “Públicos de Cultura”, realizada pelo SESC e pela
Fundação Perseu Abramo com base em questionários aplicados em 2013 com 2400 pessoas em diferentes
regiões do Brasil. Bertoncelo analisou os dados por meio de análise de correspondências múltiplas e análise de
agrupamento hierárquico.
172

simbólicos (escolhendo, por exemplo, um número maior de gêneros


preferidos), especialmente aquelas socialmente mais raras (as
apresentações/exibições artísticas, os gêneros teatrais e literários), e maior a
probabilidade de encontrarmos repertórios consonantes que combinam
gêneros musicais legítimos. Além disso, embora existam evidências de que a
fronteira entre a "alta" cultura e a cultura "popular" seja muito mais fluida do
que parece (o que significa que não é desprezível a probabilidade de
encontrarmos indivíduos que gostem de música clássica e de gêneros mais e
menos "populares" da música brasileira, como a MPB ou o samba, como
vimos a propósito da descrição das zonas 6 e 7), é provável que persistam
fronteiras de legitimidade conformadas pelas disputas travadas em cada
campo em torno do valor dos bens e das práticas (por exemplo, a diminuta
probabilidade de encontrarmos menções ao pagode, sertanejo ou forró como
gêneros musicais preferidos nas referidas zonas, que concentram elevadas
proporções de indivíduos dotados de maior capital escolar) (Bertoncelo,
2019, p. 267).94

Para o grupo de estudos qualitativo, podemos observar pesquisas como a de


Camila Gui Rosatti (2019) sobre o consumo socialmente diferenciado de mobiliário
modernista entre as classes médias e altas paulistanas, e a de Louise Claudino Maciel
(2018) sobre as diferenças de decoração de interiores entre elites recifenses. A
primeira, de caráter mais histórico, mostrou que o mobiliário modernista que surgiu
em meados do século XX em oposição à estética das antigas classes dominantes (isso
é, os estilos neo-clássico, neo-barroco e Luís XV) foi apropriada fundamentalmente
pela classe média em ascensão e pelas frações mais cultivadas culturalmente das
classes médias e dominantes, num esforço para se diferenciar por meio de seu gosto e
de suas práticas de estilização da vida da fração tradicional das elites. Já Maciel fez
trabalho de campo e entrevistas em profundidade com membros das classes
dominantes de Recife para investigar sua relação com a moradia e suas estratégias de
decoração da casa, e mostrou com isso que o conhecimento e as preferências em
termos de decoração variam coerentemente entre diferentes frações das classes altas:
a fração tradicional trata a moradia como um espaço de reprodução de sua linhagem
familiar, valorizando um estilo clássico e a exposição de bens herdados que
materializam o capital simbólico de sua família; a fração intelectual apresenta um
estilo mais "autoral", marcado pela transformação de objetos comuns em objetos
estéticos e na transgressão de fronteiras estilísticas, o que permitem que demonstrem
sua maestria simbólica; já a fração em ascensão exibe, por sua vez, um mobiliário
moderno/contemporâneo adquirido em lojas caras de decoração, uma vez que isso
não demanda deles nem herança simbólica nem conhecimento aprofundado sobre
94
Outro bom exemplo desse grupo de estudos quantitativos é a outra pesquisa de Bertoncelo (2022), já
mencionada no primeiro capítulo, mostrando que os investimentos em cultura e as preferências alimentares
variam entre as frações de classe econômica e cultural entre todas as classes sociais
173

decoração. Em ambas as pesquisas, os resultados inclinam para a confirmação da tese


da homologia estrutural entre classes e estilos de vida: a hierarquia estrutural dos
bens simbólicos corresponde à hierarquia estrutural das posições sociais,
predispondo, desta forma, os estilos de vida a demarcar fronteiras simbólicas.
Finalmente, é preciso remeter novamente aos resultados da pesquisa, ainda
em andamento, desenvolvida pelo projeto temático Fapesp Para além da distinção,
que vem estudando classes sociais, estilos de vida e capital cultural na cidade de São
Paulo por meio de uma combinação de métodos quantitativos e qualitativos. Os
grupos focais sobre práticas e preferências culturais realizados pelo projeto em
202295 apontaram para alguns padrões de estilos de vida unificando internamente e
separando mutuamente as frações de classe econômica e cultural, num modelo que,
como mostrei a seguir, encontra paralelos entre meus entrevistados.
Um primeiro padrão relevante é o que opõe uma relação com a cultura
propriamente estética, entre as frações culturais, a uma relação que encara a cultura
como lazer e entretenimento, entre as econômicas. Assim, de diferentes maneiras, as
frações culturais discursam a seriedade com que encaram suas práticas e preferências
culturais, exibindo interesse em ampliar seu repertório de referências sobre obras e
artistas, justificando suas escolhas com base em critérios estéticos, políticos e em
críticas sociais, valorizando a atuação das instituições de consagração cultural e
demonstrando um conhecimento mais amplo e refinado da oferta cultural e da
variabilidade estética. Do outro lado, as frações econômicas exibiram a tendência de
encarar a cultura como diversão: assistir a filmes e ouvir música, viajar, frequentar
lazeres externos, comer e beber são meios de "curtir a vida", não espaços de
conhecimento como o que se vê entre as frações culturais.
A seriedade com que encaram a cultura faz com que as frações culturais
tenham um cuidado muito maior com suas escolhas. Assim, foi recorrente nos grupos
focais das frações culturais a menção e a valorização dos intermediários culturais:
eles citam nomes de salas de cinema, plataforma de streaming, youtubers, sites,
influenciadores e listas de recomendações culturais. É notável ainda que, num

95
Já descrevi a estratégia de recrutamento e a composição dos grupos no primeiro capítulo (pp. 57-58, supra),
mas cabe relembrar que foram seis grupos construídos com base na classe e fração de classe: (1) estrato
profissional inferior com baixo capital econômico e cultural, (2) estrato profissional inferior com capital cultural
mais alto que o econômico, (3) estrato profissional médio com capital cultural mais alto que o econômico, (4)
estrato profissional médio com capital econômico mais alto que o cultural, (5) estrato profissional superior com
capital cultural mais alto que o econômico, (6) estrato profissional superior com capital econômico mais alto
que o cultural.
174

contexto de ampliação desmedida da oferta cultural, o recurso aos intermediários


culturais não parece ser mais algo típico das classes médias (como havia sugerido
Bourdieu). Pelo contrário, presente agora em todas as classes, o próprio
conhecimento sobre os melhores intermediários culturais parece ser um saber
passível de capitalização.
Outros meios de valorizar seu capital cultural entre as frações culturais são a
valorização do que entendem como “raro”, “alternativo” ou “autêntico”, e a recusa do
que entendem como “comercial”, “padronizado” e “massificado”. Na primeira
estratégia, nota-se a mobilização de um repertório tipicamente romântico que associa
a cultura legitimada a uma versão pregressa dos bens simbólicos que não teria sido,
ainda, desvirtuada pelo capitalismo:

O autêntico é o cinema de rua, em oposição ao de shopping; é a comida de


bairro ou artesanal em oposição a cadeias de restaurantes; é a roupa com
materiais reciclados ou de lojas do bairro (a valorização do território
apareceu em especial nos grupos inferiores com mais capital cultural), em
oposição a grandes lojas. Mesmo nas viagens, os grupos com mais capital
cultural tendem a usar a ideia de autenticidade para se opor a destinos de
massa (Bertoncelo; Netto, 2023, p. 25).

De forma semelhante, na segunda estratégia os membros das frações culturais


baseiam sua crítica naquilo que entendem que é demasiadamente orientado para o
mercado, num exemplo claro de denegação do econômico. Isso é notável quando eles
recusam os filmes de Hollywood, os cinemas de shopping (e os shopping centers de
maneira geral como espaços culturais) e as "comédionas" da Globo Filmes. Com isso,
nas frações culturais de todas as classes os grupos focais indicaram o esforço para a
construção de valores alternativos ao valor econômico.
Por sua vez, as frações econômicas, além de sua relação com a cultura marcada
pela ideia de entretenimento, também fazem frequentemente julgamentos morais
sobre aquilo que rejeitam. O melhor exemplo aqui é o funk, recusado entre as frações
econômicas de diferentes classes por conta da excessiva sexualização das mulheres.
Este é um exemplo de como suas escolhas culturais não passam, na maior parte das
vezes, por critérios propriamente estéticos. Outros exemplos são as escolhas com
base no valor econômico (sobretudo entre a fração econômica das classes populares)
ou na preocupação com segurança (critério recorrente na justificação de suas
escolhas por lazeres externos entre a fração econômica das classes superiores).
175

Observando em profundidade os estilos de vida da fração cultural das classes


médias paulistanas, mostrarei abaixo como os padrões de práticas e preferências de
minha amostra ecoam esses identificados pelos grupos focais do projeto temático,
sobretudo no que tange a seriedade com que tratam tudo que entendem como
“cultural”. Mostrarei, ainda, como sua relação com a cultura se orienta
estrategicamente para a demarcação de seu pertencimento coletivo, em oposição ao
que entendem ser o estilo de vida das frações econômicas.

3.2 Um estilo de vida “cultural”

De fato, como indica a percepção vulgarizada na imagem dos santa ceciliers,


tudo aquilo que possa ser encaixado sob o adjetivo de “cultural” desperta grande
interesse nos agentes que se caracterizam socialmente por sua posse de capital
cultural, tanto na esfera artística quanto na mundana. Assim, em seu tempo livre,
uma das atividades que desperta maior interesse dos meus entrevistados é reunir
amigos em casa para conversar, e a “cultura”, em sentido estrito96, é tema
privilegiado das conversas.

Guilherme: Quando você começa a se sentir adulto, você consegue chamar as


pessoas pra sua casa, você vai na casa delas. Isso eu comecei a fazer com
mais frequência de 2017 pra cá, eu tento fazer mais coisas em casa. Saraus de
poesia do Michel Temer, fiz duas vezes em casa [risos]. Pior que é verdade
isso aí, foi de sacanagem mas eu fiz [risos]. Mas, enfim, são reuniões de
pessoas basicamente pra conversar. Discute sobre livros, discute sobre
política, discute sobre outros gostos, mas num ambiente mais privado do que
os bares.

Os momentos de reunião para conversar, compartilhados em sociabilidade


com amigos próximos, estão entre as atividades de tempo livre que o grupo mais
valoriza. Apenas Regina marcou no Questionário que tem pouco interesse em

96
“Cultura”, grafada aqui entre aspas, refere-se ao uso mais restrito do termo, isso é, aquele que o associa às
artes e ao cultivo intelectual. Grafada sem aspas, refere-se à totalidade de símbolos que identificam um grupo
(Ortiz, 2017). Como lembra Bourdieu (2017, p. 95), o estudo da distinção cultural precisa unir ambos os
sentidos, mas para minha análise da fração cultural das classes médias é preciso separar os momentos em que
os entrevistados se referem ao sentido estrito do termo.
176

encontrar amigos, e isso tem a ver com o círculo de amizades restrito que tem em São
Paulo97.

Quadro 47. Usos do tempo livre98

Não Faço Faço às Faço com


Usos do tempo livre
faço pouco vezes frequência
Navegar na internet 0 2 4 21
Ficar com cônjuge/namorado(a) 7 1 4 15
Praticar esportes ou exercícios
1 11 1 14
físicos
Ficar com a família 0 7 6 14
Encontrar amigos 1 7 9 10
Estudar (sem ser por obrigação) 0 9 8 10
Produzir arte ou cultura 6 8 5 8
Cuidar de animais domésticos e
11 4 4 8
plantas
Atividades religiosas 19 2 4 2
Jogar videogame/jogos eletrônicos 13 8 5 1

Quadro 48. Interesse por atividades de tempo livre


Interesse por atividades de Nenhum Pouco Algum Muito
tempo livre interesse interesse interesse interesse
Encontrar amigos 0 1 6 20
Estudar (sem ser por obrigação) 0 1 10 16
Ficar com cônjuge/namorado(a) 0 0 11 16
Ficar com a família 0 4 8 15
Produzir arte ou cultura 2 1 10 14
Praticar esportes ou exercícios
0 1 13 13
físicos
Cuidar de animais domésticos e
8 3 6 10
plantas
Navegar na internet 1 5 12 9
Atividades religiosas 14 6 3 4
Jogar videogame/jogos eletrônicos 11 10 4 2

97
Ela nasceu e viveu durante a infância e juventude numa cidade do interior do estado, foi para a capital para
estudar e lá se casou, teve um filho, e segue vivendo até hoje. Contudo, relatou na entrevista nunca ter se
adaptado totalmente ao ambiente da capital e, em particular após ter terminado a faculdade, não ter muitos
amigos. A vida intensa de trabalho e cuidado com o filho é outro complicador para uma vida com mais
atividades coletivas e de lazer.
98
Para mapear os usos do tempo livre dos entrevistados, havia duas perguntas no Questionário, uma sobre
prática (Questão 1: O que você faz com mais e menos frequência no seu tempo livre? Marque para cada
atividade abaixo.) e uma sobre interesse (Questão 2: Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível
de interesse, independente de fazer ou não as atividades.). Para ambas, as possibilidades de ocupação do
tempo livre eram as mesmas. Já nas entrevistas, eu fazia um conjunto de perguntas para tentar captar os
significados que eles atribuem para cada prática, quais mais e menos valorizam e qual a origem dessas práticas
ao longo de suas vidas (Questões 8 a 15 do Roteiro de entrevistas).
177

Para a maior parte dos entrevistados, um tempo de lazer ideal é aquele


marcado pela recepção de amigos em casa ou, da mesma forma, pelos encontros na
casa de outros amigos, cozinhando juntos ou pedindo algo pra comer, bebendo algo,
ouvindo música e conversando. Parte deles complementa esse tempo na casa de
amigos com jogos coletivos (como os de tabuleiro) ou fumando maconha, outros
gostam de fazer churrascos e tomar café da manhã juntos, e mesmo de fazer
pequenas festas. Alex já usou sua casa como ponto de encontro para um grupo de
leitura sobre psicanálise com amigos, e Guilherme, como citado acima, organizou em
sua casa mais de uma vez saraus irônicos para ler poemas de Michel Temer.

Débora: Acho que sou bastante gregária [...]. Eu tenho um círculo grande de
amigos, mas um número menor de pessoas que eu encontro com muita
frequência. Eu tenho uma rotina muito, de amigos muito presentes.
Cozinhar, receber pessoas em casa. Eu faço muita coisa em casa.

Gustavo: De onde vêm esses amigos? São de muito tempo ou são mais
recentes?

Débora: São amigos de faculdade e de trabalho. São amigos do jornalismo.


Eu tenho poucos, ou acho que nenhum, acho que na minha vida prática, real,
eu não tenho amigos de infância, não.

Gustavo: Além do cozinhar, quando você recebe pessoas em casa, têm outras
atividades que são legais de fazer?

Débora: Sim, eu acho que, a gente ouve música, a gente tem essa coisa de, sei
lá... aparelho de vinil [risos], tem a coisa de ter um cachorro, a gente tem
uma cachorra, e essas pessoas curtem também. Mas acho que é isso. E
conversa-se muito, acho que também essa é outra característica. A gente
bebe, né, além de comer, a gente bebe. E as conversas muitas vezes vão pra
uma profundidade, assim... inesperada.

A proximidade residencial facilita essa prática, o que torna a atividade


particularmente comum entre aqueles que residem em bairros como Santa Cecília e
Vila Mariana, marcados como são pela presença maior de membros da fração cultural
das classes médias. Alex contou pelo menos oito amigos morando num raio de um
quilômetro de sua casa. Já Regina, morando num dos bairros que ficam fora da
região central, encontra na distância geográfica um empecilho a mais para se
encontrar pessoalmente com amigos e conhecidos. Guilherme também citou que sua
agenda social variou ao longo da vida acompanhado em alguma medida suas
mudanças de residência pelas regiões da cidade. São exemplos que mostram como a
proximidade no espaço social encontra mais um caminho para se traduzir em
178

proximidade geográfica ao impor empecilhos para a sociabilidade de tempo livre dos


agentes.
Os assuntos sobre os quais conversam quando se encontram com amigos para
passar o tempo giram sobretudo em torno de “cultura” e de política, o que oferece
uma boa oportunidade para que eles deixem ver, e com isso valorizem, seu capital
cultural incorporado. Falam sobre filmes, livros, música, mas também de assuntos de
política e sociedade que lhes desperta interesse comum. Adriano, que se divide entre
um círculo social de amigos de sua infância na periferia de São Paulo e outro mais
propriamente de membros da fração cultural das classes médias, este formado em
sua graduação e trabalho com música erudita, ajuda a entender essa divisão temática
nas conversas:

Adriano: Tem os amigos da minha vila, que a gente gosta de se reunir na


frente da casa de algum deles, e aí fica aquela galera reunida conversando,
falando besteira, relembrando o passado, ou sai pra jogar um futebol, alguma
coisa do tipo. E os meus amigos do trabalho, que a gente se reúne pra falar de
música, pra conversar sobre livros, assuntos mais... do nosso gosto, que a
gente acaba desenvolvendo com essa participação na arte

Gustavo: Mas você sente, então, que tem uma diferença nessa sociabilidade
entre seus amigos da vila e esses do trabalho?

Adriano: Tem. E é gigante.

Gustavo: Descreve pra mim, então, essas diferenças.

Adriano: [...] [com os amigos do trabalho] a conversa é, assim, a gente fala de


coisas que eu não conhecia e das quais, quando eu conheço, eu quero me
aprofundar. Então, traz conhecimento. É diferente. Quando você tá na
periferia, até o jeito de você falar, se você falar de um jeito [risos]... um pouco
mais complicado, a galera já, "ô, e aí? fala como a gente fala, pô! cê é
estranho!", saca? [risos]. Eu acho isso muito maluco.

De onde vêm esses amigos? Como indica a citação de Débora acima, no caso da
maioria dos entrevistados os amigos vêm da faculdade e do trabalho, o que por vezes
se sobrepõe. Da infância e adolescência, quando as amizades permanecem, são muito
selecionadas e profundas. Adriano, por exemplo, tem uma amizade de infância que
não é abalada sequer pelas posições políticas contrastantes (um é de esquerda e o
outro é bolsonarista). Vêm também de outros espaços de formação, como passagens
por teatro amador ou cursos de formação diversos. Novos amigos surgem ainda pela
união com o círculo de sociabilidade dos companheiros amorosos, e para os
entrevistados com filhos, amizades surgem ou se intensificam pelas experiências
comuns com a criação das crianças. Assim, por diferentes caminhos, a tendência
179

estrutural é a de formação de círculos de sociabilidade homogêneos em termos de


fração de classe, com a participação pontual de pessoas de outras posições sociais 99.
O tempo que passam exclusivamente com companheiros amorosos tem
algumas diferenças com relação a esse que passam com amigos, sendo marcado por
maior intimidade e permitindo atividades que são do interesse do casal mas não
necessariamente de seu círculo social. Nem por isso esse tempo deixa de ser marcado
pelo interesse e compartilhamento do que entendem que é “cultural”, ainda mais
tendo em vista a tendência à endogamia de fração de classe nos relacionamentos
amorosos já apontada no primeiro capítulo. Juntos, os casais frequentam lugares
específicos pela cidade e, em casa, assistem a filmes e séries. Roberto valoriza em
particular o tempo que passa sozinho com sua esposa: além de assistir a filmes e
séries, eles conversam bastante, meditam e fazem planos para o futuro:

Roberto: Eu, felizmente, tenho um casamento muito feliz, e a gente valoriza


muito o tempo em que a gente consegue estar juntos [...]. O mais comum, no
dia a dia, é a gente estar junto cozinhando, e estar junto relaxando, um pouco
ali vendo um streaming ou YouTube. A gente não tem mais televisão aberta
há um tempo, em casa. Então, assistir filme ou série, ou ver conteúdo no
YouTube acaba sendo a nossa principal distração, que substitui o que pra
muitos lares é a televisão. No mais, algumas práticas juntos, de meditação, e
conversas também. É basicamente isso. Ter tempo de qualidade pra
conversar, pra organizar os planos, projetos. Eu acho que é isso.

Para os solteiros, no entanto, há uma parte do tempo livre dedicado à busca


por relacionamentos amorosos. Luciano e Rafaela citaram uma série de encontros
inusitados com pessoas que conheceram por meio de aplicativos de relacionamento:

Luciano: Uma coisa que eu nunca tinha usado são aplicativos de


relacionamento. Porque eu fui casado por 13 anos, e não existia nem o
Tinder, que eu acho que foi o primeiro [...]. Então, é uma coisa que também
mudou, porque o uso desses aplicativos me colocou de novo numa vida de
solteiro que eu não me lembrava mais que existia. Então, sei lá... um dia fui
parar na Praça Roosevelt com uma, um date... [risos]. Coisa de adolescente,
assim, três da manhã na Roosevelt... [risos] tomando cerveja num copo de
plástico... [risos].

99
Omar Lizardo (2006) notou, para o caso dos Estados Unidos, que o domínio da cultura legitimada é funcional
para o estabelecimento e fortalecimento de vínculos sociais, e com isso para a reprodução do capital social,
internamente aos membros das classes médias e altas no país. Portanto, assim como a tendência do debate
político num contexto de acirramento do conflito político é o da formação de comunidades de interação mais
fechadas ideológicamente (França et al, 2018), a tendência entre aqueles que se distinguem socialmente por
seu alto volume de capital cultural é a de fechamento social entre aqueles que possuem, igualmente, maior
volume de capital cultural.
180

Produzir arte ou “cultura”, para a parte dos entrevistados que trabalha


profissionalmente com isso, é uma atividade que mistura tempo livre e tempo de
trabalho. Em minha amostra, isso foi particularmente notável no caso dos músicos,
que têm que dedicar grande parte do tempo que têm em casa para a prática de seus
instrumentos.

Luciano: A minha rotina sempre foi bastante ocupada por estudo do meu
instrumento. Porque, quando você tá na faculdade de música, em geral, você
tem outras matérias, mas isso é o que eu sinto que determina um tanto da
dinâmica que músicos, formados em música, acabam estabelecendo pra vida.
Eu vejo que isso acontece também com vários colegas, e pra mim é uma
realidade, a gente acaba se dedicando bastante ao instrumento, de várias
formas diferentes. Além das matérias teóricas, o desvendar o instrumento e o
tocar dependem muito de um tempo pra experimentação, do contato com o
instrumento com uma perspectiva de estar livre.

***

Rafaela: Músico praticamente não tem tempo livre. A gente trabalha de


domingo a domingo. E tudo que a gente fala de... tem todo o tempo de
trabalho que é ensaiando na orquestra, e tem todo o tempo de trabalho que é
ensaiando sozinho em casa, que pras outras pessoas parece tempo livre, mas
pra gente é tempo de trabalho. E são muitas horas.

Mas práticas artísticas são comuns também entre membros da fração cultural
das classes médias que não trabalham com elas profissionalmente, e aqui são
particularmente estratégicas para a valorização de seu capital cultural, na medida em
que, diferente do que ocorre com os profissionais, aparecem como práticas
desinteressadas, pautadas exclusivamente pelo prazer da realização estética. Ao
soarem desinteressadas, elas marcam aqueles que as realizam sob classificações
particularmente valorizadas entre as frações culturais: pessoas artísticas, com
sensibilidade estética, capazes de se expressar pela arte. Alex, por exemplo, apesar
de se dedicar profissionalmente à antropologia, também é músico, compositor, já
lançou um álbum e pretende lançar mais. Daiane também gosta de cantar e tocar, e já
participou de bandas, além de praticar atividades circenses. Alessandra escreve
poesias e participa de saraus artísticos em que pode apresentá-las publicamente.
Manuel já escreveu um livro de crônicas, e Flávio fotografa, com interesse particular
em ensaios de paisagem urbana; já pensou inclusive em vender algumas de suas
fotos. Leandro, Alex e Vinicius tiveram extensas passagens pelo teatro amador
durante a adolescência e início da idade adulta.
O tempo livre dedicado ao estudo está para o grupo dos acadêmicos como
aquele dedicado à prática musical está para o dos músicos, na medida em que a
181

separação entre tempo livre e tempo de trabalho é bastante nebulosa. No entanto,


também aqui, a prática é tanto mais propícia para a valorização do capital cultural
quanto mais aparecer como desinteressada de lucros econômicos. O marcador de
separação costuma ser a distância temática com relação a suas áreas de estudo e a
realização em ambiente externo ao propriamente acadêmico. Alessandra, por
exemplo, participa de um grupo de estudos sobre filosofia (que não é sua área de
formação), e Alex já participou de um sobre psicanálise (apesar de ser antropólogo).
Daiane, que é do direito e faz pós-graduação em outro curso da área de humanas,
também disse que gosta de passar seu tempo livre lendo sobre filosofia e
antropologia, e Isabel citou que com a conclusão de seu doutorado conseguiu ler
sobre temas que sempre a interessaram mas que não lia por falta de tempo, como
livros sobre relações raciais, necropolítica e economia solidária. Alguns citaram ainda
a necessidade de ler livros de filosofia ou de ciências sociais para se formarem
politicamente, apesar de não atuarem nessas áreas: Adriano (músico) falou sobre ler
Marx, Débora (jornalista) falou sobre ler Marx e Hegel, Ronaldo (jornalista) falou
sobre ler Marx e Maquiavel. Em todos esses casos, eles estão estudando temas que
não são oficialmente de seu métier, mas que podem vir a ser úteis para seu futuro
profissional, além de muni-los de um conhecimento útil para o estabelecimento de
laços nos valorizados momentos de reuniões para conversar, ou conhecimentos que
simplesmente lhes valoriza como pessoas de “conhecimento amplo”, aquelas que
dominam assuntos variados para além de sua área de atuação, o que, como mostrei
abaixo, é altamente prestigiado entre os membros da fração estudada.
Já quando saem de casa, os espaços favoritos passam novamente por aquilo
que pode mais facilmente ser encaixado sob o rótulo de “cultural”, sobretudo no caso
daqueles lugares que se pode associar diretamente às Belas Artes (museus e
exposições de artes plásticas, teatro, shows e concertos), ainda que também se
encontre aqui espaços em que os agentes podem estetizar a vida cotidiana (destaque,
aqui, para os restaurantes e os bares).
182

Quadro 49. Frequência a lazeres externos100

Uma vez Uma Uma vez Uma


Não
Lazeres externos por vez por por vez por
frequento
semana mês semestre ano

Academias de ginástica 16 0 1 2 8

Restaurantes 14 11 2 0 0

Parques, praças e clubes 11 11 2 2 1

Bares 8 11 3 0 5

Óperas, orquestras e
concertos de música 4 4 2 7 10
clássica

Cinema 2 10 9 2 4

Sair para cantar e dançar 2 3 9 5 8

Shoppings a passeio 2 11 8 1 5

Saraus e eventos de cultura


1 10 6 5 5
popular

Festas, baladas e casas


1 6 7 5 8
noturnas

Igrejas e espaços de culto


2 0 2 5 18
religioso

Museus e exposições de
1 9 9 6 2
artes plásticas

Shows ao vivo 0 8 14 4 1

Passeios ecológicos, trilhas


0 7 9 6 5
e cachoeiras

Teatro 0 5 14 4 4

Eventos esportivos 0 2 4 7 14

Espetáculos de dança 0 2 8 8 9

Pancadões 0 0 0 2 25

100
Os instrumentos de pesquisa aqui eram bem semelhantes aos aplicados para explorar os usos do tempo
livre. No Questionário havia questões sobre frequência a lazeres externos (Questões 3 e 5: Marque com qual
frequência você vai a cada atividade listada abaixo.) e sobre interesse por lazeres externos (Questões 4 e 6:
Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de frequentar ou não.),
com a mesma lista de possíveis lazeres externos para ambas. No Roteiro de entrevistas, um bloco de perguntas
(Questões 16 a 20 do roteiro de entrevistas.) era orientado para captar sentidos, legitimidade e origem das
práticas.
183

Quadro 50. Interesse por lazeres externos

Interesse em lazeres Nenhum Pouco Algum Muito


externos interesse interesse interesse interesse

Restaurantes 0 0 6 21

Museus e exposições de artes


0 1 5 21
plásticas

Teatro 0 2 5 20

Shows ao vivo 1 0 7 19

Parques, praças e clubes 0 3 9 15

Cinema 0 5 8 14

Óperas, orquestras e concertos


0 4 9 14
de música clássica

Passeios ecológicos, trilhas e


1 6 7 13
cachoeiras

Saraus e eventos de cultura


0 5 10 12
popular

Academias de ginástica 4 3 10 10

Sair para cantar e dançar 3 5 10 9

Espetáculos de dança 4 6 9 8

Bares 2 3 16 6

Eventos esportivos 7 10 4 6

Festas, baladas e casas noturnas 8 9 7 3

Igrejas e espaços de culto


15 8 1 3
religioso

Pancadões 16 7 2 2

Shoppings a passeio 10 9 6 2

A legitimidade e valorização dos espaços “culturais” ficam particularmente


claras quando se nota que, para diversos entrevistados, a frequência a eles deveria ser
sempre mais alta do que é, bem como que, para aqueles que têm filhos, existe uma
noção de que levá-los a esses espaços é parte do trabalho de cuidado e formação das
crianças.

