Kanashiro VictorUehara M
Kanashiro VictorUehara M
Kanashiro VictorUehara M
Mestrado em Sociologia
Campinas, 2010
VICTOR UEHARA KANASHIRO
Campinas, 2010
1
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bibliotecária: Cecília Maria Jorge Nicolau CRB nº 3387
2
Para Keico e Maçatoci Kanashiro,
meus pais queridos.
4
AGRADECIMENTOS
5
Emmanuel. Com essas pessoas tive o prazer de dividir não somente angústias
intelectuais, mas também um pedaço da vida.
Ao meu primo Fausto, pela amizade e pelo espírito uchinanchu que ajudou a despertar
em mim.
Ao Glauco, pelo companheirismo, serenidade, carinho e afeto.
Às minhas irmãs, Érika e Luciana, pelo respeito, paciência e amor com que me têm
apoiado nas escolhas da vida.
Aos meus pais, Keico e Maçatoci, a quem serei eternamente agradecido, e cujo cuidado,
dedicação e amor me são fundamentais não só para traçar os caminhos na academia,
mas na vida inteira.
6
En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal Perfección
que el mapa de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y el
mapa del Imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, esos
Mapas Desmesurados no satisficieron y los Colegios de
Cartógrafos levantaron un Mapa del Imperio que tenía el tamaño
del Imperio y coincidía puntualmente con él. Menos Adictas al
Estudio de la Cartografía, las Generaciones Siguientes
entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y no sin Impiedad lo
entregaron a las Inclemencias del Sol y de los Inviernos. En los
desiertos del Oeste perduran despedazadas Ruinas del Mapa,
habitadas por Animales y por Mendigos; en todo el País no hay
otra reliquia de las Disciplinas Geográficas.
(Jorge Luis Borges)
(Pierre Bourdieu)
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RESUMO
8
ABSTRACT
Since the last decades, the issue of sustainability has been established as one of the main
challenges of the XXI century. Increasingly present in discourses of governments,
international organizations, CEOs, political parties, media, NGOs and social movements,
it has also been internalized in the scientific field, appropriated and theorized by
scientists of different areas and through distinct theoretical-political biases. In this sense,
this dissertation analyses the scientific debate on sustainability by means of a sociology
of knowledge of the environmental issue. Departing from a bibliographic review, it
proposes expressive conceptions of total sustainability and equates the problem of the
origin of the differences on the theme by the mannheimian concept of perspective. For
this, besides a brief theoretical discussion on the sociology of knowledge, this work
reconstructs the argumentative logic of each conception, identifying its theoretical bases
and features. Accordingly, six conceptions of total sustainability are proposed: a)
ecoefficiency; b) degrowth; c) stationary-condition; d) ecodevelopment; e)
ecosocialism; f) risk society. In addition, it includes an empirical analysis on articles
about sustainability indexed on Scielo Brazil database. Combining quantitative and
qualitative methods (content analysis), the aim of this empirical entrepreneurship is to
understand how do Brazilian academics tend to appropriate the term and the issue of
sustainability. The results show that there is an increasing quantity of articles on the
subject being published in Brazil, this production is made by scientists from different
areas of knowledge and has been influenced by the various conceptions of sustainability,
with a predominance of the ecoefficiency and ecodevelopment. The research has been
developed in the context of the FAPESP project (process 05/52317-1) – held by the
Center for Environmental Studies at the University of Campinas – whose aim was to
develop a sociology of environmental issue, of interdisciplinarity and global changes,
investigating whether specificities emerges from the internalization of environmental
issues in Latin-american social sciences as a result of the socio-environmental
characteristics of the subcontinent.
9
Lista de Siglas
IUCN – International Union for the Conservation of Nature and Natural Resources
10
Lista de Figuras e Tabelas
11
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 14
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 19
Um breve histórico da noção de desenvolvimento sustentável ..................................... 21
Desenvolvimento Sustentável ou Sustentabilidade?..................................................... 25
Problematização.......................................................................................................... 34
Métodos e materiais de pesquisa ................................................................................. 35
Estrutura da Dissertação .............................................................................................. 39
12
Capítulo 7 – Concepção da sociedade do risco: incerteza, reflexividade e
democracia ecológica .............................................................................................. 107
7.1 A Sociedade do Risco e a questão ambiental ....................................................... 108
7.2 Risco, Sustentabilidade e democracia ecológica .................................................. 112
13
APRESENTAÇÃO
Como sugere o título desta dissertação, procuro, neste trabalho, esboçar uma
sociologia do conhecimento da questão ambiental com foco nos debates científicos
sobre a temática da sustentabilidade. Meus principais objetivos foram, dessa forma,
apresentar diferentes concepções expressivas de sustentabilidade identificáveis na
literatura sobre o tema e problematizar as origens das divergências entre essas
concepções. Além disso, a partir de uma análise quali-quanti, procurei também
investigar empiricamente como a temática da sustentabilidade é abordada na produção
acadêmica brasileira presente na base Scielo Brasil e se é possível estabelecer afinidades
com as concepções expressivas construídas. Gostaria, no entanto, antes de apresentar as
análises aqui propostas, de realizar um exercício reflexivo, na linha do que Mannheim
(1968) chamou de autoclarificação crítica e Bourdieu (2001) de auto-socioanálise.
Nesse sentido, entendo esse exercício como uma autoaplicação da
imaginação sociológica (WRIGHT-MILLS, 2000) para minha própria ainda muito
breve trajetória intelectual, mas que, na posição de um entrante no campo científico,
acredito ser a fonte a partir da qual se originaram as principais questões norteadoras
desta pesquisa. Acredito, além disso, que esse exercício reflexivo pode auxiliar na
compreensão dos caminhos que tomaram esta investigação e facilitar a leitura do texto.
Como explica Wright-Mills (2000), os homens comuns não costumam
definir seus problemas e ações individuais com relação às estruturas sociais e
institucionais historicamente construídas nas quais estão imersos. Nesse sentido, aquilo
que fazem e de que são diretamente conscientes está normalmente circunscrito à órbita
privada de suas vidas. Para o autor, a imaginação sociológica – fundamento central da
análise social – habilitaria seus portadores a entenderem um contexto histórico alargado
por meio dos sentidos que imprime na vida e trajetórias de uma variedade de indivíduos,
problematizando, dessa forma, a história, a biografia e as relações de ambas no interior
da sociedade (WRIGHT-MILLS, 2000).
No âmbito da sociologia do conhecimento – e esse é um dos pressupostos
desta investigação – também o pensamento é enraizado no contexto concreto de
situações histórico-sociais, de onde, para Mannheim (1968), só gradativamente emerge
o pensamento individualmente diferenciado. Isso quer dizer que, ainda que seja verdade
14
que só os indivíduos sejam capazes de pensar e que o conhecimento dependa também da
criatividade individual, no limite, quem pensa não são os homens isolados, mas os
homens em certos grupos que tenham desenvolvido um estilo de pensamento particular.
Como argumenta Mannheim (1968), da mesma forma que seria incorreto tentar derivar
uma linguagem apenas da observação de um só indivíduo – que fala uma linguagem não
somente dele, mas também de seus contemporâneos e predecessores -, é também
incorreto explicar a totalidade do pensamento com referência exclusiva à sua gênese na
mente do indivíduo.
Ora, se o pensamento é socialmente condicionado, e esta investigação é
fruto do pensamento (e de uma observação orientada da “realidade”), então, certamente
ela também está enraizada num contexto sócio-histórico mais amplo que condiciona
minha trajetória individual, os fragmentos da “realidade” escolhidos como objeto e a
análise aqui proposta. No entanto, como procuro argumentar nesta dissertação, do
advento do condicionamento social do pensamento – que é equacionado pelo conceito
de perspectiva na sociologia do conhecimento mannheimiana – não decorre que seja
fonte de erro. Ao invés disso, é ele que possibilita o trabalho intelectual, cuja fonte
remete ao que Ortiz (2003) chamou de uma vinculação visceral às coisas do mundo.
Para Mannheim (1968), o processo de autoclarificação crítica nas ciências
sociais se refere a um autoexame que permita – ainda que com limitações – tornar
conscientes motivações inconscientes do pensamento e tem como critério trazer não
somente o objeto, mas também nós mesmos ao nosso campo de visão.
Nesse sentido, acredito que minhas angústias intelectuais sejam, em parte,
produto do contexto macro e microssocial a que esteve condicionada minha trajetória
intelectual e pessoal até aqui. Digo isso porque se, por um lado, nasci em um país e um
mundo marcado por problemas sociais das mais distintas estirpes – e em que a questão
ambiental passou a se consolidar progressivamente – por outro, tive meus primeiros
contatos com o mundo da ciência simultaneamente em, pelo menos, dois habitus
disciplinares distintos.
Em 2002, ingressei no curso de economia da Universidade de São Paulo e
no de ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Durante os seis
anos em que frequentei esses dois cursos de graduação, fui socializado em teorias,
ambientes e habitus científicos muito distintos que, muitas vezes, conflitavam e se
15
contradiziam. Lembro-me, por exemplo, de um semestre em que, no mesmo dia,
estudava a metodologia da ciência de Karl Popper na Faculdade de Economia pela
manhã e a de Adorno e Horkheimer na Faculdade de Ciências Sociais pela noite. O
problema é que nem a Escola de Frankfurt era citada de manhã, nem Popper citado a
noite.
É claro que as divergências de ideias são parte intrínseca das ciências
sociais (e aqui se inclui a economia), mas naquele momento, visões tão contraditórias,
mas também tão lógicas, traziam angústias que me marcaram intelectualmente e que,
acredito, foram as sementes desta pesquisa. Como é possível dois (ou mais)
pensamentos científicos chegarem a conclusões distintas sobre um mesmo tema? Como
economistas e cientistas sociais podem tratar de temas tão semelhantes e ter visões tão
distintas sobre eles? Por que tudo se passava como se existissem mundos diferentes e
paralelos em que economistas e cientistas sociais tinham seus próprios grupos de
pesquisa, congressos, práticas científicas, visões de mundo, linguagens, revistas,
“verdades”, opiniões políticas e não necessariamente partiam para o embate direto de
ideias?
Uma resposta possível para essas questões seria dizer que alguns cientistas
fazem a boa ciência e outros a má ciência e que, portanto, as diferenças decorrem da boa
ou da má aplicação da teoria à realidade. Outra resposta seria aceitar a ideia de que
alguns cientistas – por exemplo, economistas neoclássicos ou marxistas – atingiram
uma “iluminação” que os capacitaram à obtenção da verdade, enquanto seus opositores
permaneceram na “mera ideologia”.
Ainda que alguma dessas repostas pudesse trazer algum tipo de alívio
intelectual que orientasse uma postura definitiva de minha parte, continuei cultivando
mais as dúvidas e menos as respostas.
Talvez uma diferença da socialização nos habitus disciplinares a que fui
submetido na economia e nas ciências sociais é que, enquanto na primeira aprendi teoria
econômica por meio de manuais que – supostamente – carregavam a ciência econômica
em sua forma “mais avançada” – quase como uma verdade -, na segunda fui inundado
pelas leituras dos clássicos das ciências sociais em seu desenvolvimento histórico e
diversidade. Como um ponto de partida, esse estilo “soft science” foi, acredito, uma
16
aquisição importante para contextualizar “as verdades da ciência” social e
historicamente.
Mas foi somente com as obras de Kuhn, Mannheim e Bourdieu que pude
compreender que o conhecimento científico e as “verdades” da ciência não somente são
socialmente condicionados, mas também estão em disputa; que os pressupostos da
ciência não necessariamente são justificáveis empiricamente nem são imutáveis; e que
os cientistas não somente buscam produzir conhecimentos, mas também são agentes
interessados que procuram maximizar seu capital científico em busca de posições
privilegiadas no campo em que estão inseridos. É nesse sentido que, como argumenta
Mannheim (1968), a emergência do ponto de vista sociológico sobre o conhecimento
traz consigo, inevitavelmente, o “descobrimento gradativo do fundamento irracional do
conhecimento racional” (MANNHEIM, 1968:58).
No entanto, a angústia complicou-se na hora de fazer a minha própria
pesquisa. Ao ingressar no mestrado do Programa de Pós-graduação em Sociologia da
Universidade Estadual de Campinas, apresentei um projeto de pesquisa em que
problematizava os impactos socioambientais da construção da Usina Hidrelétrica de
Irapé, no Vale do Jequitinhonha-MG. Nessa situação, me propus a analisar se os
programas de mitigação da empresa responsável tornavam o empreendimento alinhado
com o desenvolvimento sustentável. O problema é que isso parecia depender muito
mais do meu entendimento do que era desenvolvimento sustentável propriamente dito
do que dos dados empíricos que futuramente iria coletar. Se utilizasse o arcabouço da
economia ambiental, poderia chegar à conclusão de que aquele era um empreendimento
sustentável, uma vez que a empresa investia um montante considerável de recursos para
realocar as populações atingidas pelas barragens, lhes proporcionar benefícios sociais
ou – como dizem os economistas – internalizar as externalidades. No entanto, se
partisse da abordagem do pós-desenvolvimento ou do marxismo, por exemplo, poderia
concluir que aquele empreendimento simplesmente destruía a invalorável cultura
daqueles povos ribeirinhos e do seu ambiente natural em nome do capital, sendo ele,
portanto, insustentável.
Como conta Wright-Mills (1974), segundo a teoria social da percepção, ao
adquirir um vocabulário técnico com seus termos e classificações, o pensador está
adquirindo como se fosse um par de lentes coloridas. “Ele (o pensador) vê um mundo
17
de objetos que são tecnicamente tintos e padronizados. Uma linguagem especializada
constitui uma verdadeira forma apriorística de percepção e cognição, que é certamente
relevante para os resultados da investigação” (WRIGHT-MILLS, 1974:133,134).
Nesse contexto, em conversas com a orientadora, resolvi dar um passo atrás,
deixando o estudo de caso em questão de lado e problematizando a origem das
divergências das distintas concepções de sustentabilidade presentes na literatura sobre o
tema. Propondo uma sociologia dos conhecimentos ambientais, esse projeto
beneficiava-se ainda dos vínculos com o projeto temático FAPESP “A Questão
Ambiental, Interdisciplinaridade, Teoria Social e Produção Intelectual na América
Latina”, coordenada pela Professora Dra. Leila da Costa Ferreira. Essa pesquisa
problematizava a produção intelectual latino-americana sobre ambiente e sociedade,
procurando identificar as especificidades dessa produção e de sua institucionalização no
subcontinente. Nesse sentido, e em consonância com o projeto temático em questão,
resolvi também investigar, para além de uma revisão teórica, como a produção
acadêmica brasileira tende a se apropriar da temática da sustentabilidade.
Como candidato a entrante no campo científico – condição que localiza
minha posição nesse espaço social – devo salientar que esta pesquisa é circunscrita ao
próprio instável processo de aprendizagem do métier do artesão intelectual –
característico da pós-graduação –, mas também por uma visão relativamente limitada do
campo científico – fruto dessa posição – que envolve a discussão em questão. O esforço,
no entanto, vai no sentido de, ao esboçar uma sociologia do conhecimento da questão
ambiental, argumentar pela necessidade de objetivar os sujeitos da objetivação e seus
pontos de vista particulares (BOURDIEU, 2001).
Nesse sentido, se ela não traz respostas definitivas, procura romper com a
ilusão do ponto de vista absoluto – característica de muitos pontos de vista (que se
ignoram enquanto tais) –, propondo uma sociologia reflexiva dos conhecimentos
científicos produzidos sobre a questão. São os resultados deste esforço de reflexão que
apresento a partir de agora.
18
INTRODUÇÃO
19
No entanto, se por um lado, o reconhecimento desse embeddedness material
é relevante para a análise da questão ambiental, certamente os condicionantes
ambientais da vida social são também significados socialmente. Isto é, partindo de uma
visão dos objetos do ambiente como materialmente socializados e socialmente dotados
de significado, a questão ambiental não pode ser entendida nem somente em seus
aspectos físicos, nem somente em seus aspectos sociais.
20
imprecisão dá margem a interpretações, teorizações e apropriações bastante
diversificadas. Por conta disso, como argumentam Viola e Oliveri (1997), a luta pelo
significado legítimo do desenvolvimento sustentável expressa diversas categorizações e
classificações fundadas em práticas diferentes e ligadas a múltiplas cosmovisões
provenientes de uma pluralidade de pontos de vista essencialmente conflitantes. Nesse
sentido, as diversas posições em relação ao significado da “transição em direção a uma
sociedade sustentável” implicam lutas simbólicas pelo poder de produzir e de impor
uma visão legítima de sustentabilidade.
21
década de 1970, esse relatório provocava a comunidade internacional na medida em que
colocava a seguinte questão: o que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o
qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente a
concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegarem
efetivamente a universalizar-se? Se isso acontecesse – concluem seus autores – a
pressão sobre os recursos seria de tal ordem (ou, alternativamente, o custo do controle
de poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria
necessariamente em colapso (FURTADO, 1996).
Segundo Nobre (2002), a visão alarmista característica desse estudo gerou
reações que encaminharam as discussões da Conferência do Meio Ambiente em
Estocolmo e polarizaram o debate ambiental característico da década de 1970. No
campo científico, emergiram críticas de diversas naturezas. O Prêmio Nobel da
Economia Robert Solow, por exemplo, se incumbiu de afastar os maus presságios
malthusianos ou, como exprimiu em artigo da mesma época, “a síndrome do juízo final”
(SOLOW, 1973). Solow (1974) argumentava – como fazem até hoje alguns
economistas neoclássicos – que, em caso de escassez, os recursos naturais poderão ser
substituídos por outros fatores de produção – como trabalho e capital reprodutível – e
embasava sua posição de que o crescimento econômico pode e deve prosseguir até o
“dia do juízo final” (SOLOW, 1973). Já uma reação marxista pode ser bem ilustrada
pelo artigo de Hans Magnus Eszenberger (1974) – considerado uma das primeiras
análises marxistas da discussão moderna sobre a crise ambiental. Eszenberger (1974)
acusava o grupo de cientistas que produziu o relatório de, ao evocar um discurso
ecológico catastrofista sem provas muito concretas, encobrir os interesses de um
complexo eco-industrial. Para ele, uma vez que a classe trabalhadora preocupa-se
pouco com problemas ambientais gerais, a ecologia seria uma questão que diz respeito à
classe média e consistiria numa fonte de ideologia (ESZENBERGER, 1974).
No âmbito da política internacional, a reação conjunta dos países em
desenvolvimento na Conferência de Estocolmo de 1972 combinava elementos das duas
reações mencionadas acima e tratava de rejeitar veementemente qualquer proposta de
crescimento zero – como fazia o relatório do Clube de Roma – seja por representar uma
ação imperialista dos países centrais, seja por partir do erro de que o desenvolvimento
econômico seria a causa dos problemas ambientais (NOBRE, 2002). Nesta situação, o
22
Brasil, por exemplo, – que vivia os seus anos de “milagre econômico” – declarava que
seu compromisso prioritário era com o desenvolvimento acelerado e que a recuperação
de desequilíbrios ambientais deveria ser responsabilidade do “Primeiro Mundo”
(HERCULANO, 1992). E esse tipo de posição só se alterou na sessão especial do
PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) em Nairóbi, 1982,
quando se chegou a um acordo para a elaboração de uma concepção de
desenvolvimento que levasse mais a sério as questões ambientais e se decidiu pelo
estabelecimento da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CMMD), que ficou mais conhecida como Comissão Brundtland (NOBRE, 2002).
O argumento de que desenvolvimento e preservação ambiental não eram
necessariamente contraditórios já tinha sido evocado no conceito de
ecodesenvolvimento, mencionado pela primeira vez por Maurice Strong em 1972 e
elaborado teoricamente por Ignacy Sachs a partir de então. Mas foi o termo
desenvolvimento sustentável – que, como veremos no capítulo 6, contém diferenças
fundamentais em relação ao ecodesenvolvimento, ainda que isso nem sempre seja
explicitado – que progressivamente se tornou hegemônico e se institucionalizou nas
agências internacionais e governos.
A noção de desenvolvimento sustentável começou a ganhar proeminência
internacional em 1980, quando a IUCN (International Union for the Conservation of
Nature and Natural Resources) apresentou o relatório “World Conservation Strategy,
tentando promover o objetivo de “alcançar o desenvolvimento sustentável pela
conservação dos recursos vivos” (LÉLÉ, 1991:610). Mas foi somente a partir do
Relatório Brundtland – resultado da CMMD e publicado com o sugestivo título Our
Common Future em 1987 – que o desenvolvimento sustentável passou a se consolidar
como uma ideia-força, gerando certo consenso em torno da questão e ganhando adesão
política também de países em desenvolvimento – fato decisivo para o encaminhamento
da Rio-92 e os debates ali travados.
Uma das mais conhecidas definições do Relatório Brundtland é aquela em
que o desenvolvimento sustentável aparece como sendo o “desenvolvimento que atende
as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as gerações futuras
atenderem também as suas” (CMMD, 1991:9). Os autores do relatório admitem que
esse processo tenha limitações, mas argumentam que elas não são absolutas e sim
23
impostas pelo estágio do desenvolvimento tecnológico e da organização social para
gerir os recursos naturais e não extrapolar a capacidade da biosfera de absorver os
efeitos da atividade humana. Para eles, uma vez que a pobreza é vista como um mal em
si mesmo e um dos fatores da degradação ambiental, o crescimento econômico é
fundamental tanto para satisfazer as necessidades básicas do presente como para
promover a preservação do ambiente.
O relatório gerou muitos adeptos – que reconheceram sua importância para
a institucionalização da questão ambiental – e também muitos críticos – que
evidenciaram suas imprecisões e contradições. Mas o fato é que, pelo menos desde tal
relatório, a noção de desenvolvimento sustentável – e expressões a ela associadas –
passou a se consolidar nos discursos de organismos internacionais, empresas, políticos,
mídia e movimentos sociais, sendo quase impossível ser contra ela. Caracterizada por
essa aceitação quase universal, o termo passou também a ser tomado como objeto de
teorização e operacionalizado por cientistas e intelectuais das mais variadas tradições
disciplinares que o definem e o significam das mais distintas maneiras.
Para Nobre (2002), são justamente as fraquezas, imprecisões e contradições
da noção de desenvolvimento sustentável as razões desta aceitação geral. Isto é, a noção
se tornou pervasiva porque conseguiu reunir sob si posições teóricas e políticas
contraditórias e até mesmo opostas. Analisando seu processo de institucionalização, o
autor afirma que isso ocorreu porque o termo desenvolvimento sustentável não nasceu
definido, ou seja, sua conceituação e seu sentido – no âmbito de um projeto mais amplo
de institucionalização1 da problemática ambiental – são decididos no debate teórico e na
luta política.
É nesse sentido que Drysek (2005) compara a noção de desenvolvimento
sustentável com a de democracia, igualmente significada e definida a partir dos mais
distintos vieses teórico-políticos. Para ele, assim como a democracia é o único modelo
1 Como afirma Brookfield (1988:128), “Our common future” foi intencionalmente um documento
político, mais do que um tratado científico sobre os problemas do mundo. Apesar de aceitar acriticamente
um grande número de afirmações mal fundamentadas entre outras bem embasadas, o relatório é sensato
em muitas das questões políticas básicas. (...) Bastante imperfeito como relatório ambiental, é uma
importante contribuição para a politização dos problemas ambientais e sua inter-relação com os
problemas de desigualdade, pobreza e políticas de comércio internacionais.
24
em jogo quando se trata da organização política, o desenvolvimento sustentável se
mostra como única saída possível quando se trata da crise ambiental.
Assim, na questão ambiental – e especificamente na discussão sobre
sustentabilidade – confluem diversas disciplinas e abordagens teóricas em torno de uma
questão política essencial: a disputa e a cooperação dos diferentes atores sociais em
torno da preservação e sustentação dos processos vitais, buscando inclusão, justiça
social e respeito à diversidade cultural (HOEFFEL e REIS, 2010; DRYSEK, 2005).
Mas essa confluência e abrangência, inerente à própria questão ambiental,
configura simultaneamente sua força e importância, bem como seus limites (HOEFFEL
e REIS, 2010). Se, por um lado, ela traz em seu interior a discussão política quanto à
forma de sociedade, suas práticas e seus valores, por outro, a multiplicidade de
concepções e de interesses representados e camuflados pelas diferentes orientações
teóricas e políticas na discussão ambiental ameaçam precipitar o debate em um diálogo
no qual diferenças irreconciliáveis estão ocultas sob um mesmo termo: sustentabilidade.
Por conta disso, como afirmam Ferreira e Viola (1997), a temática da
sustentabilidade tornou-se um ponto de referência obrigatório nos debates acadêmicos,
políticos e sociais, passando a ser, simultaneamente, uma ideia-força poderosíssima
sobre a ordem social desejável e um campo de batalha simbólico para a significação
desse ideal normativo.
Nesse sentido, uma primeira aproximação a essa complexa disputa remete à
batalha no mundo das palavras e à polissemia característica da discussão. Tendo isso em
vista, antes de apresentar as questões que guiaram esta pesquisa, gostaria de fazer uma
breve digressão em torno da polissemia dos termos desenvolvimento sustentável e
sustentabilidade, bem como qualificar as especificidades que ela traz para uma
sociologia do conhecimento da questão ambiental.
25
para os fins desta dissertação, acredito ser necessário diferenciar os dois termos e
qualificá-los em suas polissemias e especificidades.
Se, por um lado, a emergência do termo desenvolvimento sustentável veio
consolidar a questão ambiental como uma questão política fundamental, a história da
sustentabilidade – em termos empíricos e conceituais – remete a algumas centenas de
anos anteriores ao Relatório Brundtland.
Segundo Ferreira (2006), o termo sustentabilidade remete ao vocábulo
sustentar.
26
exploração mais cautelosa da madeira que garantisse um equilíbrio entre o crescimento
e o corte das árvores (EDINGER & KAUL, 2003).
Partindo dessa diferenciação histórica, portanto, a identidade entre
desenvolvimento sustentável e sustentabilidade é, como veremos, circunscrita a alguns
tipos de uso dos termos.
Tanto desenvolvimento sustentável quanto sustentabilidade são termos
polissêmicos. Grande parte dos trabalhos sobre o tema começa assumindo que existem
inúmeros significados para eles e que a discussão é cheia de imprecisões e contradições.
Mas essas características não são exclusividade dessa discussão. A polissemia e a
disputa em torno de conceitos estão presentes em muitos debates das ciências sociais e
podem ser tomadas elas próprias como objetos passíveis de análise sociológica.
Ortiz (2007), por exemplo, analisa a polissemia dos termos universal e
diversidade na filosofia e ciências sociais. Mostra como sua apropriação por diferentes
tradições de pensamento corresponde a diferentes sentidos e significados. Para ele, a
perspectiva sociológica permite afirmar que existem vários universais que se
contradizem uns aos outros e competem entre si. “Eles não existem em abstrato, devem
ser situados historicamente e qualificados em suas especificidades” (ORTIZ, 2007:9). O
tema da diversidade também é problematizado de forma similar: a diferença não possui
um valor “em si”, uma “estrutura” ou “essência” atemporal, mas existe em situações
históricas determinadas (ORTIZ, 2007). Nesse sentido, do ponto de vista sociológico,
importa menos o “real” significado do universal e diversidade e mais a análise de como
a mudança de contextos incide sobre a compreensão desses conceitos.
Enquanto fenômeno linguístico, a polissemia (do grego poly + sema) se
refere às palavras que comportam vários significados. O sentido específico de um termo
polissêmico só pode ser compreendido em relação a seu contexto e situação lexical. O
linguista Michel Bréal (1992) – considerado o fundador da semântica – afirma que as
distinções nas palavras são motivadas por necessidades reais, sem premeditação por
parte de quem lida com os objetos. Ressalta que os sentidos novos não põem fim aos
antigos, já que nada impede que os vocábulos polissêmicos sejam empregados
alternativamente em seus significados primitivo, restrito, ampliado, concreto ou abstrato.
Para o autor, o acúmulo de significações de um vocábulo representa diversidade de
aspectos da atividade intelectual e social (BRÉAL, 1992).
27
Na visão de Mannheim (1968), a variação no significado das palavras e as
múltiplas conotações de cada conceito remetem a polaridades de esquemas de vida
mutuamente antagônicos, implícitos nestas nuances de significado. Nesse sentido, as
palavras e os significados a elas ligados constituiriam realidades coletivas.
28
sentidos 2 para o termo “sustentar”. Por isso, em seu uso genérico, o termo assume
múltiplos significados que, muitas vezes, têm pouca ou nenhuma relação com a questão
ambiental. Pode-se falar, por exemplo, num casamento sustentável, num crescimento
sustentável3, na sustentabilidade financeira de uma empresa ou ONG.
Mesmo no campo científico, o termo pode ser utilizado em contextos sem
relação alguma com a questão ambiental. Um artigo analisado na pesquisa empírica
desta dissertação ilustra bem esse tipo de situação. Nele, Pires (2006) – o autor – utiliza
o termo para se referir à sustentabilidade da dívida pública brasileira. Nesses casos, o
termo denota especificamente uma qualidade atribuída a um substantivo que não tem
relação com a questão ambiental. Por isso, a esse tipo de uso, chamo de uso genérico da
sustentabilidade.
Em contraposição a esse tipo de uso do termo, existem aqueles que remetem
diretamente ou indiretamente à questão ambiental e podem ser divididos em específico e
total. O que, a partir de agora, chamarei de sustentabilidades específicas refere-se aos
usos do termo que, no contexto da discussão ambiental, procuram equacionar
conceitualmente as diferentes dimensões específicas da questão da sustentabilidade.
Nesse sentido, o uso específico remete, até certo ponto, ao que Sachs (1996) chamou de
sustentabilidades parciais. É o caso, por exemplo, de expressões como sustentabilidade
social, sustentabilidade econômica, sustentabilidade ambiental, sustentabilidade
ecológica, sustentabilidade política, entre outras.
2
Sustentar: (vtd) 1.segurar por baixo, carregar com o peso de; suster, suportar; 2. evitar a queda, manter o
equilíbrio de (algo, alguém ou o próprio); apoiar(-se), suster(-se), firmar(-se); 3. segurar no alto, levar nas
mãos; portar, carregar; 4. manter(-se) no ar, sem largar ou cair; 5. manter a resistência a; resistir,
aguentar(-se); 6. dar ou receber alimentação; alimentar(-se), nutrir(-se); 7. matar a fome; satisfazer por
muito tempo as necessidades de alimento, esp. para aqueles que executam trabalho pesado; 8. dar ou obter
os recursos necessários para a manutenção; manter(-se), conservar(-se); 9. dar ou receber o necessário à
vida (alimentação, vestuário, habitação, cuidados com a saúde etc.); prover(-se), manter(-se), amparar(-
se); 10. gerar os recursos materiais para a sobrevivência de (um país, uma classe social etc.); 11.garantir e
fornecer os meios necessários para a realização e continuação de (uma atividade); 12. Derivação: sentido
figurado. servir de alimento moral a; instruir, edificar; 13. manter elevado, digno, honrado (algo ou a si
mesmo); 14. impedir a ruína; auxiliar, proteger, socorrer; 15. sofrer (algo) com resignação, com firmeza;
16. permanecer em (algum lugar), resistindo, lutando; 17. tomar o partido, a defesa de; defender, apoiar;
18. defender com argumentos, arrazoados, provas; 19. dar continuidade a, não se dar por vencido em
(uma discussão, polêmica etc.); 20. afirmar categoricamente (algo); 21. repetir (o que foi dito
anteriormente); insistir, confirmar, reafirmar; 22. dar(-se) forças, manter(-se) firme, sem fraquejar;
fortalecer(-se), encorajar(-se); 23. Rubrica: música. manter por um tempo maior do que o normal
compasso, tempo, nota, pausa, voz etc.). (HOUAISS, 2009).
