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CAMPINAS
2024
GUSTAVO DE SOUSA VIEIRA
CAMPINAS
2024
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
Informações Complementares
Título em outro idioma: The cultural fraction of the middle classes in São Paulo : political
positions, lifestyles and symbolic boundaries
Palavras-chave em inglês:
Social classes
Middle class
Right and left (Political science)
Culture - Social aspects
Life style
Área de concentração: Sociologia
Titulação: Mestre em Sociologia
Banca examinadora:
Michel Nicolau Netto [Orientador]
Adalberto Moreira Cardoso
Carolina Martins Pulici
Data de defesa: 29-04-2024
Programa de Pós-Graduação: Sociologia
Esta pesquisa trata da relação entre estilos de vida, posições políticas e demarcação
de fronteiras simbólicas entre a fração cultural das classes médias paulistanas. Em
linha com a abordagem que vem sendo chamada de Análise cultural de classes, as
frações de classe culturais são definidas como o conjunto de agentes pertencentes a
uma mesma classe social que dependem mais do capital cultural que do capital
econômico para a reprodução de sua posição social e para a demarcação de suas
hierarquias de status. No caso da fração cultural das classes médias paulistanas, ela é
apresentada como sendo composta por indivíduos inseridos em posições
intermediárias de ocupações relacionadas à ciência, arte, academia, produção
cultural, docência, jornalismo, assistência social, e algumas profissões liberais. O
objetivo principal da pesquisa é entender quais os efeitos específicos da fração de
classe sobre as tomadas de posições e sobre as construções identitárias. A hipótese de
trabalho é a de que entre esta fração de classe seria possível encontrar tomadas de
posições fortemente marcadas pelo esforço de valorização do capital cultural e de
denegação do capital econômico, o que inclinaria os agentes para a demarcação de
uma fronteira simbólica que os opõe à fração econômica da mesma classe. Para testar
esta hipótese são observadas as particularidades das tomadas de posições desses
agentes nos domínios dos posicionamentos políticos e dos estilos de vida, o que é
feito por meio da aplicação de questionários sobre posições políticas e estilos de vida
com vinte e sete indivíduos pertencentes, majoritariamente, à fração cultural das
classes médias da cidade de São Paulo, e da realização de entrevistas em
profundidade sobre os mesmos temas com vinte e três deles. Os dados produzidos
mostram que, para o caso dos posicionamentos políticos, a integração às posições
estruturais típicas das frações culturais tende a ser marcada pela cobrança por
posicionamentos políticos de esquerda, que, por sua vez, tendem a ser os mais
vantajosos para a valorização do capital cultural em comparação com o econômico.
Da mesma forma, para os estilos de vida, as posições típicas das frações culturais são
também identificadas por práticas e gostos culturais orientados para a valorização da
cultura legitimada, igualmente estratégicos para a valorização do capital cultural
como critério de hierarquização social. Desta forma, os resultados apontam para os
efeitos estruturantes do capital cultural sobre a fração cultural, inclinando-a para a
valorização do capital cultural, denegação do econômico e, com isso, para a
demarcação de uma fronteira simbólica contra a fração econômica. Porém, como
efeito não intencional dessa construção identitária, as estratégias de valorização do
capital cultural operam ainda no sentido de restringir a entrada das classes populares
nas posições culturais intermediárias.
This research deals with the relationship between lifestyles, political position takings
and the demarcation of symbolic boundaries between the cultural fraction of the
middle classes in the city of São Paulo. In line with the approach that has been called
Cultural class analysis, cultural class fractions are defined as the set of agents
belonging to the same social class who depend more on cultural capital than on
economic capital for the reproduction of their social position and for the demarcation
of their status hierarchies. In the case of the cultural fraction of the middle classes in
São Paulo, it is presented as being composed of individuals inserted in intermediate
positions in occupations related to science, art, academia, cultural production,
teaching, journalism, social assistance, and some liberal professions. The main
objective of the research is to understand the specific effects of class fraction on
position taking and identity constructions. The working hypothesis is that among this
class fraction it would be possible to find positions taken strongly marked by the
effort to value cultural capital and deny economic capital, which would incline agents
towards the demarcation of a symbolic boudaries that opposes them to the economic
fraction of the same class. To test this hypothesis, the particularities of the positions
taken by these agents in the domains of political stances and lifestyles are observed,
which is done through the application of questionnaires on political positions and
lifestyles with twenty seven individuals belonging, mostly, to the cultural fraction of
the middle classes of the city of São Paulo, and carrying out in-depth interviews on
the same topics with twenty three of them. The data produced shows that, in the case
of political stances, the integration in the structural positions typical of cultural
fractions tends to be marked by demands for left-wing political positions, which, in
turn, tend to be the most advantageous for valuing the cultural capital compared to
economic capital. Likewise, for lifestyles, the typical positions of cultural fractions are
also identified by cultural practices and tastes oriented towards the valorization of
legitimized culture, equally strategic for the valorization of cultural capital as a
criterion of social hierarchy. In this way, the results point to the structuring effects of
cultural capital on the cultural fraction, tilting it towards the valorization of cultural
capital, denial of economic capital and, therefore, towards the demarcation of a
symbolic boundaries against the economic fraction. However, as an unintentional
effect of this identity construction, strategies for valuing cultural capital still operate
to restrict the entry of popular classes into intermediate cultural positions.
Keywords: Social classes; Middle class; Right and left (Political science); Culture –
social aspects; Life style.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SM Salário Mínimo
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 14
Frações culturais e fronteiras simbólicas .................................................................................... 21
O caminho da pesquisa .................................................................................................................. 30
INTRODUÇÃO
Elaine: Eu acho que a minha irmã tem um grupo de amigos que eu diria que
é mais coxinha. Então ela frequenta uns lugares, tipo uns bares, que eu fico,
"nossa! eu nunca frequentaria esse lugar". Tipo, se minha irmã falar
"amanhã eu vou num show de sertanejo", não vai ser uma surpresa pra mim.
Os amigos dela são pessoas que têm interesses diferentes, então, por
exemplo, eu nunca vi a minha irmã ir com os amigos dela num museu, ou
num cinema. É pouquíssimo comum isso acontecer. São pessoas que... ah, eu
acho que são pessoas mais conservadoras. Várias amigas dela da faculdade
são do interior, e que têm uma vida bem familiar, bem conservadora mesmo.
Eu perguntei, então, o que significa ser coxinha e como Elaine identifica isso
nos amigos da irmã.
Elaine: Acho que um jeito claro de identificar isso é que, por exemplo, no ano
passado, ano de eleições, entre os meus amigos, assuntos envolvendo política
sempre fazem muito parte do nosso dia a dia, sempre, mas principalmente
num ano de eleições. E a minha irmã, se eu perguntar pra ela, "em quem sua
amiga tal votou?", ela nunca falou sobre isso com as amigas, é uma coisa que
elas não discutem muito [...]. Com os meus amigos mais próximos, são
assuntos muito comuns entre a gente, temos opiniões políticas muito
parecidas, a gente traz muitas discussões sempre. Eu estava conversando um
dia desses com dois amigos num bar sobre questões de gênero, sobre
transição de gênero, sobre se relacionar com uma pessoa e depois de um
tempo ela mudar o gênero, mas entre a minha irmã e as amigas dela, não é
uma coisa que elas conversam. É muito diferente. Até trazendo pra um ponto
de vista mais... por exemplo, falando que neste fim de semana teve Oscar,
que nem é uma coisa tão política, eu acho que as amigas da minha irmã nem
sabem que teve Oscar, não se fala sobre essas coisas. Elas ficam muito numa
coisa superficial e muito... rasa, mesmo, sendo brutalmente honesta. É até
motivo de discussão, às vezes, entre eu e minha irmã, de eu falar "como você
consegue ficar saindo com essas pessoas?". E daí ela também aponta muito
que às vezes parece que eu tô querendo me gabar: "nossa, você e seus amigos
são muito profundos! Meu Deus! Como vocês são profundos! Vocês são
muito diferentes!".
15
Elaine: Eu acho que pra mim é muito mais uma questão de saber com o que
eu não me identifico. Então, quando eu penso na direita, eu penso em
conservadorismo, em pessoas que são pró-armas, que são contra as
minorias, que não reconhecem a existência de pessoas trans e não-binárias.
Eu acho que isso já faz eu me afastar muito desse lado, muito.
1
O questionário completo encontra-se no Apêndice B. Questionário.
2
O roteiro de entrevistas completo encontra-se no Apêndice C. Roteiro de entrevistas.
16
Elaine: O sertanejo tem uma coisa de remeter muito a um tipo de pessoa que
eu não gosto. Eu já imagino uma coisa meio coxinha mesmo, uma galera
meio nada a ver comigo. Eu acho também que o sertanejo tem uns cantores
que são muito machistas, que apoiaram Bolsonaro, então eu já crio um
preconceito com isso desde já.
3
Oposição bem representada pela conferência de Georg Simmel (2005), As grandes cidades e a vida do
espírito.
4
O padrão varia, mas a predominância do voto conservador em cidades menores, com níveis mais altos de
analfabetismo, piores indicadores socioeconômicos e com parte maior de população rural que urbana pode ser
identificado desde o período bipartidário da Ditadura Militar. A mesma associação vale para o voto progressista
nas cidades maiores, com maior taxa de alfabetização, melhores índices socioeconômicos e maior população
urbana. Ver Meneguello; Curi; Catelano (2020), Arquer (2020), Fernandes (2020).
5
Ver Leiva (2014).
6
Para a história de origem e para o estilo da música sertaneja, ver Caldas (1987) e Requena (2016).
7
AGÊNCIA O GLOBO. Bolsonaro reforça aposta em sertanejos para campanha à reeleição. Último Segundo, IG,
12 de junho 2022. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2022-06-12/bolsonaro-
sertanejos-campanha-reeleicao.html>. Acesso em: 12 de abril de 2023.
17
entre 2019 e 20228. As artes plásticas, os museus e o cinema entram, então, no lado
esquerdo do esquema, em oposição ao sertanejo, que entra no lado direito.
Elaine: Eu convivi muito com pessoas das artes, e eu tenho uma admiração
muito grande. Acho que é algo de ver que a pessoa ama tanto aquilo ao ponto
de ser o ganha-pão dela, de ela ter mil esforços, mil sacrifícios. Então acho
que tem uma admiração no sentido de que eu também queria ser como essas
pessoas mas eu não tive a coragem de bancar essa escolha. Então eu acho
que eu tenho muito essa admiração. Pessoas que, cara, a vida dela é a arte!
Eu acho isso muito legal! E também de estar servindo aos outros, sabe? A
profissão da pessoa é literalmente estar ali entretendo as outras pessoas,
todos os dias, fazendo o mesmo espetáculo. Então isso me gera muita
admiração. E também os assuntos, as coisas que essas pessoas conversam,
filmes, exposições, não sei o que... é uma coisa que me dá um... ai, nossa! Eu
quero saber mais! Me dá essa admiração grande.
Por fim, quando Elaine salta das discussões sobre política que tem com seus
amigos para o desconhecimento sobre o Oscar entre os amigos da irmã, ela amarra
novamente os posicionamentos políticos e os estilos de vida, mas agora enquadrando
o sistema num par de oposições mais elementar e abstrato: raso vs. profundo. O lado
de Elaine é o profundo, é o metropolitano, progressista, das artes, da cultura; o lado
dos amigos da irmã é o raso, do interior, conservador, da vida familiar.
Elaine: A minha irmã tem amigas que já têm filho, por exemplo. Eu acho que
é uma coisa que também tem uma influência muito forte do interior. É até
uma influência que eu senti da minha família. Tipo, a minha avó... eu
namorei por muitos anos antes de conhecer o meu atual namorado, e a
minha avó ficava, "e aí? não vão casar? não vão ter filhos?". Então, eu sinto
que é uma coisa muito forte do interior, dessas pessoas mais conservadoras,
mais... que tem uma mentalidade de que a vida é trabalhar, casar, ter filhos...
viver felizes para sempre, sabe?
8
Durante a gestão de Bolsonaro, as despesas do governo com projetos culturais caíram um terço, o número de
projetos aprovados via Lei Rouanet caiu mais de um terço, o valor captado via Lei de Incentivo á Cultura foi
20% menor, os gastos com a Agência Nacional de Cinema caíram quase um terço e o prazo médio para a
aprovação de um projeto de artes visuais aumentou 77 dias. Aumentou ainda a concentração de projetos
aprovados na Região Sudeste (Braga; Gorziza; Buoso, 2022).
18
Elaine: Pensando na minha mãe com os irmãos dela, meus tios: eu sei que a
minha mãe tem muito mais esse interesse desde sempre, de mostrar pra
gente essas coisas [de arte e cultura] do que a minha tia, que teve uma
criação igualzinha a da minha mãe, morou sempre mais ou mesmo no
mesmo lugar, mas nunca saiu do interior, não veio para São Paulo. Eu acho
que o fato de os meus pais terem vindo pra São Paulo também deu uma
virada. Se eu comparar os meus pais com os meus tios, meus pais eu ainda
acho que são pessoas mais conservadoras, mais de dir... putz, não sei se mais
de direita... mais de direita, assim, meus pais não são super de direita, super
conservadores, mas são mais inclinados para uma coisa mais tradicional,
mas ainda assim eu sinto que eles terem vindo pra São Paulo tirou eles um
pouco desse lugar. Meus tios, por exemplo, não tem um amigo gay. Não
convivem com pessoas que não sejam muito parecidas com eles. Os meus
pais eu sinto que já saíram bem mais disso. Até de um ponto de vista político,
mesmo: meus pais votaram no Lula ano passado, o que pra minha família do
interior é uma coisa... putz, faz com que eles sejam uns comunistas, de
esquerda. Então, eu acho que os meus pais, por terem vindo pra São Paulo,
tiveram a chance de conviver com pessoas que mostraram uma outra
realidade pra eles, ainda que de forma super privilegiada.
Elaine: E eu acho que também tem uma influencia muito grande das coisas
que eu gosto, cultura, arte, essas coisas também influenciam muito as
minhas opiniões políticas.
Elaine: Ah, por exemplo, muito normal, muito comum, num teatro, ter
algum tipo de manifestação contra o Bolsonaro no ano passado. Era muito
comum isso acontecer. Eu tenho certeza que isso me faz pensar, "eu estou do
lado certo. É isso! Me identifico com essas pessoas", sabe? Me dá uma
impressão de que eu estou fazendo a coisa certa, sabe?
Para a prática de Elaine, é menos relevante saber se, de fato, todas as pessoas
do interior são conservadoras, ou qual o coeficiente de correlação entre o gosto por
música sertaneja e o voto em Bolsonaro. Ela mesma mostrou na entrevista que sabe
que essas oposições não são tão claras: ela gosta da música sertaneja se for mais
antiga (“não vou dizer que eu não gostaria, por exemplo, de um show do Chitãozinho
e Xororó, que são uns sertanejos mais antigos e que têm umas músicas que eu acho
muito bonitas”), ela sabe que têm pessoas conservadoras na capital e progressistas no
interior e sabe que nem todas as pessoas do mundo da arte e da cultura são
progressistas. Mesmo assim, o que importa é que esse esquema organiza na cabeça de
Elaine uma espécie de mapa mental de referências em que traços de estilos de vida e
posicionamentos políticos se aproximam ou distanciam relacionalmente, e que ela
carrega esse esquema consigo para a prática, para quando precisa interagir com
outras pessoas e precisa, então, ir tateando, buscando sinais que a permitam saber
com quem deve ou não se associar, com quem deve ou não interagir.
Surpreende Elaine, no entanto, que a irmã, que compartilha de suas posições
políticas, consiga ser amiga dessas pessoas que estão no polo oposto ao seu. O
esquema de classificação empregado por Elaine, que une posições políticas e estilos
de vida, constrange sua possibilidade de estabelecer laços afetivos e de
pertencimento: é impensável para ela conviver com pessoas como os amigos da irmã.
Para que consiga construir pertencimento, a irmã de Elaine – que eu não entrevistei
20
Elaine: Minha irmã é minha melhor amiga, a gente se dá muito bem, mas é
bem diferente isso entre a gente. Ela é uma pessoa que transita melhor entre
pessoas diferentes. Mesmo com a nossa família. Nas eleições, quem brigava
com todo mundo era eu. Teve até uma briga que eu tive com os meus avós
que eu joguei na cara deles, "a minha irmã pensa igualzinho a mim, a única
diferença é que ela não fala nada! Vocês estão achando que sou só eu, mas é
ela também!". Então, ela é bem uma pessoa de, "ai, não quero briga, não vale
a pena falar sobre isso, não vou postar em quem eu vou votar no Instagram",
e eu já sou, "não, mas cada voto faz a diferença!". Então, nós somos bem
diferentes nesse sentido. Ela é uma pessoa bem mais passiva. Eu chamo
muito ela de mureteira [risos].
21
9
A referência fundamental aqui é A Distinção (Bourdieu, 2017), mas a análise cultural de classes se
desenvolveu posteriormente a partir de uma série de críticas e reformulações com relação aos trabalhos de
Bourdieu. Uma descrição mais aprofundada será feita no primeiro capítulo desta dissertação.
10
Um volume equilibrado de capital econômico e cultural identifica a fração de classe balanceada
23
dentre as quais o diploma é apenas uma, e por vezes nem sequer a mais eficaz – são
mobilizadas por esses agentes estrategicamente para legitimar e para reproduzir no
tempo sua própria posição de classe.
Mas, ao mesmo tempo, trabalhar com essa definição de capital cultural e de
fração de classe é entender também que, além de munir os sujeitos de um conjunto
de estratégias para legitimar e reproduzir sua posição social, o capital cultural exerce
sobre aqueles que o possuem um conjunto de efeitos sobre suas tomadas de posição;
efeitos estes que, uma vez captados empiricamente, são eles próprios indicadores da
posição de fração de classe dos agentes. Como mostrarei abaixo, fazer parte de uma
fração de classe cultural é, tendencialmente, sentir sobre si a necessidade impositiva e
contínua de valorização de seu capital cultural, bem como a necessidade de operar
nas mais diversas esferas da vida social denegando o poder e a relevância do capital
econômico. Num nível mais amplo, pertencer à uma fração de classe cultural é, quase
inevitavelmente, se esforçar o tempo todo para se afastar das frações de classe
econômicas, se esforçar para se diferenciar delas e para encontrar critérios de
definição de valor alternativos ao critério econômico.
Aqui é que entramos mais claramente na dimensão simbólica da análise.
Pertencer à uma fração de classe cultural é estar predisposto a demarcar um conjunto
específico de tipos de fronteiras simbólicas, ou seja, estar predisposto a mobilizar um
conjunto específico de critérios para demarcar seu pertencimento coletivo e construir
sua hierarquia de prestígio em oposição às frações de classe econômicas 11. No caso
específico das frações culturais, caracterizadas socialmente por sua posse de capital
cultural e predispostas a denegar o capital econômico, seu grande esforço simbólico
de demarcação de pertencimento coletivo é marcado pelo reconhecimento do
domínio da cultura legitimada como signo de valor pessoal, e, em complemento, pela
rejeição da noção de que a posse de capital econômico seja um símbolo relevante de
status. Esse esforço – adequado estruturalmente à sua posição na estrutura de classes
–, constrange os agentes a tomarem posições que os permitam se aproximar de seus
semelhantes, rejeitar os diferentes, e valorizar ainda mais seu capital cultural: os
lugares em que escolhem residir e pelos quais preferem circular pela cidade, os
11
Claro esteja que o argumento funciona da mesma forma para a fração econômica, traçando suas fronteiras
simbólicas para se separar e encontrar seu valor diante das frações culturais. A referência fundamental nos
estudo sobre fronteiras simbólicas são os trabalhos de Michèle Lamont, em particular Money, morals, and
manners (Lamont, 1992) e The dignity of working man (Lamont, 2000). Apresentarei melhor o conceito a
seguir.
24
12
E não descarto, evidentemente, os efeitos de variáveis como o gênero, a raça, a idade, a sexualidade e a
localização geográfica nas tomadas de posição, mas a análise comparativa dos efeitos dessas outras variáveis
demandaria um recorte empírico mais amplo do que o que faço aqui. O foco do trabalho é nos efeitos da
fração de classe cultural, ou seja, do capital cultural, sobre as tomadas de posições. Por isso todo o discurso é
feito no sentido de valorizar os efeitos estruturais do capital cultural, e não por acreditar que ele é o único fator
explicativo das tomadas de posição.
25
descarte os efeitos dos estratos sobre as tomadas de posições, me baseio aqui numa
literatura que vem argumentando a respeito do esquerdismo do capital cultural para
mostrar que as posições políticas de esquerda, sobretudo nos campos da economia
(mais estatistas que privatistas) e da moral (mais progressistas que conservadores) 13,
são tomadas de posições estruturalmente adequadas às necessidades de valorização
do capital cultural e de denegação do econômico que identificam as frações de classe
culturais. Além desse argumento estrutural, ofereço a partir dos dados que produzi
com meus entrevistados um argumento processual, em que defendendo que o
processo de associação dos agentes às posições culturais da estrutura de classes é
marcado por forte coerção para que se adequem aos repertórios culturais da esquerda
política. Assim, argumento que a classe média de esquerda é sobretudo a fração
cultural das classes médias, pois parte das fronteiras simbólicas traçadas pela fração
cultural para demarcar seu pertencimento coletivo é uma fronteira política,
construída com base em repertórios da esquerda política.
Para a literatura sobre distinção cultural e construção social dos gostos,
contribuo mostrando a diversidade das estratégias de valorização do capital cultural
mobilizadas pelos agentes da fração cultural das classes médias paulistanas.
Comparando minha amostra com a de outras pesquisas sobre o Brasil, fica claro que
os membros da fração cultural das classes médias possuem maior domínio da cultura
legitimada que uma parte das classes mais altas (notadamente aquela de ascensão
recente, os "novos ricos"), mas que mesmo assim encontram algumas dificuldades
para se apropriarem da cultura legitimada em sua plenitude (sobretudo por conta de
sua falta de capital econômico). Eles demarcam seu pertencimento coletivo por meio
da valorização de um estilo de vida que reivindica para si tudo que entendem como
"cultural", e que encontra no arquétipo da boemia uma referência simbólica de
proximidade. Ao mesmo tempo, eles desenvolvem uma relação ascética de extrema
seriedade com suas práticas e preferências culturais, denotando que seus
investimentos aqui precisam ser precisos, pois carregam consigo a estabilidade do
reconhecimento de seu valor por seus pares de fração de classe. Assim, no conjunto
de critérios de demarcação de pertencimento coletivo da fração cultural das classes
médias paulistanas, une-se à fronteira política baseada nos posicionamentos de
13
Leio o conflito político como passível de ser decomposto analiticamente em três dimensões: uma político-
institucional (democracia x autoritarismo), uma econômica (estatismo x privatismo), e uma moral
(progressismo x conservadorismo). Apresento esta leitura no item 2.3 Pressupostos teóricos e empíricos para o
estudo de posicionamentos políticos.
27
esquerda uma fronteira cultural, esta baseada no estilo de vida "cultural" e nas
estratégias de valorização da cultura legitimada. O dilema oriundo dessa imbricação
entre fronteiras políticas e culturais, no entanto, é que, se pelo lado da política a
fração em análise se esforça para se aproximar das classes populares, pelo lado da
cultura ela exibe um meritocratismo que opera dificultando a entrada de agentes
oriundos da base da estrutura de classes para as posições culturais das classes
médias.
A conclusão do trabalho é fundamentalmente a que sintetizei de maneira
genérica acima: o capital cultural exerce um efeito específico sobre os agentes que
dependem dele mais que do econômico para reproduzirem sua posição social e para
demarcarem seu valor social, o que faz com que dentro de uma classe social possamos
separar o conjunto de agentes pertencentes à fração de classe cultural daqueles
pertencentes à econômica, na medida em que esse pertencimento de fração de classe
terá importantes efeitos sobre suas construções identitátias e tomadas de posições em
esferas da vida como os posicionamentos políticos e os estilos de vida. O trabalho
mostra isso para o caso da fração cultural das classes médias paulistanas, como já
indicado pela análise do exemplo heurístico de Elaine, uma de minhas entrevistadas,
na primeira seção desta introdução
***
14
Hoje, há ampla literatura sobre fronteiras simbólicas para além dos trabalhos de Lamont. Ver revisões em
Lamont; Molnar (2002) e em Pachucki; Pendergrass; Lamont (2007).
29
15
Ver sobretudo o capítulo Estruturas, habitus, práticas, de O senso prático (Bourdieu, 2013b).
30
O caminho da pesquisa
O projeto original de minha pesquisa era estudar a relação entre estilos de vida
e posições políticas, sua possível imbricação e seus possíveis impactos no trabalho de
demarcação de fronteiras simbólicas entre pessoas de variadas classes sociais
residentes na cidade de São Paulo. A ideia era desenvolver a pesquisa com recorte na
cidade de São Paulo pois minha pesquisa está vinculada ao projeto temático Fapesp
Para Além da Distinção: gostos, práticas culturais e classe em São Paulo16, que vem
estudando estilos de vida e classes sociais na capital paulistana. Assim,
16
Projeto nº 2018/20074-2, coordenado por Renato Ortiz. Michel Nicolau Netto, orientador da minha pesquisa,
é pesquisador associado do projeto.
31
17
No início, a ideia era construir minha população de pesquisa com o auxílio de escolas de ensino básico de
diferentes perfis da cidade. Minha proposta era recrutar para a pesquisa uma população de pais e mães ou
responsáveis por estudantes de ensino básico de São Paulo que possuem diferentes perfis sociais. A ideia era
que as escolas funcionariam como um indicador de posições de classe e um dispositivo metodológico para
acessar uma amostra populacional que oferecesse ao mesmo tempo diferenças substanciais entre perfis sociais
de indivíduos (em termos de classe social, gênero e raça/etnia) e a possibilidade de um estudo controlado e
contínuo. O problema é que quando fui a campo, no segundo semestre de 2022, para buscar o contato das
escolas, a estratégia se mostrou inviável, pois as escolas dificultaram minha entrada de diferentes maneiras.
Com o desenho previamente planejado frustrado, me vi obrigado a repensar a abordagem, tentando construir
minha população de pesquisa de outra forma. Houve uma breve tentativa de fazer isso por meio do contato
com instituições e associações de bairros, mas ela mostrou resultado nulo. Neste momento, na virada de 2022
para 2023, foi que resolvi recortar mais a população de pesquisa e recorrer a redes de contatos pessoais e bola
de neve.
18
Apresento melhor esses critérios no primeiro capítulo, na seção 1.3 Como eu construí as classes em minha
pesquisa.
19
Cabe registrar que nenhum dos entrevistados era meu conhecido pessoal. Eu sempre chegava ate eles, ou
eles até mim, por indicação de terceiros.
32
entrevista era realizada também online (via Google Meet)20. Contudo, dado o viés que
caracteriza minha condição educacional e profissional (um pesquisador de pós-
graduação da área de Ciências Humanas) e a de minhas redes de contatos, eu recrutei
muito mais facilmente membros da fração cultural das classes médias paulistanas do
que das outras frações: vinte e sete membros da fração cultural responderam ao meu
Questionário online e vinte e três deles me deram entrevistas21. O sucesso do
recrutamento entre a fração cultural e a dificuldade entre as demais frações foi o
motivo principal para recortar meu objeto de análise neste texto apenas na fração
cultural das classes médias.
Com base nesse conjunto de dados sobre os membros da fração cultural das
classes médias da cidade de São Paulo, decidi que o texto que fazia mais sentido
escrever era um que tivesse como centro entender quem é a fração cultural das
classes médias paulistanas, e nesta direção encaminhei meu esforço teórico de leitura
e reflexão ao longo do último ano de pesquisa (entre o início de 2023 e o início de
2024). Localizado, como mencionei acima, nesta linha que vem sendo chamada de
análise cultural de classes, meu objetivo nesta pesquisa é apresentar quem é a fração
da cultural das classes médias paulistanas, qual sua posição e condição dentro da
estrutura de estratificação social, como ela se posiciona politicamente, qual seu estilo
de vida e como ela demarca suas fronteiras simbólicas. Permanece o intento inicial de
entender como posições políticas e estilos de vida se imbricam no atual contexto de
acirramento do conflito político no Brasil22, mas agora essa é uma preocupação
subordinada ao projeto mais amplo de entender quais as particularidades da fração
cultural das classes médias.
O texto está organizado em três capítulos. No primeiro, eu apresento quem é a
fração cultural das classes médias paulistanas do ponto de vista de sua posição e
condição particular na estrutura de estratificação social. No segundo, apresento seus
posicionamentos político, notadamente de esquerda. No terceiro, apresento seus
estilos de vida, o que permite perceber a preocupação dos membros da fração com a
cultural legitimada. Na conclusão, argumento sobre os efeitos do capital cultural
sobre as tomadas de posições dos agentes.
20
Detalhes sobre os pressupostos que basearam a construção do Questionário e do Roteiro de entrevistas são
apresentados ao longo da dissertação.
21
Detalhes aprofundados sobre o perfil dos entrevistados serão apresentados no item 1.4 Posições sociais e
condições de vida dos entrevistados. Encontram-se sintetizados também no Apêndice A. Entrevistados.
22
Sintetizado na seção 3.5 A política dos estilos de vida.
33
"horizontal" – separa, dentro de cada grande classe social, as frações de classe, com
base no tipo de capital predominante, se econômico ou cultural. Assim, as frações
culturais são os grupos internamente a cada grande classe social que possuem mais
volume de capital cultural que econômico, as frações econômicas são os grupos
dentro de cada grande classe que possuem mais capital econômico que cultural, e
entre as duas seria possível ainda identificar grupos com equilíbrio dos dois tipos de
capitais. Por fim, a terceira dimensão do espaço social, transversal a todas as classes e
frações de classe, é a que diferencia os grupos internamente a cada posição em função
da trajetória de acúmulo de seus capitais: se estão em ascensão (aumentando seu
volume de capitais em comparação com as gerações anteriores), declínio (perdendo
volume de capitais em comparação com as gerações anteriores) ou reprodução
(mantendo o volume de capitais em comparação com as gerações anteriores).
A proposta de um modelo analítico “tridimensional” para a construção da
estrutura de classes é resultado da crítica de Bourdieu ao que entende ser uma visão
redutiva da estrutura de desigualdades, mas também se baseia na hipótese de que as
três dimensões de diferenciação das posições sociais (classe, fração de classe e
trajetória de classe) marcam diferenças nas condições materiais de existência dos
agentes de forma relevante o suficiente para diferenciar seus habitus25, e com isso
suas construções identitárias e tomadas de posição. Assim, dentro de uma mesma
classe, as construções de identidade, as posições políticas e os estilos de vida variam
entre as frações de classe, e dentro de uma mesma fração de classe elas variam em
função das trajetórias de classe.