Gustavo: Exposições de arte, museus, concertos de música clássica, fazem


parte da sua rotina ou não?
184

Débora: Da rotina, não. Acho que exposições, mais do que concertos ou


espetáculos de dança. Teatro, por exemplo, é uma coisa que eu faço bem
menos. Mas, assim, sei lá, acho que esse ano eu devo ter ido ao teatro umas
três vezes101. Certeza que é pouco, mas é mais do que a média das pessoas,
tenho certeza também. Assim como exposições, é o tipo de coisa que eu vou e
depois falo, "nossa, eu devia fazer mais isso, porque que eu não faço mais?".

***

Mário: A gente tenta levar a nossa filha para o máximo de atividades assim,
possível, né. Então, sempre que tem um teatrinho, alguma coisa desse tipo,
direcionada pra ela, a gente acaba levando.

Gustavo: Por quê?

Mário: Por que nós achamos que isso enriquece a experiência dela, entende?

***

Vanessa: Quando eu tava trabalhando, vira e mexe, de três em três meses, eu


procurava sempre levá-las [as filhas] ao teatro, ter essa porta, né. Porque eu
acho importante a arte. Eu, quando mais nova, desejava ser artista, então, eu
acho esplendida a arte, a arte é imprescindível nas nossas vidas.

As óperas e concertos de música clássica aparecem nas falas dos entrevistados


como versões especialmente valorizadas dos espaços que eles entendem como
propriamente “culturais”. Eles são exemplos de escolhas particularmente “seguras”
para a valorização do capital cultural, na medida em que apontam, por si mesmos, na
maior parte dos casos, para bens simbólicos que materializam a cultura legitimada,
tendo em vista sua posição destacada como símbolos da “alta cultura”. Entre aqueles
que não são propriamente da música erudita, Alex foi exemplo de entrevistado que
citou o apreço por estes espaços, mas disse que só vai quando sobra dinheiro, ou que
vai à Sala São Paulo junto de um colega que tem a assinatura de lá. Ronaldo disse que
ia toda semana a concertos de música clássica durante grande parte da vida adulta,
mas que também deixou de ir em anos recentes por conta do preço elevado. Já
Débora, numa fala que não poderia ser mais explícita na demarcação do elevado valor
simbólico desses espaços, disse que não vai a concertos por “falta de educação”.
Para Luciano, que vem tendo recentemente encontros amorosos com mulheres
que conhece em aplicativos de relacionamento, marcar os encontros em espaços
reconhecidamente "culturais" oferece uma oportunidade a mais de exibir seu
conhecimento da cultura legitimada. Assim como a entrevista de emprego, o encontro
amoroso é uma situação na qual os agentes precisam demonstrar da melhor maneira

101
A entrevista com Débora foi realizada no começo de maio de 2023.
185

possível e num espaço limitado de tempo seu "valor" para seu interlocutor. Como o
"valor" principal de um membro das frações culturais é seu capital cultural, marcar os
encontros em espaços “culturais” é uma ação estrategicamente adaptada à
valorização de suas qualidades.

Luciano: Em geral, eu convido pra coisas que eu acho que são interessantes,
né, nesse caso. Coisas gratuitas ou... exposições, enfim, no Centro Cultural
Banco do Brasil, alguma coisa no Sesc. Também, uma coisa que funciona a
meu favor é, muitas vezes eu convido as meninas pra assistir a um concerto
que eu tô tocando aquela semana na orquestra, então... acaba que o rolê
cultural é dela, pra mim é trabalho, pra ela é rolê cultural [risos], depois a
gente sai, enfim. Então isso é... é uma boa prática [risos] cultural.

Além dos espaços “culturais”, os bares, que aparecem nas falas de diversos
entrevistados como um de seus espaços favoritos, constituem um lócus para a
sociabilidade que oferece oportunidades para a valorização do capital cultural
semelhante à das reuniões de amigos em ambiente doméstico. Para a maior parte dos
entrevistados, os bares surgiram no contexto universitário102, constituindo-se como o
lugar por excelência da sociabilidade universitária, para se conhecer pessoas e
conversar. Com o avançar da idade e a transição da faculdade para a vida
profissional, vai se estabelecendo um corte, como supracitado pelo exemplo de
Guilherme que disse que passou a chamar mais amigos para sua casa quando
começou a “se sentir adulto”. A frequência aos bares tende a diminuir e se
intensificam as reuniões nas casas de amigos, e com os companheiros amorosos e
amigos mais íntimos, os restaurantes vão se tornando uma opção mais atraente.
Mesmo assim, quase nenhum entrevistado deixou definitivamente de ir a bares:

Elaine: [o bar] é uma coisa que eu acho que faz mais sentido, que eu sinto
que é um lugar mais democrático, no sentido de que funciona pra todos os
meus amigos: se alguém quiser comer alguma coisa, vai ter o que comer, se
alguém quiser beber alguma coisa, não vai ter que pagar pra entrar.

Bastante semelhantes aos bares são as rodas de samba e choro, opção que não
constava no Questionário, mas que foi citada espontaneamente nas entrevistas por
cinco pessoas (Daiane, Débora, Isabel, Rafaela, Samuel). As rodas de samba atraem
por terem características semelhantes às dos bares, mas com o adendo da música ao

102
Alex e Samuel são exceções, pois já frequentavam desde antes junto de seus pais.
186

vivo de um dos estilos musicais favoritos dos membros da fração cultural das classes
médias: o samba.

Samuel: Bares com certeza, assim, principalmente na roda de choro e samba,


né. Acho que isso tá conectado, assim. Mas eu gosto de ir em bares, quando
eu tenho a possibilidade de sair com alguns amigos essa é uma sugestão que
eu sempre dou. Porque eu acho que é um ambiente que, primeiro, eu consigo
conversar com as pessoas, consigo beber [risos], e, às vezes, contemplar
alguma música. Então, eu acho que o ambiente dos bares, sim, pra mim.

Mas não é apenas por sua praticidade – explícita, por constituir um espaço que
atende às necessidades práticas de reunir pessoas, comer e beber, e implícita, por
constituir um contexto propício para a valorização do capital cultural – que os bares
têm papel de destaque na composição dos estilos de vida dessa fração de classe. Os
bares, assim como os momentos de reuniões com amigos para conversar, ganham
importância destacada entre a fração cultural das classes médias por remeterem a
uma referência arquetípica que ressoa fortemente sobre essa fração de classe: a
boemia. A descrição feita em História da vida privada sobre o estilo de vida boêmio
da França de meados do século XIX chama a atenção, aqui, pela proximidade com
diversas falas de meus entrevistados.

A boêmia constrói um modelo simetricamente inverso à vida privada


burguesa. Primeiramente por sua relação invertida com o tempo e o espaço:
vida noturna, sem horários – o boêmio não usa relógio –, de intensa
sociabilidade tendo como palco a cidade, os salões, bares e avenidas. Os
boêmios “não conseguem andar dez passos na avenida sem encontrar um
amigo”. Conversar é seu prazer, sua principal ocupação. Eles vivem,
escrevem nos bares, bibliotecas e gabinetes de leitura, próximos das classes
populares pelo uso privativo que fazem do espaço público (Perrot, 1991, p.
295).

A aproximação com o repertório cultural da boemia é dada menos por


inspiração direta (quase nenhum entrevistado mencionou explicitamente o termo)
que pela homologia estrutural das posições sociais. Os boêmios da Europa do século
XIX eram fundamentalmente a fração cultural das classes médias, ainda que num
contexto inicial de autonomização dos campos artístico e intelectual (Bourdieu,
2005b). “Acima” do proletariado mas “abaixo” tanto da burguesia quanto da
aristocracia cultural, e num esforço para se diferenciar da pequena burguesia (fração
econômica das classes médias), o emergente grupo de artistas, jornalistas e escritores
de menor destaque que constituía a fração cultural das classes médias desenvolveu
estratégias para traçar uma fronteira cultural por meio da construção de um estilo de
187

vida marcado pela valorização da sociabilidade coletiva, dos laços de amizade, da


estetização da vida cotidiana, da ocupação dos espaços públicos e da subversão da
racionalidade econômica; portanto, um estilo de vida em tudo oposto ao da burguesia
que cristalizava sua posição como classe dominante. Os boêmios atuavam no campo
de produção cultural, mas não restringiam sua produção a ele, levando-a para a vida
cotidiana e, com isso, estetizando sua vida em oposição aos burgueses (Featherstone,
1995). Por se encontrar na mesma posição estrutural que aquela fração que construiu
o estilo de vida boêmio na Europa moderna, a fração cultural das classes médias na
São Paulo contemporânea não deixa de exibir e de valorizar características estilísticas
homólogas, na medida em que elas são adequadas estruturalmente à sua posição
social.

Guilherme: Bares, sim, com certeza, embora eu não beba; só fiquei bêbado
uma vez, foi quando o Corinthians ganhou a Libertadores, mas de resto... Eu
não bebo muito, mas eu vou, eu ia muito a bares, assim, uma vez por
semana. Eu era o cara que organizava os bares. Eu organizava, era o último a
ir embora, não bebia nada e ainda não levava ninguém embora, porque eu
não sei dirigir... Mas, enfim, eu ia muito, toda sexta-feira, pelo menos, se eu
pudesse, juntava pessoas diferentes...

Ocupando seu tempo livre com uma variedade diversa de práticas que podem
ser classificadas como “culturais” e que oferecem para eles a possibilidade de estetizar
sua vida mundana, e com isso demonstrar sua maestria simbólica, os membros da
fração cultural das classes médias paulistanas constroem uma identidade coletiva que
os identifica, propriamente, como sujeitos “culturais”. Trata-se de um estilo de vida
particularmente adequado para sua posição social, na medida em que oferece grande
amplitude de oportunidades para que eles exibam publicamente e, com isso,
valorizem e transformem em capital simbólico seu capital cultural incorporado.

3.3 Estratégias de valorização do capital cultural

Como já comecei a indicar na seção anterior, em todo o conjunto de práticas


culturais que ocupa o cotidiano dos membros da fração cultural das classes médias
paulistanas eles encontram caminhos em que podem exibir e valorizar
estrategicamente seu capital cultural. Em primeiro lugar, como se pode notar por seu
apreço por espaços como os museus, exposições e galerias de arte, óperas e concertos
188

de música clássica, o capital cultural que possuem, isso é, seu domínio incorporado
da cultura legitimada, se expressa pelo conhecimento e apreço dos objetos ou estilos
que são, por si mesmos, entendidos como exemplares da cultura que é mais
valorizada. É na mesma linha que se pode compreender que entre seus gostos
musicais predomine a MPB, entre seus gostos literários os clássicos da literatura e
entre seus gostos audiovisuais os documentários. Em todos os casos, a preferência
não é difícil de ser explicitada pois as categorias apontam para escolhas “seguras”.

Quadro 51. Preferências musicais103

Estilos musicais que não


Estilos musicais favoritos n n
gostam
MPB 21 Gospel/Religiosa 18
Clássica 11 Sertaneja 14
Rock 11 Trap 9
Samba 9 Funk 9
Jazz/Blues 9 Eletrônica 7
Pop 9 Axé 7
Pagode 3 Forró 2
Eletrônica 2 Romântica 2
Rap 2 Rap 2
Gospel/Religiosa 1 Clássica 1
Romântica 1 Rock 1
Axé 0 MPB 0
Forró 0 Samba 0
Funk 0 Jazz/Blues 0
Sertaneja 0 Pop 0
Trap 0 Pagode 0

Quadro 52. Preferências literárias104

Estilos literários que não


Estilos literários favoritos n n
gostam
Clássicos da literatura 21 Autoajuda 18
Empreendedorismo, liderança e
Suspense ou mistério 9 16
investimentos
Temas religiosos ou de
Biografias 9 14
espiritualidade
Poesia ou poemas 9 Ficção científica 5
Autoajuda 4 Histórias em quadrinhos 5

103
Para captar as preferências musicais, literárias e audiovisuais dos entrevistados, havia no Questionário uma
série de estilos de cada um dos três domínios culturais para eles marcarem os seus favoritos (podiam
selecionar até três opções em cada domínio) e os que menos gostam ou não gostam (também até três opções).
Um bloco de questões no Roteiro de entrevistas era dedicado também a captar os sentidos que atribuem aos
diferentes estilos musicais, literários e audiovisuais, suas noções de legitimidade e a origem dos gostos.
Perguntas 8, 9, 11, 12, 14 e 15 do Questionário; perguntas 21 a 41 do Roteiro de entrevistas.
104
Guilherme, Roberto e Vinicius marcaram no questionaram que não leem livros regularmente, por isso não
responderam a pergunta sobre preferências literárias.
189

Temas religiosos ou de
4 Fantasia 3
espiritualidade
Best Sellers 3 Biografias 2
Ficção científica 2 Best Sellers 1
Fantasia 2 Clássicos da literatura 0
Empreendedorismo, liderança e
1 Suspense ou mistério 0
investimentos
Histórias em quadrinhos 1 Poesia ou poemas 0

Quadro 53. Preferências audiovisuais105

Estilos audiovisuais Estilos audiovisuais que


n n
favoritos não gostam
Documental 12 Religiosos 16
Comédia 10 Terror 14
Temática social 10 Adolescente 8
Cult / de Arte 8 Super herói 5
Suspense 7 Guerra 4
Drama 7 Ficção científica 4
Comédia romântica 6 Comédia 3
Ficção científica 4 Comédia romântica 2
Romance 4 Ação ou aventura 2
Fantasia 3 Familiar 2
Ação ou aventura 2 Documental 1
Animação ou desenho 1 Drama 1
Terror 1 Romance 1
Adolescente 0 Cult / de Arte 1
Familiar 0 Suspense 1
Guerra 0 Animação ou desenho 1
Religiosos 0 Temática social 0
Super herói 0 Fantasia 0

No entanto, como lembra Douglas Holt (1997), mais do que a escolha pelos
objetos que são por si só legitimados, a expressão do capital cultural é mais
precisamente a demonstração de um domínio incorporado das formas mais
legitimadas de apreciação dos bens culturais, isso é, mais especificamente, uma
apreciação propriamente estética. Assim, a demonstração da disposição estética por
meio da qual podem exibir, e com isso valorizar, sua maestria simbólica deve ser
constatada não apenas pelos bens e estilos que eles afirmam apreciar e não apreciar,
mas também pela forma como entendem a variabilidade de formas e expressões que
valorizam e que desvalorizam. Dito de outra maneira, é preciso observar a forma

105
Lucia*, Marcio* e Vinicius marcaram no questionaram que não assistem a filmes e séries regularmente, por
isso não responderam a pergunta sobre preferências audiovisuais.
190

como os entrevistados se relacionam com a cultura, independente de qual seja o bem


cultural com o qual estão se relacionando.
O modelo mais geral da disposição estética é aquele que pode ser identificado
por uma relação com os bens simbólicos que se atenta à forma mais que ao conteúdo
ou a função. Trata-se, aqui, da capacidade de observar os bens simbólicos a partir de
sua posição relacional dentro de um espaço mais amplo de possibilidades estilísticas
(ou seja, observar os bens simbólicos a partir de sua inserção num espaço simbólico),
o que só pode ser feito por aqueles que possuem um conhecimento das referências
estilísticas amplo o suficiente para permitir comparações formais. Para aqueles
munidos das referências, a relação com a cultura tende a ser, de forma praticamente
incontornável, uma relação de constante análise comparativa.

Luciano: Tem esse pessoal da orquestra, logo que eu separei, tem uma turma
que... é muito curioso, muito legal, que eles curtem rave, eles curtem música
eletrônica, assim... e é, assim, a harpista, o oboísta, o violista, são as pessoas
que você diria que é a mais careta e é a mais doida [risos]. E eles falaram,
"vamo numa rave", e aí, no final do ano passado, eu nunca tinha ido... não
chega a ser uma rave, não era exatamente uma... mas era uma dessas
baladas que começam nove da noite e termina dez da manhã, e com música
eletrônica [...]. Tem uma maneira racional de se ouvir música, que essa a
gente, enquanto músico, é um aprendizado tão intenso que a gente não
consegue se desfazer. Então, quando eu ouço uma música, eu tô ouvindo a
estrutura dela, é inevitável, eu não consigo evitar isso. E meu gosto também é
um tanto esse julgamento. Então, quando eu vou numa, sei lá, numa balada
no Bar do Julinho, é obvio que eu não tô preocupado se tá desafinado ou se
não tá. Mas eu presto atenção naquilo, aquilo me chama a atenção. E tem um
jeito de ouvir música que é esse jeito físico, que é uma experiência única,
porque... inclusive também pra mim foi muito difícil não ficar decupando o
que que era aquela música. Porque eu sempre tive essa sensação de, o que
que atrai as pessoas pra uma balada de música eletrônica, né.

Exemplos variados de disposição estética apareceram nas falas de meus


entrevistados: quando Luciano e Rafaela dizem que não ouvem música clássica en
passant, mas apenas com uma escuta ativa, dedicada e analítica; quando Regina
menciona que gosta de frequentar igrejas não por uma questão religiosa, mas para
observar sua arquitetura; quando Ronaldo e Rosângela dizem que seus gostos
literários são identificados pela "história bem contada", independente de qual seja a
história (Rosângela diz que gosta até de Sidney Sheldon, exemplar do que poderia ser
uma literatura deslegitimada; para ela, ele sabe contar bem as histórias). Em todos os
casos, a atenção à forma é sempre um critério de qualidade e de justificação mais
importante que o conteúdo ou a função.
191

Samuel: Um tempo atrás, eu tava me aprofundando no Gabriel García


Márquez. Tentei ler o Cem anos de solidão em espanhol, né, pra ver o que é
que acontecia [risos], foi muito bacana.

Junto da disposição estética, outra das principais estratégias de valorização de


seu domínio da cultura legitimada encontra-se na promoção de uma divisão
simbólica que opõe simples a complexo. Quando solicitados a explicar seus gostos
culturais, uma das justificativas mais rápidas a que os entrevistados chegam é a de
que eles gostam daquilo que é mais complexo, ou seja, mais difícil.

Rafaela: Eu vou falar uma coisa horrível que se os sociólogos musicais


ouvissem eles iam me bater, mas foda-se. A música que a gente chama de
“erudita” tem infinitamente mais elementos. Ela dura muito mais tempo, ela
tem – geralmente, não sempre – muito mais camadas de acontecimentos, e
um discurso, muitas vezes, mais complexo. Assim, tem muito mais coisa
acontecendo durante muito mais tempo. Até o ouvido apreender tudo isso,
vai muito mais vezes.

A oposição simples x complexo emerge de maneira particularmente evidente


quando eles estão comentando sobre seus gostos musicais (mas não apenas eles,
como se nota abaixo), e encontra homólogos em outros pares antagônicos de
adjetivos: fácil x difícil, raso x profundo, rico x pobre. Adriano prefere o sertanejo
raiz ao contemporâneo pois as melodias são mais complexas e as letras mais
inteligentes. Daiane gosta de jazz por sentir que as músicas são mais complexas para
se cantar, pois apresentam mais variações. Alessandra, Débora e Flávio desprezam os
livros de autoajuda pois são mal escritos e superficiais. Leandro gosta de MPB pois é
uma música rica em sua construção, seus jogos de palavras, diferente da música
sertaneja atual, que é monotemática, simples, repetitiva, pobre. Falas praticamente
iguais aparecem na justificativa dos gostos musicais de Alex, Luciano, Manuel,
Ronaldo, Rita, Rosângela e Samuel.

Luciano: O meu desgosto é muito mais uma birra, e também porque eu acho
que são estilos – principalmente o sertanejo e o axé atual –, essa coisa que é
um pouco enraizada... que no fundo, o pop vai trazendo tudo pra um nível de
superficialidade tão grande, que acaba ficando tudo muito parecido. Então,
você começa a ouvir uns sertanejos que tem uma levada meio reggaeton, e
você começa a ouvir um axé que parece sertanejo, e você fala, "pô, mas tá
tudo igual". Porque tem, realmente, a estandardização. Todo mundo acha
que encontrou a fórmula perfeita e fica tentando repetir aquilo ad nauseam.
Pra mim, esses estilos são os que mais entraram nessa questão de você ter
absolutamente produtores – não existe mais compositor de música –, então
existe o produtor que faz uma letra que é uma mescla daquilo com aquilo,
com não sei o que, e a voz, quem vai cantar é não sei quem, com esse tipo de
filtro na voz... Então é uma coisa que é tão pacotinho, e esses estilos estão
192

virando isso. Há um bom tempo já são isso. Pra mim, é um tipo de estilo
plástico, altamente descartável, pouco profundo em todos esses aspectos.

Em linha com a seriedade de sua relação com a cultura que já havia sido
notada nos grupos focais do projeto Para além da distinção, entender seus gostos
como exemplares de uma cultura complexa é propício para a valorização de seu
capital cultural pois transforma em desafio aquilo que, para as frações econômicas, é
meramente uma diversão. Para a fração cultural das classes médias, aquilo que eles
gostam é desafiador, e por isso necessita uma formação, necessita um aprendizado
prévio, necessita esforço, cultivo. A pessoa que demonstra seu apreço pelo que é
complexo precisa ser ela mesma uma pessoa complexa, uma pessoa que investiu seu
tempo para enfrentar os desafios impostos por uma cultura desafiadora.

Alex: Naquela época o importante, pra mim, era viajar numa ideia de que a
música tem que ser um troço difícil, a música ser um troço complexo, de
difícil execução, cerebral, onde tem que ter muito virtuosismo, muita
transpiração técnica. Eram coisas que me deixavam ligado. E todas as
músicas faziam isso, de alguma forma, todas essas músicas faziam isso, né. O
metal de uma forma que depois, pra mim, foi a que caducou mais cedo, que
pra mim ficou uma coisa enjoativa e anacrônica. Mas o clássico, o jazz e o
rock progressivo eram essas coisas que tentavam levar a ideia da
performance musical e da composição a meio que um limite. E quando eu
era moleque, com 16, 17 anos, aprendendo a tocar guitarra, eu curtia tudo
aquilo que eu não conseguia tocar. Eu não conseguir tocar já era um ponto
positivo. E, ao mesmo tempo, a gente pegava as musiquinhas pop, tirava em
dois minutos, era divertido, mas, eu falava, "tá bom, ok, isso não interessa
pra mim".

Noutro caminho para se distanciar da relação descompromissada com a


cultura, grande parte das práticas e preferências culturais dos membros da fração
cultural das classes médias é compreendida por eles como uma forma de buscar
conhecimento, de aprender algo, de se auto aperfeiçoar. Trata-se, aqui, de uma das
estratégias em que se pode perceber de maneira mais explícita que a ocupação de seu
tempo livre é fortemente marcada por um trabalho ascético de valorização de seu
capital cultural.

Alessandra: E gosto muito de ir a museus

Gustavo: Por quê?

Alessandra: Porque eu gosto de aprender, né? Geralmente, quando eu


escolho uma viagem, dificilmente eu viajo só pra descansar, só pra relaxar.
Sempre é um lugar que eu vou ter lugares pra frequentar pra aprender sobre
a cultura.
193

Gustavo: Você tem exemplos disso?

Alessandra: Sim. Agora, em janeiro, a gente foi pro Chile. Então na viagem a
gente foi pra museu, pro centro histórico...

Aqui se encaixam as práticas artísticas e os estudos desinteressados, já


mencionados acima, mas também as diversas falas em que seu consumo cultural é
entendido como uma forma de se enriquecer culturalmente: Débora, Flávio e Regina
disseram que gostam dos clássicos da literatura pois eles são registros do seu tempo,
e que eles lhes ensinam sobre a sociedade e a história. Flávio, Leandro, Marlene e
Rita entendem que a MPB lhes ensina sobre a história do Brasil, mesma percepção
expressa por Mário para justificar seu gosto por samba. Alessandra, Débora,
Guilherme, Manuel e Ronaldo justificam também seu apreço por biografias e
documentários sob o molde do consumo cultural orientado para o
autoaperfeiçoamento. Até mesmo os momentos de conversas com amigos podem ser
entendidos e valorizados por parte deles como momentos de formação intelectual.

Adriano: Tem o meu amigo X, que é lá do teatro, que é infinitamente


comunista, mas, como eu falei pra você, é um cara que tem um
conhecimento absurdo, né. E é um cara, cê vê, que é rico de verdade, da nata,
mesmo, carioca [...]. É um cara que eu adquiro muito conhecimento estando
com ele. Não tenho o conhecimento que ele tem, mas é uma pessoa que me
passa muita coisa positiva em relação à política, assim. Mesmo sendo uma
pessoa que saiu de um lugar totalmente diferente do meu.

As menções acima que opõem e valorizam o sertanejo raiz em oposição ao


contemporâneo ecoam outro padrão que já havia aparecido entre as frações culturais
analisadas nos grupos focais do projeto Para além da distinção: a valorização do
autêntico.

Guilherme: Eu acho que o sertanejo, o axé e boa parte do pagode são muito
comerciais, e por causa disso pode até haver um ou outro que pra mim se
destaque como música e que me interesse – sei lá, músicas do Raça Negra
que eu acho interessantes, ou do Só Pra Contrariar, ou de outras bandas
assim. Mas como movimento, me parece que é um movimento que engole
esses mais autênticos, até bota eles num lugar de bichinhos de estimação,
pra cantar sobre assuntos que realmente não me interessam...