3
Termo que se refere às taxas de crescimento econômico constantemente positivas ao longo do tempo.
29
Apesar de muitos autores utilizarem e darem lugar central a essas
sustentabilidades específicas quando tratam da temática do desenvolvimento sustentável,
elas podem ser definidas em sentidos específicos e vêm qualificar uma única esfera da
discussão. Como exemplo disso, podemos citar a diferenciação que Sachs (2004) faz
dos conceitos de sustentabilidade social e econômica. Para ele, sustentabilidade social
se refere à criação de processos de desenvolvimento que transcendem a lógica de
crescimento econômico e que promovem maior equidade na distribuição de renda e
bens. Já sustentabilidade econômica consiste na utilização eficiente dos recursos e dos
fluxos de investimentos públicos e privados e tem como pressuposto a superação das
configurações externas negativas decorrentes das dívidas dos países do Sul e do
protecionismo dos países do Norte (SACHS, 2004). Outro exemplo é como Yearley
(1996) e Ferreira (2005) distinguem os termos sustentabilidade ecológica e ambiental. O
primeiro se refere ao estágio clímax de um ecossistema natural, no qual os fluxos de
entrada e saída de matéria e energia se mantém equivalentes a longo prazo,
configurando a maturidade do sistema, espontaneamente atingidos pela própria natureza.
O segundo envolve a intervenção humana através do gerenciamento ambiental,
produzindo balanços energéticos que equilibram artificialmente o sistema,
contrabalançando os estoques de energia e matéria que são utilizados como matéria-
prima na esfera produtiva.
Nesse sentido, os usos específicos conseguem dar ao termo significados
relativamente bem definidos, podendo mais facilmente torná-lo operacional como
categoria analítica. Nesse caso, a questão, acredito, é menos de polissemia e mais de
expressar esferas específicas a que se possa potencialmente dar a qualidade de
sustentável. Por isso, é possível dizer, pelo menos de modo formal, que uma
determinada atividade tem sustentabilidade social sem ter sustentabilidade ambiental, ou
que tem sustentabilidade ecológica sem ter sustentabilidade econômica.
O termo específico vem contrapor outro tipo de uso do termo
sustentabilidade também relacionado à questão ambiental – esse sim de natureza
polissêmica – a que chamo de sustentabilidade total. Na minha perspectiva, esse tipo de
uso do termo se refere a algo multidimensional que engloba diversas esferas da vida
social na sua interação com o ambiente e normalmente é utilizado para indicar uma
utopia, uma ideia-força ou um ideal normativo que busca iluminar uma saída para a
30
crise ambiental. É à sustentabilidade total que se refere Ferreira (2005) quando diz que
entre os inúmeros conceitos de sustentabilidade elaborados nos últimos anos, o que se
pretende é encontrar os mecanismos de interação entre as sociedades humanas que
ocorram numa relação harmoniosa com a natureza. E é a ela também que se referem
Leff (2001) – quando argumenta que a sustentabilidade reorienta o processo
civilizatório da humanidade – e Sachs (1996) – ao falar de sustentabilidade integral,
ressaltando a multidimensionalidade do termo.
A identidade entre os termos sustentabilidade e desenvolvimento sustentável
só é possível, portanto, quando se está utilizando o primeiro termo num sentido total.
No entanto, também essa identidade encobre uma série de disputas teórico-políticas não
resolvidas. Ferreira (2006), por exemplo, argumenta que o termo desenvolvimento
sustentável, fortemente marcado pelo discurso ecológico oficial (notadamente do
Relatório Brundtland), privilegia as dimensões ambiental e econômica, negligenciando
outras. Já Leff (2001) o considera a “solução” neoliberal para a questão.
Como procuramos demonstrar na parte I desta dissertação, há diversas
abordagens, caminhos e concepções propostas para se atingir e entender a
sustentabilidade em seu sentido total 4 e nem todas congregam com a ideia de
desenvolvimento sustentável – ainda que o termo possa ser usado como estratégia de
legitimação na discussão em questão. Por exemplo, condição estacionária,
ecodesenvolvimento, decrescimento, ecossocialismo ou sociedade sustentável são
expressões que concorrem contra ou por uma ressemantização hegemônica do termo
desenvolvimento sustentável, ainda que todas concordem com a busca da
sustentabilidade em seu sentido total.
O debate em torno da expressão desenvolvimento sustentável é
complexificado ainda pela polissemia de outro termo que o constitui: desenvolvimento.
Como primeira aproximação a essa questão, podemos dizer que há pelo menos três
maneiras de se entender o desenvolvimento tout court. Na primeira – bastante
disseminada entre a maioria dos economistas – constrói-se uma identidade direta entre
desenvolvimento e crescimento econômico e, portanto, índices como o crescimento do
4
Nesse sentido, preferi o uso dos termos específico e total, em detrimento das categorias já propostas por
Sachs (1996) de parcial e integral, porque esse autor associa esses termos, no contexto de sua obra, muito
fortemente à questão do desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento.
31
PIB são entendidos como bons indicadores de desenvolvimento. Na segunda – bastante
crítica à primeira e mais explícita em obras de economistas heterodoxos como Amartya
Sen, Ignacy Sachs e Celso Furtado – o crescimento econômico aparece como sendo
apenas uma das esferas do processo de desenvolvimento, esse último entendido como a
melhora na qualidade de vida ou, nas palavras de Sen (2000), a expansão das liberdades
humanas. Já na terceira visão – mais marginal e base da argumentação da corrente do
pós-desenvolvimento – entende-se a ideia de desenvolvimento como uma crença
ocidental que promove a colonização do imaginário dos povos e a ocidentalização do
mundo (VEIGA, 2005).
Certamente, o entendimento do que “realmente” significa “se desenvolver”
tem consequências decisivas na visão sobre desenvolvimento sustentável e na
formulação das distintas concepções de sustentabilidade total. Na parte I deste trabalho
– em que identificamos concepções expressivas nessa discussão -, as distintas
significações e disputas em torno do termo desenvolvimento, bem como suas
consequências para o debate sobre sustentabilidade total, são mais detalhadamente
discutidas.
O que interessa neste momento é, além de diferenciar os tipos de uso dos
termos em questão, qualificar a polissemia e as disputas em torno deles, mostrando
como as características da discussão a tornam objeto privilegiado de uma sociologia do
conhecimento da questão ambiental.
Como argumentei anteriormente, a polissemia e a disputa em torno de
conceitos não são exclusividade da questão da sustentabilidade. Assim como Drysek
(2005), Lafferty (1995) faz uma analogia entre desenvolvimento sustentável e
democracia no sentido de que ambos são tomados como universalmente desejáveis, mas
geram interpretações das mais diversas. Esse é o caso também, como aponta Yearley
(1996), de discussões sobre justiça, direitos humanos, accountability, entre outras.
Yearley (1996) faz, no entanto, uma advertência a esse tipo de comparação.
Para ele, a especificidade da discussão sobre sustentabilidade está nas penalidades
físicas da não acomodação de suas demandas. O argumento não é apenas o de que
deveríamos viver sustentavelmente, mas também o de que no longo prazo não
poderemos viver de nenhuma outra maneira. E, nesse sentido, diferentemente da
32
questão da democracia, a sustentabilidade torna-se – na sua visão – um imperativo
global inexorável.
No âmbito da discussão científica, o argumento de Yearley ajuda ainda a
qualificar outras especificidades da polissemia e disputas em torno da questão da
sustentabilidade. Se o tema da democracia vem sendo tradicionalmente debatido e
teorizado por cientistas políticos, sociólogos e filósofos, a questão ambiental – por seu
caráter multidimensional e interdisciplinar – é caracterizada por ser discutida e
formulada por cientistas e intelectuais das mais diversas disciplinas e abordagens
teóricas. Como mostram os dados empíricos desta dissertação – expostos na parte II – o
termo sustentabilidade tem sido usado por sociólogos, engenheiros, economistas,
agrônomos, politólogos, ecólogos, administradores, entre outros, que trabalham com
perspectivas interdisciplinares ou não. Dessa forma, seus usos imprimem significados
dos mais distintos conforme as tradições teóricas e disciplinares em que se inserem.
Essas características tornam o campo e produção acadêmica sobre o tema
em um objeto de investigação instigante para, numa sociologia do conhecimento da
questão ambiental, refletirmos sobre como a variedade de perspectivas (MANNHEIM,
1968) e habitus disciplinares (BOURDIEU, 1975; 2001) imprime significados
diferentes (e em disputa) para o termo, o que, no limite, evidencia a porosidade das
fronteiras entre as ditas ciências sociais e naturais, entre ciência e sociedade.
Desse modo, acredito que uma sociologia do conhecimento da questão
ambiental, e especificamente da temática da sustentabilidade, pode contribuir tanto para
um exercício reflexivo dos conhecimentos ambientais quanto para a reflexão sobre sua
gênese social, construção interdisciplinar, institucionalização e consequências para a
disputa política.
Leff (2001), por exemplo, propõe uma sociologia ambiental do
conhecimento que, ao problematizar os condicionamentos sociais do saber ambiental – e
enfrentar suas consequências teóricas, metodológicas e epistemológicas –, semeie a
construção de uma racionalidade ambiental baseada no pensamento complexo. Esta
pesquisa não chega a ter tal pretensão. Mas procura, ao menos, refletir sobre a natureza
conflitiva e política da questão, apresentando diferentes concepções da sustentabilidade
que emergiram na literatura científica sobre o tema nos últimos anos e problematizando
a origem das suas divergências.
33
Problematização
34
Como definida por Mannheim (1968), a sociologia do conhecimento
permite entender os discursos e conhecimentos produzidos por uma sociedade como
socialmente vinculados a determinados grupos sociais e contextos históricos. Com base
nisso, procuro argumentar que as divergências nas concepções expressivas de
sustentabilidade remetem a diferentes perspectivas – no sentido mannheimiano do
conceito – que orientam distintas concepções, propostas e posições na disputa pelo
encaminhamento teórico e político da questão ambiental. Como veremos, o conceito de
perspectiva vem evidenciar o condicionamento social (relacionado à estrutura cognitiva,
visões de mundo, sistema de valores e estilos de pensamento) e a parcialidade de todo
conhecimento sobre o mundo, inclusive o científico. Nesse sentido, a partir da
reconstrução da lógica argumentativa de cada concepção, identificação de suas bases
teóricas e de elementos de um núcleo interpretativo, procuro, nesta dissertação,
argumentar que as diferentes concepções expressivas de sustentabilidade se vinculam a
estilos de pensamento e perspectivas diferentes e que, portanto, as origens das
divergências sobre o tema não podem ser entendidas simplesmente como decorrentes de
erros de lógica ou falta de “cientificidade” na discussão, mas revelam a complexidade,
bem como o caráter conflitivo e eminentemente político da questão.
O segundo sentido se refere a uma análise quantitativa e qualitativa da
produção acadêmica brasileira sobre sustentabilidade que teve como objeto empírico os
artigos indexados na base Scielo Brasil. A partir dessa análise empírica, procurei
investigar de que forma os termos desenvolvimento sustentável e sustentabilidade têm
sido apropriados por acadêmicos brasileiros de diversas áreas do conhecimento e
verificar se é possível estabelecer afinidades – ainda que relativas – entre os usos dos
termos nos artigos e as concepções expressivas construídas no mapeamento da questão.
Essa tarefa, realizada a título de exercício intelectual, permitiu também visualizar
empiricamente a crescente quantidade de artigos publicados sobre o tema no Brasil e a
diversidade temática e disciplinar na discussão.
35
história do pensamento e que, ainda que estejam em processo de mudança constante,
possam ser identificados pelo método da imputação. Para ele, esse método implica na
representação da perspectiva de cada produto do pensamento e na colocação da
perspectiva assim estabelecida em relação com as correntes de pensamento de que é
parte.
Nesse sentido, a tarefa da imputação pode ser conduzida em dois níveis. O
primeiro trata dos problemas gerais de interpretação e se refere à reconstrução típico-
ideal de estilos de pensamento e perspectivas integrais, investigando expressões
singulares e registros de pensamento que pareçam estar relacionados a uma visão de
mundo (Weltanschauung) específica (MANNHEIM, 1968). Consiste, portanto, em
tornar explícito todo o sistema implícito nos segmentos separados de um sistema de
pensamento.
Já o segundo nível da imputação opera presumindo que os tipos-ideais
construídos sejam hipóteses indispensáveis à pesquisa, e indagando, até que ponto, em
casos individuais e empíricos, tais tipos-ideais podem efetivamente ser concebidos em
seu pensamento. Nesse sentido, o método exige também que se examine a obra de
diversos autores com o intuito de proceder à imputação com base nas combinações e
cruzamentos de pontos de vista a serem encontrados em suas afirmações (MANNHEIM,
1968).
Baseado nas sugestões de Mannheim (1968), procurei, nesta pesquisa,
esboçar os dois níveis de tal método. A fim de viabilizar o primeiro deles, realizei uma
revisão bibliográfica 5 na literatura sobre o tema guiando-me pelo instrumental
weberiano de tipo-ideal 6 . Como explica Weber (2002), essa ferramenta analítica
possibilita construir quadros ideais que se revestem de um caráter utópico – dada a
impossibilidade de encontrá-los em sua natureza pura na realidade – acentuando as
5 A revisão bibliográfica foi realizada nas redes de biblioteca da Unicamp, USP e Unesp e ainda foi
beneficiada pelo acesso aos periódicos eletrônicos disponibilizados pelo programa E-Periodicos e pela
compra de livros, artigos e e-books com recursos da reserva técnica da FAPESP.
6
Como explica Weber (2002:106), “obtém-se um tipo-ideal mediante a acentuação unilateral de um ou
vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente
dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e
que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro
homogêneo de pensamento.”
36
especificidades de cada tipo possível de manifestação de um fenômeno e orientando
caminhos para a formação de hipóteses.
No caso específico desta investigação, haja vista as controvérsias teóricas
internas a uma mesma concepção, o recurso metodológico do tipo-ideal possibilitou a
organização da literatura revisada segundo critérios que viabilizassem um mapeamento
de concepções expressivas típico-ideais de sustentabilidade e evidenciassem
características marcantes dos estilos de pensamento e perspectivas que orientam cada
uma delas.
Para isso, foi preciso, nessa primeira etapa, identificar teorias e abordagens
das mais diversas sobre a questão. A partir da reconstrução argumentativa, da análise de
pressupostos e proposições normativas foi possível propor concepções típico-ideais em
que certa unidade de estilo de pensamento e perspectiva pudesse ser visualizada. Com
esse intuito, os seguintes elementos foram construídos para caracterizar cada concepção:
visão sobre desenvolvimento tout court, sustentabilidade e desenvolvimento sustentável,
disciplinas e teorias base, principais argumentos e pressupostos, relação com o relatório
Brundtland, conceitos-chave, dimensões privilegiadas na análise, atores e mecanismos
considerados promotores da sustentabilidade, principais autores e interlocutores.
Como resultado desse primeiro nível do método são propostas as seguintes
concepções expressivas de sustentabilidade: a)Ecoeficiência; b)Decrescimento;
c)Condição Estacionária; d)Ecodesenvolvimento; e)Ecossocialismo; f) Sociedade do
risco.
Nos capítulos da parte I desta dissertação, em que apresento cada uma
dessas concepções, procuro, no início de cada um, destacar as principais características
da concepção em questão para, em seguida, apresentar as teorias ou disciplinas que as
embasam. Nesse sentido, foi também uma oportunidade de revisar como diversas
tradições disciplinares e teóricas internalizaram a questão ambiental em suas abordagens.
A título de exercício intelectual, o segundo nível da imputação foi esboçado
por meio de uma análise empírica quali-quanti de artigos da base Scielo Brasil
publicados sobre sustentabilidade desde 1987 (ano do Relatório Brundtland) até 2009.
O principal objetivo dessa etapa da pesquisa foi, além de traçar um panorama (ainda que
com as limitações impostas pelo objeto empírico) da produção acadêmica brasileira,
investigar como os acadêmicos de diversas áreas do conhecimento se apropriam dos
37
termos desenvolvimento sustentável e sustentabilidade em seus trabalhos. Nesse sentido,
após o levantamento e organização do material por meio de uma análise quantitativa,
baseei-me no método de análise de conteúdo – como sugerido por Bardin (2009) – para
indicar afinidades entre as abordagens dos artigos e os elementos construídos para
caracterizar cada tipo de concepção. Enquanto exercício intelectual, esta etapa incluiu
também uma breve avaliação crítica do método utilizado.
Tanto os critérios para escolha da base Scielo como objeto empírico, como
para a seleção dos artigos para análise estão detalhadamente descritos na parte II,
quando apresento os procedimentos adotados e as principais reflexões em torno dos
dados obtidos. O que interessa neste momento é somente apresentar em termos gerais os
métodos utilizados na pesquisa e mostrar seu alinhamento com o arcabouço teórico da
sociologia do conhecimento, no qual se inspiram as reflexões aqui propostas.
Devo esclarecer, no entanto, que uma análise como esta corre sempre o
risco de cometer certas “injustiças” e cair no “reducionismo”, na medida em que propõe
afinidades – ainda que relativas – entre uma concepção típico-ideal da temática em
questão e as ideias e argumentações apresentadas por autores que, nem sempre, se
identificam completamente com uma determinada concepção. A maior parte das obras
certamente apresenta especificidades e um grau variado de hibridez que dificilmente
poderiam ser contemplados nesta ocasião. Além disso, a própria construção típico-ideal
das concepções exigiu um nível elevado de abstração que não permitiu incluir todas as
controvérsias internas e o detalhamento aprofundado de cada uma das concepções. Por
fim, é importante ressaltar que com a formulação dessas concepções, não pretendi, de
modo algum, esgotar as possibilidades de interpretação sobre o tema, o que seria, além
de impossível, sem sentido. Ao invés disso, meu esforço foi justamente o de mostrar a
diversidade teórico-disciplinar que envolve a questão, evidenciando sua complexidade e
seu caráter necessariamente político.
Ainda que com as ponderações e limitações características deste tipo de
procedimento, acredito que a formulação de concepções expressivas típico-ideais, além
de viabilizar a análise proposta nesta dissertação, auxilia numa organização (ainda que
parcial) da vasta literatura sobre sustentabilidade e serve de introdução à discussão
(infindável) sobre tema.
38
Estrutura da Dissertação
39
pesquisa empírica quali-quanti realizada na base Scielo Brasil. Desse modo, no capítulo
8, uma vez já argumentado que as divergências sobre o tema remetem a diferentes
perspectivas e estilos de pensamento, procuro indagar quais são os fatores sociais
(existenciais) que atuam na formação das perspectivas. Por conta da complexidade da
questão, preocupei-me apenas em indicar alguns caminhos teóricos, inspirados
principalmente na convergência da sociologia do conhecimento com as ideias de Pièrre
Bourdieu sobre o campo científico.
Já no capítulo 9, antes de apresentar detalhes dos procedimentos
metodológicos e resultados da pesquisa empírica, discorro sobre as especificidades da
investigação sociológica numa base de dados como a Scielo. Nessa situação, após
alguns comentários sobre esse banco de dados e o contexto em que foi produzido,
apresento o processo de construção do objeto empírico da dissertação, bem como os
dados da pesquisa quantitativa e qualitativa (análise de conteúdo). Por fim, realizo uma
avaliação crítica dos resultados e da utilização do método de análise de conteúdo, a fim
de refletir sobre suas possibilidades e limitações como instrumento de uma sociologia
do conhecimento.
40
PARTE I
CONCEPÇÕES EXPRESSIVAS DE SUSTENTABILIDADE
41
Capítulo 1 – Sociologia do conhecimento e as concepções de sustentabilidade
42
Acredito que algumas dessas características podem ser identificadas nas
diferentes concepções de sustentabilidade. Uma vez que a sustentabilidade não tem uma
essência e nem permite receitas certas e garantidas, as diferentes concepções dependem
de valores ou visões sobre certos elementos que não podem ser demonstrados
empiricamente nem dependem de operações “puramente lógicas”. Por exemplo, a
crença de que a tecnologia vai avançar a tal ponto de permitir um crescimento
econômico infinito não pode ser validada de antemão, mas é tomada como um
pressuposto. Por outro lado, acreditar na possibilidade de um decrescimento sustentável
ou de um ecossocialismo depende de um posicionamento teórico-político utópico e da
projeção de uma situação que somente poderia ser observada no decorrer da história.
Na construção das diferentes concepções é também possível identificar
linguagens especializadas e específicas – evidenciadas por conceitos-chave de cada uma
delas – que certamente influenciam de maneira decisiva o modo de entender a questão
ambiental e caracterizam perspectivas e estilos de pensamento diferenciados. Nesse
sentido, é interessante notarmos que, enquanto na concepção do ecossocialismo
categorias como capitalismo, forças produtivas ou relações de produção são centrais
para a análise, na concepção da ecoeficiência (ou em outras) esses termos praticamente
não aparecem. De modo similar, na concepção da ecoeficiência, termos como eficiência,
externalidades e bem estar são centrais, enquanto, na da sociedade do risco, incerteza,
risco e modernidade são elementos mais relevantes.
Certamente, a adesão a um tipo de linguagem em detrimento de outro leva a
enxergar aspectos específicos da discussão que, ainda que possam ser contraditórios,
iluminam elementos finitos do curso infinito de possibilidades do objeto. Nesse sentido,
devo ressaltar que, sob a ótica da sociologia do conhecimento, ao analisarmos as
concepções, importa menos a correção ou não das ideias e mais a caracterização das
perspectivas e estilos de pensamento que permitem a sua emergência nesses termos.
O conceito de estilo de pensamento foi utilizado por Mannheim (1968) e
Fleck (1986) e remete a um conjunto de pressupostos compartilhados por grupos, em
grande parte inconscientes e jamais colocados em questão. Para Fleck7 (1986), o estilo
7
Ludgwick Fleck foi um médico polonês que desenvolveu um trabalho pioneiro sobre a construção sócio-
histórica da ideia de sífilis. Obra pouco lida por seus contemporâneos, “Genesis and cognition of the
scientific fact” foi citada por Thomas Kuhn no préfácio do best-seller “Estruturas da Revolução
43
de pensamento estabelece as pré-condições para qualquer cognição e determina o que
pode ser considerado uma questão razoável e uma resposta verdadeira ou falsa. Além
disso, estabelece o contexto e os limites para qualquer julgamento relativo à realidade
objetiva, sendo seu traço essencial estar oculto aos membros da coletividade de
pensamento. No capítulo 8 desta dissertação, sugerimos que o “aprendizado” de um
estilo de pensamento está intimamente vinculado – entre outros fatores não abordados –
à socialização dos cientistas em habitus disciplinares (BOURDIEU, 2001) e/ou teóricos
específicos, evidenciando o caráter social e perspectivista do conhecimento.
Nos próximos itens, a fim de esclarecer alguns pontos teóricos importantes
para as afirmações feitas até o momento, procuro apresentar conceitos fundamentais na
sociologia do conhecimento mannheimiana, além de refletir sobre algumas de suas
consequências. Dessa forma, acredito ser necessário começar com a própria formação
do conceito de perspectiva que dá base para a sociologia do conhecimento
mannheimiana e justifica teoricamente a análise aqui apresentada.
Científica” e, desde então, ganhou certa notoriedade. Condé (2005) mostra como o pensamento de Kuhn
é, mais do que o próprio autor admite, devedor às ideias de Fleck. A semelhança (que não é completa)
entre a noção de estilo de pensamento e de paradigma, por exemplo, é bastante marcante. O mesmo pode-
se dizer das ideias de comunidade científica (KUHN, 2007) e de pensamento coletivo (FLECK, 1986).
44
investigação das características e composição da estrutura total da mente dessa época ou
desse grupo (MANNHEIM, 1968).
Para Mannheim (1968), o ponto comum entre as duas concepções é que
nenhuma delas depende exclusivamente do que foi efetivamente dito pelo opositor para
atingir uma compreensão de seu significado real e intenção. Isto é, as opiniões,
declarações, proposições e sistemas de ideias não são tomados por seu valor aparente,
mas são interpretados à luz da situação de vida de quem as expressa, como uma função
de sua existência. Nesse sentido, nas duas concepções se reconhece que o caráter e a
situação de vida específicos do sujeito influenciam suas opiniões, percepções e
interpretações do mundo, indicando que o pensamento é socialmente condicionado e
não somente fruto de elucubrações individuais. As principais diferenças entre essas duas
concepções estão expostas no quadro a seguir:
45
Do ponto de vista histórico, Mannheim (1968) acredita que a Teoria dos
Ídola de Francis Bacon – filósofo inglês considerado, por alguns, o fundador da ciência
moderna – pode ser encarada como precursora da concepção particular da ideologia.
Para Bacon (1979), os ídolas são “fantasmas” ou “pré-concepções” que constituem
obstáculos ao conhecimento da verdade. Em Novum Organum8, o filósofo afirma que:
8 É interessante notarmos que é desta obra de Bacon que Durkheim (1973) toma emprestado os termos
“pré-noções” e “noções vulgares” em seu tratado sobre as regras do método sociológico.
9 Trata-se do grupo de filósofos na França que, seguindo a tradição de Condillac, rejeitavam a metafísica
e buscavam basear as ciências culturais em fundamentos antropológicos e psicológicos (MANNHEIM,
1968).
46
de que, desacreditada a estrutura total da consciência do adversário, não mais o
consideramos capaz de pensar corretamente.
Dessa forma, segundo Mannheim (1968), foi a teoria marxista que, pela
primeira vez, equacionou a passagem da concepção particular da ideologia para a total.
Marx interpretou as ideias (superestrutura) como reflexos da posição de seus
enunciadores no processo produtivo (infraestrutura), isto é, de sua situação de classe.
Para ele,
A produção das ideias, representações e da consciência está, a
princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao
comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real.
As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos
homens aparecem aqui como a emanação direta de seu
comportamento material (MARX e ENGELS, 1998:18).
47
para um novo patamar. Enquanto essa última contraposição diz respeito à questão de
saber se são as ideias isoladas – dentro de um parâmetro psicologizante – ou se é a
mentalidade inteira – numa esfera noológica – que deve ser considerada ideológica, a
distinção entre restrita e genérica se refere à questão decisiva de saber se o pensamento
de todos os grupos (inclusive o seu próprio) ou apenas o dos adversários é que deve ser
reconhecido como sendo socialmente condicionado (MANNHEIM, 1968).
Com a emergência da formulação genérica da concepção total da ideologia,
a teoria simples da ideologia evolui para a sociologia do conhecimento. Isso porque a
teoria da ideologia se limita a estudar a concepção restrita da ideologia – desmascarando
os enganos e disfarces mais ou menos conscientes que apresentam os grupos sociais
opositores – enquanto a sociologia do conhecimento se encontra com o problema da
estrutura mental completa do sujeito e dos condicionantes sociais a que estão
submetidos todos os estilos de pensamento (MANNHEIM, 1968).
48
Nesse sentido, no caso da discussão sobre sustentabilidade, o conceito de
perspectiva10 – ou concepção total genérica da ideologia – explicita o caráter parcial das
proposições e argumentos de cada concepção expressiva e permite problematizar o
pensamento e o conhecimento como socialmente condicionados. Se, por exemplo, a
concepção de sustentabilidade defendida pelos economistas ambientais mostra a
compatibilidade entre crescimento e preservação ambiental, isso se deve ao pressuposto
da substituibilidade entre os fatores e à possibilidade de internalização das
externalidades ambientais por meio de valoração econômica – heranças da própria
teoria econômica neoclássica. No sentido contrário, a concepção da condição
estacionária evidencia a impossibilidade de se obter sustentabilidade com crescimento
econômico, porque, tomando as leis da termodinâmica como ponto de partida, o
crescimento é visto como a aceleração dos processos entrópicos e, por isso,
incompatível com a manutenção dos meios materiais e energéticos vitais para a
humanidade. Já de uma perspectiva ecomarxista, ambas as concepções seriam
entendidas como falhas ou “ideológicas” uma vez que a insustentabilidade é vista como
intrínseca ao capitalismo e, portanto, não pode haver sustentabilidade sem a sua
superação por uma sociedade ecossocialista. Contrapondo as concepções umas às outras,
evidenciam-se suas lógicas e a pertinência de suas interpretações, mas também suas
limitações e parcialidade.
Dessa forma, torna-se evidente que, apesar de todas as concepções
estudadas partirem de pensamentos ditos científicos, conterem uma lógica interna
coerente e tomarem como objeto de reflexão as relações “ambiente e sociedade”, elas
divergem na maneira de equacionar, problematizar e propor caminhos para a
sustentabilidade, porque são fruto de perspectivas diferentes.
10
Em 1931 – dois anos após a publicação do original em alemão – o livro “Ideologia e Utopia”, no qual
estão expostas as principais ideias de Mannheim sobre a sociologia do conhecimento, foi publicado em
sua versão inglesa com prefácio de Louis Wirth. Nessa versão, foram incluídos dois capítulos (o primeiro
e o último) que não estão presentes na obra original. O primeiro capítulo, escrito especialmente para a
publicação inglesa, trás uma abordagem preliminar da problemática da sociologia do conhecimento, bem
como tenta responder algumas das críticas feitas à obra na época. O último capítulo já havia sido
publicado com o título “Wissensoziologie” no “Handwörterbuch der Soziologie” de Alfred Vierkandt
(1931) como um resumo dos principais desafios da sociologia do conhecimento. É nesse capítulo que
Mannheim (1968) passa a adotar o conceito de perspectiva como substituto da concepção total genérica
da ideologia, para evitar as conotações morais, epistemológicas e valorativas deste último termo.
49
Essa evidência provoca, no entanto, uma série de questionamentos em
relação à validade do conhecimento científico (inclusive o da sociologia do
conhecimento) e à autonomia relativa do campo científico frente às pressões sócio-
políticas e econômicas. Por identificar e afirmar a parcialidade de todo conhecimento
sobre o mundo social – revelando sua historicidade e seus vínculos com os contextos
microssociais em que são gerados – a sociologia do conhecimento enfrenta dois
problemas clássicos do historicismo alemão: o da (im)possibilidade da objetividade nas
ciências sociais e o do relativismo.
No que se refere ao primeiro ponto, acredito que permanece válida a
proposição weberiana sobre o tema, à qual Mannheim parece estar altamente alinhado.