Além disso, só a partir da concepção das frações de classe como segmentos
diferenciados dentro de cada classe com base no tipo de capitais possuídos (e não,
como é mais comum, com base exclusivamente no volume de capitais, que daria
origem a camadas ou estratos: “classe média alta”, “classe média baixa” etc.) é que se
pode entender aquilo que o autor discute longamente no segundo capítulo de A
Distinção sob o título de estratégias de reconversão (Bourdieu, 2017, pp. 122-159).
Criticando uma ideia de "mobilidade social" que considera irreal e ingênua, Bourdieu
propõe que os deslocamentos no espaço social podem ser verticais (ascendente ou
descente dentro de um mesmo setor do espaço), ou transversais (passagens de um
setor para outro do espaço). Os deslocamentos verticais seriam mais comuns, pois
implicam apenas uma modificação no volume de capitais, ao passo que os
25
Sistema de disposição para práticas formado ao longo do processo de socialização. Ver Bourdieu (2013b).
38
transversais são mais incomuns por serem mais arriscados, na medida em que
implicam uma reconversão entre diferentes tipos de capitais, o que pode ameaçar o
volume de capitais que assegura a posição de classe no eixo “vertical” do espaço
social.
Ainda, o argumento a respeito das estratégias de reconversão, possível apenas
ao se conceber as frações de classe com base em diferenças na composição dos
capitais, desdobra-se permitindo que se investigue a luta pela definição da taxa de
conversibilidade entre os diferentes tipos de capitais. Isso significa entender que
além da luta entre as classes, há uma luta interna aos diferentes setores no eixo
“horizontal” do espaço social – ou seja, entre as frações de classe – em que se disputa
a definição de qual o capital dominante, qual o capital mais valioso, se o econômico
ou o cultural, bem como quais são as possibilidades e mecanismos de conversão de
um tipo de capital em outro.
Desta forma, o modelo da análise cultural de classes coloca no centro de sua
proposta explicativa a relação entre (1) as posições estruturais dos agentes num
espaço relacional de distribuição de capitais, (2) a formação de coletividades sociais
subjetivamente significativas e (3) as tomadas de posições dos agentes, e para
explicar essa relação o modelo se baseia na hipótese de que um dos principais fatores
de estruturação é a diferenciação dos agentes entre aqueles que possuem,
relativamente aos demais, mais capital econômico que cultural e aqueles que
possuem mais capital cultural que econômico.
dominada: por mais que internamente aos campos cujas disputas são pautadas pelo
capital cultural (aqueles em que lutam os membros das frações culturais: acadêmicos,
intelectuais, artistas, religiosos, cientistas etc.) o capital econômico seja relativamente
menos efetivo, ele tende a ser mais efetivo quando se observa o espaço social como
um todo, ou seja, há uma possibilidade maior de que a estrutura de um campo
pautado pelo capital cultural seja impactada pela ação do capital econômico do que o
oposto, o que aponta para a própria dominância do capital econômico sobre o
cultural e, da mesma forma, das frações econômicas sobre as culturais. Uma prova
rápida disso apresentada em A Distinção se encontra quando Bourdieu mostra que as
frações econômicas apresentam condições mais fáceis de reprodução social do que as
culturais, uma vez que a transmissão do capital econômico entre diferentes gerações é
menos dependente do sistema de ensino do que a do capital cultural, o que permite
que a transmissão direta dos capitais entre as gerações não seja tão marcada por
intermediações externas (Bourdieu, 2017, pp. 111-112).
A compreensão dessa relação desigual entre os campos econômico e cultural
adiciona, portanto, mais uma característica para a diferenciação das frações
econômicas e culturais do espaço social. Além da posse privilegiada do conjunto de
recursos que indicam o domínio da cultura legitimada (o capital cultural), os agentes
em posições culturais do espaço social valorizam de maneira destacada o capital
cultural como critério demarcador de hierarquias de prestígio, bem como precisam
denegar cotidianamente o capital econômico e a pressão da lógica econômica sobre
seus espaços de atuação e circulação, o que determina sensivelmente suas
construções identitária e suas tomadas de posição.
demonstra, a equipe não tinha dados para comprovar a existência das frações, mas
postulou sua existência com base nas diferenças de tomadas de posições28.
Contudo, se na pesquisa de A Distinção a equipe conseguiu provar que existia
uma diferença consistente de distribuição dos tipos de capitais entre os diferentes
grupos ocupacionais a partir dos quais a análise foi realizada 29, vem sendo um
problema de operacionalização comum em pesquisas contemporâneas baseadas no
modelo bourdieusiano de análise do espaço social a definição dos indicadores mais
adequados para medir os diferentes tipos de capitais. Um bom exemplo desse
problema e uma proposta de solução podem ser encontrado na pesquisa de Will
Atkinson sobre a estrutura de classes do Reino Unido.
Em Class in the New Millennium (Atkinson, 2017), o autor partiu de dados
agregados sobre os grupos ocupacionais e usou um conjunto de dados secundários
para construir o espaço social britânico: renda, patrimônio e herança para medir
capital econômico, nível de escolaridade do indivíduo e de sua mãe para medir capital
cultural, proximidade com pessoas em posições de poder para medir capital social.
Não fez muito diferente do que fez a equipe de A Distinção, portanto. O problema
para a análise das frações de classe, como já adiantei, é que medir o volume de capital
cultural com base exclusivamente nos diplomas (do indivíduo ou de seus familiares) é
demasiado redutivo, uma vez que ele indica apenas a forma institucionalizada do
capital cultural. Construindo as frações de classe dessa forma, é possível identificar
nas frações culturais os intelectuais, cientistas e professores – grupos que têm na
forma institucionalizada do capital cultural um capital simbólico particularmente
operativo em seus campos de atuação. No entanto, medindo o capital cultural
exclusivamente a partir dos diplomas, grupos como o dos artistas e produtores
culturais não parecem ter mais capital cultural do que alguns grupos que, se
observarmos suas tomadas de posição (políticas e de estilos de vida), fariam parte da
fração econômica (gerentes de empresa com pós-graduação, por exemplo). O ponto é
que, como argumenta Atkinson, os artistas e produtores culturais, assim como os
28
Monique de Saint Martin (2015), que fez parte da equipe de A Distinção, dá alguns detalhes sobre os
procedimentos de categorização dos dados do INSEE (Institut national de la statistique et des études
économiques) feitos pela equipe para diferenciar as frações de classe. Ainda assim, lendo A Distinção, eu tenho
a mesma impressão exposta por Brisson e Bianchi (2017), que afirmam que faltam explicações sobre a relação
entre categorias oficiais/previamente definidas e categorias post-hoc/criadas pelos pesquisadores na descrição
dos procedimentos de pesquisa.
29
Mais especificamente, identificaram uma distribuição quiástica dos tipos de capitais entre as frações da
classe média e da dominante, ou seja, na medida em que cresce o capital cultural de uma fração, diminui seu
capital econômico, e vice versa.
46
30
"Cultural producers/mediators – artists, writers, musicians and curators, or, in other words, members of the
fields of cultural production and mediation, to whom the same caveat on internal dispersion just registered
applies – form the second subcategory [da fração cultural da classe dominante]. They also possess very high
levels of cultural capital compared to their middling economic capital, though not necessarily institutionalised
in the easily measurable form of credentials, as for the intellectuals, so much as embodied as symbolic mastery
and objectifed in the form of cultural works" (Atkinson, 2017, pp. 17-18). Note-se que o autor não apresenta a
distribuição dos indicadores de capitais desagregados ao nível dos grupos profissionais, apenas no nível mais
agregado chamado de fração cultural dominante.
47
31
Aliás, o tema recorrente na literatura a respeito da inflação dos diplomas em contextos de generalização do
acesso ao ensino superior fala claramente sobre a perda de potencial dos diplomas de funcionar como
indicador de capital cultural, não da perda de importância do capital cultural em si.
32
Mais precisamente, a autora dividiu seus entrevistados em 4 agregados ocupacionais: primeiro, ela separou
um grupo com ocupações diretamente envolvidas na produção e distribuição capitalista, ou seja, nos
mecanismos institucionais de produção de lucro (donos de empresas, gerentes, vendedores e tecnologia
aplicada) de um com ocupações que não são diretamente envolvidas nesses mecanismos (ocupações da mídia,
academia, artes etc.). Então, subdividiu esses grupos com base nos setores de atividades, daqueles mais
dependentes do lucro àqueles menos dependentes do lucro (ou seja, no limite, está o setor público). Desta
maneira, produziu 4 grupos organizados num espectro crescente de dependência da, e utilidade para a,
geração de lucro: Grupo 1. especialistas culturais e sociais assalariados trabalhando no setor público ou sem
fins lucrativos, tendo assim baixa dependência e instrumentalidade para a geração de lucro: religiosos, artistas,
políticos, educadores, ocupações sociais, científicas e do serviço público. Grupo 2. especialistas culturais e
sociais do setor privado e com fins lucrativos: cientistas trabalhando para o setor privado, bancários e
contadores trabalhando para o Estado, jornalistas do setor privado, dentistas autoempregados, psicólogos
clínicos etc. Grupo 3. trabalhadores com fins lucrativos assalariados no setor privado: engenheiros, contadores,
advogados corporativos, atuários, banqueiros de investimento, gerentes de fábrica. Grupo 4. trabalhadores
orientados para o lucro autoempregados e profissionais autoempregados: advogados, corretores de imóveis,
48
arquitetos, conselheiros financeiros, vendedores. Para mais detalhes, ver Lamont (1992), cap. 6: The nature of
internal class boundaries.
33
Especificamente, da cidade de Stavanger.
49
identitária dos membros de cada uma das frações da classe média que entrevistou é
direcionado justamente para traçar uma fronteira simbólica que os separe da fração
oposta.
34
Esses exemplos são formulados de forma interessada pois versam sobre os grupos ocupacionais dos
membros de minha amostra, mas são hipotéticos: a estrutura de cada campo, subcampo ou círculo social deve
ser captada empiricamente. O objetivo aqui é apenas explicitar que a definição que construo é a de um
espectro.
51
Também não pretendo fazer aqui uma grande revisão teórica sobre o tema das
classes médias, apenas identificar alguns temas-chave a respeito de sua condição e
posição na estrutura social brasileira. Há boas revisões sobre o tema em Salata
(2016), Cardoso e Préteceille (2021) e Leal (2022). É interessante notar, no entanto,
como observam Adalberto Cardoso e Edmond Préteceille, que boa parte dos
trabalhos sobre classes médias no Brasil e no mundo continua sendo pautada por
temas colocados por Charles Wright Mills em A Nova Classe Média (Mills, 1969
[1951]):
35
Ver o capítulo 2 de Leal (2022), em particular as pp. 67-93.
53
36
Os modelos mais famosos são o proposto por Erik Olin Wright e o proposto por John Goldthorpe e seus
colaboradores. Ver Bertoncelo (2009) para explicação pormenorizada.
37
Mais que apenas uma impressão, a potencia do modelo de Cardoso e Préteceille é evidenciada pelo trabalho
comparativo de Lucas Page Pereira (2021). O autor construiu o espaço social do Brasil com base numa série de
dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e comparou diversos modelos dedutivos de
construção da estrutura de classes brasileira em termos de sua adequação para captar a diversidade de
posições do espaço construído indutivamente. Com isso, mostrou que o modelo de Cardoso e Préteceille, junto
com o proposto por José Alcides Figueiredo Santos (2015), são os que captam uma diversidade maior de
posições no espaço social.
55
38
O modelo dos autores é, na verdade, uma adaptação para o Brasil das Categorias Socioprofissionais
(catégories socioprofessionnelles) francesas. Os autores fazem uma explicação pormenorizada da adaptação no
livro.
39
Esse dado é retirado da PNAD de 2014.
56
indivíduos de posição social superior fossem sendo cada vez mais alcançados por
indivíduos de posições mais baixas40.
Analisando o caso específico da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)
com base nessa definição, Cardoso e Préteceille mostram que as classes médias
cresceram de 35% em 2002 para 40% da estrutura de classes em 2014. Houve, no
período, um aumento mais acentuado da alta classe média na RMSP que em outras
Regiões Metropolitanas do Brasil (de 7,7% para 11,8%), crescimento significativo de
profissionais administrativos e comerciais de empresas, engenheiros e técnicos de
nível superior das empresas e de profissões intermediárias da saúde e trabalho social.
No que interessa em particular para minha investigação a respeito da divisão entre
frações de classe econômica e cultural, Cardoso e Préteceille mostram que na RMSP,
em 2014, os professores de ensino superior e profissionais da atividade científica,
profissionais da saúde e do trabalho social, profissionais da informação, artes e
espetáculos, professores de ensino fundamental, médio e instrutores – grupos
ocupacionais que eu acredito que indicam previamente a fração cultural das classes
médias, tendo em vista a maestria simbólica que implicam para sua performance –
eram cerca de 10,6% dos ocupados na RMSP (Cardoso; Préteceille, 2021, pp. 63-64),
o que aponta para o caráter quantitativamente minoritário da fração cultural das
classes médias na região41.
Note-se que nada até aqui, nem nas características identificadas na revisão
bibliográfica de Jana Leal nem no modelo proposto por Cardoso e Préteceille, dá
conta de entender uma divisão da classe média em frações como as que proponho
nesta dissertação. Cardoso e Préteceille, inclusive, se mostram céticos com a
existência de frações de classe no Brasil nos moldes daquelas descritas por Bourdieu
para o caso francês, por dois motivos:
40
Ela utilizou dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF).
41
Os clérigos e religiosos também deveriam ser inseridos na soma por conta da especificidade de sua maestria
simbólica, mas a porcentagem de sua presença não é discriminada pelos autores. Pelo mesmo motivo, os
engenheiros também deveriam ser diferenciados dos altos cargos comerciais e administrativos das empresas.
57
42
Bairro; gênero; idade; ocupação; empresa; situação trabalhista; filhos e idade dos filhos; escolaridade;
universidade que cursou; curso realizado; pais tiveram acesso ao ensino superior? Você é o único da sua
residência com ensino superior completo? Você é/ou foi cotista? Você é ou foi bolsista Fies? Você frequentou
durante infância/ adolescência algum programa de acesso à cultura de Ongs, prefeitura (Ceus) ou outra
60
instituição? Qual? Seus filhos abandonaram a escola ou não estão nas seriações adequadas à idade? Seus filhos
frequentam algum programa de acesso à cultura de Ongs, prefeitura (Ceus) ou outra instituição? Qual? Renda
familiar; Número de moradores; Renda per capita; Raça / cor; Identidade de gênero; Orientação sexual. Para
detalhes sobre a construção dos grupos focais, ver Mira; Castro; Michetti (2023) e Bertoncelo; Netto (2023).
61
Assim como Bertoncelo em seu artigo, com essa estrutura de diferenciação das
classes a equipe conseguiu captar uma série de padrões de tomadas de posições
culturais que unificam as frações de classe internamente e as separam mutuamente.
Notadamente, as tomadas de posição em termos de gostos e práticas culturais dos
membros das frações culturais sempre são orientadas por estratégias de cultivo
cultural (consumo mais especializado, sério e engajado, maior domínio de nomes e
variabilidade estilística, atenção maior aos especialistas e intermediários culturais),
recusa do que entendem como padronizado, valorização do "autêntico" e do
"alternativo" e denegação do valor econômico (bem exemplificada pela recusa aos
shopping centers), enquanto os membros das frações econômicas expressam uma
relação com a cultura marcada por ideias de entretenimento e diversão, além de
fazerem julgamentos sobre a cultura mais baseados em preceitos morais que
estéticos.
Os resultados dos grupos focais serão explorados com mais minúcia no
terceiro capítulo, quando eu estiver tratando dos estilos de vida da fração cultural das
classes médias paulistanas, mas já servem para adiantar que os indícios que me
ajudam a sustentar meu argumento a respeito das frações econômica e cultural se
encontram mais em pesquisas voltadas para a análise das tomadas de posições,
sobretudo as que tratam de estilos de vida e posicionamentos políticos. Nessas
pesquisas é possível encontrar diferenças consistentes de tomadas de posição entre
agentes que experimentam as mesmas condições materiais de existência e
oportunidades de vida – portanto, que se encontram na mesma classe social – e que,
eu argumento, são mais bem explicadas pela diferença nos tipos de capitais possuídos
pelos agentes do que por qualquer outro fator.
Cabe relembrar ainda que meu recrutamento foi feito em duas etapas:
primeiro eu enviei a chamada de recrutamento e solicitei a circulação para contatos
pessoais (sobretudo colegas e professores da Universidade Estadual de Campinas) e
então, após os primeiros recrutamentos, eu fui rodando uma bola de neve para
ampliar a amostra. Se, por um lado, tal estratégia pode impor limites e vieses na
amostra, tendo em vista o ponto de partida da chamada de recrutamento, por outro,
eu fui capaz de montar uma população de pesquisa que cumpre adequadamente meu
critério ensejado de homogeneidade (todos fazem parte de grupos ocupacionais que
indicam previamente pertencimento a frações culturais do espaço social) e que,
internamente a este critério, apresenta considerável heterogeneidade de
características sociais, econômicas e demográficas, como mostrarei a seguir.
Na próxima seção, apresento uma caracterização detalhada de meus
entrevistados, descrevendo a diversidade de suas inserções profissionais,
propriedades econômicas, trajetórias e credenciais educacionais, estrutura familiar,
locais de moradia e origem de classe. Nessa caracterização, faço, desde já, indicações
sobre os efeitos de seu pertencimento de fração de classe sobre algumas de suas
tomadas de posição.
Quadro 1. Entrevistados
Pseudônimo Profissão
Adriano Músico
Alessandra Professora de educação básica
Alex Antropólogo
Daiane Assistente acadêmica e advogada
Débora Jornalista
Elaine Produtora de conteúdo para mídias sociais
Flávio Arquiteto
Guilherme Jornalista
Isabel Professora de educação básica e superior
Jorge* Professor e contador
Leandro Jornalista
Lucia* Professora
Luciano Músico
Manuel Jornalista
Marcio* Músico
Mário Médico
Marlene Assistente social
Rafaela Música e professora
Regina Professora de educação básica
Rita Gerente de assistência social
Roberto Músico e terapeuta holístico
Ronaldo Jornalista
Rosângela Assessora de comunicação e jornalista
Samuel Músico e professor
Sueli* Bióloga
Vanessa Assistente social e pedagoga desempregada
Vinicius Professor de educação básica
43
O bloco de questões de identificação social, demográfica e econômica ia da questão 65 a 86 do Questionário.
No Roteiro de entrevistas, ia da questão 1 a 7 e da 69 a 73.
44
Por isso também, há momentos do texto em que me refiro a minha amostra citando o número 23 (pois me
refiro a informações oriundas das entrevistas) e outros em que me refiro usando o número 27 (pois me refiro a
informações oriundas do questionário).
67
45
A lista toma como base o Censo de 2010. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_prenomes_mais_comuns_no_Brasil>, acessado em 27/06/2023.
68
46
Eu não perguntei se Mário, que é médico, trabalha no setor público ou privado, mas de qualquer forma ele
também está entre os grupos majoritários.
47
Rafaela, que marcou a opção "outra" para a questão sobre cor/raça no Questionário e escreveu: "Me
classificam como branca, mas sou uma mistura. Nunca gosto de responder isso em formulário".
70
No que tange seu capital econômico, quando comparados com o cenário atual
de desigualdades no Brasil, os integrantes de minha amostra estão majoritariamente
em estratos elevados de renda48: comparando com dados da PNAD de 2022, uma
entrevistada (Débora) se encaixa no estrato do 1% com renda mensal per capita mais
alta entre a população brasileira, dez (Guilherme, Mário, Alex, Elaine, Luciano,
Marcio*, Flávio, Isabel, Rosângela, Lucia*) no estrato dos 5% com renda mais alta,
seis (Adriano, Daiane, Manuel, Roberto, Jorge*, Vinicius) no estrato dos 10% com
renda mais alta, e cinco (Regina, Ronaldo, Samuel, Rafaela, Leandro) no estrato dos
20% com renda mais alta49. Ainda assim, a presença de uma parte de entrevistados
com faixa de renda mais baixa e com menor volume de propriedades financeiras
aponta para a heterogeneidade de condições econômicas da amostra, reforçando a
hipótese de que, a despeito de todos ocuparem posições profissionais que indicam
pertencimento a frações de classe culturais, a amostra é majoritariamente composta
por membros das posições intermediárias do espaço social, mas possui também,
provavelmente, uma parte de indivíduos pertencentes às posições inferiores
(provavelmente, o caso de Vanessa, talvez também o de Rita, Sueli*, Alessandra e
Marlene) e às superiores (possivelmente, o caso de Débora, Lucia* e Rosângela).
Quadro 3. Capital econômico dos entrevistados (em ordem crescente de renda familiar per
capita)
Renda Possui Possui
Faixa de renda
Pseudônimo Profissão familiar per Residência outra veículo
familiar
capita (R$) residência próprio
Assistente social e Entre R$1.213,00 e Casa própria
Vanessa 303,08 x Sim
pedagoga R$2.424,00 não quitada
48
No Questionário, eles marcavam a renda familiar mensal em faixas, que eu construí com base no salário
mínimo (na época, R$1.212,00). No entanto, para saber a renda per capita, eu tirei a média entre os dois
extremos das faixas de renda e dividi pelo número de pessoas que eles afirmaram, no questionário, que vivem
dessa renda, com exceção da faixa mais alta, que era de mais de R$36.360,00. Neste caso, dividi a extremidade
inferior pelo número de pessoas entre as quais a renda se divide. Os únicos casos aqui são Rosângela e Débora.
Apesar de permitir uma aproximação do que é a renda per capita dos entrevistados, cabe notar que esse
procedimento gera certa distorção pelo fato de que as faixas de renda disponibilizadas no questionários não
eram todas iguais (ver a questão 83 do Questionário). Agradeço ao professor Adalberto Cardoso por chamar a
atenção para este ponto.
49
De acordo com a PNAD (2022), o limite inferior do 1% com renda mais alta era de R$17.447,00, o dos 5% era
de R$6.882,00, o dos 10% era de R$3.901,00 e o dos 20% era de R$2.521,00.
71
desempregada
Gerente de Entre R$6.061,00 Casa própria
Rita 1136,31 Sim Sim
assistência social e R$12.120,00 quitada
Entre R$2.425,00 Apartamento
Sueli* Bióloga 1515,25 x x
e R$3.636,00 alugado
Apartamento
Professora de Entre R$3.637,00
Alessandra 1616,17 próprio não x x
educação básica e R$6.060,00
quitado
Entre R$3.637,00 Casa própria
Marlene Assistente social 1616,17 x x
e R$6.060,00 quitada
Professora de Entre R$6.061,00 Apartamento
Regina 3030,17 x x
educação básica e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Entre R$6.061,00
Ronaldo Jornalista 3030,17 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Apartamento
Entre R$2.425,00
Samuel Músico e professor 3030,50 próprio x x
e R$3.636,00
quitado
Entre R$18.181,00 Apartamento
Rafaela Música e professora 3535,08 x x
e R$24.240,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Leandro Jornalista 3787,63 x x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$6.061,00 Casa própria
Adriano Músico 4545,25 Sim Sim
e R$12.120,00 quitada
Assistente
Entre R$6.061,00
Daiane acadêmica e 4545,25 Casa alugada x Sim
e R$12.120,00
advogada
Entre R$6.061,00 Apartamento
Manuel Jornalista 4545,25 x Sim
e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Músico e terapeuta Entre R$6.061,00
Roberto 4545,25 próprio x Sim
holístico e R$12.120,00
quitado
Entre R$3.637,00
Jorge* Professor e contador 4848,50 Casa alugada x Sim
e R$6.060,00
Professor de Entre R$3.637,00
Vinicius 4848,50 Casa alugada x x
educação básica e R$6.060,00
Apartamento
Entre R$18.181,00
Guilherme Jornalista 7070,17 próprio não x x
e R$24.240,00
quitado
Apartamento
Entre R$18.181,00
Mário Médico 7070,17 próprio Sim Sim
e R$24.240,00
quitado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Alex Antropólogo 7575,25 x Sim
e R$18.180,00 alugado
Produtora de
Entre R$12.121,00 Apartamento
Elaine conteúdo para 7575,25 x x
e R$18.180,00 alugado
mídias sociais
Entre R$12.121,00 Apartamento
Luciano Músico 7575,25 Sim x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Marcio* Músico 7575,25 x x
e R$18.180,00 cedido
Apartamento
Entre R$6.061,00
Flávio Arquiteto 9090,50 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Professora de Apartamento
Entre R$18.181,00
Isabel educação básica e 10605,25 próprio não x Sim
e R$24.240,00
superior quitado
Assessora de Apartamento
Mais de
Rosângela comunicação e 12120,00 próprio x Sim
R$36.360,00
jornalista quitado
72
Apartamento
Entre R$24.241,00
Lucia* Professora 15150,25 próprio não x Sim
e R$36.360,00
quitado
Apartamento
Mais de
Débora Jornalista 18180,00 próprio x Sim
R$36.360,00
quitado
Pseudônimo Escolaridade
Regina Graduação
Leandro Graduação
Adriano Graduação
Roberto Graduação
Elaine Graduação
Flávio Graduação
Débora Graduação
Manuel Graduação
Ronaldo Graduação
Rita Graduação
Vanessa Graduação (duas)
Mário Graduação; especialização
Marlene Graduação; Pós [não especificou]
73
50
Ver, por exemplo, Nogueira (1998, 2006), Costa (2008) e Alves (2010).
75
Rafaela, por exemplo, reclama de ter passado por escolas "coxinhas" no ensino
fundamental, tendo gostado mais da escola em que estudou no ensino médio, que era
mais de esquerda. Outros entrevistados também fizeram falas análogas, associando
com tom pejorativo as escolas particulares em que estudaram a elite econômica e a
posições morais conservadoras (Daiane, Débora, Flávio). São exemplos de uma
interpretação da parte privada do sistema de ensino básico que o lê a partir de uma
divisão entre escolas tradicionais e escolas alternativas, sendo as segundas
constituídas com base numa crítica as primeiras, lidas como conteudistas e
disciplinadoras, ao passo que as alternativas valorizariam mais ideias de democracia,
autonomia, liberdade de escolha e metodologias mais orientadas para "aprender a
aprender" que para decorar conteúdos predefinidos (Razera, 2018). Trata-se de uma
divisão entre modelos organizacionais e pedagógicos que reflete as necessidades
diferenciadas de formação das novas gerações entre diferentes tipos de famílias, que
necessitam, por sua vez, de instituições que promovam diferentes tipos de relação
com a cultura legitimada para a reprodução de seus capitais51.
Para entender com mais cuidado as condições imediatas de vida dos
entrevistados, tanto no que tange suas fontes de capitais quanto no que se refere ao
contexto de referencias culturais imediatas que eles têm em ambiente doméstico, é
importante saber os níveis de escolaridade e as ocupações dos companheiros e
companheiras daqueles que são casados ou estão em relacionamento estável. Entre
estes, apenas Regina e Vanessa estão em relacionamento com alguém que não tem
diploma de ensino superior (e ambas disseram na entrevista que seus companheiros
estão cursando ensino superior atualmente, então este cenário deve mudar no futuro
próximo). Entre os demais, com apenas uma exceção52, todos estão em
relacionamentos com pessoas formadas também em áreas típicas da fração cultural
(psicologia, arquitetura, jornalismo, direito, biologia).
51
É o que mostra Ana Maria Almeida (1999) estudando diferentes tipos de escolas das elites paulistanas. Cabe
notar ainda, como destaca Karen Razera (2018, p. 23), que as escolas alternativas surgiram em peso no Brasil a
partir da década de 1960, estimuladas por movimentos de contestação contracultural e opondo-se ao modelo
escolar imposto pelo Regime Militar. Surgem, portanto, a partir de setores associados à esquerda política.
52
Débora, cujo marido é formado em administração de empresas.
76
53
Alta, média ou popular, construídas da forma como descrito no item 1.2 Classes médias no Brasil. Dados da
PNAD. Ver Cardoso e Préteceille (2021), capítulo III: Condições de vida.
54
Desenvolvo melhor a informação sobre os círculos de amizade de meus entrevistados no capítulo 3, mas eles
provém sobremaneira da universidade e dos ambientes de trabalho.
78
55
Carolina Pulici (2010, p. 32) sugere que a divisão social da apropriação urbana de São Paulo pelas classes
médias e dominantes relaciona-se também à trajetória de acúmulo de capitais: "Ainda que não se possa falar
numa homologia inequívoca entre o sistema de posições sociais e o espaço geográfico da cidade de São Paulo,
79
pode-se deduzir, com alguma segurança, que lugares como Jardim Europa, Jardim América, Jardim Paulistano,
Jardim Paulista, Cidade Jardim e Alto de Pinheiros concentram parte de uma ‘burguesia’ paulistana mais antiga,
da mesma forma que alguns residenciais de Alphaville constituem lugares emblemáticos de grupos que
ascenderam economicamente de forma tardia".
56
Ver Bourdieu (2008, pp. 38-39). Mas cabe remeter também à análise de Bill Bishop (2008) sobre os Estados
Unido em que o autor mostra a crescente separação dos condados do país em termos de estilos de vida e
posicionamentos políticos. Apresentarei melhor os resultados de Bishop no capítulo 3.
57
Andrew Sayer (2005, pp. 185-186) lembra ainda que a segregação socio-espacial é funcional para a
convivência em sociedades estratificadas na medida em que "makes living in a class society more bearable not
only because it hides material inequalities and symbolic violence but because it facilitates sharing of internal
goods (which tend to be class-differentiated too) and provides scope for recognition of worth among equals".
Isso é particularmente importante para essa classe média que, como mostrarei no capítulo 2, tem posições
políticas coerentemente de esquerda e que constrói sua identidade de fração de classe parcialmente com base
no valor moral que encontra ao representar a si própria como o grupo que se preocupa com o problema da
desigualdade econômica que caracteriza o Brasil.