A valorização do autêntico alia-se à valorização daquilo que eles entendem


como raro, alternativo, desconhecido, em oposição ao que lhes parece massificado,
padronizado, formulaico. A raridade é condição de existência de qualquer capital, e
no caso do cultural, conhecer o que é mais desconhecido é uma das estratégias mais
194

adequadas para se demonstrar maestria simbólica, na medida em que transparece o


esforço de “garimpo cultural” que demanda dos agentes. Desta forma, eles descartam
seletivamente as versões contemporâneas da música sertaneja, do funk, axé e pagode,
afirmando que apenas nas variantes mais antigas é possível encontrar autenticidade,
profundidade, complexidade (Débora, Elaine, Guilherme, Luciano, Manuel, Rafaela,
Rosângela); evitam os cinemas de shopping e valorizam os de rua (Alex, Elaine,
Leandro, Mário, Samuel); evitam comprar de grandes redes para comprar em
pequenos produtores (Alessandra, Flávio). A legitimidade das escolhas raras aparece
de forma exemplar na fala de Elaine expressando sua vontade de conhecer e
frequentar com maior assiduidade exposições menores e independentes:

Elaine: Quando eu falo de exposição, tenho que ser sincera pra você, tô
falando de coisas bem... normalmente não são coisas super pequenas, são
coisas tipo o MASP, Pinacoteca, coisas mais... populares, mesmo. Popular no
sentido de que tá todo mundo falando sobre isso. É muito mais raro eu ir
numa exposição, em alguma coisa que seja menor, que seja mais
independente, tudo mais [...]. Eu acho que eu tinha que ter um interesse
maior. Eu acho que eu tenho um interesse, mas eu acho que deveria ser um
interesse maior pra acessar coisas fora do... da bolha. É muito mais fácil você
ficar sabendo o que está acontecendo no MASP, na Pinacoteca, do que numa
galeria pequenininha, independente, com artistas que estão começando.

São falas que acentuam a legitimidade desses espaços entre a fração cultural
das classes médias paulistanas e que destacam a valorização particular do
conhecimento especializado a seu respeito. Nos termos de Elaine, os espaços
pequenos e pouco conhecidos são os mais “profundos” e “sérios”.

Elaine: E eu até acho que existem coisas muito mais... populares, e... acho
que a gente pode falar, mainstream, do que isso. Eu sei que tem exposições
que ficam esgotadíssimas que é, sei lá, exposição do Monet, de projeção, que
eu sei que lotam muito, e que é um jeito de falar de arte de uma maneira
mais acessível pra pessoas que não tem tanto esse interesse, que vão lá pela
foto no Instagram, que vão lá pelo, "ai, vi todo mundo postando, também
quero ir", sabe? Então eu acho que eu fico no meio termo entre isso que é
muito... meio superficial, e o que é bem mais profundo, bem mais sério, bem
mais pequeno, sabe?

Ainda, como denotam variadas citações acima, a valorização do autêntico e do


alternativo são, por vezes, versões eufemizadas de denegação do econômico. O
inautêntico e o padronizado são o falso, e falsa é a cultura feita exclusivamente com
orientação para o mercado. Não se trata de recusar por completo a possibilidade de
que a arte gere lucros econômicos (é claro que todos na amostra, não apenas os
músicos, entendem que os artistas precisam ser remunerados para produzir), mas
195

sim de recusar uma arte que é feita primordialmente com orientação para o lucro
econômico. Denegar o valor econômico das produções culturais é, inevitavelmente,
valorizar seu valor estético, valorizar seu valor enquanto cultura legitimada, e com
isso, indiretamente, valorizar os sujeitos que dominam e preferem a cultura
legitimada. Samuel forneceu ao longo de sua entrevista alguns dos melhores
exemplos dessa associação entre denegação do econômico e valorização do autêntico,
do raro, do alternativo.

Samuel: Do cinema, assim, a preguiça do Cinemark tem a ver, assim, que


parece que todos os filmes que lançam hoje em dia são filmes de super-herói,
ou algum filme de catástrofe natural... E tudo bem, pode ter filmes de
qualquer coisa, a questão não é essa, mas você sabe exatamente o que você
vai assistir quando você vai nesses filmes. E aí, às vezes... por exemplo,
cinema nacional, é uma coisa muito difícil de você assistir num cinema
convencional. Então, você tem que, você vai num cinema alternativo, onde
tem muito menos gente, pra tentar ver alguma coisa do cinema nacional. [...]
Então, é... nenhum problema com os filmes aí de [risos], de Hollywood, mas
é só uma preguiça mesmo, de mesmice, de uma miséria, do que... de ir
consumir o mesmo tipo de... de alimento, né. É aquela coisa: quando você
compra uma Coca-Cola, você sabe o gosto que a Coca-Cola vai ter. Se você
compra um suco de laranja, você não sabe se ele vai vir azedo, se vai vir mais
doce...

Comparar os filmes blockbusters com Coca-Cola não poderia ser mais claro
em seu esforço de associar o cinema mais popular a um produto simbólico do
marketing capitalista. Samuel repete a mesma estrutura argumentativa quando diz
que prefere o teatro lado B:

Samuel: Eu gosto de frequentar teatro. Gosto de frequentar teatro... é,


digamos assim... eu odeio essas qualificações, mas um teatro mais
alternativo. Não o mainstream do teatro. Então, esses amigos que eu tenho
do teatro, acabam me levando a peças muito menos divulgadas, muito mais
lado B, que eu acho que são tão interessantes quanto [...]. Quando eu me
refiro a esse teatro mais alternativo, geralmente ele não é aquele teatro do
palco italiano, que você vai na plateia, senta, vê algum ator da Globo muito
famoso com "grande elenco". Os anúncios das peças são assim, "fulano de tal
e grande elenco" [risos]. Porque precisa do fulano de tal pra atrair um
público, e aí o "grande elenco" é sempre de pessoas que não são conhecidas.
E que geralmente são muito boas, não tem nada a ver... Me refiro a isso, ao
teatro feito pelo “grande elenco”, e não só pelo ator da Globo.

O recurso aos intermediários culturais e a valorização das instituições de


consagração da cultura são também recorrentes nas falas dos meus entrevistados,
evidenciando uma vez mais que se trata de uma fração de classe extremamente
preocupada com suas escolhas estéticas. É preciso ter cuidado com o que se consome,
pois errar, e, pior ainda, ser pego errando, pode colocar em risco seu capital cultural.
196

Por isso, Alex lê regularmente a Revista 451 (sobre literatura), Débora lê o guia
cultural da Folha de São Paulo, Rosângela lê a Ilustrada e Marlene segue perfis no
Instagram que dão dicas sobre atividades culturais. Leandro frequenta festivais de
cinema e Samuel diz que sempre vai à Bienal de São Paulo. Regina acompanha e
sempre tenta ler os livros que vencem o Prêmio São Paulo de Literatura, e Elaine,
Flávio, Guilherme e Rafaela sempre se esforçam para assistir aos filmes indicados ao
Oscar.

Guilherme: Gosto bastante de cinema europeu, assim, acho que o filme que
eu mais vi foi aquele A Vida dos Outros, que é um filme alemão, não sei se
você conhece. Enfim, ganhou o Oscar, o ator morreu pouco depois. É... eu
tendo a ver os filmes do Oscar com alguma frequência, quase todos, assim,
pelo menos saber que é uma referência ali, dá pra ver rápido.

Toda a atenção dos entrevistados às instâncias de consagração da cultura


(Oscar, Prêmio São Paulo de Literatura, crítica especializada) e aos intermediários
culturais (imprensa cultural, influenciadores de mídias sociais) demonstra ainda,
indiretamente, a pertinência dessas instituições e agentes para a produção da
legitimidade cultural. Eles são relevantes na produção do gosto legitimado pois são
acessados pelos membros das frações culturais e ajudam a produzir a hierarquia que
separa a cultura considerada de maior valor daquela considerada de menor valor, e
com isso, o que dá no mesmo, a produzir as classificações que possibilitam que os
agentes sejam marcados como tendo mais ou menos valor (isso é, prestígio, status,
capital simbólico) por conta de seu conhecimento e de suas escolhas culturais.
Enfim, por meio do conjunto diverso e conectado de estratégias que descrevi
acima, os membros da fração cultural das classes médias paulistanas conseguem
valorizar seu capital cultural diante de seus círculos de sociabilidade sem que
precisem necessariamente recorrer às escolhas que por si só são "seguras",
mencionadas acima (frequência a museus, exposições de artes e concertos de música
clássica, apreço por MPB, clássicos da literatura e documentários), por mais que as
escolhas "seguras" componham parte considerável de seu estilo de vida. Com a
maestria simbólica necessária, qualquer bem simbólico é passível de permitir
valorização de capital cultural, pois o capital cultural é expresso pelos agentes a partir
da forma como se relacionam com os bens, mais do que pelos bens em si 106. Por isso

106
Com isso, acompanho as extensas críticas que já foram feitas à hipótese do onivorismo cultural, que
propunha que as classes mais altas apresentariam cada vez mais a tendência ao ecletismo cultural, e com isso
197

não causa temor a Guilherme dizer que gosta de música brega, à Rosângela
mencionar seu apreço por Sidney Sheldon ou a Luciano fazer um comentário
elogiativo a É o Tchan!. Em todos esses casos eles encontram formas de mostrar que
seu apreço é estetizado, o que o torna valorizado entre aqueles que reconhecem o
valor da disposição estética.

Luciano: Eu acho que existe sertanejo muito bom, acho que existe... música...
axé muito incrível. Acho que, por exemplo, o movimento do axé, que é uma
coisa de pegar certos estilos... é, pouco, pouco inseridos na música pop, e
transformar aquilo em música pop, que é o que o É o Tchan! fez, a
Companhia do Pagode... pegou lá umas coisas que tavam... né, e deixar
aqueles ritmos, que são muito, muito baianos, muito negros, e trazer pra
uma coisa pop, eu acho que é, é inclusive rico. O funk, em muitos aspectos,
eu acho que é um estilo musical absolutamente rico no significado social que
ele tem, enfim. Então... e mesmo quanto à produção, quanto às letras, muitas
vezes, né.

Por meio de todo esse conjunto de padrões, fica evidente que, além de terem
um estilo de vida mundano marcado pela valorização de tudo aquilo que possa se
encaixar sob a classificação de “cultural”, os agentes posicionados nas posições
tipicamente culturais das classes médias paulistanas são fortemente predispostos
estruturalmente a desenvolver estratégias de valorização de seu capital cultural por
meio da forma como compreendem e expressam sua relação com a cultura. Pelos
diversos meios analisados eles mostram que acreditam na existência de uma
hierarquia cultural (por mais que ela seja denegada no discurso explícito) e que, por
conta de seu conhecimento, de sua disposição para a apreciação estética, de seu
esforço ascético para a formação cultural, e mesmo de seu conjunto delimitado de
práticas e preferências culturais “seguras”, eles estão mais próximo do polo mais
legitimado das possibilidades culturais. Portanto, assim como suas posições políticas
de esquerda analisadas no segundo capítulo, sua forma de relação com a cultura é um
caminho que eles encontram para se valorizarem enquanto sujeitos diante das
demais posições sociais, sobretudo das frações de classe econômicas.

se mostrariam menos dispostas a promover exclusões das classes mais baixas com base nos estilos de vida
(Peterson, 1992; Peterson; Kern, 1996). Não importa o quão ampla é a gama de objetos culturais e de vertentes
estéticas que compõem o estilo de vida dos membros das frações culturais, pois seu capital cultural
incorporado sempre tende a demarcar uma fronteira contra aqueles com menor capital cultural por meio da
forma como compreendem e se relacionam com os bens simbólicos. Para críticas a hipótese do onivorismo
cultural, ver Gayo (2015).
198

3.4 Fronteira cultural e violência simbólica

O que estou argumentando é que a valorização da cultura legitimada, expressa


pelas escolhas e estratégias mencionadas acima, constrói um estilo de vida que opera
como uma fronteira simbólica – mais especificamente, uma fronteira cultural – que
demarca o pertencimento coletivo à fração cultural das classes médias paulistanas. É
um argumento análogo ao construído no capítulo dois, em que falei sobre a existência
de uma fronteira política construída por meio das posições de esquerda entre a fração
estudada. Adequar-se ao estilo de vida que, por diferentes estratégias, exibe o
reconhecimento e a valorização da cultura legitimada é um critério identitário ao qual
os agentes têm que se adequar para ocupar por completo (isso é, simbolicamente, e
não apenas objetivamente) as posições culturais das classes médias no espaço social.
Comparando com a tese de Carolina Pulici sobre as elites paulistanas, fica
claro que a maior parte dos meus entrevistados tem mais capital cultural que a fração
ascendente das classes dominantes que ela entrevistou. Os gostos e estilos de vida da
fração cultural das classes médias são muito mais parecidos com os das elites
paulistanas tradicionais que com os das elites em ascensão, e meus entrevistados têm
bem mais maestria simbólica do que os “novos ricos”. Isso se nota pela proximidade
de meus entrevistados com os repertórios da “alta cultura”, da arte erudita, e por suas
demonstrações de disposição estética e denegação do econômico. Por outro lado,
meus entrevistados estão, no geral, “abaixo” da elite tradicional das entrevistas de
Pulici na hierarquia das frações culturais, sobretudo por possuírem menos contato
com agentes em posições de comando no campo de produção cultural (ou seja, menos
capital social), e por recorrerem mais intensamente aos intermediários culturais.
Ainda, boa parte das práticas culturais das elites exige para sua realização um alto
volume de capital econômico (por mais que ele seja denegado), o que cria uma
fronteira econômica contra o acesso das classes médias, como o mecenato cultural, a
participação em leilões de arte e mesmo a frequência a espaços cuja entrada é restrita
por ingressos economicamente dispendiosos. Citei acima, por exemplo, o desejo de
Alex e de Ronaldo de frequentarem mais concertos de música clássica, frustrado pela
elevação do preço dos ingressos e das assinaturas. O mesmo apareceu na fala de
Roberto, que passou recentemente por uma falência de grande proporção, quando
comentou sobre as práticas culturais de que mais sente falta.
199

Roberto: Eu gostaria de fazer muita coisa, mas como a gente tá vivendo inda
uma fase de bastante restrição financeira e de desafios nessa área
profissional, econômica, então... muito do que eu gostaria não é possível de
ser feito nesse momento. [...] Gostaria de ter uma vida cultural um pouco
mais ativa. Talvez não tanto quanto o meu fôlego juvenil já trouxe, mas
gostaria de estar indo mais a salas de concertos, a óperas, enfim... curtindo
mais a parte gastronômica também.

Mesmo assim, por mais que não consigam acessar com toda a liberdade a
cultura legitimada da forma como consegue a elite tradicional paulistana, ao que tudo
indica a fração cultural das classes médias ainda possui volume bastante elevado de
capital cultural quando comparada com as classes populares como um todo, com a
fração econômica das classes médias, e mesmo com a elite de ascensão recente.
Assim, em adequação com sua posição no espaço social e com o pressuposto geral de
que estão todos tentando defender seu capital (Bourdieu, 2020), a tendência
estrutural desses agentes é a de traçar uma fronteira cultural baseada no domínio da
cultura legitimada para demarcar sua identidade coletiva e para organizar sua
hierarquia de prestígio. E, de fato, é isso que eles fazem, como indicam as respostas
que deram para as questões mais diretas sobre seu trabalho de demarcação de
fronteiras simbólicas.

Leandro: Eu acho que as pessoas mais interessantes elas debatem política e


cultura, né [risos], necessariamente. As pessoas que não debatem política e
não debatem cultura, necessariamente, não são interessantes, pelo menos
pra mim, e tal. Quem não conseguem conversar sobre um livro, sobre um
filme interessante, sobre um... até no futebol tem cultura, né. É muito louco
isso, mas, assim, você tem uma ligação, a história do futebol no Brasil é
muito enraizada com os movimentos também, né, no Brasil. Então, eu acho
que as pessoas interessantes são essas, que sabem debater um livro, que,
"porra, olha, li um livro interessante", te indicar um livro, te indicar um
filme... uma música, né. Como eu te falei, eu acho que muito das minhas
relações se pautaram por isso, eu aprendi muito com os meus amigos que me
ensinaram sobre música, sobre livros, sobre... sobre assistir filmes... Tinha
um menino que morava numa república comigo que ele me levou pela
primeira vez numa balada de rock, de rock alternativo, na Rua Augusta. Um
amigo meu também da faculdade que morava comigo na mesma república
me levou pela primeira vez pra assistir um filme iraniano, sabe, chato pra
caralho, enfim, mas que valeu pela experiência, né. O mesmo amigo me
levou numa balada gay. A gente foi uma vez num negócio de prostituição, na
Rua Augusta, sabe. Esse tipo de coisa que é... são as pessoas que te instigam
a conhecer coisas novas, né. Que te levam pra um universo fora do seu
universo.

A fronteira cultural construída pelos membros da fração cultural das classes


médias paulistanas se expressa de algumas maneiras diferentes. Uma delas é pela
valorização do conhecimento amplo, da erudição, do saber a respeito de domínios
culturais variados: a pessoa que sabe falar igualmente sobre livros, sobre música,
200

sobre comida, sobre sociedade, sobre política, sobre filosofia. É uma valorização da
"intelectualidade" e do "cultivo" cultural, da pessoa “ilustrada”. Conceituando, a
fronteira cultural é construída para valorizar justamente a maestria simbólica.

Mário: Tinha um colega de faculdade que eu achava, que eu admirava pela


inteligência. Era uma pessoa que tinha uma habilidade de fazer relações
entre assuntos de diversas áreas. Tinha sempre colocações inteligentes e...
era extremamente dedicado aos estudos.

Nesta linha, Leandro diz que pessoas que não sabem falar sobre cultura e sobre
política não lhe interessam, Mário reprova fortemente uma pessoa que só converse
sobre assuntos "triviais" e que afirme não ter interesse em falar sobre filosofia,
Regina e Vinicius valorizam pessoas "bem articuladas" e capazes de falar sobre
assuntos variados, como literatura e gastronomia. Em todos os casos, o conhecimento
amplo sobre os espaços simbólicos é o que demarca a posição de alguém na
hierarquia de prestígio construída pelos entrevistados.

Mário: Aquela pessoa que só conversa sobre trivialidades não é alguém que
[risos], que vai ter a minha atenção por muito tempo. Ou... que recusa algum
assunto, sei lá, você tá ali, é uma pessoa do seu convívio, você quer falar de
algum assunto que pode, assim, nem ser lá da expertise dela, mas... recusar
um assunto [risos], é uma coisa, pra mim, muito estranha. Sabe, falar, "ah,
não vamos falar disso não"... Falar que, sei lá, que filosofia é muito chato,
entediante. Pô, entediante? Como assim?

Mas não apenas o conhecimento amplo é valorizado. O conhecimento


específico e aprofundado a respeito de algum domínio cultural, sobretudo de alguma
habilidade artística, também é um marcador de valor para a fração estudada.
Luciano, por exemplo, admira músicos habilidosos, experientes em seus
instrumentos, pois isso lhe inspira enquanto músico. Rafaela foi na mesma direção,
citando como referência de figura inspiradora sua professora de violino, que é muito
habilidosa em seu instrumento e toca como quer, sem ficar se adequando às
expectativas de terceiros107. Elaine, numa fala já citada na introdução, falou sobre a
grande admiração que nutre por artistas e produtores culturais, pessoas que dedicam
sua vida a produzir cultura para o mundo. Regina, por sua vez, declarou que quando
começou a entrar em contato com os clássicos da literatura tinha a forte noção de que
conhecer aquilo faria dela "uma pessoa melhor".

107
Rafaela também falou que "paga um pau" para quem sabe falar várias línguas, exemplo clássico de
valorização de maestria simbólica.
201

Regina: Eu sempre fui uma pessoa que gostou de estudar, e eu lembro de, no
ensino médio, de ter aula, pela primeira vez, de literatura. E eu lembro que o
primeiro livro que a gente teve que ler era A metamorfose, do Kafka, e aí
[risos], foi um choque pra mim. Eu lia, mas eu nunca li algo, né, dessa forma.
Então eu vi como uma forma de, acho que de tentar me melhorar. Acho que
até com uma certa pretensão, né. Era uma cabeça muito diferente. De achar
que aquele conhecimento me tornaria uma pessoa melhor [risos], uma
questão nesse sentido.

A fronteira cultural se expressa ainda pela valorização de habilidades analíticas


e discursivas. Débora valoriza pessoas engraçadas, criativas e de pensamento rápido.
Guilherme admira pessoas de pensamento empírico, com capacidade refinada para
argumentação e debate. Rosângela se atrai particularmente pelo refinamento
intelectual, se interessando por pessoas que exibem inteligência e bom humor.

Débora: Acho que as pessoas que eu gosto, no geral, elas são... elas são
rápidas, inteligentes e criativas. Eu acho que essa é uma coisa que eu gosto
nas pessoas. Pessoas que tem capacidade de responder rápido, pessoas que
tem um humor, que tem um sarcasmo, e que conseguem ter essa... sei lá, não
sei se a palavra é essa, mas uma acidez sendo gentil, educado.

Complementando esses marcadores de valorização simbólica, quando os


entrevistados estão falando daquilo que não gostam em terceiros, o que eles
entendem como inaptidão intelectual aparece recorrentemente. Débora disse que não
gosta de pessoas "burras", que insistem em falar sobre aquilo que não entendem.
Isabel também demarcou uma fronteira com quem chama de pessoas "burras",
sobretudo aquelas que estão em posição de poder. Rosângela disse que o que mais a
afasta de outras pessoas é a ignorância, particularmente notável quando vê pessoas
falando nas mídias sociais a respeito de assuntos sobre os quais não entendem.
Rafaela, quando solicitada por mim a descrever os tipos de pessoas das quais não
gosta, associou estética, capacidade intelectual e posicionamento político, amarrando
seu desapreço com referência a uma personagem de Shakespeare:

Rafaela: Você leu A Tempestade, do Shakespeare?

Gustavo: Não.

Rafaela: Tem um personagem que se chama Caliban, e que ele é muito


primitivo. Tipo, o Shrek é um lorde perto do Caliban. Ele é todo feio,
mesquinho, primitivo, horroroso. E tem umas pessoas que são assim, e isso
me incomoda muito. É primitivo no jeito de pensar, é primitivo no jeito de
agir, é primitivo nas reações... é primitivo, primitivo. Tipo tosco, rude. E você
nota que não são momento. Porque todo mundo tem uns momentos que não
202

são muito... postáveis. Mas, você vê que a pessoa é o tempo todo assim... Que
é boa parte dos bolsonaristas.

A partir desses excertos é possível notar que, assim como a elite tradicional
paulistana mobiliza seu domínio da cultura legitimada e sua capacidade de
estetização da vida mundana para se separar e se valorizar diante dos "novos ricos", a
fronteira traçada pela fração cultural das classes médias paulistanas é concebida por
eles para separá-los e valorizá-los diante da fração econômica da mesma classe, que
não possui capital cultural suficiente para desenvolver as variadas estratégias de
valorização da cultura legitimada de que os membros da fração cultural são capazes, e
que, mesmo assim, são a fração estruturalmente dominante das classes médias, tendo
em vista a dominância estrutural do capital econômico sobre o cultural já explicada
no primeiro capítulo. Por isso, cabe repetir, é tão importante para a fração cultural
valorizar como parte de seu estilo de vida a denegação do econômico108.
No entanto, também em proximidade com o que ocorre com as elites
tradicionais, a fronteira cultural traçada pela fração cultural para se valorizar
simbolicamente acaba tendo como resultado não-intencional sua separação também
com relação às classes populares como um todo. Esse efeito é não-intencional pois há
um esforço explícito dos entrevistados de se mostrarem abertos para a cultura
popular e de se mostrarem democráticos com outras expressões culturais (aqui sente-
se fortemente a influência de seu esforço moral pelo igualitarismo, descrito no
segundo capítulo). Por mais que haja, como já mencionado acima, diversos exemplos
de expressões de cultura popular na composição de seus repertórios de práticas e
preferências, a demarcação de valor baseada no capital cultural acaba, quase que
inevitavelmente, se transformando numa fronteira simbólica que separa a fração
cultural das classes médias em relação às classes populares.
Este é o momento para notarmos que o cultivo cultural e as variadas formas de
domínio da cultura legitimada descritos até aqui variam de acordo com a origem de
classe. Uma parte dos entrevistados vem de famílias que já possuíam maior volume
de capital cultural, que portanto eles puderam herdar desde a infância. Outros, sem
acesso ao capital cultural por conta da origem de classe popular, sentiram fortemente
a pressão pela adequação ao estilo de vida "cultural" e ao conhecimento da cultura
legitimada ao longo de seu processo de associação às posições culturais do espaço

108
Vale remeter aqui ao trecho da entrevista de Flávio (arquiteto), já citada no primeiro capítulo (p. 64, supra),
em que ele dizia que o que mais reprova em seus colegas de profissão é a busca pelo lucro acima de tudo.
203

social, e precisaram correr atrás desse acúmulo num período tardio de suas vidas.
Essa pressão é sentida de diversas maneiras, e em todas elas existe algum nível de
violência simbólica.

Adriano: Por exemplo, quando eu entrei na Sala São Paulo na primeira vez,
eu me vestia totalmente diferente. Então, quando eu recebi minha primeira
bolsa lá, que a gente chamava de bolsa, né, que é o... o incentivo que a gente
tem, né, que na época era mil reais por mês. A minha professora lá da
Academia de Música me disse pra eu, "ai, que bom, né, bonitinho, então
agora que você ganhou mil reais, agora que você pegou sua primeira bolsa,
vai lá comprar umas roupinhas diferentes pra andar aqui na Sala São Paulo"
[risos]. Então isso é uma... isso pra mim foi um choque, na verdade. Não foi
difícil, mas pra mim foi um choque. Porque aí eu percebi que, "poxa, nem
roupa eu tenho pra andar nesse lugar", saca? E ai eu tive aula de português
na Academia de Música... também, eu falava totalmente na gíria o tempo
inteiro... É óbvio, né, você sai da periferia, na periferia você fala, com seus
amigos, você fala em gíria, você fala de um jeito... E lá eu aprendi que eu
podia falar a minha gíria quando eu tava com os meus amigos, mas quando
eu tava nesses outras outros ambiente eu tinha que falar um certo tipo de
linguagem, né. Então, isso pra mim foi um choque.

Entre os herdeiros culturais, a familiaridade com as práticas artísticas e com a


valorização da cultura legitimada nasce praticamente junto com eles, e se torna parte
de seu estilo de vida na rotina cotidiana de seu ambiente doméstico de socialização.
Era comum entre eles, por exemplo, ver seus pais e parentes tocando instrumentos
musicais em casa (Alessandra, Luciano, Roberto, Samuel) e lendo literatura
recorrentemente (Alessandra, Daiane, Débora, Elaine, Rosângela, Samuel). O apreço
de Rosângela pelos clássicos da literatura, por exemplo, começou com uma
brincadeira de seu irmão mais velho ainda em sua infância.

Rosângela: Eu adoro ler. Eu posso dizer que fui traumatizada, e você vai
entender minha família [risos]. Quando a gente tinha oito anos, meu irmão
mais velho falou assim, "querida, tem tanta criancinha que não tem dinheiro
para comprar um gibi, tal, o que você acha de a gente fazer uma cestinha,
você doa seus gibis, a gente vai, entra no carro, a gente distribui, e em troca
você ganha um livro, porque agora você já tá ficando maior e tal?". Aí, eu
achei até interessante a ideia, falei, "ah, legal, vamos lá". Aí o meu irmão me
deu Os irmão Karamazov pra ler... tipo, pessoa surtada. E eu fiquei dois dias
em profunda tristeza, porque eu não conseguia avançar, porque eu não
conseguia soletrar os sobrenomes que apareciam, assim, com destreza, pra
passar pela linha. Aí a minha irmã chegou em casa do plantão, viu eu com
aquele livro, ficou fula da vida, saiu do meu quarto, foi no quarto do meu
irmão, quebrou o maior pau com ele. Eles voltaram juntos e me entregaram
O menino de engenho. Foi o primeiro livro que eu li.