Para Mannheim (1968), o fato de a perspectiva se referir a uma determinada maneira de
se observar, perceber e construir em pensamento um objeto não quer dizer que seja
necessariamente fonte de erros. Ao contrário, ela é parte integrante fundamental do
pensamento, uma vez que dá acesso ao conhecimento de esferas que, de outra maneira,
permaneceriam inacessíveis.
De modo similar, para Weber (2002), uma vez que os conhecimentos sociais
– subordinados a pontos de vista particulares – partem sempre de ideias de valor, “não
existe qualquer análise científica puramente objetiva11 dos fenômenos sociais que seja
independente de determinadas perspectivas especiais e parciais” (WEBER, 2002:125,
grifo meu). No entanto, também para Weber (2002), isso não invalida o conhecimento
das ciências sociais. Pelo contrário, são justamente as ideias de valor – em que estão
imbricadas as perspectivas – que permitem que os fenômenos da vida social possam ser
– explícita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente – selecionados,
analisados e organizados enquanto objetos de pesquisa (WEBER, 2002). Para o autor,
11
“A validade objetiva de todo saber empírico baseia-se única e exclusivamente na ordenação da
realidade dada segundo categorias que são subjetivas no sentido específico de representarem o
pressuposto do nosso conhecimento e de se ligarem ao pressuposto de que é valiosa aquela verdade que
só o conhecimento empírico pode proporcionar” (WEBER, 2002:126, grifo meu).
50
de valor, não se trata de converter isso em pedestal de uma
prova empiricamente impossível da sua validade. E a “crença” –
que todos nós alimentamos sob uma forma ou outra – na
validade supra-empírica de ideias de valor últimas e supremas,
em que fundamentamos o sentido da nossa existência, não
exclui, antes pelo contrário, inclui, a variabilidade incessante
dos pontos de vista concretos a partir dos quais a realidade
empírica adquire significado. A realidade irracional da vida e o
seu conteúdo de significações “possíveis” são inesgotáveis, e
também a configuração “concreta” das relações valorativas
mantém-se flutuante, submetida às variações do obscuro futuro
da cultura humana. A luz propagada por essas ideias de valor
supremas ilumina, de cada vez, uma parte finita e continuamente
modificada do caótico curso de eventos que flui através do
tempo (WEBER, 2002:126, grifo do autor).
51
Para Durkheim (1973:397), as pré-noções – ou noções vulgares – “são uma
espécie de fantasmas que desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas” e dos quais o
cientista social deve se afastar a fim de partir dos fatos sociais como coisas. De modo
distinto, no caso de Weber e Mannheim, a perspectiva – ou ideia de valor – é vista como
elemento fundamental e imprescindível da produção do conhecimento científico.
Como afima Wirth (1968:16, grifo do autor), no prefácio da edição inglesa
de “Ideologia e Utopia”,
52
vínculos com as condições sociais posicionadas historicamente, então, deve-se admitir
que diferentes contextos sociais geram diferentes conhecimentos, tendo como
consequência que a sua validez torna-se necessariamente parcial, assegurada somente
em determinadas condições sociais e indicando a impossibilidade de se atingir uma
verdade única (RODRIGUES, 2002). Numa perspectiva relativista, nenhum
conhecimento é melhor ou pior do que os outros, já que são todos eles relativos a uma
situação social específica e, portanto, não há critérios para o julgamento e validação de
qualquer hipótese ou teoria.
Nessa ótica, mesmo a validade da sociologia do conhecimento pode ser
questionada, já que, uma vez sendo ela própria um conhecimento contingente e parcial,
não poderia ser aplicada e aceita com universalidade. Dito de outra maneira, ou a
própria afirmação e argumento do relativista são relativos – caso em que ele não tem
base para negar ou afirmar a veracidade do pensamento alheio – ou seu argumento e
afirmação são incondicionalmente verídicos e, portanto, o relativismo é contraditório
em si mesmo (SCHELTING, 1936). No caso da crítica à sociologia do conhecimento,
como indica Wright Mills (1974), o argumento pode ser colocado da seguinte forma
lógica: a) se o pensamento é função dos fatores culturais, sua validade imparcial e
objetiva é destruída; b) a sociologia do conhecimento é um tipo de pensamento; c) logo,
porque a sociologia do conhecimento é função de fatores culturais, não pode ser
objetiva ou válida.
Para Wright Mills (1974), no entanto, esse tipo de crítica só é significativo
do ponto de vista dos absolutistas, uma vez que ignora o caráter e o status das formas
epistemológicas das diferentes proposições, pressupondo a existência de uma verdade
absoluta e de critérios de verdade comuns. Nesse sentido, acredito, como Wright Mills
(1974), ser válido o argumento mannheimiano baseado na noção de relacionismo.
Segundo Mannheim (1968), a análise não-valorativa da história das
ideologias não conduz inevitavelmente ao relativismo, mas antes ao relacionismo. Isso
porque, o que caracteriza o relacionismo é o fato de toda afirmação só poder ser
formulada em forma de relação. Nesse sentido, a análise só se converte em relativismo
quando for julgada com o antigo ideal estático das verdades eternas e absolutas,
independentes da experiência subjetiva do observador e das situações históricas
concretas em que são formuladas. Para o autor,
53
O conhecimento, visto à luz da concepção total de ideologia,
não constitui de forma alguma uma experiência ilusória, pois
que a ideologia em seu conceito relacional não se identifica
absolutamente com a ilusão. O conhecimento, surgindo de nossa
experiência das situações efetivas de vida, embora não absoluto,
é, não obstante, conhecimento (MANNHEIM, 1968:112).
54
subjacentes ao pensamento, que operavam de forma inconsciente em sua própria análise
(MANNHEIM,1968).
Mas, para ele, existe uma diferença fundamental entre deixar as
pressuposições influenciarem o próprio ponto de vista de modo inconsciente e ingênuo
– impedindo a ampliação do horizonte do pensamento – e procurar tornar conscientes
essas motivações inconscientes. Daí a necessidade de uma auto-clarificação crítica
(MANNHEIM, 1968). Como já argumentamos, a perspectiva – no pensamento
mannheimiano – é elemento fundamental para que o conhecimento seja possível. Nesse
sentido, o problema de ter atuantes inconscientemente os condicionantes sociais do
pensamento é, somada à ideia da existência de uma verdade única e absoluta, o de o
pensador acreditar ser o “dono da verdade”.
Acredito que, sem cair no anacronismo, continuam válidas para o nosso
tempo algumas das reflexões de Mannheim sobre o estado intelectual da primeira
metade do século XX em que viveu.
Em nosso estado intelectual e social contemporâneo, não é
chocante descobrir que as pessoas que pretendem ter descoberto
um absoluto são geralmente as mesmas que pretendem ser
superiores às demais (MANNHEIM, 1968:113) (...) Na verdade,
o menos livre e mais profundamente predeterminado em sua
conduta é aquele que ignora os fatores determinantes
importantes e que age sob a pressão do que desconhece
(MANNHEIM, 1968:213).
55
modos básicos de pensamento, e de que, enquanto a
particularidade do quadro teórico convencional permanece
inquestionada, continuaremos na penosa lida com um modo
estático de pensamento, inadequado ao presente estágio de
desenvolvimento intelectual e histórico (MANNHEIM,
1968:115).
56
Capítulo 2 – Concepção da ecoeficiência: desenvolvimento como crescimento,
sustentabilidade como capitalismo verde
12
Em 1995, Grossman e Krueger (1995) publicaram um artigo no “The Quarterly Journal of Economics”
no qual examinam o comportamento da renda per capita e quatro tipos de indicadores de deterioração
57
econômico só prejudicaria o ambiente até um determinado patamar de riqueza, a partir
do qual incrementos na renda gerariam demanda por qualidade ambiental e, portanto, a
degradação tenderia a diminuir.
Essencialmente otimista, a concepção da ecoeficiência procura soluções do
tipo win-win (em que há ganhos econômicos e ecológicos) e vincula-se a um tipo de
ambientalismo que Martinez-Alier (2007) chama de “evangelho da ecoeficiência”, cuja
atenção está direcionada para a mitigação e compensação de impactos ambientais e
riscos à saúde decorrentes da urbanização, das atividades industriais e agrícolas.
Associada à ideia de um capitalismo verde, sua base teórica se constrói na confluência
da economia ambiental neoclássica com a teoria da modernização ecológica, cujos
principais argumentos são expostos a seguir.
ambiental (poluição atmosférica urbana, oxigenação de bacias hidrográficas, sua contaminação por metais
pesados e rejeitos fecais). Concluem que o crescimento econômico só prejudicaria o meio ambiente até
um determinado patamar de riqueza – que os autores acreditam ser em torno de 8 mil dólares per capita –
e depois o crescimento passaria a melhorar a qualidade ambiental (VEIGA, 2005). A curva recebeu esse
nome porque seu formato é parecido com o que o Prêmio Nobel Simon Kuznets (1966) encontrou ao
relacionar crescimento econômico e distribuição de renda na década de 1960. Ainda que tenha sido muito
popularizada na década de 1990 e continue sendo utilizada por alguns teóricos, a curva ambiental de
Kuznets tem se mostrado uma hipótese frágil. Ao se utilizar dados de países em desenvolvimento, por
exemplo, o padrão da curva encontrado por Grossman e Krueger é mais uma exceção do que uma regra
(ARRAES, DINIZ e DINIZ, 2006; VEIGA, 2005).
58
eficiente ao longo do tempo.
De acordo com Pearce (2002), o desenvolvimento de uma economia
ambiental moderna na década de 1960 se inspirou decisivamente na economia da
poluição e dos recursos naturais, fortemente associadas à teoria econômica do bem estar
e do bem público. Ao analisar a história intelectual da economia ambiental, Pearce
(2002) acredita que, do seu início modesto, a economia ambiental se tornou uma major
subdiscipline da ciência econômica, combinando trabalhos dessas áreas com a teoria do
crescimento econômico e as perspectivas mais recentes sobre escolhas de instrumentos
de políticas ambientais e da “filosofia” do desenvolvimento sustentável. Suas
proposições centrais são, segundo ele, que os problemas ambientais têm suas raízes na
falha de sistemas econômicos que maximizam o bem-estar humano, que a qualidade
ambiental importa para a o bem-estar e para objetivos do crescimento econômico, e que
a eficiência de políticas públicas ambientais pode ser atingida por meio da gestão
planejada com auxílio da teoria econômica.
No âmbito da teoria neoclássica, os bens públicos são definidos pela
indivisibilidade de seus benefícios para toda uma comunidade, o que se configura por
atributo de sua não-exclusividade. Na medida em que o meio ambiente é entendido
como um bem público, os problemas ambientais são, nessa abordagem, equacionados
pelo conceito de externalidade13 negativa e passam a ser vistos com um tipo de falha de
mercado14 que impede a alocação eficiente de poluição e recursos pelo mercado.
Com base nisso, um dos principais desafios normativos da economia
ambiental seria o de desenvolver um conjunto de regras de alocação de recursos e
serviços naturais que se apoiem sobre um sistema de precificação pelo mercado que
internalize as externalidades e corrija as falhas de mercado. Para isso, os economistas
ambientais têm desenvolvido uma série de métodos de valoração econômica 15 do
ambiente e defendido a formulação de políticas públicas ambientais baseadas em
13
Samuelson e Nordhaus (2001) definem externalidades como sendo atividades que afetam outros para
melhor ou pior, sem que os outros paguem ou sejam recompensados por essa atividade. Externalidades
existem quando firmas ou pessoas impõem custos ou benefícios a outros fora do âmbito do mercado.
14
Falhas de mercado são, segundo Samuelson e Nordhaus (2001), imperfeições no sistema de preços que
impedem a eficiência alocativa dos recursos.
15
Esse tema é objeto de uma disputa teórica intensa – principalmente entre economistas ambientais e
ecológicos – e tem consequências diretas na resolução de conflitos ambientais.
59
estratégias de definição de mercados de direitos à poluir16 e estímulos ao esverdeamento
da economia.
16
Um caso emblemático da institucionalização de uma política ambiental – nascida na teoria econômica e
aplicada em nível mundial – é a política de mercados de carbono (carbon trading) promovida pelo
Protocolo de Kyoto (HEPBURN, 2007).
60
per capita seja constante ou crescente ao longo do tempo, sendo o consumo constante
dependente de outra condição: um estoque de capital constante no elo seguinte da
cadeia (PEARCE & ATKINSON, 1998; AMAZONAS, 2002).
Como definido pela teoria neoclássica do crescimento, o capital total (Kt) é
composto por capital produzido17 (Kp), capital humano18 (Kh), capital social (Ks) 19 e
capital natural20 (Kn).
Kt = Kp + Kh + Ks + Kn
17
Refere-se ao capital físico gerado e acumulado pelo sistema econômico, como o estoque de máquinas,
construções e infra-estrutura (MUELLER, 2005)
18
Envolve a capacitação e as habilidades para produzir da força de trabalho da sociedade em um dado
momento, isto é, está relacionado aos investimentos em educação, treinamento, capacitação (MUELLER,
2005).
19
Inclui a estrutura institucional da sociedade num dado momento do tempo (MUELLER, 2005)
20
Inclui estoques de recursos energéticos e de outros recursos naturais aos quais se têm acesso em um
dado momento, como os estados biofísicos existentes no meio ambiente (condições climáticas,
características ecossistêmicas, capacidade de regeneração de sistemas naturais e etc) (MUELLER, 2005).
61
que deixamos para o futuro, mas também aquilo que construímos com a contribuição
dos recursos ambientais e do conhecimento que se acumula: as máquinas e edificações
que produzimos em nossas economias (MUELLER, 2005).
Esse tipo de visão está, no entanto, baseado em dois pressupostos que nem
sempre são colocados em questão: a possibilidade da substituição do capital natural
exaurível por outras formas de capital reprodutível, e a crença no progresso tecnológico
(AMAZONAS, 2002; VEIGA, 2005; VIVIEN, 1994).
Os economistas ecológicos procuram demonstrar – como será melhor
detalhado no capítulo 4 – que o pressuposto da substituibilidade é questionável, já que
todo tipo de capital reprodutível é, de alguma forma, gerado com base num fluxo
material e energético que provém do capital natural. Além disso, eles são muito mais
complementares do que substituíveis: os recursos naturais (Kn) são a base física a ser
transformada em produto, ao passo que o capital reprodutível (Kr) constitui os meios
dessa transformação (AMAZONAS, 2002). Por conta disso, os economistas ecológicos,
ainda que considerem relevante a busca pela sustentabilidade fraca (constância de Kt),
acreditam que o desenvolvimento sustentável deva levar em conta a manutenção do
capital natural (Kn), o que ficou conhecido na literatura como sustentabilidade forte. No
que se refere à questão da tecnologia, além de ela também depender, em algum
momento, de recursos naturais, muitos autores – como Beck (1992) e Giddens (1991) –
tem mostrado os riscos e incertezas gerados pelo seu próprio desenvolvimento.
Reunindo tudo o que foi dito sobre a questão da sustentabilidade na
economia ambiental, o desenvolvimento sustentável é, nessa perspectiva, baseado no
pressuposto de que o próprio crescimento econômico – que por si só garantiria a
satisfação das necessidades humanas – vai gerar condições tecnológicas e de
substituibilidade entre os fatores para que o estoque de capital total repassado para as
próximas gerações seja constante, permitindo que elas também satisfaçam suas próprias
necessidades.
A economia neoclássica é o “paradigma” dominante na ciência econômica.
A introdução da questão ambiental como preocupação do economista gerou muitas
críticas a esse tipo de arcabouço e abriu espaço para desenvolvimentos teóricos
alternativos como a economia ecológica, a economia institucional, a economia
evolucionária e da complexidade. No entanto, Nobre (2002) acredita que a maneira em
62
que se institucionalizou o desenvolvimento sustentável na política internacional
favoreceu uma abordagem da questão alinhada com a economia ambiental neoclássica.
63
pode ser mantido dentro de um quadro de proteção ambiental, porque a modernização
ecológica vai levar a economia para um tipo “diferente” de crescimento econômico
(YOUNG, 2000).
Mol (1997) faz, no entanto, uma distinção analítica entre a modernização
ecológica enquanto um programa sociopolítico e enquanto teoria social. Para ele, como
programa sociopolítico, a modernização ecológica tem um caráter substantivo e remete
aos desenvolvimentos histórico-empíricos de políticas ambientais desde as décadas de
1970 e 1980 em alguns países da Europa Ocidental. Ela descreve as diferentes maneiras
como formuladores de políticas, empresários, investidores e ativistas têm enfrentado (ou
não) as questões e dilemas ambientais.
Já em sua roupagem formal de teoria social, a modernização ecológica é
uma teoria da mudança social que procura equacionar os processos de
institucionalização da questão ambiental, a fim de refinar os modelos analíticos das
ciências sociais sobre os processos mais amplos da modernização e racionalização
contemporâneos (MOL, 1997). É nesse sentido que a modernização ecológica se insere
também nos debates sobre globalização, modernidade e pós-modernidade, travados no
âmbito da teoria social contemporânea.
Martin Jänicke e Joseph Huber são considerados os pioneiros da
modernização ecológica (SPAARGAREN, 2000). O primeiro analisou a reestruturação
e os novos papéis do Estado na modernização da política para o enfrentamento da crise
ambiental. O segundo equacionou a modernização ecológica como uma teoria da
mudança social. Mas foram Arthur Mol e Gert Spaargaren – ainda que fortemente
baseados nas ideias de Jänicke e Huber – os principais responsáveis pela formulação e
difusão da modernização ecológica como uma espécie de versão otimista da
modernização reflexiva – tal qual elaborada por Beck (1992;1997;1999) e Giddens
(1991;1997) e exposta mais detalhadamente no capítulo 7.
Segundo Beck (1999), a modernização reflexiva se refere a um novo
momento histórico da alta modernidade, originado e conduzido pelos efeitos colaterais
produzidos e acumulados no processo de modernização das sociedades industriais
ocidentais. Trata-se, portanto, de uma condição de autoconfrontação que inauguraria a
possibilidade de uma autodestruição criativa das instituições da sociedade industrial,
diagnóstico partilhado por Mol (2000) e Spaargaren (2000).
64
No entanto, numa abordagem mais pessimista, Beck (1999) argumenta que
estaríamos vivendo numa sociedade do risco21, na qual o medo e a ansiedade reinam na
política e vida cotidiana, e em que os problemas ambientais estão inerentemente fora de
controle. Desse modo, Mol (2000) e Spaargaren (2000) concordam com a ideia de que a
modernidade radicalizada provoca uma condição de reflexividade, mas criticam a teoria
da sociedade do risco como parâmetro para analisar as políticas ambientais
contemporâneas. Para Spaargaren (2000), a observação empírica das políticas
ambientais e industriais – principalmente na Europa Ocidental a partir dos anos 1980 –
se adéqua muito mais à tese da modernização ecológica do que a da sociedade do risco.
Mol (1995) procura demonstrar a validade empírica dessas ideias
evidenciando como, no caso da indústria química holandesa, reagindo às pressões dos
consumidores, as empresas adotaram uma série de medidas “verdes” que foram desde a
introdução de novas tecnologias até novos instrumentos coorporativos. Para ele, uma
vez que a opinião pública e a formalização de legislações ambientais forçam as
empresas individualmente a promoverem mudanças organizacionais e tecnologias
limpas, o ambiente tornou-se gradualmente um fator de competição entre as empresas
da indústria química.
Nesse sentido, ainda de acordo com Mol (1997), há pelo menos quatro
elementos centrais no processo reflexivo que leva à modernização ecológica e que vêm
sendo obsevados em alguns países altamente industrializados. O primeiro se refere à
centralidade da ciência e tecnologia para o “esverdeamento” da economia. Para ele, as
tecnologias poluentes – duramente criticadas na década 1970 – estão sendo substituídas
por tecnologias ambientalmente mais avançadas, redirecionando a produção de
mercadorias para processos ecologicamente saudáveis. O segundo consiste na crescente
importância das dinâmicas de mercado e de empreendedores inovadores como
principais portadores sociais da reforma ecológica. Nesse sentido, a internalização de
externalidades via valoração econômica dos bens ambientais é – como para os
economistas neoclássicos – um dos mecanismos que impulsionam o projeto da
modernização ecológica (ANDERSEN, 1994). O terceiro se refere à amenização do
papel do Estado na reforma ambiental. Para Mol (1997), a atuação do Estado na política
ambiental terá que se direcionar para estratégias preventivas, descentralizadas e
21
A concepção da sociedade do risco, baseada nas ideias de Beck e Giddens, é apresentada no capítulo 7.
65
participativas. Finalmente, o quarto elemento se relaciona com as mudanças na função
dos movimentos sociais. Na medida em que a questão ambiental se institucionaliza no
Estado, no mercado e na ciência e tecnologia, o papel dos movimentos sociais estaria
gradualmente se deslocando do de um comentador crítico fora do desenvolvimento
societal para o de um participante ativo. Suas habilidades para gerar ideias alternativas e
inovadoras estariam sendo usadas para apoiar e cooperar com as forças sociais que
promovem a modernização ecológica (MOL, 1997).
No que se refere especificamente à questão da sustentabilidade, Young
(2000) acredita que a concepção da modernização ecológica para o desenvolvimento
sustentável admite a importância do compromisso ético com as gerações presentes e
futuras, mas é caracterizada por um caráter antropocêntrico, gerencialista e
tecnocêntrico da relação ambiente e sociedade. Ela aceita a globalização e os benefícios
da economia de mercado, e não vê necessidade de se frear o consumo. Além disso,
considera os custos ambientais nas tomadas de decisão, procurando controlar a poluição
e tornar o desenvolvimento compatível com os ecossistemas locais. Nesse sentido,
prega também uma nova relação entre crescimento econômico e ambiente, focada no
desenvolvimento de tecnologia limpa, inovação, e produção de bens e recursos
ambientalmente saudáveis. Defende a necessidade de se reestruturar as instituições
modernas e desenvolver instrumentos mais eficazes de política ambiental baseados no
mercado. Nesse caso, as ONGs e a sociedade civil cumpririam um papel importante,
mas secundário, na medida em que podem apenas reduzir conflitos em torno de bens
ambientais.
O diagnóstico da modernização ecológica conflui, em muitos sentidos, com
o da economia ambiental, e sua natureza sociológica permite alargar a análise para
esferas que a teoria econômica não alcança. Dessa forma, acredito que a teoria da
modernização ecológica – nascida no campo das ciências sociais europeias – e a
economia ambiental neoclássica, apesar de não necessariamente compartilharem os
mesmo espaços institucionais, confluem e se complementam na formulação da
concepção de sustentabilidade da ecoeficiência.
Enquanto a economia ambiental está preocupada com os fundamentos
econômicos da internalização das externalidades ambientais, a modernização ecológica
procura entender as mesmas transformações, do ponto de vista das ciências sociais,
66
como uma reestruturação das instituições da modernidade que promove a
sustentabilidade total.
Há, dessa forma, uma série de argumentos da economia ambiental que tem
correspondentes na teoria da modernização ecológica. Por exemplo, Hubber (1982)
argumenta que a “ecologização da economia” e a “economização da ecologia” estão no
centro do processo de reestruturação ecológica da produção e consumo na sociedade
contemporânea. Como conta Spaargaren (2000), o primeiro termo se refere à
internalização das externalidades ambientais – como defendida pelos economistas
neoclássicos – para institucionalizar os problemas ambientais na organização da
produção e consumo. O segundo trata do abandono necessário de “uma visão romântica
e holística da crítica ambientalista da modernidade” (SPAARGAREN, 2000:50), com
fins à racionalização e “cientificização” da ecologia. Em termos econômicos, isso
poderia se dar pelo desenvolvimento de técnicas de gestão e tecnologia limpas baseadas
em conhecimento científico sobre a ecologia, além da racionalização pela valoração
econômica dos bens ambientais. Ademais, os teóricos da modernização ecológica têm
tido, como os economistas ambientais, muita influência na definição de práticas e
políticas específicas que possam ser consideradas alinhadas com o desenvolvimento
sustentável. E, nesse sentido, Spaargaren (2000) argumenta que a abordagem da
modernização ecológica, no âmbito da sociologia ambiental, tem contribuído (e sido
beneficiada) para a emergência de uma nova agenda política da questão ambiental.
De certo, como acreditam alguns autores – como Young (2000), Nobre
(2002), Martinez-Alier (2007), entre outros – podemos sugerir que a concepção da
ecoeficiência tem sido hegemônica no trato da questão da sustentabilidade,
principalmente porque não propõe uma ruptura radical com o modelo de crescimento
econômico. Ao invés disso, aposta no esverdeamento do capitalismo pelo
desenvolvimento de tecnologias limpas e pela reforma das instituições da modernidade.
Sua abordagem evidencia que existem experiências desse processo no mercado, na
ciência, nas políticas públicas e na sociedade civil. Ademais, tem contribuído
diretamente e pragmaticamente para a formulação de “propostas” e soluções pontuais.
No entanto, como espero ficar evidente com a contraposição com as outras concepções
expressivas, a concepção da ecoeficiência repousa sobre perspectivas específicas e não
é a única maneira de entendermos a questão.
67
Capítulo 3 – Concepção do decrescimento sustentável: sustentabilidade como
superação da sociedade do crescimento e da era do desenvolvimento
68
da economia, do progresso e do desenvolvimentismo, e a
rejeição do culto irracional e idólatra do crescimento pelo
crescimento que bloqueia o espaço da inventividade e da
criatividade humana (LATOUCHE, 2009:6).
22
Nesse sentido, Latouche (2009) admite que, em termos teóricos, conviria falar mais de acrescimento –
como se fala de ateísmo – do que de decrescimento.
69
descentralizadores – como Ivan Illich e André Gorz – e de autores da emergente
corrente do pós-desenvolvimento e da ecologia política. A segunda fonte se refere à
ecologia e à crítica dos limites físicos do crescimento feita pelo Clube de Roma e pelo
economista Nicholas Georgescu-Roegen, defensor de uma bioeconomia, inspirador da
economia ecológica e o primeiro autor a falar de decrescimento ainda na década de
1970.
Nos próximos itens, apresento ideias centrais de Nicholas Georgescu-
Roegen sobre entropia e economia, além de alguns dos principais argumentos da
corrente do pós-desenvolvimento. Como veremos, a concepção do decrescimento está
baseada em perspectivas específicas sobre desenvolvimento tout court e o sistema
econômico, que fundamentam a crítica do desenvolvimento sustentável feita nesse tipo
de concepção, bem como suas propostas para uma sustentabilidade total.
23
Para contrapor a perspectiva termodinâmica da bioeconomia à mecanicista da economia convencional,
Georgescu-Roegen (1977) faz analogia com as diferenças entre uma ampulheta e um pêndulo mecânico.
Segundo o autor, a epistemologia mecanicista entende o universo como um sistema dinâmico e isolado
em que o Tempo (com T maiúsculo) não importa e em que os processos não têm direção específica. No
pêndulo mecânico, ainda que a energia cinética possa se transformar em potencial (e vice e versa), a
energia mecânica total não se altera. Esse é o cerne da lei da conservação da energia – a primeira lei da
termodinâmica – segundo a qual, em um sistema isolado a quantidade de energia permanece constante.
Dito de outra maneira, no arcabouço da física mecânica, não há criação nem destruição de energia, mas
apenas transformação de uma em outra. Para ele, a ampulheta é uma metáfora mais interessante para os
sistemas físicos e para a visualização dos impactos biofísicos do processo econômico (GEORGESCU-
ROEGEN, 1977). Tomando a ampulheta como um sistema isolado, o montante de areia dentro dela
também se mantém constante (lei da conservação da energia). No entanto, numa ampulheta comum, a
areia sempre cai da parte superior para a parte inferior, indicando uma direção espontânea e irreversível
dos processos físico-químicos. Duas características devem ser estabelecidas para que a metáfora da
ampulheta represente um sistema termodinâmico. A primeira delas é que uma vez a areia caindo da parte
superior da ampulheta para a inferior, ainda que a quantidade de energia continue constante, haja uma
70
substituída por uma visão termodinâmica – a que ele chamou bioeconomia – que
evidenciasse a natureza biofísica e o caráter evolucionário (e irreversível) dos processos
econômicos, iluminando o problema da existência da humanidade sob estoques
limitados de recursos (GEORGESCU-ROEGEN, 1977).
De acordo com Georgescu-Roegen (1977), a economia tradicional entende o
processo econômico como um “carrossel” (merry-go-round) em que produção e
consumo podem ser estendidos infinitamente, como numa máquina de motocontínuo.
Embasado na física termodinâmica, o autor afirma que o mundo físico é, no entanto,
caracterizado pela irrevogável irreversibilidade no nível macro. Nesse sentido, tomando
os processos econômicos como sujeito à lei da entropia – segundo a qual, em um
sistema isolado, a energia-matéria disponível é continuamente e irrevogavelmente
degradada para um estado de indisponibilidade – conclui que o crescimento econômico
acelera os processos entrópicos e que, portanto, sua intensificação levaria
necessariamente a um colapso ecológico. Por conta disso, acreditava que, para retardar
sua própria extinção como espécie, algum dia a humanidade terá que apoiar sua
continuidade na Terra no decrescimento do produto (VEIGA, 2005).
Autor com boa reputação no campo da ciência econômica de mainstream
por suas contribuições à teoria do consumidor, Georgescu-Roegen chegou a ser
chamado de “economistas dos economistas” pelo Prêmio Nobel de Economia Paul
Samuelson na década de 1960. No entanto, depois da publicação de “The Entropy Law
and the Economic Process” em 1971 – obra em que Georgescu-Roegen introduz sua
visão bioeconômica –, ele passou a ser marginalizado no campo da ciência econômica.
Em trabalho recente sobre o autor, Cechin (2010) levanta a hipótese de que justamente
ideias controversas como a do decrescimento econômico – proposta por Georgescu –
tenham criado o anátema que isolou o economista.
Ainda na década de 1970, o economista ecológico Herman Daly – talvez o
mais conhecido discípulo de Georgescu-Roegen – passou a argumentar que as
economias avançadas deveriam parar de se preocupar com o crescimento econômico e
mudança qualitativa. A areia da parte superior representaria a energia disponível para o homem (baixa
entropia), enquanto a da parte inferior, a energia indisponível (alta entropia). A segunda característica é a
de que essa ampulheta não possa ser virada ao contrário, marcando o caráter irreversível dos processos
(GEORGESCU-ROEGEN, 1977).
71
buscar a condição estacionária24. No entanto, Georgescu-Roegen (1977) – conhecido
pelo rigor com seus estudantes – rejeitou também essa possibilidade. Para ele, a noção
de condição estacionária proposta por Daly transmite a ideia de que seria possível
manter indefinidamente os padrões de vida e de conforto já alcançados nos países
abastados e de que o fim do crescimento significaria uma vitória sobre a entropia. Nesse
sentido, para Georgescu-Roegen (1977), a economia da condição estacionária dá a falsa
impressão de que a manutenção de um determinado padrão de vida não implica escassez
progressiva das fontes terrestres de energia e materiais.