80
de famílias em que o diploma superior é o mais alto e dois vêm de famílias em que
havia um familiar com diploma de pós-graduação.
responsáveis
Nenhum
Manuel (jornalista) Graduação Subiu 3 posições
diploma
Vinicius (professor de Nenhum
Doutorado Subiu 5 posições
educação básica) diploma
Vanessa (assistente social e
Fundamental Graduação Subiu 2 posições
pedagoga desempregada)
Guilherme (jornalista) Fundamental Mestrado Subiu 3 posições
Regina (professora de
Médio Graduação Subiu 1 posições
educação básica)
Marlene (assistente social) Médio Pós-graduação Subiu 2 posições
Adriano (músico) Subiu 1 posição
Ronaldo (jornalista) Técnico Graduação Subiu 1 posição
Rita (gerente de assistência
Subiu 1 posição
social)
Débora (jornalista)
Leandro (jornalista)
Elaine (produtora de conteúdo
para mídias sociais) Mantiveram a
Graduação Graduação
Flávio (arquiteto) posição
Roberto (músico e terapeuta
holístico)
Mário (médico)
Alessandra (professora de
Doutorado Mestrado Caiu 1 posição
educação básica)
Samuel (músico e professor) Doutorado Doutorado Manteve a posição
58
Claro, o mesmo vale para vários outros, que ainda podem adquirir mais diplomas no futuro. São limitações
da análise sincrônica.
82
ocorreu no Brasil nas últimas décadas costumam vir acompanhados de uma inflação
dos diplomas, ou seja, eles passam a "valer menos"59. Como mostra André Salata
(2022, pp. 13-14), é este, de fato, o cenário pelo qual o Brasil vem passando: a
despeito da expansão do sistema de ensino, as desvantagens atreladas à classe de
origem permanecem pouco alteradas, o que faz com que as novas gerações tenham
que acumular cada vez mais anos de estudos para manter a mesma posição social de
seus pais. Assim, as "subidas" e "descidas" de posição no quadro acima se referem
mais à quantidade de anos de estudos do que, propriamente, à posição dos agentes na
hierarquia de distribuição de capital escolar.
Para ter um indicativo, ainda que superficial, da classe social de origem,
organizei no quadro abaixo as ocupações dos membros das duas gerações anteriores
das famílias dos entrevistados, comparando-as com as deles próprios. Eu os separei
em quatro grupos com base numa ordem simplificada da classe dos membros das
gerações anteriores de suas famílias:
2. Débora, Leandro, Regina e Ronaldo vêm de famílias em que a geração das avós e
avôs era, provavelmente, de classe popular, mas a dos pais era provavelmente
de classe média. Nos quatro casos havia em ambiente familiar pelo menos um
membro pertencentes a um grupo ocupacional típico de frações culturais.
Portanto, eles reproduzem posição social em termos de classe e também de
fração de classe;
3. Rafaela, Daiane, Alex, Luciano, Mário, Elaine e Rosângela vêm de famílias com
membros que já faziam parte das classes médias há pelo menos duas gerações, e
na geração de seus pais havia pelo menos um membro pertencente à fração
59
Ver pp. 122-159 de Bourdieu (2017) para o tema.
60
Um dos avôs de Manuel chegou a ser proprietário de um restaurante, mas o empreendimento faliu.
61
Digo provavelmente pois, para uma caracterização adequada, seria necessário tanto um conjunto maior de
informações sobre seus familiares quanto uma reconstrução do espaço social em que se encontravam seus
familiares durante seu período de vida, o que não é possível fazer aqui.
83
cultural das classes médias. Assim, eles têm uma origem um pouco mais elevada
que os membros do grupo anterior, e, assim como o grupo anterior, também
estão reproduzindo a posição de classe e de fração62;
4. Samuel, Alessandra, Isabel, Flávio e Roberto vêm de famílias que parecem ter
estruturas semelhantes às do grupo anterior, porém em posições um pouco mais
elevadas do espaço social. Provavelmente, já havia membros de classe média
desde a geração das avós e avôs, e a geração de seus pais estava, provavelmente,
entre as classes médias e superiores (tendo em vista a docência no ensino
superior e a propriedade de empresas de maior porte). Samuel, Alessandra e
Isabel reproduziram a posição em termos de classe e fração de classe. Roberto
reproduziu a posição de classe mas fez um deslocamento transversal no espaço
social. O pai Flávio era formado em medicina mas proprietário de um hospital,
portanto exercia profissões que indicam frações de classe diferentes .
62
A despeito de Leandro, que eu inseri no grupo anterior, e Alex, que eu inseri neste, não terem me informado
a profissão de nenhum membro da geração de seus avôs e avós, eu os separei por conta do nível de formação:
Alex tem avôs e avós que completaram ensino superior ou magistério, o que não ocorre no caso de Leandro
84
A falência recente foi, inclusive, o fator decisivo para que Roberto, que é
músico e formado em música, passasse a exercer profissionalmente o trabalho que
realiza hoje, como terapeuta holístico e facilitador de autoconhecimento a partir de
cavalos, que até então era apenas um interesse descompromissado da necessidade de
retorno financeiro.
A escolha pelas carreiras profissionais típicas das frações culturais também são
marcadas por constrangimentos diferentes de acordo com a classe social de origem.
Para os que vieram de posições mais baixas no espaço social, alguns relatos indicam a
necessidade de que as áreas de formação apontassem previamente para alguma
garantia de seguridade material. Adriano, por exemplo, entrou em contato com a
música na infância, por meio de um projeto social oferecido pela empresa em que o
pai (que era eletricista e, depois, chefe de manutenção) trabalhava, mas só decidiu
seguir formação na área quando passou a receber uma bolsa para estudar.
reais, e eu nunca tinha ganhado mil reais na minha vida [risos], tá ligado? E
eu já tocava em orquestra jovem, tocava na orquestra infantil de Guarulhos,
tocava na orquestra do projeto social, que também dava uma ajudinha de
custo. Só que isso aí tudo dava, sei lá, nem quinhentos reais por mês,
entendeu? Com 17 para 18 anos. Então, era muito difícil, e aí eu tinha que
ajudar minha família, então não sobrava dinheiro nenhum. Era uma vida de
cão, mesmo. Aí eu consegui entrar na Academia e foi onde mudou tudo.
Roberto: Foi uma decisão que teve a oportunidade de contar com o apoio e
com... ausência de conflitos familiares. E eu diria que foi uma decisão fácil
até, no sentido de que eu não conseguia me ver fazendo outra coisa, me
parecia muito natural fazer isso. Não sei nem se foi propriamente uma
escolha ou talvez quase que uma falta de escolha. Porque parecia não ter
outra coisa mesmo pra fazer, então [risos], então vamos por aqui. E foi um
mergulho profundo. Porque música é uma daquelas áreas em que a gente
mergulha nela muito antes de chegar na graduação. Então, acho que foi isso.
jornalistas e dos que seguiram a carreira docente e/ou acadêmica apareceu a ideia de
que algum professor notou que eles "escreviam bem" ou que “eram de humanas”
durante o ensino básico, o que estimulou sua inclinação para cursos superiores
típicos das frações culturais. Ainda assim, a origem na base e a origem no topo do
espaço social exerce efeito. Tal como no exemplo de Roberto, e em oposição ao de
Adriano, Rosângela, que estudou jornalismo, também teve a condição de decidir por
sua área de formação superior com grande desprendimento de necessidades
materiais:
64
VIEIRA (2022), em que analisei as classes sociais e os estilos de vida de estudantes da Universidade Estadual
de Campinas.
91
desenvolvido por aqueles que não sentem tão fortemente a pressão das necessidades
econômicas.
1.5 Síntese
segurança adicional para ocupar a posição que ocupa no espaço social, na medida em
que funciona como atestado do mérito a partir do qual justifica sua posição social.
Por outro lado, para a fração cultural das classes médias aqui se encontra um
problema considerável. Seu esforço de construção de identidade, adequado à posição
dominada que ocupa no espaço social, passa precisamente pela negação do
imperativo econômico, e portanto ser confundida com a elite econômica é bastante
arriscado. E o problema torna-se ainda maior na medida em que essa representação
que aproxima as classes médias das classes dominantes vem acompanhada, na maior
parte das vezes, de uma identificação com posições políticas conservadoras.
É por conta desses riscos simbólicos que marcam a posição que ocupam
diante de uma representação hegemônica com a qual não se reconhecem que uma
parte substantiva do esforço explícito de construção identitária da fração cultural das
classes médias é orientado precisamente para criticar a "classe média"; não a
sociológica, mas a do senso comum. Atacar a "classe média", seu elitismo,
conservadorismo e demofobia, é uma estratégia (não necessariamente reflexiva)
adequada estruturalmente às posições culturais da classe média, pois é uma forma de
traçar com clareza uma fronteira contra a fração econômica de forma a colocá-la
numa posição de inferioridade moral, valorizando, com isso, no plano valorativo, as
posições que são estruturalmente dominadas. Os exemplos de críticas mordazes à
"classe média" partindo de agentes localizados na fração cultural das classes médias
são abundantes, mas poucos foram tão emblemáticos quanto o discurso exaltado feito
pela filósofa Marilena Chauí num debate sobre a "ascensão conservadora", realizado
em 2012 na USP e com a presença de Lula no palco ao lado da intelectual:
O trecho se tornou viral nas mídias sociais ao longo da última década. Nos
círculos de esquerda, foi compartilhado de maneira apologética por sintetizar com
clareza os defeitos morais da "classe média". Nos de direita, tornou-se um exemplo
65
O vídeo está disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=fdDCBC4DwDg&ab_channel=Fayvit>,
acessado em 29/01/2024. Gustavo Firmino (2023) também se lembrou deste vídeo em sua tese sobre classes
médias no Brasil
95
do ódio alimentado pela esquerda à "classe média". De qualquer forma, pelo conflito
de interpretações que viceja, a fala de Chauí – figura com capital simbólico volumoso
o suficiente para que ocupe posições dominantes no campo acadêmico, científico e
intelectual, e com isso nas frações culturais do espaço social como um todo – é um
emblema do quanto as tomadas de posições políticas de esquerda se adequam e, com
isso, identificam fortemente a fração cultural das classes médias66.
Ao longo deste capítulo discutirei precisamente como a fração cultural das
classes médias paulistanas se posiciona politicamente. Após revisão da literatura
sobre (2.1) classes médias e política no Brasil e sobre (2.2) a relação entre as frações
culturais e a esquerda política, apresentarei (2.3) meus pressupostos teóricos e
empíricos para o estudo de posicionamentos políticos, e então (2.4) os dados
quantitativos e qualitativos que produzi sobre os posicionamentos políticos de meus
entrevistados, evidenciando a forte e coerente aderência desses agentes às posições
políticas de esquerda. Após descrever os dados, oferecerei uma explicação estrutural e
uma explicação processual para mostrar tanto que os posicionamentos políticos de
esquerda são estruturalmente adequados às posições culturais do espaço social,
quanto que o processo de incorporação dos agentes às posições culturais é, com raras
exceções, um processo também de associação a repertórios políticos de esquerda.
Com isso, o argumento fundamental que procuro construir e sustentar ao longo deste
capítulo é o de que as posições políticas de esquerda são um dos mais importantes
critérios de demarcação de fronteiras simbólicas de pertencimento coletivo para os
membros da fração cultural das classes médias paulistanas.
66
E a fala de Chauí não é relevante apenas como emblema, mas também porque, na medida em que a filósofa
ocupa uma posição dominante, é também uma tomada de posição com alto poder de influência sobre os
agentes que ocupam posições culturais no espaço social, auxiliando, desta forma, na reprodução da relação
entre as posições sociais e as tomadas de posições políticas.
96
1935) e sobre a importância das classes médias para a estabilidades das democracias
(Lipset, 1959). Cardoso lembra também da centralidade de partes das classes médias
– sobretudo a juventude e a parte mais intelectualizada – para a revolução cultural
dos anos 1960 (Gorz, 1973) e para os "novos movimentos sociais" (Touraine, 1969). A
aproximações dessas partes das classes médias com repertórios da esquerda foi
marcante o suficiente ao longo do século XX para que Klaus Eder (2001) propusesse a
interpretação de que diversos movimentos sociais de esquerda (feminista,
ambientalista, antirracista etc.) funcionam como mecanismos de produção de
identidade para membros das classes médias.
Pelo lado da direita, por sua vez, há diversas leituras a respeito do
conservadorismo das classes médias baseado em seu esforço de aproximação das
classes altas e, sobretudo, de seu medo da proletarização e desclassificação social.
Speier (1934), por exemplo, analisando o contexto da Alemanha do entreguerras,
argumentou que as características estruturais que separavam as classes médias das
classes populares e as aproximavam das altas (posições de autoridade no trabalho e
maior nível educacional), junto de seu maior sentimento nacionalista, as inclinou
para o apoio ao Partido Nazista.
Já Wright Mills (1969), em seu trabalho clássico sobre as classes médias,
argumenta a respeito de sua passividade política. Em sua leitura, os membros da
nova classe média não teriam motivo para defender de partida nenhum projeto
político próprio (diferente da classe trabalhadora e da burguesia), e por isso estariam
dispostos a aderir a qualquer projeto político que aparente ter mais chances de
vencer. Em sentido próximo, Marcuse (1964) também argumentou que as classes
médias não têm condições de desenvolver consciência de classe nem um projeto
político próprio, sendo mais provável sua adesão ao capitalismo "unidimensional",
nas palavras de Cardoso (2020, p. 49): "uma sociedade de classe média dominada
pela ciência, pela técnica e pela razão instrumental, militarizada, marcada pela
prosperidade geral e pelo consumismo individualizado".
No caso brasileiro, a despeito das visões simplistas que se encontra no senso
comum, a literatura especializada a respeito da relação entre classes médias e política
é clara ao mostrar como o amplo conjunto de posições sociais intermediárias do
espaço social apresenta heterogeneidade de posicionamentos políticos. Tanto no
trabalho clássico de Décio Saes Classe média e sistema político no Brasil (1985),
quanto no recente Classes médias e política no Brasil: 1922-2016 (2020), de
97
67
Fundamental destacar que, por mais que suas análises tenham muitos pontos de semelhança e que, em
grandes linhas, tratem do mesmo conjunto de agentes, as definições de classe média dos dois autores são
diferentes. Já descrevi a de Cardoso no capítulo 1, baseada na identificação dos grupos profissionais que se
diferenciam das classes populares e das superiores por sua posição na divisão do trabalho, seu nível de
qualificação, sua escolaridade e renda. Para Saes, trabalhando no referencial marxista, as classes médias são
compostas pelos trabalhadores, assalariados ou não, que desempenham trabalhos não-produtivos (ou
indiretamente produtivos) e que se autorrepresentam ideologicamente como "não-manuais", em oposição ao
conjunto dos trabalhadores “manuais” (operários, pequenos camponeses e artesãos, trabalhadores da massa
marginal etc.) (Saes, 1985, 2005).
98
maneira mais coesa que a de esquerda, organizando sua visão de mundo em torno
dos temas do anticomunismo, antipetismo e crítica à corrupção.
O fundamental é que, para Cardoso, a dinâmica política iniciada em 2013 no
Brasil deu condições para um processo de formação de classe: setores mutuamente
excludentes das classes médias se identificaram internamente na oposição com o
grupo oposto, construindo sistemas de signos organizados com base em projetos
políticos e visões de mundo opostos.
manuais) quanto era lido de maneira binária também o conflito político (esquerda x
direita, pensado fundamentalmente a partir do conflito econômico/distributivo). A
despeito do simplismo, o índice deu conta de mostrar adequadamente a existência de
altos níveis de voto de classe em diferentes países nos anos do pós-Segunda Guerra,
ainda que variando nacionalmente (Knutsen, 2007). O problema é que a partir da
década de 1960 os valores de voto de classe baseados no índice passaram a decrescer,
e com isso veio a reboque toda uma literatura que passou a desacreditar o papel da
classe como fator explicativo do comportamento político-eleitoral68.
Por sua vez, a revitalização da classe como fator explicativo do voto veio de
uma leitura mais complexa tanto da estrutura de classes quanto do conflito político.
O principal modelo de estrutura de classes mobilizado nas pesquisas passou a ser o
neoweberiano proposto por John Goldthorpe, Robert Erikson e Lucienne
Portocarrero, baseado na distribuição de recursos produtivos e nos tipos de contratos
(Breen, 2005). Já o conflito político passou a ser lido como tendo, além da dimensão
econômica/redistributiva, também uma dimensão cultural/valorativa. Aqui, sente-se
fortemente a influência dos trabalhos de Ronald Inglehart (1990), que propôs ainda
na década de 1970 que os conflitos políticos nas democracias ocidentais estariam
cada vez mais sendo marcados não apenas pela oposição entre diferentes modelos de
política econômica, mais ou menos estatista ou privatista (laissez-faire x
redistribuição pelo Estado), mas também pela oposição "cultural" entre
libertarianismo e autoritarismo (proteção da liberdade individual x manutenção da
ordem social). Para Inglehart, o conflito "cultural" estaria ganhando cada vez mais
espaço nas disputas políticas ao longo da segunda metade do século XX.
Com isso, autores como Houtman e Achterberg (2010) passaram a argumentar
que a relação entre classe e voto seria mais bem explicada por um modelo que
separasse "duas esquerdas" e "duas direitas", tendo em vista que os posicionamentos
políticos não seriam unidimensionais (assentados apenas na economia), mas sim
bidimensionais (econômicos e culturais/valorativos), e que fatores diferentes
inclinam os agentes para cada um desses polos do conflito político. Ao passo que
aquilo que os autores chamam, propriamente, de "voto de classe" se basearia nas
condições econômicas dos agentes e explicaria seus posicionamentos políticos na
68
Este é só um dos exemplos dos ataques que a teoria das classes sociais de maneira ampla sofreu na
sociologia ao longo da segunda metade do século XX por parte de autores que questionaram sua potência
enquanto fator explicativo das dinâmicas sociais. Há ampla literatura a respeito, mas talvez nenhuma defesa da
classe tenha sido tão contundente quanto a de Erik Olin Wright em Class counts (Olin Wright, 1997).
104
altas quanto as mais baixas têm essas disposições lastreadas no habitus típico de sua
classe, sendo que a disposição para interpretar o mundo social e participar da vida
pública, inclusive com inserção partidária e em movimentos sociais, se associa com
determinados tipos de estilos de vida.
Um esforço recente na análise cultural de classes de grande interesse para esta
dissertação é o que aparece nos artigos de Flemmen, Jarness e Rosenlund (2019;
2022). Preocupados também em entender a relação entre posições no espaço social e
tomadas de posições políticas (para o caso empírico da Noruega), os autores estão
discutindo diretamente com a teoria das "duas esquerdas" e "duas direitas", mas
constroem a classe com base em diferentes indicadores de capital econômico e
cultural70 e os posicionamentos políticos com base em diferentes questões
concernentes a economia e moral. Com isso, os autores criticam a relação puramente
bidimensional que relaciona, por um lado, classe de renda a posições sobre economia
e, por outro, nível de escolaridade a posições sobre moral, mostrando que a separação
não é tão estanque entre as diferentes dimensões do conflito político, que na verdade
se sobrepõem, e mostrando também que o efeito do capital econômico e do capital
cultural se sobrepõe em configurações determinadas. No caso norueguês, o primeiro
eixo do espaço das posições políticas (isso é, aquele que dá conta da maior variância
entre as diferentes variáveis71) sobrepõe opiniões sobre economia e sobre moral na
separação entre a esquerda e a direita, e o tipo de capital que caracteriza os agentes
(se mais econômico ou mais cultural) é um fator explicativo dessas oposições entre
esquerda e direita mais adequado que o volume total de capitais. Ou seja, fazer parte
das frações de classe culturais (isso é, possuir maior volume de capital cultural que
econômico) é a característica que apresenta mais forte homologia com ter posições
políticas estatistas e progressistas, e vice versa (frações econômicas em homologia
com posições privatistas e conservadoras). Assim, as frações de classe são fatores
explicativos da oposição entre direita e esquerda mais adequados do que a posição de
classe no eixo "vertical" (volume global de capitais).
Flemmen, Jarness e Rosenlund reconhecem que para além da oposição
fundamental entre direita e esquerda baseada no tipo de capitais há também
70
De capital econômico: renda total, posse ou aluguel de residência, depósitos bancários, poupança e
investimentos, valor da residência, posse de casa de férias, propriedades adicionais e número de carros. De
capital cultural incorporado: nível de escolaridade dos responsáveis e volume de objetos "culturais" em seu
ambiente familiar de origem (livros, música, artes). De capital cultural institucionalizado: nível educacional e
área de formação. De capital cultural objetivado: número de livros que leu no último ano.
71
A técnica utilizada foi a análise de correspondências múltiplas específica
106
pessoas (na verdade, é uma questão sobre preconceitos), relações sociais (na verdade,
é uma questão sobre hierarquias sociais), família, homens e mulheres, raça, economia
e posições políticas (na verdade, questões sobre punitivismo e nacionalismo).
O bloco do Roteiro de entrevistas sobre posições políticas tinha 8 questões (da
46 a 54). Para ele, tentei construir questões que me permitissem explorar
informações que seriam difíceis de acessar por meio do questionário (como a relação
dos entrevistados com a política, sua socialização política e as posições políticas de
seus familiares e amigos) e que me permitissem captar os sentidos que os
entrevistados atribuem para alguns termos que se encontravam no questionário e que
são importantes na definição das posições políticas (como esquerda, direita e
democracia), bem como um aprofundamento em sua percepção a respeito do Brasil
atual (pedindo que me explicassem quais acreditam serem os maiores problemas que
o Brasil enfrenta atualmente).
A partir da revisão bibliográfica que fiz sobre comportamento político, tanto do
ponto de vista teórico quanto buscando me ambientar nas principais pesquisas da
área já realizadas no Brasil, e, junto disso, revisando os questionários das grandes
pesquisas de opinião pública aplicadas no Brasil nas últimas décadas, a construção de
meus instrumentos de pesquisas dedicados a explorar as posições políticas dos
entrevistados foi marcada por uma série de pressupostos, sendo o principal deles a
ideia de que as posições políticas podem ser separadas analiticamente em três
grandes eixos de diferenciação: um político-institucional (democracia x
autoritarismo), um econômico (estatismo x privatismo) e um moral (progressismo x
conservadorismo). Como indiquei na revisão acima, o segundo eixo é o que vem
sendo tratado em grande parte da literatura como “velha cultura política”, e o terceiro
como “nova cultura política”, ao passo que o primeiro não costuma ser tratado como
um domínio dos posicionamentos políticos analiticamente autônomo. Tentarei
evidenciar brevemente, abaixo, os pressupostos teóricos que estão por trás da
separação analítica que proponho.
fechar o Congresso, fechar o STF) e apoio a uma intervenção militar. Para captar os
diferentes sentidos dados pelos entrevistados ao termo "democracia", a questão 54 do
Roteiro de entrevistas perguntava "O que significa democracia para você e por que
você declarou este nível de satisfação?".
2.3.2 Economia
a responsabilidade por sua condição econômica seja jogada em grande medida para
os indivíduos (Saes, 2007; Sandel, 2020).
Em oposição à concepção liberal e meritocrática a respeito dos determinantes
da desigualdade estão as concepções que Erik Olin Wright (1994) chama de
"exploratórias". Nessas, a desigualdade é explicada pela parte dos esforços de um
grupo apropriada por outro grupo, o que constitui sua definição de "exploração".
Mais que isso, um grupo precisa ser despossuído de bem-estar para se sujeitar à
exploração do outro grupo. E não apenas isso, mas os grupos dominantes,
exploradores, produzem ideias que justificam e ocultam a exploração. Aqui, portanto,
a explicação da desigualdade deve ser buscada no nível estrutural da organização
social – no limite, no modo de produção capitalista. Por isso, na medida em que o
mercado não é uma instituição neutra na alocação de recursos, mas sim uma que
legitima a exploração entre grupos, não se pode atribuir a ele a responsabilidade pelo
combate às desigualdades, que deve então ficar a cargo do Estado. Deste lado,
portanto, em oposição ao liberalismo privatista, se encontra a defesa do oferecimento
de serviços de bem-estar social pelo Estado gratuitamente para toda a população.
Tendo em vista essa forma de entender os debates sobre economia e
desigualdade econômica, as questões que construí buscavam captar posições num
eixo que opõe estatismo a privatismo (ou liberalismo econômico), bem como a
adesão à ideologia meritocrática. As questões 51 a 56 do Questionário versavam sobre
a avaliação dos entrevistados a respeito da situação econômica atual do Brasil, sobre
sua percepção a respeita da distribuição de renda no Brasil e sobre os determinantes
da desigualdade, sobre a importância do combate a desigualdades e sobre a abertura
para intervenção do Estado na economia. Não havia no Roteiro de entrevistas
nenhuma questão específica sobre economia.
2.3.3 Moral
72
Questão 36: Na lista abaixo há vários tipos de pessoas. Marque quais delas você NÃO gostaria de ter como
vizinhos. Se for o caso, não precisa marcar nenhum.
73
Questão 41: Aqui está uma lista de qualidades que se pode estimular e ensinar aos filhos em casa. Quais
delas você considera especialmente importantes? Escolha no máximo três.
114
74
Questão 28: Na política as pessoas falam muito de esquerda e de direita. Gostaria que você usasse um
número de zero (0) a dez (10) para dizer se você se considera de esquerda ou de direita. Zero significa que é de
esquerda e dez que é de direita, sendo que o cinco (5) significa que é de centro.
75
Questão 48 do Roteiro de entrevistas: No questionário tinha também uma escala de posicionamentos
políticos, na qual o 0 representava o máximo da esquerda e o 10 representava o máximo da direita. Lá você
marcou que se considera na posição [inserir respostas do questionário]. O que significa ser de [inserir respostas
do questionário] para você e por que considera que está nesta posição? / Questão 49: E por outro lado, o que
significa ser de [inserir respostas do questionário] para você?
115
a partir dos anos 1990, tendo como contexto a agenda econômica neoliberal
(privatização e desregulamentação da economia), o critério central para a definição
de esquerda e direita no Brasil passaria a ser centrado na economia, com a esquerda e
a direita sendo organizadas na oposição ou adesão às reformas privatistas na
economia.
Contudo, analisando discursos e projetos de lei formulados por parlamentares
brasileiros entre 2010 e 2017, Marcos Quadros e Rafael Madeira (2018) notaram que
vem havendo um enquadramento positivo do rótulo "direita" associado à agenda
conservadora e mais enérgica na área da segurança pública. Assim, a direita estaria
superando a condição "envergonhada", que marcava este lado do espectro desde o
fim da ditadura militar, a partir de posições reativas ao avanço de pautas
progressistas que tiveram maior espaço durante os governos do PT, contrapondo-se a
elas com defesa da tradição, ordem e ceticismo diante da mudança. Trata-se,
portanto, de uma caracterização da direita baseada fundamentalmente em pautas
morais.
Com isso, uma definição teórica ampla de direita para o Brasil pode ser
construída com base na dimensão institucional (autocrática e autoritária), econômica
(privatista) ou moral (conservadora), como faz Sebastião Velasco e Cruz (2015) num
texto de preocupação mais histórica:
Claro que esses eixos de posições que eu descrevi se sobrepõem uns aos outros
de maneiras diferentes a depender do contexto, formando posições políticas mais
complexas do que as descrições sintéticas que fiz acima. Há, para citar apenas um
exemplo, um conjunto de pesquisa que vem falando sobre a união entre
conservadorismo e liberalismo, tanto ao longo do século XX quanto em suas
117
76
Cooper (2017), Rocha (2018), Brown (2019), Netto; Cavalcante; Chaguri (2019).
118
Autoposicionamento
n Entrevistada(as)
esquerda-direita
Alessandra,
0 2
Rita
Debora,
Guilherme,
Jorge*,
1 6
Manuel,
Roberto,
Samuel
Adriano,
Alex,
Daiane,
Elaine,
Flávio,
Isabel,
2 12
Lucia*,
Marlene,
Rafaela,
Ronaldo,
Rosângela
Vinicius,
Luciano,
3 3 Regina,
Sueli
Mário,
4 2
Vanessa
5 1 Marcio*
6 0
7 0
8 0
9 0
10 0
77
Na verdade, Leandro marcou no Questionário a posição 9, mas esclareceu na entrevista que foi por engano,
e que na verdade se vê entre as posições 3 e 4. Por ser um engano, não o incluí no quadro.
119
para descrever sua posição política: a maior parte define subjetivamente a esquerda
prioritariamente com base na dimensão econômica, e só posteriormente em termos
morais e político-institucionais. Ainda assim, a análise das respostas deles para o
conjunto de questões sobre instituições políticas, economia e moral no Questionário
aplicado antes da entrevista mostra que, a despeito das variações de classificação
subjetiva, eles estão mais próximos das definições teóricas de estatismo,
progressismo e democracia discutidas na seção anterior. Desta forma, tendo em vista
que os sentidos prioritários de definição da esquerda na cultura política brasileira
passam pelas três dimensões (Madeira; Tarouco, 2011; Quadros; Madeira, 2018), é
possível afirmar que os entrevistados são, objetivamente, de esquerda.
A dimensão econômica é a que recebe maior destaque nas falas dos
entrevistados. A preocupação com a desigualdade econômica que caracteriza a
sociedade brasileira é um tema que transpassa as falas de quase todos os
entrevistados, aparecendo espontaneamente quando estão discutindo suas
preocupações políticas, o que deixa transparecer a centralidade do conflito econômico
na organização de seus posicionamentos. Alguns relacionam a desigualdade
econômica propriamente ao capitalismo e à luta de classes (Daiane, Débora,
Guilherme, Manuel), outros, de maneira mais ampla, referem-se apenas a sua
convicção de que há um conjunto de condições fundamentais que precisam ser
garantidas para que todos possam viver uma vida digna (Flávio, Isabel, Mário,
Rafaela, Regina, Rita, Roberto, Rosângela).
Fica claro, como seria de se supor, que há diferenças no conteúdo das falas e
na forma como os entrevistados entendem o problema da desigualdade e sua possível
solução, mas pela predominância do tema como preocupação fundamental é possível
perceber que a desigualdade econômica é um posicionamento primordial a unificar
politicamente o conjunto dos entrevistados.
120
Ótima 0
Boa 0
Ruim 21
4 (Alessandra,
Péssima Adriano, Roberto,
Jorge*)
Péssima 0
Justa 0
6 (Alessandra, Isabel,
Injusta Manuel, Leandro,
Vanessa, Marcio*)
Muito injusta 21
Não sei 0
121
1 0
2 0
3 0
4 0
5 1
6 0
7 3
8 8
9 8
10 7
Com base numa série de percepções e propostas para a gestão da economia fica
clara também a inclinação estatista dos entrevistados, opondo-se a propostas que
inclinem a política econômica em direção à iniciativa privada. As questões que
revelaram maior contraste de posições aqui foram a que perguntava se eles acreditam
que é preciso limitar a diferença salarial de pessoas que trabalham em uma mesma
empresa (13 concordaram, 7 discordaram e 6 não souberam responder) e a que
afirmava que só se pode ficar rico à custa do empobrecimento dos outros (13
concordaram com a afirmação, 12 discordaram e 2 não souberam responder).