O mesmo vale para o gosto de diferentes entrevistados do grupo dos herdeiros


culturais pela música mais valorizada. Eles mencionam o apreço de seus pais e as
204

audições recorrentes em casa de MPB (Alessandra, Daiane, Débora, Elaine, Luciano,


Rosângela, Roberto), música erudita (Luciano, Mário, Roberto, Samuel), jazz (Alex,
Rosângela) e samba (Daiane). Alex, Daiane, Luciano e Roberto mencionaram
também a musicalização infantil e as aulas de instrumentos musicais que iniciaram
ainda na infância. A transmissão familiar precoce e a experiência intensa com a
música ficam particularmente explícitas nas descrições de Alex, sobre a chegada de
seu padrasto à sua casa, e de Luciano, falando sobre a coleção de música de seu pai.

Alex: Ele chega com a mudança dele, e com a mudança dele tem tipo 800
vinis e 350, 400 CDs. Muita música, muita música. E eu era uma criança que
não conhecia vinil, porque antes dele em casa não tinha vinil, não tinha CD
[...]. Mas em compensação, o meu padrasto veio com um monte de coisa, e os
discos, olhar para os vinis, pras capas, aquilo me enfeitiçou. E muito cedo ele
me ensinou, ele e minha mãe me ensinaram, a pôr o disco na vitrola, e daí eu
comecei a adquirir um hábito de ouvir música em casa, no meu quarto.

***

Luciano: Eu fui criado com muita MPB. Meu pai sempre teve coleção de vinil
em casa. Então eu me lembro de quando eu tinha uns 14, um pouco menos,
uns 12 anos, eu lembro de ouvir lá na escola de música A Sagração da
Primavera, do Stravinsky, e eu não sabia o que era aquilo, fui procurar nos
discos do meu pai e encontrei lá. Fui ouvir, era lá um bolachão que ele tinha
comprado, então passava umas tardes longas lá, não tinha o que fazer,
coloquei o vinil e ouvi a música inteira. Eu fiz isso com muitos discos. E
nesse meio tinha muito Milton Nascimento, muita MPB, geral. Meu pai
sempre gostou muito de música instrumental, então tinha muito Borghetti,
Dominguinhos, Altamiro Carrilho, chorinhos, ele sempre gostou. E o gosto
dele pessoal era música sertaneja. Então ele tocava muito no teclado Leandro
e Leonardo. Eu vi praticamente na hora em que acontecia o lançamento
dessas músicas, tipo Pense em Mim, Evidências, sabe? Porque lançava e o
meu pai era o primeiro a comprar o disco, a tirar a música, tocar a música
sem parar. Então, eu também tenho esse lado da música brega. Meu pai
sempre gostou de Waldick Soriano, sempre gostou de coisas muito ruins,
tipo Genival Lacerda…

Além das referências que adquiriam na socialização doméstica, a experiência


com a cultura legitimada era transmitida aos herdeiros culturais também pelas visitas
recorrentes aos espaços "culturais". Alex faz, aqui novamente, uma descrição potente
de como seu reconhecimento do teatro como parte da cultura legitimada chegou a ele
por meio de um esforço de transmissão intenso por parte de seu pai adotivo.

Alex: O meu pai sempre gostou muito de teatro, desde que ele era garoto.
Então, em casa já existia uma pessoa que falava, "teatro é arte, teatro é
importante, teatro tem um valor humano quase que transcendental". Ele
ainda é assim. A gente conseguiu ir, ano passado, que estava reabrindo, a
gente conseguiu ir certinho no teatro uma vez por mês, fomos pegando tudo
que era espetáculo aqui em São Paulo e indo. Então, eu já era uma criança
que já tinha ido ver uma peça do Antônio Fagundes, uma peça do Marco
205

Nanini, porque o meu pai falava, "porra, tá tendo essa peça, eu quero levar o
Alex, porque eu acho que é importante”.

Falas análogas foram feitas por Elaine, dizendo que seus pais sempre se
preocuparam em levar ela e a irmã para museus e exposições de artes, por Rafaela,
falando sobre ser levada a eventos artísticos pela mãe, por Rosângela, falando sobre
ser levada regularmente ao teatro por seus pais, e por Samuel, falando que sua mãe
sempre o levava para as bienais e a outras exposições de artes durante sua infância.

Rafaela: A minha mãe gostava de fazer tudo que tivesse a ver com arte, e ela
adorava fazer as coisas com a gente. E ela sempre dava uma fugida do
mainstream, assim. Tem uma que a gente lembra sempre que era o Teatro
Ventoforte. Ela levava a gente sempre, sempre, sempre que tinha coisa ela
levava a gente no teatro Ventoforte [...]. Levava a gente em exposição, levava
em tudo que ela achava que era legal, mas, assim, ela já levava a gente pra
ver, tipo, arte. Não era coisa de criança. Eram coisas para criança, mas com
uma veia artística que ela achava que eram mais legais, assim.

Gustavo: Tá certo. E você disse que ela gostava de uns lugares mais
alternativos, fora do mainstream.

Rafaela: É.

Gustavo: O que isso significa?

Rafaela: Bom, Teatro Ventoforte nunca foi mainstream, né. Então... isso é
uma coisa que eu lembro que ela levava a gente, as outras coisas eu não
lembro, porque eu era muito minúscula [risos]. Mas eu lembro da gente tá
sempre fazendo alguma coisa, com a minha mãe. Eu lembro uma vez que a
gente foi numa exposição do Picasso no MASP. Eu era pequena e foi minha
vó também, porque uma época ela pintava... pintava de hobbie, assim, né,
mas fazia aula, minha mãe tinha dado um cavalete super bonito pra ela. E aí
eu lembro que eu tinha parado na frente de um quadro que tinha uma
mulher com os elementos do rosto tudo em lugar trocado. E eu fiquei muito
intrigada com aquilo, aquilo meio que me pegou, assim. E minha vó me
perguntava, "qual você mais gostou?", e eu falava, "a mulher com a cara
torna, a mulher com a cara torta, a mulher com a cara torta" [risos]. Eu
lembro que, quando eu... assim, era muito comum a minha vó ir me buscar
na escola, porque a minha escola era perto da casa da minha vó. E aí tinha
uma fita VHS que tinha o balé Romeu e Julieta, que é feito pra música do
Prokoviev Romeu e Julieta. E a gente assistiu muitas vezes. E aí eu lembro
que quando eu fui tocar essa música, veio direto, assim: eu na casa da minha
vó, a gente comendo alguma coisa gostosa que tinha comprado no caminho,
assistindo o balé do Prokoviev.

Todo esse conjunto de experiências que proporcionam a interiorização precoce


da cultura legitimada faz com que os herdeiros culturais, munidos do capital cultural
que receberam de sua família na infância, "larguem na frente", isso é, possuam uma
série de facilidades prévias, nas disputas pelas posições superiores nas hierarquias de
prestígio propriamente culturais que marcam a experiência de sociabilidade nos
círculos sociais típicos das frações culturais. Ainda assim, o volume e a intensidade da
206

cobrança por formação cultural nessas posições do espaço social se evidencia uma vez
mais quando se nota que mesmo alguns dos herdeiros sentiram a pressão pela
adequação a um estilo de vida marcado pela necessidade de reconhecimento e
valorização da cultura legitimada ao longo de seu processo de associação às posições
típicas da fração cultural. Assim, Alessandra, filha de um professor universitário que
lia muito em casa, adquiriu o hábito da leitura ainda na infância, mas sentiu que
precisava ler ainda mais quando entrou para a graduação. Também Rosângela, que
teve profunda formação cultural durante a infância e adolescência, sentiu que
precisava ampliar sua formação no período universitário e início da vida profissional,
sobretudo quando foi trabalhar com jornalismo cultural. Alex, por sua vez, fez uma
fala exemplar sobre como passou a perceber de maneira mais explícita a existência de
uma cultura legitimada quando entrou para a USP.

Alex: A coisa dos museus e das exposições é uma coisa mais do começo da
vida adulta, por essa espécie de ressocialização na vida universitária [...].
Nesse momento é que eu percebi que existia um certo circuito, um certo
repertório, certos autores, que eram entendidos como cultura legítima, e eu
disse, “é isso que eu quero, eu quero sacar disso, eu quero entender isso, eu
quero ter familiaridade com isso”. Foi nessa fase, 22, 23 anos.

Já entre os não-herdeiros, aqueles com origem na base do espaço social e que,


por isso, não trazem de casa a cultura legitimada valorizada entre seus pares nos
círculos sociais típicos da fração cultural, o processo de associação à essas posições
sociais é marcado pela sensação de inadequação, e com ela, como resposta, por um
esforço por adequação que traz consigo toda a gama de dificuldades oriunda de ser
um esforço tardio. Regina, por exemplo, citou a grande dificuldade que teve em sua
época de graduação, na USP, por não entender os códigos, as referências usadas pelos
professores, e como isso a fez se sentir inferiorizada naquele ambiente.

Regina: E eu lembro muito de, na época da faculdade, de ter aulas de


literatura que eu olhava e falava, "gente, mas...", de não conseguir acessar
aquilo, de me sentir muito limitada nesse sentido [...]. Na época da
faculdade, o fato de eu não conseguir, às vezes, acessar esses
conhecimentos... eu me sentia muito mal, né. Eu me sentia inferior, digamos
assim, né. Aquele sentimento de inadequação, "o que eu estou fazendo aqui".
Eu acho que o fato... foram várias coisas que aconteceram. Você vir, assim,
de uma cidade pequena, de uma escola em que todo mundo sabe seu nome,
pra uma aula que tem 200 alunos na sala e, assim, "se vira!" [risos]. Eu
nunca tinha vivido uma situação assim, então... Eu lembro de, de me
interessar muito por psicolinguística nessa época, e de ter ido até, assim,
com muito medo, até a sala de uma professora, falar, "não, eu quero fazer
iniciação científica", e ela me passar uma lista de vinte livros e falar, "quando
207

você ler todos esses livros você volta aqui e a gente conversa", aí eu falei,
"isso aqui não é pra mim!" [risos].

Como notou Mariana Martinelli Lima (2020) pesquisando os estudantes não-


herdeiros na Unicamp, a falta de familiaridade com a cultura acadêmica se expressa
de maneira viva ao longo de sua experiência universitária, impondo dificuldades
tanto para que consigam performar adequadamente nos testes propriamente
acadêmicos quanto para que consigam estabelecer vínculos de sociabilidade. E essas
dificuldades são ainda maiores no caso das mulheres não-herdeiras, que além dos
empecilhos da falta de familiaridade com a cultura legitimada ainda sentem sobre si a
pressão das violências simbólicas de gênero fazendo com que se sintam menos à
vontade que seus colegas homens de falar em sala de aula, uma vez que o julgamento
por um possível erro tende a ser mais cruel com elas (Lima, 2020, p. 103). Em outro
exemplo de reconhecimento do arbitrário cultural que sustenta o exercício eficaz da
violência simbólica, Marlene disse que, quando entrou para o emprego atual, o
primeiro que deu a ela condição econômica suficiente para poder investir em algo
mais que as necessidades básicas de manutenção da vida, direcionou seus
investimentos justamente para uma tentativa de alcançar a formação cultural à qual
não teve acesso durante toda a vida. Até então, sem essa formação, Marlene sentia
que aquele estilo de vida "cultural" que via nos colegas não era feito pra ela.

Marlene: Eu cresci, durante muito tempo da minha vida, acreditando que


lazer era um luxo, não era pra mim [...]. Estar na instituição em que eu estou
hoje foi um divisor, porque foi o primeiro trabalho que eu tive na minha
vida... na verdade, eu vou reformular: não foi o primeiro trabalho que eu tive
que eu ganhei mais que um salário mínio, porém foi o trabalho que me deu,
digamos, mais conforto e estabilidade. Anterior ao meu processo de
formação, em todos os meus empregos eu sempre ganhei um salário mínimo.
Depois de formada, eu atuei durante um pequeno espaço de tempo como
assistente social, foram alguns meses, e aí eu ganhava um pouco mais que
um salário mínimo. E aí, depois de um bom tempo de desemprego, eu entrei
nessa instituição. E aí, assim, pra mim, Gustavo... eu vi ali a oportunidade...
eu nem sabia, pra mim, é como se eu tivesse ficado rica. Obviamente que eu
tenho essa noção que não. Mas pra alguém que sempre ganhou menos do
que eu ganho hoje, me proporcionou, por exemplo, fazer outras escolhas [...].
Poder sair e visitar espaços, por exemplo, culturais. Que, embora, tinha a
questão de que alguns têm gratuidade, mas aí eu tinha que pensar, né, o
deslocamento, a comida, eu tinha que pensar tudo isso que hoje eu já tenho
essa possibilidade, me é possível [...]. Ir pra cinema, muito embora não seja
meu programa favorito, mas também é uma possibilidade. Ir pro teatro, que
eu também não vou com tanta frequência, já é possível [...]. Eu confesso pra
você que muitas vezes eu não ia. Não ia, eu acredito que entra um pouco
naquilo de antes eu não ter tantas condições financeiras, e mesmo após ter
entrado nesse trabalho, por eu acreditar que não era um local que eu deveria
frequentar, que não era feito pra mim, ou que eu não saberia me portar, ou
que era feio, por exemplo, eu, uma pessoa já formada, falar que eu não
208

conheço tal história, porque eu acreditava que eu já, né... poxa, uma mulher
adulta, trabalhando numa escola, sou assistente social, e eu tenho que saber
meio que de tudo, né. E não, na verdade não. A gente tá sempre nesse
aprendizado, nessa constância, na busca de informações. Então, muitas
vezes eu não ia.

Marlene também mencionou que passou a ouvir MPB apenas na idade adulta,
pois foi percebendo aos poucos que conhecer as referências do estilo era algo
valorizado no ambiente acadêmico e profissional no qual estava adentrando. Ao
mesmo tempo, foi entendendo também que seria mais seguro esconder dos colegas a
preferência musical pessoal que trazia da infância: o pagode.

Marlene: Tem, sim, uma parte que eu comecei a ouvir mais a MPB porque eu
gosto e porque as letras, sim, têm o seu refinamento, e acredito que também
um pouco em busca de mais informações, e de mais conteúdo também pro
meu trabalho. Porque, por mais que eu tenha começado a ouvir por volta dos
meus vinte e tantos anos, eu não sei você, mas eu, atuando na área social, eu
percebo que, muitas vezes, isso... principalmente na parte mais, assim,
acadêmica, enfim, é muito valorizado. E não que não deva ser valorizado,
porque é de uma riqueza incrível, né, as letras, as composição, e até as letras
um pouquinho mais antigas que, às vezes, tem um viés de luta, um viés
político, e teve uma necessidade, foi uma forma de expressão. Mas é muito
valorizado, né. É extremamente valorizado. É muito legal você virar e falar,
"poxa, eu ouço Gilberto Gil, eu adoro!", ou então, "eu escuto Caetano"... soa
muito melhor no nosso mundo de acadêmico e de trabalho do que eu virar e
falar, "ah, eu gosto de Sorriso Maroto! Eu gosto de Pixote!", né [risos], sem
sombra de dúvidas! Então, eu também não vou negar pra você que também
teve esse viés.

Em oposição aos herdeiros culturais que tiveram acesso à formação artística


desde a primeira socialização, Vanessa apresenta uma narrativa marcante sobre seu
desejo de infância de ter seguido carreira na dança, frustrado por limitações de classe.

Vanessa: Eu queria ser artista, trabalhar na televisão, trabalhar como


dançarina. Fiz muito tempo de dança, muito tempo de balé. Cheguei a ir a
alguns programas de televisão, Raul Gil, Faustão, cheguei a ganhar alguns
prêmios com a companhia de dança que eu fazia parte. Mas aí eu vi que não
dava pra mim, porque eu vinha de uma família muito pobre, então eu não
tinha investimento. E aí, quando chegou a oportunidade, eu precisava da
agência [inaudível], pra booking, pra isso, pra aquilo. E eu não tinha como
custear isso. Então, foi mais ou menos isso que fez com que eu voltasse pra
trás. Além das pedras, né. É uma profissão muito difícil, você encontra
muitas dificuldades, muita competição, muita maldade entre os concorrentes
e tal. Por isso, eu preferi sair, porque eu não tinha dinheiro pra estar ao
páreo das minhas outras concorrentes. Me sentia inferior.

É bastante semelhante a narrativa de Adriano que, a despeito de toda a


violência simbólica que sofreu em sua trajetória acadêmica e profissional – bem
exemplificada pela citação em que fala que nem sequer tinha roupas que o
209

permitissem se sentir à vontade nos ensaios da orquestra –, conseguiu se estabelecer


relativamente bem na posição de fração cultural das classes médias que ocupa hoje,
mas permaneceu marcado pela compreensão de que sua trajetória é sui generis na
medida em que ele foi um dos poucos que conseguiu atravessar, pelo menos um
pouco, o teto de classe que se coloca sobre os não-herdeiros que se esforçam para
ocupar as posições culturais da classe média.

Adriano: Eu saí da periferia, né... na verdade eu não saí, né, eu sou um


menino da periferia, eu digo “saí” porque eu cresci na periferia. Mas, meu pai
era eletricista de alta tensão, então... a gente sempre se espelha nos nossos
pais, né, ou... [trecho inaudível], quando a gente é criança, a gente não tem
muito essa coisa... de incentivo por parte das outras pessoas, de, "não, vai lá
fazer essa coisa extraordinária, porque vai acontecer e você vai se dar super
bem". Não. A gente vai copiando as profissões, né. A gente tem um certo
limite invisível, aí, que a gente sente, na verdade, né. Não que seja colocado,
mas a gente sente isso. E, pra gente que foi de projeto social, o primeiro
contato com uma orquestra já é uma coisa incrível. Já é uma coisa que você
fala, "caramba, cara, olha o que eu tô fazendo, olha o instrumento que eu tô
segurando na mão, olha... escuta esse som que tá saindo daqui!". Pô, é uma
coisa inusitada, que você nunca viu isso na vida, nunca teve nenhum contato
com isso. E você acha que não vai ter contato, porque você acha que é coisa
de rico, que a arte é de rico, que é uma coisa que não vai chegar até você. Até
no meio do caminho você ainda fica pensando um pouco assim, né. Você fica,
assim, "poxa, será que isso vai dar certo? será que eu tenho capacidade pra
chegar?". Então, tem muitos limites que passam pela nossa cabeça no meio
do caminho. Então, eu acho que pra gente, tá num Teatro Municipal de São
Paulo, empregado, com carteira assinada, recebendo um bom salário, e tá
conseguindo ajudar nossa família, e tá conseguindo tocar a nossa vida de
uma forma... ainda mais prazerosa, né. Porque, fazer música... a gente tá
sendo pago pra fazer música, uma música belíssima, né, uma arte incrível, e
a gente tá naquele lugar. Então às vezes a gente chega num lugar mesmo,
hoje em dia, senta naquela cadeira, olha aquele teatro, olha aquele
instrumento que você conquistou com o seu trabalho, com o seu estudo, e
fala, "caramba, cara, eu consegui estudar música, eu consegui me formar, eu
consegui comprar um instrumento, eu consegui trabalhar nesse lugar... que
há, quando a gente começou era uma coisa impossível, na nossa cabeça". E aí
com isso você conseguir ajudar sua família, saca? É uma parada... realmente,
você vê aquilo como uma salvação, saca?

A despeito de todo o seu esforço explícito para se mostrarem igualitaristas,


abertos para diversidade de expressões culturais e sempre prontos para dissuadir
qualquer sinal de elitismo, esses exemplos mostram como a demarcação da fronteira
cultural por parte dos membros da fração cultural das classes médias facilmente se
desvia para se tornar um meritocratismo cultural que serve de base para a eficácia da
violência simbólica sentida pelos não-herdeiros. Se é compartilhada por todos na
fração a crença de que os sujeitos mais valorosos são aqueles que se adequam com
maior rigor ao estilo de vida "cultural", que demonstram possuir a disposição estética
necessária para observar os objetos a partir de comparações formais, que se dispõem
210

a estabelecer uma relação séria e ascética com uma cultura que por si mesma é
complexa, então, encontramos aqui todas as condições para que os pretendentes às
posições culturais de origem popular sejam excluídos ou, quando incluídos, que se
sintam sempre atrasados, equivocados, inadequados, ameaçados. Os não-herdeiros
têm todas as chances de se sentirem excluídos no interior, vivendo sob a sombra da
desclassificação que os faz sentir que qualquer pequeno desvio do estilo de vida
legitimado é o gatilho para mais uma experiência de violência simbólica. Aqui
identificamos, portanto, como a cultura se transforma em poder e em dominação,
como ela se torna passível de demarcar pertencimento coletivo e, o que é
consequência disso, como opera na exclusão de um conjunto de agentes de
determinadas posições sociais.

3.5 A política dos estilos de vida

Um último movimento relevante para entender o trabalho de demarcação de


fronteiras simbólicas por parte da fração cultural das classes médias paulistanas
consiste em conectar, ou, melhor dizendo, em quebrar com a separação que é
meramente analítica entre as disposições políticas analisadas no segundo capítulo e
as disposições culturais analisadas neste terceiro capítulo. As posições políticas de
esquerda e as estratégias de valorização da cultura legitimada se imbricam
fortemente na demarcação do pertencimento coletivo das frações culturais, por vezes
de maneira quase indistinguível, o que ajuda ainda mais na separação simbólica entre
as frações culturais e as econômicas.
Aqui, estou dialogando com uma agenda de pesquisa crescente que vem sendo
organizada sob a denominação de política dos estilos de vida (lifestyle politics). O
livro de Bill Bishop The big sort: why the clustering of like-minded america is
tearing us apart (Bishop, 2008), apesar de não ser o primeiro, certamente se tornou
o mais popular dos livros que tratam da política dos estilos de vida. Com base num
amplo conjunto de dados comparados de características políticas e culturais dos
condados estadunidenses, Bishop mostrou que a partir de meados da década de 1970
começou um processo de crescente separação e homogeneização política e cultural
dos condados, refletindo na segregação das comunidades a polarização das pessoas
em suas formas de pensarem, parecerem e viverem (Bishop, 2008, p. 38). No
211

momento de maior polarização política nos EUA até então, as eleições presidenciais
de 2004, era perceptível o ápice desse processo: as pessoas foram tornando suas
comunidades mais homogêneas, sociabilizando (em igrejas e clubes, por exemplo)
com pessoas que pensavam como elas. O efeito colateral dessa segregação foi que, na
medida em que as pessoas passaram a ouvir cada vez mais apenas as suas próprias
convicções refletidas e amplificadas nos pares ao seu redor, foram também se
tornando mais extremas em suas formas de pensar (Bishop, 2008, pp. 8-21).
A explicação de Bishop para esse processo que chamou de A grande separação
(The big sort) se assenta numa mudança nos critérios que pautam as migrações
internas no país, que foram se tornando cada vez mais seletivas, baseadas em
características mais minuciosas dos locais. Sobretudo a partir da década de 1970, a
prosperidade e segurança econômica passaram a permitir que grande parte da
população estadunidense reorganizasse suas vidas com base em valores, gostos e
crenças. Tendo mais opções de mobilidade do que nunca, os estadunidenses se
tornaram cada vez mais segregados, passando a conviver em grupos de pessoas que
pensam da mesma forma. Tal homogeneidade foi sendo transmitida para as igrejas,
clubes, organizações voluntárias e partidos políticos, criando comunidades de estilos
de vida diferentes. Por fim, a grande separação passou a impactar na própria política
institucional: líderes políticos foram se tornando mais ideológicos, menos
moderados, mais partidários, auxiliando assim no espraiamento dessa reorganização
ideológica para as demais associações e instituições do país. O resultado da grande
separação é que os estadunidenses passaram a achar os outros grupos cada vez mais
incompreensíveis, crescendo com isso a intolerância e tornando o consenso mais
improvável (Bishop, 2008, pp. 42-56).
Bishop mostra com base no conjunto de dados produzido que um condado
democrata e um condado republicano (medidos pela votação nas eleições
presidenciais) passaram a agregar cidadãos que apresentam, internamente, cada vez
mais práticas e preferências culturais em comum. Os democratas preferem ficar com
amigos em parques e locais públicos, acreditam que religião e política não deveriam
se misturar, assistem noticiários matinais e late nights, ouvem rádio matinal, leem
revistas semanais, assistem televisão aberta, leem publicações sobre música e estilos
de vida, tendem a assinar serviços de locação de DVDs e têm mais chance de ter gatos
como animais de estimação. Já os republicanos preferem ir para a igreja, passam
mais tempo com a família, acessam notícias pela Fox ou pelo rádio, possuem armas,
212

leem revistas sobre esportes e sobre casa, vão a estudos da Bíblia, visitam parentes
com frequência, falam sobre política com pessoas da igreja, acreditam que as pessoas
deveriam ter mais responsabilidades por suas vidas, acreditam que uma grande força
é a melhor maneira de derrotar terroristas e tem mais chance de ter cachorros como
animais de estimação. Esse compartilhamento de estilos de vida é perceptível no
espaço, e as pessoas começaram a migrar de condado em função do conhecimento
tácito sobre esses estilos de vida (Bishop, 2008, pp. 26-27).
O livro de Bishop ficou bastante popular e serviu de inspiração para um
conjunto de trabalhos que começaram a mostrar, em diferentes lugares do mundo e
para diferentes domínios culturais, associações entre posições políticas e estilos de
vida. Eu fiz breves resumos dessas pesquisas e os disponibilizei no Apêndice D109. O
que me parece relevante destacar é que, por meio da análise comparativa desse
conjunto de pesquisas, e observando-as ainda ao lado do livro de Bishop, fica claro
que se trata de um padrão transversal na associação entre estilos de vida e
posicionamentos políticos a unidade entre posições políticas de esquerda e a
valorização da cultura legitimada. Em diversos casos, são os agentes mais próximos
das posições políticas progressistas (o que, evidentemente, varia de acordo com cada
contexto particular de disputa política) aqueles que mais valorizam a cultura erudita e
a “alta cultura”, que mais apresentam práticas de estilização da vida cotidiana e que
mais se preocupam com as hierarquias definidas pelas instâncias de consagração
cultural. Assim, tudo parece indicar o caráter fortemente estrutural da associação
entre o capital cultural e a esquerda política, o que, uma vez mais, fala sobre os
posicionamentos políticos e os estilos de vida como tomadas de posição pautadas pela
posição de classe e fração de classe no espaço social.
A pesquisa de Flemmen, Jarness e Rosenlund (2019; 2022) sobre posições
políticas e estilos de vida entre a população norueguesa merece destaque aqui por
apresentar um dado particularmente forte para falar sobre essa associação entre
capital cultural e posições de esquerda. Primeiro, construindo a hipótese do
esquerdismo do capital cultural já mencionada no capítulo dois, os autores mostram
que fazer parte das frações de classe culturais é a característica que apresenta mais
forte homologia com ter posições políticas de esquerda, o que faz da fração de classe o
fator explicativos mais adequado da oposição entre direita e esquerda (Flemmen;

109
As referências são: DiMaggio (1996), Khan; Misra; Singh (2013), Roos; Shachar (2014), Dellaposta; Shi; Macy
(2015), Purhonen; Heikkila (2016), Shi et al (2017), Praet et al (2021a), Praet et al (2021b).
213

Jarness; Rosenlund, 2019). Mas em texto posterior (Flemmen; Jarness; Rosenlund,


2022), tentado encontrar uma lógica subjacente aos posicionamentos que desviam do
padrão (isso é, membros das frações culturais que votam na direita e membros das
frações econômicas que votam na esquerda), os autores encontraram de maneira
ainda mais forte a associação entre posicionamentos políticos e estilos de vida ao
mostrarem que os agentes que destoam do padrão político de sua fração de classe são
também, na maior parte dos casos, destoantes em seu estilo de vida. Ou seja, quando
os autores observaram os membros das frações de classe econômicas que apresentam
posições políticas de esquerda, viram que se tratava de indivíduos que também
apresentavam estilo de vida marcado pela valorização da cultura legitimada, e, da
mesma forma, os agentes de posições culturais que desviavam dos outros membros
de sua fração de classe ao apresentarem posições políticas de direita eram também os
menos preocupados com a valorização de seu capital cultural. Nas frações de classe
balanceadas a mesma associação se repete: estar mais à direita ou mais à esquerda
politicamente é também, na maior parte dos casos, se importar mais ou menos com a
cultura legitimada (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2022, pp. 267-274). Assim, os
dados de Flemmen, Jarness e Rosenlund amarram numa hipótese de caráter mais
estrutural, e com isso generalizável, a relação entre as frações culturais, a valorização
da cultura legitimada e a esquerda política, mostrando que as imbricações que vêm
aparecendo nas pesquisas sobre política dos estilos de vida têm todas as chances de
serem, no fundo, efeitos comuns do capital cultural sobre os agentes.
Foram variados os exemplos de meus entrevistados associando suas práticas e
preferências culturais a suas posições políticas. Adriano, por exemplo, gosta de
frequentar espaços de cultura drag pois, em sua opinião, eles o ajudam a
desconstruir as tendências machistas sob a qual foi criado. Na mesma linha,
Alessandra, quando comentando sobre suas preferências audiovisuais, disse que
gosta de comédias que façam críticas ao patriarcado, que para ela é um marcador de
humor inteligente. Alessandra e Flávio deram também exemplos claros de consumo
político: ela disse que evita fazer compras em grandes redes, dando sempre
prioridade para comprar de produtores pequenos, sobretudo anarquistas, mulheres e
mães solo, e ele afirmou que não compra roupas de marcas que exploram
trabalhadores e que utilizam técnicas e tecidos que degradam o meio ambiente.
214

Samuel, que é formado em música e que atua há anos no campo da música


erudita, fez uma crítica ao estilo e a suas formas presente de realização prática
baseada fundamentalmente no que entende ser seu caráter elitista:

Samuel: Frequento já há muito tempo concertos de música clássica.