Como veremos no próximo capítulo, a economia ecológica se inspirou
fortemente na obra de Georgescu-Roegen, ainda que a noção de condição estacionária
tenha prevalecido em relação à de decrescimento. A maioria dos economistas
ecológicos acredita que a economia ecológica é a grande herdeira da bioeconomia. No
entanto, Bonaiuti (2010) argumenta que a preferência pela ideia de condição
estacionária também revela visões pré-analíticas diferenciadas25 e está relacionada às
divergências em torno do reconhecimento da validade da quarta lei da termodinâmica,
segundo a qual, num sistema fechado, a entropia material tenderia a atingir um máximo
(GEORGESCU-ROEGEN, 1977).
Nos papers da II Conferência Internacional do Decrescimento, realizada em
2010 em Barcelona, é possível identificar posições que defendem a compatibilidade
entre decrescimento e condição estacionária e outras, como a de Bonaiuti (2010), que
enfatizam suas diferenças. O fato é que, inicialmente avessos à ideia de decrescimento,
muitos economistas ecológicos – como o catalão Joan Martinez-Alier – passaram, nos
últimos anos, a se apropriar do termo.
24
Como veremos em mais detalhes no próximo capítulo, ideia de condição estacionária – termo cunhado
pelo economista clássico John Stuart Mill ainda no século XIX – refere-se a uma economia que se
desenvolve sem crescer.
25
Como argumenta Bonaiuti (2010), tomando como válido o princípio da degradação da matéria –
vinculado à quarta lei – noções como a de condição estacionária são indefensáveis sob as bases da
termodinâmica. No entanto, se a quarta lei for considerada sem fundamento, a condição estacionária
adquiriria completa legitimação científica. Para o autor, essa foi a linha seguida pela economia ecológica,
que numa série de artigos do periódico “Ecological Economics” mostrava que a quarta lei não era
compatível com os quadros das leis físicas. Bonaiuti (2010) acredita que, renegando as consequências
políticas e filosóficas da quarta lei da termodinâmica – seu pedido de decrescimento – a economia
ecológica veio reivindicar-se concomitantemente como a ciência privilegiada do desenvolvimento
sustentável e a herdeira da bioeconomia.
72
Para finalizar esta breve introdução a algumas ideias desse economista
pioneiro que foi Georgescu-Roegen, acho pertinente introduzir algumas das poucas
proposições normativas que fez durante sua carreira como economista. Como explica
Cechin (2010), Georgescu havia chegado à conclusão de que o mais razoável no
contexto da crise ambiental seria conservar os recursos naturais, especialmente os
exauríveis. E isso significaria reduzir o consumo para assim reduzir a depleção desses
recursos a um mínimo compatível com uma sobrevivência razoável da espécie humana.
Nesse sentido, propôs um “Programa Bioeconômico Mínimo” que consistia num
programa de austeridade, um freio ao crescimento para ser aplicado primeiro nas
economias avançadas. O programa lista os seguintes pontos: a) proibição da produção
de armas; b) ajuda imediata às nações “subdesenvolvidas”; c) redução gradual da
população a um nível que pudesse ser mantida apenas com a agricultura orgânica; d)
evitar e restringir, se necessário, todo desperdício de energia; e) se livrar da “sede” por
“bugigangas extravagantes” como, por exemplo, carrinhos de golf; f) libertar-se da
“moda”; g) produzir bens mais duráveis e que possam ser consertados; h) curar-se dos
hábitos “workaholics”, balanceando o tempo de trabalho e lazer (GEORGESCU-
ROEGEN, 1976: 33-34).
Para Cechin (2010), Georgescu-Roegen não era ingênuo e sabia que
dificilmente a humanidade daria importância para qualquer restrição ao conforto
material. Nesse sentido, e em tom provocativo, se indagava se o destino dos homens não
é mesmo o de ter uma vida curta, mas vigorosa, uma existência excitante e vertiginosa,
em vez de monótona e vegetativa. “Deixemos outras espécies – as amebas, por exemplo
– que não tem ambições espirituais herdarem uma terra ainda banhada de sol
(GEORGESCU-ROEGEN, 1976: 35)”.
Para além do tom provocativo, Cechin (2010) argumenta que o programa
bioeconômico de Georgescu-Roegen revela sua visão institucional da questão. Não
acreditava que o progresso tecnológico e o mecanismo de preço pudessem resolver
todos os problemas e, ainda que inspirado nas leis da física, enfatizava o caráter ético da
questão.
Na visão de Cechin (2010), o isolamento de Georgescu-Roegen no campo
da ciência econômica ocorreu, em grande medida, pela incompatibilidade
epistemológica com a economia convencional. A introdução da lei da entropia no
73
raciocínio econômico forçaria revisões profundas no corpo teórico da disciplina,
levando a consequências drásticas a ponto de Cechin (2010) sugerir que tenha o
potencial de gerar uma verdadeira revolução científica – no sentido kuhniano do termo.
A emergência recente do movimento do decrescimento e a influência do cada vez mais
institucionalizado campo da economia ecológica mostram que a obra de Georgescu-
Roegen tem sido resgatada nos últimos anos. Em tempos de mudanças ambientais
globais, ainda que a maioria dos economistas o ignore, certamente seu pensamento se
recoloca na ordem do dia.
26
Réseau des Objecteurs de Croissance pour l´Après-Développement, www.apres-developpement.org
74
Estado-nação, educação, ciência, meios de comunicação e organizações internacionais);
crítica das práticas desenvolvimentistas; elogio dos modos de resistência de
movimentos sociais do sul, que estariam abrindo o caminho para a era do pós-
desenvolvimento.
Uma das principais características do pensamento de tal corrente é entender
o desenvolvimento como uma crença ocidental modernizante. Gilbert Rist (2001), por
exemplo, reconstrói a história da “crença” do desenvolvimento a partir da filosofia e da
mitologia grega, e analisa suas metamorfoses de sua origem à forma atual. Nessa
abordagem, da qual partilha a maioria dos autores dessa corrente, o desenvolvimento é
entendido como uma criação do Ocidente que tem suas raízes filosóficas na Grécia
Antiga e que se consolida como paradigma político e projeto universalizante a partir do
pós-guerra.
Rist (2001) argumenta que, na mitologia e filosofia grega, as transformações
do mundo eram representadas sob o modo de ciclos sucessivos caracterizados pelo
crescimento, apogeu e declínio de eras – visão presente, por exemplo, no pensamento de
Aristóteles. Essa maneira de se conceber as transformações do mundo seria, entretanto,
reinterpretada sob a ótica da teologia cristã pelos intelectuais religiosos da Idade Média.
Para Rist (2001), no que se refere à questão dos ciclos, Santo Agostinho requalificou a
teoria aristotélica aplicando-lhe à totalidade da história universal como manifestação
dos desígnios de Deus. Saem os ciclos sucessivos de ascensão, apogeu e declínio, de
Aristóteles, e entra em cena a ideia de um ciclo único. A história passa a ser vista como
algo que envolve todo o gênero humano, que só tem sentido num plano amplo – de
Deus – e que obedece a uma necessidade divina (RIST, 2001).
Para Rist (2001), apesar desse tipo de pensamento ter entrado em crise
desde o declínio da Idade Média, as grandes rupturas e releituras só aconteceram a partir
do século XVII, com a ascensão do racionalismo iluminista no Ocidente. Os avanços
técnicos e científicos do Iluminismo, as mudanças políticas, sociais e filosóficas que
culminariam nas revoluções burguesas, teriam permitido ao homem ter novas
perspectivas sobre si próprio e sobre o futuro da humanidade – desvinculadas de uma
força supranatural, mas baseadas na razão. “Nesse ambiente otimista, o homem do
século XVIII passou a pensar a história da humanidade como uma linha contínua e
infinita, não mais em ciclos, mas fundada na ideia de progresso” (RIST, 2001:65).
75
Para Rist (2001), o desenvolvimento como base hegemônica para o
pensamento filosófico e científico se consolida no século XIX sob a forma do
evolucionismo social, que influenciou decisivamente os diferentes campos do saber nas
ciências sociais27.
Mas é ao discurso de posse do Presidente Truman, em 1949 – mais
especificamente ao ponto IV – que Rist (2001) e os autores do pós-desenvolvimento
atribuem o marco da invenção do desenvolvimento como paradigma político,
inaugurando a “era do desenvolvimento” (RIST, 2001; LATOUCHE, 1994; ESCOBAR,
1995; ESTEVA, 2000). Nessa situação, Truman utiliza pela primeira vez o termo
subdesenvolvimento para se referir às nações não industrializadas, pobres, “atrasadas”.
Promete o engajamento dos EUA e reivindica a participação das outras nações para
colocar à disposição dos povos desfavorecidos a reserva de conhecimento técnico
acumulada pelos países ricos, ajudando, então, a realizar “a vida que eles aspiram”
(TRUMAN, 1949).
Para Rist (2001), o que poderia ser simplesmente uma inovação
terminológica modificou o sentido do termo desenvolvimento, porque implicou numa
inédita relação ao subdesenvolvimento. A partir do ponto IV de Truman, “o
desenvolvimento passa a ser uma forma de classificar as sociedades humanas a partir do
referencial ocidental, e o subdesenvolvimento, tudo aquilo que foge aos padrões
ocidentais” (RIST, 2001:120, tradução minha).
27
Assim, para o economista político Jean-Baptiste Say (1767 – 1832), a humanidade inicia com um
bando de selvagens, ignorantes do direito de propriedade e capazes de satisfazer apenas suas necessidades
limitadas. Então, passa por estágios de civilizações inferiores e atinge em seguida a civilização superior –
caracterizada pela produção industrial que permite satisfazer uma variedade de necessidades. Auguste
Comte (1798 – 1857), considerado um dos fundadores da sociologia, acredita que os povos passaram por
um estado teológico e depois metafísico para chegar a um estado positivo no qual triunfa a ciência,
fundada sobre os fatos verificados pela experiência. Lewis Morgan (1818 -1881), um dos precursores da
antropologia americana, argumenta que todas as sociedades passam da selvageria à barbárie antes de se
realizarem como civilização.
76
diminui e os envia para o fim da fila; uma imagem que
simplesmente define sua identidade, uma identidade que é, na
realidade, a de uma maioria heterogênea e diferente, nos termos
de uma minoria homogeneizante e limitada (ESTEVA, 2000:60).
28
Para Wolfgang Sachs (2000), Truman lançou a ideia de desenvolvimento para oferecer uma visão
reconfortante de uma ordem mundial, na qual os Estados Unidos estariam à frente. A influência então
crescente da União Soviética – que se industrializou fora do capitalismo – forçou a criação de uma visão
que atraísse lealdade dos países em processo de descolonização, garantindo seu apoio para a luta contra o
comunismo e incluindo toda a humanidade sob o mesmo paradigma político e social.
77
e comportamentos obrigatórios para determinados grupos sociais, a fim de reforçar a
coesão social. Nesse sentido, as crenças são eficazes porque constrangem aqueles que
delas partilham para que ajam de uma maneira particular. Na perspectiva do pós-
desenvolvimento, o desenvolvimento aparece como crença, porque a promessa de que
vai se realizar torna-se uma força que dá coesão social na modernidade, mesmo que
para isso – e essa é outra característica das crenças – tenha-se que aceitar certas
contradições (RIST, 2001). “Do desenvolvimento como crença, não se pode duvidar
nem privadamente” (RIST, 2001:42, tradução minha).
Uma vez que, para Rist (2001), o desenvolvimento é uma crença ocidental,
a sua difusão como solução para os problemas da humanidade é, para Latouche (1994),
o processo de ocidentalização29 do mundo, da colonização do imaginário.
Para o autor,
Fluxos culturais de mão única partem dos países do Centro e
inundam o planeta; imagens, palavras, calores morais, normas
jurídicas, códigos políticos, critérios de competência
transbordam das unidades criadoras para o Terceiro Mundo
através dos meios de comunicação (...). O essencial da produção
mundial de signos se concentra no Norte, onde são fabricados
nas oficinas controladas por ele, ou segundo suas normas e seus
modos. (...) Ciência, técnica e economia veiculam um conteúdo
imaginário muito rico. A relação do homem com o mundo fica
assim muito determinada. Trata-se da concepção do tempo e do
espaço, da relação com a natureza, da relação do homem
consigo mesmo (LATOUCHE, 1994: 31).
29
Latouche entende o Ocidente enquanto uma entidade cultural (que engloba as dimensões religiosa, ética,
racial e econômica), um fenômeno de civilização.
78
desenvolvimento e colonização do imaginário são, nessa perspectiva, momentos do
mesmo fenômeno.
Assim, se universaliza a ambição do desenvolvimento. O
desenvolvimento é a aspiração ao modelo de consumo ocidental,
ao poder da magia dos Brancos, ao status relacionado a esse
modo de vida. O meio privilegiado de realizar essa aspiração é,
evidentemente, a técnica. Aspirar ao desenvolvimento quer dizer
comungar com a fé na ciência e reverenciar a técnica, mas
também reivindicar por conta própria a ocidentalização, visando
ser mais ocidentalizado para se ocidentalizar ainda mais
(LATOUCHE, 1994: 23).
79
Por conta disso, a sustentabilidade total na concepção do decrescimento só
pode ser atingida pela superação da sociedade do crescimento. No entanto, por seu
caráter utópico, imaginar tal situação é difícil até mesmo para os adeptos desse tipo de
concepção. Para Latouche (2009), o decrescimento só poderia ser considerado numa
sociedade de decrescimento, isto é, no âmbito de um sistema baseado em outra lógica.
Para essa transição, seria necessária uma revolução cultural radical que culminasse
numa refundação do político.
O decrescimento é, portanto, um projeto político, no sentido
forte do termo, um projeto de construção, no Norte e no Sul, de
sociedades conviviais autônomas e econômicas, sem por isso ser
um programa no sentido eleitoral do termo (LATOUCHE,
2009:41).
Baseado nisso, o autor propõe o que ele chama de “circulo virtuoso de oito
30
erres ” que consiste em oito objetivos interdependentes capazes de desencadear um
processo de decrescimento sereno, convivial e sustentável. Na visão de Latouche
(1994), a construção de uma sociedade do pós-desenvolvimento passa pela eliminação
da dominação do econômico sobre as outras esferas da vida. Com a extinção da
propriedade privada dos meios de produção e da acumulação ilimitada do capital global,
a economia entraria em desaceleração, liberando outras forças sociais para a produção
da vida em sociedade (LATOUCHE, 2009).
Ainda assim, resta saber quem seriam os atores desta transformação. Há,
para o pós-desenvolvimento, pelo menos dois tipos de atores essenciais em diferentes
níveis para essa tarefa. O primeiro deles é aquele dos excluídos – movimentos sociais
do sul que renegam o desenvolvimento, que inventam novas relações sociais e novas
maneiras de produzir sua sobrevivência. Martinez-Alier (2009) sugere, por exemplo,
que o ecologismo dos pobres (que inclui o movimento pela justiça ambiental) seja um
tipo de ambientalismo fundamental na transição para uma sociedade do decrescimento.
O segundo consiste no grupo dos intelectuais, sobretudo daqueles críticos à
ocidentalização, que precisam teorizar o pós-desenvolvimento. Rist (2001) acredita ser
30
Os oito “erres” propostos por Latouche (2009) são: reavaliar, reconceitualizar, reestruturar, redistribuir,
relocalizar, reduzir, reutilizar, reciclar. Os pontos não foram desenvolvidos na dissertação mas podem ser
vistos em Latouche (2009).
80
imprescindível a crítica do paradigma da ciência normal da economia pela antropologia
e história, e pela perspectiva termodinâmica
Muitos autores – como Ignacy Sachs – são bastante críticos a esse tipo de
visão. Para Sachs (2004b:368), “enquanto houver diferenças abismais entre os pobres e
ricos, dentro dos países e entre países, não temos o direito de parar (de crescer)”. No
entanto, ainda que seja difícil imaginar uma sociedade do decrescimento numa era do
pós-desenvolvimento, acredito que a crítica realizada por esse tipo de concepção revela
o caráter social, cultural e histórico da ideia de desenvolvimento, desconstruindo a
aparência “naturalmente” desejável do crescimento econômico. Quanto à questão
bioeconômica de Georgescu, ainda que certamente dependa de uma questão de escala
temporal, sua visão mostra a impossibilidade física de um crescimento ilimitado no
longuíssimo prazo.
Como ficou ilustrado na pesquisa empírica desta investigação, a concepção
do decrescimento é ainda muito pouco conhecida no Brasil (nenhum dos artigos
analisados mantém afinidades relevantes). Mesmo assim, acredito que um movimento
intelectual recente tem surgido em torno dela e ganha força com a adesão de alguns
economistas ecológicos e ecólogos políticos.
81
Capítulo 4 – Concepção da condição estacionária: desenvolvimento sim,
crescimento não
31
Como contam Veiga e Cechin (2010), Herman Daly baseou-se inicialmente no conceito de stationary-
state, cunhado pelo economista clássico John Stuart Mill, que se referia à tendência de a população e o
capital para de crescer e se manterem constantes. Mas o termo gerou confusão quando os economistas
neoclássicos redefiniram a expressão como sendo um estado em que a tecnologia e as preferências são
constantes, mas em que o capital e o a população poderiam ser continuar crescendo. Para evitar mal-
entendidos, Daly adotou o termo “steady-state” das ciências biológicas e físicas. Na definição de Mill
(1983), a condição estacionária do capital e da riqueza seria uma situação sem crescimento da população
e do estoque físico de capital, mas com contínuo avanço tecnológico e ético, e consistiria numa grande
melhoria para humanidade. Isto porque não lhe agradava o ideal de vida defendido por quem pensa que o
“estado normal” dos seres humanos é aquele de sempre progredir do ponto de vista econômico. Ao invés
disso, ele imaginava que o melhor estado para a natureza humana seria aquele em que ninguém é pobre e
ninguém deseja ser mais rico do que é, nem tem motivo algum para temer ser jogado pra trás pelos
esforços que os outros fazem para avançar. E isso não significa que as energias criativas da humanidade
deveriam se estagnar, mas sim que uma vez acumulada riqueza suficiente para satisfazer as necessidades
básicas, os homens deveriam focalizar seus esforços para melhorias de natureza ética e social. Por isso,
segundo o autor, o aumento da produção só deveria continuar a ser uma meta importante para os países
“atrasados”, enquanto, nos mais avançados, os esforços deveriam ser concentrar no alcance de uma
melhor distribuição de renda (MILL, 1983).
82
como proposta por Herman Daly – um dos expoentes da economia ecológica – ainda na
década de 1970.
Desconstruindo a identidade entre desenvolvimento e crescimento, o
desenvolvimento sustentável como condição estacionária seria, então, um estado em que
a economia se desenvolve sem crescer. Para Daly (1996), enquanto o crescimento se
refere ao aumento quantitativo de throughput32, o desenvolvimento consiste na melhora
qualitativa do uso de uma dada escala de throughput, resultante do aprimoramento ou
geração de conhecimento técnico-científico. Por isso, uma boa analogia para entender a
condição estacionária é a de uma biblioteca lotada em que a entrada de um novo livro
deve ser acompanhada do descarte de outro de qualidade inferior (VEIGA e CECHIN,
2009). “Transposta para a sociedade, essa lógica significa obter desenvolvimento sem
crescimento material. Ou seja, a escala da economia é mantida constante enquanto
ocorrem melhorias qualitativas” (VEIGA e CECHIN, 2009: 21).
Muitos adeptos desse tipo de abordagem, no entanto, admitem – tendo em
vista o atual quadro de desigualdades regionais – que o objetivo do crescimento não
pode ser completamente abandonado. Dessa forma, o próprio Daly (1996) defende o
direito de os países pobres crescerem desde que os países ricos entrem na condição
estacionária.
Em termos teóricos, essa concepção está baseada na economia ecológica
que – como veremos no próximo item – foi fortemente influenciada pelas ideias de
Georgescu-Roegen e se institucionalizou no final da década de 1980.
No que tange aos instrumentos de transição para a economia da condição
estacionária, a tecnologia e o mercado são vistos como fundamentais, mas limitados
para realizá-la. O progresso científico e tecnológico é visto como fundamental para
aumentar a eficiência na utilização dos recursos naturais (ROMEIRO, 2010), mas se
reconhece os limites termodinâmicos e o caráter incerto do processo (AMAZONAS,
2002). Ao contrário dos economistas ambientais neoclássicos (adeptos da noção de
sustentabilidade fraca), os economistas ecológicos veem o capital tecnológico e natural
como sendo muito mais complementares do que substituíveis, argumentando que o
32
Para Cavalcanti (2010), uma possível tradução para o português seria “transumo”. “O significado do
transumo é o mesmo do fluxo metabólico de um organismo vivo. O organismo assimila recursos externos
que provêm do meio ambiente e devolve a esse a sujeira que resulta do metabolismo, depois que a parte
útil dos recursos é utilizada” (CAVALCANTI, 2010:53)
83
critério da sustentabilidade deve se basear mais na possibilidade de substituição entre o
capital natural exaurível e não exaurível (sustentabilidade forte) do que entre capital
natural e capital produtível (sustentabilidade fraca) (AMAZONAS, 2002). Nesse
sentido, se admitem a relevância do progresso tecnológico e da busca pela
sustentabilidade fraca, os adeptos da condição estacionária procuram apontar para os
limites e incertezas relacionados a esses pontos, adotando uma postura de “ceticismo
prudente” (AMAZONAS, 2002:245)
No que se refere à questão do mercado, ele é visto como incapaz de registrar
o custo de seu aumento relativo de escala no ecossistema e, portanto, limitado para a
transição rumo à sustentabilidade. “O critério ecológico de sustentabilidade, assim
como o critério ético de justiça, não pode ser satisfeito pelos mercados.” (DALY,
1996:32).
A transição necessitaria, portanto, mais do que medidas estritamente
econômicas e tecnológicas – como no limite sugere a economia neoclássica – de uma
verdadeira mudança de comportamento e mentalidade das pessoas, à qual Daly (1996) –
e esse é um tema controverso entre os economistas ecológicos – vincula a uma mudança
ética de cunho religioso.
Em termos normativos, os economistas ecológicos defendem uma nova
macroeconomia ambiental e a desconstrução do PIB como indicador de progresso social
– uma vez que ele contabiliza a degradação ambiental e custos entrópicos como renda,
ao invés de custos. Procuram, nessa linha, construir novos indicadores de
sustentabilidade e insustentabilidade que levem em conta essas variáveis, além de
elaborar sistemas de valoração – ainda que não completamente distintos dos da
economia tradicional – que contemple a complexidade da questão. Os aspectos
privilegiados nesse tipo de análise são os relacionados à interdependência dos
subsistemas econômicos e do ecossistema, sendo, frequentemente, alvo de críticas de
antropólogos e sociólogos na medida em que elementos sociais e culturais são
relativamente negligenciados.
84
periódico Ecological Economics no ano seguinte. Ainda que muitos a considerem um
subcampo da economia (e pelo menos no âmbito institucional isso parece ser verdade),
autores como Costanza et al. (1991) e Cavalcanti (2010) advogam pela ideia da
economia ecológica como uma ciência transdisciplinar que se constrói numa visão de
conjunto da problemática ecológico-econômica.
Como explica Cavalcanti (2010), em decorrência de um processo de
hiperespecialização, enquanto a ciência econômica convencional trata apenas da espécie
humana, esquecendo todas as outras, a ecologia convencional estuda todas as outras,
abstraindo a espécie humana. Para ele, a economia ecológica surge como uma
abordagem transdisciplinar porque busca uma visão integradora sem dependência
disciplinar da economia ou da ecologia. Dessa forma, a economia ecológica seria
transdisciplinar porque vai além das conceituações normais das disciplinas e tenta
integrar e sintetizar muitas perspectivas disciplinares diferentes (COSTANZA et al.,
1991). Independentemente desse tipo de discussão, o que define a Economia Ecológica,
em suas muitas variantes, é o propósito comum de analisar o funcionamento do sistema
econômico tomando-o como embedded nas condições do mundo biofísico sobre o qual
se realiza (AMAZONAS, 2002).
Ropke (2004; 2005) identifica três momentos decisivos na história das
ideias econômico-ecológicas. O primeiro deles – uma espécie de pré-história da
subdisciplina – se refere às ideias de autores quase esquecidos do final do século XIX –
como Frederick Soddy, Sergei Podolinsky, Vladimir Vernadsky – que tratavam dos
aspectos biofísicos dos processos econômicos, mas não puderam se estabelecer como
uma nova perspectiva, dentre outros fatores, porque certas questões (como a ambiental)
não estavam colocadas naquele momento e outros problemas eram considerados mais
relevantes pela comunidade científica da época (ROPKE, 2004).
O segundo momento – o da gestação da economia ecológica moderna – teria
ocorrido somente a partir da década de 1960, quando uma agenda da questão ambiental
passou a se estabelecer e a comunidade científica tomou-a mais seriamente. Foi a partir
dessa época, como vimos, que emergiram a problemática da poluição (Carson, 1962),
do crescimento demográfico e escassez dos recursos naturais (Ehrlich, 1968), além das
primeiras manifestações do movimento ambientalista. Como conta Ropke (2004), a
emergência dessas temáticas e sua internalização no campo da ciência econômica
85
trouxeram discussões importantes no que se refere ao escopo da problemática ambiental.
Críticas às abordagens neoclássicas da questão, Ropke (2004) acredita que as ideias de
Boulding (1966) sobre a “economia do cowboy e do homem do espaço”, de Ayres e
Kneese (1969) sobre o input e output dos processos econômicos, de Georgescu-Roegen
(1971) sobre economia e entropia, e de Daly sobre a condição estacionária sejam
fundantes de uma economia ecológica moderna. Os trabalhos desses autores – todos
estudiosos também de outras disciplinas como ecologia, física e biologia –
possibilitaram uma visão da economia como um subsistema do ecossistema e o
entendimento do caráter entrópico dos processos econômicos (ROPKE, 2004).
O terceiro momento da trajetória da economia ecológica é aquele de sua
consolidação como campo de pesquisa institucionalizado que, como vimos, se deu no
fim da década de 1980 (ROPKE, 2005). Desde então, podemos dizer que o campo (ou
subcampo) tem se expandido com sucesso no mundo e na América Latina. No Brasil, já
existe uma sociedade científica de economia ecológica desde 1994, a exemplo do que
ocorreu na Europa, Canadá, Estados Unidos, Austrália, África, entre outros.
Nesse sentido, assim como Buttel (1996), Dunlap (1997) e Ferreira (2006)
indicaram os condicionantes sociais, institucionais e teóricos da institucionalização da
sociologia ambiental, é possível notarmos como, no caso da economia ecológica, esses
elementos também foram cruciais. Da sua pré-história até sua institucionalização, a
economia ecológica – enquanto campo de pesquisa – precisou de mais do que boas
ideias e análises consistentes para acontecer. Entre a germinação dessa economia
ecológica moderna – no começo da década de 1960 – até sua institucionalização – no
final da década de 1980 – existiu um período de gestação que dependeu da articulação
de alguns atores do campo emergente, além do aumento do interesse de agências de
fomento, favorecido pelo contexto macrossocial, pela questão ambiental.
Talvez uma característica importante da econômica ecológica esteja
relacionada à sua visão estratégica à temática da sustentabilidade que, como vimos,
tornou-se central nos embates teórico-políticos da questão ambiental. Isso porque,
enquanto em outras vertentes da economia e das ciências sociais a internalização desse
tema se deu num processo de incorporação do termo, na economia ecológica a
sustentabilidade é seu próprio ponto de partida (AMAZONAS, 2002). Isso fica bem
ilustrado no título de um livro fundador do campo que reuniu alguns de seus principais
86
pensadores: “Economia ecológica: ciência e gestão da sustentabilidade” (COSTANZA
et al., 1991).
Além disso, ainda que, como vimos, Cavalcanti (2010) considere a
economia ecológica como um campo sem dependência disciplinar nem da economia,
nem da ecologia, outra de suas características marcantes é justamente seu
desenvolvimento teórico realizado sempre em contraposição ao arcabouço da economia
neoclássica. Ao integrar analiticamente a economia na ecologia, os economistas
ecológicos contestam profundamente os pressupostos teóricos da ciência econômica de
mainstream. Ao contrário desse tipo de teoria – que enxerga a economia como um
sistema fechado e circular, e o ambiente como recursos ou externalidades – a economia
ecológica entende a economia real como um subsistema aberto dentro de um sistema
fechado maior que é o ecossistema. Em contraposição à economia ambiental
neoclássica, essa constatação questiona a visão pré-analítica (SCHUMPETER, 1954) do
“paradigma” neoclássico, evidenciando que as externalidades ambientais não são casos
excepcionais dos processos econômicos, mas sim uma de suas partes integrantes.
Para os economistas ecológicos, a teoria econômica tradicional ignora a
finitude, a entropia e a interdependência da economia e ecologia, porque o conceito de
throughput está ausente da sua visão pré-analítica. A representação do funcionamento
da economia no fluxo circular neoclássico da renda expressa o sistema econômico como
um sistema isolado e ignora a existência do caráter físico da atividade econômica. O que
estaria fluindo neste circulo é um valor que não considera as dimensões físicas dos bens
e fatores intercambiados. Desse modo, o círculo econômico poderia funcionar
infinitamente, sem limites, e sem problemas ambientais – daí a possibilidade lógico-
formal de um crescimento sustentável até o infinito (CAVALCANTI, 2010).
Ao invés disso, para a economia ecológica, o crescimento do subsistema
econômico é limitado pelo tamanho fixo do ecossistema, pela fatalidade entrópica e
pelas complexas conexões ecológicas que são mais facilmente rompidas conforme
cresce a escala do subsistema econômico em relação ao ecossistema total (COSTANZA,
1991).
Cechin e Veiga (2010) acreditam que seis pontos podem ser entendidos
como diferenciais das perspectivas da economia convencional e ecológica: a relevância
da noção de metabolismo; a importância decisiva da termodinâmica; a oposição
87
cognitiva sobre o processo produtivo; o desdobramento otimista da economia
convencional; o desdobramento cético da economia ecológica.
Talvez por essa “vontade” transdisciplinar, o campo da economia ecológica
tem suas fronteiras e identidades intelectuais relativamente pouco estabelecidas. Por
isso, existe uma forte heterogeneidade entre seus atores. Nesta dissertação, o associei
mais à concepção da condição-estacionária, porque acredito que ela representa típico-
idealmente as principais características do núcleo interpretativo da economia ecológica.
No entanto, é certo que existem economistas ecológicos bastante próximos de outras
concepções da sustentabilidade – como a da ecoeficiência, ecodesenvolvimento e
decrescimento.
88
Capítulo 5 – Concepção do ecodesenvolvimento: desenvolvimento como processo
integral, sustentabilidade como ecodesenvolvimento
89
Hammarskjöld (1975) preferem chamar de crescimento intensivo, ou seja, aquele capaz
de garantir uma intensificação da produção a partir da mesma quantidade de matérias-
primas, ao mesmo tempo em que coloca em circulação um volume menor de dejetos por
unidade de produto acabado.
Desenvolvimento, para Sachs (1995), não significa somente melhora
qualitativa na economia e não se refere exclusivamente ao aspecto material e econômico.