3 (Mário,
É preciso dar mais liberdade para as
1 (Leandro) 23 Guilherme,
empresas demitirem os empregados
Marlene)
Em um país como o Brasil, é obrigação do
2 (Marcio*,
governo diminuir as diferenças entre os 25 0
Lucia*)
muito ricos e os muito pobres
É justificável que o governo ofereça menos
serviços públicos, como saúde e educação, 0 27 0
para reduzir os impostos
Se o país for rico, não importa que haja
0 27 0
muitas desigualdades econômicas e sociais
Quanto menos o governo interferir na 1
1 (Marcio*) 25
economia, melhor para o país (Marlene)
A renda deve ser distribuída de forma mais 2 (Manuel,
25 0
igualitária entre as pessoas Regina)
No longo prazo, quem trabalha muito 2 (Rosângela,
24 1 (Rafaela)
sempre vai ter uma vida melhor Lucia*)
Só se pode ficar rico à custa do 2 (Sueli*,
13 12
empobrecimento dos outros Isabel)
2 (Vanessa,
É preciso taxar grandes fortunas no Brasil 24 1 (Daiane)
Marcio*)
Ainda sobre a relação entre Estado e empresas privadas, a questão que listava
uma série de atividades e pedia para que os entrevistados optassem entre sua
realização pelo governo ou por empresas privadas revelou, novamente, a inclinação
estatista dos componentes da amostra. Há consenso pleno a respeito da
responsabilidade do governo nas áreas da saúde, educação básica e superior, água
potável e saneamento básico. A área com mais defensores da atribuição privada é a
do financiamento dos partidos políticos, mas mesmo aqui tal posicionamento é
minoritário (7 entrevistados, contra 14 que entendem que a atribuição deve ser do
governo).
1 (Leandro,
Eletricidade 24 1 (Regina)
Rosângela)
Segurança 26 1 (Ronaldo) 0
4 (Mário, Regina,
Financiamento dos partidos políticos 14 7
Rafaela, Marcio*)
Água potável 27 0 0
Saneamento básico 27 0 0
Aposentadorias / Previdência social 25 1 (Ronaldo) 1 (Regina)
Alex: Eu sou uma pessoa que acredita e batalha pela intervenção do Estado
nas questões econômicas, nas questões de redistribuição de renda, de
garantir direitos, serviços de qualidade. Eu não acho que as coisas se
resolvem pelo livre mercado, eu não acho que a gente pode confiar que os
empresários e a classe privada vai fazer o bem. Eu não acho que uma pessoa
só porque gere uma empresa ela deve gerir uma cidade, porque uma cidade
não é uma empresa.
Quadro 16. Opinião sobre responsabilidade governamental por políticas de promoção racial
Alessandra: Racismo é algo que faz parte por conta do racismo estrutural,
que está profundamente ligado à desigualdade. A desigualdade social tem
cor no Brasil, ela é preta, e eu tenho muitos alunos que são pretos, pardos, e
eu temo muito por eles, pela questão da polícia. Eu sei como se arruma
desculpa pra matar pobre preto no Brasil.
Isabel: Eu não tenho muita clareza, na verdade, sobre a relação entre classe e
raça. Eu sei que tem algo bem específico da raça, que existe independente da
classe. Mas exatamente o que é essa relação eu não saberia te dizer. Mas...
fato é que eu tenho pouquíssimos amigos negros. Eu tenho uma grande
amiga negra, que é do meu trabalho, e eu vejo tudo que ela passa, em ser
uma mulher negra e intelectual, sabe? E... sofrer várias questões, sabe?
Então... pra mim tá claro que eu frequento ambientes brancos, na minha
família só tem branco e ninguém se casou com um negro. Então, tem algo aí
de muito errado, de uma segregação racial bem forte no Brasil. Fora as
questões mais objetivas, de encarceramento negro, da violência policial, da
morte dos homens negros... Então, com certeza esse é um assunto bem
importante.
Alex e Isabel foram, por assim dizer, os pontos médios entre a defesa rigorosa
da democracia e a crítica a ela. Para ambos, trata-se de uma instituição na qual
precisamos acreditar – nas palavras de Isabel, "precisamos depositar nosso afeto" –,
pois a alternativa autoritária oferecida pela extrema-esquerda seria prejudicial.
Retorno a seguir a este tema quando estiver discutindo as definições de esquerda dos
entrevistados.
Também é possível notar a preocupação dos entrevistados com a participação
política por meio de manifestações civis: todos já assinaram pelo menos um abaixo-
assinado, 21 já participaram de manifestações ou protestos de rua, 19 já utilizaram a
internet ou mídias sociais para a manifestação política, e 15 já participaram de greves.
A participação em organizações e associações, no entanto, é pontual.
Atividades políticas n
Assinar um abaixo-assinado (inclusive na internet) 27
Participar de manifestações ou protestos de rua 21
Utilizar a internet ou redes sociais para manifestação política 19
129
Participar de greve 15
Participar de ocupação de prédios públicos 4
Participar de bloqueio de estradas 0
Participar de ocupação de terras 0
A maior parte das questões dos blocos destinados a explorar suas posições
morais mostrou orientações fortemente progressistas entre os membros da amostra.
As questões sobre religião, por exemplo, mostraram convergência para a união entre
laicismo e tolerância religiosa.
Quadro 29. Opinião sobre ensino de respeito à diversidade sexual nas escolas
Não sei 0
Elaine,
Ronaldo,
Lucia*)
É justo que um homem possa ganhar mais que
uma mulher, mesmo desempenhando as 0 27 0
mesmas funções
É justo que o Estado exija que os partidos 2
políticos reservem ao menos 30% das 24 (Guilherme, 1 (Debora)
candidaturas para as mulheres Rita)
Quadro 35. Opinião sobre divisão dos trabalhos de cuidados com filhos
pessoa
5 (Manuel,
Da prisão para menores de 18 anos de Rita, Ronaldo, 2 (Roberto,
20
idade Adriano, Rafaela)
Marcio*)
Não sei 0
Com base nos padrões mais homogêneos de respostas para esse conjunto de
perguntas, é notável que minha amostra de entrevistados pertencentes à fração
cultural das classes médias paulistanas tem posições políticas marcadas, sobretudo,
pela preocupação com a igualdade econômica e racial, que são estatistas em suas
opiniões sobre economia, democratas em suas opiniões sobre instituições políticas e
progressistas em suas posições morais. São, desta forma, a partir dos diferentes eixos
de diferenciação previamente expostos, politicamente de esquerda. Ainda assim, há
pontuais divergências para todos os domínios de questões sobre posicionamentos
políticos. Sistematizei essas divergências no quadro 42 abaixo. Nela, tomei como
posições divergentes a escolha por alternativas no Questionário que tiveram no
máximo 7 marcações numa questão que teve alguma outra alternativa com pelo
menos 14 marcações (mais de metade da amostra), excluindo as questões que
aceitavam respostas múltiplas. São os nomes que coloquei entre parênteses em
alguma das alternativas nos quadros acima, excluindo-se o “não sei”. A “divergência”,
portanto, é uma posição discordante e minoritária numa questão em que existe um
consenso.
Daiane 0 0 1 0 1
Débora 10 0 0 0 1
Elaine 0 0 1 0 1
Flávio 0 0 1 0 1
Samuel 0 0 0 1 1
Alex 0 0 0 0 0
Rafaela 0 0 0 0 0
Sueli* 0 0 0 0 0
Vanessa 0 0 1 0 1
Adriano 0 0 0 0 0
Flávio 0 0 0 0 0
Jorge* 0 0 0 0 0
Leandro 0 0 0 0 0
Rita 0 0 0 0 0
Rosângela 0 0 0 0 0
Captar as divergências e os "não sei" é util não apenas para saber sobre os
agentes, mas também para saber quais são as questões que mais geram discordância
e dificuldade de tomada de posição. É o caso da prisão perpétua, que divide a amostra
ao meio (12 concordam e 12 discordam), da ideia de que só se pode ficar rico às custas
dos outros (13 concordam e 12 discordam), da proposta de que se limite a diferença
salarial de pessoas que trabalham numa mesma empresa (13 concordam e 7
discordam), da ideia de que as mulheres costumam ter mais sensibilidade e
compaixão que os homens (14 concordam e 11 discordam) e dos limites da autoridade
dos pais sobre o filhos (para a questão da filha ou filho de 18 anos que quer viajar com
as amigas ou amigos com tudo pago, 6 entrevistados acham que os pais deveriam
decidir, 11 acham que os pais deveriam deixar a/o filha/o decidir e 10 não souberam
opinar). Aqui encontramos a parte nebulosa da fronteira política, aquelas tomadas de
posição a respeito das quais os membros da fração cultural das classes médias não
tem clareza e acordo o suficiente para que possam ser mobilizadas na demarcação do
pertencimento coletivo.
Quadro 44. Opinião sobre quais os maiores problemas de o Brasil enfrenta hoje
Qual o maior problema que o
n
Brasil enfrenta hoje?
Pobreza 16
Desigualdade de renda 16
Racismo e desigualdade racial 13
Educação 9
Corrupção 8
Ameaça ao meio ambiente 7
Violência 5
Machismo e desigualdade de gênero 3
Desemprego 1
Inflação / Subida de preços 1
Saneamento básico 1
Saúde 1
Consumo de drogas ilícitas 0
Perda de valores tradicionais 0
Trânsito 0
Transporte público 0
Não sei 0
78
Poderia captar divergências maiores entre direita e esquerda se perguntasse, por exemplo, "Você estaria
disposta(o) a pagar mais imposto para que o Brasil venha a ter serviços públicos de maior qualidade?", ou,
"Você acha que se uma pessoa tiver dinheiro ela deve ter o direito de acessar um tratamento de saúde melhor,
uma escola melhor?".
79
Dados do Lapop (2006, 2008, 2010, 2012, 2014, 2016 e 2018) e do World Values Survey (1991, 1997, 2006,
2014, 2018).
143
caráter moral entre os membros da fração cultural das classes médias, na medida em
que esse posicionamento é lido como um dos principais símbolos de seu valor moral,
ou seja, do que faz deles pessoas boas, justas, admiráveis e legítimas de ocuparem as
posições sociais que ocupam. Se, como mostram Quadros e Madeira (2018), a direita
vem se "desavergonhando" atualmente no Brasil fundamentalmente com base numa
pauta moral enraizada na defesa da família tradicional, religiosidade cristã e defesa
moralista dos bons costumes, a esquerda, em contraponto, encontra seu valor moral
ao compreender a si própria como o lado do conflito político que consegue ver que o
verdadeiro problema fundamental que o Brasil precisa enfrentar é o da desigualdade
econômica. No caso da fração cultural das classes médias, apresentarem-se como
aqueles que compreendem, que se importam, que discursam contra e que agem
politicamente (ainda que apenas no momento do voto) para combater a radical
desigualdade econômica que marca o Brasil é uma forma de justificar seu valor,
sobretudo tendo em vista que se trata aqui de pessoas que ocupam uma posição na
estrutura de classes caracterizada por condições materiais de existência muito
confortáveis.
80
Sherman entrevistou 50 indivíduos de diferentes grupos profissionais pertencentes aos estratos de renda
mais altos de Nova Iorque, preocupada em entender como eles tomam decisões de consumo, como sentem e
direnciam seus privilégios, como encontram valor moral diante de um cenário de crescimento de desigualdades
econômicas e como legitimam e justificam para si e para os outors sua própria riqueza.
145
81
As perguntas mais diretas sobre demarcação de fronteiras simbólicas vão da 55 a 68 no Roteiro de
entrevistas. Elas tratavam em particular de atitudes e traços de personalidade que despertam admiração e
rejeição no convívio cotidiano dos entrevistados.
146
Alessandra: Eu acho que coerência com a luta, com essa luta igualitária.
Alessandra: Ah, por que tem muita gente que tem um discurso e faz outra
coisa. Então, pessoas que tenham coerência com essa luta igualitária. Não tô
falando de santa ceciliers [risos], pessoas que muitas vezes tem um padrão
147
de vida alto, que o discurso é de esquerda, mas que não abre mão dos
próprios privilégios.
***
Do ponto de vista estrutural de suas posições sociais, faz todo o sentido, isso é,
é bastante compreensível, que o discurso crítico contra a desigualdade econômica
tenha maior aderência entre a fração cultural do que entre a econômica.
Desdobrando a hipótese de Flemmen, Jarness e Rosenlud (2022) a respeito do
"esquerdismo do capital cultural", podemos entender que, enquanto agentes
dominados mesmo que em posições dominantes, uma vez que são caracterizados
socialmente mais por sua posse de capital cultural (um capital estruturalmente
dominado) do que de capital econômico (o capital dominante no capitalismo), esses
agentes tendem a estar inclinados estruturalmente para as posições políticas de
esquerda, isso é, aquelas caracterizadas, na maior parte das vezes, justamente pela
preocupação com a desigualdade econômica (ou seja, de capital econômico) e
baseadas na crítica ao capitalismo – seja uma crítica orientada para reformá-lo
(social-democrata) ou para superá-lo (socialista, comunista ou anarquista). Assim, as
posições políticas de esquerda, lidas como defesa da igualdade econômica, em
oposição ao lado que entendem que ignora a desigualdade que marca a sociedade
brasileira, são funcionais (o que não significa que isso seja compreendido
reflexivamente) para a demarcação de fronteiras simbólicas contra a fração
econômica, que é entendida como elitista e moralmente conservadora. Isso é, a
identidade política de esquerda entre a fração cultural das classes médias é também
um efeito estrutural de sua posição de fração de classe.
148
movimento estudantil durante a Ditadura Militar, e seu pai, nascido em Portugal, foi
do movimento anarquista na juventude). A mãe de Débora, por sua vez, sempre foi
engajada politicamente (Débora se lembra bem dela fazendo campanha por Lula em
1989), e seu pai, por mais que tenha votado em Maluf e Collor no passado,
posteriormente também se tornou eleitor de Lula. Rafaela, Rosângela e Samuel vêm
de famílias que já faziam parte da fração cultural das classes médias, também tinham
posições políticas de esquerda, e transmitiram essas referências para os filhos desde a
infância.
Outro conjunto de entrevistados vem de famílias em que havia pessoas de
diferentes posições políticas ou que mudaram da direita para a esquerda ao longo da
vida. Alex teve fortes referências políticas em seu pai adotivo (bem de esquerda), na
mãe (mais discreta, de centro-esquerda) e em um irmão da mãe (muito engajado,
professor universitário, militou no MST), a despeito de seu pai biológico, e todo esse
lado da família, ser de direita. Os pais de Guilherme eram pouco interessados em
política e votavam no PSDB, mas ele encontrou influências de esquerda num tio que
era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O pai de Alessandra também
votava no PSDB, mas quando se tornou professor universitário passou votar no PT, o
que deu a ela referências iniciais de esquerda.
Por outro lado, os entrevistados que vêm de famílias fortemente de direita
(caso de Daiane, Isabel, Mário, Regina e Ronaldo), moderadamente de direita (como
Elaine, Leandro e Roberto), ou de famílias que não se importavam com política ou
não tinham posições claras (como Flávio e Luciano), encontraram conjuntos de
repertórios de esquerda em outros ambientes que não o familiar. Aqui, destaca-se a
escola – sobretudo o colegial/ensino médio – como espaço em que entraram em
contato com ideias de esquerda, geralmente por meio de algum professor de
Humanidades que levava essas discussões para a sala de aula. Foi por aqui que
Regina e Flávio tiveram suas primeiras referências de ideias de esquerda, e pela
escola também Alex, Guilherme, Rafaela e Samuel reforçaram os repertórios de
esquerda que já traziam de casa.
Além da escola outro espaço que serviu para um contato inicial com o ideário
de esquerda entre alguns membros da amostra foi em grupos ligados à Igreja
Católica. Esse foi o caso já mencionado de Adriano, que participava de pastorais da
Igreja junto com a mãe, de Daiane, que participava de grupos de jovens católicos e,
ali, de atividades de voluntariado e filantropia, e de Vinicius, que também fez parte de
150
grupos de jovens da Igreja Católica, num grupo que guardava proximidade com a
Teologia da Libertação. Em todos esses casos, as atividades de voluntariado fizeram a
mediação para que eles tivessem contato mais direto com a desigualdade econômica e
a enquadrassem num referencial de luta por dignidade, o que posteriormente viria a
compor seus repertórios de opiniões políticas de esquerda.
Cabe notar, no entanto, que a religião também fornece repertórios
conservadores, o que serve de base para um posterior afastamento, no caso em que
posições políticas de esquerda são consolidadas mais fortemente com o passar dos
anos. Leandro, por exemplo, tinha um tio padre, com posições políticas de direita, o
que gerou conflitos em 2002 quando Leandro declarou que votaria em Lula. Leandro
teve contato inicial com repertórios de esquerda não na família nem na escola, mas
no cursinho pré-vestibular. Marlene frequentava igrejas evangélicas antes de entrar
para a faculdade (de serviço social), mas foi se afastando por se incomodar com o
discurso religioso conservador justamente no momento em que passou a ter contato
mais intenso com os repertórios de esquerda que acessava na faculdade.
Após a escola, e de maneira ainda mais intensa, a faculdade é citada quase
indiscriminadamente pelos entrevistados como um lugar de formação (para aqueles
que ainda não tinham posições políticas claras) ou de consolidação de suas
identidades políticas de esquerda. Apenas Adriano, Débora, Elaine, Mário, Manuel e
Rafaela não citaram nas entrevistas o ambiente da faculdade quando falavam da
formação ou consolidação de suas posições políticas. Entre os demais, todos falaram
sobre a predominância de colegas de esquerda quando estavam na faculdade, contato
com o movimento estudantil (mais intenso no caso das faculdades públicas, mas
citado também por entrevistados que estudaram em particulares) e debates
corriqueiros sobre política com viés predominantemente de esquerda no ambiente
universitário. Além dos colegas, esse contato vinha também de professores e como
parte das discussões nas disciplinas de formação. Desta forma, a faculdade – espaço
que marca com maior clareza a vinculação dessas pessoas à fração cultural –, é
também um dos que cobra de maneira mais direta o compartilhamento de ideias de
esquerda para a formação de vínculos sociais. Não se trata, evidentemente, de um
requisito acadêmico para a obtenção do diploma, mas em cursos em que discussões
políticas são cotidianas, em que há intensa atuação de movimento estudantil e em
que a maior parte dos discentes é de esquerda, o compartilhamento, ainda que num
nível inicial, de repertórios que identificam esse lado do espectro político torna-se um
151
(diante dos estudantes) e, nos últimos anos, por vivenciarem de maneira rápida e
direta os efeitos de cortes de verba na educação promovidos por governos de direita.
É o caso de Isabel, que veio de uma família de direita e que nunca havia se importado
muito com política ao longo da vida, mesmo tendo feito graduação numa
universidade pública e num curso de ciências humanas, mas que, por mais que já
simpatizasse previamente com a esquerda, só aderiu a este lado do espectro político
de maneira engajada a partir do momento em que se tornou professora.
filtro para que as informações cheguem ao público com maior qualidade. Este tema
apareceu também nas falas de outros entrevistados: ao passo que Adriano, Elaine e
Roberto falaram sobre os benefícios em termos de velocidade e de proximidade do
contato por meio das mídias sociais, Rafaela citou os perigos de que isso faça com que
se encontre dentro de uma bolha de esquerda, em que apenas as informações que
reforçam as posições políticas com as quais concorda sejam compartilhadas.
Entre amigos, a política é assunto recorrente de conversas, neste que é círculo
social que tem os momentos de reunião para conversar como um de seus principais
lazeres. Comentarei mais sobre isso no próximo capítulo, mas desde já é importante
apontar a forte influência dos amigos no reforço e refinamento das posições políticas
de esquerda, algo que vem sendo bem documentado pela literatura que aponta para o
fechamento e exclusão mútua dos diferentes lados do conflito político para a
interação com lado oposto84.
Por fim, cabe notar que o contexto político brasileiro dos últimos anos
apresentou situações marcantes para a formação e consolidação de repertórios de
esquerda entre os entrevistados. Isabel, por exemplo, que, como já citado
anteriormente, não era uma pessoa muito interessada em política, por mais que
tenha se formado num curso de ciências humanas numa universidade pública, só
passou a se identificar mais fortemente com a esquerda política a partir do
impeachment de Dilma, em 2016, e a identificação se intensificou nos anos seguintes,
sobretudo com a eleição de Bolsonaro para a presidência em 2018. De maneira
semelhante a Isabel, Mário, que é médico e veio de uma família com posições
políticas de direita, também só passou a se identificar com a esquerda a partir de seu
incômodo com o processo de impeachment de Dilma e por perceber uma crescente
precariedade nas condições de vida de seus pacientes a partir do momento em que
Temer assumiu a presidência. O impeachment de Dilma também foi citado como
fator marcante para a identificação com a esquerda de Alessandra e Flávio. Por sua
vez, a eleição de Bolsonaro e os anos de seu governo foram citados espontaneamente
por Daiane, Isabel, Luciano, Regina e Roberto como um momento de consolidação ou
intensificação de seus posicionamentos políticos de esquerda. Foram anos em que
eles consumiram mais notícias sobre política e entraram em mais discussões, o que
ajudou a reforçar convicções que eles já tinham previamente.
84
Ver França et al (2018), citado por Cardoso (2020).
155
85
Aliás, nunca é demais explicitar que tendências estruturais são sempre tendências, não determinações
unívocas e inequívocas. A terceira dimensão do espaço social, a trajetória, é constantemente o melhor fator de
explicação dos casos em que a tomada de posição tendencialmente adequada da classe e da fração de classe
não se realiza em agentes específicos. No caso das tomadas de posições políticas, em particular, Bourdieu era
especialmente atencioso com o peso das trajetórias sobre a organização das tomadas de posição, sobretudo
em casos de ascensão ou de declínio entre as gerações. Isso explicaria, para ele, o fato (identificado para a
França dos 1960-1970) de que existia um hiato maior entre as posições sociais e as tomadas de posições
políticas do que entre as posições sociais e os estilos e vida. Ver Bourdieu (1977). Ver também Tomizaki e Silva
(2021), que chamaram a atenção para este ponto.
86
Questão 47 do Roteiro de entrevistas: Agora, uma pergunta mais direta: como você se classifica
politicamente? Isso é, existe alguma posição, ideologia política ou um conjunto de ideias que você acha que
representa bem a sua forma de pensar?
157
mais adequado aos tempos atuais, em que a luta política não necessita mais de “uma
foice e um martelo”.
Alessandra, por sua vez, está praticamente no lado oposto ao de Rosângela em
termos de posicionamentos políticos internos à esquerda. Ela se identifica como
anarquista, o que, para ela, significa não ter ilusões com as instituições políticas,
saber que o maior problema a ser enfrentado é o Estado, e que enquanto ele existir,
sempre existirá contradições. Essa sua identificação com o anarquismo é recente, no
entanto: disse ela que há cerca de três anos, em conversas com seu companheiro,
começou a perceber suas inclinações anarquistas, sob influência dele. Antes disso,
Alessandra só começou a se identificar de fato com a esquerda a partir do
impeachment de Dilma, em 2016, e antes disso tinha até mesmo "embarcado na onda
da Lava-Jato".
Daiane disse também que tem uma aproximação com o anarquismo, que
também relaciona com a ideia de que o Estado apresenta-se sempre com um
problema. Mas ela foi menos convicta em sua identificação ideológica do que
Alessandra, dizendo que tem dificuldade de se comprometer.
Para além desses que se classificaram com base em correntes políticas e
ideológicas mais bem definidas, a maior parte dos entrevistados não se classificaram
politicamente com muita especificidade para além da ideia de que são de esquerda,
seja por não ter paciência para discussões sobre vertentes políticas (Débora), por
acreditar que tem um posicionamento que mistura características de diferentes
vertentes (Leandro) ou por acharem que não tem conhecimento aprofundado o
suficiente sobre vertentes da esquerda para conseguir ter um posicionamento mais
claro (caso de Elaine, Roberto e Vinicius).
Na medida em que Alessandra e Rita foram as únicas entrevistadas que se
colocaram na posição 0 no espectro político, subentende-se que todos os demais
acreditam que existem pessoas que estão à sua esquerda. Desta forma, ainda com o
tema dos fracionamentos internos à esquerda em mente, eu perguntava quem eles
acham que está a sua esquerda no espectro político. Com isso, foi possível identificar
com ainda mais cuidado a forma como se estruturam algumas fronteiras dentro da
própria esquerda.
A maior parte dos entrevistados entende que aqueles que estão à sua esquerda
formam o que se pode chamar de "extrema-esquerda", e para a maior parte deles isso
significa a disposição para aderir a propostas autoritárias. Adriano entende que aqui
159
estão as pessoas radicais, adeptos da ação direta. Daiane disse que são os estalinistas,
que querem "sair tacando fogo nas coisas". Flávio disse que eles beiram o
anarquismo, defendem controle total do Estado, uma ditadura de esquerda, e que
neste nível, quando foge da democracia, não se diferenciam muito da direita.
Guilherme, Ronaldo e Rosângela também disseram que aqui estão aqueles que
defendem Estados totalitários, como Nicarágua, Venezuela, Cuba e China. Leandro
disse que se trata da esquerda marxista, trotskista, uspiana. Roberto também os
chamou de extremistas, e Rafaela e Mário disseram que são aqueles que não deixam
espaço para o mercado e para a competitividade. Alex foi além, disse que são pessoas
com uma visão anacrônica do que significa luta de classes, que entendem que a classe
social está acima de outros critérios de luta política (ideia da qual ele discorda) e que,
dessa forma, além de flertarem com o autoritarismo, também podem ser machistas,
racistas e homofóbicos. Foi comum também que alguns deles identificassem alguns
partidos políticos como representantes da “extrema-esquerda”, notadamente o PSTU
e o PCO (citados por Alex, Flávio e Guilherme).
Com isso, é possível perceber que, ao passo que a defesa da igualdade,
relacionada a uma certa concepção de dignidade, e a defesa da maior intervenção do
Estado na economia, oposta à primazia do livre mercado, formam a base
fundamental da definição de esquerda compartilhada pelos entrevistados, a defesa da
democracia e das instituições democráticas é um dos principais critérios a demarcar
fronteiras internamente ao grupo em suas identidades políticas. Manuel, em sua
entrevista, disse que já ficou claro que a luta por meio do Estado não deu certo, e de
forma semelhante Alessandra, como já citado previamente, disse que a democracia é
uma farsa, uma invenção para manter o Estado. Estes são justamente os tipos de
posicionamento que entrevistados como Alex, Débora, Guilherme, Ronaldo e
Rosângela criticam e do qual se afastam, não entendendo ser uma opinião da
esquerda com a qual se identificam ou, mais ainda, não entendendo se tratar
verdadeiramente de um posicionamento de esquerda. Assim, por mais que a maior
parte da amostra seja crítica de posicionamentos autoritários e que representam uma
ameaça às instituições fundamentais da democracia representativa (eleições, partidos
políticos, STF, Congresso etc.), a defesa da democracia é um tema que, em alguma
medida, cria fronteiras simbólicas internamente a fração cultural das classes médias.
Além da dimensão político-institucional de organização dos posicionamentos
políticos, a dimensão moral também emergiu nas entrevistas como elemento que
160
87
Lembrando que Manuel foi o entrevistado com mais discordâncias morais na amostra (8). Ele marcou no
Questionário que o governo não tem a obrigação de criar políticas públicas direcionadas à melhoria das
condições de vida da população negra, que não acha que as universidades públicas devem ter cotas raciais, que
os movimentos sociais das pessoas negras são bons apenas para seus próprios membros, que não defende
(mas não se incomoda com) demonstrações públicas de carinho entre pessoas LGBT+, que sempre se deve
amar e respeitar os pais sem se importar com suas qualidades e defeitos, que uma mulher e um homem
precisam ter filhos para se sentirem realizados na vida e que em geral os homens são mais racionais que as
mulheres. Guilherme e Rita vieram logo após, com 6 discordâncias cada nas posições sobre moral.
161
Assim, fica claro que a posição dos agentes internamente às frações culturais –
e à esquerda política – na dimensão moral de organização dos posicionamentos
políticos é, tal como a dimensão político-institucional, um fator de demarcação de
fronteiras simbólicas internas. Eles se unem, portanto, fundamentalmente a partir de
seu igualitarismo estatista na economia, mas se fragmentam, de um lado, entre
subgrupos mais democratas ou mais autoritários e, de outro lado, entre subgrupos
mais progressistas ou mais conservadores.
Ainda que eu não tenha pedido, alguns entrevistados também separaram
espontaneamente, em suas falas, a direita e a extrema-direita. A direita mais
"moderada" (como disse Guilherme), ou não tão "aberrante" (como disse Alex), é
uma que acredita na democracia, mas que é mais privatista na economia e
conservadora nos costumes (Alex), e que desgosta de protestos e movimentos sociais
(Guilherme). Aqui estão políticos como João Dória (citado por Flávio), Fernando
Henrique Cardoso e Simone Tebet (citados por Alex), Geraldo Alckmin, Katia Abreu,
Ratinho Júnior e Eduardo Leite (citados por Guilherme). Já a extrema-direita é
aquela que quer eliminar quem pensa diferente dela (Alessandra), que tem total
descrença na democracia, são ultraconservadores e ultraliberais, suprematistas e
fascistas (Alex), defendem valores punitivistas e violentos e são negacionistas
(Guilherme). Guilherme acha que são pessoas menos inteligentes, ou mais cínicas,
que a média, e Vinicius os chama de “canalhas”, argumentando que se sua mãe, que é
analfabeta, não defende ideias de direita, quem defende é por canalhice. Aqui, na
extrema-direita, é que Alex, Flávio e Guilherme localizam Bolsonaro.