Acontece que de uns tempos pra cá eu fui querendo me distanciar um pouco,
inclusive da música clássica [risos], porque... Bom, tem toda uma questão
muito elitista que a gente tá cansado de saber a respeito da maneira com que
a música clássica é feita. Não ela própria, mas a maneira como ela é feita. Por
exemplo, a gente tem aqui em São Paulo a Sala São Paulo. É uma sala de
concertos super legal, super bacana, mas a gente sabe exatamente que tipos
de pessoas frequentam aquele lugar, a maneira como isso é vendido, a
questão social, assim... a disparidade social que existe, onde ela está cravada,
a Sala São Paulo, que é exatamente na cracolândia [...].Um ingresso na Sala
São Paulo não custa menos de cem reais. Qualquer ingresso da pior
qualidade... não que a Sala São Paulo tenha lugares ruins pra sentar, é um
lugar pensado, um lugar interessante, mas com esse preço você já estabelece
quem vai poder assistir um concerto e quem não vai poder assistir um
concerto. É totalmente pra uma elite paulistana.

E estende a crítica para o caráter conservador da música erudita, sua falta de


diversidade e as desigualdades de gênero e raça no ambiente da música clássica:

Samuel: Em especial, eu não conheço nenhuma orquestra no Brasil que...


digo orquestra de grande porte, como a Osesp, na Sala São Paulo, que tenha
um repertório bastante diversificado, um repertório atuando em
contemporaneidades. Por exemplo... compositoras recentes, ou vivas. Então
o repertório clássico, europeu, de 200, 300 anos atrás, ele é muito mais
praticado do que, por exemplo, um repertório brasileiro. A questão de gênero
é surreal, você pode contar nos dedos de uma mão quantas compositoras
você vai ouvir na temporada inteira da Osesp na Sala São Paulo. Isso, assim,
quando tem uma compositora eles fazem uma super divulgação, como se
fosse uma cota. Totalmente desequilibrado. A questão de raça, pior ainda.
Quantos compositores negros você ouviu na Sala São Paulo? Quantos
músicos negros têm na Osesp, por exemplo?

Assim como os posicionamentos políticos ajudam a explicar uma parte daquilo


que os entrevistados mais gostam (o melhor exemplo é a MPB, fortemente associada
ao histórico de luta contra a Ditadura Militar), eles explicam bem uma parte das
opções culturais que os entrevistados mais desprezam. Na rejeição aos livros de
autoajuda e de empreendedorismo, liderança e investimentos, por exemplo, a maior
parte das críticas dos entrevistados é de base política: Daiane diz que são livros que
reproduzem a lógica meritocrática, Débora diz que se alinham à proposta neoliberal
de culpabilizar os indivíduos por seus problemas, Manuel diz que são manuais do
capitalismo para ensinar as pessoas a serem "cordeirinhos", e Rafaela diz que são
215

"coisa de coach", ensinando as pessoas que o que o capitalismo faz com elas na
verdade é sua culpa.
Outro exemplo particularmente simbólico da política dos estilos de vida se
encontra nas justificativas dos entrevistados para seu desprezo pelos shopping
centers, a principal recusa cultural da amostra no domínio dos lazeres externos.

Flavio: Detesto [risos]. Evito ao máximo. Eu acho o ambiente do shopping


um ambiente horrível. Em geral, eu odeio ambientes que se fecham à cidade.
Eu acabei estudando muito isso na arquitetura: tem toda uma questão
psicológica da arquitetura do shopping, que é uma arquitetura que se fecha,
que dificilmente você vê o céu, você vê a rua... É uma lógica muito capitalista
de você se perder naquele mundo e não se lembrar do que está lá fora. Então,
eu detesto, detesto. Se eu preciso ir em algum.. por exemplo, se preciso
comprar um presente, alguma coisa assim, eu prefiro muito mais ir em loja
de rua, ou em alguma galeria aberta, ou mesmo, tem alguns shoppings hoje
em dia que são mais abertos à rua e tal, eu prefiro muito mais do que entrar
naquele bloco de cimento em que você vai ser engolido e não vai ver o que
está lá fora, sabe?

Os shopping centers são um caso bom para pensar na associação entre capital
cultural e esquerda política pois funcionam como emblema do capitalismo como um
todo, mas particularmente da cultura de consumo que tanto incomoda à fração
cultural. Por isso, recusá-los é uma estratégia fácil, rápida e segura de exibir tanto
disposição anticapitalista (uma das principais bases da esquerda política), quanto
denegação do econômico (condição de existência do capital cultural). Isso explica
porque Alessandra diz que os odeia, que considera um lugar ruim, porque Alex os
considera inócuos e sem propósito, porque Daiane diz que não tem nada ali que a
interesse, e porque Débora e Elaine só vão se for necessário.

Roberto: Acho que faz referencia e alusão a valores e comportamentos que eu


não quero... não só não quero alimentar em mim, como não quero alimentar
no mundo

Gustavo: Que valores e comportamentos, especificamente?

Roberto: Ah, eu diria essa cultura do consumo inconsciente, desenfreado.


Esse antro do consumo. E isso de a gente estar ali, ao invés de estar ao ar
livre caminhando, passeando, interagindo socialmente, você está ali numa
cúpula, numa redoma fechada, com o ar viciado, rodando, e a gente
caminhando e interagindo dentro desse contexto, sem ver luz do Sol. Pra
quem trabalha ali, por exemplo, é um trem triste. Você passa o dia ali dentro,
você não sabe que horas são. Se você perder o relógio do pulso, ou acabar a
bateria do celular, você não faz ideia do que está acontecendo lá fora, que
hora do dia que é, se tá Sol, se tá chovendo...
216

Finalmente, o outro grande exemplo de recusa cultural que associa cultura e


política entre os entrevistados é aquele já analisado no exemplo heurístico de Elaine
que utilizei para a abertura deste texto: a música sertaneja contemporânea.

Gustavo: Tem lazeres externos, espaços, atividades que definitivamente não


são as suas, que você não gosta, que você não iria de forma alguma?

Rafaela: Ah, coisa sertaneja, não, pelo amor de Deus, puta que pariu! [...]
Esse universo da música sertaneja, não apela pra mim. Principalmente
porque é um bando de bolsonarista, então... não quero. Podem até falar que
tem muita coisa boa, mas eu não quero.

Gustavo: E como é que você identifica esses lugares que são os lugares que
você não frequentaria, que você não gosta de forma alguma?

Rafaela: Estância Alto da Serra? Baladinha na Vila Olímpia?

A opinião de que é uma música que peca não apenas pelo simplismo,
padronização e superficialidade, mas também por ter letras conservadoras, e com isso
ser música de pessoas conservadoras, apareceu entre diferentes membros das frações
culturais das classes médias paulistanas.

Alessandra: Sertanejo é o que eu chamo de "agromúsica". Tem essa questão


do agro, tem esse apoio ao Bolsonaro, tem letras extremamente machistas. A
maioria eu acho que fica a um passo do feminicício. Isso me incomoda
muito, a forma como eles naturalizam essa questão do, "vai namorar comigo,
sim!", ou... Então, é uma música que naturaliza o abuso, o feminicício...
Ensina às meninas que posse é amor, que o cara... então são músicas
extremamente abusivas, e aí ensina as meninas que o cara ama muito,
quando na verdade é um controle. E eu não gosto do ritmo... tudo.

Assim como no caso supracitado de Elaine, fica claro que grande parte da
delimitação de uma fronteira simbólica que é ao mesmo tempo política e cultural e
que encontra na música sertaneja um caso emblemático é fortemente influenciada
pelo atual contexto de acirramento do conflito político no Brasil, ainda que se baseie
em esquemas de percepção mais amplos como o que opõe centro a interior.

Guilherme: Minha mãe ouvia, com alguma frequência, aquelas duplas mais...
não vou dizer tradicionais, mas aquelas do início da explosão do sertanejo,
Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, e eu ouvia como pano de fundo,
mas sem profundo interesse. Quando o tempo foi passando e eu fui viajando
pelo Brasil, aí sim eu comecei a gostar menos ainda [risos]. Porque, não sei,
pareceu não só muito distante da minha realidade, mas identifiquei esses
ritmos também com pessoas com quem eu não tenho nada a ver. Tenho
curiosidade antropológica com elas, mas não me identifico.

Gustavo: Você disse que identificou o sertanejo com pessoas que não são tão
parecidas com você?
217

Guilherme: Isso, isso. Mato Grosso, Goiás, Tocantins, quando você vai
entrando pelo Brasil e aí você ouve o cara falando que gosta muito de... sei lá,
do João Paulo e Daniel, e aí ao mesmo tempo você ouve o cara dizendo um
tempo depois que, "é isso aí, minha mulher não sai de casa mesmo não, não
deixo sair", você começa a ficar meio, "... legal, então vai ouvir sua música
aí".

Esses exemplos que emergiram de minha pesquisa se somam a outros que


apareceram nos grupos focais do projeto Para além da distinção e a uma série de
outros que podemos coletar, de maneira mais ou menos sistemática, no noticiário
político e em observações cotidianas do atual contexto de acirramento do conflito
político no Brasil. É emblemático, por exemplo, que durante as eleições presidenciais
de 2018 tenha sido uma tendência que os eleitores de Haddad declarassem
publicamente seu voto levando livros debaixo do braço para as urnas no momento da
votação110, e que, de forma praticamente idêntica, tenha sido uma tendência nas
mídias sociais durante as eleições de 2022 eleitores declarando voto em Lula
postando uma foto de treze livros vermelhos empilhados junto da hashtag
#13livrosvermelhos111. São exemplos que ecoam o fato de que a imbricação entre a
esquerda política e a valorização da cultura legitimada é compreendida
popularmente, ainda que de maneira não-reflexiva e marcada pela espontaneidade do
senso comum.
Mas, como indiquei no item anterior, a imbricação que funciona para separar a
fração cultural da econômica serve também para separar as classes médias das
populares. Assim é que, com base numa crítica – por vezes explícita, por vezes
implícita – direcionada ao elitismo cultural das frações culturais, Bolsonaro foi capaz
de mobilizar fortemente símbolos de um certo estilo de vida popular para se
aproximar daqueles que estão na base do espaço social: a camiseta de time de futebol,
a caneta BIC, o relógio Cássio, o cachorro-quente na rua, o pão com leite condensado.
“Ele fala como a gente”, como se sabe, foi uma das justificativas mais comuns para o
voto em Bolsonaro por parte de membros das classes populares. Não que Lula
também não tenha incontáveis vezes ao longo de sua trajetória pública mobilizado

110
Veja. Famosos que apoiam Haddad levam livros para votar no 2º turno. Política, Veja, 28 de outubro de
2018. Disponível em <https://veja.abril.com.br/politica/famosos-que-apoiam-haddad-levam-livros-para-votar-
no-2o-turno>. Acessado em 06 de março de 2024.
111
O Pharol. 13 livros vermelho. Colunas, O Pharol, 25 de setembro de 2022. Disponível em
<https://jornalopharol.com.br/2022/09/13-livros-vermelhos/>. Acessado em 06 de março de 2024.
218

símbolos estilísticos das classes populares112, mas a peregrinação dos cantores da


música sertaneja contemporânea pelo Palácio da Alvorada entre 2019 e 2022 pode
facilmente ser lida na oposição à figura de Chico Buarque sentado por horas ao lado
de Lula enquanto assistiam ao julgamento do processo de impeachment contra Dilma
no Senado Federal em 2016113. E destaque-se, além disso, que a música sertaneja é há
anos o estilo musical mais ouvido no Brasil114, sobretudo entre aqueles com menor
escolaridade115.
Em todo esse conjunto de casos, o que vemos é que a separação entre estilos de
vida e posicionamentos políticos é muito menos concreta do que supõem as pesquisas
sobre comportamento político (que deixam de lado os estilos de vida) e as pesquisas
sobre estilos de vida (que deixam de lado os comportamentos políticos). As tomadas
de posição em ambos os domínios se imbricam na medida em que são fruto comum
da posição dos agentes no espaço social. A fração cultural das classes médias
paulistanas é apenas um dos exemplos a partir dos quais essa constatação pode ser
sustentada. No seu caso, no entanto, o paradoxo da oposição entre cultura e política
os coloca numa situação particularmente complexa: eles discursam a igualdade e
defendem uma política estatista de distribuição de renda, mas seu meritocratismo
cultural traça uma fronteira cultural contra as classes populares que pode ser
mobilizada efetivamente pela direita política.

3.6 Síntese

O estereótipo dos santa cecíliers como o grupo por excelência do estilo


"alternativo", da cerveja artesanal, roupa de brechó e disco de vinil, arregimenta uma
112
Se do ponto de vista das posições políticas podemos separar os quatro últimos presidentes do Brasil
colocando Lula e Dilma Rousseff de um lado e Bolsonaro e Michel Temer do outro, me parece válida a
compreensão de que, do ponto de vista dos símbolos de estilos de vida mobilizados cotidianamente, a
separação coloca Lula e Bolsonaro de um lado, Dilma e Temer do outro.
113
G1. Lula acompanha discurso de Dilma ao lado de Chico Buarque e ex-ministros. Política, G1, 29 de agosto
de 2016. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-
dilma/noticia/2016/08/lula-acompanha-discurso-de-dilma-ao-lado-de-chico-buarque-e-ex-ministros.html>.
Acessado em 06 de março de 2024.
114
No Spotify, das 100 músicas mais ouvidas no Brasil entre 2014 e 2022, 55 eram sertanejas. Nas rádios
brasileiras, 76 das 100 músicas mais ouvidas em 2022 eram sertanejas. Ver
<https://maistocadas.mus.br/2022/> e <https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2022/06/27/quais-sao-
as-musicas-mais-ouvidas-da-historia-do-spotify-no-brasil.ghtml>, acessados em 31/07/2023.
115
Pesquisa amostral realizada em 2017 em todas as capitais brasileiras (Leiva, 2018) apontou o sertanejo
como o estilo musical favorito de 42% da população que tinha apenas ensino fundamental completo, 39% de
quem tinha até o ensino médio e 28% de quem tinha o ensino superior.
219

coletânea de pequenos casos que dão pistas do fundo estrutural que constrange as
práticas do grupo. Estetizar a vida da forma como eles fazem – saber que o casaco
velho da avó se encaixa bem com uma peça moderna, que o caixote de feira dá uma
boa mesa de cabeceira – só é importante para aqueles que não possuem o capital
econômico demandado para simplesmente comprar o estilo de vida mais
dispendioso, mas só é possível para aqueles que possuem a maestria simbólica
necessária para conseguir fazer as escolhas estéticas “corretas”. A valorização do
"cultural", do "alternativo" e do estetizado são, portanto, função do capital cultural, e,
de forma mais ampla, da fração de classe cultural. Mas, como também é indicado
pelas reportagens, o estilo de vida "cultural" não é interpretado como sendo
simplesmente um jeito de ser diferente dos demais, mas também é entendido pelos
santa ceciliers como jeito de ser melhor. Ele é “autêntico” para resistir aos padrões
massificados da indústria cultural, ele é “profundo” para quebrar com a
superficialidade das relações de troca meramente econômicas, ele pessoaliza a vida
para se opor a frieza impessoal das relações pautadas pela busca por lucro financeiro.
Por todos os meios que podem, os santa ceciliers – e de maneira mais ampla, a fração
cultural das classes médias paulistanas – traçam uma fronteira que afasta as frações
de classe econômicas, e na medida em que essa fronteira é compartilhada e
reconhecida como legítima pelos membros que ela agrega, ela passa a permitir
também a valorização simbólica daqueles que se caracterizam socialmente por sua
posse de capital cultural.
A necessidade perene da demonstração pública e da valorização de seu capital
cultural se impõe como um peso sobre cada agente da fração cultural das classes
médias. Assim como as posições políticas de esquerda, não seguir a regra dominante
tende a impor dificuldades para a sua sociabilidade. O mesmo é dizer que o capital
cultural constrange suas vidas, e exerce sua coerção por meio de toda a rede de
relações sociais na qual um membro da fração cultural precisa estar inserido para
assegurar a estabilidade de sua posição social. Se arriscar a abrir mão das estratégias
de valorização do capital cultural é se expor ao risco da desclassificação, do declínio
na hierarquia de prestígio propriamente cultural que organiza esse lado do espaço
social. Por isso, a seriedade e o ascetismo que pautam suas escolhas culturais não são
menores do que aqueles que guiam os investimentos dos faria limers na bolsa de
valores. Mudam apenas os valores, mas os investimentos precisam ser igualmente
calculados.
220

Mas a fronteira que permite a valorização é também a que estrutura a exclusão,


e se ela funciona bem para proteger as frações culturais das econômicas, funciona
igualmente bem para manter bem distantes as classes populares como um todo. É o
dilema político-cultural da fração cultural das classes médias: elas são
estruturalmente determinadas pelo imperativo da denegação do econômico, o que faz
com que se adequem tanto às posições políticas de esquerda quanto ao senso de
superioridade cultural que rejeita toda a cultura que pareça ter menos valor. E com
isso, rejeitando a cultural que lhes parece simples, rasa, pobre, padronizada,
massificada, comercial, estão simultaneamente rejeitando o estilo de vida que
identifica a maior parte das posições que se encontram na base do espaço social.
O dilema é vivo e não passa despercebido por eles, que tentam revoga-lo com
toda uma gama de ressignificações e valorizações (estetizadas) da cultural que
acreditam ser "popular": a significância social do funk, a complexidade da música
caipira, a autenticidade do brega. Mesmo assim, a vivacidade das experiências de
violência simbólica colecionadas pelos pretendentes de classe popular às posições
culturais de classe média deixa pouca esperança para o esforço de diversidade
cultural da fração cultural das classes médias: sair das posições inferiores do espaço
social para tentar entrar nas médias culturais é, quase em regra, conviver diariamente
com a necessidade da luta para contornar um perene sentimento de que não se
merece estar ali, pois todos ao seu redor são mais complexos, profundos, ricos,
autênticos e "culturais" que você.
221

CONCLUSÃO: OS EFEITOS DO CAPITAL CULTURAL

A lógica profunda dessas lutas que descrevi no nível dos fenômenos baseia-
se numa lei simples: cada combatente busca impor o princípio de divisão e
de percepção mais conforme as suas propriedades, o que lhe dará o melhor
rendimento para essas propriedades [...]. A ideologia se engendra naquela
espécie de estratégia fundamental através da qual cada sujeito social se
esforça não somente para dar uma boa imagem de si mesmo, mas também
para impor como universal o princípio de classificação segundo o qual é
melhor classificado (Bourdieu, 2020, pp. 118-119).

Quando o agente possui o capital cultural, o capital cultural possui o agente.


Se, para o agente, possuir o capital cultural significa estar munido de um recurso que
indica a possibilidade de exercício efetivo de um poder e o reconhecimento de uma
posição hierarquicamente superior, para o capital cultural, possuir o agente significa
constrangê-lo a agir segundo sua lógica nos mais diversos domínios da vida social. A
lógica do capital cultural é a lógica do reconhecimento e da necessidade impositiva de
valorização da cultura legitimada, e junto disso a necessidade de negar a lógica do
capital ao qual o cultural se opõe, o econômico. Assim, quanto mais munidos da
cultura legitimada, maior o reconhecimento dos agentes nas hierarquias de prestígio
propriamente culturais, maior sua capacidade de exercer efetivamente violência
simbólica, e mais presos eles estarão à lógica de funcionamento do capital cultural.
No limite, o capital cultural, para um agente localizado numa fração de classe
cultural, determina todo o seu sentido da vida.

Na sociedade de corte, o sentido da vida para um duque estava no fato de ser


um duque, para um conde, no fato de ser um conde, para cada privilegiado,
no fato de ser um privilegiado. Qualquer ameaça à posição privilegiada de
uma determinada casa, assim como ao sistema hierarquizado de privilégios
como um todo, significava uma ameaça àquilo que dava valor, importância e
sentido aos indivíduos dessa sociedade, a seus próprios olhos e aos olhos das
pessoas com quem conviviam e que tinham uma opinião sobre eles.
Qualquer perda de privilégio significava um esvaziamento de sentido de suas
existências. Em função disso, cada um deles tinha de cumprir, também, com
os deveres de representação que estavam ligados às suas posições e aos seus
privilégios. Correspondendo às gradações dos níveis sociais e às posições
nessa sociedade estratificada, havia polaridades de valor dos tipos mais
diversos. Todo o sistema era carregado de tensões. Era impregnado de
inumeráveis rivalidades por parte dos homens que procuravam proteger suas
posições, demarcando-as contra os níveis inferiores, e que talvez tentassem,
ao mesmo tempo, melhorá-las em relação às camadas superiores,
diminuindo as distâncias. Saía faísca de todos os lados (Elias, 2001, p. 95).
222

O empréstimo do argumento de Elias analisando a sociedade de corte se deve a


clareza com a qual ele identifica a unidade existente entre a posição social e as
disposições para a ação dos agentes. Se o "sentido da vida" do privilegiado é manter
seu privilégio, todas as suas disposições e ações organizar-se-ão em torno da tentativa
de manter o privilégio. Seus estilos de vida, suas estratégias matrimoniais, suas
orientações políticas, seus vínculos de amizade, tudo se unifica segundo o imperativo
de manutenção do privilégio. É uma questão de produção estratificada dos ethos, das
cosmovisões, dos princípios de organização dos habitus. Estão todos tentando
defender seu capital. Estão todos numa luta para tornar sua forma de ver o mundo na
forma dominante de se ver o mundo. É este, afinal, o princípio estruturante da luta
pela produção ideológica, da luta pela hegemonia. Por isso, se a posição social do
agente é garantida, acima de tudo, por sua posse de capital cultural, o agente precisa
defender a lógica do capital cultural para que sua posição exista e para que tenha
sentido, e por isso não há esfera da vida social em que ele não exibirá a tendência de
reproduzir a lógica do capital cultural.
É a este argumento que me filio para explicar o que mostrei nesta dissertação,
em que analisei empiricamente uma amostra de agentes pertencentes à fração
cultural das classes médias paulistanas. Tratei, aqui, de indivíduos localizados em
posições intermediárias de áreas ocupacionais que demandam dos agentes a posse de
capital cultural incorporado na forma de maestria simbólica: a arte, a ciência, a
produção acadêmica, a comunicação, a docência, em menor medida também a
assistência social e algumas profissões liberais. Entre os casos analisados há,
certamente, uma série de dissonâncias, mas a análise de suas tomadas de posições em
diferentes domínios da vida social (escolhas educacionais, habitacionais,
matrimoniais, políticas e estilísticas) mostra também que o grupo se unifica por seu
esforço comum de valorizar o capital cultural e denegar o econômico. A explicação
das tomadas de posição, portanto, deve ser encontrada propriamente na fração de
classe cultural, ou seja, nos efeitos do capital cultural sobre suas disposições. Foi o
que tentei argumentar e sustentar empiricamente nos três capítulos da dissertação, e
que sintetizo, de maneira ainda mais generalizante, nesta conclusão.
No primeiro capítulo, eu mostrei que a fração cultural das classes médias
paulistanas se caracteriza, em termos de condições de vida, na maior parte dos casos,
por ocupações típicas do campo de produção cultural, pela habitação em bairros
223

específicos da cidade, pelas relações amorosas com outros membros de frações


culturais, pela trajetória escolar marcada por instituições "alternativas" e de maior
prestígio. Porém, cabe notar, mais do que sua realização prática, estes padrões
constituem um modelo reconhecido e valorizado de condições de vida entre os
membros da fração, ou seja, mesmo aqueles que não se adequam a algum dos
critérios do padrão reconhecem seu valor, e com isso valorizam aqueles que se
adequam a ele com maior precisão. Assim, o padrão típico de condições de vida da
fração cultural das classes médias produz uma fronteira simbólica, pois demarca
pertencimento coletivo, e ao mesmo tempo organiza a hierarquia de prestígio válida
para os membros da fração (e para os pretendentes a ingressar nela).
O mesmo vale para os posicionamentos políticos e para os estilos de vida. No
caso dos posicionamentos políticos, um padrão geral caracterizado pela preocupação
com a desigualdade econômica, pelo progressismo nas pautas morais e pela
valorização do Estado como instituição mais adequada para combater as
desigualdades constitui o conjunto de critérios fundamentais de demarcação de uma
fronteira política entre a fração cultural das classes médias. Esses posicionamentos de
esquerda são cobrados daqueles que pretendem ingressar nas posições culturais
intermediárias do espaço social, e seguem sendo continuamente exigidos para que a
sociabilidade e a reprodução da posição social seja assegurada, além de operarem
como uma forma dos membros da fração cultural encontrarem seu valor moral em
oposição às frações de classe econômicas.
No caso dos estilos de vida, a fronteira cultural que demarca o pertencimento
coletivo da fração se baseia na valorização de um estilo de vida que eles identificam
como "cultural", bem como numa diversidade de formas de realização prática e de
percepção a respeito das possibilidades estilísticas por meio da qual eles podem
demonstrar que possuem alto capital cultural incorporado. São os consumos
"estéticos", "alternativos", "complexos", "profundos", bem como a atenção às
instâncias de consagração cultural e aos intermediários culturais e a rejeição de tudo
que lhes parece excessivamente comercial, padronizado e massificado; tudo operando
para exibir, e com isso valorizar, seu capital cultural. Assim como a fronteira política,
a fronteira cultural funciona criando identidade coletiva e um critério de valor pessoal
alternativo ao econômico.
Porém, como lembra Michèle Lamont, a fronteira simbólica gera a sensação de
segurança, dignidade e honra para quem está do lado de dentro, mas é
224

experimentada como exclusão para quem está do lado de fora. Sobretudo para os
pretendentes com origem de classe popular, e sobretudo para o caso dos estilos de
vida (em que a exigência da maestria simbólica sobre as possiblidades estilísticas se
mostra mais claramente), o padrão legitimado de comportamento se impõe como a
prova de que aquelas posições só podem ser ocupadas por aqueles que possuem um
valor intrínseco raro, ou, na chave mais meritocrática, por aqueles que alcançaram
aquelas posições pelo trabalho árduo que realizaram para se adequar ao padrão
simbólico requisitado. Assim é que a fração cultural das classes médias resguarda sua
parte do espaço social tanto pela restrição do acessos a recursos requisitados
(sobretudo credenciais e postos ocupacionais, mas também algum volume de capital
econômico), quanto pela construção de uma identidade coletiva que demanda árduo
conhecimento da cultura legitimada para que possa ser apropriada com segurança.
Aqui, na união entre a dimensão material e simbólica da existência da classe, é que
conseguimos identificar o mecanismo de legitimação e reprodução social das posições
culturais da classe média.