Ao invés disso, trata-se de um conceito pluridimensional, que diz respeito a melhorias
sociais, culturais, políticas e ambientais. O desenvolvimento (integral) significa, para ele,
um processo intencional e autodirigido de transformação e gestão de estruturas
socioeconômicas, direcionada no sentido de assegurar a todas as pessoas uma
oportunidade de levarem uma vida plena e gratificante, munidas de meios de
subsistência decentes e aprimorando continuamente seu bem-estar, seja qual for o
conteúdo concreto atribuído a essas metas por diferentes sociedades em diferentes
momentos históricos (SACHS, 1996) E, por isso, o crescimento econômico – aquele
intensivo – é uma das condições de se atingir o desenvolvimento.
É nesse sentido que Sachs (1995) argumenta que é o crescimento selvagem,
e não o crescimento em si, que deve ser combatido. A tipologia do autor para diferentes
tipos de crescimento econômico ajuda a ilustrar isso. No crescimento selvagem, há
progresso econômico, mas retrocesso social (como geração de desemprego, aumento
das desigualdades e violência) e ambiental (desflorestamento, contaminação dos
recursos, etc): é o que Sachs (1995) chama de desdesenvolvimento ou mau-
desenvolvimento. No crescimento socialmente benigno, há progresso econômico e
social, mas com degradação ambiental. No crescimento estável, há progresso
econômico e preservação ambiental, mas sem melhoras na esfera social. Apenas quando
o crescimento promove simultaneamente progressos econômicos, sociais e ambientais,
Sachs (1995) o considera como ecodesenvolvimento (ou desenvolvimento sustentável).
É basicamente por esse tipo de crescimento “triplamente vencedor”, promotor de
desenvolvimento integral, que Sachs milita.
Bastante crítico à corrente do pós-desenvolvimento, Sachs (1996) privilegia
a noção de desenvolvimento integral em contraposição à variedade de outros adjetivos
que tem acompanhado o termo porque “integral” denota as múltiplas facetas do
fenômeno, além de evocar a ideia de totalidade. Desse modo, a visão sobre
90
desenvolvimento nessa abordagem está bastante alinhada com aquela do Prêmio Nobel
da Economia Amartya Sen e do economista brasileiro Celso Furtado. Sen (2000) – que
influenciou decisivamente a concepção do termo no Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD) – define-o como o processo de expansão das liberdades
humanas. Já Furtado (2000), o associa ao processo de invenção cultural que permite ver
o Homem como um agente transformador do mundo.
No que se refere ao segundo ponto, qual seja, o da multidimensionalidade
do fenômeno, Sachs (1995) acredita que a teorização do ecodesenvolvimento porta pelo
menos cinco dimensões interdependentes: sustentabilidade social, econômica,
ecológica, espacial e cultural. A sustentabilidade social é entendida como a criação de
processos de desenvolvimento que transcendam a lógica de crescimento econômico e
que promovam maior equidade na distribuição de renda e bens. A sustentabilidade
econômica se refere à utilização eficiente dos recursos e dos fluxos de investimentos
públicos e privados e tem como pressuposto a superação das configurações externas
negativas decorrentes das dívidas dos países do Sul e do protecionismo dos países do
Norte. A sustentabilidade ecológica consiste na “melhora” da capacidade de carga da
Terra, minimização dos danos ambientais por meio de inovações tecnológicas
ecologicamente saudáveis, limitação do consumo de combustíveis fósseis e recursos
esgotáveis, redução do consumo nos países do norte e do volume total de resíduos. A
sustentabilidade espacial se refere à obtenção de uma configuração rural-urbana mais
equilibrada e de uma melhor distribuição territorial dos assentamentos humanos e das
atividades econômicas. E, finalmente, a sustentabilidade cultural trata da busca das
raízes endógenas dos modelos de modernização e de sistemas agrícolas integrados,
processos de mudanças que resguardem a continuidade cultural e que traduzam o
conceito normativo de ecodesenvolvimento numa pluralidade de soluções, ajustadas à
especificidade de cada contexto sócio-ecológico (SACHS, 1991). A estas dimensões,
Guimarães (2001) agrega ainda a sustentabilidade política, estreitamente vinculada ao
aprofundamento da democracia e à construção da cidadania que exigem o
fortalecimento das organizações sociais/comunitárias e do Estado.
Já no que se refere ao terceiro ponto característico dessa abordagem, isto é,
aquele que trata do foco nas especificidades locais, o ecodesenvolvimento propõe um
estilo de desenvolvimento – alinhado com a noção de desenvolvimento endógeno,
91
bastante utilizado nas teorias cepalinas – que rompa com os modelos miméticos de
desenvolvimento e se baseie nas condições e necessidades ecossocioeconômicas de cada
região. Por isso, esta concepção está frequentemente associada à temática do
desenvolvimento local e aos conceitos de self-realiance (autoconfiança) e
autosuficiência.
Em relação aos atores da transição para a sustentabilidade (total), os autores
dessa abordagem apontam para as limitações das políticas neoliberais e do laissez-faire,
argumentando pela necessidade de planejamento estatal para regular o mercado e
orientar a ciência e tecnologia para uma estratégia ecodesenvolvimentista.
Em termos teóricos, esse tipo de concepção se embasa principalmente na
obra de Ignacy Sachs – e naquilo que ele, inspirado em William Kapp33, chama de
ecossocioeconomia, além de teorias cepalinas do desenvolvimento.
No que tange à sua relação com o Relatório Brundtland, a concepção do
ecodesenvolvimento mantém com ele afinidade relativa e bastante ambígua. Por conta
disso, o próximo item é dedicado a reconstruir brevemente a trajetória do termo
ecodesenvolvimento, apontando para os vínculos e rupturas que estabelece com a noção
de desenvolvimento sustentável como aparece no discurso oficial.
33
William Kapp (1910-1976) foi um economista alemão pioneiro na discussão ambiental, cuja principal
obra versa sobre os custos sociais e ambientais de empresas privadas.
34
Sachs, que esteve presente nos principais eventos sobre ambiente e desenvolvimento promovidos pela
ONU, conta que foi convidado ainda em 1972 para tornar mais preciso o conteúdo do termo e que teve a
primeira oportunidade disso ao conduzir uma missão da ONU junto à CEPAL para refletir sobre uma
estratégia de longo prazo para a Amazônia peruana (SACHS, 2009). Talvez por conta disso, a teoria do
ecodesenvolvimento tenha sido muito influenciada pelas teorias cepalinas do desenvolvimento e da
dependência.
92
pessimismo dos “catastrofistas” da década de 1970. Por conta disso, muitos consideram
o ecodesenvolvimento como sendo precursor da expressão desenvolvimento
sustentável, que se institucionalizou em seu lugar.
Para Sachs (2002), a abordagem fundamentada na harmonização de
objetivos sociais, ambientais e econômicos, primeiro chamada de ecodesenvolvimento,
e depois de desenvolvimento sustentável, não se alterou substancialmente nos vinte
anos que separam as conferências de Estocolmo e do Rio. O autor acredita que
continuam válidas as recomendações de objetivos específicos para suas dimensões
social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional e política
internacional (VEIGA, 2005). No entanto, em autobiografia recente (SACHS, 2009),
ainda que continue utilizando os dois termos como sinônimos, Sachs revelou seu
profundo desagrado pela predominância do termo desenvolvimento sustentável.
Autores como Leff (2001), por exemplo, acreditam que haja diferenças
significativas entre as duas noções. Como já dissemos, algumas das principais
características do ecodesenvolvimento repousam na ideia de um estilo de
desenvolvimento que promova novos modos de produção e estilos de vida que se
baseiem – dentro dos princípios da self-realiance – nas potencialidades ecológicas e
diversidade cultural de cada região. Para Leff (2001), no entanto, antes que as
estratégias do ecodesenvolvimento conseguissem se institucionalizar, as próprias forças
de resistência à mudança da ordem econômica foram dissolvendo seu potencial crítico e
transformador. O autor acredita que isso tenha ocorrido por conta do contexto de
desestabilização econômica da década de 1980, que teve como consequência a
colocação da recuperação econômica como prioridade. Nesse sentido, houve o
estabelecimento de programas neoliberais em diversos países e uma adesão maior ao
termo desenvolvimento sustentável que, para ele, submeteu o discurso ambiental crítico
aos ditames da globalização econômica.
Brüseke (1995) mostra que, no bojo da noção de ecodesenvolvimento, a
declaração de Cocoyok (1974) e o Relatório Dag-Hammarskjöld (1975) defendiam a
ideia de self-reliance e faziam críticas aos países industrializados, argumentando que
eles contribuem fortemente para o agravamento dos problemas nos países
“subdesenvolvidos”. E esses elementos foram diminuídos ou simplesmente ignorados
pelo Relatório Brundtland.
93
Além disso, como vimos, a concepção da ecoeficiência para a
sustentabilidade – altamente alinhada com o relatório Brundtland – foca nas dimensões
econômico e ecológica da questão e coloca o mercado e a tecnologia limpa como os
atores chave do desenvolvimento sustentável. Já na abordagem do ecodesenvolvimento,
existe a preocupação com as diversas dimensões do processo e se dá ênfase no papel do
Estado e sua democratização para orientar as novas tecnologias para o
ecodesenvolvimento.
Nesse sentido, ainda que autores da ecoeficiência e do ecodesenvolvimento
concordem com os objetivos do desenvolvimento sustentável – como expresso no
Relatório Brundtland – eles divergem sobre as estratégias para atingi-lo, diferenças que
são muitas vezes ofuscadas no debate.
94
Capítulo 6 – Concepção do ecossocialismo: sustentabilidade como superação do
capitalismo
95
medidas mitigadoras e compensatórias. Nesse sentido, o desenvolvimento sustentável
seria uma ideologia de legitimação do status quo (CARNEIRO, 2004).
De modo similiar, Montibeller-Filho (2001) acredita que as tentativas de
esverdeamento do sistema de mercado são fruto de um ambientalismo conservador e
que, ainda que contribuam de modo relevante para a amenização dos problemas
socioambientais, não conseguem superar a contradição fundamental do sistema que
tende a se apropriar de forma degenerativa dos recursos naturais. Para o autor, o
desenvolvimento sustentável consiste num mito tanto em seu caráter universal –
enquanto produtor de elementos para a construção de um projeto civilizatório – quanto
no particular – enquanto não-correspondência entre ideal e realidade (MONTIBELLER-
FILHO, 2001).
Os autores da concepção do ecossocialismo são enfáticos ao afirmar que – e
esse é o elemento unificador desse tipo de concepção – a sociedade capitalista não
condiz com a sustentabilidade. Nesse sentido, uma vez que a crise ambiental é
entendida como consequência da lógica capitalista, a sustentabilidade total só poderia
emergir pela superação do capitalismo por um ecossocialismo. A concepção do
ecossocialismo para a sustentabilidade total – essencialmente antropocêntrica –
corresponde à vertente marxista do debate.
Para os ecossocialistas, é impossível pensar uma ecologia política crítica à
altura dos problemas contemporâneos, sem levar em conta a crítica marxiana da
economia política e seu questionamento da lógica destrutiva induzida pela acumulação
ilimitada do capital. “Uma ecologia que ignora ou faz uma leitura equivocada do
marxismo e sua crítica do fetichismo da mercadoria está condenada a não passar de um
corretivo do excesso de produtivismo capitalista (LÖWY, 2005:20,21)”.
Nesse sentido, segundo Löwy (2005), o ecossocialismo é uma corrente de
pensamento e uma ação ecológica que faz suas aquisições fundamentais do marxismo
ao mesmo tempo em que procura se livrar de seu caráter produtivista. Para os
ecossocialistas, a lógica do mercado e do lucro – assim com a do autoritarismo
burocrático de ferro do “socialismo real” – são incompatíveis com as exigências da
preservação do ambiente natural.
De acordo com O’Connor (1998), um dos principais autores do marxismo
ecológico, são ecossocialistas as teorias e movimentos que aspiram a subordinar o valor
96
de troca ao valor de uso, organizando a produção em função das necessidades sociais e
das exigências da proteção do ambiente. O ecossocialismo – ou socialismo ecológico –
seria, nesse sentido, uma sociedade ecologicamente racional fundada no controle
democrático, na igualdade social, e na predominância do valor de uso. A essa definição,
Löwy (2005) acrescenta a necessidade da propriedade coletiva dos meios de produção,
um planejamento democrático que permita à sociedade definir os objetivos da produção
e dos investimentos, e uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas.
Para Löwy (2005), o raciocínio ecossocialista repousa em dois argumentos
essenciais:
97
(1998) propõe uma radicalização da democracia, enquanto Foster (2010) acredita numa
revolução ecológica socialista.
Em termos teóricos, o ecossocialismo parte da obra de Marx e Engels, se
inspira nas em pensadores como Manuel Sacristan, Raymond Williams, Rudolf Bahro e
André Gorz (em seus primeiros escritos), e tem sido desenvolvido por autores como
Michel Löwy, James O’Connor, John Bellamy Foster, Jean-Marry Harribey, Elmar
Altvater, entre outros (LÖWY, 2005).
Como aponta Löwy (2005), ainda que exista uma heterogeneidade política
considerável nesse grupo de autores, eles compartilham de temas comuns. Segundo ele,
98
interesse universal e globalizante da questão ambiental é visto como parte de um
aparato ideológico que mascara os interesses das classes dominantes e que pretende dar
uma nova roupagem à ideologia capitalista (BENTON, 1996). O já citado artigo de
Eszenberger (1974), publicado ainda na década de 1970 e pioneiro no marxismo, ilustra
bem esse tipo de posição. Para esse autor, o ambientalismo é uma ideologia da classe
média que favorece os interesses de um complexo eco-industrial. O título de um dos
livros de João Bernardo de 1979 evidencia ainda mais típico-idealmente esse tipo de
visão: “O inimigo oculto: ensaio sobre a luta de classes e manifesto anti-ecológico”.
O segundo tipo de resposta marxista para o desafio da questão ambiental foi
a dos que se preocuparam em buscar na obra de Marx e Engels o fundamento da crise
ambiental, a fim de argumentar que, na verdade, eles foram os primeiros ecólogos
políticos da história e que os novos “profetas da ecologia” não estão dizendo nada que
os marxistas já não soubessem (BENTON, 1996). Nesse sentido, autores desse tipo de
posição procuram rebater críticas de ecólogos políticos e sociólogos ambientais que
argumentaram que Marx (e também Weber e Durkheim) teria dado pouca centralidade à
questão ambiental em suas obras. Foster (2000), por exemplo, argumenta que a visão de
mundo de Marx era profundamente e sistematicamente ecológica e derivava do seu
materialismo histórico. E Quaini (1982) afirma que Marx denunciava a espoliação da
natureza antes do nascimento de uma moderna consciência ecológica burguesa.
Já o terceiro tipo de resposta é aquele que procurou reconhecer a relevância
das questões levantadas pelos ambientalistas entendendo, no entanto, as causas da crise
ambiental como resultado não do desenvolvimento da indústria ou do crescimento
populacional, mas antes como consequência das formas capitalistas de organização da
vida econômica. Para os defensores desse tipo de ideia, a crítica ecológica é vista como
complementar à visão marxista do capitalismo, na medida em que o que a classe
trabalhadora tem buscado alcançar até hoje “vai agora ser também trazido por uma
rebelião da própria natureza” (BENTON, 1996).
Para Löwy (2005), por exemplo, a questão ecológica é o grande desafio para
uma renovação do pensamento marxista do século XXI. Ela exige dos marxistas uma
ruptura radical com a ideologia do progresso linear e com o paradigma tecnológico e
econômico da civilização industrial moderna.
99
Nos itens a seguir, apresento os principais argumentos de três teorias
ecomarxistas, procurando enfatizar suas posições em relação à questão da
sustentabilidade total.
100
caracterizado pela confluência dos interesses do capital privado, trabalho e governos em
promover tal expansão. Para Schnaiberg e Gould (1994), em termos empíricos, o
moinho da produção pode ser observado na priorização de investimentos privados em
capital fixo, na criação – pelos governos – de instituições públicas que facilitam o
crescimento econômico, e na orientação de grupos de trabalhadores organizados para
colaborar com esses investimentos e instituições.
Em contraposição à concepção da ecoeficiência, e particularmente aos
autores da modernização ecológica – com quem Schnaiberg e seus colaboradores têm
debatido recentemente – a perspectiva da teoria do moinho da produção vê a
insustentabilidade – social e ecológica – como consequência necessária desse arranjo
econômico e político. Para Schnaiberg (1997), em termos ecológicos, o sistema ameaça
os ecossistemas, na medida em que o moinho da produção demanda cada vez mais
energia e recursos naturais. Em termos sociais, ao se basear na competição transnacional,
ele provoca o deslocamento e o empobrecimento de classes de trabalhadores estáveis e
de pequenos agricultores familiares.
A visão crítica da teoria do moinho da produção sobre desenvolvimento
sustentável (como aparece na concepção da ecoeficiência) fica explícita num estudo
feito por Schnaiberg (1997) sobre o caso de um programa de reciclagem local nos
Estados Unidos. Nessa situação, o autor afirma que, ainda que o programa seja fruto do
esforço de minimizar os impactos ambientais, ele continua fazendo parte do moinho da
produção, sendo incompatível com os imperativos de uma “real” sustentabilidade. Para
ele, há pelo menos dois pontos críticos que tornam o caso do programa de reciclagem
um bom exemplo da limitação desse tipo de política reformista: a) o processo de
reciclagem envolve uma manipulação física, química e biológica dos materiais que
produz poluentes e demanda energia; b) na medida em que não é possível reciclar
completamente os materiais, sempre haverá demanda por recursos naturais adicionais
para que o processo seja realizado.
Ainda que Schnaiberg não fale em ecossocialismo e que suas referências à
obra de Marx sejam relativamente escassas, a teoria do moinho da produção tem sido
frequentemente considerada uma abordagem marxista (HANNIGAN, 2009; BUTTEL,
1996; FERREIRA, 2006). Buttel (2005) procura qualificar tal teoria como sendo um
tipo particular de neo-marxismo que está ancorado principalmente numa economia
101
política extra-marxista (extra-Marxist political economy). Por esse termo, o autor
entende um estilo de crítica político-econômica que toma emprestado conceitos e ideias
de Marx de modo eclético, enquanto rejeita outros aspectos de sua obra e de marxistas
ortodoxos. Assim, economistas políticos extra-marxistas incluem insights do neo-
marxismo – como a importância da luta de classes, o diagnóstico da concentração do
capital, e a tendência da política e do Estado refletirem os conflitos da luta de classes –
enquanto rejeitam outros aspectos – como a teoria do valor-trabalho e a noção de que a
classe trabalhadora é o agente histórico da mudança social. Já Foster (2005), acredita
que as raízes da teoria do moinho da produção remetem aos diálogos de Schnaiberg com
Paul Baran e Paul Sweezy sobre a noção de capital monopolista, e com Gabriel Kolko e
sua teoria do capitalismo político.
Como o próprio Schnaiberg (2002) reconheceu, a teoria da cadeia de
produção não atingiu o status paradigmático que ele gostaria dentro da sociologia
ambiental. Buttel (2005) acredita que, ainda que tal teoria tenha influenciado fortemente
a sociologia ambiental estadunidense da década de 1980, a abordagem de Schnaiberg
perdeu importância no começo do século XXI.
Para Foster (2005), a partir de uma perspectiva marxista, a maior fraqueza
da teoria do moinho da produção é se concentrar no moinho errado. Ele argumenta,
citando Marx, que o núcleo central da crítica ao capitalismo deve ser a acumulação do
capital e não a produção. Mesmo assim, acredita que uma reaproximação da teoria do
moinho da produção com a economia política marxiana só tende a fortalecer uma
sociologia ambiental marxista. Para Foster (2005), ao descrever os problemas
ambientais como consequência do moinho da produção, Schnaiberg teria captado a
futilidade e a irracionalidade desse sistema de produção e enunciou esta que, para o
ecomarxismo, é a mensagem mais importante da sociologia ambiental: a de que a
relação entre humanidade e natureza no capitalismo leva à insustentabilidade e à
barbárie.
102
6.1.2 A Segunda Contradição do Capitalismo
35
Para O’Connor (1998), Marx definiu três tipos de condições de produção. O primeiro se refere às
condições físicas externas ou os elementos constituintes do capital constante e variável. O segundo, à
103
novos movimentos e lutas sociais – o que incluiria lutas pela saúde e segurança no
trabalho, movimento ambientalista, feminista e etc – e o objeto imediato de
transformação social se amplia para as relações sociais da reprodução das condições de
produção (O’Connor, 1998).
Para O’Connor (2003:60), “a causa fundamental da segunda contradição é a
apropriação e utilização autodestrutivas da capacidade de trabalho, do espaço, da
natureza e do ambiente”. A consequência mais evidente da segunda contradição é, para
o autor, que o capital encontra limitações frequentemente criadas por ele mesmo. É
assim que a pauperização dos trabalhadores assalariados e escasseamento de recursos
naturais, por um lado, e a emergência de movimentos sociais organizados pela proteção
da força de trabalho, espaço e natureza, por outro, aumentam os custos do capital
constante e variável na produção de mercadorias, diminuindo a adaptabilidade do
capital e freando sua rotatividade (O, CONNOR, 2003).
A versão marxista da crítica realizada pelo Clube de Roma com a tese dos
limites do crescimento é, nesse sentido, a de que, uma vez que o capital não encontra
jamais limites absolutos, mas na medida em que se depara com as que questões acima
mencionadas, exprime os problemas de adaptabilidade sob a forma de crises
econômicas.
Segundo O’Connor (1998), nessas condições, as crises implicam
forçosamente que o capital e o Estado tenham mais controle e planejamento sobre as
condições de produção. E, uma vez o Estado regulamentando o acesso a tais condições,
as lutas que se referem à reestruturação das condições de produção são necessariamente
lutas políticas (O’CONNOR, 2003).
Para o autor, a unidade estratégica entre os novos movimentos sociais deve,
portanto, ser orientada pelo tema da “democratização radical” do Estado. Denunciando
a impossibilidade de um capitalismo sustentável, O’Connor (1998) vê nessa
democratização – que viria a problematizar a segunda contradição do capitalismo – uma
possibilidade para uma verdadeira transição para a sociedade ecossocialista.
força de trabalho que ele define como condições pessoais de produção. O terceiro, às condições gerais e
comuns da produção social, como, por exemplo, os meios de comunicação.
104
6.1.3 A Teoria da Falha Metabólica
105
Nessa linha, Foster (2000) argumenta que Marx evidenciou o caráter
ambientalmente predatório e socialmente perverso do capitalismo por meio da categoria
“falha” (rift) na interação metabólica entre o Homem e a terra – elaborado como
referência ao roubo dos elementos constitutivos do solo pela agricultura capitalista de
larga escala. A acumulação primitiva, baseada na apropriação privada da propriedade e
consequente expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores, seria também a
base para a destruição da relação metabólica entre os Homens e a terra (FOSTER, 2010).
Com isso em vista, o autor afirma que a crítica marxiana do capitalismo como um
sistema de produção insustentável é, em última instância, enraizada nas pré-condições
históricas sob as quais o capitalismo se tornou possível. Para Foster (2010), insistir em
que essa tal falha metabólica foi em larga escala criada pela sociedade capitalista era
afirmar que as condições de sustentabilidade impostas pela natureza haviam sido
violadas.
Partindo desse diagnóstico, ainda segundo Foster (2000), o conceito de
metabolismo ocupa papel central também na visão de Marx sobre uma sociedade futura
pós-capitalista. A liberdade nesta esfera (o campo da necessidade natural) só poderia
existir na medida em que o Homem socializado – os produtores associados – governasse
o metabolismo humano com a natureza de modo racional, submetendo-o ao controle
coletivo e realizando-o com o mínimo gasto de energia e em condições mais dignas e
apropriadas à natureza humana.
Nesse sentido, uma vez o capitalismo sendo visto como inerentemente
destrutivo e como um sistema de desenvolvimento insustentável, Foster (2010) entende
as soluções baseadas na ideia de um “capitalismo sustentável” como a própria negação
da ecologia. Da sua ótica, a única resposta racional na busca da sustentabilidade total
repousa sobre a possibilidade de uma revolução ecológica que também deve ser uma
revolução social.
A partir de uma perspectiva ecomarxista, portanto, uma sociedade
sustentável e igualitária deveria ser definida pelas lutas sociais atuais não apenas porque
seja ecologicamente necessária para a sobrevivência humana, mas também porque é
historicamente necessária para o desenvolvimento da liberdade humana. “Atualmente,
nós enfrentamos o desafio de forjar uma nova revolução orgânica na qual as lutas pela
igualdade humana e pelo planeta tornam-se uma só luta (FOSTER, 2010:16)”.
106
Capítulo 7 – Concepção da sociedade do risco: incerteza, reflexividade e
democracia ecológica
107
aspectos da vida social. Por conta disso, seria muito problemático tentar sintetizar essas
teorias em poucos parágrafos. Ao invés disso, nos próximos itens, preocupei-me apenas
em delinear alguns aspectos fundamentais da teoria da sociedade do risco e da
modernização reflexiva, que permitissem visualizar a centralidade da questão ambiental
na sua configuração, bem como possibilitasse apresentar uma concepção de
sustentabilidade inspiradas nela e marcadas por um estilo de pensamento específico.
36
Uma característica da abordagem de Beck no que se refere aos debates da sociologia ambiental é que
ela se situa na convergência entre as leituras realistas e construtivistas da questão ambiental e constitui o
que Beck (1999) chama de “realismo reflexivo”.
108
Na visão de Beck (1997), o conceito de sociedade do risco designa uma fase
no desenvolvimento da sociedade moderna em que os riscos sociais, políticos,
econômicos e individuais – produzidos pela sociedade industrial – tendem cada vez
mais a escapar do controle de suas próprias instituições. Dessa forma, a sociedade do
risco é vista como produto de um estágio da modernidade em que ela se depara com si
própria e em que o risco e a incerteza passam a ser centrais na (re)organização da vida
social.
“Assim como a modernização dissolveu a estrutura da sociedade feudal e
produziu a sociedade industrial, a modernização contemporânea está dissolvendo a
sociedade industrial e outra modernidade está se consolidando (BECK, 1992:10)”. Essa
modernização contemporânea – que Beck chama de reflexiva – configura um momento
histórico da alta modernidade, originado e conduzido pelos efeitos colaterais
desenvolvidos e acumulados pelo próprio processo de modernização das sociedades
industriais ocidentais (BECK, 1999).
Beck (1997) distingue duas fases da emergência de tal configuração societal.
Na primeira, os efeitos e as autoameaças da sociedade industrial são sistematicamente
produzidos, mas não se tornam questões públicas ou o centro de conflitos políticos. Na
segunda, os perigos da sociedade industrial começam a dominar os debates e conflitos
públicos, tanto políticos como privados. Além disso, enquanto, na primeira fase, a
modernidade parecia oferecer às pessoas oportunidades de uma existência segura e
gratificante – se comparada ao período pré-moderno – na segunda, o caráter reflexivo da
alta modernidade coloca os riscos gerados pelo seu próprio desenvolvimento (antes
desconsiderados) no centro da vida social e individual, criando um ambiente de
incerteza (BECK, 1997).
Para Giddens (1991), somente no final do século XX é que se pôde perceber
quão perturbador é esse novo contexto. Isso porque, quando as reivindicações da razão
substituíram as da tradição, elas pareciam oferecer uma sensação de certeza maior do
que a propiciada pelo dogma anterior. Entretanto, a equação entre conhecimento e
certeza revelou-se erroneamente interpretada (GIDDENS, 1991).
109
de que qualquer elemento dado deste conhecimento não seja
revisado (GIDDENS, 1991:40).
110
se fazer e pensar a política; c) uma vez que os riscos e ameaças globais são, em boa
medida, produzidos pela própria ciência e tecnologia, sua capacidade intrínseca de gerar
o progresso é questionada, e a incerteza passa a prevalecer sobre a certeza.
É dessa forma que categorias como classe social, Estado-nação, progresso
técnico-científico – tradicionalmente consideradas chave na teoria social moderna –
passam a ser questionadas, vistas como obsoletas ou reequacionadas num contexto em
que o risco, a subpolítica, a globalização e a incerteza tornam-se características mais
fundamentais.
Dois pontos serão mais detalhadamente descritos nos próximos parágrafos,
porque entendo que são elementos fundamentais para a compreensão de uma concepção
da sociedade do risco para a sustentabilidade: a questão da ciência e da subpolítica.
No que se refere ao primeiro ponto, como já brevemente comentado, a
ciência passa a ser vista – no contexto da sociedade do risco – como sendo produtora
dos riscos, mas também como necessária para minimizá-los ou amenizá-los.
De acordo com Beck (1992), na modernidade simples, a ciência se colocou
no lugar de promotora da verdade e do progresso para guiar os princípios do
desenvolvimento social. A ideia era a de que ela poderia oferecer a melhoria das
condições de vida e a solução para os problemas sociais. No entanto, os riscos da nova
configuração societal são em grande medida produtos do próprio desenvolvimento
técnico-científico, além de ter um potencial catastrófico global e serem fortemente
marcados por controvérsias e incertezas (BECK, 1995). Ameaças contemporâneas
como – por exemplo – acidentes nucleares, mudanças ambientais globais e a doença da
“vaca louca” são capazes de colocar em risco toda a sociedade de forma global, e são
marcadas pela controvérsia científica.
É por conta disso que a modernização reflexiva implica num
questionamento da ciência pela própria ciência.
111
Como consequência disso, um processo de desmonopolização das
afirmações do conhecimento científico passaria a emergir e a ciência tenderia a ser cada
vez mais necessária, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais insuficiente para a definição
de soluções aos riscos (BECK, 1992). Tal fato não é visto, no entanto, de forma
completamente negativa. Como acreditam Beck (1992; 1997; 1999) e Giddens (1991;
1997; 2000), esse quadro de risco e incerteza (e o próprio caráter reflexivo da
modernidade) abre também novas possibilidades políticas e institucionais, constituindo
o que Beck (1997) chama de auto-destruição criativa.
112
industrialismo); e a ideia de que a modernização progressiva das sociedades pode
solucionar os problemas ambientais.
No que se refere às diferenças, podem ser enfatizados dois pontos. Em
primeiro lugar, como apontam Mol e Spaargaren (1993), enquanto a modernização
ecológica enfatiza com otimismo o papel da ciência e tecnologia na resolução de
problemas ambientais, a sociedade do risco tende a ser mais cética. Em segundo lugar, e
em decorrência disso, a modernização ecológica repousa sobre um otimismo baseado na
certeza de que as instituições da modernidade como o Estado e o mercado vão se
esverdear por meio de políticas ambientais e produção com tecnologia limpa, enquanto
o diagnóstico da sociedade do risco repousa na incerteza, na centralidade da subpolítica
e das características dos riscos globais contemporâneos como provedores da
autodestruição criativa das instituições da modernidade.
Nesse sentido, ainda que Beck e Giddens se pronunciem pouco diretamente
à questão da sustentabilidade, acredito ser possível inferir alguns elementos que
caracterizem uma concepção inspirada nas teorias da sociedade do risco e da
modernização reflexiva, na sua contraposição à abordagem da modernização ecológica.