162
Samuel fez uma fala semelhante à de Adriano sobre o tema, dizendo que as
pessoas de direita de classe popular são apenas pessoas mal informadas, com pouco
acesso para saber qual a real condição do Brasil, e Marlene, que assim como Adriano
também tem origem de classe popular, foi ainda mais clara na demarcação de uma
fronteira contra os discursos da esquerda que considera elitistas:
Marlene: Eu tenho uma certa criticidade com relação à esquerda hoje, como
ela muitas vezes é posta, eu acho que ela é um pouco até elitizada, muitas
vezes. Posso citar como um exemplo dessa minha fala essas últimas eleições
presidenciais, que teve esse embate muito forte entre o Bolsonaro e o Lula, e
que a população de uma forma geral muitas vezes, e até pessoas que
levantavam e defendiam a bandeira Lula, a esquerda, mas muitas vezes se
apoiavam num discurso de pobre de direita, trabalhador lutando contra seus
direitos. Claramente, sim, eu concordo em partes que tem muitos
trabalhadores que acabam defendendo pautas conservadoras, mas eu sempre
trago uma leitura com uma criticidade. Eu acho que é muito violento a gente
colocar essa posição só na coluna dos trabalhadores, só culpabilizando eles,
"o pobre ele é culpado pela eleição do Bolsonaro" [...]. Porque, eu entro
muito naquilo que a gente estava debatendo anteriormente: a política ela não
é só o que a gente aprende na Academia. Claramente que na Academia, como
eu falei, tem todo um embasamento, tem toda uma leitura. Mas muitas
vezes, se você for trocar uma ideia, conversar com um trabalhador, alguém
que, sei lá, tá na Cidade Tiradentes, ou no extremo da Zona Sul, e você for
trocar uma ideia sobre as condições de vida, como ele vê a sociedade, muitas
vezes ele vai trazer críticas riquíssimas, que estão, inclusive, em livros de
autores renomados, mas que ele não tem um aprofundamento, e por diversas
questões, ou porque não foi oportunizado, ou porque foi uma pessoa que
precisou, entre discutir política e ir para os estudos, precisou ir trabalhar em
um emprego que muitas vezes é precarizado... [...] Eu acho que também é
uma desculpa que eu ouço muito, inclusive hoje eu ouvi de uma pessoa, que
é até militante, no meu trabalho, que falava, "poxa, não é desculpa uma
pessoa querer ter um viés conservador em uma sociedade que tem tantas
informações disponíveis", e eu concordo, mas mais uma vez eu trago uma
ressalva: assim como a gente tem informações disponíveis, informações úteis
e com embasamento, nós também temos informações que são baseadas em
163
Note-se que, para a maior parte dos entrevistados, o Brasil é hoje um país
predominantemente de direita. No Questionário havia uma pergunta sobre qual eles
acham que é a posição política da maior parte da população. Apesar de todas as
alternativas terem sido selecionadas por menos de metade da amostra, a impressão
de que a maior parte da população brasileira é de direita foi a opção mais selecionada
(por 12 pessoas).
Os relatos organizados nesta seção deixam claro, portanto, que existe uma
considerável diversidade de posições internamente ao padrão estabelecido de
posicionamento político cobrado como critério de pertencimento aos membros da
fração cultural das classes médias. Todos os entrevistados são objetivamente de
esquerda na maior parte de suas posições políticas e se identificam subjetivamente
como pertencentes à esquerda política, mas, internamente ao campo no qual se
posicionam, travam uma série de lutas simbólicas que se assentam,
fundamentalmente, sobre três pilares: (1) o quanto consideram importante o
compromisso com as instituições políticas da democracia representativa, (2) o quanto
de centralidade consideram que deve ter a luta política organizada em torno de
minorias sociais, e (3) qual sua interpretação a respeito das pessoas de classe popular
com posições políticas de direita. Desta forma, ao que tudo indica, as posições de
esquerda definidas de forma minimalista como uma preocupação com a desigualdade
econômica que deve ser combatida com políticas organizadas pelo Estado são a
grande baliza política dentro da qual diferentes posições podem ser assumidas,
164
variando de acordo com a posição social e com a trajetória dos membros dessa fração
de classe.
2.9 Síntese
Ainda que marcadas pelo caráter anedótico típico da mídia de massas, duas
reportagens publicadas pela Veja São Paulo entre o final de 2019 e o início de 2020
ajudam a ver que a divisão entre as frações de classe econômicas e culturais são
percebidas popularmente, e que essa percepção se constrói, em primeiro lugar, com
base na oposição dos estilos de vida. Eram os faria limers e os santa ceciliers.
Assim como as reportagens foram produzidas uma em oposição a outra, elas
contam uma história de luta entre dois estilos de vida antagônicos88. Entre os faria
limers, tudo gira em torno da busca ascética pelo lucro econômico. "Falar de negócios
é uma prática 'non stop' na região da Faria Lima". Por isso, o valor da vida dos
sujeitos é pautado pelo quanto ele vale economicamente. Tudo deve ser caro, pois se é
caro tem valor: as roupas, os carros, os móveis, os objetos, as comidas, as bebidas. As
práticas culturais e intelectuais entram em cena apenas se forem orientadas para o
lucro econômico: leitura de livros sobre finanças, jogar xadrez para deixar o sistema
cognitivo afiado para o trabalho. Todo um ethos que se adequa bem ao
posicionamento liberal na economia discursado por diversos entrevistados da
reportagem.
Já entre os santa cecíliers, a valorização do "alternativo", do “autêntico”, e a
estilização da vida cotidiana é que servem de baliza: bares com cadeira de praia,
cerveja artesanal, apartamentos com chão de taco, samambaia e coleção de vinis. Na
"cultura" cara aos santa ceciliers, a oposição ao valor econômico dá o tom de sua luta
contra a cultura que identifica os faria limers. Ali, o consumo não tem mais valor se
for mais dispendioso, mas precisamente se representar valores alternativos ao
econômico: comprar de pequenos produtores ao invés de grandes redes, contrato de
serviços com base em afinidade política, roupas vindas de brechós, móveis
reaproveitados. As posições políticas transformam-se em estilo de vida também em
oposição mútua: se o investidor da Faria Lima coleciona imagens de touros de ouro,
88
As duas reportagens da Veja foram escritas por Mariana Rosário, a primeira com colaboração de Ana
Carolina Soares e a segunda com colaboração de Mariani Campos. Na mesma semana da publicação da
reportagem sobre os santa cecíliers, alguns dias antes de publicação da revista, o Uol publicou também uma
reportagem dedicada aos santa cecíliers, de autoria de Marcos Candido. Ver Rosário e Soares (2019), Rosário e
Campos (2020) e Candido (2020).
167
em referência ao de Wall Street, os santa cecíliers decoram suas casas com placas da
"Rua Marielle Franco" e imãs de geladeira "Lula Livre".
A popularidade que as reportagens ganharam, sobretudo nos debates nas
mídias sociais, permitiu que as classificações se tornassem parte do senso comum.
Mesmo entre meus entrevistados, os faria limers e os santa cecíliers foram
mobilizados como termos de acusação ou identificação. É evidente que as
classificação carecem de precisão conceitual – e nem é esse o objetivo de termos
produzidos pelo jornalismo. Os faria limers são, mais precisamente, uma parte das
frações econômicas das classes médias e altas de São Paulo, e os santa ceciliers são
uma parte emblemática da fração cultural das classes médias. Ainda assim, na
descrição pitoresca de seus estilos de vida nas reportagens, entrevemos de maneira
espontânea que a luta estilística de frações de classe é uma luta entre duas lógicas
opostas: a do capital econômico contra a do capital cultural.
Neste capítulo, descrevo o estilo de vida da fração cultural das classes médias
paulistanas. Inicio (3.1) com uma breve revisão da literatura sobre a estratificação
social dos estilos de vida, então entro na descrição e análise dos estilos de vida da
fração cultural das classes médias paulistanas, mostrando, primeiro (3.2), como eles
valorizam um estilo de vida “cultural”, e, depois (3.3), como eles desenvolvem a
partir de suas práticas e preferências culturais uma série estratégias de valorização
do capital cultural. Em seguida (3.4), mostro que o estilo de vida valorizado pela
fração estrutura a eficácia de fronteiras culturais e violência simbólica, e então, em
(3.5) a política dos estilos de vida, que seu trabalho de demarcação de fronteiras
simbólicas imbrica fortemente estilos de vida e posicionamentos políticos. Como se
deve notar, o argumento fundamental é análogo ao do capítulo anterior: assim como
seus posicionamentos políticos de esquerda, seu estilo de vida é adequado a sua
posição estrutural e é mobilizado em seu processo de demarcação de fronteiras
simbólicas contra as frações econômicas.
89
Internamente ao padrão do senso de distinção, Bourdieu diferenciou o estilo de vida marcado pelo dispêndio
ostentatório e pelo luxo, típico da fração econômica das classes dominantes, do estilo de vida intelectual e
artístico, típico da fração cultural das classes dominantes. Esses gostos se constituem em oposição mútua sem
que com isso saiam do modelo geral do senso de distinção.
90
Bons resumos contemporâneos dessa agenda podem ser encontrados em Pulici (2009) e em Bertoncelo,
Netto, Ribeiro (2022).
169
91
É importante mencionar que a estratégia de recrutamento definida por Pulici teve relevante influência sobre
os resultados que obteve. Ela recrutou com base nos bairros da cidade de São Paulo, apoiando-se nos dados
que apontam para a homologia entre posições sociais e ocupação geográfica na cidade. A elite tradicional
entrevistada pela autora é fundamentalmente aquela que reside nos bairros-jardins (Jardim América, Jardim
Europa, Jardim Paulistano e Jardim Paulista), e a elite de ascensão recente é aquela que reside no Alphaville.
Isso fez com que Pulici não conseguisse observar com tanta precisão a oposição entre frações econômicas e
culturais entre seus entrevistados, o que teria conseguido se tivesse recrutado usando como indicador o grupo
profissional. Note-se ainda que sua amostra nos Jardins (23 entrevistados) é bem maior que sua amostra do
Alphaville (7 entrevistados).
92
Pesquisa amostral realizada em 2017 em todas as capitais brasileiras (Leiva, 2018) mostrou que a música
clássica era o estilo favorito de apenas 10% dos brasileiros, com apreço levemente maior entre aqueles com
ensino superior completo (lá é o favorito de 16%) e de classe de renda mais alta (favorito de 12% das classes
A/B). A mesma pesquisa mostrou que 66% dos brasileiros nunca foram a um concerto de música clássica, e que
apenas 11% havia ido pelo menos uma vez no último ano.
170
93
Ele utilizou dados secundários oriundos da pesquisa “Públicos de Cultura”, realizada pelo SESC e pela
Fundação Perseu Abramo com base em questionários aplicados em 2013 com 2400 pessoas em diferentes
regiões do Brasil. Bertoncelo analisou os dados por meio de análise de correspondências múltiplas e análise de
agrupamento hierárquico.
172
95
Já descrevi a estratégia de recrutamento e a composição dos grupos no primeiro capítulo (pp. 57-58, supra),
mas cabe relembrar que foram seis grupos construídos com base na classe e fração de classe: (1) estrato
profissional inferior com baixo capital econômico e cultural, (2) estrato profissional inferior com capital cultural
mais alto que o econômico, (3) estrato profissional médio com capital cultural mais alto que o econômico, (4)
estrato profissional médio com capital econômico mais alto que o cultural, (5) estrato profissional superior com
capital cultural mais alto que o econômico, (6) estrato profissional superior com capital econômico mais alto
que o cultural.
174
96
“Cultura”, grafada aqui entre aspas, refere-se ao uso mais restrito do termo, isso é, aquele que o associa às
artes e ao cultivo intelectual. Grafada sem aspas, refere-se à totalidade de símbolos que identificam um grupo
(Ortiz, 2017). Como lembra Bourdieu (2017, p. 95), o estudo da distinção cultural precisa unir ambos os
sentidos, mas para minha análise da fração cultural das classes médias é preciso separar os momentos em que
os entrevistados se referem ao sentido estrito do termo.
176
encontrar amigos, e isso tem a ver com o círculo de amizades restrito que tem em São
Paulo97.
97
Ela nasceu e viveu durante a infância e juventude numa cidade do interior do estado, foi para a capital para
estudar e lá se casou, teve um filho, e segue vivendo até hoje. Contudo, relatou na entrevista nunca ter se
adaptado totalmente ao ambiente da capital e, em particular após ter terminado a faculdade, não ter muitos
amigos. A vida intensa de trabalho e cuidado com o filho é outro complicador para uma vida com mais
atividades coletivas e de lazer.
98
Para mapear os usos do tempo livre dos entrevistados, havia duas perguntas no Questionário, uma sobre
prática (Questão 1: O que você faz com mais e menos frequência no seu tempo livre? Marque para cada
atividade abaixo.) e uma sobre interesse (Questão 2: Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível
de interesse, independente de fazer ou não as atividades.). Para ambas, as possibilidades de ocupação do
tempo livre eram as mesmas. Já nas entrevistas, eu fazia um conjunto de perguntas para tentar captar os
significados que eles atribuem para cada prática, quais mais e menos valorizam e qual a origem dessas práticas
ao longo de suas vidas (Questões 8 a 15 do Roteiro de entrevistas).
177
Débora: Acho que sou bastante gregária [...]. Eu tenho um círculo grande de
amigos, mas um número menor de pessoas que eu encontro com muita
frequência. Eu tenho uma rotina muito, de amigos muito presentes.
Cozinhar, receber pessoas em casa. Eu faço muita coisa em casa.
Gustavo: De onde vêm esses amigos? São de muito tempo ou são mais
recentes?
Gustavo: Além do cozinhar, quando você recebe pessoas em casa, têm outras
atividades que são legais de fazer?
Débora: Sim, eu acho que, a gente ouve música, a gente tem essa coisa de, sei
lá... aparelho de vinil [risos], tem a coisa de ter um cachorro, a gente tem
uma cachorra, e essas pessoas curtem também. Mas acho que é isso. E
conversa-se muito, acho que também essa é outra característica. A gente
bebe, né, além de comer, a gente bebe. E as conversas muitas vezes vão pra
uma profundidade, assim... inesperada.
Gustavo: Mas você sente, então, que tem uma diferença nessa sociabilidade
entre seus amigos da vila e esses do trabalho?
De onde vêm esses amigos? Como indica a citação de Débora acima, no caso da
maioria dos entrevistados os amigos vêm da faculdade e do trabalho, o que por vezes
se sobrepõe. Da infância e adolescência, quando as amizades permanecem, são muito
selecionadas e profundas. Adriano, por exemplo, tem uma amizade de infância que
não é abalada sequer pelas posições políticas contrastantes (um é de esquerda e o
outro é bolsonarista). Vêm também de outros espaços de formação, como passagens
por teatro amador ou cursos de formação diversos. Novos amigos surgem ainda pela
união com o círculo de sociabilidade dos companheiros amorosos, e para os
entrevistados com filhos, amizades surgem ou se intensificam pelas experiências
comuns com a criação das crianças. Assim, por diferentes caminhos, a tendência
179
99
Omar Lizardo (2006) notou, para o caso dos Estados Unidos, que o domínio da cultura legitimada é funcional
para o estabelecimento e fortalecimento de vínculos sociais, e com isso para a reprodução do capital social,
internamente aos membros das classes médias e altas no país. Portanto, assim como a tendência do debate
político num contexto de acirramento do conflito político é o da formação de comunidades de interação mais
fechadas ideológicamente (França et al, 2018), a tendência entre aqueles que se distinguem socialmente por
seu alto volume de capital cultural é a de fechamento social entre aqueles que possuem, igualmente, maior
volume de capital cultural.
180
Luciano: A minha rotina sempre foi bastante ocupada por estudo do meu
instrumento. Porque, quando você tá na faculdade de música, em geral, você
tem outras matérias, mas isso é o que eu sinto que determina um tanto da
dinâmica que músicos, formados em música, acabam estabelecendo pra vida.
Eu vejo que isso acontece também com vários colegas, e pra mim é uma
realidade, a gente acaba se dedicando bastante ao instrumento, de várias
formas diferentes. Além das matérias teóricas, o desvendar o instrumento e o
tocar dependem muito de um tempo pra experimentação, do contato com o
instrumento com uma perspectiva de estar livre.
***
Mas práticas artísticas são comuns também entre membros da fração cultural
das classes médias que não trabalham com elas profissionalmente, e aqui são
particularmente estratégicas para a valorização de seu capital cultural, na medida em
que, diferente do que ocorre com os profissionais, aparecem como práticas
desinteressadas, pautadas exclusivamente pelo prazer da realização estética. Ao
soarem desinteressadas, elas marcam aqueles que as realizam sob classificações
particularmente valorizadas entre as frações culturais: pessoas artísticas, com
sensibilidade estética, capazes de se expressar pela arte. Alex, por exemplo, apesar
de se dedicar profissionalmente à antropologia, também é músico, compositor, já
lançou um álbum e pretende lançar mais. Daiane também gosta de cantar e tocar, e já
participou de bandas, além de praticar atividades circenses. Alessandra escreve
poesias e participa de saraus artísticos em que pode apresentá-las publicamente.
Manuel já escreveu um livro de crônicas, e Flávio fotografa, com interesse particular
em ensaios de paisagem urbana; já pensou inclusive em vender algumas de suas
fotos. Leandro, Alex e Vinicius tiveram extensas passagens pelo teatro amador
durante a adolescência e início da idade adulta.
O tempo livre dedicado ao estudo está para o grupo dos acadêmicos como
aquele dedicado à prática musical está para o dos músicos, na medida em que a
181
Academias de ginástica 16 0 1 2 8
Restaurantes 14 11 2 0 0
Bares 8 11 3 0 5
Óperas, orquestras e
concertos de música 4 4 2 7 10
clássica
Cinema 2 10 9 2 4
Shoppings a passeio 2 11 8 1 5
Museus e exposições de
1 9 9 6 2
artes plásticas
Shows ao vivo 0 8 14 4 1
Teatro 0 5 14 4 4
Eventos esportivos 0 2 4 7 14
Espetáculos de dança 0 2 8 8 9
Pancadões 0 0 0 2 25
100
Os instrumentos de pesquisa aqui eram bem semelhantes aos aplicados para explorar os usos do tempo
livre. No Questionário havia questões sobre frequência a lazeres externos (Questões 3 e 5: Marque com qual
frequência você vai a cada atividade listada abaixo.) e sobre interesse por lazeres externos (Questões 4 e 6:
Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de frequentar ou não.),
com a mesma lista de possíveis lazeres externos para ambas. No Roteiro de entrevistas, um bloco de perguntas
(Questões 16 a 20 do roteiro de entrevistas.) era orientado para captar sentidos, legitimidade e origem das
práticas.
183
Restaurantes 0 0 6 21
Teatro 0 2 5 20
Shows ao vivo 1 0 7 19
Cinema 0 5 8 14
Academias de ginástica 4 3 10 10
Espetáculos de dança 4 6 9 8
Bares 2 3 16 6
Eventos esportivos 7 10 4 6
Pancadões 16 7 2 2
Shoppings a passeio 10 9 6 2
***
Mário: A gente tenta levar a nossa filha para o máximo de atividades assim,
possível, né. Então, sempre que tem um teatrinho, alguma coisa desse tipo,
direcionada pra ela, a gente acaba levando.
Mário: Por que nós achamos que isso enriquece a experiência dela, entende?
***
101
A entrevista com Débora foi realizada no começo de maio de 2023.
185
possível e num espaço limitado de tempo seu "valor" para seu interlocutor. Como o
"valor" principal de um membro das frações culturais é seu capital cultural, marcar os
encontros em espaços “culturais” é uma ação estrategicamente adaptada à
valorização de suas qualidades.
Luciano: Em geral, eu convido pra coisas que eu acho que são interessantes,
né, nesse caso. Coisas gratuitas ou... exposições, enfim, no Centro Cultural
Banco do Brasil, alguma coisa no Sesc. Também, uma coisa que funciona a
meu favor é, muitas vezes eu convido as meninas pra assistir a um concerto
que eu tô tocando aquela semana na orquestra, então... acaba que o rolê
cultural é dela, pra mim é trabalho, pra ela é rolê cultural [risos], depois a
gente sai, enfim. Então isso é... é uma boa prática [risos] cultural.
Além dos espaços “culturais”, os bares, que aparecem nas falas de diversos
entrevistados como um de seus espaços favoritos, constituem um lócus para a
sociabilidade que oferece oportunidades para a valorização do capital cultural
semelhante à das reuniões de amigos em ambiente doméstico. Para a maior parte dos
entrevistados, os bares surgiram no contexto universitário102, constituindo-se como o
lugar por excelência da sociabilidade universitária, para se conhecer pessoas e
conversar. Com o avançar da idade e a transição da faculdade para a vida
profissional, vai se estabelecendo um corte, como supracitado pelo exemplo de
Guilherme que disse que passou a chamar mais amigos para sua casa quando
começou a “se sentir adulto”. A frequência aos bares tende a diminuir e se
intensificam as reuniões nas casas de amigos, e com os companheiros amorosos e
amigos mais íntimos, os restaurantes vão se tornando uma opção mais atraente.
Mesmo assim, quase nenhum entrevistado deixou definitivamente de ir a bares:
Elaine: [o bar] é uma coisa que eu acho que faz mais sentido, que eu sinto
que é um lugar mais democrático, no sentido de que funciona pra todos os
meus amigos: se alguém quiser comer alguma coisa, vai ter o que comer, se
alguém quiser beber alguma coisa, não vai ter que pagar pra entrar.
Bastante semelhantes aos bares são as rodas de samba e choro, opção que não
constava no Questionário, mas que foi citada espontaneamente nas entrevistas por
cinco pessoas (Daiane, Débora, Isabel, Rafaela, Samuel). As rodas de samba atraem
por terem características semelhantes às dos bares, mas com o adendo da música ao
102
Alex e Samuel são exceções, pois já frequentavam desde antes junto de seus pais.
186
vivo de um dos estilos musicais favoritos dos membros da fração cultural das classes
médias: o samba.
Mas não é apenas por sua praticidade – explícita, por constituir um espaço que
atende às necessidades práticas de reunir pessoas, comer e beber, e implícita, por
constituir um contexto propício para a valorização do capital cultural – que os bares
têm papel de destaque na composição dos estilos de vida dessa fração de classe. Os
bares, assim como os momentos de reuniões com amigos para conversar, ganham
importância destacada entre a fração cultural das classes médias por remeterem a
uma referência arquetípica que ressoa fortemente sobre essa fração de classe: a
boemia. A descrição feita em História da vida privada sobre o estilo de vida boêmio
da França de meados do século XIX chama a atenção, aqui, pela proximidade com
diversas falas de meus entrevistados.
Guilherme: Bares, sim, com certeza, embora eu não beba; só fiquei bêbado
uma vez, foi quando o Corinthians ganhou a Libertadores, mas de resto... Eu
não bebo muito, mas eu vou, eu ia muito a bares, assim, uma vez por
semana. Eu era o cara que organizava os bares. Eu organizava, era o último a
ir embora, não bebia nada e ainda não levava ninguém embora, porque eu
não sei dirigir... Mas, enfim, eu ia muito, toda sexta-feira, pelo menos, se eu
pudesse, juntava pessoas diferentes...
Ocupando seu tempo livre com uma variedade diversa de práticas que podem
ser classificadas como “culturais” e que oferecem para eles a possibilidade de estetizar
sua vida mundana, e com isso demonstrar sua maestria simbólica, os membros da
fração cultural das classes médias paulistanas constroem uma identidade coletiva que
os identifica, propriamente, como sujeitos “culturais”. Trata-se de um estilo de vida
particularmente adequado para sua posição social, na medida em que oferece grande
amplitude de oportunidades para que eles exibam publicamente e, com isso,
valorizem e transformem em capital simbólico seu capital cultural incorporado.
de música clássica, o capital cultural que possuem, isso é, seu domínio incorporado
da cultura legitimada, se expressa pelo conhecimento e apreço dos objetos ou estilos
que são, por si mesmos, entendidos como exemplares da cultura que é mais
valorizada. É na mesma linha que se pode compreender que entre seus gostos
musicais predomine a MPB, entre seus gostos literários os clássicos da literatura e
entre seus gostos audiovisuais os documentários. Em todos os casos, a preferência
não é difícil de ser explicitada pois as categorias apontam para escolhas “seguras”.
103
Para captar as preferências musicais, literárias e audiovisuais dos entrevistados, havia no Questionário uma
série de estilos de cada um dos três domínios culturais para eles marcarem os seus favoritos (podiam
selecionar até três opções em cada domínio) e os que menos gostam ou não gostam (também até três opções).
Um bloco de questões no Roteiro de entrevistas era dedicado também a captar os sentidos que atribuem aos
diferentes estilos musicais, literários e audiovisuais, suas noções de legitimidade e a origem dos gostos.
Perguntas 8, 9, 11, 12, 14 e 15 do Questionário; perguntas 21 a 41 do Roteiro de entrevistas.
104
Guilherme, Roberto e Vinicius marcaram no questionaram que não leem livros regularmente, por isso não
responderam a pergunta sobre preferências literárias.
189
Temas religiosos ou de
4 Fantasia 3
espiritualidade
Best Sellers 3 Biografias 2
Ficção científica 2 Best Sellers 1
Fantasia 2 Clássicos da literatura 0
Empreendedorismo, liderança e
1 Suspense ou mistério 0
investimentos
Histórias em quadrinhos 1 Poesia ou poemas 0
No entanto, como lembra Douglas Holt (1997), mais do que a escolha pelos
objetos que são por si só legitimados, a expressão do capital cultural é mais
precisamente a demonstração de um domínio incorporado das formas mais
legitimadas de apreciação dos bens culturais, isso é, mais especificamente, uma
apreciação propriamente estética. Assim, a demonstração da disposição estética por
meio da qual podem exibir, e com isso valorizar, sua maestria simbólica deve ser
constatada não apenas pelos bens e estilos que eles afirmam apreciar e não apreciar,
mas também pela forma como entendem a variabilidade de formas e expressões que
valorizam e que desvalorizam. Dito de outra maneira, é preciso observar a forma
105
Lucia*, Marcio* e Vinicius marcaram no questionaram que não assistem a filmes e séries regularmente, por
isso não responderam a pergunta sobre preferências audiovisuais.
190
Luciano: Tem esse pessoal da orquestra, logo que eu separei, tem uma turma
que... é muito curioso, muito legal, que eles curtem rave, eles curtem música
eletrônica, assim... e é, assim, a harpista, o oboísta, o violista, são as pessoas
que você diria que é a mais careta e é a mais doida [risos]. E eles falaram,
"vamo numa rave", e aí, no final do ano passado, eu nunca tinha ido... não
chega a ser uma rave, não era exatamente uma... mas era uma dessas
baladas que começam nove da noite e termina dez da manhã, e com música
eletrônica [...]. Tem uma maneira racional de se ouvir música, que essa a
gente, enquanto músico, é um aprendizado tão intenso que a gente não
consegue se desfazer. Então, quando eu ouço uma música, eu tô ouvindo a
estrutura dela, é inevitável, eu não consigo evitar isso. E meu gosto também é
um tanto esse julgamento. Então, quando eu vou numa, sei lá, numa balada
no Bar do Julinho, é obvio que eu não tô preocupado se tá desafinado ou se
não tá. Mas eu presto atenção naquilo, aquilo me chama a atenção. E tem um
jeito de ouvir música que é esse jeito físico, que é uma experiência única,
porque... inclusive também pra mim foi muito difícil não ficar decupando o
que que era aquela música. Porque eu sempre tive essa sensação de, o que
que atrai as pessoas pra uma balada de música eletrônica, né.
Luciano: O meu desgosto é muito mais uma birra, e também porque eu acho
que são estilos – principalmente o sertanejo e o axé atual –, essa coisa que é
um pouco enraizada... que no fundo, o pop vai trazendo tudo pra um nível de
superficialidade tão grande, que acaba ficando tudo muito parecido. Então,
você começa a ouvir uns sertanejos que tem uma levada meio reggaeton, e
você começa a ouvir um axé que parece sertanejo, e você fala, "pô, mas tá
tudo igual". Porque tem, realmente, a estandardização. Todo mundo acha
que encontrou a fórmula perfeita e fica tentando repetir aquilo ad nauseam.
Pra mim, esses estilos são os que mais entraram nessa questão de você ter
absolutamente produtores – não existe mais compositor de música –, então
existe o produtor que faz uma letra que é uma mescla daquilo com aquilo,
com não sei o que, e a voz, quem vai cantar é não sei quem, com esse tipo de
filtro na voz... Então é uma coisa que é tão pacotinho, e esses estilos estão
192
virando isso. Há um bom tempo já são isso. Pra mim, é um tipo de estilo
plástico, altamente descartável, pouco profundo em todos esses aspectos.
Em linha com a seriedade de sua relação com a cultura que já havia sido
notada nos grupos focais do projeto Para além da distinção, entender seus gostos
como exemplares de uma cultura complexa é propício para a valorização de seu
capital cultural pois transforma em desafio aquilo que, para as frações econômicas, é
meramente uma diversão. Para a fração cultural das classes médias, aquilo que eles
gostam é desafiador, e por isso necessita uma formação, necessita um aprendizado
prévio, necessita esforço, cultivo. A pessoa que demonstra seu apreço pelo que é
complexo precisa ser ela mesma uma pessoa complexa, uma pessoa que investiu seu
tempo para enfrentar os desafios impostos por uma cultura desafiadora.
Alex: Naquela época o importante, pra mim, era viajar numa ideia de que a
música tem que ser um troço difícil, a música ser um troço complexo, de
difícil execução, cerebral, onde tem que ter muito virtuosismo, muita
transpiração técnica. Eram coisas que me deixavam ligado. E todas as
músicas faziam isso, de alguma forma, todas essas músicas faziam isso, né. O
metal de uma forma que depois, pra mim, foi a que caducou mais cedo, que
pra mim ficou uma coisa enjoativa e anacrônica. Mas o clássico, o jazz e o
rock progressivo eram essas coisas que tentavam levar a ideia da
performance musical e da composição a meio que um limite. E quando eu
era moleque, com 16, 17 anos, aprendendo a tocar guitarra, eu curtia tudo
aquilo que eu não conseguia tocar. Eu não conseguir tocar já era um ponto
positivo. E, ao mesmo tempo, a gente pegava as musiquinhas pop, tirava em
dois minutos, era divertido, mas, eu falava, "tá bom, ok, isso não interessa
pra mim".
Alessandra: Sim. Agora, em janeiro, a gente foi pro Chile. Então na viagem a
gente foi pra museu, pro centro histórico...
Guilherme: Eu acho que o sertanejo, o axé e boa parte do pagode são muito
comerciais, e por causa disso pode até haver um ou outro que pra mim se
destaque como música e que me interesse – sei lá, músicas do Raça Negra
que eu acho interessantes, ou do Só Pra Contrariar, ou de outras bandas
assim. Mas como movimento, me parece que é um movimento que engole
esses mais autênticos, até bota eles num lugar de bichinhos de estimação,
pra cantar sobre assuntos que realmente não me interessam...