***

Como a pergunta de pesquisa que eu tentei responder diz respeito aos efeitos
do capital cultural sobre as tomadas de posições dos agentes, sobretudo daqueles que
assentam sua reprodução social e que constroem suas hierarquias de prestígio com
base nele, todo o discurso é formulado para chamar a atenção para esse conjunto
específico de efeitos estruturais. No entanto, a realização plena e inconfundível dos
efeitos do capital cultural só seria possível sobre a fração cultural típico-ideal,
portanto, ela não existe empiricamente. Os membros de uma fração cultural são
atravessados também pelos constrangimentos estruturais de sua posição de classe
(popular, média ou dominante), de seu gênero, de sua raça, de sua geração, de sua
faixa etária, de sua região e assim por diante, o que faz com que o pertencimento a
uma fração de classe cultural nunca seja exatamente a mesma coisa para dois
diferentes membros de uma mesma fração de classe cultural. Mas eu argumento que
há, mesmo assim, sempre um fundo comum condicionado pela fração de classe
cultural, e é para evidenciá-lo que o discurso é construído valorizando o capital
cultural como determinante da ação.
225

Desta forma, remeto ao debate de Bernard Lahire com Bourdieu para dizer que
minha pesquisa é uma pesquisa que busca o padrão, não a dissonância. Lahire (2002,
2007) argumenta que Bourdieu deixa de fora de suas análises os casos que não se
adequam aos padrões estruturais identificados por ele, afirmando que dentro de
qualquer classe ou grupo social há um conjunto circunscrito de "dissonantes" –
agentes que não se adequam ao padrão estrutural –, e, da mesma forma, que todo e
qualquer agente possui a sua parte de dissonância – as áreas de seu comportamento
que destoam da regra de sua classe ou grupo. O argumento de Lahire é adequado
para falar de minha amostra: nenhum dos meus vinte e sete interlocutores se adequa
com perfeição ao modelo descrito na introdução e na conclusão deste texto. Meus
entrevistados estão, na verdade, em variadas posições do espectro típico-ideal da
fração cultural que apresentei no item 1.1.5 O espectro das frações de classes
econômicas e culturais.
Porém, preocupado em observar o padrão, o que eu mostro com minha
pesquisa é que, por mais que ninguém se adeque completamente, todos eles
reconhecem e legitimam em alguma medida a existência do padrão, e pautam suas
ações orientando-as pelo esforço de adequação. Ou seja, o efeito comum do capital
cultural atravessa todos eles de maneira forte o suficiente para que a valorização da
cultura legitimada e a denegação do econômico sejam guias fundamentais de suas
estratégias de ação. É o próprio fato de que o tipo ideal é inalcançável, aliás, que
permite que o capital cultural estruture uma hierarquia. Em outras palavras, é a
impossibilidade da realização plena do padrão legitimado que faz com que a luta
simbólica tenha que ser realizada dentro e fora da fronteira: fora, para se valorizar
diante das frações econômicas e para se proteger das classes populares; dentro, para
ver, na comparação com seus pares, quem é o mais verdadeiramente "cultural" dos
culturais.
226

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237

APÊNDICE A. ENTREVISTADOS

Abaixo, apresento pequenas caracterizações sociais de meus vinte e sete


entrevistados. Lembrando que os pseudônimos seguidos de um asterisco (Jorge*,
Lucia*, Marcio* e Sueli*) são daqueles que apenas responderam ao questionário mas
não deram a entrevista, por isso as informações sobre eles são mais limitadas. Após
as descrições, disponibilizei também três nos quadros apresentadas no primeiro
capítulo sintetizando algumas informações fundamentais de caracterização dos
entrevistados: Quadro 3. Capital econômico dos entrevistados, Quadro 5.
Companheiros dos entrevistados, e Quadro 7. Trajetória de escolaridade entre os
familiares e os entrevistados.

Adriano é músico. Ele tem 34 anos, é branco, heterossexual, solteiro e sem filhos.
Adriano fez graduação em música numa instituição pública. Seu pai era eletricista e
depois chefe de manutenção, e sua mãe era secretaria e depois agente escolar. Um de
seus avôs foi produtor de tijolos, o outro foi um pequeno proprietário e trabalhador
rural. Uma de suas avós foi trabalhadora do lar e a outra trabalhadora rural.
(Entrevista realizada em 18 e em 21 de abril de 2023. 154 minutos de entrevista)

Alessandra é professora de educação básica. Ela tem 38 anos, é branca,


heterossexual, está em um relacionamento estável e tem dois filhos, um de 6 e uma
de 10 anos, oriundos de um casamento anterior. Alessandra fez duas graduações em
cursos de ciências humanas, ambas em instituições públicas, e atualmente cursa
mestrado também na área de humanas e também numa instituição pública. Seu pai
era professor de educação básica e depois de educação superior numa instituição
pública, e sua mãe foi professora de ensino básico. Uma de suas avós foi costureira e
trabalhadora do lar, a outra foi trabalhadora rural. Um de seus avôs foi metalúrgico e
professor de nível técnico, o outro foi trabalhador rural. (Entrevista realizada em 31
de janeiro de 2023. 91 minutos de entrevista)

Alex é antropólogo. Ele tem 34 anos, é branco, bissexual, casado e sem filhos. Além
de antropólogo, Alex também atua como músico, e já lançou um álbum. Alex fez
graduação, mestrado e doutorado em cursos da área de ciências humanas, e agora
cursa pós-doutorado, todos em instituições públicas. Numa primeira parte de sua
infância, Alex foi criado apenas por seus pais biológicos, mas após a separação deles e
de seus novos casamentos, passou a se dividir entre a família do pai biológico com
sua madrasta e a família da mãe e do padrasto (que depois o adotou oficialmente).
Seu pai biológico era funcionário técnico-administrativo no serviço público, sua mãe
era psicóloga e psicanalista, seu pai adotivo trabalhava com empreendimentos
populares e imóveis de alto padrão e sua madrasta circulou por uma diversidade de
empregos (empregada doméstica, funcionária de banco, funcionária de hotel). Alex
não informou as profissões dos avôs e avós. (Entrevista realizada em 11 de abril de
2023. 116 minutos de entrevista)
238

Daiane é assistente acadêmica de um professor de Direito, e também atua


eventualmente como advogada. Ela tem 31 anos, é branca, heterossexual, casada e
sem filhos. Daiane fez graduação em direito e em outro curso da área de ciências
humanas, e agora cursa mestrado também num curso da área de humanas, todos em
instituições públicas. Sua mãe era advogada, seu avô era auditor do INSS e sua avó
era trabalhadora do lar. (Entrevista realizada em 22 de fevereiro de 2023. 107
minutos de entrevista)

Débora é jornalista, exercendo atualmente um cargo de gerência geral numa


empresa jornalística. Ela tem 40 anos, é branca, heterossexual, casada e sem filhos.
Débora fez graduação em jornalismo numa instituição privada. Sua mãe era psicóloga
e psicanalista e seu pai era pequeno comerciante de verduras. Um de seus avôs era
pedreiro e o outro era trabalhador rural e, posteriormente, pequeno comerciante de
verduras. Suas avós eram trabalhadoras do lar. (Entrevista realizada em 08 e em 16
de maio de 2023. 83 minutos de entrevista)

Elaine é produtora de conteúdo sobre beleza e maquiagem para mídias sociais. Ela
tem 29 anos, é branca, heterossexual, está em um relacionamento estável e não tem
filhos. Elaine fez graduação em designe de moda numa instituição privada. Seu pai
era médico e sua mãe era psicóloga, microempreendedora e trabalhadora do lar. Suas
duas avós eram professoras, um de seus avôs era também professor, e o outro era
proprietário de uma loja e comerciante. (Entrevista realizada em 14 de março de
2023. 114 minutos de entrevista)

Flávio é arquiteto. Ele tem 29 anos, é branco, homossexual, solteiro e sem filhos.
Flávio fez graduação em arquitetura e urbanismo numa instituição privada. Sua mãe
era dentista e seu pai era médico e proprietário de um hospital. Um de seus avôs era
proprietário de uma fábrica de tecidos e o outro era trabalhador da indústria têxtil.
Uma de suas avós era também trabalhadora de indústria têxtil, e a outra trabalhou
como officer. (Entrevista realizada em 01 de fevereiro de 2023. 111 minutos de
entrevista)

Guilherme é jornalista. Ele tem 41 anos, é branco, heterossexual, está em um


relacionamento estável e tem uma filha de 4 anos. Guilherme fez graduação em
comunicação social e mestrado em jornalismo, ambos em instituições privadas. Tanto
seu pai quanto sua mãe não tinham emprego fixo, e trabalhavam fazendo bicos (dela,
ele mencionou a atuação como manicure, merendeira e corretora). Um de seus avôs
era metalúrgico e o outro era proprietário de um pequeno comércio e matador de
aluguel. Uma das avós era funcionária pública (não mencionou de qual área) e a outra
era proprietária de pequeno comércio e trabalhadora do lar. (Entrevista realizada em
09 e em 10 de maio de 2023. Mais de 84 minutos de entrevista116)

Isabel é professora de educação básica e superior. Ela tem 35 anos, é branca,


heterossexual, casada e sem filhos. Isabel fez graduação em jornalismo numa
instituição privada e fez outra graduação, mestrado, e agora está fazendo doutorado
em outro curso da área de ciências humanas, estes três em instituições públicas. Seu
pai e sua mãe eram oficiais de justiça. Um de seus avôs era advogado e o outro era

116
A entrevista foi realizada em duas partes, em dois dias diferentes, e eu me esqueci de gravar a segunda
parte da entrevista, por isso não sei qual seu tempo completo. Assim, para a análise dos dados da segunda
parte da entrevista de Guilherme, me baseei apenas nas anotações que fiz durante a entrevista.
239

dentista e proprietário de um comércio. Uma de suas avós era advogada e a outra era
pedagoga, professora e proprietária de um comércio. (Entrevista realizada em 30 de
janeiro de 2023. 117 minutos de entrevista)

Jorge* é professor e contador. Ele tem 39 anos, é branco, heterossexual, divorciado e


sem filhos.

Leandro é jornalista. Ele tem 40 anos, é branco, heterossexual, casado e tem dois
filhos, um de 1 ano e um de 11 anos. Leandro fez graduação em jornalismo numa
instituição privada. Durante um período de sua infância ele foi criado por sua mãe, e
posteriormente por uma madrinha e por um tio. Sua mãe era empregada doméstica,
sua madrinha era cobradora de ônibus e seu tio era padre. Ele não mencionou as
profissões dos avôs e avós. (Entrevista realizada em 04 e em 11 de maio de 2023. 89
minutos de entrevista)

Lucia* é professora. Ela tem 34 anos, é branca, heterossexual, casada e sem filhos.

Luciano é músico. Ele tem 38 anos, é branco, heterossexual, divorciado e tem uma
filha de 5 anos. Luciano fez graduação, mestrado, e agora está fazendo doutorado,
todos em musica e em instituições públicas. Seu pai era médico psiquiatra e sua mãe
era professora de educação básica. Um de seus avôs era vendedor de produtos
diversos e o outro era arquiteto. Uma de suas avós era funcionária dos correios e a
outra não trabalhava. (Entrevista realizada em 25 de abril de 2023. 119 minutos de
entrevista)

Manuel é jornalista. Ele tem 60 anos, é branco, heterossexual, divorciado e tem um


filho de 20 anos. Ele fez graduação em comunicação social numa instituição privada.
Seu pai era pedreiro e sua mãe era trabalhadora do lar. Suas duas avós eram
trabalhadoras do lar, um de seus avôs era dono de uma padaria e depois de um
restaurante (que faliu), o outro era mestre de obras. (Entrevista realizada em 28 de
janeiro de 2023. 130 minutos de entrevista)

Marcio* é músico. Ele tem 32 anos, é amarelo, heterossexual, casado e sem filhos.

Mário é médico. Ele tem 38 anos, é branco, heterossexual, casado e tem uma filha de
9 anos. Mário fez graduação em medicina (não mencionou o tipo de instituição), e
tem especialização em geriatria. Sua mãe e seu pai eram engenheiros. Suas duas avós
eram trabalhadoras do lar, um de seus avôs era comerciante e o outro era funileiro.
(Entrevista realizada em 01 e em 07 de fevereiro de 2023. 89 minutos de entrevista)

Marlene é assistente social. Ela tem 34 anos, é parda, heterossexual, solteira e sem
filhos. Marlene fez graduação em serviço social e agora está fazendo uma pós-
graduação em trabalho social com família, ambas em instituições privadas. Sua mãe
era operária fabril e seu pai era segurança. Um de seus avôs era bombeiro e uma de
suas avós era auxiliar de limpeza. (Entrevista realizada em 25 de abril de 2023. 119
minutos de entrevista)
240

Rafaela é música e professora de música. Ela tem 43 anos, é heterossexual, solteira e


sem filhos117. Rafaela fez graduação em música numa instituição privada,
especialização em música (não citou a instituição), e mestrado em música numa
instituição pública. Sua mãe e seu pai eram jornalistas. Um de seu avôs era mecânico
e o outro era jornalista e corretor de imóveis. Suas duas avós eram trabalhadoras do
lar. (Entrevista realizada em 03 de abril de 2023. 104 minutos de entrevista)

Regina é professora de educação básica. Ela tem 36 anos, é branca, heterossexual,


casada e tem um filho de 2 anos. Regina fez graduação num curso da área de ciências
humanas numa instituição pública. Sua mãe era professora de educação infantil e
trabalhadora do lar, e seu pai era funcionário de uma empresa, depois gerente e agora
proprietário da própria empresa. Um de seus avôs era funcionário de uma empresa e
o outro era funcionário de manutenção. Uma de suas avós era empregada doméstica
e lavadeira, a outra era trabalhadora do lar. (Entrevista realizada em 09 de fevereiro
de 2023. 111 minutos de entrevista)

Rita é gerente de assistência social num serviço de cuidados com idosos. Ela tem 45
anos, é parda, heterossexual, casada e tem três filhos, um de 12, um de 14 e um de 26
anos. Rita fez graduação em serviço social (não informou o tipo de instituição). Seu
pai era comerciante (não informou sobre a mãe). Seus avôs eram trabalhadores
rurais. (Entrevista realizada em 04 de maio de 2023. 79 minutos de entrevista)

Roberto é músico e terapeuta holístico. Ele tem 40 anos, é branco, heterossexual,


casado e sem filhos. Roberto fez graduação em música (não informou o tipo de
instituição). Seus pais eram proprietários de uma empresa de grande porte, mas ela
faliu recentemente. Todos os seus avôs e avós eram farmacêuticos, sendo um de seus
avôs dono de uma farmácia. (Entrevista realizada em 09 de maio de 2023. 112
minutos de entrevista)

Ronaldo é jornalista. Ele tem 58 anos, é branco, heterossexual, casado e tem um


filho de 16 anos. Ronaldo fez graduação em jornalismo (não informou o tipo de
instituição). Sua mãe era professora de corte e costura e seu pai era técnico de
telecomunicações. Seus avôs eram ferroviários e suas avós eram trabalhadoras do lar.
(Entrevista realizada em 07 de fevereiro de 2023. 121 minutos de entrevista)

Rosângela é assessora de comunicação e jornalista. Ela tem 52 anos, é parda,


heterossexual, casada e tem duas filhas, uma de 28 e uma de 31 anos. Rosângela fez
graduação em jornalismo numa instituição privada e fez outra graduação num curso
da área de ciências humanas numa instituição pública, e fez MBA e mestrado também
numa instituição pública. Sua mãe era engenheira civil e seu pai era jornalista. Um de
seus avôs era trabalhador rural e o outro era engenheiro. Uma de suas avós era
costureira. (Entrevista realizada em 24 de abril de 2023. 116 minutos de entrevista)

Samuel é músico e professor de música. Ele tem 31 anos, é branco, heterossexual,


solteiro e sem filhos. Samuel fez graduação, mestrado, e está cursando doutorado em
música, todos em instituições públicas. Seu pai era advogado e sua mãe era psicóloga
e professora de ensino superior. Um de seus avôs era mecânico e o outro era

117
Para a cor/raça, no Questionário, ela marcou a opção “outra”, e escreveu: “Me classificam como branca,
mas sou uma mistura. Nunca gosto de responder isso em formulário".
241

contador. Suas duas avós eram trabalhadoras do lar. (Entrevista realizada em 24 de


fevereiro de 2023. 128 minutos de entrevista)

Sueli* é bióloga. Ela tem 32 anos, é branca, heterossexual, está em um


relacionamento estável e não tem filhos.

Vanessa é assistente social e pedagoga, mas está desempregada. Ela tem 35 anos, é
preta, heterossexual, casada e tem duas filhas, uma de 4 e uma de 16 anos. Vanessa
fez graduação em serviço social e em pedagogia, ambas em instituições privadas. Sua
mãe era faxineira e seu pai era vendedor ambulante. Todos os seus avôs e avós eram
trabalhadores rurais. (Entrevista realizada em 03 de maio de 2023. 83 minutos de
entrevista)

Vinicius é professor de educação básica. Ele tem 38 anos, é pardo, homossexual,


solteiro e sem filhos. Ele fez graduação em gastronomia numa instituição privada e
fez outra graduação num curso da área de humanas numa instituição pública, depois
fez mestrado e agora está fazendo doutorado também em cursos da área de humanas
e também em instituições públicas. Seu pai era caminhoneiro e sua mãe era faxineira,
diarista e cuidadora. Todos os seus avôs e avós eram trabalhadores rurais. (Entrevista
realizada em 07 de fevereiro de 2023. 107 minutos de entrevista)

Quadro 3. Capital econômico dos entrevistados (em ordem crescente de renda familiar per
capita)
Possui Possui
Faixa de renda Renda per
Pseudônimo Profissão Residência outra veículo
familiar capita (R$)
residência próprio
Assistente social e
Entre R$1.213,00 e Casa própria
Vanessa pedagoga 303,08 x Sim
R$2.424,00 não quitada
desempregada
Gerente de Entre R$6.061,00 Casa própria
Rita 1136,31 Sim Sim
assistência social e R$12.120,00 quitada
Entre R$2.425,00 Apartamento
Sueli* Bióloga 1515,25 x x
e R$3.636,00 alugado
Apartamento
Professora de Entre R$3.637,00
Alessandra 1616,17 próprio não x x
educação básica e R$6.060,00
quitado
Entre R$3.637,00 Casa própria
Marlene Assistente social 1616,17 x x
e R$6.060,00 quitada
Professora de Entre R$6.061,00 Apartamento
Regina 3030,17 x x
educação básica e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Entre R$6.061,00
Ronaldo Jornalista 3030,17 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Apartamento
Entre R$2.425,00
Samuel Músico e professor 3030,50 próprio x x
e R$3.636,00
quitado
Entre R$18.181,00 Apartamento
Rafaela Música e professora 3535,08 x x
e R$24.240,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Leandro Jornalista 3787,63 x x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$6.061,00 Casa própria
Adriano Músico 4545,25 Sim Sim
e R$12.120,00 quitada
242

Assistente
Entre R$6.061,00
Daiane acadêmica e 4545,25 Casa alugada x Sim
e R$12.120,00
advogada
Entre R$6.061,00 Apartamento
Manuel Jornalista 4545,25 x Sim
e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Músico e terapeuta Entre R$6.061,00
Roberto 4545,25 próprio x Sim
holístico e R$12.120,00
quitado
Entre R$3.637,00
Jorge* Professor e contador 4848,50 Casa alugada x Sim
e R$6.060,00
Professor de Entre R$3.637,00
Vinicius 4848,50 Casa alugada x x
educação básica e R$6.060,00
Apartamento
Entre R$18.181,00
Guilherme Jornalista 7070,17 próprio não x x
e R$24.240,00
quitado
Apartamento
Entre R$18.181,00
Mário Médico 7070,17 próprio Sim Sim
e R$24.240,00
quitado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Alex Antropólogo 7575,25 x Sim
e R$18.180,00 alugado
Produtora de
Entre R$12.121,00 Apartamento
Elaine conteúdo para 7575,25 x x
e R$18.180,00 alugado
mídias sociais
Entre R$12.121,00 Apartamento
Luciano Músico 7575,25 Sim x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Marcio* Músico 7575,25 x x
e R$18.180,00 cedido
Apartamento
Entre R$6.061,00
Flávio Arquiteto 9090,50 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Professora de Apartamento
Entre R$18.181,00
Isabel educação básica e 10605,25 próprio não x Sim
e R$24.240,00
superior quitado
Assessora de Apartamento
Mais de
Rosângela comunicação e 12120,00 próprio x Sim
R$36.360,00
jornalista quitado
Apartamento
Entre R$24.241,00
Lucia* Professora 15150,25 próprio não x Sim
e R$36.360,00
quitado
Apartamento
Mais de
Débora Jornalista 18180,00 próprio x Sim
R$36.360,00
quitado

Quadro 5. Companheiros dos entrevistados

Maior diploma
Pseudônimo Estado civil Ocupação
(área)
Adriano (músico) Solteiro - -
Alessandra (professora de Relacionamento Superior [não Professor de
educação básica) estável perguntei a área] educação básica
Diretora
Alex (antropólogo) Casado Superior (psicologia)
pedagógica
Daiane (assistente Músico e
Casada Superior (direito)
acadêmica e advogada) produtor musical
Superior
Débora (jornalista) Casada (administração de Gerente
empresas)
243

Elaine (produtora de
Relacionamento Superior
conteúdo para mídias Designer
estável (arquitetura)
sociais)
Flávio (arquiteto) Solteiro - -
Relacionamento
Guilherme (jornalista) Superior (jornalismo) Jornalista
estável
Analista no
Isabel (professora de Pós-graduação
Casada Ministério
educação básica e superior) (direito)
Público
Jorge* (professor e
Divorciado - -
contador)
Empresária do
Leandro (jornalista) Casado [não perguntei]
ramo imobiliário
Lucia* (professora) Casada - -
Luciano (músico) Divorciado - -
Manuel (jornalista) Divorciado - -
Marcio* (músico) Casado - -
Mário (médico) Casado Superior (biologia) Bióloga
Marlene (assistente social) Solteira - -
Rafaela (música e
Solteira - -
professora)
Professor e
microempresário
Regina (professora de
Casada Ensino médio no ramo de
educação básica)
suplementos
alimentares
Proprietário de
Rita (gerente de assistência uma oficina de
Casada [não perguntei]
social) funilaria e
pintura
Arquiteta e
Roberto (músico e terapeuta Superior
Casado terapeuta
holístico) (arquitetura)
holística
Ronaldo (jornalista) Casado Superior (jornalismo) Jornalista
Rosângela (assessora de
Casada Superior (jornalismo) Jornalista
comunicação e jornalista)
Samuel (músico e professor) Solteiro - -
Relacionamento
Sueli* (bióloga) - -
estável
Vanessa (assistente social e
Casada Ensino médio Policial penal
pedagoga desempregada)
Vinicius (professor de
Solteiro - -
educação básica)

Quadro 7. Trajetória de escolaridade entre os familiares e os entrevistados

Maior nível
de
Pseudônimo (profissão) escolaridade Escolaridade Trajetória
entre os
responsáveis
Nenhum
Manuel (jornalista) Graduação Subiu 3 posições
diploma
Vinicius (professor de Nenhum
Doutorado Subiu 5 posições
educação básica) diploma
244

Vanessa (assistente social e


Fundamental Graduação Subiu 2 posições
pedagoga desempregada)
Guilherme (jornalista) Fundamental Mestrado Subiu 3 posições
Regina (professora de
Médio Graduação Subiu 1 posições
educação básica)
Marlene (assistente social) Médio Pós-graduação Subiu 2 posições
Adriano (músico)
Ronaldo (jornalista) Técnico Graduação Subiram 1 posição
Rita (gerente de assistência
social)

Débora (jornalista)
Leandro (jornalista)
Elaine (produtora de conteúdo
para mídias sociais) Mantiveram a
Graduação Graduação
Flávio (arquiteto) posição
Roberto (músico e terapeuta
holístico)
Mário (médico)

Daiane (assistente acadêmica


e advogada)
Rafaela (música) Graduação Mestrado Subiram 1 posição
Rosângela (assessora de
comunicação e jornalista)
Luciano (músico)
Isabel (professora de educação Graduação Doutorado Subiram 2 posições
básica e superior)
Alex (antropólogo) Graduação Pós-doutorado Subiu 3 posições

Alessandra (professora de
Doutorado Mestrado Caiu 1 posição
educação básica)
Samuel (músico e professor) Doutorado Doutorado Manteve a posição
245

APÊNDICE B. QUESTIONÁRIO

Questionário: Estilos de vida e posições políticas em São Paulo

TEMPO LIVRE

1. O que você faz com mais e menos frequência no seu tempo livre? Marque para cada atividade
abaixo.

2 (faço 3 (faço às 4 (faço com


1 (não faço)
pouco) vezes) frequência)
Praticar esportes
ou exercícios
físicos
Ficar com
cônjuge ou
namorado(a)
Ficar com a
família
Navegar na
internet
Atividades
religiosas
Cuidar de
animais
domésticos e
plantas
Encontrar
amigos
Produzir arte ou
cultura
Jogar
videogame/jogos
eletrônicos
Estudar (sem ser
por obrigação)

2. Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de fazer ou
não as atividades.

1 (nenhum 2 (pouco 3 (algum 4 (muito


interesse) interesse) interesse) interesse)
Praticar esportes
ou exercícios
físicos
246

Ficar com
cônjuge ou
namorado(a)
Ficar com a
família
Navegar na
internet
Atividades
religiosas
Cuidar de
animais
domésticos e
plantas
Encontrar
amigos
Produzir arte ou
cultura
Jogar
videogame/jogos
eletrônicos
Estudar (sem ser
por obrigação)

LAZERES EXTERNOS

3. Marque com qual frequência você vai a cada atividade listada abaixo.

Uma vez
Uma vez Uma vez por Uma vez Não
por
por semana mês por ano frequento
semestre

Teatro

Festas, baladas
e/ou casas
noturnas

Bares

Óperas,
orquestras e/ou
concertos de
música clássica

Restaurantes

Saraus e/ou
eventos de
247

cultura popular

Passeios
ecológicos,
trilhas e
cachoeiras
Shoppings a
passeio

Pancadões

4. Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de
frequentar ou não.