Giddens (2000), apesar de considerar positivos os avanços realizados em
alguns países europeus no bojo da noção de desenvolvimento sustentável, faz também
muitas críticas à interpretação da modernização ecológica. Ele não acredita ser
convincente supor que a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico se
adaptem confortavelmente – como pressupõem a modernização ecológica e o Relatório
Brundtland. Vê as políticas de desenvolvimento sustentável vigentes como sendo, em
grande medida, elaboradas como questão de política nacional, enquanto os riscos
ambientais em geral cruzam as fronteiras das nações, quando não são também globais.
Além disso, acredita que os pressupostos amplos da modernização ecológica desviam a
atenção de duas questões fundamentais do contexto contemporâneo: as novas
configurações do avanço científico e as reações societais aos riscos.
Desse modo, na perspectiva da sociedade do risco, o aparente sentido de
certeza e autoconfiança – característico das instituições nas quais se baseiam a agenda
de Brundtland – é colocado radicalmente em dúvida pela emergência e centralidade da
incerteza e dos riscos incontroláveis, imprevisíveis e invisíveis (IRWIN, 2001). E isso
quer dizer que os desafios sociais e sociológicos da sustentabilidade não podem ser
113
entendidos a partir de uma visão de mundo “modernística” convencional. Ao invés
disso, como argumenta Irwin (2001), os problemas ambientais devem ser vistos como
inseparáveis de um contexto social, individual e institucional alargado, do qual não
pode surgir uma solução única, uma vez que as soluções geram novos problemas e, por
vezes, mais complexos que os anteriores.
De acordo com Beck (1999), há pelo menos dois tipos de arenas e atores
emergentes que têm atuado no sentido de promover mudanças societais contra a crise
ambiental. O primeiro – que ele chama de “globalização por cima” – consiste nos
tratados e instituições internacionais (como o Relatório Brundtland), e o segundo – “a
globalização por baixo” – se refere aos novos atores transnacionais que operam para
além do sistema político parlamentar e de organizações políticas institucionalizadas.
Nesse sentido, se a concepção da ecoeficiência repousa sobre esse tipo de “globalização
por cima”, a concepção da sociedade do risco enfatiza a centralidade da subpolítica,
característica da “globalização por baixo”, em busca do que Beck (1996) chamou de
“utopia da democracia ecológica”.
Segundo o autor, existem pelo menos dois princípios interligados contidos
nessa extensão ecológica da democracia: o desenvolvimento de uma divisão de poderes
entre os produtores e avaliadores dos riscos e a criação de uma esfera pública que
transforme a relação entre ciência e política (BECK, 1999). Para ele, somente um
debate público forte, competente e “armado” com argumentos científicos poderia
permitir que as instituições direcionassem o desenvolvimento tecnológico. Isso quer
dizer que, na tomada de decisão de temas centrais para a sociedade como um todo,
vozes dissonantes, especialistas alternativos, variedade interdisciplinar e alternativas a
serem desenvolvidas sistematicamente precisam ser combinadas. Desse modo, a esfera
pública – em cooperação com um tipo de ciência pública (BECK, 1999) – iria atuar
como um corpo secundário encarregado de um controle discursivo (discursive checking)
dos diagnósticos da ciência na contraposição de diferentes opiniões.
Um exemplo utilizado por Giddens (2000) pode auxiliar na compreensão
desse tipo de perspectiva. O autor imagina uma situação, cada vez mais comum, em que
um empreendimento com alto impacto socioambiental – que antes seria comemorado
sem indagações por representar a chegada do progresso – passa a enfrentar grande
resistência de populações afetadas e movimentos sociais. Para Giddens (2000), as
114
tomadas de decisão, nesses casos, não podem ser deixadas aos “especialistas”, mas têm
que envolver políticos e cidadãos. Nesse sentido, a busca da sustentabilidade total –
enquanto um princípio norteador – passa pela imersão da ciência e da tecnologia no
processo democrático. É a partir dessa forte relação entre as questões sociais e
ambientais que, na definição de sociedade sustentável proposta por Ferreira e Viola
(1996), a sustentabilidade (total) é entendida como um conceito transversal que abrange
todas as dimensões da vida humana e que deve ser associada ao conceito complexo de
sociedade democrática, equitativa e eficiente37.
Dessa forma, enquanto a definição de desenvolvimento sustentável do
Relatório Brundtland repousa na ideia de que o desenvolvimento científico-tecnológico
e o aparato institucional corrente podem dar conta dos desafios socioambientais da
contemporaneidade, a abordagem de Beck e da sociedade do risco parte de um mundo
em que tudo está aberto a questionamentos, em que todos os aspectos da vida estão
imersos na dúvida e na incerteza e em que a “ciência, a verdade e o progresso” – sob os
quais, em última instância, dependem as proposições de tal relatório – estão sendo
desafiados e colocados em dúvida (IRWIN, 2001). Desse ponto de vista, o desafio da
sustentabilidade não pode ser visto apenas como um problema técnico, mas precisa
partir do diagnóstico da nova conformação societal contemporânea para explorar os
potenciais abertos pela subpolítica e promover um progresso tecnológico e científico
que esteja a serviço da utopia da democracia ecológica.
37
Segundo a definição dos autores, "na sociedade democrática o governo é eleito em eleições livres
competitivas e as regras escritas da sociedade na forma de lei regulam efetivamente as relações sociais.
Numa sociedade democrática os direitos individuais têm correlatos nos deveres coletivos e os interesses
coletivos têm predomínio sobre os interesses individuais. Na sociedade eqüitativa todos os indivíduos
(independente de gênero, origem social, raça, idade, credo e ideologia) têm as mesmas oportunidades para
se desenvolverem enquanto tais. Numa sociedade eqüitativa o herdado têm uma importância mínima e o
adquirido têm importância máxima. As dimensões fundamentais da sociedade eficiente são: a avaliação
custo-benefício na tomada de decisões, uma equilibrada combinação de competição e cooperação nas
regras do jogo e uma promoção contínua do desenvolvimento científico-tecnológico. Uma sociedade
sustentável é aquela que mantém o estoque de capital natural ou compensa pelo desenvolvimento do
capital tecnológico uma reduzida depleção natural, permitindo assim o desenvolvimento das gerações
futuras. Numa sociedade sustentável o progresso é medido pela qualidade de vida (saúde, longevidade,
maturidade psicológica, educação, ambiente limpo, espírito comunitário e lazer criativo) ao invés de puro
consumo material” (FERREIRA e VIOLA, 1996:10)
115
PARTE II
A PRODUÇÃO ACADÊMICA BRASILEIRA SOBRE
SUSTENTABILIDADE: UMA ANÁLISE DA BASE SCIELO BRASIL
116
Capítulo 8 – Os condicionantes sociais na formação das perspectivas
38
É por isso que a sociologia da ciência mertoniana se debruçou fortemente nas instituições da ciência e
no comportamento dos cientistas, tratando os conteúdos do conhecimento científico como protegidos dos
condicionantes existenciais pela boa utilização dos métodos da ciência. Autores da sociologia do
conhecimento científico – como Mulkay (1979), Bloor (1976), Yearley (2005), entre outros – acreditam,
no entanto, que também os conteúdos da ciência (inclusive das ditas ciências duras) podem ser tomados
como objeto da sociologia.
117
internacionais, nos movimentos sociais, nas empresas e ONGs. Nesse caso, é provável
que a questão dos interesses tenha lugar privilegiado enquanto condicionante de suas
concepções. Aliás, esses atores sociais, beneficiando-se da legitimidade de que goza o
discurso científico, provavelmente se apropriam das concepções de sustentabilidade –
elaboradas teoricamente no campo científico – que mais se afinam com seus propósitos
e interesses. É nesse sentido que dificilmente empresários capitalistas poderiam
congregar com concepções como a do decrescimento e do ecossocialismo, enquanto
essas concepções parecem ser apropriadas mais facilmente por movimentos de justiça
ambiental e socialistas.
No entanto, no nosso caso, tomamos como objeto não todos os
conhecimentos de todos os atores sociais sobre a sustentabilidade, mas sim apenas
aqueles elaborados no campo científico e pelos atores desse campo específico. Nessa
situação, é provável que, ainda que a origem social dos agentes (cientistas) e seus
interesses mais explicitamente econômicos e políticos possam influenciar suas
perspectivas, as estruturas do próprio campo sejam preponderantes na constituição das
ideias e posições sobre o tema.
Bourdieu (2001) argumenta que o campo científico é relativamente
autônomo em relação ao universo social que o envolve. Isso quer dizer que, ainda que o
campo esteja submetido a pressões externas e seja habitado por tensões e disputas
(como, por exemplo, as de classe, etnia e gênero), o sistema de forças constitutivo da
estrutura do campo é relativamente independente das forças que se exercem sobre ele.
“O campo dispõe de certa liberdade para desenvolver sua própria necessidade, sua
própria lógica, seu próprio nomos” (BOURDIEU, 2001). Nesse sentido, se é verdade
que a origem social ou os interesses de classe podem influenciar a aquisição de uma
perspectiva por um determinado cientista, ela ocorre, conforme Bourdieu (2001),
somente de maneira secundária.
Com isso em vista, procuro, neste capítulo, refletir sobre possíveis
condicionantes que atuam na formação do campo e das perspectivas que envolvem a
discussão científica sobre sustentabilidade, tendo como base alguns desenvolvimentos
teóricos da filosofia e sociologia da ciência e do campo científico.
Como afirma Merton (1974), todas as abordagens que tomaram o
conhecimento como objeto da sociologia concordam com o fato de que existe uma base
118
existencial para o pensamento, na medida em que ele não pode ser imanentemente
determinado. No entanto, ao se colocar a questão da natureza desta base existencial e da
autonomia que o fazer científico hipoteticamente goza frente a ela, as respostas se
diversificam.
Para Mannheim (1968), por exemplo, existe historicamente um estrato
social relativamente desvinculado das classes sociais que é portador de um privilégio
epistemológico no processo de conhecimento. Trata-se de uma intelligentsia livremente
flutuante (freischwebende Intelligentz), termo que toma emprestado de Alfred Weber.
Mannheim (1968) justifica esse argumento descrevendo quatro elementos
característicos desse tipo de grupo de intelectuais. Em primeiro lugar, trata-se de uma
camada relativamente sem posição de classe, porque desprovida de vínculos sólidos
com o espaço social e à margem da produção. Em segundo lugar, reunidos em torno de
uma educação moderna, o estrato dos intelectuais livremente flutuantes é composto de
indivíduos de origens das mais diversas, tendo acesso a todos os pontos de vista
contraditórios que se confrontam permanentemente, favorecendo, assim, o avanço de
uma visão sintética e ampliada do conjunto. Em terceiro lugar, enquanto o ponto de
vista de classe (ligado ao processo de produção) é diretamente determinado por sua
posição social, o ponto de vista do intelectual – qualquer que seja sua afinidade de
classe – é também determinado por uma comunidade educacional e cultural. Por último,
a flutuação dos intelectuais se refere à possibilidade e liberdade de escolha
proporcionada pelo acesso à multiplicidade dos pontos de vista na tomada de posição,
sendo os intelectuais, portanto, os únicos a poder chegar a uma visão global e formular
uma síntese dinâmica do conhecimento social.
No entanto, aceitando a ideia mannheimiana de “intelligentsia livremente
flutuante”, podemos nos perguntar se, uma vez relativamente livre dos condicionantes
de classe, que outros fatores condicionam o pensamento desse estrato social39.
O próprio Mannheim (1968) procura esboçar alguns caminhos nesse sentido
com graus diferenciados de aprofundamento e reconhecendo a complexidade da questão.
Ele acredita ser impossível relacionar todos os múltiplos processos sociais que
condicionam e conformam as teorias. Por isso, limita-se a indicar alguns elementos
39
A definição de intelligentsia em Mannheim (1968) não se restringe aos cientistas, mas, nessa ocasião,
tomamos esse “grupo de intelectuais” como sendo um correspondente aos atores do campo científico.
119
representativos em que os processos “extrateóricos” afetam a emergência e a direção do
desenvolvimento do conhecimento. Um primeiro deles se refere à questão da
competição40. Para Mannheim (1968:290),
40
Ver mais em Mannheim (1957).
120
parte do intelectual, de sua própria missão, de sua predestinação de se tornar o advogado
dos interesses espirituais do total social41.
No entanto, é bem possível que autores vinculados a todas as diferentes
concepções de sustentabilidade acreditem estar cumprindo essa “missão” e defendendo
os “interesses espirituais do total social” – no caso da discussão sobre sustentabilidade,
as condições socioambientais para a sobrevivência e reprodução da humanidade.
Economistas neoclássicos – por exemplo – porque estão fazendo a “boa ciência”
objetiva, matematizada e preditiva. Ecomarxistas – por outro lado – porque os
“interesses espirituais do total social” coincidem com o interesse da classe operária e,
portanto, a escolha do papel de ideólogo da classe operária é o mesmo que cumprir a
“missão do intelectual”.
Nesse sentido, se o conceito mannheimiano de perspectiva é central para o
equacionamento das origens das divergências entre as concepções, acredito que o
conceito de intelligentsia livremente flutuante, apesar de esboçar alguns caminhos, não
fornece respostas convincentes para a questão dos condicionantes sociais da formação
das perspectivas. Ao invés disso, esse conceito pode levar a crer que essa “escolha”
entre dois caminhos indicada por Mannheim ocorre sem nenhum tipo de
constrangimento no seio da comunidade educacional, esta, por sinal, bastante
diversificada, coercitiva, e cheia de disputas e tensões. Com isso em vista, acredito que
as formulações em torno de conceitos como comunidade científica (MERTON, 1968;
KUHN, 2007), paradigma (KUHN, 2007), campo científico e habitus disciplinar
(BOURDIEU, 1975; 2001) podem iluminar caminhos mais frutíferos.
Uma primeira contribuição, nessa linha, vem da sociologia da ciência
mertoniana. É interessante notarmos como os autores das diferentes concepções da
sustentabilidade se relacionam com seus interlocutores, dialogam com saberes já
estabelecidos em suas disciplinas, utilizam ou não certos conceitos, criticam
interpretações concorrentes ou simplesmente as ignoram. Como aponta Merton (1974),
um elemento fundamental para se diferenciar generalizações do pensamento e
41
Para ele, uma vez reconhecida a missão do intelectual, é necessário que ele se envolva num processo de
autoesclarecimento em que torna consciente os condicionantes inconscientes do seu pensamento.
Somente por meio dessa análise autocrítica das motivações coletivas inconscientes é que o cientista social
chegaria a um autocontrole e a uma autocorreção, podendo, desse modo, chegar a um conhecimento
científico-social objetivo (MANNHEIM, 1968).
121
conhecimento de toda uma sociedade ou de grupos sociais se refere à audiência ou
círculo social a que estão direcionados. Desse ponto de vista, a orientação dos
pensadores não se restringe a seus dados, ou à sociedade total, mas, sobretudo, a
segmentos específicos daquela sociedade – no caso, a própria comunidade científica –
com suas exigências especiais, critérios de avaliação, de pensamentos “significativos”,
de problemas pertinentes. Nas palavras do próprio autor,
42
Para ver abordagens críticas à tese do ethos científico, consultar Mulkay (1969), Bloor (1976), Lamo de
Espinosa (1994) e Yearley (2005).
122
(desenvolverei esse argumento mais adiante) encobre um dos fundamentos do
funcionamento da ciência: as disputas próprias do campo científico.
Além disso, como argumentam os autores da nova sociologia do
conhecimento científico – tais como Woolgar (1988) e Mulkay (1979) -, por entender o
ethos como um protetor da natureza epistemologicamente válida da ciência, Merton
colocou o conhecimento científico dentro de uma “caixa preta” (WOOLGAR, 1988),
tomando-o como um caso sociológico especial (MULKAY, 1979), no qual somente as
relações sociais estabelecidas pelos cientistas, mas não os conteúdos da ciência, são
passíveis de análise sociológica.
O conceito de comunidade científica foi utilizado também por Thomas
Kuhn (2007) – cujo trabalho é considerado fundamental para o posterior
desenvolvimento da sociologia do conhecimento científico, porque lançou um olhar
historicamente orientado para a filosofia da ciência. Uma de suas principais teses –
rompendo com o positivismo do Círculo de Viena e com o neopositivismo popperiano –
é a de que o desenvolvimento da ciência não funciona como uma acumulação contínua
de conhecimento, mas sim como um processo marcado por rupturas e alternâncias entre
períodos de ciência normal e de revolução científica.
Para Kuhn (2007), uma comunidade científica é formada pelos praticantes
de uma especialidade científica que foram submetidos a uma iniciação e educação
profissional similares e, por isso, compartilham um mesmo paradigma. O conceito de
paradigma – depois substituído pelo de matriz disciplinar (KUHN, 2007) – refere-se à
constelação de compromissos, valores, pressupostos, crenças, práticas, técnicas, entre
outros elementos, compartilhada por uma fração importante da comunidade científica e
que tende a se impor aos paradigmas concorrentes. Como aponta Bourdieu (2001), o
paradigma, nessa perspectiva, é equivalente a uma língua ou uma cultura. Ele determina
as questões que podem ser colocadas e aquelas que são excluídas, o pensável e o
impensável, servindo de ponto de partida, de guia para ações futuras, um programa de
pesquisa a ser encampado, mais do que um conjunto de regras e normas.
Desse modo, podemos sugerir que há certa correspondência entre o conceito
mannheimiano de perspectiva e o de paradigma, proposto por Kuhn (2007). Até certo
ponto, podemos entender a socialização de aspirantes a cientistas num determinado
paradigma como um processo de aquisição de uma perspectiva, a partir da qual serão
123
equacionados os problemas “dignos de serem conhecidos” no seio de uma comunidade
científica. Desse ponto de vista, se, por um lado, um grupo de cientistas-intelectuais
pode ser relativamente livre dos vínculos de classe, por outro, ele certamente está
condicionado aos processos de socialização no mundo da ciência e em paradigmas
específicos. A obra de Kuhn é recheada de exemplos e metáforas (como a do
solucionador de quebra-cabeças) que remetem ao processo de educação científica,
aquisição de habilidades e regras do paradigma, típico de períodos de “ciência normal”.
Na sua visão, a própria definição de problemas e da metodologia de
pesquisa utilizada decorre de uma tradição de teorias, métodos e competências que só
pode ser adquirida por meio de uma formação científica prolongada (KUHN, 2007).
Desse ponto de vista, não importa a origem social do pesquisador e sua situação de
classe, ele seria socializado de modo a adquirir o “par de lentes coloridas” (WRIGHT-
MILLS, 1974) que o habilitaria a ser um “solucionador de quebra-cabeças” (KUHN,
2007) dos problemas científicos de seu paradigma.
O problema é que, ainda que essa leitura possa ser útil para desmistificar a
falsa aparência a-social das ciências ditas duras, as ciências sociais – como indicam
Ortiz (2006) e Assis (1993) – não parecem funcionar como paradigmas. A própria
aprendizagem do trabalho intelectual nas ciências sociais parece se assemelhar muito
mais àquela do métier (BOURDIEU, 1973) do artesão (WRIGHT-MILLS, 2000) do que
ao do “solucionador de quebra-cabeças” (KUHN, 2007). Ademais, se aplicarmos o
modelo kuhniano às ciências sociais, poderíamos chegar à conclusão – bastante
questionável – de que elas estariam num estágio pré-científico, no qual um paradigma
“ainda” não se estabeleceu como hegemônico.
Nesse sentido, no caso das concepções de sustentabilidade, acredito que os
elementos que mais expressivamente condicionam a formação das perspectivas que as
orientam podem ser, de modo especulativo, iluminados pela teoria do campo científico
bourdieusiana e, especificamente, pelo conceito de habitus disciplinar.
124
esse campo. Algumas de suas principais características são: a) seu caráter relativamente
autônomo em relação a pressões do mundo social global que o envolve; b) sua estrutura
de relações objetivas, definida pela distribuição desigual de capitais simbólicos e
produzida pelas práticas e disputas entre os diversos agentes do campo; c) os habitus
nos quais são socializados os agentes e que consistem em disposições adquiridas que
permitem aos agentes reproduzir ou lutar pela transformação das estruturas; d) sua
divisão em campos científicos locais (disciplinas).
Em relação ao primeiro ponto, Bourdieu (1997) argumenta que os campos
(sejam literário, artístico ou científico) funcionam como um universo intermediário
entre, de um lado, o conteúdo de uma obra (literária, artística ou científica) e, de outro,
o contexto social em que foi produzida. A noção de campo refere-se a esse microcosmo
que, embora parcialmente condicionado a imposições do macrocosmo, dispõe, com
relação a ele, de uma autonomia relativa mais ou menos acentuada. Por isso, ela é
especialmente útil para escapar de visões como a da ciência “pura” – totalmente livre de
qualquer necessidade social – ou “escrava” – sujeita a todas as demandas político-
econômicas (BOURDIEU, 1997). Nessa linha, a autonomia relativa do campo científico
decorre do fato de as pressões externas sobre o campo serem mediadas pela lógica
própria do campo, num processo de refração que retraduz – sob formas específicas – as
pressões e demandas externas.
Certamente, o grau de autonomia do subcampo ambiente e sociedade é
relativamente baixo se comparado com outros campos da ciência como a física, a
matemática ou a química. No entanto, isso não quer dizer que as influências externas
tenham impossibilitado esse subcampo de produzir conhecimentos relevantes sobre a
questão e desenvolver estruturas institucionais que o viabilizassem. Pelo contrário, se é
verdade que a própria internalização da questão ambiental no campo científico ocorreu
somente a partir da emergência dos movimentos ambientalistas e da forma como se
institucionalizou no âmbito da política, esses fatores foram também fundamentais para
estimular discussões subsequentes sobre interdisciplinaridade, desenvolvimentos
teóricos, mudanças institucionais, além do alargamento das temáticas estudadas no
âmbito da questão ambiental.
Como mostram os trabalhos de Buttel (1987), Dunlap (1997) e Ferreira
(2006; 2010), o subcampo ambiente e sociedade tem mostrado extrema vitalidade,
125
influenciando mainstreams disciplinares e abrindo espaços de experimentação criativa
para o trabalho intelectual. Ademais, com a institucionalização dos programas
interdisciplinares ambientais, a criação de associações, centros de pesquisa e revistas
acadêmicas especializadas, o grau de autonomia desse campo parece estar se
aprimorando, como fica evidente se compararmos a literatura ambientalista escassa e
denunciativa das décadas de 1960 e 1970, com a crescente, diversificada e teoricamente
desenvolvida literatura científica produzida nos últimos trinta anos em várias partes do
mundo43.
Em relação à estrutura do campo científico, Bourdieu (2001) dá ênfase na
distribuição desigual do capital científico44 e argumenta que as lutas travadas no campo
pela sua manutenção ou transformação dependem do estoque de capital desigualmente
distribuído, que localizam os agentes no espaço social em questão. Para Bourdieu
(2001), a força vinculada a um agente (pesquisadores, instituições, laboratórios)
depende de seus diferentes trunfos (atouts), isto é, fatores diferenciais que lhe
asseguram vantagens relativas na concorrência por benefícios (profits) científicos e
posições privilegiadas no campo.
Nesse sentido, uma vez que, para Bourdieu (1997), o campo científico é um
sistema de relações objetivas entre as posições adquiridas e as lutas pelo monopólio e
legitimidade da autoridade científica, sua perspectiva marca uma ruptura e superação do
conceito de comunidade científica – utilizado no arcabouço funcionalista e no modelo
kuhniano. Como afirma o autor, o conceito de comunidade científica carrega o
pressuposto mertoniano do “comunismo”, levando à ideia homogeneizante de que
43
Ferreira (2006) mostra, por exemplo, que, no caso da sociologia ambiental, sua produção teórica
apresenta uma compreensão mais complexa da relação entre ambiente, sociedade e política, do que o
ponto de vista radical dos ecologistas da década de 1970.
44
O capital científico, como um tipo de capital simbólico, é, segundo o autor, um conjunto de
propriedades que são produto de atos de conhecimento e reconhecimento compartilhados pelos agentes
engajados no campo científico e dotados de categorias de percepção específicas. Ele se apresenta, ainda,
de duas formas. A primeira – o capital científico puro – pode ser acumulada por meio de contribuições
acadêmicas que resultam da publicação de artigos e livros ou de apresentações de papers em congressos
onde temas diretamente relacionados à realidade científica são debatidos. A segunda – o capital
institucional-científico – tem natureza temporal e é acumulada através da ocupação de posições chaves
em associações acadêmicas, centros de pesquisa e outras instituições. Apesar de cada tipo de capital
acadêmico gerar diferentes tipos de reconhecimento social pode, em determinadas situações, ocorrer uma
troca de influências entre estas duas formas de capital (BOURDIEU, 1997;2001).
126
constituiria um grupo de membros unidos por objetivos e culturas comuns. Para
Bourdieu (2001), a visão comunitarista da ciência deixa escapar o fundamento do
funcionamento do mundo científico, qual seja: a concorrência pelo monopólio da
manipulação legítima dos bens científicos, dos bons métodos, dos bons resultados, da
boa definição dos fins e objetos da ciência.
Isso não quer dizer, no entanto, que as disputas no campo científico
funcionem como uma guerra em que “tudo vale”. Como afirma Bourdieu (2001), além
de essa disputa ser regrada, os cientistas têm em comum coisas que – sob um certo
sentido – os unem e – sob outros – os separam, dividem, opõem.
127
A questão da interdisciplinaridade no subcampo ambiente e sociedade
revela ainda dois aspectos centrais na concepção de Bourdieu sobre o campo científico:
a questão dos campos locais (disciplinas) e seus habitus disciplinares correspondentes
(BOURDIEU, 2001).
Até agora, no que concerne à abordagem bourdieusiana, procuramos
enfatizar os aspectos mais gerais que caracterizam o campo científico. No entanto, como
aponta o próprio autor, o campo não é constituído de uma estrutura única e homogênea,
mas sim de campos locais que caracterizam disciplinas hierarquicamente situadas
(BOURDIEU, 2001).
Como mostram os dados empíricos desta dissertação, a literatura sobre
sustentabilidade é caracterizada por ser produzida por cientistas oriundos de diversas
disciplinas. Há desde agrônomos a economistas – passando por sociólogos, engenheiros,
entre outros especialistas – se apropriando do termo e da discussão em seus trabalhos.
Para Bourdieu (2001), os grupos interdisciplinares que se constituem em torno de um
novo objeto são terrenos privilegiados de observação e objetivação de esquemas
práticos específicos de cada disciplina. Isso porque, o contato entre as ciências é uma
ocasião oportuna para percebermos as diferenças entre os distintos sistemas de
disposição que estão no princípio das práticas científicas, isto é, os habitus disciplinares.
O habitus é um conceito central na teoria bourdieusiana. De forma geral, ele
representa
um sistema de disposições duráveis e transponíveis que,
integrando todas as experiências passadas, funciona a cada
momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de
ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente
diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas
(BOURDIEU, 1983:65).
128
experimental, mas, antes, um ofício45 (métier), isto é, um senso prático de problemas a
levantar e maneiras adequadas de tratá-los que varia conforme a disciplina
(BOURDIEU, 2001).
Para Bourdieu (2001), uma disciplina é um campo relativamente estável e
delimitado, caracterizada por um arsenal coletivo de métodos e de conceitos
especializados, cujo domínio constitui o direito de entrada (droit d’entrée) tácito ou
implícito no campo. Ela gera um transcedental historique, isto é, um sistema 46 de
esquemas de percepção e de apreciação que, apropriado por meio de um habitus
disciplinar, produz uma unidade de estilo de pensamento.
É dessa forma que a noção de estilo de pensamento – utilizada por
Mannheim (1968) e Fleck (1986) para se referirem a um conjunto de pressupostos
compartilhados em grande parte inconscientes e jamais colocados em questão – se
relaciona com o conceito bourdieusiano de habitus disciplinar. Para Bourdieu
(2001:129), “os produtos de um mesmo habitus são marcados por uma unidade de
estilo”.
Partindo do raciocínio de Bourdieu, podemos sugerir que, no caso da
discussão sobre sustentabilidade, podem existir habitus não somente disciplinares, mas
específicos a perspectivas sobre a questão. Isto é, uma vez que os habitus geram estilos
de pensamento, mas existem vários estilos de pensamento decorrentes de uma mesma
disciplina (como por exemplo na sociologia ou na economia), podemos sugerir que
existem habitus vinculados a diferentes perspectivas específicas.
Para Douglas (1998), o conceito de estilo de pensamento em Fleck está
muito próximo da ideia de um esquema conceitual que limita e controla a cognição
individual. Por isso, é possível entendermos os habitus vinculados a perspectivas como
produtores de estilos de pensamento que condicionam e orientam a produção de
conhecimento científico.
45
Para Bourdieu (2001), a especificidade do métier do cientista vem do fato de que sua aprendizagem se
refere à aquisição de estruturas teóricas extremamente complexas, mas que devem ser internalizadas a tal
ponto, que esse saber passe realmente à prática, sob a forma de métier.
46
Para o autor, os sistemas de disposição são variáveis segundo as disciplinas, mas também segundo
princípios secundários como trajetórias escolares, origem social, gênero, nacionalidade e etc
(BOURDIEU, 2001).
129
Com isso, no entanto, não pretendo sugerir que a relação entre os autores, os
habitus específicos, os estilos de pensamento, as perspectivas e as concepções, seja
linear e unidirecional, nem que não haja espaços para a criatividade na produção de
conhecimento. Os próprios dados empíricos desta pesquisa, apresentados no próximo
capítulo, mostram que autores provenientes de disciplinas diferentes podem manter
afinidades com uma mesma concepção da sustentabilidade, evidenciando a
complexidade da questão. Ao mesmo tempo, permitem sugerir que de fato existem
habitus disciplinares diferenciados e fatores institucionais centrais na conformação dos
espaços possíveis de publicação dos artigos sobre sustentabilidade, bem como na
utilização do termo e do tema da sustentabilidade.
130
Capítulo 9 – Uma análise empírica da internalização da questão da
sustentabilidade na produção acadêmica brasileira
131
métodos), mas sim sua diversidade. Meu objetivo nesta investigação empírica não foi,
nesse sentido, o de apontar nenhum tipo de inconsistência lógica possivelmente
existente nos artigos, nem questionar a validade ou não de cada proposição feita. Ao
invés disso, o intuito foi o de mostrar que, por trás de cada operação lógica e
apresentação dos dados no trabalho científico, há perspectivas específicas que orientam
o raciocínio e encaminham análises e problematizações.
A primeira etapa da pesquisa empírica consistiu no levantamento de artigos
publicados em periódicos científicos brasileiros sobre a questão da sustentabilidade no
período de 1987 (ano do Relatório Brundtland) a 2009. Esse procedimento exigiu que
fosse escolhido um banco de dados específico para sua realização.