Elaine: Quando eu falo de exposição, tenho que ser sincera pra você, tô
falando de coisas bem... normalmente não são coisas super pequenas, são
coisas tipo o MASP, Pinacoteca, coisas mais... populares, mesmo. Popular no
sentido de que tá todo mundo falando sobre isso. É muito mais raro eu ir
numa exposição, em alguma coisa que seja menor, que seja mais
independente, tudo mais [...]. Eu acho que eu tinha que ter um interesse
maior. Eu acho que eu tenho um interesse, mas eu acho que deveria ser um
interesse maior pra acessar coisas fora do... da bolha. É muito mais fácil você
ficar sabendo o que está acontecendo no MASP, na Pinacoteca, do que numa
galeria pequenininha, independente, com artistas que estão começando.
São falas que acentuam a legitimidade desses espaços entre a fração cultural
das classes médias paulistanas e que destacam a valorização particular do
conhecimento especializado a seu respeito. Nos termos de Elaine, os espaços
pequenos e pouco conhecidos são os mais “profundos” e “sérios”.
Elaine: E eu até acho que existem coisas muito mais... populares, e... acho
que a gente pode falar, mainstream, do que isso. Eu sei que tem exposições
que ficam esgotadíssimas que é, sei lá, exposição do Monet, de projeção, que
eu sei que lotam muito, e que é um jeito de falar de arte de uma maneira
mais acessível pra pessoas que não tem tanto esse interesse, que vão lá pela
foto no Instagram, que vão lá pelo, "ai, vi todo mundo postando, também
quero ir", sabe? Então eu acho que eu fico no meio termo entre isso que é
muito... meio superficial, e o que é bem mais profundo, bem mais sério, bem
mais pequeno, sabe?
sim de recusar uma arte que é feita primordialmente com orientação para o lucro
econômico. Denegar o valor econômico das produções culturais é, inevitavelmente,
valorizar seu valor estético, valorizar seu valor enquanto cultura legitimada, e com
isso, indiretamente, valorizar os sujeitos que dominam e preferem a cultura
legitimada. Samuel forneceu ao longo de sua entrevista alguns dos melhores
exemplos dessa associação entre denegação do econômico e valorização do autêntico,
do raro, do alternativo.
Comparar os filmes blockbusters com Coca-Cola não poderia ser mais claro
em seu esforço de associar o cinema mais popular a um produto simbólico do
marketing capitalista. Samuel repete a mesma estrutura argumentativa quando diz
que prefere o teatro lado B:
Por isso, Alex lê regularmente a Revista 451 (sobre literatura), Débora lê o guia
cultural da Folha de São Paulo, Rosângela lê a Ilustrada e Marlene segue perfis no
Instagram que dão dicas sobre atividades culturais. Leandro frequenta festivais de
cinema e Samuel diz que sempre vai à Bienal de São Paulo. Regina acompanha e
sempre tenta ler os livros que vencem o Prêmio São Paulo de Literatura, e Elaine,
Flávio, Guilherme e Rafaela sempre se esforçam para assistir aos filmes indicados ao
Oscar.
Guilherme: Gosto bastante de cinema europeu, assim, acho que o filme que
eu mais vi foi aquele A Vida dos Outros, que é um filme alemão, não sei se
você conhece. Enfim, ganhou o Oscar, o ator morreu pouco depois. É... eu
tendo a ver os filmes do Oscar com alguma frequência, quase todos, assim,
pelo menos saber que é uma referência ali, dá pra ver rápido.
106
Com isso, acompanho as extensas críticas que já foram feitas à hipótese do onivorismo cultural, que
propunha que as classes mais altas apresentariam cada vez mais a tendência ao ecletismo cultural, e com isso
197
não causa temor a Guilherme dizer que gosta de música brega, à Rosângela
mencionar seu apreço por Sidney Sheldon ou a Luciano fazer um comentário
elogiativo a É o Tchan!. Em todos esses casos eles encontram formas de mostrar que
seu apreço é estetizado, o que o torna valorizado entre aqueles que reconhecem o
valor da disposição estética.
Luciano: Eu acho que existe sertanejo muito bom, acho que existe... música...
axé muito incrível. Acho que, por exemplo, o movimento do axé, que é uma
coisa de pegar certos estilos... é, pouco, pouco inseridos na música pop, e
transformar aquilo em música pop, que é o que o É o Tchan! fez, a
Companhia do Pagode... pegou lá umas coisas que tavam... né, e deixar
aqueles ritmos, que são muito, muito baianos, muito negros, e trazer pra
uma coisa pop, eu acho que é, é inclusive rico. O funk, em muitos aspectos,
eu acho que é um estilo musical absolutamente rico no significado social que
ele tem, enfim. Então... e mesmo quanto à produção, quanto às letras, muitas
vezes, né.
Por meio de todo esse conjunto de padrões, fica evidente que, além de terem
um estilo de vida mundano marcado pela valorização de tudo aquilo que possa se
encaixar sob a classificação de “cultural”, os agentes posicionados nas posições
tipicamente culturais das classes médias paulistanas são fortemente predispostos
estruturalmente a desenvolver estratégias de valorização de seu capital cultural por
meio da forma como compreendem e expressam sua relação com a cultura. Pelos
diversos meios analisados eles mostram que acreditam na existência de uma
hierarquia cultural (por mais que ela seja denegada no discurso explícito) e que, por
conta de seu conhecimento, de sua disposição para a apreciação estética, de seu
esforço ascético para a formação cultural, e mesmo de seu conjunto delimitado de
práticas e preferências culturais “seguras”, eles estão mais próximo do polo mais
legitimado das possibilidades culturais. Portanto, assim como suas posições políticas
de esquerda analisadas no segundo capítulo, sua forma de relação com a cultura é um
caminho que eles encontram para se valorizarem enquanto sujeitos diante das
demais posições sociais, sobretudo das frações de classe econômicas.
se mostrariam menos dispostas a promover exclusões das classes mais baixas com base nos estilos de vida
(Peterson, 1992; Peterson; Kern, 1996). Não importa o quão ampla é a gama de objetos culturais e de vertentes
estéticas que compõem o estilo de vida dos membros das frações culturais, pois seu capital cultural
incorporado sempre tende a demarcar uma fronteira contra aqueles com menor capital cultural por meio da
forma como compreendem e se relacionam com os bens simbólicos. Para críticas a hipótese do onivorismo
cultural, ver Gayo (2015).
198
Roberto: Eu gostaria de fazer muita coisa, mas como a gente tá vivendo inda
uma fase de bastante restrição financeira e de desafios nessa área
profissional, econômica, então... muito do que eu gostaria não é possível de
ser feito nesse momento. [...] Gostaria de ter uma vida cultural um pouco
mais ativa. Talvez não tanto quanto o meu fôlego juvenil já trouxe, mas
gostaria de estar indo mais a salas de concertos, a óperas, enfim... curtindo
mais a parte gastronômica também.
Mesmo assim, por mais que não consigam acessar com toda a liberdade a
cultura legitimada da forma como consegue a elite tradicional paulistana, ao que tudo
indica a fração cultural das classes médias ainda possui volume bastante elevado de
capital cultural quando comparada com as classes populares como um todo, com a
fração econômica das classes médias, e mesmo com a elite de ascensão recente.
Assim, em adequação com sua posição no espaço social e com o pressuposto geral de
que estão todos tentando defender seu capital (Bourdieu, 2020), a tendência
estrutural desses agentes é a de traçar uma fronteira cultural baseada no domínio da
cultura legitimada para demarcar sua identidade coletiva e para organizar sua
hierarquia de prestígio. E, de fato, é isso que eles fazem, como indicam as respostas
que deram para as questões mais diretas sobre seu trabalho de demarcação de
fronteiras simbólicas.
sobre comida, sobre sociedade, sobre política, sobre filosofia. É uma valorização da
"intelectualidade" e do "cultivo" cultural, da pessoa “ilustrada”. Conceituando, a
fronteira cultural é construída para valorizar justamente a maestria simbólica.
Nesta linha, Leandro diz que pessoas que não sabem falar sobre cultura e sobre
política não lhe interessam, Mário reprova fortemente uma pessoa que só converse
sobre assuntos "triviais" e que afirme não ter interesse em falar sobre filosofia,
Regina e Vinicius valorizam pessoas "bem articuladas" e capazes de falar sobre
assuntos variados, como literatura e gastronomia. Em todos os casos, o conhecimento
amplo sobre os espaços simbólicos é o que demarca a posição de alguém na
hierarquia de prestígio construída pelos entrevistados.
Mário: Aquela pessoa que só conversa sobre trivialidades não é alguém que
[risos], que vai ter a minha atenção por muito tempo. Ou... que recusa algum
assunto, sei lá, você tá ali, é uma pessoa do seu convívio, você quer falar de
algum assunto que pode, assim, nem ser lá da expertise dela, mas... recusar
um assunto [risos], é uma coisa, pra mim, muito estranha. Sabe, falar, "ah,
não vamos falar disso não"... Falar que, sei lá, que filosofia é muito chato,
entediante. Pô, entediante? Como assim?
107
Rafaela também falou que "paga um pau" para quem sabe falar várias línguas, exemplo clássico de
valorização de maestria simbólica.
201
Regina: Eu sempre fui uma pessoa que gostou de estudar, e eu lembro de, no
ensino médio, de ter aula, pela primeira vez, de literatura. E eu lembro que o
primeiro livro que a gente teve que ler era A metamorfose, do Kafka, e aí
[risos], foi um choque pra mim. Eu lia, mas eu nunca li algo, né, dessa forma.
Então eu vi como uma forma de, acho que de tentar me melhorar. Acho que
até com uma certa pretensão, né. Era uma cabeça muito diferente. De achar
que aquele conhecimento me tornaria uma pessoa melhor [risos], uma
questão nesse sentido.
Débora: Acho que as pessoas que eu gosto, no geral, elas são... elas são
rápidas, inteligentes e criativas. Eu acho que essa é uma coisa que eu gosto
nas pessoas. Pessoas que tem capacidade de responder rápido, pessoas que
tem um humor, que tem um sarcasmo, e que conseguem ter essa... sei lá, não
sei se a palavra é essa, mas uma acidez sendo gentil, educado.
Gustavo: Não.
são muito... postáveis. Mas, você vê que a pessoa é o tempo todo assim... Que
é boa parte dos bolsonaristas.
A partir desses excertos é possível notar que, assim como a elite tradicional
paulistana mobiliza seu domínio da cultura legitimada e sua capacidade de
estetização da vida mundana para se separar e se valorizar diante dos "novos ricos", a
fronteira traçada pela fração cultural das classes médias paulistanas é concebida por
eles para separá-los e valorizá-los diante da fração econômica da mesma classe, que
não possui capital cultural suficiente para desenvolver as variadas estratégias de
valorização da cultura legitimada de que os membros da fração cultural são capazes, e
que, mesmo assim, são a fração estruturalmente dominante das classes médias, tendo
em vista a dominância estrutural do capital econômico sobre o cultural já explicada
no primeiro capítulo. Por isso, cabe repetir, é tão importante para a fração cultural
valorizar como parte de seu estilo de vida a denegação do econômico108.
No entanto, também em proximidade com o que ocorre com as elites
tradicionais, a fronteira cultural traçada pela fração cultural para se valorizar
simbolicamente acaba tendo como resultado não-intencional sua separação também
com relação às classes populares como um todo. Esse efeito é não-intencional pois há
um esforço explícito dos entrevistados de se mostrarem abertos para a cultura
popular e de se mostrarem democráticos com outras expressões culturais (aqui sente-
se fortemente a influência de seu esforço moral pelo igualitarismo, descrito no
segundo capítulo). Por mais que haja, como já mencionado acima, diversos exemplos
de expressões de cultura popular na composição de seus repertórios de práticas e
preferências, a demarcação de valor baseada no capital cultural acaba, quase que
inevitavelmente, se transformando numa fronteira simbólica que separa a fração
cultural das classes médias em relação às classes populares.
Este é o momento para notarmos que o cultivo cultural e as variadas formas de
domínio da cultura legitimada descritos até aqui variam de acordo com a origem de
classe. Uma parte dos entrevistados vem de famílias que já possuíam maior volume
de capital cultural, que portanto eles puderam herdar desde a infância. Outros, sem
acesso ao capital cultural por conta da origem de classe popular, sentiram fortemente
a pressão pela adequação ao estilo de vida "cultural" e ao conhecimento da cultura
legitimada ao longo de seu processo de associação às posições culturais do espaço
108
Vale remeter aqui ao trecho da entrevista de Flávio (arquiteto), já citada no primeiro capítulo (p. 64, supra),
em que ele dizia que o que mais reprova em seus colegas de profissão é a busca pelo lucro acima de tudo.
203
social, e precisaram correr atrás desse acúmulo num período tardio de suas vidas.
Essa pressão é sentida de diversas maneiras, e em todas elas existe algum nível de
violência simbólica.
Adriano: Por exemplo, quando eu entrei na Sala São Paulo na primeira vez,
eu me vestia totalmente diferente. Então, quando eu recebi minha primeira
bolsa lá, que a gente chamava de bolsa, né, que é o... o incentivo que a gente
tem, né, que na época era mil reais por mês. A minha professora lá da
Academia de Música me disse pra eu, "ai, que bom, né, bonitinho, então
agora que você ganhou mil reais, agora que você pegou sua primeira bolsa,
vai lá comprar umas roupinhas diferentes pra andar aqui na Sala São Paulo"
[risos]. Então isso é uma... isso pra mim foi um choque, na verdade. Não foi
difícil, mas pra mim foi um choque. Porque aí eu percebi que, "poxa, nem
roupa eu tenho pra andar nesse lugar", saca? E ai eu tive aula de português
na Academia de Música... também, eu falava totalmente na gíria o tempo
inteiro... É óbvio, né, você sai da periferia, na periferia você fala, com seus
amigos, você fala em gíria, você fala de um jeito... E lá eu aprendi que eu
podia falar a minha gíria quando eu tava com os meus amigos, mas quando
eu tava nesses outras outros ambiente eu tinha que falar um certo tipo de
linguagem, né. Então, isso pra mim foi um choque.
Rosângela: Eu adoro ler. Eu posso dizer que fui traumatizada, e você vai
entender minha família [risos]. Quando a gente tinha oito anos, meu irmão
mais velho falou assim, "querida, tem tanta criancinha que não tem dinheiro
para comprar um gibi, tal, o que você acha de a gente fazer uma cestinha,
você doa seus gibis, a gente vai, entra no carro, a gente distribui, e em troca
você ganha um livro, porque agora você já tá ficando maior e tal?". Aí, eu
achei até interessante a ideia, falei, "ah, legal, vamos lá". Aí o meu irmão me
deu Os irmão Karamazov pra ler... tipo, pessoa surtada. E eu fiquei dois dias
em profunda tristeza, porque eu não conseguia avançar, porque eu não
conseguia soletrar os sobrenomes que apareciam, assim, com destreza, pra
passar pela linha. Aí a minha irmã chegou em casa do plantão, viu eu com
aquele livro, ficou fula da vida, saiu do meu quarto, foi no quarto do meu
irmão, quebrou o maior pau com ele. Eles voltaram juntos e me entregaram
O menino de engenho. Foi o primeiro livro que eu li.
Alex: Ele chega com a mudança dele, e com a mudança dele tem tipo 800
vinis e 350, 400 CDs. Muita música, muita música. E eu era uma criança que
não conhecia vinil, porque antes dele em casa não tinha vinil, não tinha CD
[...]. Mas em compensação, o meu padrasto veio com um monte de coisa, e os
discos, olhar para os vinis, pras capas, aquilo me enfeitiçou. E muito cedo ele
me ensinou, ele e minha mãe me ensinaram, a pôr o disco na vitrola, e daí eu
comecei a adquirir um hábito de ouvir música em casa, no meu quarto.
***
Luciano: Eu fui criado com muita MPB. Meu pai sempre teve coleção de vinil
em casa. Então eu me lembro de quando eu tinha uns 14, um pouco menos,
uns 12 anos, eu lembro de ouvir lá na escola de música A Sagração da
Primavera, do Stravinsky, e eu não sabia o que era aquilo, fui procurar nos
discos do meu pai e encontrei lá. Fui ouvir, era lá um bolachão que ele tinha
comprado, então passava umas tardes longas lá, não tinha o que fazer,
coloquei o vinil e ouvi a música inteira. Eu fiz isso com muitos discos. E
nesse meio tinha muito Milton Nascimento, muita MPB, geral. Meu pai
sempre gostou muito de música instrumental, então tinha muito Borghetti,
Dominguinhos, Altamiro Carrilho, chorinhos, ele sempre gostou. E o gosto
dele pessoal era música sertaneja. Então ele tocava muito no teclado Leandro
e Leonardo. Eu vi praticamente na hora em que acontecia o lançamento
dessas músicas, tipo Pense em Mim, Evidências, sabe? Porque lançava e o
meu pai era o primeiro a comprar o disco, a tirar a música, tocar a música
sem parar. Então, eu também tenho esse lado da música brega. Meu pai
sempre gostou de Waldick Soriano, sempre gostou de coisas muito ruins,
tipo Genival Lacerda…
Alex: O meu pai sempre gostou muito de teatro, desde que ele era garoto.
Então, em casa já existia uma pessoa que falava, "teatro é arte, teatro é
importante, teatro tem um valor humano quase que transcendental". Ele
ainda é assim. A gente conseguiu ir, ano passado, que estava reabrindo, a
gente conseguiu ir certinho no teatro uma vez por mês, fomos pegando tudo
que era espetáculo aqui em São Paulo e indo. Então, eu já era uma criança
que já tinha ido ver uma peça do Antônio Fagundes, uma peça do Marco
205
Nanini, porque o meu pai falava, "porra, tá tendo essa peça, eu quero levar o
Alex, porque eu acho que é importante”.
Falas análogas foram feitas por Elaine, dizendo que seus pais sempre se
preocuparam em levar ela e a irmã para museus e exposições de artes, por Rafaela,
falando sobre ser levada a eventos artísticos pela mãe, por Rosângela, falando sobre
ser levada regularmente ao teatro por seus pais, e por Samuel, falando que sua mãe
sempre o levava para as bienais e a outras exposições de artes durante sua infância.
Rafaela: A minha mãe gostava de fazer tudo que tivesse a ver com arte, e ela
adorava fazer as coisas com a gente. E ela sempre dava uma fugida do
mainstream, assim. Tem uma que a gente lembra sempre que era o Teatro
Ventoforte. Ela levava a gente sempre, sempre, sempre que tinha coisa ela
levava a gente no teatro Ventoforte [...]. Levava a gente em exposição, levava
em tudo que ela achava que era legal, mas, assim, ela já levava a gente pra
ver, tipo, arte. Não era coisa de criança. Eram coisas para criança, mas com
uma veia artística que ela achava que eram mais legais, assim.
Gustavo: Tá certo. E você disse que ela gostava de uns lugares mais
alternativos, fora do mainstream.
Rafaela: É.
Rafaela: Bom, Teatro Ventoforte nunca foi mainstream, né. Então... isso é
uma coisa que eu lembro que ela levava a gente, as outras coisas eu não
lembro, porque eu era muito minúscula [risos]. Mas eu lembro da gente tá
sempre fazendo alguma coisa, com a minha mãe. Eu lembro uma vez que a
gente foi numa exposição do Picasso no MASP. Eu era pequena e foi minha
vó também, porque uma época ela pintava... pintava de hobbie, assim, né,
mas fazia aula, minha mãe tinha dado um cavalete super bonito pra ela. E aí
eu lembro que eu tinha parado na frente de um quadro que tinha uma
mulher com os elementos do rosto tudo em lugar trocado. E eu fiquei muito
intrigada com aquilo, aquilo meio que me pegou, assim. E minha vó me
perguntava, "qual você mais gostou?", e eu falava, "a mulher com a cara
torna, a mulher com a cara torta, a mulher com a cara torta" [risos]. Eu
lembro que, quando eu... assim, era muito comum a minha vó ir me buscar
na escola, porque a minha escola era perto da casa da minha vó. E aí tinha
uma fita VHS que tinha o balé Romeu e Julieta, que é feito pra música do
Prokoviev Romeu e Julieta. E a gente assistiu muitas vezes. E aí eu lembro
que quando eu fui tocar essa música, veio direto, assim: eu na casa da minha
vó, a gente comendo alguma coisa gostosa que tinha comprado no caminho,
assistindo o balé do Prokoviev.
cobrança por formação cultural nessas posições do espaço social se evidencia uma vez
mais quando se nota que mesmo alguns dos herdeiros sentiram a pressão pela
adequação a um estilo de vida marcado pela necessidade de reconhecimento e
valorização da cultura legitimada ao longo de seu processo de associação às posições
típicas da fração cultural. Assim, Alessandra, filha de um professor universitário que
lia muito em casa, adquiriu o hábito da leitura ainda na infância, mas sentiu que
precisava ler ainda mais quando entrou para a graduação. Também Rosângela, que
teve profunda formação cultural durante a infância e adolescência, sentiu que
precisava ampliar sua formação no período universitário e início da vida profissional,
sobretudo quando foi trabalhar com jornalismo cultural. Alex, por sua vez, fez uma
fala exemplar sobre como passou a perceber de maneira mais explícita a existência de
uma cultura legitimada quando entrou para a USP.
Alex: A coisa dos museus e das exposições é uma coisa mais do começo da
vida adulta, por essa espécie de ressocialização na vida universitária [...].
Nesse momento é que eu percebi que existia um certo circuito, um certo
repertório, certos autores, que eram entendidos como cultura legítima, e eu
disse, “é isso que eu quero, eu quero sacar disso, eu quero entender isso, eu
quero ter familiaridade com isso”. Foi nessa fase, 22, 23 anos.
você ler todos esses livros você volta aqui e a gente conversa", aí eu falei,
"isso aqui não é pra mim!" [risos].
conheço tal história, porque eu acreditava que eu já, né... poxa, uma mulher
adulta, trabalhando numa escola, sou assistente social, e eu tenho que saber
meio que de tudo, né. E não, na verdade não. A gente tá sempre nesse
aprendizado, nessa constância, na busca de informações. Então, muitas
vezes eu não ia.
Marlene também mencionou que passou a ouvir MPB apenas na idade adulta,
pois foi percebendo aos poucos que conhecer as referências do estilo era algo
valorizado no ambiente acadêmico e profissional no qual estava adentrando. Ao
mesmo tempo, foi entendendo também que seria mais seguro esconder dos colegas a
preferência musical pessoal que trazia da infância: o pagode.
Marlene: Tem, sim, uma parte que eu comecei a ouvir mais a MPB porque eu
gosto e porque as letras, sim, têm o seu refinamento, e acredito que também
um pouco em busca de mais informações, e de mais conteúdo também pro
meu trabalho. Porque, por mais que eu tenha começado a ouvir por volta dos
meus vinte e tantos anos, eu não sei você, mas eu, atuando na área social, eu
percebo que, muitas vezes, isso... principalmente na parte mais, assim,
acadêmica, enfim, é muito valorizado. E não que não deva ser valorizado,
porque é de uma riqueza incrível, né, as letras, as composição, e até as letras
um pouquinho mais antigas que, às vezes, tem um viés de luta, um viés
político, e teve uma necessidade, foi uma forma de expressão. Mas é muito
valorizado, né. É extremamente valorizado. É muito legal você virar e falar,
"poxa, eu ouço Gilberto Gil, eu adoro!", ou então, "eu escuto Caetano"... soa
muito melhor no nosso mundo de acadêmico e de trabalho do que eu virar e
falar, "ah, eu gosto de Sorriso Maroto! Eu gosto de Pixote!", né [risos], sem
sombra de dúvidas! Então, eu também não vou negar pra você que também
teve esse viés.
a estabelecer uma relação séria e ascética com uma cultura que por si mesma é
complexa, então, encontramos aqui todas as condições para que os pretendentes às
posições culturais de origem popular sejam excluídos ou, quando incluídos, que se
sintam sempre atrasados, equivocados, inadequados, ameaçados. Os não-herdeiros
têm todas as chances de se sentirem excluídos no interior, vivendo sob a sombra da
desclassificação que os faz sentir que qualquer pequeno desvio do estilo de vida
legitimado é o gatilho para mais uma experiência de violência simbólica. Aqui
identificamos, portanto, como a cultura se transforma em poder e em dominação,
como ela se torna passível de demarcar pertencimento coletivo e, o que é
consequência disso, como opera na exclusão de um conjunto de agentes de
determinadas posições sociais.
momento de maior polarização política nos EUA até então, as eleições presidenciais
de 2004, era perceptível o ápice desse processo: as pessoas foram tornando suas
comunidades mais homogêneas, sociabilizando (em igrejas e clubes, por exemplo)
com pessoas que pensavam como elas. O efeito colateral dessa segregação foi que, na
medida em que as pessoas passaram a ouvir cada vez mais apenas as suas próprias
convicções refletidas e amplificadas nos pares ao seu redor, foram também se
tornando mais extremas em suas formas de pensar (Bishop, 2008, pp. 8-21).
A explicação de Bishop para esse processo que chamou de A grande separação
(The big sort) se assenta numa mudança nos critérios que pautam as migrações
internas no país, que foram se tornando cada vez mais seletivas, baseadas em
características mais minuciosas dos locais. Sobretudo a partir da década de 1970, a
prosperidade e segurança econômica passaram a permitir que grande parte da
população estadunidense reorganizasse suas vidas com base em valores, gostos e
crenças. Tendo mais opções de mobilidade do que nunca, os estadunidenses se
tornaram cada vez mais segregados, passando a conviver em grupos de pessoas que
pensam da mesma forma. Tal homogeneidade foi sendo transmitida para as igrejas,
clubes, organizações voluntárias e partidos políticos, criando comunidades de estilos
de vida diferentes. Por fim, a grande separação passou a impactar na própria política
institucional: líderes políticos foram se tornando mais ideológicos, menos
moderados, mais partidários, auxiliando assim no espraiamento dessa reorganização
ideológica para as demais associações e instituições do país. O resultado da grande
separação é que os estadunidenses passaram a achar os outros grupos cada vez mais
incompreensíveis, crescendo com isso a intolerância e tornando o consenso mais
improvável (Bishop, 2008, pp. 42-56).
Bishop mostra com base no conjunto de dados produzido que um condado
democrata e um condado republicano (medidos pela votação nas eleições
presidenciais) passaram a agregar cidadãos que apresentam, internamente, cada vez
mais práticas e preferências culturais em comum. Os democratas preferem ficar com
amigos em parques e locais públicos, acreditam que religião e política não deveriam
se misturar, assistem noticiários matinais e late nights, ouvem rádio matinal, leem
revistas semanais, assistem televisão aberta, leem publicações sobre música e estilos
de vida, tendem a assinar serviços de locação de DVDs e têm mais chance de ter gatos
como animais de estimação. Já os republicanos preferem ir para a igreja, passam
mais tempo com a família, acessam notícias pela Fox ou pelo rádio, possuem armas,
212
leem revistas sobre esportes e sobre casa, vão a estudos da Bíblia, visitam parentes
com frequência, falam sobre política com pessoas da igreja, acreditam que as pessoas
deveriam ter mais responsabilidades por suas vidas, acreditam que uma grande força
é a melhor maneira de derrotar terroristas e tem mais chance de ter cachorros como
animais de estimação. Esse compartilhamento de estilos de vida é perceptível no
espaço, e as pessoas começaram a migrar de condado em função do conhecimento
tácito sobre esses estilos de vida (Bishop, 2008, pp. 26-27).
O livro de Bishop ficou bastante popular e serviu de inspiração para um
conjunto de trabalhos que começaram a mostrar, em diferentes lugares do mundo e
para diferentes domínios culturais, associações entre posições políticas e estilos de
vida. Eu fiz breves resumos dessas pesquisas e os disponibilizei no Apêndice D109. O
que me parece relevante destacar é que, por meio da análise comparativa desse
conjunto de pesquisas, e observando-as ainda ao lado do livro de Bishop, fica claro
que se trata de um padrão transversal na associação entre estilos de vida e
posicionamentos políticos a unidade entre posições políticas de esquerda e a
valorização da cultura legitimada. Em diversos casos, são os agentes mais próximos
das posições políticas progressistas (o que, evidentemente, varia de acordo com cada
contexto particular de disputa política) aqueles que mais valorizam a cultura erudita e
a “alta cultura”, que mais apresentam práticas de estilização da vida cotidiana e que
mais se preocupam com as hierarquias definidas pelas instâncias de consagração
cultural. Assim, tudo parece indicar o caráter fortemente estrutural da associação
entre o capital cultural e a esquerda política, o que, uma vez mais, fala sobre os
posicionamentos políticos e os estilos de vida como tomadas de posição pautadas pela
posição de classe e fração de classe no espaço social.
A pesquisa de Flemmen, Jarness e Rosenlund (2019; 2022) sobre posições
políticas e estilos de vida entre a população norueguesa merece destaque aqui por
apresentar um dado particularmente forte para falar sobre essa associação entre
capital cultural e posições de esquerda. Primeiro, construindo a hipótese do
esquerdismo do capital cultural já mencionada no capítulo dois, os autores mostram
que fazer parte das frações de classe culturais é a característica que apresenta mais
forte homologia com ter posições políticas de esquerda, o que faz da fração de classe o
fator explicativos mais adequado da oposição entre direita e esquerda (Flemmen;
109
As referências são: DiMaggio (1996), Khan; Misra; Singh (2013), Roos; Shachar (2014), Dellaposta; Shi; Macy
(2015), Purhonen; Heikkila (2016), Shi et al (2017), Praet et al (2021a), Praet et al (2021b).
213
"coisa de coach", ensinando as pessoas que o que o capitalismo faz com elas na
verdade é sua culpa.
Outro exemplo particularmente simbólico da política dos estilos de vida se
encontra nas justificativas dos entrevistados para seu desprezo pelos shopping
centers, a principal recusa cultural da amostra no domínio dos lazeres externos.
Os shopping centers são um caso bom para pensar na associação entre capital
cultural e esquerda política pois funcionam como emblema do capitalismo como um
todo, mas particularmente da cultura de consumo que tanto incomoda à fração
cultural. Por isso, recusá-los é uma estratégia fácil, rápida e segura de exibir tanto
disposição anticapitalista (uma das principais bases da esquerda política), quanto
denegação do econômico (condição de existência do capital cultural). Isso explica
porque Alessandra diz que os odeia, que considera um lugar ruim, porque Alex os
considera inócuos e sem propósito, porque Daiane diz que não tem nada ali que a
interesse, e porque Débora e Elaine só vão se for necessário.
Rafaela: Ah, coisa sertaneja, não, pelo amor de Deus, puta que pariu! [...]
Esse universo da música sertaneja, não apela pra mim. Principalmente
porque é um bando de bolsonarista, então... não quero. Podem até falar que
tem muita coisa boa, mas eu não quero.