1 (nenhum 2 (pouco 3 (algum 4 (muito


interesse) interesse) interesse) interesse)

Teatro

Festas, baladas
e/ou casas
noturnas

Bares

Óperas,
orquestras e/ou
concertos de
música clássica

Restaurantes

Saraus e/ou
eventos de
cultura popular
Passeios
ecológicos,
trilhas e
cachoeiras
Shoppings a
passeio

Pancadões

5. Marque com qual frequência você vai a cada atividade listada abaixo.

Uma vez Não


Uma vez Uma vez por Uma vez
por frequento
por semana mês por ano
semestre
248

Igrejas e/ou
espaços de culto
religioso
Espetáculos de
dança
Museus e/ou
exposições de
artes plásticas

Shows ao vivo

Eventos
esportivos
Sair para cantar
e/ou dançar
Parques, praças
e/ou clubes

Cinema

Academias de
ginástica

6. Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de
frequentar ou não.

1 (nenhum 2 (pouco 3 (algum 4 (muito


interesse) interesse) interesse) interesse)
Igrejas e/ou
espaços de culto
religioso
Espetáculos de
dança
Museus e/ou
exposições de
artes plásticas

Shows ao vivo

Eventos
esportivos
Sair para cantar
e/ou dançar
Parques, praças
e/ou clubes

Cinema
249

Academias de
ginástica

MÚSICA

7. Você ouve música regularmente em seu dia a dia?


Sim (continue respondendo)
Não (salte para a questão 10)

8. Quais seus estilos musicais favoritos? Marque até 3 opções.


Sertaneja
MPB
Forró
Gospel/Religiosa
Pagode
Samba
Funk
Rock
Clássica
Eletrônica
Rap
Romântica
Jazz/Blues
Pop
Axé
Trap

9. E quais os estilos musicais que você menos gosta ou não gosta? Marque no máximo 3 opções.
Sertaneja
MPB
Forró
Gospel/Religiosa
Pagode
Samba
Funk
Rock
Clássica
Eletrônica
Rap
Romântica
Jazz/Blues
Pop
Axé
Trap

LITERATURA

10. Você lê livros regularmente em seu dia a dia? Não leve em conta se lê por motivos de trabalho,
escola ou faculdade; apenas o que lê por lazer.
Sim (continue respondendo)
250

Não (salte para a questão 13)

11. Quais seus estilos de livros favoritos? Marque até 3 opções.


Temas religiosos ou de espiritualidade
Suspense ou mistério
Biografias
Autoajuda
Best Sellers
Poesia ou poemas
Empreendedorismo, liderança e investimentos
Ficção científica
Clássicos da literatura
História em quadrinhos
Fantasia

12. E quais os estilos de livros que você menos gosta ou não gosta? Marque no máximo 3 opções.
Temas religiosos ou de espiritualidade
Suspense ou mistério
Biografias
Autoajuda
Best Sellers
Poesia ou poemas
Empreendedorismo, liderança e investimentos
Ficção científica
Clássicos da literatura
História em quadrinhos
Fantasia

FILMES E SÉRIES

13. Você assiste a filmes regularmente em seu dia a dia?


Sim (continue respondendo)
Não (salte para a questão 16)

14. Quais seus estilos de filmes e séries favoritos? Marque até 3 opções.
Adolescente
Ação ou aventura
Animação ou desenho
Comédia
Comédia romântica
Cult/de Arte
Documental
Drama
Familiar
Fantasia
Ficção científica
Guerra
Religiosos
Romance
Suspense
Temática social
Terror
251

15. E quais os estilos de filmes e séries que você menos gosta ou não gosta? Marque no máximo 3
opções.
Adolescente
Ação ou aventura
Animação ou desenho
Comédia
Comédia romântica
Cult/de Arte
Documental
Drama
Familiar
Fantasia
Ficção científica
Guerra
Religiosos
Romance
Suspense
Temática social
Terror

PERCEPÇÕES SOBRE O BRASIL

16. Em sua opinião, quais são os maiores problemas do Brasil hoje? Escolha no máximo três opções.
Ameaça ao meio ambiente
Corrupção
Desemprego
Desigualdade de renda
Consumo de drogas ilícitas
Educação
Favelas
Fome
Inflação / Subida de preços
Machismo e desigualdade de gênero
Perda de valores tradicionais
Racismo e desigualdade racial
Pobreza
Saneamento básico
Saúde
Trânsito
Transporte público
Violência
Não sei

17. Você acha que as pessoas deveriam ter o direito emitir publicamente qualquer tipo de opinião?
Sim, as pessoas devem ter o direito de dar qualquer tipo de opinião
Não, opiniões que firam direitos de minorias devem ser proibidas
Não, opiniões que ofendam a fé cristã devem ser proibidas
Não sei

18. O que você acha sobre a questão dos direitos humanos no Brasil?
Precisamos de ainda mais proteção de direitos humanos
252

A proteção de direitos humanos está adequada


A proteção de direitos humanos deve ser apenas para as pessoas que agem corretamente
Não sei

DEMOCRACIA

19. O quão satisfeita(o) você está com o funcionamento da democracia no Brasil?


Muito satisfeito(a)
Satisfeito(a)
Nem satisfeito nem insatisfeito
Pouco satisfeito(a)
Nada satisfeito(a)
Não sei

20. Algumas pessoas dizem que o nosso voto influencia muito no que acontece no Brasil, outras
dizem que o nosso voto não influencia nada no que acontece no Brasil. Com qual das opiniões você
está mais de acordo?
Nosso voto influencia muito no que acontece no Brasil
Nosso voto influencia um pouco no que acontece no Brasil
Nosso voto não influencia nada no que acontece no Brasil
Não sei

21. Quando o Brasil está passando por um momento de sérias dificuldades, você concorda ou não
que o presidente deveria:

Concordo Discordo Não sei

Desrespeitar a atual Constituição

Manter a ordem com o uso da força, desde


que exista autorização constitucional

Controlar a mídia

Fechar o Congresso e acabar com os


partidos políticos

Fechar o Supremo Tribunal Federal

22. Você acha que existem situações nas quais deveria ocorrer uma intervenção militar no Brasil?
Caso acredite, marque abaixo em quais situações. Caso não acredite, deixe em branco.
Quando o Brasil está passando por uma crise econômica
Quando a criminalidade está muito alta
Quando o desemprego está muito alto
Quando o Brasil está perdendo os valores tradicionais
Quando há muitos protestos sociais
Quando há muita corrupção

INTERESSE POR POLÍTICA


253

23. Quanto interesse você tem por assuntos políticos?


Muito interesse
Interesse mediano
Pouco interesse
Nenhum interesse

24. Você votaria caso o voto não fosse obrigatório?


Sim
Não
Não sei

25. Como você se informa sobre política? Selecione no máximo 3 opções.


Televisão
Jornais
Rádio
Igreja
Centro comunitário
Escola / Universidade
Familiares
Colegas de trabalho
Amigos
Vizinhos
Portais de internet (excluindo jornais)
Redes sociais (Whatsapp, Instagram, Facebook, TikTok etc.)
Podcasts

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

26. Abaixo há uma lista de organizações/associações voluntárias. Marque se você participa de


alguma(s) delas.
Organização/associação esportiva ou recreativa
Organização/associação artística, cultural ou educacional
Sindicato
Partido político
Coletivo político
Associação profissional
Organização/associação humanitária ou instituição de caridade
Organização/associação de consumidores
Grupo de autoajuda, grupo de ajuda mútua
Outra (escreva)

27. Abaixo há uma lista de atividades políticas. Marque qual(ais) delas você já fez em algum
momento da sua vida.
Assinar um abaixo-assinado (inclusive na internet)
Participar de manifestações ou protestos de rua
Participar de greve
Participar de bloqueio de estradas
Participar de ocupação de prédios públicos
Participar de ocupação de terras
Utilizar a internet ou redes sociais para manifestação política
Outra (escreva)
254

ESQUERDA E DIREITA

28. Na política as pessoas falam muito de esquerda e de direita. Gostaria que você usasse um
número de zero (0) a dez (10) para dizer se você se considera de esquerda ou de direita. Zero
significa que é de esquerda e dez que é de direita, sendo que o cinco (5) significa que é de centro.
0 (esquerda)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10 (direita)

29. E você acha que a maior parte da população brasileira é de esquerda ou de direita?
A maioria é de esquerda
A maioria é de direita
A maioria é de centro
Existe equilíbrio entre esquerda e direita
Não sei

DIVERSIDADE SEXUAL

30. Você aprova ou desaprova que LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e outras) tenham
direito a:

Aprovo Desaprovo Não sei

Se candidatar para cargos públicos

Se casar

Ter filhos adotivos

Ter filhos biológicos

31. O que você acha sobre demonstrações públicas de carinho entre pessoas LGBT+?
Eu defendo que possam fazer isso
Não defendo, mas não me incomodo
Deveriam manter sua vida íntima em ambientes particulares
Não deveria ser permitida a demonstração pública de carinho entre pessoas LGBT+
Não sei

32. Você concorda ou discorda que as escolas públicas devem ensinar as crianças sobre respeito à
diversidade de orientações sexuais?
255

Concordo
Discordo
Não sei

33. Uma vez casadas, as pessoas devem ter o direito de se separarem?


Sim, todos devem ter o direito de escolher continuar ou não casadas
Não, o casamento é um compromisso que deve ser respeitado
Eu não faria, mas as pessoas devem ter o direito
Não sei

RELIGIÃO

34. Marque se concorda ou discorda das afirmações a seguir.

Concordo Discordo Não sei


Políticos que não creem em Deus não
servem para trabalhar no serviço público
Líderes religiosos não deveriam influenciar
o voto das pessoas nas eleições
Seria melhor pra o Brasil se mais pessoas
muito religiosas estivessem no serviço
público

35. Novamente, para as frases abaixo, marque se concorda ou discorda.

Concordo Discordo Não sei


Toda vez que existe conflito entre religião e
ciência, a religião sempre está certa
O respeito a todas as religiões deve ser
ensinado nas escolas públicas
Há maior chance de pessoas serem
honestas se elas forem religiosas

OUTRAS PESSOAS

36. Na lista abaixo há vários tipos de pessoas. Marque quais delas você NÃO gostaria de ter como
vizinhos. Se for o caso, não precisa marcar nenhum.
Alcoólatras ou pessoas que bebem muito
Casais que não são casados, mas moram juntos
Imigrantes ou trabalhadores estrangeiros
Idosos
Indígenas
Pessoas LGBT+
Pessoas com antecedentes criminais ou com passagem pela polícia
Pessoas com deficiência
Pessoas de direita
Pessoas de direita
256

Pessoas de religiões, seitas ou cultos diferentes


Pessoas negras
Pessoas que vieram de favelas
Pobres
Prostitutas
Viciados em drogas

RELAÇÕES SOCIAIS

37. Uma filha ou filho de 18 anos quer viajar com as amigas ou amigos com tudo pago, o que os pais
deveriam fazer?
Os pais deveriam decidir e dizer se a filha/filho pode ou não viajar
Os pais deveriam deixar a filha/filho decidir por si
Não sei

38. Você acha que um funcionário deve poder chamar seu patrão de “você” ou acha que deveria
chama-lo sempre de “senhor”?
O funcionário deveria poder chamar o patrão de “você”
O funcionário deveria chamar o patrão apenas de “senhor”
Não sei

39. Você acha que os funcionários de um prédio ou edifício deveriam ter o direito de utilizar o
elevador social?
Sim, eles deveriam ter o direito de usar o elevador social
Não, eles devem poder utilizar apenas o elevador de serviços
Não sei

FAMÍLIA

40. Com qual destas duas frases a seguir você concorda mais?
Sempre se deve amar e respeitar os pais sem se importar com suas qualidades e defeitos
Não se deve ter obrigação de respeitar e amar os pais quando eles por seus hábitos ou
atitudes não tenham merecido
Não sei

41. Aqui está uma lista de qualidades que se pode estimular e ensinar aos filhos em casa. Quais delas
você considera especialmente importantes? Escolha no máximo três.
Boas maneiras
Determinação e perseverança
Fé religiosa
Imaginação
Independência
Não ser egoísta
Obediência
Pensar por si mesmo
Responsabilidade
Saber economizar (dinheiro e outros bens)
Ser trabalhador
Tolerância e respeito pelas outras pessoas
Nenhuma destas
Não sei
257

HOMENS E MULHERES

42. Marque se você concorda ou discorda das seguintes afirmações.

Concordo Discordo Não sei


Uma mulher precisa ter filhos para se sentir
realizada na vida
Um homem precisa ter filhos para se sentir
realizado na vida
Tanto o marido quanto a esposa devem
contribuir para o orçamento da casa
A licença paternidade deve ter a mesma
duração da licença maternidade
A discriminação contra as mulheres não é
mais um problema no Brasil

43. Novamente, para as frases abaixo, marque se concorda ou discorda.

Concordo Discordo Não sei


Em geral, as mulheres têm mais
sensibilidade e compaixão que os homens
Em geral, os homens são mais racionais
que as mulheres
É justo que um homem possa ganhar mais
que uma mulher, mesmo desempenhando
as mesmas funções
É justo que o Estado exija que os partidos
políticos reservem ao menos 30% das
candidaturas para as mulheres

44. Em um casal de um homem e uma mulher com filhos, quem você acha que deve ter mais
responsabilidade em cada uma das seguintes atividades?

O A Dividido
homem mulher igualmente
Dar banho/trocar fraldas do filho recém-
nascido

Marcar consultas médias e cuidar da saúde

Cuidar da alimentação e dar comida

Escolher a escola

Ajudar a fazer lição de casa


258

45. Com qual das frases a seguir sobre o aborto você concorda mais?
O aborto deve ser proibido em qualquer situação
O aborto deve ser permitido se a mulher ficar grávida por causa de estupro
O aborto deve ser permitido em qualquer situação, desde que seja até o terceiro mês de
gestação
O aborto deve ser permitido em qualquer situação e em qualquer mês de gestação
Não sei

46. O que você acha da atuação dos movimentos sociais feministas?


Os movimentos feministas são bons apenas para as mulheres
Os movimentos feministas são bons para homens e mulheres
Os movimentos feministas só são bons para as próprias feministas
Não sei

RAÇA

47. Marque se você concorda ou discorda das seguintes afirmações.

Concordo Discordo Não sei


As coisas que as pessoas negras sabem
fazer melhor são a música e os esportes
Se tivessem as mesmas oportunidades, as
pessoas negras teriam sucesso em
qualquer profissão
De maneira geral, as pessoas negras são
tratadas muito pior do que as pessoas
brancas no Brasil

48. Você acha que o governo tem a obrigação de criar políticas públicas direcionadas à melhoria das
condições de vida da população negra?
Sim
Não
Não sei

49. Você concorda ou discorda que as universidades públicas tenham cotas raciais, ou seja, que elas
reservem vagas para pessoas negras?
Concordo
Discordo
Não sei

50. O que você acha da atuação do movimento social das pessoas negras?
Os movimentos sociais de pessoas negras são bons apenas para as pessoas negras
Os movimentos sociais de pessoas negras são bons para pessoas negras e não negras
Os movimentos sociais de pessoas negras são bons apenas seus próprios membros
Não sei

ECONOMIA

51. Como você avalia a situação econômica do Brasil atualmente?


259

Ótima
Boa
Regular
Ruim
Péssima
Não sei

52. Como você acha que é a distribuição de renda no Brasil?


Muito justa
Justa
Nem justa nem injusta
Injusta
Muito injusta
Não sei

53. Pensando na questão da pobreza, algumas pessoas acreditam que o indivíduo é totalmente
responsável pela sua própria condição financeira, outras acreditam que se trata de uma questão
totalmente social. Marque na escala, de zero (0) a dez (10), sua opinião sobre o assunto, sendo que o
0 significa a primeira opinião e o 10 significa a segunda opinião:
0 (As pessoas são totalmente responsáveis por sua própria pobreza
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10 (A pobreza é totalmente um problema social)

54. Marque se você concorda ou discorda das seguintes afirmações.

Concordo Discordo Não sei


As leis e impostos do governo impedem as
empresas de terem lucros
É preciso limitar a diferença salarial de
pessoas que trabalham em uma mesma
empresa
Em um país como o Brasil, é obrigação do
governo diminuir as diferenças entre os
muito ricos e os muito pobres
É justificável que o governo ofereça menos
serviços públicos, como saúde e educação,
para reduzir os impostos

55. Novamente, para as frases abaixo, marque se você concorda ou discorda.

Concordo Discordo Não sei


260

Se o país for rico, não importa que haja


muitas desigualdades econômicas e sociais
Quanto menos o governo interferir na
economia, melhor para o país
A renda deve ser distribuída de forma mais
igualitária entre as pessoas
No longo prazo, quem trabalha muito
sempre vai ter uma vida melhor
Só se pode ficar rico à custa do
empobrecimento dos outros

É preciso taxar grandes fortunas no Brasil

56. Da seguinte lista de atividades, quais você acha que deveriam ser responsabilidade do governo e
quais deveriam ser responsabilidade das empresas privadas?

Responsabilidade Responsabilidade das


Não sei
do governo empresas privadas

Saúde

Combustível

Educação básica

Educação superior

Eletricidade

Segurança

Financiamento dos
partidos políticos

Água potável

Saneamento básico

POSIÇÕES POLÍTICAS

57. Marque se concorda ou discorda das seguintes práticas:


261

Concordo Discordo Não sei


Da ocupação de terras para pressionar o
governo para fazer reforma agrária

Da prisão perpétua

Da pena de morte

De o exército interferir no combate à


violência das ruas das grandes cidades
Da venda da de armas de fogo para
qualquer pessoa
Da prisão para menores de 18 anos de
idade

64. O quão orgulhoso(a) de ser brasileiro(a) você se sente quando escuta o hino nacional?
Muito orgulhoso(a)
Orgulhoso(a)
Pouco orgulhoso(a)
Nada orgulhoso(a)
Não se importa
Não sei

IDENTIFICAÇÃO

65. Idade
Escreva

66. Gênero
Mulher
Homem
Prefiro não declaras
Outro (escreva)

67. Orientação sexual


Heterossexual
Homossexual
Bissexual
Prefiro não declaras
Outra (escreva)

68. Cor/raça
Amarela
Branca
Indígena
Pardo
Preto
Outro (escreva)
262

69. Estado civil atual


Casada(o) formal ou informalmente
Em relacionamento estável (namorando)
Solteira(o)
Viúva(o)
Separada(o), divorciada(o), desquitada(o)

70. Quantos filhos você tem?


0
1
2
3
4
5
Mais de 5

MORADIA

71. Em qual tipo de moradia você reside?


Casa
Casa em condomínio fechado
Apartamento
Habitação em casa de cômodos ou cortiço

72. Seu domicílio é:


Próprio já quitado
Próprio ainda não quitado
Alugado
Cedido

73. Além do local onde reside atualmente, você possui outras residências?
Não
Sim, mais uma
Sim, mais de uma

74. Quantas pessoas residem em seu domicílio?


1
2
3
4
5
6
Outra (escreva)

OCUPAÇÃO

75. Você está empregado(a) atualmente?


Sim (continue respondendo)
Não (salte para a questão 79)

76. Qual sua profissão?


263

Escreva

77. Na sua ocupação principal você é:


Assalariado do governo
Assalariado do setor privado
Patrão ou sócio de empresa
Trabalha por conta própria/autônomo
Trabalhador não remunerado ou sem salário

78. Você supervisiona outras pessoas em seu trabalho?


Não
Sim, até 5 pessoas
Sim, de 6 a 10 pessoas
Sim, mais de 10 pessoas

79. (Apenas para quem respondeu “não” na questão 75) Qual das seguintes é sua situação
educacional?
Aposentado(a) ou pensionista
Dona(o) de casa não remunerada(o)
Estudante
Desempregada(o)

BENS E SERVIÇOS

80. Você possui veículo próprio? Considere apenas veículo motorizado.


Não
Sim, um veículo
Sim, mais de um veículo

81. Quais dos serviços abaixo são contratados na sua residência?

Sim Não

Internet banda larga

Televisão a cabo

Assinatura de jornal impresso

Assinatura de revista

Boletins informativos de orquestra,


bibliotecas, centros culturais e museus

82. Empregado(a) doméstico(a) ou diarista trabalha em sua residência atualmente? Se sim, com qual
frequência?
Não
Sim, menos de uma vez por semana
Sim, uma vez por semana
264

Sim, mais de uma vez por semana

CONDIÇÃO ECONÔMICA

83. Qual a renda mensal bruta total aproximada de sua família?


Até R$1.212,00
Entre R$1.213,00 e R$2.424,00
Entre R$2.425,00 e R$3.636,00
Entre R$3.637,00 e R$6.060,00
Entre R$6.061,00 e R$12.120,00
Entre R$12.121,00 e R$18.180,00
Entre R$18.181,00 e R$24.240,00
Entre R$24.241,00 e R$36.360,00
Mais de R$36.360,00

84. Quantas pessoas vivem dessa renda?


Escreva

RELIGIÃO

85. Você professa alguma religião? Se sim, qual?


Católica
Evangélica
Testemunha de Jeová
Espírita
Umbanda
Candomblé
Budista
Judia
Não professo nenhuma religião
Outra (escreva)

DÚVIDAS E COMENTÁRIOS

86. As questões terminaram. Se tiver alguma dúvida ou quiser fazer algum comentário sobre este
questionário, use o espaço a seguir, por favor. Caso não tenha nenhum comentário, pode deixar em
branco.
Escreva
265

APÊNDICE C. ROTEIRO DE ENTREVISTAS

Roteiro de entrevistas: estilos de vida, posições políticas e fronteiras simbólicas em São


Paulo

Nome:
Pseudônimo:
Data:
Profissão:

Apresentação:
 Eu sou Gustavo e estou no terceiro ano do mestrado em Sociologia no IFCH/Unicamp.
 Do que se trata a pesquisa? Entender a relação entre as posições políticas e os estilos de vida
da população de classe média residente na cidade de São Paulo. Eu recebo bolsa da Fapesp,
a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo, e minha pesquisa é vinculada a
um projeto de pesquisa maior que está estudando classes sociais e práticas culturais na
cidade.
 Sobre esta entrevista: eu estou coletando dados quantitativos por meio de questionários,
como o que você respondeu previamente, mas eu também preciso me aprofundar nas
respostas do questionário e explorar um pouco mais outras questões importantes para a
minha pesquisa. Nessa entrevista, (1) gostaria de te ouvir falar um pouco mais sobre suas
práticas e preferências culturais, repassando algumas das respostas que você deu no
questionário, (2) depois, da mesma forma, vou repassar e pedir para que se aprofunde nas
respostas que deu no questionário a respeito de suas posições políticas, (3) depois vou te
fazer algumas perguntas sobre seus valores e a suas opiniões sobre outras pessoas com as
quais lida em seu dia a dia, e por fim (4) vou fazer algumas perguntas sobre sua origem
social.
 É importante deixar claro:
(1) como eu já havia dito, sua identidade será mantida em completo sigilo. Caso eu
venha a utilizar algum trecho de sua fala na pesquisa eu atribuirei pra você um
pseudônimo baseado nos nomes mais comuns no Brasil (como Maria ou João) e
eliminarei das falas qualquer trecho que permita identifica-lo. O objetivo é que você
se sinta à vontade para falar da maneira mais livre possível;
(2) como algumas das perguntas são pessoais (sobre seus gostos, suas opiniões
políticas, seu cotidiano, suas amizades e sua família), é importante que você tenha a
tranquilidade para não responder o que você não quiser responder. Se achar que
alguma pergunta é muito pessoal, se não souber ou se não quiser responder por
qualquer motivo, não hesite em avisar, que eu então pularei para a pergunta
seguinte;
(3) no mesmo sentido, se precisar ou quiser interromper a entrevista a qualquer
momento, basta avisar. Não há problema algum nisso;
(4) além disso, cabe lembrar que você recebeu em seu e-mail uma cópia do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Se tiver qualquer reclamação, desconforto ou
incomodo com esta entrevista, bem como se tiver qualquer problema ético neste
momento ou no futuro com a pesquisa, você pode entrar em contato tanto com
meu orientador (Prof. Michel Nicolau Netto – Departamento de Sociologia do IFCH)
quanto com o Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas, que eles
orientarão sobre como proceder.
 Você me autoriza a gravar o áudio de nossa entrevista?
 Alguma dúvida antes de começarmos?
266

Questões de identificação

Eu vou começar repassando algumas informações sobre o seu perfil pessoal:

[Repassar respostas do questionário]

1. Quantos anos você tem?

2. Qual seu estado civil?


2.1. [Para pessoas casadas, em relacionamento fixo, separadas ou viúvas] Qual a profissão, nível
de escolaridade e formação do(a) companheiro(a)?

3. Você tem filhos?


3.1. [Em caso afirmativo] Quantos e quais as idades?

4. Qual sua formação e profissão?

5. Em que cidade você nasceu? Foi nesta cidade que morou durante a maior parte de sua vida?
5.1. [Caso negativo] Fale um pouco sobre suas mudanças de local de moradia?

6. Onde mora atualmente? E em qual o tipo de moradia?

7. Quais familiares seus foram diretamente responsáveis por sua criação? E você tem irmãos ou
irmãs?
7.1. [Em caso positivo] Quantos(as)?

Estilos de vida

Agora, vamos para as perguntas sobre suas práticas e preferências culturais. Vou começar
perguntando sobre seu tempo livre.

8. No questionário que respondeu você afirmou que faz frequentemente [inserir respostas do
questionário].

9. Dessas atividades que você faz com frequência, gostaria que me dissesse por que as faz. Tem a ver
com obrigação, prazer, rotina... ?

10. E quais dessas atividades você mais gosta de fazer e quais você mais detesta? Por quê? O que há
nelas que a(o) faz gostar e não gostar? Pode dar exemplos?

11. Gostaria de saber também sobre a origem: consegue se lembrar de quando em sua vida começou
a fazer essas atividades? Isso é, de onde vem essas práticas em sua vida?

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também faziam ou fazem essas atividades?
Exemplos disso?]

12. No questionário que respondeu você também afirmou que as atividades que mais te despertam
interesse, independente de você fazê-las ou não, são [inserir respostas do questionário], ao passo
que você tem pouco ou nenhum interesse em [inserir respostas do questionário].
267

13. Porque essas atividades te despertam interesse? O que há nelas que te atrai?

14. O que te impede de realizá-las (ou de realiza-las mais do que você já faz)? Pode dar exemplos
recentes disso?

15. Pode comentar também sobre as atividades que não tem interesse em realizar? Por que elas não
te interessam?

Agora, vou perguntar sobre as atividades externas ao ambiente doméstico.

16. No questionário que respondeu você afirmou que semanalmente você frequenta [inserir
respostas do questionário], que mensalmente você frequenta [inserir respostas do questionário],
que uma vez por semestre você vai a [inserir respostas do questionário], que vai uma vez por ano a
[inserir respostas do questionário] e que nunca frequenta [inserir respostas do questionário].

17. Quais dessas atividades são suas favoritas?

18. Porque você frequenta esses lugares? O que te atrai neles?

19. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a frequentar esses lugares?

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também frequentavam ou frequentam


esses lugares? Exemplos disso?]

20. Pode falar também sobre porque não frequenta os que não frequenta? Por que não faz essas
atividades?

Agora, vou perguntar sobre música.