O projeto Scielo (Scientific Eletronic Library online) é resultado da
cooperação da FAPESP, da BIREME e do CNPq e, desde seu início em 1997, tem se
consolidado como um importante veículo de comunicação científica no Brasil, na
América Latina e Caribe. Além de congregar um número expressivo de periódicos
científicos nacionais de avaliação A e B pelo programa Qualis da CAPES nas diversas
áreas do conhecimento, tem a vantagem de disponibilizar – online e gratuitamente – os
artigos em sua versão integral, facilitando o acesso às obras.
No âmbito do projeto temático “A Questão Ambiental, Interdisciplinaridade,
Teoria Social e Produção Intelectual na América Latina”, ao qual esta pesquisa de
mestrado está vinculada, foi desenvolvido a Base de Dados Latino-americana em
Ambiente e Sociedade (LAMAS47), que reúne mais de 3.500 obras científicas (entre
livros, artigos, capítulos de livro, teses e dissertações) de mais de 30 países da América
Latina sobre ambiente e sociedade. Entre as 33 palavras-chave pré-estabelecidas para a
organização desse material, “sustentabilidade” foi a segunda de maior incidência na
base LAMAS, correspondendo a mais de 14% do total dos dados e evidenciando a
necessidade de uma análise qualitativa da produção acadêmica sobre o tema. No que se
refere especificamente à produção brasileira presente na base, são listados 288 trabalhos
sobre sustentabilidade, correspondendo a 11,5% do total (FERREIRA, 2010).
No entanto, apesar de ter disponível esse rico material, a base Scielo Brasil
foi escolhida para a pesquisa porque permitiu incluir na análise não somente a produção
47
Disponível em www.nepam.unicamp.br/lamas.
132
publicada nas revistas interdisciplinares ou de ciências sociais, mas também em revistas
de áreas como ciências da saúde, ciências agrárias, biológicas e engenharias. Além disso,
uma vez que a análise de conteúdo demanda o acesso aos artigos completos, concluímos
que a base Scielo, por disponibilizar online seus artigos em versão integral, facilitaria o
desenvolvimento da pesquisa. Nesse sentido, acredito que as análises aqui propostas
servem de complemento aos resultados do projeto temático, na medida em que
contemplam artigos de uma variedade de áreas do conhecimento, além de fornecer
elementos para uma análise qualitativa em torno de um dos temas de maior incidência
na base LAMAS que é o da sustentabilidade. Devo lembrar ainda que há outras
iniciativas vinculadas ao projeto temático, como os trabalhos de Hoeffel (2010) e a
pesquisa de mestrado de Fábio Bacchiega (a ser defendida em 2010), que se dedicam a
analisar os artigos sobre sustentabilidade dessa base de dados e com as quais,
certamente, poderá haver diálogos profícuos futuramente.
Por conta das especificidades da pesquisa empírica numa base de dados
online, acho válida uma breve nota sobre o projeto Scielo, o contexto em que tem se
desenvolvido e as potencialidades e limitações que, enquanto objeto de pesquisa, ele
coloca para esta dissertação.
133
consequência disso, o autor acredita que a centralidade do inglês no mercado de bens
linguísticos implica o fortalecimento de poucas nações e de determinados modelos.
É nesse contexto que o projeto Scielo – e sua política de acesso aberto – foi
criado como uma estratégia de dar visibilidade à produção científica dos países em
desenvolvimento ou ao que Gibbs (1995:92) chamou de “the lost science of the Third
World”. Inicialmente elaborado para contemplar periódicos científicos brasileiros e
latino-americanos, o projeto integra, atualmente, também revistas portuguesas e
espanholas e tem a ambição de se expandir pelo continente africano48.
De fato, os dados do projeto temático mostram que, pelo menos no âmbito
da produção latino-americana em ambiente e sociedade, essa “lost science” não só se
revela afinada com as abordagens da comunidade científica internacional, como
também apresenta, com certa originalidade, abordagens multifacetadas da relação
natureza-sociedade (FERREIRA, 2010). Ferreira (2010) comprova essa tese analisando
as muitas instituições científicas devotadas ao tema, o grande número de cientistas
envolvidos, bem como a surpreendente quantidade e diversidade dos trabalhos da área
em questão. A autora ainda mostra como uma análise mais aprofundada dessa “lost
science” contradiz estigmas e estereótipos sobre a América Latina e sua ciência.
Para Ferreira (2010:14),
48
Em 2009, a África do Sul aderiu à rede, sinalizando a real possibilidade de isso ocorrer.
134
estética quanto pela própria riqueza potencial da sua
biodiversidade e recursos chegando a ser reivindicado como
patrimônio da humanidade e cuja preservação se faz
fundamental. Por outro, a América Latina é também vista como
um subcontinente cujas populações e instituições (políticas,
econômicas e culturais) são portadoras de certa fragilidade e
subdesenvolvimento, que em grande medida, impedem a
produção de um conhecimento capaz de lidar com essa natureza
bem como de preservá-la (FERREIRA, 2010:15).
Numa leitura crítica, Ferreira (2010) argumenta que um olhar atento sobre o
tratamento que a temática ambiental tem recebido por parte de universidades e centros
de pesquisas latino-americanos contradiz tais estereótipos e estigmas. Isso porque,
embora exista uma forte tendência em se considerar a comunidade cientifica latino-
americana fora do que se convencionou chamar de uma “produção de ponta”, os dados
do projeto temático revelam que, ao menos no que tange à temática ambiental, a
produção intelectual latino-americana analisada supera as expectativas tanto do ponto de
vista quantitativo quanto qualitativo (FERREIRA, 2010). Dessa forma, continua a
autora, ainda que as instituições científicas latino-americanas sejam, em certa medida,
mais frágeis do que a de seus pares norte-americanos e europeus, dificilmente se pode
dizer que tal fragilidade (embora isto nem sempre se confirme) conduza os cientistas
latino-americanos a operarem dentro uma espécie de “casulo epistêmico”, apartados dos
debates científicos mais amplos e atualizados (FERREIRA, 2010).
Além disso, Ferreira (2010) mostra que existe na produção intelectual
latino-americana uma série de inovações à cena acadêmica, o que, até certo ponto, pode
ser considerado fruto do lugar periférico de onde falam os cientistas sociais latino-
americanos. Existe nessa produção uma série de especificidades relacionada à
diversidade de contextos empíricos contemplados por ela, além de uma amplitude
temática considerável. Segundo Ferreira (2010), temas como pobreza, desigualdades
sociais, biodiversidade, entre outros, revelaram-se mais recorrentes na produção dos
cientistas latino-americanos sobre ambiente e sociedade quando comparados à produção
de seus pares do “Primeiro Mundo”, aparentemente refletindo problemas particulares e
dificuldades inerentes à região.
Desse modo, o trabalho de Ferreira (2010) ilustra bem um dos
condicionantes sociais do pensamento que atuam na produção do conhecimento. Se,
135
como afirma Weber (2002), as ideias de valor são fundamentais na delimitação de um
objeto de estudo e, como afirma Mannheim, a perspectiva do sujeito é condicionada
pela situação social do pensador, é razoável que as especificidades das modernidades,
condições socioambientais e científico-institucionais latino-americanas possam se
refletir na produção acadêmica de seus cientistas. É por isso que Ferreira (2010) acredita
ser compreensível que temas como a desigualdade social, biodiversidade e democracia
pareçam ser mais caros aos cientistas latino-americanos do que aos de outras
comunidades científicas e seus decisores.
136
qual deseja navegar, mas as alternativas disponíveis estão estruturadas de antemão. Seu
deslocamento é a conjunção de uma escolha pessoal e a matriz de possibilidades
inscritas na formatação de um determinado meio técnico” (ORTIZ, 2008:182). No caso
de um banco de dados – como é a base Scielo -, ainda que a busca se inicie com
palavras-chave definidas pelo pesquisador, a ordenação dos resultados é dimensionada
por parâmetros que escapam ao seu domínio.
Nesse sentido, tomar a base Scielo como instrumento de coleta de dados e
artigos para formação de um objeto de análise de produção acadêmica abre
possibilidades, mas também impõe limitações. Se, por um lado, ela permite uma busca,
acesso e análise facilitados de artigos de diversas áreas do conhecimento, por outro, ela
não pode ser tomada como um universo neutro, já que aos resultados de uma busca no
seu banco de dados, prescinde uma pré-estruturação. As revistas incluídas nessa base
de dados, por exemplo, não foram escolhidas pelo pesquisador, mas sim definidas por
outrem em outras circunstâncias. Além disso, devo lembrar que o artigo é apenas uma
das formas de divulgação do trabalho científico. A produção de livros sobre
sustentabilidade, por exemplo, é seguramente muito significativa (ver apêndice II).
Tendo isso em vista, a pesquisa empírica aqui apresentada não tem nenhuma
pretensão cientométrica de “eleger” as revistas ou autores mais importantes sobre o
tema, medir citações, “avaliar” a relevância dos artigos baseada nesses índices ou
qualquer coisa dessa natureza. Ademais, meu objetivo não foi o de tirar conclusões
totalizantes nem abranger toda a literatura. Ao invés disso, com as facilidades de uma
base de dados como a Scielo, procurei apenas indicar empiricamente que de fato existe
um número crescente de artigos sobre sustentabilidade sendo publicados no Brasil, essa
produção é feita por acadêmicos de diversas disciplinas e que, nesse sentido, uma
sociologia do conhecimento da questão ambiental pode fornecer instrumentos analíticos
importantes para se compreender como os acadêmicos brasileiros têm se apropriado dos
termos desenvolvimento sustentável e sustentabilidade. Além disso, haja vista a
quantidade significativa de trabalhos sobre o tema, tanto na base Scielo como no banco
de dados LAMAS, procurei esboçar e realizar um exercício intelectual baseado nos
métodos de análise de conteúdo que, acredito, pode contribuir para a construção de um
método de análise qualitativa da produção acadêmica.
137
Com isso em vista, nos próximos itens, apresento os principais resultados
empíricos deste trabalho, explicitando os procedimentos utilizados na combinação de
métodos quantitativos e qualitativos, bem como refletindo sobre suas limitações.
49
A primeira busca que fizemos foi realizada simultaneamente nos campos “título”, “assunto” e
“resumo”. Foram detectados 394 artigos. No entanto, preferi a busca somente no campo “assunto”
porque, apesar de talvez “perder” alguns artigos que falem sobre o tema, esse critério permite identificar
os artigos que julgaram tomar o tema da sustentabilidade como algo central na análise. No que se refere
às palavras-chave, elas foram definidas com base nas concepções construídas na revisão bibliográfica.
138
Até o dia 10 de março de 2010, foram encontrados 191 artigos50 publicados
entre 1987 (ano do Relatório Brundtland) e 2009, revelando a internalização da questão
da sustentabilidade em periódicos de diversas áreas do conhecimento. A figura 2 mostra
a quantidade de artigos identificados por ano de publicação. Devo salientar que a baixa
incidência no período de 1987 a 1997 é certamente resultado de um viés da própria base
Scielo, que mantém uma quantidade de periódicos indexados mais significativa somente
a partir de 1997 – ano em que o projeto se iniciou. Mesmo assim, podemos perceber
uma tendência de crescimento na produção acadêmica sobre a questão da
sustentabilidade, pelo menos nos últimos 12 anos. Essa tendência pode ser verificada
também se utilizarmos dados de livros publicados sobre o tema – fruto de uma pesquisa
quantitativa nas bibliotecas da USP, Unicamp e Unesp, e apresentada no apêndice 2. Os
artigos considerados foram aqueles publicados com pelo menos uma das palavras-chave
estabelecidas, em revistas classificadas pelo programa Qualis da CAPES com conceito
A1, A2, B1 ou B2. Com base nisso, foram identificados 57 periódicos.
A Figura 3 mostra a quantidade de artigos publicados com pelo menos uma
das palavras-chave pré-definidas por periódico levantado na base Scielo. Os dados
revelam que, apesar de haver uma concentração relativa da produção em torno de
algumas revistas (53,4% do total foram publicados nas 11 primeiras revistas da lista), há
uma quantidade significativa de periódicos que abriram espaço para o tema no período
estudado (ver tabela 1). Levando em consideração que a Scielo tem 221 periódicos
listados, podemos verificar que cerca de 26% dos periódicos dessa base de dados
publicaram ao menos um artigo sobre o tema.
No entanto, devo salientar que, com base nesses dados, não é possível tirar
conclusões sobre as revistas que de fato mais publicaram sobre o tema, já que nem
todos os números de todas as revistas estão disponíveis na base Scielo. No entanto,
podemos concluir que a temática tem sido internalizada como um objeto legítimo em
diversas áreas do conhecimento e está presente nos meios de comunicação científica
brasileiros.
50
Ver Apêndice 1 (lista de artigos levantados)
139
Figura 3 – Quantidade de Artigos sobre sustentabilidade por periódico da base Scielo
Fonte: Apêndice 1
140
x = quantidade de artigos Quantidade de revistas Porcentagem em relação à
por periódico por valor de x quantidade total de artigos
x>10 2 17,80%
5<x≤10 9 35,60%
1<x≤5 20 32,98%
x=1 26 13,61%
Tabela 1 – Concentração dos artigos em revistas
51
Não foi encontrada nenhuma referência nas revistas de “linguística, letras e artes”, e, por isso, essa área
não foi incluída na figura 2.
141
Um dado quantitativo interessante da base construída é o de 75,6% dos
artigos ter sido publicado em coautoria. O índice de coautoria52 é de 87% em ciências
agrárias, 72% em engenharias, 69% em ciências humanas e 63% em ciências sociais
aplicadas – bem maiores que os 36% e 42% registrados se levados em consideração
todos os artigos da base Scielo53 dessas duas últimas áreas, respectivamente. Isso pode
sugerir que, pelo menos no caso das revistas de ciências humanas e ciências sociais
aplicadas, a temática da sustentabilidade, e de modo genérico da questão ambiental,
pode estar promovendo práticas de pesquisa e publicação coletivas que, possivelmente,
estão relacionadas à emergência da interdisciplinaridade na área. Essa hipótese ganha
força quando, na análise qualitativa realizada com uma amostra de artigos, verificamos
que, além da presença da própria discussão sobre interdisciplinaridade nessas revistas (o
que ocorre de modo muito tangencial nas áreas de engenharias e ciências agrárias), a
formação doutoral dos autores é bastante variada em termos disciplinares e de áreas do
conhecimento.
A fim de realizar uma análise qualitativa dos artigos levantados,
selecionamos uma amostra por cota que contemplou 25% dos artigos das quatro áreas
do conhecimento com maior incidência na pesquisa (ciências humanas, agrárias, sociais
aplicadas e engenharias). Esse critério foi estabelecido de modo a selecionar um
conjunto de documentos que viabilizasse a leitura e análise de conteúdo de pelo menos
uma parte da produção, em cada uma destas áreas do conhecimento, além de fornecer
dados sobre os autores dos artigos. A amostra selecionada contém, com base no critério
pré-estabelecido dos 25% por área, 6 artigos publicados em revistas de ciências sociais
aplicadas, 6 em engenharias, 15 em ciências agrárias e 22 em ciências humanas,
totalizando 49 artigos.
Produzida a partir dessa amostra, a figura 5 revela uma heterogeneidade
muito mais marcante na área de formação doutoral54 dos autores das revistas de ciências
humanas e sociais aplicadas do que em engenharias e ciências agrárias.
52
Índice de coautoria = quantidade de artigos em coautoria da área/ quantidade total da área
53
A base Scielo mantém disponíveis dados sobre coautoria no seu website (www.scielo.org)
54
Para a classificação das formações doutorais por área do conhecimento, foi utilizada a relação de cursos
recomendados pela CAPES, acessível em www.capes.gov.br .
142
60
Área de formação doutoral
dos autores
50
Programas
Interdisciplinares
Ciências da Saúde
40
Ciências Exatas
30
Ciências Biológicas
20 Ciências Humanas
0 Engenharias
Engenharias Ciências Ciências Sociais Ciências
Agrárias Aplicadas Humanas
área de publicação das revistas
143
A base Scielo não considera na sua classificação por grandes áreas do
conhecimento uma área interdisciplinar que pudesse mais adequadamente contemplar as
revistas que emergem do tema ambiente e sociedade. Nesse sentido, acredito que essa
separação por grandes áreas do conhecimento, numa análise como essa, pode encobrir
práticas interdisciplinares emergentes, no âmbito da questão da sustentabilidade, que se
realizam nas fronteiras dessas áreas do conhecimento. Por isso, se a análise quantitativa
da produção acadêmica pode auxiliar na construção do objeto empírico e na formulação
de hipóteses, uma análise mais aprofundada (em termos qualitativos) pode evitar alguns
reducionismos.
55
Alguns autores defensores dos métodos de análise de discurso – como sugeridos por Pêcheux –
acreditam que a análise de conteúdo está presa a uma ideia positivista da ciência e, por isso, se supõe
objetiva (ROCHA e DEUSDARÁ, 2005). De fato o método de análise de conteúdo parece depender de
um esforço interpretativo bastante subjetivo. Nesse sentido, acredito que suas limitações devam ser
explicitadas.
144
documentos a serem submetidos à análise, a definição de questões norteadoras e a
elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final (BARDIN, 2009).
Como já dito, no nosso caso, após a realização da análise quantitativa
apresentada no item anterior e de uma leitura flutuante de alguns artigos, foi selecionada
aleatoriamente (por sorteio) uma amostra por cota de 25% das quatro áreas do
conhecimento com maior incidência (ciências sociais, agrárias, sociais aplicadas e
engenharias). No que se refere às questões norteadoras, devo salientar novamente que a
investigação não procurou mapear o campo acadêmico em discussão no sentido de
estabelecer a estrutura de distribuição de poder e capitais científicos entre os agentes,
como definida por Bourdieu (2001). Ao invés disso – e em detrimento de uma
investigação somente da literatura mais relevante sobre a questão – o foco foi dado aos
conhecimentos científicos que são produzidos por acadêmicos que desfrutam de capitais
diferenciados, estando nas mais distintas posições hierárquicas do campo científico. As
questões norteadoras se referiam, portanto, a entender como os autores dos artigos se
apropriam do termo e do tema da sustentabilidade, tendo como parâmetro os diferentes
tipos de uso do termo e as concepções expressivas de sustentabilidade total –
sintetizadas na figura 6.
Partindo disso, ainda na fase da pré-analise, foi necessário definir um
conjunto de critérios que pudessem gerar unidades de registros, a fim de fornecer
informações relevantes sobre os artigos e viabilizar uma interpretação com referência
aos parâmetros pré-estabelecidos. Nesse sentido, na leitura de cada artigo, busquei
identificar: a formação doutoral56 dos autores (por meio do acesso à plataforma Lattes
do CNPq), as palavras-chave associadas ao texto, o resumo, o tipo de uso do termo
sustentabilidade (específico ou total), exemplos de uso do termo, sua relação com o
Relatório Brundtland (se existir), além de argumentos que pudessem revelar afinidades
entre o uso do termo sustentabilidade nos artigos e alguma das concepções de
sustentabilidade total estabelecidas na parte I desta dissertação.
56
Quando não doutores,foi identificada a área de formação do nível de titulação mais elevado (mestrado,
especialização ou graduação).
145
Figura 6 – Síntese das concepções expressivas de sustentabilidade total
146
De acordo com as sugestões de Bardin (2009), as fases seguintes da análise
de conteúdo são a exploração do material e a interpretação dos dados. Nesse sentido, a
partir das definições da pré-análise, realizamos uma leitura sistemática – guiada pelos
critérios estabelecidos – dos artigos da amostra, a fim de produzir tabelas que
organizassem os registros identificados e viabilizassem a interpretação analítica dos
conteúdos. Os resultados finais desse exercício intelectual – que inclui uma avaliação
crítica do próprio método – são apresentados nos próximos itens, organizados por área
do conhecimento.
Engenharias
Concepção de
Tipo de uso do termo sustentabilidade com
Artigo palavra-chave formação acadêmica dos autores
sustentabilidade a qual mantém
afinidade
indicadores de
Polaz e
sustentabilidade; resíduos 1 mestre em engenharia urbana e
Nascimento específico ecodesenvolvimento
sólidos urbanos; políticas 1 doutor em engenharia civil
(2009)
públicas; gestão ambiental
Desenvolvimento sustentável,
Benedetti et al.
logística, combustíveis, 4 Mestres em Administração específico e total ecoeficiência
(2009)
estudo exploratório
Desenvolvimento sustentável,
1 doutor em engenharia da
Siena (2008) sustentabilidade, indicadores específico e total ecodesenvolvimento
produção
e índices.
147
Dos seis artigos da área de Engenharias analisados, quatro são estudos sobre
o mundo empresarial em sua relação com a temática da sustentabilidade. Amade e Lima
(2009) estudam o impacto de um Termo de Adequação de Conduta (TAC) no caso do
garimpo de ouro de Engenho Podre, Mariana-MG. Benedetti et al. (2009) analisam as
relações da logística de combustíveis e do desenvolvimento sustentável, no caso de uma
distribuidora de combustíveis da região metropolitana de São Paulo. Silva Filho et al.
(2007) realizam um estudo de caso da implementação do “Programa de Produção mais
limpa” na resolução dos problemas existentes em uma empresa fabricante de
embalagens de papel localizada no Estado de Pernambuco. Silva et al. (2006)
apresentam trabalho sobre o impacto no custo de capital próprio para as empresas
brasileiras de capital aberto frente à adoção de “programas de sustentabilidade”.
Ainda que com uma razoável heterogeneidade de argumentos, uso dos
termos e formas de tratar a temática da sustentabilidade, podemos sugerir que esses
artigos mantêm afinidades com o que foi definido como concepção expressiva da
ecoeficiência. Seus argumentos e expectativas parecem estar altamente alinhados
principalmente com a perspectiva da modernização ecológica, na medida em que
entendem a introdução de tecnologia e mudanças na gestão das empresas como os
fatores promotores do desenvolvimento sustentável. Como afirmam Amade e Lima
(2009:237), por exemplo:
148
instrumento para a gestão de Resíduos Sólidos Urbanos no município de São Carlos-SP.
Já Siena (2008) elaborou indicadores baseados em oito dimensões da sustentabilidade
(entre elas saúde, riqueza, manutenção da biodiversidade, organização e poder) e
realizou um teste de sua proposta para o Estado de Rondônia.
Ciências Agrárias
Concepção de
formação acadêmica dos Tipo de uso do termo sustentabilidade
Artigo palavra-chave
autores sustentabilidade com a qual mantém
afinidade
Barbosa, Banny Silva Sustentabilidade, Arecaceae, Energia 4 bacharéis e 1 doutor em somente palavra
Ecodesenvolvimento
et al.. (2009) elétrica, Amazônia química chave
6 doutores em engenharia
Campos et al.. construções rurais, energia,
agronomica, 1 doutor em específico indeterminado
(2003) sustentabilidade
zootecnia e 1 físico
Faria et al.. (2002) Biomassa, rotação e rebrota 3 doutores em agronomia específico Ecoeficiência
1 doutor em ecologia e
König, Flávia Gizele Floresta Estacional Decidual, nutrição de florestas, 1 doutor
específico indeterminado
et al.. (2002) serapilheira e sustentabilidade. e 1 mestre em engenharia
florestal
Oliveira, Maurílio
retenção, dessorção, latossolos, 3 doutores em agronomia e 1
Fernandes de et palavra-chave Indeterminado
sustentabilidade doutor em química
al..(2006)
149
gestão ambiental, sistemas de 1 doutor em recursos
Romanelli e Milan
produção, sustentabilidade, silagem, florestais e 1 doutor em palavra-chave indeterminado
(2005)
silagem emurchecida engenharia agrícola
1 bacharel, 1 mestre e 1
Sampaio et al. Sustentabilidade; microrganismos;
doutor em engenharia específico Ecodesenvolvimento
(2008) atividade microbiana
agronômica
1 doutor em biologia, 1
Schumacher et al.. Sustentabilidade, nutrição florestal e doutor em ecologia e nutrição
específico Indeterminado
(2003) reflorestamento. de florestas, 1 doutor em
agronomia
150
especificamente vinculado à preservação dos solos para manutenção da produção
agropecuária ou silvicultural.
Com isso em vista, é possível que o termo sustentabilidade no âmbito das
ciências agrárias e florestais esteja intimamente associado ao sentido restrito que o
silvicultor saxão Hans von Carlowitz (1715) lhe imprimiu ainda no século XVIII. Como
vimos, acredita-se que esse autor tenha sido o primeiro a utilizar o termo nachhaltendes
wirtschafen (administração sustentável) para se referir a um uso do solo cultivável que
garantisse rendimentos estáveis no longo prazo na produção florestal, introduzindo nas
ciências agrárias e florestais – bem antes de em qualquer outra ciência – a noção de
sustentabilidade. Contudo, como apontam críticos desse tipo de entendimento da
administração sustentável, no contexto do paradigma da silvicultura comercial, a
sustentabilidade continua sendo orientada pela oferta de produtos para o mercado, não
pela reprodução de um ecossistema, em sua diversidade biológica (SHIVA, 2003). Para
Shiva (2003:69), a administração sustentável das safras, nessa visão, tem por objetivo
somente produzir “os melhores resultados financeiros, o maior volume possível, ou a
classe mais apropriada de produtos”.
Dessa forma, analisando a apropriação do tema da sustentabilidade em parte
dessa literatura, podemos sugerir – ainda que com limitações importantes – certas
afinidades com a concepção da ecoeficiência. Por exemplo, uma ideia que parece estar
por trás de parte dos trabalhos da amostra dessa área é a de que o principal fator na
conquista pela sustentabilidade da produção é a inovação nas tecnologias de manejo do
solo, consistindo numa espécie de modernização ecológica da agricultura e silvicultura.
Nessa linha, Costa et al. (2003), por exemplo, mostram como o uso de plantio direto em
detrimento do plantio convencional contribuem para a qualidade do solo e para a
sustentabilidade da produção no longo prazo. De modo similar, Macedo et al. (2009)
argumentam que, uma vez que o monocultivo e práticas culturais inadequadas têm
causado perda de produtividade, degradação do solo e dos recursos naturais, a reversão
desse quadro poderia ser conseguida por meio de tecnologias como o sistema de plantio
direto e os sistemas de integração lavoura-pecuária.
Esse tipo de posição fica ainda mais claro no trabalho de Andrade et al
(2001). Esses autores estudaram um sistema agrossilvipastoril, constituído por
Eucalyptus urophylla e Panicum maximum cv. Tanzânia-1, para verificar a hipótese de
151
que existiam outros fatores, além da baixa disponibilidade de luz, interferindo no
crescimento normal da gramínea, quatro anos após sua introdução no sistema. Os
autores reconhecem que, do ponto de vista ecológico, o eucalipto não é a melhor opção
para compor um sistema silvipastoril, já que não contribui para a melhoria da fertilidade
do solo e compete efetivamente com a gramínea associada pelos fatores água e
nutrientes. Mas, do ponto de vista econômico, acreditam que seja uma das melhores
opções existentes, devido à sua elevada capacidade de produção de madeira, mesmo em
solos pobres. Partindo disso, concluem que devem ser buscadas alternativas para
minimizar as possíveis interações negativas que possam existir entre o eucalipto e sub-
bosque de sistemas silvipastoris (como aplicação de fertilizante nitrogenado ou
incorporação de plantas leguminosas no sistema).
Os trabalhos que contemplam explicitamente outras dimensões da questão
da sustentabilidade parecem estar mais alinhados à concepção do ecodesenvolvimento,
valorizando e analisando a presença de populações locais em sua interação com o
ecossistema. Arruda et al. (2008), por exemplo, procuraram, a partir do plano de
manejo, identificar atividades e/ou produtos com potencial para exploração sustentável
em uma reserva extrativista da Amazônia, gerando renda e melhoria de condições de
vida da população local. Desse modo, argumentam que a extração de heliconias como
plantas ornamentais para comercialização, mesmo acarretando alguns impactos diretos
sobre a fauna e a flora, ajuda a manter as funções ecológicas originais da floresta
evitando perdas futuras de biodiversidade regional, além de garantir a continuidade das
populações tradicionais no campo, com efeito direto na economia local e regional.
Também trabalhando com populações amazônicas, Barbosa et al. (2009) demonstraram
o potencial da produção de biodiesel a partir de óleos vegetais extraídos de espécies
oleaginosas nativas de forma sustentável como alternativa energética para comunidades
isoladas da Amazônia.
Já Francelino et al. (2002) avaliaram a disponibilidade e qualidade de
recursos hídricos em dez projetos de assentamento de reforma agrária na região Oeste
do estado do Rio Grande do Norte. Nesse sentido, evidenciaram as restrições
(decorrentes da má qualidade) do uso dos recursos hídricos para irrigação das águas e
argumentaram que esse é um fator problemático para a sustentabilidade dos
agrossistemas e desses assentamentos.
152
Por fim, é importante salientar que uma parte considerável dos artigos foi
considerada “indeterminada”, porque, ainda que tenha se apropriado do termo
sustentabilidade, não foi possível encontrar elementos que pudessem sugerir afinidades
relevantes com quaisquer concepções de sustentabilidade construídas. É o caso, por
exemplo, de artigos como de Oliveira (2006) e Romanelli e Milan (2005), que só
utilizaram o termo como palavra-chave sem desenvolver ideias relativas à questão no
corpo do texto. Nesse sentido, é possível que o termo sustentabilidade seja também
utilizado como estratégia de inserção em algumas discussões.
Concepção de
Tipo de uso do
formação acadêmica dos sustentabilidade
Artigo palavra-chave termo
autores com a qual mantém
sustentabilidade
afinidade
1 Especialista em
Gerenciamento de Projetos, 1
estratégia; responsabilidade
Doutor em Administração
Lyra et al. (2009) social; administração de específico ecoeficiência
Pública e 1 Doutor em
stakeholders; sustentabilidade
Ciências Florestais
1 mestre em Desenvolvimento
Desenvolvimento local.
Momesso et al. Local, 1 doutor em
Agroecologia. Sustentabilidade. específico ecodesenvolvimento
(2009) Entomologia, 1 doutor em
Segurança alimentar
Ciências dos Alimentos
sistema econômico e meio
ambiente, sustentabilidade,
condição
Mueller (2005) categorias de capital, capital 1 Doutor em Economia específico e total
estacionária
natural, estabilidade e
resiliência, Georgescu-Roegen.
Sustentabilidade Empresarial.
Ecoeficiência. Contabilidade da
1 Mestre em Contabilidade e 1 genérico e
Vellani (2009) Gestão Ambiental. Pesquisa ecoeficiência
doutor em Contabilidade específico
Estudo de Caso
153
quanto aos tipos de uso e concepções de sustentabilidade com os quais mantêm
afinidades.
No que se refere aos usos e concepções, Pires (2006) emprega o termo no
sentido genérico. Ao se referir à “sustentabilidade da dívida pública”, seu trabalho não
se vincula em nenhum sentido com a discussão sobre sustentabilidade no âmbito da
questão ambiental.