Gustavo: E como é que você identifica esses lugares que são os lugares que
você não frequentaria, que você não gosta de forma alguma?
A opinião de que é uma música que peca não apenas pelo simplismo,
padronização e superficialidade, mas também por ter letras conservadoras, e com isso
ser música de pessoas conservadoras, apareceu entre diferentes membros das frações
culturais das classes médias paulistanas.
Assim como no caso supracitado de Elaine, fica claro que grande parte da
delimitação de uma fronteira simbólica que é ao mesmo tempo política e cultural e
que encontra na música sertaneja um caso emblemático é fortemente influenciada
pelo atual contexto de acirramento do conflito político no Brasil, ainda que se baseie
em esquemas de percepção mais amplos como o que opõe centro a interior.
Guilherme: Minha mãe ouvia, com alguma frequência, aquelas duplas mais...
não vou dizer tradicionais, mas aquelas do início da explosão do sertanejo,
Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, e eu ouvia como pano de fundo,
mas sem profundo interesse. Quando o tempo foi passando e eu fui viajando
pelo Brasil, aí sim eu comecei a gostar menos ainda [risos]. Porque, não sei,
pareceu não só muito distante da minha realidade, mas identifiquei esses
ritmos também com pessoas com quem eu não tenho nada a ver. Tenho
curiosidade antropológica com elas, mas não me identifico.
Gustavo: Você disse que identificou o sertanejo com pessoas que não são tão
parecidas com você?
217
Guilherme: Isso, isso. Mato Grosso, Goiás, Tocantins, quando você vai
entrando pelo Brasil e aí você ouve o cara falando que gosta muito de... sei lá,
do João Paulo e Daniel, e aí ao mesmo tempo você ouve o cara dizendo um
tempo depois que, "é isso aí, minha mulher não sai de casa mesmo não, não
deixo sair", você começa a ficar meio, "... legal, então vai ouvir sua música
aí".
110
Veja. Famosos que apoiam Haddad levam livros para votar no 2º turno. Política, Veja, 28 de outubro de
2018. Disponível em <https://veja.abril.com.br/politica/famosos-que-apoiam-haddad-levam-livros-para-votar-
no-2o-turno>. Acessado em 06 de março de 2024.
111
O Pharol. 13 livros vermelho. Colunas, O Pharol, 25 de setembro de 2022. Disponível em
<https://jornalopharol.com.br/2022/09/13-livros-vermelhos/>. Acessado em 06 de março de 2024.
218
3.6 Síntese
coletânea de pequenos casos que dão pistas do fundo estrutural que constrange as
práticas do grupo. Estetizar a vida da forma como eles fazem – saber que o casaco
velho da avó se encaixa bem com uma peça moderna, que o caixote de feira dá uma
boa mesa de cabeceira – só é importante para aqueles que não possuem o capital
econômico demandado para simplesmente comprar o estilo de vida mais
dispendioso, mas só é possível para aqueles que possuem a maestria simbólica
necessária para conseguir fazer as escolhas estéticas “corretas”. A valorização do
"cultural", do "alternativo" e do estetizado são, portanto, função do capital cultural, e,
de forma mais ampla, da fração de classe cultural. Mas, como também é indicado
pelas reportagens, o estilo de vida "cultural" não é interpretado como sendo
simplesmente um jeito de ser diferente dos demais, mas também é entendido pelos
santa ceciliers como jeito de ser melhor. Ele é “autêntico” para resistir aos padrões
massificados da indústria cultural, ele é “profundo” para quebrar com a
superficialidade das relações de troca meramente econômicas, ele pessoaliza a vida
para se opor a frieza impessoal das relações pautadas pela busca por lucro financeiro.
Por todos os meios que podem, os santa ceciliers – e de maneira mais ampla, a fração
cultural das classes médias paulistanas – traçam uma fronteira que afasta as frações
de classe econômicas, e na medida em que essa fronteira é compartilhada e
reconhecida como legítima pelos membros que ela agrega, ela passa a permitir
também a valorização simbólica daqueles que se caracterizam socialmente por sua
posse de capital cultural.
A necessidade perene da demonstração pública e da valorização de seu capital
cultural se impõe como um peso sobre cada agente da fração cultural das classes
médias. Assim como as posições políticas de esquerda, não seguir a regra dominante
tende a impor dificuldades para a sua sociabilidade. O mesmo é dizer que o capital
cultural constrange suas vidas, e exerce sua coerção por meio de toda a rede de
relações sociais na qual um membro da fração cultural precisa estar inserido para
assegurar a estabilidade de sua posição social. Se arriscar a abrir mão das estratégias
de valorização do capital cultural é se expor ao risco da desclassificação, do declínio
na hierarquia de prestígio propriamente cultural que organiza esse lado do espaço
social. Por isso, a seriedade e o ascetismo que pautam suas escolhas culturais não são
menores do que aqueles que guiam os investimentos dos faria limers na bolsa de
valores. Mudam apenas os valores, mas os investimentos precisam ser igualmente
calculados.
220
A lógica profunda dessas lutas que descrevi no nível dos fenômenos baseia-
se numa lei simples: cada combatente busca impor o princípio de divisão e
de percepção mais conforme as suas propriedades, o que lhe dará o melhor
rendimento para essas propriedades [...]. A ideologia se engendra naquela
espécie de estratégia fundamental através da qual cada sujeito social se
esforça não somente para dar uma boa imagem de si mesmo, mas também
para impor como universal o princípio de classificação segundo o qual é
melhor classificado (Bourdieu, 2020, pp. 118-119).
experimentada como exclusão para quem está do lado de fora. Sobretudo para os
pretendentes com origem de classe popular, e sobretudo para o caso dos estilos de
vida (em que a exigência da maestria simbólica sobre as possiblidades estilísticas se
mostra mais claramente), o padrão legitimado de comportamento se impõe como a
prova de que aquelas posições só podem ser ocupadas por aqueles que possuem um
valor intrínseco raro, ou, na chave mais meritocrática, por aqueles que alcançaram
aquelas posições pelo trabalho árduo que realizaram para se adequar ao padrão
simbólico requisitado. Assim é que a fração cultural das classes médias resguarda sua
parte do espaço social tanto pela restrição do acessos a recursos requisitados
(sobretudo credenciais e postos ocupacionais, mas também algum volume de capital
econômico), quanto pela construção de uma identidade coletiva que demanda árduo
conhecimento da cultura legitimada para que possa ser apropriada com segurança.
Aqui, na união entre a dimensão material e simbólica da existência da classe, é que
conseguimos identificar o mecanismo de legitimação e reprodução social das posições
culturais da classe média.
***
Como a pergunta de pesquisa que eu tentei responder diz respeito aos efeitos
do capital cultural sobre as tomadas de posições dos agentes, sobretudo daqueles que
assentam sua reprodução social e que constroem suas hierarquias de prestígio com
base nele, todo o discurso é formulado para chamar a atenção para esse conjunto
específico de efeitos estruturais. No entanto, a realização plena e inconfundível dos
efeitos do capital cultural só seria possível sobre a fração cultural típico-ideal,
portanto, ela não existe empiricamente. Os membros de uma fração cultural são
atravessados também pelos constrangimentos estruturais de sua posição de classe
(popular, média ou dominante), de seu gênero, de sua raça, de sua geração, de sua
faixa etária, de sua região e assim por diante, o que faz com que o pertencimento a
uma fração de classe cultural nunca seja exatamente a mesma coisa para dois
diferentes membros de uma mesma fração de classe cultural. Mas eu argumento que
há, mesmo assim, sempre um fundo comum condicionado pela fração de classe
cultural, e é para evidenciá-lo que o discurso é construído valorizando o capital
cultural como determinante da ação.
225
Desta forma, remeto ao debate de Bernard Lahire com Bourdieu para dizer que
minha pesquisa é uma pesquisa que busca o padrão, não a dissonância. Lahire (2002,
2007) argumenta que Bourdieu deixa de fora de suas análises os casos que não se
adequam aos padrões estruturais identificados por ele, afirmando que dentro de
qualquer classe ou grupo social há um conjunto circunscrito de "dissonantes" –
agentes que não se adequam ao padrão estrutural –, e, da mesma forma, que todo e
qualquer agente possui a sua parte de dissonância – as áreas de seu comportamento
que destoam da regra de sua classe ou grupo. O argumento de Lahire é adequado
para falar de minha amostra: nenhum dos meus vinte e sete interlocutores se adequa
com perfeição ao modelo descrito na introdução e na conclusão deste texto. Meus
entrevistados estão, na verdade, em variadas posições do espectro típico-ideal da
fração cultural que apresentei no item 1.1.5 O espectro das frações de classes
econômicas e culturais.
Porém, preocupado em observar o padrão, o que eu mostro com minha
pesquisa é que, por mais que ninguém se adeque completamente, todos eles
reconhecem e legitimam em alguma medida a existência do padrão, e pautam suas
ações orientando-as pelo esforço de adequação. Ou seja, o efeito comum do capital
cultural atravessa todos eles de maneira forte o suficiente para que a valorização da
cultura legitimada e a denegação do econômico sejam guias fundamentais de suas
estratégias de ação. É o próprio fato de que o tipo ideal é inalcançável, aliás, que
permite que o capital cultural estruture uma hierarquia. Em outras palavras, é a
impossibilidade da realização plena do padrão legitimado que faz com que a luta
simbólica tenha que ser realizada dentro e fora da fronteira: fora, para se valorizar
diante das frações econômicas e para se proteger das classes populares; dentro, para
ver, na comparação com seus pares, quem é o mais verdadeiramente "cultural" dos
culturais.
226
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2017 ACM on web science conference, 2017.
APÊNDICE A. ENTREVISTADOS
Adriano é músico. Ele tem 34 anos, é branco, heterossexual, solteiro e sem filhos.
Adriano fez graduação em música numa instituição pública. Seu pai era eletricista e
depois chefe de manutenção, e sua mãe era secretaria e depois agente escolar. Um de
seus avôs foi produtor de tijolos, o outro foi um pequeno proprietário e trabalhador
rural. Uma de suas avós foi trabalhadora do lar e a outra trabalhadora rural.
(Entrevista realizada em 18 e em 21 de abril de 2023. 154 minutos de entrevista)
Alex é antropólogo. Ele tem 34 anos, é branco, bissexual, casado e sem filhos. Além
de antropólogo, Alex também atua como músico, e já lançou um álbum. Alex fez
graduação, mestrado e doutorado em cursos da área de ciências humanas, e agora
cursa pós-doutorado, todos em instituições públicas. Numa primeira parte de sua
infância, Alex foi criado apenas por seus pais biológicos, mas após a separação deles e
de seus novos casamentos, passou a se dividir entre a família do pai biológico com
sua madrasta e a família da mãe e do padrasto (que depois o adotou oficialmente).
Seu pai biológico era funcionário técnico-administrativo no serviço público, sua mãe
era psicóloga e psicanalista, seu pai adotivo trabalhava com empreendimentos
populares e imóveis de alto padrão e sua madrasta circulou por uma diversidade de
empregos (empregada doméstica, funcionária de banco, funcionária de hotel). Alex
não informou as profissões dos avôs e avós. (Entrevista realizada em 11 de abril de
2023. 116 minutos de entrevista)
238
Elaine é produtora de conteúdo sobre beleza e maquiagem para mídias sociais. Ela
tem 29 anos, é branca, heterossexual, está em um relacionamento estável e não tem
filhos. Elaine fez graduação em designe de moda numa instituição privada. Seu pai
era médico e sua mãe era psicóloga, microempreendedora e trabalhadora do lar. Suas
duas avós eram professoras, um de seus avôs era também professor, e o outro era
proprietário de uma loja e comerciante. (Entrevista realizada em 14 de março de
2023. 114 minutos de entrevista)
Flávio é arquiteto. Ele tem 29 anos, é branco, homossexual, solteiro e sem filhos.
Flávio fez graduação em arquitetura e urbanismo numa instituição privada. Sua mãe
era dentista e seu pai era médico e proprietário de um hospital. Um de seus avôs era
proprietário de uma fábrica de tecidos e o outro era trabalhador da indústria têxtil.
Uma de suas avós era também trabalhadora de indústria têxtil, e a outra trabalhou
como officer. (Entrevista realizada em 01 de fevereiro de 2023. 111 minutos de
entrevista)
116
A entrevista foi realizada em duas partes, em dois dias diferentes, e eu me esqueci de gravar a segunda
parte da entrevista, por isso não sei qual seu tempo completo. Assim, para a análise dos dados da segunda
parte da entrevista de Guilherme, me baseei apenas nas anotações que fiz durante a entrevista.
239
dentista e proprietário de um comércio. Uma de suas avós era advogada e a outra era
pedagoga, professora e proprietária de um comércio. (Entrevista realizada em 30 de
janeiro de 2023. 117 minutos de entrevista)
Leandro é jornalista. Ele tem 40 anos, é branco, heterossexual, casado e tem dois
filhos, um de 1 ano e um de 11 anos. Leandro fez graduação em jornalismo numa
instituição privada. Durante um período de sua infância ele foi criado por sua mãe, e
posteriormente por uma madrinha e por um tio. Sua mãe era empregada doméstica,
sua madrinha era cobradora de ônibus e seu tio era padre. Ele não mencionou as
profissões dos avôs e avós. (Entrevista realizada em 04 e em 11 de maio de 2023. 89
minutos de entrevista)
Lucia* é professora. Ela tem 34 anos, é branca, heterossexual, casada e sem filhos.
Luciano é músico. Ele tem 38 anos, é branco, heterossexual, divorciado e tem uma
filha de 5 anos. Luciano fez graduação, mestrado, e agora está fazendo doutorado,
todos em musica e em instituições públicas. Seu pai era médico psiquiatra e sua mãe
era professora de educação básica. Um de seus avôs era vendedor de produtos
diversos e o outro era arquiteto. Uma de suas avós era funcionária dos correios e a
outra não trabalhava. (Entrevista realizada em 25 de abril de 2023. 119 minutos de
entrevista)
Marcio* é músico. Ele tem 32 anos, é amarelo, heterossexual, casado e sem filhos.
Mário é médico. Ele tem 38 anos, é branco, heterossexual, casado e tem uma filha de
9 anos. Mário fez graduação em medicina (não mencionou o tipo de instituição), e
tem especialização em geriatria. Sua mãe e seu pai eram engenheiros. Suas duas avós
eram trabalhadoras do lar, um de seus avôs era comerciante e o outro era funileiro.
(Entrevista realizada em 01 e em 07 de fevereiro de 2023. 89 minutos de entrevista)
Marlene é assistente social. Ela tem 34 anos, é parda, heterossexual, solteira e sem
filhos. Marlene fez graduação em serviço social e agora está fazendo uma pós-
graduação em trabalho social com família, ambas em instituições privadas. Sua mãe
era operária fabril e seu pai era segurança. Um de seus avôs era bombeiro e uma de
suas avós era auxiliar de limpeza. (Entrevista realizada em 25 de abril de 2023. 119
minutos de entrevista)
240
Rita é gerente de assistência social num serviço de cuidados com idosos. Ela tem 45
anos, é parda, heterossexual, casada e tem três filhos, um de 12, um de 14 e um de 26
anos. Rita fez graduação em serviço social (não informou o tipo de instituição). Seu
pai era comerciante (não informou sobre a mãe). Seus avôs eram trabalhadores
rurais. (Entrevista realizada em 04 de maio de 2023. 79 minutos de entrevista)
117
Para a cor/raça, no Questionário, ela marcou a opção “outra”, e escreveu: “Me classificam como branca,
mas sou uma mistura. Nunca gosto de responder isso em formulário".
241
Vanessa é assistente social e pedagoga, mas está desempregada. Ela tem 35 anos, é
preta, heterossexual, casada e tem duas filhas, uma de 4 e uma de 16 anos. Vanessa
fez graduação em serviço social e em pedagogia, ambas em instituições privadas. Sua
mãe era faxineira e seu pai era vendedor ambulante. Todos os seus avôs e avós eram
trabalhadores rurais. (Entrevista realizada em 03 de maio de 2023. 83 minutos de
entrevista)
Quadro 3. Capital econômico dos entrevistados (em ordem crescente de renda familiar per
capita)
Possui Possui
Faixa de renda Renda per
Pseudônimo Profissão Residência outra veículo
familiar capita (R$)
residência próprio
Assistente social e
Entre R$1.213,00 e Casa própria
Vanessa pedagoga 303,08 x Sim
R$2.424,00 não quitada
desempregada
Gerente de Entre R$6.061,00 Casa própria
Rita 1136,31 Sim Sim
assistência social e R$12.120,00 quitada
Entre R$2.425,00 Apartamento
Sueli* Bióloga 1515,25 x x
e R$3.636,00 alugado
Apartamento
Professora de Entre R$3.637,00
Alessandra 1616,17 próprio não x x
educação básica e R$6.060,00
quitado
Entre R$3.637,00 Casa própria
Marlene Assistente social 1616,17 x x
e R$6.060,00 quitada
Professora de Entre R$6.061,00 Apartamento
Regina 3030,17 x x
educação básica e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Entre R$6.061,00
Ronaldo Jornalista 3030,17 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Apartamento
Entre R$2.425,00
Samuel Músico e professor 3030,50 próprio x x
e R$3.636,00
quitado
Entre R$18.181,00 Apartamento
Rafaela Música e professora 3535,08 x x
e R$24.240,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Leandro Jornalista 3787,63 x x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$6.061,00 Casa própria
Adriano Músico 4545,25 Sim Sim
e R$12.120,00 quitada
242
Assistente
Entre R$6.061,00
Daiane acadêmica e 4545,25 Casa alugada x Sim
e R$12.120,00
advogada
Entre R$6.061,00 Apartamento
Manuel Jornalista 4545,25 x Sim
e R$12.120,00 alugado
Apartamento
Músico e terapeuta Entre R$6.061,00
Roberto 4545,25 próprio x Sim
holístico e R$12.120,00
quitado
Entre R$3.637,00
Jorge* Professor e contador 4848,50 Casa alugada x Sim
e R$6.060,00
Professor de Entre R$3.637,00
Vinicius 4848,50 Casa alugada x x
educação básica e R$6.060,00
Apartamento
Entre R$18.181,00
Guilherme Jornalista 7070,17 próprio não x x
e R$24.240,00
quitado
Apartamento
Entre R$18.181,00
Mário Médico 7070,17 próprio Sim Sim
e R$24.240,00
quitado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Alex Antropólogo 7575,25 x Sim
e R$18.180,00 alugado
Produtora de
Entre R$12.121,00 Apartamento
Elaine conteúdo para 7575,25 x x
e R$18.180,00 alugado
mídias sociais
Entre R$12.121,00 Apartamento
Luciano Músico 7575,25 Sim x
e R$18.180,00 alugado
Entre R$12.121,00 Apartamento
Marcio* Músico 7575,25 x x
e R$18.180,00 cedido
Apartamento
Entre R$6.061,00
Flávio Arquiteto 9090,50 próprio x x
e R$12.120,00
quitado
Professora de Apartamento
Entre R$18.181,00
Isabel educação básica e 10605,25 próprio não x Sim
e R$24.240,00
superior quitado
Assessora de Apartamento
Mais de
Rosângela comunicação e 12120,00 próprio x Sim
R$36.360,00
jornalista quitado
Apartamento
Entre R$24.241,00
Lucia* Professora 15150,25 próprio não x Sim
e R$36.360,00
quitado
Apartamento
Mais de
Débora Jornalista 18180,00 próprio x Sim
R$36.360,00
quitado
Maior diploma
Pseudônimo Estado civil Ocupação
(área)
Adriano (músico) Solteiro - -
Alessandra (professora de Relacionamento Superior [não Professor de
educação básica) estável perguntei a área] educação básica
Diretora
Alex (antropólogo) Casado Superior (psicologia)
pedagógica
Daiane (assistente Músico e
Casada Superior (direito)
acadêmica e advogada) produtor musical
Superior
Débora (jornalista) Casada (administração de Gerente
empresas)
243
Elaine (produtora de
Relacionamento Superior
conteúdo para mídias Designer
estável (arquitetura)
sociais)
Flávio (arquiteto) Solteiro - -
Relacionamento
Guilherme (jornalista) Superior (jornalismo) Jornalista
estável
Analista no
Isabel (professora de Pós-graduação
Casada Ministério
educação básica e superior) (direito)
Público
Jorge* (professor e
Divorciado - -
contador)
Empresária do
Leandro (jornalista) Casado [não perguntei]
ramo imobiliário
Lucia* (professora) Casada - -
Luciano (músico) Divorciado - -
Manuel (jornalista) Divorciado - -
Marcio* (músico) Casado - -
Mário (médico) Casado Superior (biologia) Bióloga
Marlene (assistente social) Solteira - -
Rafaela (música e
Solteira - -
professora)
Professor e
microempresário
Regina (professora de
Casada Ensino médio no ramo de
educação básica)
suplementos
alimentares
Proprietário de
Rita (gerente de assistência uma oficina de
Casada [não perguntei]
social) funilaria e
pintura
Arquiteta e
Roberto (músico e terapeuta Superior
Casado terapeuta
holístico) (arquitetura)
holística
Ronaldo (jornalista) Casado Superior (jornalismo) Jornalista
Rosângela (assessora de
Casada Superior (jornalismo) Jornalista
comunicação e jornalista)
Samuel (músico e professor) Solteiro - -
Relacionamento
Sueli* (bióloga) - -
estável
Vanessa (assistente social e
Casada Ensino médio Policial penal
pedagoga desempregada)
Vinicius (professor de
Solteiro - -
educação básica)
Maior nível
de
Pseudônimo (profissão) escolaridade Escolaridade Trajetória
entre os
responsáveis
Nenhum
Manuel (jornalista) Graduação Subiu 3 posições
diploma
Vinicius (professor de Nenhum
Doutorado Subiu 5 posições
educação básica) diploma
244
Débora (jornalista)
Leandro (jornalista)
Elaine (produtora de conteúdo
para mídias sociais) Mantiveram a
Graduação Graduação
Flávio (arquiteto) posição
Roberto (músico e terapeuta
holístico)
Mário (médico)
Alessandra (professora de
Doutorado Mestrado Caiu 1 posição
educação básica)
Samuel (músico e professor) Doutorado Doutorado Manteve a posição
245
APÊNDICE B. QUESTIONÁRIO
TEMPO LIVRE
1. O que você faz com mais e menos frequência no seu tempo livre? Marque para cada atividade
abaixo.
2. Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de fazer ou
não as atividades.
Ficar com
cônjuge ou
namorado(a)
Ficar com a
família
Navegar na
internet
Atividades
religiosas
Cuidar de
animais
domésticos e
plantas
Encontrar
amigos
Produzir arte ou
cultura
Jogar
videogame/jogos
eletrônicos
Estudar (sem ser
por obrigação)
LAZERES EXTERNOS
3. Marque com qual frequência você vai a cada atividade listada abaixo.
Uma vez
Uma vez Uma vez por Uma vez Não
por
por semana mês por ano frequento
semestre
Teatro
Festas, baladas
e/ou casas
noturnas
Bares
Óperas,
orquestras e/ou
concertos de
música clássica
Restaurantes
Saraus e/ou
eventos de
247
cultura popular
Passeios
ecológicos,
trilhas e
cachoeiras
Shoppings a
passeio
Pancadões
4. Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de
frequentar ou não.
Teatro
Festas, baladas
e/ou casas
noturnas
Bares
Óperas,
orquestras e/ou
concertos de
música clássica
Restaurantes
Saraus e/ou
eventos de
cultura popular
Passeios
ecológicos,
trilhas e
cachoeiras
Shoppings a
passeio
Pancadões
5. Marque com qual frequência você vai a cada atividade listada abaixo.
Igrejas e/ou
espaços de culto
religioso
Espetáculos de
dança
Museus e/ou
exposições de
artes plásticas
Shows ao vivo
Eventos
esportivos
Sair para cantar
e/ou dançar
Parques, praças
e/ou clubes
Cinema
Academias de
ginástica
6. Para a mesma lista de atividades, marque agora seu nível de interesse, independente de
frequentar ou não.
Shows ao vivo
Eventos
esportivos
Sair para cantar
e/ou dançar
Parques, praças
e/ou clubes
Cinema
249
Academias de
ginástica
MÚSICA
9. E quais os estilos musicais que você menos gosta ou não gosta? Marque no máximo 3 opções.
Sertaneja
MPB
Forró
Gospel/Religiosa
Pagode
Samba
Funk
Rock
Clássica
Eletrônica
Rap
Romântica
Jazz/Blues
Pop
Axé
Trap
LITERATURA
10. Você lê livros regularmente em seu dia a dia? Não leve em conta se lê por motivos de trabalho,
escola ou faculdade; apenas o que lê por lazer.
Sim (continue respondendo)
250
12. E quais os estilos de livros que você menos gosta ou não gosta? Marque no máximo 3 opções.
Temas religiosos ou de espiritualidade
Suspense ou mistério
Biografias
Autoajuda
Best Sellers
Poesia ou poemas
Empreendedorismo, liderança e investimentos
Ficção científica
Clássicos da literatura
História em quadrinhos
Fantasia
FILMES E SÉRIES
14. Quais seus estilos de filmes e séries favoritos? Marque até 3 opções.
Adolescente
Ação ou aventura
Animação ou desenho
Comédia
Comédia romântica
Cult/de Arte
Documental
Drama
Familiar
Fantasia
Ficção científica
Guerra
Religiosos
Romance
Suspense
Temática social
Terror
251
15. E quais os estilos de filmes e séries que você menos gosta ou não gosta? Marque no máximo 3
opções.
Adolescente
Ação ou aventura
Animação ou desenho
Comédia
Comédia romântica
Cult/de Arte
Documental
Drama
Familiar
Fantasia
Ficção científica
Guerra
Religiosos
Romance
Suspense
Temática social
Terror
16. Em sua opinião, quais são os maiores problemas do Brasil hoje? Escolha no máximo três opções.
Ameaça ao meio ambiente
Corrupção
Desemprego
Desigualdade de renda
Consumo de drogas ilícitas
Educação
Favelas
Fome
Inflação / Subida de preços
Machismo e desigualdade de gênero
Perda de valores tradicionais
Racismo e desigualdade racial
Pobreza
Saneamento básico
Saúde
Trânsito
Transporte público
Violência
Não sei
17. Você acha que as pessoas deveriam ter o direito emitir publicamente qualquer tipo de opinião?
Sim, as pessoas devem ter o direito de dar qualquer tipo de opinião
Não, opiniões que firam direitos de minorias devem ser proibidas
Não, opiniões que ofendam a fé cristã devem ser proibidas
Não sei
18. O que você acha sobre a questão dos direitos humanos no Brasil?
Precisamos de ainda mais proteção de direitos humanos
252
DEMOCRACIA
20. Algumas pessoas dizem que o nosso voto influencia muito no que acontece no Brasil, outras
dizem que o nosso voto não influencia nada no que acontece no Brasil. Com qual das opiniões você
está mais de acordo?
Nosso voto influencia muito no que acontece no Brasil
Nosso voto influencia um pouco no que acontece no Brasil
Nosso voto não influencia nada no que acontece no Brasil
Não sei
21. Quando o Brasil está passando por um momento de sérias dificuldades, você concorda ou não
que o presidente deveria:
Controlar a mídia
22. Você acha que existem situações nas quais deveria ocorrer uma intervenção militar no Brasil?
Caso acredite, marque abaixo em quais situações. Caso não acredite, deixe em branco.
Quando o Brasil está passando por uma crise econômica
Quando a criminalidade está muito alta
Quando o desemprego está muito alto
Quando o Brasil está perdendo os valores tradicionais
Quando há muitos protestos sociais
Quando há muita corrupção
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
27. Abaixo há uma lista de atividades políticas. Marque qual(ais) delas você já fez em algum
momento da sua vida.
Assinar um abaixo-assinado (inclusive na internet)
Participar de manifestações ou protestos de rua
Participar de greve
Participar de bloqueio de estradas
Participar de ocupação de prédios públicos
Participar de ocupação de terras
Utilizar a internet ou redes sociais para manifestação política
Outra (escreva)
254
ESQUERDA E DIREITA
28. Na política as pessoas falam muito de esquerda e de direita. Gostaria que você usasse um
número de zero (0) a dez (10) para dizer se você se considera de esquerda ou de direita. Zero
significa que é de esquerda e dez que é de direita, sendo que o cinco (5) significa que é de centro.
0 (esquerda)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10 (direita)
29. E você acha que a maior parte da população brasileira é de esquerda ou de direita?
A maioria é de esquerda
A maioria é de direita
A maioria é de centro
Existe equilíbrio entre esquerda e direita
Não sei
DIVERSIDADE SEXUAL
30. Você aprova ou desaprova que LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e outras) tenham
direito a:
Se casar
31. O que você acha sobre demonstrações públicas de carinho entre pessoas LGBT+?
Eu defendo que possam fazer isso
Não defendo, mas não me incomodo
Deveriam manter sua vida íntima em ambientes particulares
Não deveria ser permitida a demonstração pública de carinho entre pessoas LGBT+
Não sei
32. Você concorda ou discorda que as escolas públicas devem ensinar as crianças sobre respeito à
diversidade de orientações sexuais?
255
Concordo
Discordo
Não sei
RELIGIÃO
OUTRAS PESSOAS
36. Na lista abaixo há vários tipos de pessoas. Marque quais delas você NÃO gostaria de ter como
vizinhos. Se for o caso, não precisa marcar nenhum.
Alcoólatras ou pessoas que bebem muito
Casais que não são casados, mas moram juntos
Imigrantes ou trabalhadores estrangeiros
Idosos
Indígenas
Pessoas LGBT+
Pessoas com antecedentes criminais ou com passagem pela polícia
Pessoas com deficiência
Pessoas de direita
Pessoas de direita
256
RELAÇÕES SOCIAIS
37. Uma filha ou filho de 18 anos quer viajar com as amigas ou amigos com tudo pago, o que os pais
deveriam fazer?
Os pais deveriam decidir e dizer se a filha/filho pode ou não viajar
Os pais deveriam deixar a filha/filho decidir por si
Não sei
38. Você acha que um funcionário deve poder chamar seu patrão de “você” ou acha que deveria
chama-lo sempre de “senhor”?
O funcionário deveria poder chamar o patrão de “você”
O funcionário deveria chamar o patrão apenas de “senhor”
Não sei
39. Você acha que os funcionários de um prédio ou edifício deveriam ter o direito de utilizar o
elevador social?