[21. Caso não ouça música regularmente: você marcou no questionário que não costuma ouvir
música regularmente em seu dia a dia. Mesmo assim, eu gostaria de saber um pouco sobre qual é a
sua relação com música, hoje em dia e ao longo da sua vida. Você nunca foi de ouvir música? Por
quê? Isso é comum a outras pessoas ao seu redor?]

22. No questionário que respondeu você afirmou que seus estilos de música favoritos são [inserir
respostas do questionário], ao passo que você não gosta de [inserir respostas do questionário].

23. Fale um pouco sobre o que no [inserir respostas do questionário] te atrai para esses estilos. Isso
é, o que há nas músicas desses estilos que você mais gosta?

24. Pode citar alguns [cantores, compositores, bandas] que são seus favoritos pessoais?

25. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a ouvir e gostar desses estilos musicais?

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também gostavam ou gostam? Exemplos
disso?]

26. Por outro lado, o que há no [inserir respostas do questionário] que te desagrada?

27. Consegue se lembrar de quando em sua vida passou a não gostar ou que você percebeu que não
gostava, ou isso nunca te ocorreu?
268

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também não gostavam ou não gostam?
Exemplos disso?]

Agora, vou perguntar sobre literatura.

[28. Caso não leia literatura regularmente: você marcou no questionário que não costuma ler
literatura regularmente em seu dia a dia. Mesmo assim, eu gostaria de saber um pouco sobre qual é
a sua relação com a literatura, hoje em dia e ao longo da sua vida. Você nunca foi de ler literatura?
Por quê? Isso é comum em outras pessoas ao seu redor?]

29. No questionário que respondeu você afirmou que seus estilos de livros favoritos são [inserir
respostas do questionário], ao passo que você não gosta de [inserir respostas do questionário].

30. Fale um pouco sobre o que no [inserir respostas do questionário] te atrai para esses estilos. Isso
é, o que há nos livros desses estilos que você mais gosta?

31. Pode citar alguns [autores, livros] que são seus favoritos pessoais?

32. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a ler e a gostar desses estilos literários?

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também gostavam ou gostam? Exemplos
disso?]

33. Por outro lado, o que há no [inserir respostas do questionário] que te desagrada?

34. Consegue se lembrar de quando em sua vida passou a não gostar ou que você percebeu que não
gostava, ou isso nunca te ocorreu?

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também não gostavam ou não gostam?
Exemplos disso?]

Agora, vou perguntar sobre filmes e séries.

[35. Caso não assista filme e séries regularmente: você marcou no questionário que não costuma
assistir filmes e série regularmente em seu dia a dia. Mesmo assim, eu gostaria de saber um pouco
sobre qual é a sua relação com filmes e séries, hoje em dia e ao longo da sua vida. Você nunca foi de
assistir filmes e séries? Por quê? Isso é comum em outras pessoas ao seu redor?]

36. No questionário que respondeu você afirmou que seus estilos de filmes e séries favoritos são
[inserir respostas do questionário], ao passo que você não gosta de [inserir respostas do
questionário].

37. Fale um pouco sobre o que no [inserir respostas do questionário] te atrai para esses estilos. Isso
é, o que há nos filmes e séries desses estilos que você mais gosta?

38. Pode citar alguns [filmes, séries, cineastas] que são seus favoritos pessoais?

39. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a assistir e a gostar desses estilos de filmes
e séries?
269

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também gostavam ou gostam? Exemplos
disso?]

40. Por outro lado, o que há no [inserir respostas do questionário] que te desagrada?

41. Consegue se lembrar de quando em sua vida passou a não gostar ou que você percebeu que não
gostava, ou isso nunca te ocorreu?

[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também não gostavam ou não gostam?
Exemplos disso?]

***

42. Revisando as respostas que deu ao questionário, você acha essa é uma boa representação do seu
cotidiano e de sua vida cultural ou você diria que há outras atividades comuns em seu cotidiano ou
gostos culturais seus (seja em música, literatura, audiovisual, ou qualquer outra área) que são
bastante representativos da sua personalidade e que nós não comentamos?
42.1. [Caso afirmativo] Quais? O que te atrai para essa prática/gosto? Consegue se lembrar de
quando em sua vida começou a praticar/gostar? [Explorar: há exemplos de pessoas próximas de
você que também praticavam/gostavam ou praticam/gostam? Exemplos disso?]

[43. Se alguma expressão se repetir durante as respostas (p. ex.: “clássicos”, “intelectuais”,
“modernos”, “políticos”, “sociais”, “complexos” etc.), pedir para a pessoa definir o que a expressão
significa para ela].

44. Gostaria de saber também se é comum que você indique atividades culturais ou produções
culturais (seja coisas pra fazer, lugares para frequentar, músicas, filmes, séries, livros ou qualquer
outra coisa) para outras pessoas. Você costuma fazer indicações?

[Explorar: o que indica? para quem? dê alguns exemplos disso (indicações que fez e para quem). E as
pessoas costumam seguir suas indicações?].

45. E você costuma receber esse tipo de indicações de outras pessoas?

[Explorar: o que te indicam? Quem indica? dê alguns exemplos disso (indicações que recebeu e de
quem). E você seguiu as indicações?].

Posições políticas

Terminamos o bloco sobre suas práticas e preferências culturais. Então, agora, vamos para as
perguntas sobre suas posições políticas.

46. Você marcou no questionário que [inserir respostas do questionário]. Eu gostaria que você
falasse um pouco mais sobre qual a presença da política na sua vida.

[Explorar: como isso se expressa no seu dia a dia? Sua relação com a política já foi mais intensa ou
menos intensa em outros momentos da sua vida?]
270

47. Agora, uma pergunta mais direta: como você se classifica politicamente? Isso é, existe alguma
posição, ideologia política ou um conjunto de ideias que você acha que representa bem a sua forma
de pensar?

[Em caso afirmativo, explorar: o que significa essa ideologia política para você? Quando e como você
entrou em contato com ela? Você a compartilha com outras pessoas ao seu redor?]

48. No questionário tinha também uma escala de posicionamentos políticos, na qual o 0


representava o máximo da esquerda e o 10 representava o máximo da direita. Lá você marcou que
se considera na posição [inserir respostas do questionário]. O que significa ser de [inserir respostas
do questionário] para você e por que considera que está nesta posição?

49. E por outro lado, o que significa ser de [inserir respostas do questionário] para você?

50. Acha que a maior parte da população brasileira é de [inserir respostas do questionário].

51. E como era a relação da sua família com assuntos políticos? Era algo comum, intenso, ou não se
discutia muito?

52. No questionário você marcou também que se informa sobre política por meio de [inserir
respostas do questionário]. Você pode me falar um pouco mais profundamente sobre como se
informa sobre política?

[Explorar: quais os veículos que acessa? Quais as pessoas? Quais você considera que são as melhores
fontes de notícias, informações e opiniões sobre política? E quais considera as piores?]

53. No questionário tinha também uma pergunta sobre quais você considera os maiores problemas
do Brasil hoje, e lá você marcou [inserir respostas do questionário]. Gostaria que você se
aprofundasse nessas respostas. Começando pelo [inserir respostas do questionário]. Por que você
considera esse um dos principais problemas do Brasil hoje?

[inserir respostas do questionário]

[inserir respostas do questionário]

54. Também no questionário você marcou que [inserir respostas do questionário]. O que significa
democracia para você e por que você declarou este nível de satisfação?

Fronteiras simbólicas

Agora, eu vou passar para um bloco de perguntas que diz respeito aos seus valores e a forma como
lida com outras pessoas no seu dia a dia. Você não precisa ficar restrita(o) aos temas que acabamos
de discutir, mas pode citá-los se for o caso:

55. Para começar, eu gostaria de saber o que você vê em outras pessoas (sejam seus amigos, colegas
ou quaisquer outras pessoas) que te faz admirá-los. Pode ser qualquer coisa que elas façam ou
qualquer traço de personalidade. Ou seja, o que te faz admirar outra pessoa?

[Explorar: consegue dar exemplos práticos em pessoa que conhece? Como é essa pessoa?]
271

56. Tem alguma característica que você vê em outras pessoas ao se redor – seus amigos, colegas ou
conhecidos – que você gostaria de ter mas que você acha que não tem, ou não tem o suficiente?
Pode ser um traço de personalidade, um hábito ou mesmo algo que possuem. Algo que você almeja
para você, para a sua vida, e que identifica em outras pessoas.

[Explorar: quais os impedimentos para conseguir isso? Consegue dar exemplos desse impedimento?]

57. Agora, no sentido oposto, o que você vê em outras pessoas (sejam pessoas próximas ou distantes
de você) que te deixa incomodada(o)? Pode ser qualquer coisa que elas façam ou qualquer traço de
personalidade. Que tipos de pessoas você tenta evitar e quais caraterísticas de outras pessoas você
reprova ou te deixam incomodada(o)?

[Explorar: porque isso te desagrada? Consegue dar exemplos práticos em pessoas que conhece?
Como é essa pessoa?]

58. Há, ao longo de sua vida, casos de afastamentos intencionais? Isso é, tem pessoas das quais você
decidiu se afastar voluntariamente?

[Em caso afirmativo: quais os motivos para isso? Isso é comum ou raro?]

59. Eu gostaria de saber sobre modelos e inspirações em sua vida. Tem alguma figura que te inspira
ou inspirou ao longo de sua vida? Pode se tanto uma figura pública, famosa, quanto pessoas de seu
convívio próximo.

[Explorar: como é essa pessoa? O que ela tem que mais te chama atenção? (se for uma pessoa
próxima) como você entrou em contato com ela e como era a convivência entre vocês? (se for uma
pessoa distante) como e quando a conheceu?]

60. No questionário, tinha uma pergunta sobre os valores que você considera mais importantes de
serem transmitidos para seus filhos, e lá você marcou [inserir respostas do questionário]. Eu
gostaria que você falasse um pouco mais sobre esses valores. Vamos começar pelo [inserir respostas
do questionário]. O que esse valor significa para você e porque você considera isso importante de
ser transmitido para seus filhos?

[Explorar: isso era comum em seu ambiente de criação, em seus pais e familiares? Consegue dar
exemplos práticos de pessoas que têm esse tipo de valor? Quais as atitudes de alguém com esse
valor? Como são as pessoas que não têm esse valor? Há exemplos de pessoas próximas ou distantes
de você que não apresentam esse valor? Como elas são?]

[inserir respostas do questionário]

[inserir respostas do questionário]

61. No questionário tinha também uma pergunta sobre quais grupos de pessoas você não gostaria de
ter como vizinhos, e lá você marcou [inserir respostas do questionário]. Eu gostaria que você falasse
um pouco mais sobre esses grupos de pessoas. Vamos começar pelos [inserir respostas do
questionário]. Como são essas pessoas e por que você não gostaria de tê-los como vizinhos?

[Explorar: você já conviveu, em sua vida, como pessoas desse grupo? Como elas eram?]

[inserir respostas do questionário]


272

[inserir respostas do questionário]

62. Eu gostaria de saber agora especificamente sobre colegas em seu ambiente de trabalho. Quais
são, para você, os traços mais positivos que um colega pode ter em seu ambiente de trabalho?

[Explorar: você tem hoje ou já teve em algum momento colegas com esse(s) traço(s)? Como é/era
essa pessoa e como era conviver com ela?]

63. E, no sentido oposto, eu gostaria de saber quais são, para você, os traços mais negativos que um
colega pode ter em seu ambiente de trabalho.

[Explorar: você tem hoje ou já teve em algum momento colegas com esse(s) traço(s)? Como é/era
essa pessoa e como era conviver com ela?]

64. Que características das pessoas são mais valorizadas em seu ambiente de trabalho? Ou seja,
quais os traços que mais contribuem para que uma pessoa seja bem-sucedida no seu ambiente de
trabalho?

65. Você consegue citar alguém que já conheceu que você considera que foi muito bem-sucedida no
mesma área profissional na qual você atua? Como ela era? O que ela fez e qual foi sua trajetória para
ter sucesso?

66. O que você não pode fazer de maneira nenhuma diante de um superior seu no trabalho? Algo
que você não possa fazer, demonstrar ou falar, pois seria prejudicial para você.

[Explorar: você já fez isso ou já presenciou algum colega fazer isso em algum momento? Qual foi a
reação do superior?]

[67. Para entrevistados que supervisionam pessoas em seu trabalho: que tipo de atitudes você
valoriza nas pessoas que supervisiona e que atitudes você mais costuma repreender? Pode dar
exemplos práticos disso? Em seu trabalho você faz parte de bancas de processos seletivos, como
processos de contratação, seleção e promoção de pessoas? (Em caso positivo) O que você costuma
levar em conta nestes momentos? Qual o perfil ideal que busca num momento de seleção? Há
exemplos práticos de pessoas que já selecionou nestes processos que você considera
particularmente acertados?]

68. Por fim, saindo agora especificamente do mundo do trabalho e perguntando sobre sua vida em
geral, eu gostaria de saber o que você almeja para seu futuro? Isso é, qual é o futuro ideal que você
imagina para a sua vida?

Origem social

Para encerrar a entrevista, vou fazer algumas perguntas sobre sua origem social.

69. No ensino fundamental e médio, você estudou em escolas públicas ou particulares? Como foi?

70. E seu ensino superior, foi numa instituição pública ou privada? Fale um pouco, de maneira bem
ampla, sobre como foi sua experiência no ensino superior.

Agora, algumas perguntas sobre seus familiares e sobre a residência onde foi criado(a):
273

71. Qual o nível mais alto de formação dos responsáveis por sua criação?
71.1. [Em caso de ensino técnico ou superior] Onde e em quais áreas se formaram?

72. E quais as profissões dos responsáveis por sua criação?


72.1. [Se forem profissões empresariais, de gerência ou chefia] E há/havia funcionários
trabalhando sob o comando desse seu familiar?
72.1.1. [Em caso afirmativo] Quantos?

73. Sobre a geração anterior à dos responsáveis por sua criação (isso é, a de seus avôs e avós), você
sabe quais foram os níveis de formação e as profissões desses seus familiares?
73.1. [Caso saiba] Quais?

***

Eram essas as perguntas.

74. Você gostaria de retomar alguma resposta que deu no questionário, retomar algum assunto ou
se aprofundar em algum tema?

***

Obrigado pela disposição!

Bola de neve: Antes de encerrarmos, eu gostaria de deixar aqui um pedido caso você possa me
ajudar no prosseguimento da minha pesquisa. Eu ainda preciso encontrar mais pessoas para
participarem da pesquisa; mais pessoas que respondam ao meu questionário e participem da
entrevista como você fez. Para tanto, eu estou utilizando uma técnica de recrutamento chamada
bola de neve, na qual eu peço para as pessoas que já participaram da pesquisa se elas têm outras
indicações de pessoas que tenham um perfil semelhante ao seu. Nisso consiste meu pedido: caso
você conheça mais pessoas que tenham as mesmas caraterísticas que você (isso é, da mesma
profissão ou de profissões semelhantes, na casa dos 30-40 anos, com ensino superior completo e
residente na cidade de São Paulo; não importa se homem ou mulher) e que você acha que também
teriam a disposição para me ajudar, será de grande auxílio para o desenvolvimento de minha
pesquisa se puder me ajudar a acessá-las e a convidá-las para participarem da pesquisa. Caso você
tenha recomendações, mantemos contato pelo WhatsApp ou por e-mail. Obrigado!

***

Comentário posterior:

Tempo de entrevista:

Local da entrevista e vestimentas do(a) entrevistado(a):


274

APÊNDICE D. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA SOBRE POSIÇÕES POLÍTICAS


E ESTILOS DE VIDA

 DELLAPOSTA, D.; SHI, Y.; MACY, M. (2015). Why do liberals drink lattes? In:
American Journal of Sociology, vol. 120, n. 5.

Daniel DellaPosta, Youngren Shi e Michael Macy (2015), num texto com o curioso
título de "Por que os liberais bebem latte?", promoveram cruzamentos entre dados de
preferências estéticas e de consumo cultural, práticas de tempo livre e valores
políticos, com informações oriundas de questionários aplicados nos EUA entre 1972 e
2010, e com isso encontraram que respondentes que afirmavam que casamento gay é
sempre errado também frequentavam menos bares e afirmavam com mais frequência
nunca terem ingerido bebida alcoólica, ao passo que frequência maior a bares
guardava correlação positiva com aprovação de casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Respondentes com opiniões políticas mais liberais, como aprovação a sexo
antes do casamento, frequentavam mais shows de rock, country e rap, e viam rock
como influência positiva sobre as crianças. Conservadores também afirmavam com
maior frequência que estamos confiando muito na ciência e pouco na religião, mas os
liberais, apesar de afirmarem maior confiança na ciência, têm mais confiança que os
conservadores em "poderes sobrenaturais que derivam dos antepassados" e leem
mais horóscopos e relatos de astrologia pessoal.

 SHI, Y. et al (2017). Cultural fault lines and political polarization. In:


Proceedings of the 2017 ACM on web science conference.

Posteriormente, Shi e Macy, junto de outros três autores118, deram segmento ao


trabalho apresentado no texto de 2015 em artigo publicado em 2017. Nesse, os
autores se apoiam em dados de mídias sociais: a partir de seguidores de diferentes
congressistas dos EUA no Twitter, os autores observaram o que esses seguidores
seguem (co-following association) em termos de estilos de vida, para então encontrar
clusters de correspondência entre posições política e estilos de vida. Com isso,
identificam que os domínios analisados que mais guardam correlação com a

118
Agrippa Kellum, Kai Mast e Ingmar Weber.
275

polarização de posições políticas são o dos músicos, cadeias de restaurantes e grandes


empresas, isso é, esses são os domínios em que as diferenças de posição política mais
se correlacionam com diferenças de posições culturais (ambas medidas a partir de
quem se segue no Twitter). Seguir músicos de country, por exemplo, tem grande
correlação com seguir congressistas conservadores, ao passo que seguir outros
músicos se correlaciona com seguir congressistas liberais ou congressistas de ambos
os lados. Outro dado interessante é o de que as contas religiosas têm maior
alinhamento ao conservadorismo, mas ao mesmo tempo a religião é o tema mais
polarizado, isso é, o domínio em que mais pessoas de orientações política diferentes
seguem contas diferentes. Do outro lado, música atrai mais interesse de liberais que
conservadores, sendo que entre os músicos presentes no ranking Billboard Top 100
há mais polarização, pois os músicos de country são quase exclusivamente seguidos
pelos conservadores. Domínios culturais de menor polarização são lojas de varejo,
programas de TV, pessoas presentes na lista Fortune 500, grandes veículos de mídia
e notícias e automóveis (SHI et al., 2017).

 PRAET, S. et al (2021a). What’s Not to Like? Facebook Page Likes Reveal Limited
Polarization in Lifestyle Preferences. In: Political Communication.

Praet et al. (2021a)119 fizeram um exercício semelhante ao de Shi et al (2017),


coletando dados de curtidas em páginas no Facebook da população estadunidense e
combinando com dados de questionários para identificar o quanto há de polarização
e homogeneidade de posições políticas nas curtidas (isso é, o quanto pessoas que
curtem páginas de conteúdos diversos compartilham posições políticas). Os dados
produzidos aqui divergem em alguma medida daqueles de Shi et al (2017), indicando
que há muito mais divisão ideológica em páginas de conteúdo explicitamente político,
havendo também alta polarização em páginas de noticiários, sociedade civil e religião,
mas muito menos polarização em páginas de conteúdo cultural, como as de estilos de
vida, música e conteúdos esportivos, por exemplo. Quando as páginas de estilos de
vida se mostram polarizadas, é menos o domínio cultural como um todo, e mais
exemplos específicos internamente a cada domínio (como curtir a página da rede de
fast-food Chick-fil-A ou da marca Ben & Jerry, por exemplo). No nível individual, a
polarização de estilos de vida é mais comum entre indivíduos mais interessados e

119
Stiene Praet, Andrew M. Guess, Joshua A. Tucker, Richard Bonneau e Jonathan Nagler.
276

investidos no conflito político, indicando que apenas essas pessoas têm a tendência
de estender sua homogeneidade ideológica para outras categorias de páginas que não
as propriamente políticas ou jornalísticas.

 KHAN, R.; MISRA, K.; SINGH, V. (2013). Ideology and brand consumption. In:
Psychological science, v. 24, n. 3.

Romana Khan, Kanishka Misra e Vishal Singh (2013), vinculados mais propriamente
aos estudos de propaganda, administração e consumo, acabaram por dar uma
contribuição para o tema da relação entre posições políticas e estilos de vida que
outras pesquisas não captaram. Os autores queriam saber se a orientação política da
população estadunidense (medida a partir da porcentagem de votos nas eleições
presidenciais em cada condado dos EUA) impacta em sua propensão a experimentar
produtos novos ou de marcas novas, abordando na análise categorias de produtos tão
diversos quanto alimentos, produtos de limpeza doméstica e de higiene pessoal.
Cruzando dados da orientação política dos condados com os produtos mais e menos
vendidos em supermercados em cada condado – controlando o teste de
correspondência para evitar a influência de variáveis outras como a classe e a
raça/etnia –, os autores mostram que os condados mais conservadores estão
associados ao maior consumo de marcas nacionais estabelecidas e menor penetração
de novos produtos, ao passo que nos mais liberais há maior consumo e abertura para
experimentar marcas e produtos novos. A conclusão de Khan, Misra e Singh caminha
no sentido de confirmar, partindo de um dado sobre diferenciação no consumo de
produtos gerais, a menor abertura de conservadores para novas experiências.

 ROOS, J.M.T.; SHACHAR, R. (2014). When Kerry met Sally: Politics and
perceptions in the demand for movies. In: Management Science, v. 60, n. 7.

Os dados de Khan, Misra e Singh aproximam-se dos de Ross e Shachar (2014), que
usaram o mesmo tipo de desenho de pesquisa para investigar a diferenciação dos
filmes mais e menos assistidos nos cinemas em cada condado dos EUA, tendo em
vista a posição política hegemônica em cada local. Seu cruzamento mostrou que os
residentes dos condados republicanos preferem filmes de ação, infantis e comédias
familiares, gostam menos de filmes com classificação indicativa mais alta e de filmes
estrelados por atores negros. Nos condados democratas, por sua vez, as bilheterias
277

são mais altas para filmes de suspense e drama, filmes com temáticas mais sérias e
intelectuais, filmes de horror, ficção científica e filmes com classificação indicativa
mais alta.

 PRAET, S. et al (2021b). Predictive modeling to study lifestyle politics with


Facebook likes. In: EPJ Data Science, v. 10, n. 1.

Fora dos EUA, Stiene Praet, junto de outro conjunto de coautores (PRAET et al.,
2021b)120, usou também dados de curtidas em páginas no Facebook para estudar a
politização dos estilos de vida para o caso da Bélgica. No caso belga, páginas sobre
sociedade civil, bares, cafés e clubes noturnos, artes e cultura, livros e autores,
eventos e festivais têm homogeneidade mais alta que a média das demais categorias.
Por outro lado, programas de TV, viagem e turismo, esportes e saúde são os
conteúdos com curtidas mais heterogêneas em termos de posições políticas dos
usuários. Surpreendentemente, mídia e notícias não é uma categoria com
homogeneidade mais alta que a média. As páginas mais curtidas pela esquerda são as
de mídia alternativa – vista como mais a esquerda – e as de organizações não
lucrativas, relacionadas a mudanças climáticas e refugiados. Para o centro, há mais
homogeneidade de curtidas em páginas sobre férias de família, games e TV, portanto
menos políticas. Já para a direita, a maior homogeneidade é em páginas de
nacionalismo flamengo e de memes. Os autores identificaram diferenças também nas
páginas curtidas por direita e esquerda dentro de algumas categorias: no caso do
cinema, por exemplo, a esquerda curte mais cinema alterativo e de arte e a direita
curte mais páginas de filmes populares e de ação (PRAET et al., 2021b). A figura
abaixo sintetiza algumas dessas vinculações encontradas pelos autores:

120
Stiene Praet, Peter Van Aelst, Patrick van Erkel, Stephan Van der Veeken e David Martens.
278

Figura 6. Estilos de vida e posições políticas entre a população belga

Fonte: Praet et al (2021b)

 PURHONEN, S.; HEIKKILÄ, R. (2016). Food, music and politics: The


interweaving of culinary taste patterns, "highbrow" musical taste and conservative
attitudes in Finland. In: Social Science Information, vol. 56.

Outro exemplo europeu é o que vem dos sociólogos finlandeses Semi Purhonen e Riie
Heikkilä (2016), que exploraram relações entre clivagens sociodemográficas,
preferências culinárias, preferências musicais e orientações políticas entre a
população finlandesa, usando como base um questionário e entrevistas de uma
amostra nacional coletada em 2007. Assim como os anteriores, eles encontram uma
série de vinculações, sendo a mais notável a que mostra que preferir comidas leves e
culinária étnica se relaciona positivamente com preferir música clássica e ópera e
com ter opiniões políticas liberais, ao passo que preferir comidas pesadas e
carnívoras se relaciona com ter opiniões políticas conservadoras. Outro dado
relevante é o de que entre pessoas com opiniões políticas liberais o gosto por música
clássica e ópera é mais negativamente associado com gosto por fast food e
positivamente associado com gosto por comidas leves e culinária étnica do que entre
pessoas conservadoras. A partir dessas correlações, os autores levanta a hipótese de
que o conservadorismo político pode estar funcionando como uma "barreira" na
articulação coerente entre preferências musicais e culinárias, tornado mais difícil que
o gosto seja homólogo entre os campos para essas pessoas, ao passo que o liberalismo
279

político parece não apenas permitir as vinculações estruturais entre culinária e


música, como estimulá-las.

 DIMAGGIO, P. (1996). Are art-museum visitors different from other people? The
relationship between attendance and social and political attitudes in the United
States. In: Poetics, vol. 24.

A despeito desse conjunto de trabalho tratar predominantemente dos do últimos 20


anos, e de tentar entender especificamente como a associação entre posições políticas
e estilos de vida é influenciada pelo contexto contemporâneo (como se nota, em
vários desses trabalhos as interações das pessoas nas mídias sociais ocupam papel de
destaque, além de ser comum que se relacione o fenômeno ao crescimento da
polarização política), é possível pinçar trabalhos mais antigos mostrando que essas
associações não são uma novidade. Paul DiMaggio (1996), por exemplo, cruzou dados
de frequência a museus de arte nos EUA e valores e atitudes sobre questões políticas
e sociais para identificar se o público frequentador desses museus diferia
sensivelmente do não frequentador em seu comportamento político. Com isso,
identificou uma série de articulação entre a prática cultural de se frequentar museus e
as opiniões políticas das pessoas. Frequentadores de museus de arte tomam posições
políticas mais liberais sobre controle de armas, pena de morte e descriminalização de
maconha e são mais tolerantes em diversos temas, defendendo mais intensamente a
liberdade de expressão e estilos de vida não conformistas. Também são mais
seculares e confiantes na ciência e mais atraídos por alta cultura clássica, ainda que
aprovem simultaneamente expressões de multiculturalismo e cultura comercial e
popular. Ainda assim, mantém certo conservadorismo no que tange comportamento
sexual, no que querem e esperam de seus filhos e no seu suporte às instituições
econômicas capitalistas, bem como aprovam a atuação internacional dos EUA para
competir política e economicamente. Esses dados levaram DiMaggio a argumentar
que a participação em domínios específicos das artes se erigia não apenas num
indicador da posição das pessoas nas hierarquias sociais, mas também num fator de
demarcação de orientações políticas.

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