Lira et al. (2009) e Vellani e Ribeiro (2009), embora trabalhem com um
sentido específico do termo, mantêm afinidades com a concepção da ecoeficiência. Lira
et al. (2009) analisam o papel dos stakeholders na “sustentabilidade das empresas”,
realizando um estudo de caso sobre as relações que uma empresa fornecedora de carvão
mineral de Minas Gerais estabelece com os atores que afetam e são afetados por suas
atividades econômicas. Numa abordagem que trata especificamente da sustentabilidade
econômica e da imagem da empresa na sua relação com os stakeholders, o argumento
está baseado na ideia de que o empreendimento pode chegar a soluções do tipo win-win
(ganhos econômicos e ambientais simultâneos) com a melhoria das relações com
stakeholders. Já Vellani e Ribeiro (2009) propõem uma metodologia para categorizar,
em termos contábeis, as ações ecológicas empresariais no sentido de fornecer
informações sobre a gestão da ecoeficiência das empresas. Conceitos centrais em sua
abordagem são, portanto, ecoeficiência, responsabilidade social corporativa e
sustentabilidade empresarial.
No trabalho de Momesso et al. (2009), podem ser sugeridas afinidades com
a concepção do ecodesenvolvimento. Ao analisar o potencial do mercado de “produtos
orgânicos” em Campo Grande-MS, além de enfatizarem a centralidade do
desenvolvimento local na agricultura sustentável, as autoras revelam a preocupação em
tratar a sustentabilidade não somente em sua dimensão econômica ou ecológica, mas
também social e cultural.
Já Zaneti et al.(2009) analisam as condições estruturais que determinam o
fenômeno dos sistemas de reciclagem de resíduos sólidos na sociedade contemporânea
com ênfase nas relações de trabalho e na lógica de produção. Se, por um lado,
convergem com o diagnóstico da concepção do ecossocialismo ao lamentar que “a
maioria dos autores que adotam a ótica da sustentabilidade não perceba a contradição
entre os termos “desenvolvimento” e “sustentável” nem o sentido profundo da
154
insustenbilidade intrínseca do sistema do capital” (ZANETI et al., 2009:184,185), por
outro, se alinham à concepção do ecodesenvolvimento (especialmente com as ideias de
Ignacy Sachs), na medida em que acreditam existir possibilidades de “sustentabilidade
na insustentabilidade” que dependem da atuação e democratização do Estado e de uma
gestão pública que implemente processos coletivos capazes de atuar sobre as dimensões
cultural e educacional da questão, alterando, dessa forma, os padrões sociais de
consumo.
Por fim, o artigo de Mueller (2005) consiste num ensaio teórico sobre a
contribuição de Georgescu-Roegen para a teoria econômica dos processos produtivos.
Nesse sentido, sem congregar com as teses de Georgescu-Roegen sobre decrescimento
econômico e sem focar especificamente na questão da entropia, Mueller (2005) procura
defender a ideia de que a incorporação – pela economia do meio ambiente – da
distinção, sugerida por Georgescu, entre as categorias de capital natural de estoque e a
de fundo de serviços ambientais básicos, forçaria as visões sobre sustentabilidade a se
confrontarem com os aspectos fundamentais da inter-relação entre o sistema econômico
e o meio ambiente. E, nesse sentido, sua visão converge fortemente com a perspectiva
da economia ecológica e com a concepção da condição estacionária.
Ciências Humanas
Buainain et al.
agricultura familiar, desenvolvimento Economia específico ecodesenvolvimento
(2003)
sustentável, equidade
condição
Cavalcanti (2004) sustentabilidade, economia, economia Economia total
estacionária
ecológica
155
Brasil, Sociologia Ambiental, específico e
Ferreira, Leila (2000) Ciências Sociais sociedade do risco
Sustentabilidade e Cidades total
Fitotecnia; Zootecnia;
Pelwing e Barros sementes crioulas, agrobiodiversidade, específico e
Genética e melhoramento ecodesenvolvimento
(2008) agricultura familiar, sustentabilidade total
de plantas
responsabilidade social empresarial;
Rico (2004) políticas públicas; desenvolvimento Serviço Social total ecoeficiencia
sustentável
Silva e Ribeiro específico e
Comunicação; Certificação; ISSO Saúde Pública; Geografia ecoeficiencia
(2005) total
14,000; Empresa; Sustentabilidade.
Economia; Planejamento
Tolmasquim et al. matriz energética brasileira; oferta e ecoeficiencia e
Energético ; autor sem específico
(2007) demanda de ecodesenvolvimento
informação
energia; desenvolvimento sustentável
Figura 10 – Amostra de artigos da área de ciências humanas
156
Os artigos da área de ciências humanas revelam uma diversidade na
formação acadêmica dos autores e das temáticas abordadas. No que se refere ao
primeiro ponto – como podemos verificar na tabela acima – entre os 35 autores e co-
autores dos artigos analisados, há doutores em ciências sociais (sociologia, antropologia,
ciência política), economia, psicologia, arquitetura, biologia, ecologia, zootecnia,
energia, física, saúde pública, além de autores formados nos recentes programas
interdisciplinares ambientais, entre outros. A diversidade temática certamente
acompanha essa heterogeneidade, havendo trabalhos – para dar alguns exemplos – sobre
planejamento energético, biossegurança, biodiversidade, piscicultura, agricultura
familiar, cidades, educação, psicologia ambiental, estudos amazônicos, políticas
públicas, responsabilidade social, resíduos sólidos, política científica e tecnológica,
entre outros. É também nesses artigos que pudemos encontrar discussões mais
propriamente teóricas em torno da discussão sobre sustentabilidade no seu sentido total.
Dessa forma, há também uma forte heterogeneidade teórica, havendo trabalhos
alinhados com as concepções da ecoeficiência, ecodesenvolvimento, ecossocialismo e
sociedade do risco, além de abordagens bastante híbridas.
Os trabalhos de Araújo e Sá (2008), Arraes et al. (2003), Yoshiya Ferreira
(2000), Pádua (2000), Buainain et al.(2003), Marques (1999) e Pewling et al. (2008)
podem ser considerados como alinhados à concepção do ecodesenvolvimento. Isso
porque dão centralidade à questão da multidimensionalidade, enfoque no
desenvolvimento local ou na questão do planejamento estatal.
Araújo e Sá (2008) analisam as características socioeconômicas do
desenvolvimento da piscicultura no baixo rio São Francisco alagoano, sob a ótica do
desenvolvimento sustentável. Argumentando pela centralidade da renda (mesmo que
parte dela sendo proveniente de subsídio governamental) para o desenvolvimento de
uma piscicultura comercial sustentável, as autoras associam o desenvolvimento
sustentável à democracia, à autodeterminação dos povos, ao respeito à diversidade
cultural, à biodiversidade natural e à participação política dos cidadãos.
Arraes et al. (2003) rejeitam empiricamente a validade da curva ambiental
de Kuznets – tipicamente utilizada como argumento da concepção da ecoeficiência –
para diversos países, sob a ótica do desenvolvimento sustentável. Para isso, analisam as
correlações existentes entre a renda per capita – como variável explicativa – e outras
157
dimensões do desenvolvimento sustentável (saúde, educação e poluição) – como
variáveis dependentes. Desse modo, observam que a curva de Kuznets ambiental não se
aplica para a maioria dos países estudados, mostrando correlações diferenciadas entre o
nível de renda e as outras dimensões da sustentabilidade.
Yoshiya Ferreira (2000) apresenta um ensaio relacionando a questão urbana
com a temática da sustentabilidade. Bastante alinhada com a abordagem de Ignacy
Sachs, a autora enfatiza o caráter multidimensional da questão, o papel central da
cultura e educação ambiental, além da necessidade de uma ética orientada para o futuro.
Já Pádua (2000) analisa a presença de três grandes dimensões superpostas
(ecológica, histórica e conjuntural) no contexto amazônico. O autor defende um
arcabouço conceitual multidimensional no entendimento da questão amazônica que
embase políticas de sustentabilidade que “conjuguem a conservação da floresta com a
garantia dos direitos socioculturais e econômicos dos diferentes interesses presentes
legitimamente naquele universo” (PÁDUA, 2000:798).
Buainain et al (2003) discutem a importância da implementação de políticas
agrícolas e agrárias voltadas para pequenos produtores familiares. Para ele, a fim de se
atingir um desenvolvimento rural sustentável, é preciso integrar as políticas
macroeconômicas, agrícolas e de desenvolvimento rural, de modo a reduzir os atritos e
aumentar a convergência e sinergia entre os diversos níveis de intervenção do setor
público.
O artigo de Marques (1999) aborda o tema das políticas de ciência e
tecnologia e as questões relativas à sua gestão, planejamento e avaliação. Revisando a
trajetória da ciência e tecnologia nas cinco últimas décadas do século XX, argumenta
que a ciência voltou-se progressivamente para os mercados e empresas de alta
tecnologia, ao mesmo tempo em que cresceu a intervenção do Estado dirigida à
integração da ciência e da tecnologia ao conjunto da economia. Para ele, o tema “ciência,
tecnologia e desenvolvimento” ganha centralidade com a emergência da discussão sobre
desenvolvimento sustentável e evidencia a necessidade de se repensar a função pública
do Estado em relação às políticas de C&T e uma nova ética para o seu desenvolvimento
que torne compatíveis o humanismo e a competitividade.
Fonseca (2007) procura verificar se os conhecimentos sobre biodiversidade
e desenvolvimento sustentável são socializados nas escolas de Belém-PA e se alcançam
158
função de destaque na formação escolar básica. Para isso, não chega a definir com
precisão o que entende por desenvolvimento sustentável. Mesmo assim, acredito que
sua abordagem mantenha afinidades principalmente com a concepção do
ecodesenvolvimento, na medida em que invoca a necessidade de se pensar o
desenvolvimento sustentável em suas três dimensões (ambiental, social e econômica) e
na compreensão – pelas populações – da importância da biodiversidade e dos recursos
naturais para a manutenção de sua qualidade de vida no futuro e no presente.
Pewling et al. (2008) analisam o uso de sementes e plantas tradicionais em
propriedades de agricultores familiares em oito municípios do Rio Grande do Sul. A
partir de pesquisa etnográfica, identificaram uma grande diversidade de plantas
cultivadas e investigam os motivos das preferências, dificuldades de manutenção, entre
outros elementos. Para os autores, o regime familiar é um dos grandes responsáveis pelo
desenvolvimento de um agrossistema composto por cultivos consorciados e
diversificados. Acreditam que, no caso estudadom, a “aspiração” por uma agricultura
autossuficiente foi responsável pela adoção de ações inovadoras, cujas prioridades
foram concomitantemente sociais, econômicas e ambientais.
Já os trabalhos de Silva e Ribeiro (2004) e Rico (2004) são fortemente
alinhados com a concepção da ecoeficiência, na medida em que dão centralidade ao
papel das empresas e do mercado na promoção da sustentabilidade (total). Partindo da
ideia de que a introdução de sistemas de gestão ambiental em empresas configuram por
si só ações promotoras do desenvolvimento sustentável, Silva e Ribeiro (2004) analisam
um grupo de empresas certificadas pelo BR ISO 14001 (que contém uma série de
especificações de um Sistema de Gestão Ambiental). Os autores apontam problemas e
soluções na adequação das empresas a suas ações, comunicação e certificação com o
intuito de aumentar a confiança nesse sistema.
Já Rico (2004) analisa as propostas e as controvérsias em torno da questão
da responsabilidade social empresarial – como suas relações com o Estado e a
sociedade civil – na busca do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, acredita que,
“diante da necessidade de rearticulação do próprio capital, existe hoje no Brasil um
segmento empresarial em condições objetivas de somar seus esforços a outros parceiros
na luta pelo desenvolvimento econômico, social, viável e ambientalmente sustentável”
(RICO, 2004:81).
159
Já os artigos de Goldemberg e Moreira (2005), Lucon e Goldemberg (2007),
Tolmasquim et al. (2007) – todos tratando da questão energética – podem ser
considerados híbridos, na medida em que alinham argumentos da concepção da
ecoeficiência e do ecodesenvolvimento.
Goldemberg e Moreira (2005) realizam uma reflexão sobre a política
energética brasileira. Para eles, uma vez que a energia é um ingrediente essencial para o
progresso econômico das sociedades modernas, a ampliação da infra-estrututa
energética do Brasil, tanto na sua produção como no consumo exige grandes
investimentos. Tendo em vista que os empreendimentos energéticos são normalmente
implantados pela iniciativa privada, os autores defendem a presença do governo no
planejamento das atividades a fim de atender a uma série de requisitos (dentre eles, o
atendimento às demandas da sociedade por mais e melhores serviços de energia, o
estímulo da participação de fontes energéticas sustentáveis e a utilização do
investimento em energia para geração de empregos).
Já Lucon e Goldemberg (2007) acreditam que o país apresenta uma posição
confortável em relação a outros países do mundo. No entanto, criticam os investimentos
em energias fósseis feitos recentemente, uma vez que o país deveria focar em sua
“vocação natural” para as hidrelétricas. Para eles, uma vez investidos (pelos
empreendedores) os recursos necessários para o reassentamento adequado das
populações, criação e manutenção de unidades de conservação, os grandes
empreendimentos hidrelétricos podem e devem ser viabilizados – argumento bastante
alinhado com a ecoecifiência. “É preciso procurar um equilíbrio entre os interesses
contrariados dos que são atingidos pelos empreendimentos e os interesses de populações
muito maiores dos que se beneficiam deles a grandes distâncias do local onde o
empreendimento é implantado” (GOLDEMBERG e LUCON, 2007). Para eles, são
ainda fundamentais as políticas governamentais para o desenvolvimento de novas
tecnologias, conservação, uso e geração eficientes de energia.
Tolmasquim (2007) apresenta uma prospectiva do setor energético
brasileiro para o período 2005-2030. Nesse contexto, ao tratar da necessidade de
políticas estratégicas no Brasil para obtenção de vantagens comparativas no panorama
energético mundial, o autor acredita que o Estado tenha papel essencial especialmente
em relação a barreiras de mercado e a conflitos de interesses entre os vários agentes que
160
atuam nesse mercado. Para ele, essa ação vem sendo claramente empreendida na
direção da redução da pobreza e da ampliação do acesso à energia às camadas sociais
menos favorecidas. Além disso, a preocupação com os impactos ambientais da
produção e do uso da energia, em especial as emissões de gases e seus efeitos sobre o
clima do planeta, tem reforçado “a necessidade de regulação e da definição de políticas
especificamente orientadas para assegurar a sustentabilidade do desenvolvimento
econômico, o que decerto exige planejamento e ação governamental” (TOLMASQUIM,
2007:69).
Problematizando a questão da ciência e tecnologia, Baumgartem (2002)
reflete sobre as relações entre conhecimento científico, planificação e sustentabilidade.
Sua abordagem pode ser considerada fortemente híbrida entre a concepção da sociedade
do risco e do ecodesenvolvimento, na medida em que dá centralidade à questão dos
riscos e incertezas produzidos pela tecnociência, ao mesmo tempo em que argumenta
pela necessidade – dada a inserção periférica do Brasil na sociedade do conhecimento –
de um planejamento emancipatório da C&T no país que se oriente ética e politicamente
por uma democracia radical e sirva de instrumento para a busca de uma sustentabilidade
econômica e social.
Já os artigos de Ferreira (2000), Brito e Ribeiro (2002), Jacobi (2005) e
Leite (2007) mantêm afinidades com a concepção da sociedade do risco. Partindo de um
diagnóstico da situação das cidades na sociedade do risco e das potencialidades de uma
democracia ecológica – como formulada por Beck – Ferreira (2000) analisa
empiricamente a internalização de indicadores político-institucionais de sustentabilidade
nas políticas públicas, em oito cidades de médio e grande porte do sul e sudeste do
Brasil, através da análise da formulação e implementação de políticas públicas com
características socioambientais. Além de realizar uma reflexão teórica sobre política,
reflexividade, sustentabilidade e políticas públicas locais no Brasil, a autora aponta para
o fato de que, ainda que a situação da América Latina e Brasil seja bastante preocupante
em relação à temática da urbanização, algumas cidades brasileiras vêm buscando
consolidar instrumentos institucionais e legais associados à sustentabilidade.
Brito e Ribeiro (2002) discutem os desafios colocados às teorias sociais
modernas, gerados pela crise nas teorias do planejamento e do desenvolvimento diante
da conformação de uma sociedade do risco. Os autores argumentam que a discussão
161
sobre sustentabilidade, ainda que cheia de imprecisões, evidencia uma crise teórica e
prática característica da sociedade do risco e colabora para o reconhecimento dos
“limites” do projeto da modernidade. Para eles, se a questão da sustentabilidade não
necessariamente aponta para a superação desse projeto, sua emergência indica que o
caráter dominante do desenvolvimentismo e dos pressupostos da modernidade passam a
ser questionados.
No caso de Jacobi (2005), também inspirado no arcabouço da sociedade do
risco e da modernidade reflexiva, o foco recai sobre as práticas e possibilidades de uma
educação ambiental emancipatória que seja caracterizada pela emergência do saber
ambiental (e sua complexidade), pelo pensamento crítico e pela politização da questão
ambiental. Para ele, o desafio político-ético da educação ambiental, apoiado no
potencial transformador das relações sociais, está estreitamente vinculado ao processo
de fortalecimento da democracia e de uma cidadania ambiental, que mobilize alunos e
professores para a questão da sustentabilidade, em seu significado mais abrangente.
Já Leite (2007), ainda que não se refira diretamente à teoria da sociedade do
risco, dá centralidade à questão dos riscos e às controvérsias na discussão científica
sobre transgênicos. Para ele, o impasse no debate público só poderá ser desfeito por
iniciativa de setores da comunidade científica que não se encontrem prisioneiros do que
ele chama de pesquisa descontextualizada, sem espaço para investigar questões de
sustentabilidade socioambiental e analisar os riscos da produção e consumo de
transgênicos à saúde humana e ao ambiente.
O artigo de Cavalcanti (2004) tem afinidades com a concepção da condição-
estacionária. Ainda que não utilize o termo cunhado por Daly, sua reflexão (crítica à
economia neoclássica) é fortemente marcada pela defesa da economia ecológica como
uma economia política da ecologia e como a ciência privilegiada da sustentabilidade.
Já os trabalhos de Oliveira (2008) e Foladori (2003) mantêm afinidades com
a concepção do ecossocialismo. Defendendo a emergência de um auto-controle nos
âmbitos individual, social e científico para uma nova “autonomia da ciência”, Oliveira
(2008) acredita que esse processo não pode ocorrer nem num contexto capitalista, nem
num socialismo clássico (modelo soviético).
Foladori (2003) analisa algumas tentativas de medição da sustentabilidade
que emergiram recentemente. Para ele, há uma tendência de os indicadores focarem na
162
questão intergeracional da sustentabilidade e ocultarem as contradições sociais
intrageracionais. Ainda que reconheça a importância dos desenvolvimentos teóricos da
economia ecológica, o autor acredita que ela não questionou de modo radical os
instrumentos neoclássicos para avaliar o capital produzido pelo homem, simplificando e
reduzindo a importância das causas sociais da degradação ambiental. Por conta da
centralidade que o autor dá ao tema das contradições sociais e suas relações com o
modo de produção capitalista, acredito que sua abordagem pode ser considerada
alinhada com a concepção do ecossocialismo, ainda que esse termo não seja por ele
utilizado.
Por fim, o trabalho de Lima (2003) foi considerado “indeterminado” porque,
apesar de realizar uma discussão teórica sobre a questão da sustentabilidade, não foi
possível estabelecer afinidades com nenhuma das concepções construídas. Para o autor
existem duas matrizes interpretativas que polarizam o debate atual – uma bem afinada
ao discurso oficial e outra mais vinculada a uma proposta multidimensional de
sustentabilidade. Apesar de autor claramente mostrar preferência pela segunda, essa
matriz parece transcender as concepções estabelecidas nesta análise, evidenciando, mais
uma vez, suas debilidades.
9.4 Comentários
163
Figura 11 – Distribuição de artigos da amostra por concepção expressiva
164
econômicas atuais, desconsiderando, por exemplo, riscos e limites do desenvolvimento
tecnológico.
Nos artigos de ciências humanas e sociais aplicadas há uma heterogeneidade
mais significativa. Ainda que uma parcela considerável dos artigos pareça estar também
alinhada com as concepções da ecoeficiência e ecodesenvolvimento, parte dos artigos
tem uma visão crítica das definições do relatório Brundtland, mostrando as incertezas,
contradições ou até mesmo a impossibilidade de se alcançar a sustentabilidade com a
reprodução das estruturas socioeconômicas, instituições da modernidade contemporânea,
práticas produtivas e hábitos de consumo atuais. Nos artigos dessas áreas – como
poderíamos esperar – há também uma preocupação maior em abranger os aspectos
sociais, culturais e políticos da questão, mostrando a preocupação de tratar a
sustentabilidade como tema vinculado a questões como da democracia, risco,
desigualdades regionais, especificidades locais, instituições, ciência, etc.
165
utilização da quantificação de frequência de palavras e pelo discurso da objetividade.
Normalmente utilizado no campo da linguística e da comunicação, me propus a
experimentá-lo como ferramenta da sociologia do conhecimento.
Na medida em que propõe um método de análise sistemático dos textos, a
análise de conteúdo mostra-se útil para traçar panoramas de discussões, identificar
apropriações diferenciadas dos termos e tendências. No entanto, acredito que, pelo
menos no caso deste exercício intelectual, é preciso fazer algumas ressalvas. Em
primeiro lugar, muitos artigos mostram uma hibridez muito forte ou uma definição ou
utilização do termo pouco clara. Dessa forma, mesmo com o auxílio dos métodos de
análise de conteúdo, a classificação dos artigos depende de um esforço interpretativo
que, certamente, pode variar conforme o analista que se dispõe a fazê-lo. Em segundo
lugar, alguns dos indicadores construídos para caracterizar cada uma das concepções
continham um grau de imprecisão que complicou a análise. Por exemplo, associei à
concepção da ecoeficiência aqueles artigos que davam centralidade ao papel do
mercado, da tecnologia e da gestão na condução à sustentabilidade ou que privilegiavam
o aspecto da renda ou da ecoeficiência na produção. No entanto, é bem possível que
muitos desses artigos também pudessem ser considerados alinhados com a concepção
do ecodesenvolvimento, por exemplo, ainda que essa última tenha uma visão mais
crítica em relação a essas questões. Em terceiro lugar, acredito que a associação dos
artigos com as concepções construídas pode dar a falsa impressão de que, uma vez
sugerida uma afinidade, ter-se-ia como consequência que toda a argumentação de
determinada concepção pudesse ser diretamente vinculada a um artigo ou autor em
questão.
Por conta disso, acredito que uma leitura pouco crítica dos dados pode levar
ao reducionismo e, nesse sentido, as sugestões feitas a partir da análise de conteúdo
devem ser entendidas levando-se sempre em consideração os limites que o próprio
método impõe. Desse modo, ainda que considere válidos os indícios apontados nesta
pesquisa, acredito que aprofundamentos teórico-metodológicos em torno da análise de
conteúdo, discussões em torno de outros métodos semelhantes – como a análise de
discurso -, bem como a aplicação do método na análise empírica de outros temas e de
outras bases de dados podem auxiliar tanto para uma reflexão metodológica em torno da
166
análise sociológica da produção acadêmica, quanto para sua utilização como
instrumento da sociologia do conhecimento.
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
168
pela sustentabilidade depende somente de um aumento de conhecimento científico e
tecnológico do homem sobre a natureza.
No entanto, isso não quer dizer menosprezar o papel da ciência na busca
pela sustentabilidade. É certo que o caráter político da questão ambiental, mais do que
em outras questões sociais já consolidadas como da democracia, liberdade, justiça social
e etc, depende muito dos diagnósticos da ciência. Isso porque, numa visão
construcionista da questão, ainda que os problemas ambientais possam ter de fato uma
realidade em si, eles só são reconhecidos enquanto tais na medida em que a ciência e a
política sobre eles atuam. Provavelmente, durante a revolução industrial inglesa, o nível
da poluição em cidades como Manchester ou Londres atingiram patamares nunca vistos
até então. No entanto, ainda que possivelmente tenha surgido alguma movimentação
social e intelectual em torno dessa questão na época, ela não foi tematizada como um
problema ambiental propriamente dito.
Dessa forma, acredito ser um exercício um tanto anacrônico tentar acusar ou
defender Marx, Durkheim, Weber, entre outros pensadores, por terem ou não abordado
a questão ambiental em suas obras. Ao invés disso, pelo menos na ótica da sociologia
do conhecimento, é muito mais interessante nos indagarmos por que, naquele
determinado contexto sócio-histórico, a discussão ambiental não se tornou relevante
como aconteceu a partir da década de 1960. É claro que isso também não quer dizer que
possamos ignorar os inúmeros caminhos que a obra desses autores pode abrir para a
compreensão da relação entre ambiente e sociedade – homem/natureza – mas também
acredito que a discussão contemporânea sobre a questão exige a reflexão sobre os
próprios condicionantes de sua emergência, além de uma autêntica renovação do
pensamento (seja ele marxista, neoclássico, keynesiano, sociológico, ecológico ou
antropológico) que possibilite um diálogo interdisciplinar entre os diversos
conhecimentos disciplinares, perspectivas e estilos de pensamento, e também uma
cultura científica reflexiva, tanto nos domínios das ciências sociais, quanto no das
ciências ditas naturais.
Como argumentam Lúcia Ferreira (2001) e Leila Ferreira (2006), a
emergência de uma cultura interdisciplinar mostra que os olhares de certezas
construídos para ver a realidade são conflitantes entre si. “Certezas relacionadas com a
169
ciência, com a ética, ou com os sistemas sociais que hoje estão sendo desvendadas por
um profundo senso de questionamento” (FERREIRA, 2006:95).
Já de acordo com Sarewitz (2004), a natureza ou a realidade externa é tão
rica e complexa que pode suportar uma empreitada cientifica de enormes e
diversificadas perspectivas metodológicas, disciplinares e institucionais. Para ele, a
ciência apresenta esta riqueza, através de uma reunião de fatos organizados por uma
variedade de lentes disciplinares, de maneira que pode, legitimamente, suportar uma
série de interesses concorrentes, baseados em valores e posições políticas. Nesse sentido,
ainda que, como aponta Bourdieu (2001), o campo seja relativamente autônomo em
relação às pressões externas do todo social, é provável que, em muitos casos, essa troca
de influências seja central para o encaminhamento das disputas tanto em nível teórico
quanto político.
A análise empírica dos artigos da Base Scielo sugere que, no caso da
discussão sobre sustentabilidade, o discurso oficial do Relatório Brundtland tem
exercido grande influência no encaminhamento (inclusive científico) da questão. Mas,
por conta das limitações do próprio objeto empírico e também do método de análise de
conteúdo, acredito serem necessárias pesquisas mais abrangentes em torno desta
problemática. As maneiras como, de um lado, os contextos macro e microssociais
condicionam a produção de conhecimento científico sobre ambiente e sociedade e, por
outro, como esses conhecimentos são apropriados pelos atores sociais na defesa de seus
interesses e na luta política parecem apontar caminhos frutíferos para uma sociologia do
conhecimento da questão ambiental. Para isso, acredito que tanto os desenvolvimentos
teóricos de autores que pensaram ou têm pensado a relação ciência e sociedade, quanto
os daqueles que se debruçam sobre o tema ambiente e sociedade sejam fundamentais.
Ademais, me parecem fundamentais mais pesquisas empíricas que problematizem não
somente os conteúdos da ciência (inclusive das ciências ditas naturais), mas suas
relações com seus processos de produção.
Por fim, gostaria de refletir, à luz das análises propostas, sobre as duas
epígrafes escolhidas para guiar a leitura deste texto. A primeira é o já clássico conto de
um parágrafo do escritor argentino Jorge Luís Borges que fala sobre o “rigor na ciência”.
Nele, o narrador conta a história de um império em que a cartografia se desenvolveu a
tal ponto, que os cartógrafos fizeram um mapa do tamanho do próprio império e que
170
coincidia pontualmente com ele. A história de Borges retrata de modo trágico e cômico
não só a impossibilidade, mas também a inutilidade de uma ciência absoluta que tenha
captado todo e qualquer detalhe da realidade infinita.
No entanto, é certo que os diferentes mapas possíveis para tal Império
certamente enfatizam alguns aspectos em detrimento de outros e orientam caminhos e
ações diversas. É nesse sentido que a segunda epígrafe – de Pierre Bourdieu – se mostra
conveniente. Nela, Bourdieu trata da disputa interminável sobre a verdade do mundo e
sobre as interpretações sobre ele. No caso da discussão sobre sustentabilidade, não
somente são diversas as possibilidades interpretativas sobre a questão, mas também elas
são necessariamente parciais e em disputa.
É claro que dissertar sobre a parcialidade de todas as concepções de
sustentabilidade não quer dizer que não valha a pena continuar a defendê-las. No
entanto, a percepção dessa parcialidade, acredito, enfatiza a necessidade da diversidade
interpretativa, em contraposição à “tentação do profetismo” (BOURDIEU, 1973:41), do
pensamento dogmático e absolutista. Sendo assim, ainda que a análise científica seja
imprescindível para reflexão sobre o futuro do planeta e da humanidade – que, em
última instância, é do que tratam todas as concepções de sustentabilidade -, a questão é
necessariamente política e, por isso, intrinsecamente conflitiva. O problema é que a
validade de qualquer hipótese preditiva sobre a questão só poderá ser verificada num
futuro incerto, quando poderá ter sido tarde demais.
171
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
172
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Apêndice 1 – Lista de artigos sobre sustentabilidade levantados na base Scielo
Brasil (os artigos em negrito foram os selecionados como amostra).
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3. Almeida, Maria Valdenira Rodrigues de, Oliveira, Teogenes Senna de and Bezerra, Antônio
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4. Alves, José M. Brabo, Campos, José Nilson B. and Vieira, Vicente de P. B. Análise de
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7. Amade, Pedro and Lima, Hernani Mota de Desenvolvimento sustentável e garimpo: o caso
do Garimpo do Engenho Podre em Mariana, Minas Gerais. Rem: Rev. Esc. Minas, Jun 2009,
vol.62, no.2, p.237-242.
8. Andrade, Carlos Mauricio Soares de et al. Fatores limitantes ao crescimento do capim-
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9. Andrade, Carlos Mauricio Soares de, Valentim, Judson Ferreira and Carneiro, Jailton da Costa
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10. Aquino, Adriana Maria de and Assis, Renato Linhares de Agricultura orgânica em áreas urbanas
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11. Araújo, Juliana Sheila de and Sá, Maria de Fátima Pereira de Sustentabilidade da
piscicultura no baixo São Francisco alagoano: condicionantes socioeconômicos. Ambient. soc.,
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195
Apêndice 2 – Número de livros sobre sustentabilidade por ano de publicação
50
45
40
35
30
25
20 Quantidade de
15 livros por ano de
publicação
10
5
0
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Fonte: Dados coletados no mês de agosto de 2009 com base no levantamento de livros
sobre sustentabilidade realizado nas redes de biblioteca da USP, Unicamp e UNESP.
Foram consideradas apenas as obras de autores brasileiros, publicadas em português. As
palavras-chave utilizadas foram: “sustentabilidade”, “desenvolvimento sustentável” e
“ecodesenvolvimento”.
196