Sim, eles deveriam ter o direito de usar o elevador social
Não, eles devem poder utilizar apenas o elevador de serviços
Não sei
FAMÍLIA
40. Com qual destas duas frases a seguir você concorda mais?
Sempre se deve amar e respeitar os pais sem se importar com suas qualidades e defeitos
Não se deve ter obrigação de respeitar e amar os pais quando eles por seus hábitos ou
atitudes não tenham merecido
Não sei
41. Aqui está uma lista de qualidades que se pode estimular e ensinar aos filhos em casa. Quais delas
você considera especialmente importantes? Escolha no máximo três.
Boas maneiras
Determinação e perseverança
Fé religiosa
Imaginação
Independência
Não ser egoísta
Obediência
Pensar por si mesmo
Responsabilidade
Saber economizar (dinheiro e outros bens)
Ser trabalhador
Tolerância e respeito pelas outras pessoas
Nenhuma destas
Não sei
257
HOMENS E MULHERES
44. Em um casal de um homem e uma mulher com filhos, quem você acha que deve ter mais
responsabilidade em cada uma das seguintes atividades?
O A Dividido
homem mulher igualmente
Dar banho/trocar fraldas do filho recém-
nascido
Escolher a escola
45. Com qual das frases a seguir sobre o aborto você concorda mais?
O aborto deve ser proibido em qualquer situação
O aborto deve ser permitido se a mulher ficar grávida por causa de estupro
O aborto deve ser permitido em qualquer situação, desde que seja até o terceiro mês de
gestação
O aborto deve ser permitido em qualquer situação e em qualquer mês de gestação
Não sei
RAÇA
48. Você acha que o governo tem a obrigação de criar políticas públicas direcionadas à melhoria das
condições de vida da população negra?
Sim
Não
Não sei
49. Você concorda ou discorda que as universidades públicas tenham cotas raciais, ou seja, que elas
reservem vagas para pessoas negras?
Concordo
Discordo
Não sei
50. O que você acha da atuação do movimento social das pessoas negras?
Os movimentos sociais de pessoas negras são bons apenas para as pessoas negras
Os movimentos sociais de pessoas negras são bons para pessoas negras e não negras
Os movimentos sociais de pessoas negras são bons apenas seus próprios membros
Não sei
ECONOMIA
Ótima
Boa
Regular
Ruim
Péssima
Não sei
53. Pensando na questão da pobreza, algumas pessoas acreditam que o indivíduo é totalmente
responsável pela sua própria condição financeira, outras acreditam que se trata de uma questão
totalmente social. Marque na escala, de zero (0) a dez (10), sua opinião sobre o assunto, sendo que o
0 significa a primeira opinião e o 10 significa a segunda opinião:
0 (As pessoas são totalmente responsáveis por sua própria pobreza
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10 (A pobreza é totalmente um problema social)
56. Da seguinte lista de atividades, quais você acha que deveriam ser responsabilidade do governo e
quais deveriam ser responsabilidade das empresas privadas?
Saúde
Combustível
Educação básica
Educação superior
Eletricidade
Segurança
Financiamento dos
partidos políticos
Água potável
Saneamento básico
POSIÇÕES POLÍTICAS
Da prisão perpétua
Da pena de morte
64. O quão orgulhoso(a) de ser brasileiro(a) você se sente quando escuta o hino nacional?
Muito orgulhoso(a)
Orgulhoso(a)
Pouco orgulhoso(a)
Nada orgulhoso(a)
Não se importa
Não sei
IDENTIFICAÇÃO
65. Idade
Escreva
66. Gênero
Mulher
Homem
Prefiro não declaras
Outro (escreva)
68. Cor/raça
Amarela
Branca
Indígena
Pardo
Preto
Outro (escreva)
262
MORADIA
73. Além do local onde reside atualmente, você possui outras residências?
Não
Sim, mais uma
Sim, mais de uma
OCUPAÇÃO
Escreva
79. (Apenas para quem respondeu “não” na questão 75) Qual das seguintes é sua situação
educacional?
Aposentado(a) ou pensionista
Dona(o) de casa não remunerada(o)
Estudante
Desempregada(o)
BENS E SERVIÇOS
Sim Não
Televisão a cabo
Assinatura de revista
82. Empregado(a) doméstico(a) ou diarista trabalha em sua residência atualmente? Se sim, com qual
frequência?
Não
Sim, menos de uma vez por semana
Sim, uma vez por semana
264
CONDIÇÃO ECONÔMICA
RELIGIÃO
DÚVIDAS E COMENTÁRIOS
86. As questões terminaram. Se tiver alguma dúvida ou quiser fazer algum comentário sobre este
questionário, use o espaço a seguir, por favor. Caso não tenha nenhum comentário, pode deixar em
branco.
Escreva
265
Nome:
Pseudônimo:
Data:
Profissão:
Apresentação:
Eu sou Gustavo e estou no terceiro ano do mestrado em Sociologia no IFCH/Unicamp.
Do que se trata a pesquisa? Entender a relação entre as posições políticas e os estilos de vida
da população de classe média residente na cidade de São Paulo. Eu recebo bolsa da Fapesp,
a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo, e minha pesquisa é vinculada a
um projeto de pesquisa maior que está estudando classes sociais e práticas culturais na
cidade.
Sobre esta entrevista: eu estou coletando dados quantitativos por meio de questionários,
como o que você respondeu previamente, mas eu também preciso me aprofundar nas
respostas do questionário e explorar um pouco mais outras questões importantes para a
minha pesquisa. Nessa entrevista, (1) gostaria de te ouvir falar um pouco mais sobre suas
práticas e preferências culturais, repassando algumas das respostas que você deu no
questionário, (2) depois, da mesma forma, vou repassar e pedir para que se aprofunde nas
respostas que deu no questionário a respeito de suas posições políticas, (3) depois vou te
fazer algumas perguntas sobre seus valores e a suas opiniões sobre outras pessoas com as
quais lida em seu dia a dia, e por fim (4) vou fazer algumas perguntas sobre sua origem
social.
É importante deixar claro:
(1) como eu já havia dito, sua identidade será mantida em completo sigilo. Caso eu
venha a utilizar algum trecho de sua fala na pesquisa eu atribuirei pra você um
pseudônimo baseado nos nomes mais comuns no Brasil (como Maria ou João) e
eliminarei das falas qualquer trecho que permita identifica-lo. O objetivo é que você
se sinta à vontade para falar da maneira mais livre possível;
(2) como algumas das perguntas são pessoais (sobre seus gostos, suas opiniões
políticas, seu cotidiano, suas amizades e sua família), é importante que você tenha a
tranquilidade para não responder o que você não quiser responder. Se achar que
alguma pergunta é muito pessoal, se não souber ou se não quiser responder por
qualquer motivo, não hesite em avisar, que eu então pularei para a pergunta
seguinte;
(3) no mesmo sentido, se precisar ou quiser interromper a entrevista a qualquer
momento, basta avisar. Não há problema algum nisso;
(4) além disso, cabe lembrar que você recebeu em seu e-mail uma cópia do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Se tiver qualquer reclamação, desconforto ou
incomodo com esta entrevista, bem como se tiver qualquer problema ético neste
momento ou no futuro com a pesquisa, você pode entrar em contato tanto com
meu orientador (Prof. Michel Nicolau Netto – Departamento de Sociologia do IFCH)
quanto com o Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas, que eles
orientarão sobre como proceder.
Você me autoriza a gravar o áudio de nossa entrevista?
Alguma dúvida antes de começarmos?
266
Questões de identificação
5. Em que cidade você nasceu? Foi nesta cidade que morou durante a maior parte de sua vida?
5.1. [Caso negativo] Fale um pouco sobre suas mudanças de local de moradia?
7. Quais familiares seus foram diretamente responsáveis por sua criação? E você tem irmãos ou
irmãs?
7.1. [Em caso positivo] Quantos(as)?
Estilos de vida
Agora, vamos para as perguntas sobre suas práticas e preferências culturais. Vou começar
perguntando sobre seu tempo livre.
8. No questionário que respondeu você afirmou que faz frequentemente [inserir respostas do
questionário].
9. Dessas atividades que você faz com frequência, gostaria que me dissesse por que as faz. Tem a ver
com obrigação, prazer, rotina... ?
10. E quais dessas atividades você mais gosta de fazer e quais você mais detesta? Por quê? O que há
nelas que a(o) faz gostar e não gostar? Pode dar exemplos?
11. Gostaria de saber também sobre a origem: consegue se lembrar de quando em sua vida começou
a fazer essas atividades? Isso é, de onde vem essas práticas em sua vida?
[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também faziam ou fazem essas atividades?
Exemplos disso?]
12. No questionário que respondeu você também afirmou que as atividades que mais te despertam
interesse, independente de você fazê-las ou não, são [inserir respostas do questionário], ao passo
que você tem pouco ou nenhum interesse em [inserir respostas do questionário].
267
13. Porque essas atividades te despertam interesse? O que há nelas que te atrai?
14. O que te impede de realizá-las (ou de realiza-las mais do que você já faz)? Pode dar exemplos
recentes disso?
15. Pode comentar também sobre as atividades que não tem interesse em realizar? Por que elas não
te interessam?
16. No questionário que respondeu você afirmou que semanalmente você frequenta [inserir
respostas do questionário], que mensalmente você frequenta [inserir respostas do questionário],
que uma vez por semestre você vai a [inserir respostas do questionário], que vai uma vez por ano a
[inserir respostas do questionário] e que nunca frequenta [inserir respostas do questionário].
19. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a frequentar esses lugares?
20. Pode falar também sobre porque não frequenta os que não frequenta? Por que não faz essas
atividades?
[21. Caso não ouça música regularmente: você marcou no questionário que não costuma ouvir
música regularmente em seu dia a dia. Mesmo assim, eu gostaria de saber um pouco sobre qual é a
sua relação com música, hoje em dia e ao longo da sua vida. Você nunca foi de ouvir música? Por
quê? Isso é comum a outras pessoas ao seu redor?]
22. No questionário que respondeu você afirmou que seus estilos de música favoritos são [inserir
respostas do questionário], ao passo que você não gosta de [inserir respostas do questionário].
23. Fale um pouco sobre o que no [inserir respostas do questionário] te atrai para esses estilos. Isso
é, o que há nas músicas desses estilos que você mais gosta?
24. Pode citar alguns [cantores, compositores, bandas] que são seus favoritos pessoais?
25. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a ouvir e gostar desses estilos musicais?
[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também gostavam ou gostam? Exemplos
disso?]
26. Por outro lado, o que há no [inserir respostas do questionário] que te desagrada?
27. Consegue se lembrar de quando em sua vida passou a não gostar ou que você percebeu que não
gostava, ou isso nunca te ocorreu?
268
[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também não gostavam ou não gostam?
Exemplos disso?]
[28. Caso não leia literatura regularmente: você marcou no questionário que não costuma ler
literatura regularmente em seu dia a dia. Mesmo assim, eu gostaria de saber um pouco sobre qual é
a sua relação com a literatura, hoje em dia e ao longo da sua vida. Você nunca foi de ler literatura?
Por quê? Isso é comum em outras pessoas ao seu redor?]
29. No questionário que respondeu você afirmou que seus estilos de livros favoritos são [inserir
respostas do questionário], ao passo que você não gosta de [inserir respostas do questionário].
30. Fale um pouco sobre o que no [inserir respostas do questionário] te atrai para esses estilos. Isso
é, o que há nos livros desses estilos que você mais gosta?
31. Pode citar alguns [autores, livros] que são seus favoritos pessoais?
32. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a ler e a gostar desses estilos literários?
[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também gostavam ou gostam? Exemplos
disso?]
33. Por outro lado, o que há no [inserir respostas do questionário] que te desagrada?
34. Consegue se lembrar de quando em sua vida passou a não gostar ou que você percebeu que não
gostava, ou isso nunca te ocorreu?
[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também não gostavam ou não gostam?
Exemplos disso?]
[35. Caso não assista filme e séries regularmente: você marcou no questionário que não costuma
assistir filmes e série regularmente em seu dia a dia. Mesmo assim, eu gostaria de saber um pouco
sobre qual é a sua relação com filmes e séries, hoje em dia e ao longo da sua vida. Você nunca foi de
assistir filmes e séries? Por quê? Isso é comum em outras pessoas ao seu redor?]
36. No questionário que respondeu você afirmou que seus estilos de filmes e séries favoritos são
[inserir respostas do questionário], ao passo que você não gosta de [inserir respostas do
questionário].
37. Fale um pouco sobre o que no [inserir respostas do questionário] te atrai para esses estilos. Isso
é, o que há nos filmes e séries desses estilos que você mais gosta?
38. Pode citar alguns [filmes, séries, cineastas] que são seus favoritos pessoais?
39. Consegue se lembrar de quando em sua vida começou a assistir e a gostar desses estilos de filmes
e séries?
269
[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também gostavam ou gostam? Exemplos
disso?]
40. Por outro lado, o que há no [inserir respostas do questionário] que te desagrada?
41. Consegue se lembrar de quando em sua vida passou a não gostar ou que você percebeu que não
gostava, ou isso nunca te ocorreu?
[Explorar: há exemplos de pessoas próximas de você que também não gostavam ou não gostam?
Exemplos disso?]
***
42. Revisando as respostas que deu ao questionário, você acha essa é uma boa representação do seu
cotidiano e de sua vida cultural ou você diria que há outras atividades comuns em seu cotidiano ou
gostos culturais seus (seja em música, literatura, audiovisual, ou qualquer outra área) que são
bastante representativos da sua personalidade e que nós não comentamos?
42.1. [Caso afirmativo] Quais? O que te atrai para essa prática/gosto? Consegue se lembrar de
quando em sua vida começou a praticar/gostar? [Explorar: há exemplos de pessoas próximas de
você que também praticavam/gostavam ou praticam/gostam? Exemplos disso?]
[43. Se alguma expressão se repetir durante as respostas (p. ex.: “clássicos”, “intelectuais”,
“modernos”, “políticos”, “sociais”, “complexos” etc.), pedir para a pessoa definir o que a expressão
significa para ela].
44. Gostaria de saber também se é comum que você indique atividades culturais ou produções
culturais (seja coisas pra fazer, lugares para frequentar, músicas, filmes, séries, livros ou qualquer
outra coisa) para outras pessoas. Você costuma fazer indicações?
[Explorar: o que indica? para quem? dê alguns exemplos disso (indicações que fez e para quem). E as
pessoas costumam seguir suas indicações?].
[Explorar: o que te indicam? Quem indica? dê alguns exemplos disso (indicações que recebeu e de
quem). E você seguiu as indicações?].
Posições políticas
Terminamos o bloco sobre suas práticas e preferências culturais. Então, agora, vamos para as
perguntas sobre suas posições políticas.
46. Você marcou no questionário que [inserir respostas do questionário]. Eu gostaria que você
falasse um pouco mais sobre qual a presença da política na sua vida.
[Explorar: como isso se expressa no seu dia a dia? Sua relação com a política já foi mais intensa ou
menos intensa em outros momentos da sua vida?]
270
47. Agora, uma pergunta mais direta: como você se classifica politicamente? Isso é, existe alguma
posição, ideologia política ou um conjunto de ideias que você acha que representa bem a sua forma
de pensar?
[Em caso afirmativo, explorar: o que significa essa ideologia política para você? Quando e como você
entrou em contato com ela? Você a compartilha com outras pessoas ao seu redor?]
49. E por outro lado, o que significa ser de [inserir respostas do questionário] para você?
50. Acha que a maior parte da população brasileira é de [inserir respostas do questionário].
51. E como era a relação da sua família com assuntos políticos? Era algo comum, intenso, ou não se
discutia muito?
52. No questionário você marcou também que se informa sobre política por meio de [inserir
respostas do questionário]. Você pode me falar um pouco mais profundamente sobre como se
informa sobre política?
[Explorar: quais os veículos que acessa? Quais as pessoas? Quais você considera que são as melhores
fontes de notícias, informações e opiniões sobre política? E quais considera as piores?]
53. No questionário tinha também uma pergunta sobre quais você considera os maiores problemas
do Brasil hoje, e lá você marcou [inserir respostas do questionário]. Gostaria que você se
aprofundasse nessas respostas. Começando pelo [inserir respostas do questionário]. Por que você
considera esse um dos principais problemas do Brasil hoje?
54. Também no questionário você marcou que [inserir respostas do questionário]. O que significa
democracia para você e por que você declarou este nível de satisfação?
Fronteiras simbólicas
Agora, eu vou passar para um bloco de perguntas que diz respeito aos seus valores e a forma como
lida com outras pessoas no seu dia a dia. Você não precisa ficar restrita(o) aos temas que acabamos
de discutir, mas pode citá-los se for o caso:
55. Para começar, eu gostaria de saber o que você vê em outras pessoas (sejam seus amigos, colegas
ou quaisquer outras pessoas) que te faz admirá-los. Pode ser qualquer coisa que elas façam ou
qualquer traço de personalidade. Ou seja, o que te faz admirar outra pessoa?
[Explorar: consegue dar exemplos práticos em pessoa que conhece? Como é essa pessoa?]
271
56. Tem alguma característica que você vê em outras pessoas ao se redor – seus amigos, colegas ou
conhecidos – que você gostaria de ter mas que você acha que não tem, ou não tem o suficiente?
Pode ser um traço de personalidade, um hábito ou mesmo algo que possuem. Algo que você almeja
para você, para a sua vida, e que identifica em outras pessoas.
[Explorar: quais os impedimentos para conseguir isso? Consegue dar exemplos desse impedimento?]
57. Agora, no sentido oposto, o que você vê em outras pessoas (sejam pessoas próximas ou distantes
de você) que te deixa incomodada(o)? Pode ser qualquer coisa que elas façam ou qualquer traço de
personalidade. Que tipos de pessoas você tenta evitar e quais caraterísticas de outras pessoas você
reprova ou te deixam incomodada(o)?
[Explorar: porque isso te desagrada? Consegue dar exemplos práticos em pessoas que conhece?
Como é essa pessoa?]
58. Há, ao longo de sua vida, casos de afastamentos intencionais? Isso é, tem pessoas das quais você
decidiu se afastar voluntariamente?
[Em caso afirmativo: quais os motivos para isso? Isso é comum ou raro?]
59. Eu gostaria de saber sobre modelos e inspirações em sua vida. Tem alguma figura que te inspira
ou inspirou ao longo de sua vida? Pode se tanto uma figura pública, famosa, quanto pessoas de seu
convívio próximo.
[Explorar: como é essa pessoa? O que ela tem que mais te chama atenção? (se for uma pessoa
próxima) como você entrou em contato com ela e como era a convivência entre vocês? (se for uma
pessoa distante) como e quando a conheceu?]
60. No questionário, tinha uma pergunta sobre os valores que você considera mais importantes de
serem transmitidos para seus filhos, e lá você marcou [inserir respostas do questionário]. Eu
gostaria que você falasse um pouco mais sobre esses valores. Vamos começar pelo [inserir respostas
do questionário]. O que esse valor significa para você e porque você considera isso importante de
ser transmitido para seus filhos?
[Explorar: isso era comum em seu ambiente de criação, em seus pais e familiares? Consegue dar
exemplos práticos de pessoas que têm esse tipo de valor? Quais as atitudes de alguém com esse
valor? Como são as pessoas que não têm esse valor? Há exemplos de pessoas próximas ou distantes
de você que não apresentam esse valor? Como elas são?]
61. No questionário tinha também uma pergunta sobre quais grupos de pessoas você não gostaria de
ter como vizinhos, e lá você marcou [inserir respostas do questionário]. Eu gostaria que você falasse
um pouco mais sobre esses grupos de pessoas. Vamos começar pelos [inserir respostas do
questionário]. Como são essas pessoas e por que você não gostaria de tê-los como vizinhos?
[Explorar: você já conviveu, em sua vida, como pessoas desse grupo? Como elas eram?]
62. Eu gostaria de saber agora especificamente sobre colegas em seu ambiente de trabalho. Quais
são, para você, os traços mais positivos que um colega pode ter em seu ambiente de trabalho?
[Explorar: você tem hoje ou já teve em algum momento colegas com esse(s) traço(s)? Como é/era
essa pessoa e como era conviver com ela?]
63. E, no sentido oposto, eu gostaria de saber quais são, para você, os traços mais negativos que um
colega pode ter em seu ambiente de trabalho.
[Explorar: você tem hoje ou já teve em algum momento colegas com esse(s) traço(s)? Como é/era
essa pessoa e como era conviver com ela?]
64. Que características das pessoas são mais valorizadas em seu ambiente de trabalho? Ou seja,
quais os traços que mais contribuem para que uma pessoa seja bem-sucedida no seu ambiente de
trabalho?
65. Você consegue citar alguém que já conheceu que você considera que foi muito bem-sucedida no
mesma área profissional na qual você atua? Como ela era? O que ela fez e qual foi sua trajetória para
ter sucesso?
66. O que você não pode fazer de maneira nenhuma diante de um superior seu no trabalho? Algo
que você não possa fazer, demonstrar ou falar, pois seria prejudicial para você.
[Explorar: você já fez isso ou já presenciou algum colega fazer isso em algum momento? Qual foi a
reação do superior?]
[67. Para entrevistados que supervisionam pessoas em seu trabalho: que tipo de atitudes você
valoriza nas pessoas que supervisiona e que atitudes você mais costuma repreender? Pode dar
exemplos práticos disso? Em seu trabalho você faz parte de bancas de processos seletivos, como
processos de contratação, seleção e promoção de pessoas? (Em caso positivo) O que você costuma
levar em conta nestes momentos? Qual o perfil ideal que busca num momento de seleção? Há
exemplos práticos de pessoas que já selecionou nestes processos que você considera
particularmente acertados?]
68. Por fim, saindo agora especificamente do mundo do trabalho e perguntando sobre sua vida em
geral, eu gostaria de saber o que você almeja para seu futuro? Isso é, qual é o futuro ideal que você
imagina para a sua vida?
Origem social
Para encerrar a entrevista, vou fazer algumas perguntas sobre sua origem social.
69. No ensino fundamental e médio, você estudou em escolas públicas ou particulares? Como foi?
70. E seu ensino superior, foi numa instituição pública ou privada? Fale um pouco, de maneira bem
ampla, sobre como foi sua experiência no ensino superior.
Agora, algumas perguntas sobre seus familiares e sobre a residência onde foi criado(a):
273
71. Qual o nível mais alto de formação dos responsáveis por sua criação?
71.1. [Em caso de ensino técnico ou superior] Onde e em quais áreas se formaram?
73. Sobre a geração anterior à dos responsáveis por sua criação (isso é, a de seus avôs e avós), você
sabe quais foram os níveis de formação e as profissões desses seus familiares?
73.1. [Caso saiba] Quais?
***
74. Você gostaria de retomar alguma resposta que deu no questionário, retomar algum assunto ou
se aprofundar em algum tema?
***
Bola de neve: Antes de encerrarmos, eu gostaria de deixar aqui um pedido caso você possa me
ajudar no prosseguimento da minha pesquisa. Eu ainda preciso encontrar mais pessoas para
participarem da pesquisa; mais pessoas que respondam ao meu questionário e participem da
entrevista como você fez. Para tanto, eu estou utilizando uma técnica de recrutamento chamada
bola de neve, na qual eu peço para as pessoas que já participaram da pesquisa se elas têm outras
indicações de pessoas que tenham um perfil semelhante ao seu. Nisso consiste meu pedido: caso
você conheça mais pessoas que tenham as mesmas caraterísticas que você (isso é, da mesma
profissão ou de profissões semelhantes, na casa dos 30-40 anos, com ensino superior completo e
residente na cidade de São Paulo; não importa se homem ou mulher) e que você acha que também
teriam a disposição para me ajudar, será de grande auxílio para o desenvolvimento de minha
pesquisa se puder me ajudar a acessá-las e a convidá-las para participarem da pesquisa. Caso você
tenha recomendações, mantemos contato pelo WhatsApp ou por e-mail. Obrigado!
***
Comentário posterior:
Tempo de entrevista:
DELLAPOSTA, D.; SHI, Y.; MACY, M. (2015). Why do liberals drink lattes? In:
American Journal of Sociology, vol. 120, n. 5.
Daniel DellaPosta, Youngren Shi e Michael Macy (2015), num texto com o curioso
título de "Por que os liberais bebem latte?", promoveram cruzamentos entre dados de
preferências estéticas e de consumo cultural, práticas de tempo livre e valores
políticos, com informações oriundas de questionários aplicados nos EUA entre 1972 e
2010, e com isso encontraram que respondentes que afirmavam que casamento gay é
sempre errado também frequentavam menos bares e afirmavam com mais frequência
nunca terem ingerido bebida alcoólica, ao passo que frequência maior a bares
guardava correlação positiva com aprovação de casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Respondentes com opiniões políticas mais liberais, como aprovação a sexo
antes do casamento, frequentavam mais shows de rock, country e rap, e viam rock
como influência positiva sobre as crianças. Conservadores também afirmavam com
maior frequência que estamos confiando muito na ciência e pouco na religião, mas os
liberais, apesar de afirmarem maior confiança na ciência, têm mais confiança que os
conservadores em "poderes sobrenaturais que derivam dos antepassados" e leem
mais horóscopos e relatos de astrologia pessoal.
118
Agrippa Kellum, Kai Mast e Ingmar Weber.
275
PRAET, S. et al (2021a). What’s Not to Like? Facebook Page Likes Reveal Limited
Polarization in Lifestyle Preferences. In: Political Communication.
119
Stiene Praet, Andrew M. Guess, Joshua A. Tucker, Richard Bonneau e Jonathan Nagler.
276
investidos no conflito político, indicando que apenas essas pessoas têm a tendência
de estender sua homogeneidade ideológica para outras categorias de páginas que não
as propriamente políticas ou jornalísticas.
KHAN, R.; MISRA, K.; SINGH, V. (2013). Ideology and brand consumption. In:
Psychological science, v. 24, n. 3.
Romana Khan, Kanishka Misra e Vishal Singh (2013), vinculados mais propriamente
aos estudos de propaganda, administração e consumo, acabaram por dar uma
contribuição para o tema da relação entre posições políticas e estilos de vida que
outras pesquisas não captaram. Os autores queriam saber se a orientação política da
população estadunidense (medida a partir da porcentagem de votos nas eleições
presidenciais em cada condado dos EUA) impacta em sua propensão a experimentar
produtos novos ou de marcas novas, abordando na análise categorias de produtos tão
diversos quanto alimentos, produtos de limpeza doméstica e de higiene pessoal.
Cruzando dados da orientação política dos condados com os produtos mais e menos
vendidos em supermercados em cada condado – controlando o teste de
correspondência para evitar a influência de variáveis outras como a classe e a
raça/etnia –, os autores mostram que os condados mais conservadores estão
associados ao maior consumo de marcas nacionais estabelecidas e menor penetração
de novos produtos, ao passo que nos mais liberais há maior consumo e abertura para
experimentar marcas e produtos novos. A conclusão de Khan, Misra e Singh caminha
no sentido de confirmar, partindo de um dado sobre diferenciação no consumo de
produtos gerais, a menor abertura de conservadores para novas experiências.
ROOS, J.M.T.; SHACHAR, R. (2014). When Kerry met Sally: Politics and
perceptions in the demand for movies. In: Management Science, v. 60, n. 7.
Os dados de Khan, Misra e Singh aproximam-se dos de Ross e Shachar (2014), que
usaram o mesmo tipo de desenho de pesquisa para investigar a diferenciação dos
filmes mais e menos assistidos nos cinemas em cada condado dos EUA, tendo em
vista a posição política hegemônica em cada local. Seu cruzamento mostrou que os
residentes dos condados republicanos preferem filmes de ação, infantis e comédias
familiares, gostam menos de filmes com classificação indicativa mais alta e de filmes
estrelados por atores negros. Nos condados democratas, por sua vez, as bilheterias
277
são mais altas para filmes de suspense e drama, filmes com temáticas mais sérias e
intelectuais, filmes de horror, ficção científica e filmes com classificação indicativa
mais alta.
Fora dos EUA, Stiene Praet, junto de outro conjunto de coautores (PRAET et al.,
2021b)120, usou também dados de curtidas em páginas no Facebook para estudar a
politização dos estilos de vida para o caso da Bélgica. No caso belga, páginas sobre
sociedade civil, bares, cafés e clubes noturnos, artes e cultura, livros e autores,
eventos e festivais têm homogeneidade mais alta que a média das demais categorias.
Por outro lado, programas de TV, viagem e turismo, esportes e saúde são os
conteúdos com curtidas mais heterogêneas em termos de posições políticas dos
usuários. Surpreendentemente, mídia e notícias não é uma categoria com
homogeneidade mais alta que a média. As páginas mais curtidas pela esquerda são as
de mídia alternativa – vista como mais a esquerda – e as de organizações não
lucrativas, relacionadas a mudanças climáticas e refugiados. Para o centro, há mais
homogeneidade de curtidas em páginas sobre férias de família, games e TV, portanto
menos políticas. Já para a direita, a maior homogeneidade é em páginas de
nacionalismo flamengo e de memes. Os autores identificaram diferenças também nas
páginas curtidas por direita e esquerda dentro de algumas categorias: no caso do
cinema, por exemplo, a esquerda curte mais cinema alterativo e de arte e a direita
curte mais páginas de filmes populares e de ação (PRAET et al., 2021b). A figura
abaixo sintetiza algumas dessas vinculações encontradas pelos autores:
120
Stiene Praet, Peter Van Aelst, Patrick van Erkel, Stephan Van der Veeken e David Martens.
278
Outro exemplo europeu é o que vem dos sociólogos finlandeses Semi Purhonen e Riie
Heikkilä (2016), que exploraram relações entre clivagens sociodemográficas,
preferências culinárias, preferências musicais e orientações políticas entre a
população finlandesa, usando como base um questionário e entrevistas de uma
amostra nacional coletada em 2007. Assim como os anteriores, eles encontram uma
série de vinculações, sendo a mais notável a que mostra que preferir comidas leves e
culinária étnica se relaciona positivamente com preferir música clássica e ópera e
com ter opiniões políticas liberais, ao passo que preferir comidas pesadas e
carnívoras se relaciona com ter opiniões políticas conservadoras. Outro dado
relevante é o de que entre pessoas com opiniões políticas liberais o gosto por música
clássica e ópera é mais negativamente associado com gosto por fast food e
positivamente associado com gosto por comidas leves e culinária étnica do que entre
pessoas conservadoras. A partir dessas correlações, os autores levanta a hipótese de
que o conservadorismo político pode estar funcionando como uma "barreira" na
articulação coerente entre preferências musicais e culinárias, tornado mais difícil que
o gosto seja homólogo entre os campos para essas pessoas, ao passo que o liberalismo
279
DIMAGGIO, P. (1996). Are art-museum visitors different from other people? The
relationship between attendance and social and political attitudes in the United
States. In: Poetics, vol. 24.