Pedro Doria. A Globalização quebrou
Pedro Doria. A Globalização quebrou
Pedro Doria. A Globalização quebrou
16 de outubro de 2021
A Era Industrial acabou, a Era Digital está nascendo — mas não está pronta. A solução do
problema passa por muitos caminhos. Um, evidentemente, é o fim da pandemia.
O meme circulou faz uma ou duas semanas no Reino Unido — o premiê Boris Johnson liga para
a rainha Elizabeth II e pergunta, como quem não quer nada. “A senhora dirigiu caminhões
durante a Guerra, não?” Elizabeth II trabalhou de fato, no esforço de Guerra, como mecânica de
caminhões. E Johnson está desesperado atrás de motoristas para a frota — há, na Grã Bretanha,
100 mil vagas abertas com ninguém que deseje preenche-las. O governo abriu um programa de
vistos temporários para atrair motoristas principalmente do Leste Europeu. Após duas semanas
apareceram vinte candidatos. O resultado mais visível da crise são as longas filas de carros para
abastecer nos postos de combustível. Derivados de petróleo estão em falta. Mas não é só lá. Em
agosto havia 40 navios cargueiros na fila para descarregar no maior porto dos Estados Unidos, o
de Los Angeles e Long Beach. Em setembro já eram 70. Agora em outubro os números pararam
de ser divulgados. É pouco. No mar próximo dos portos de Hong Kong e de Shenzen, na China, a
fila passa de cem navios. Nas contas do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil, o setor
deixou de exportar nos últimos meses US$ 500 milhões em grãos. Por falta de contêineres de
navio. No Vietnã, o principal centro produtor de roupas do mundo, as fábricas fecharam em
setembro após uma explosão de casos de Covid. A Apple anunciou que vão faltar iPhones 13 no
Natal — não há peças para fabricar e atender à demanda.
Os motivos são muitos mas podem ser reduzidos a três. Um deles é que a globalização deu certo.
Outro é a pandemia. O terceiro é que a infraestrutura do planeta não está preparada para uma
economia que se digitaliza rapidamente. As três questões são independentes mas se
correlacionam. Há uma tempestade perfeita em curso e as consequências são muitas. Em termos
macroeconômicos está gerando inflação porque há pouca oferta e muita demanda. E a demanda
não é só por produtos, é também por mão de obra que em muitas funções enfrenta escassez.
O mundo em contêineres
A dificuldade do método é que ele só funciona com eficiência de toda a cadeia. Os fornecedores
têm de ser tão ágeis quanto quem fabrica e o transporte de um canto para o outro exige precisão.
Pois o que passou a ocorrer de forma diferente, na última década do século 20, foi uma abertura
generalizada de mercados. Assim, a possibilidade de fabricar com qualidade em locais do mundo
que produziam por um custo muito mais baixo fez do método global. Os oceanos abriram para
um tráfego constante de navios levando matéria prima de um canto ao outro, para que em
fábricas fossem transformadas em peças que novamente eram colocadas em navios para que
em outras fábricas noutros países virassem produtos de novo colocados em navios e exportados
para os mercados em que seriam consumidos.
A história do rápido crescimento da China passa por este momento de transformação do mundo.
O país se especializou na fabricação de equipamento digital de ponta e, posteriormente, com o
dinheiro ganho investiu na formação de engenheiros para desenvolver sua própria tecnologia.
Mas também o crescimento bem mais tímido do Brasil, nos primeiros anos do século 21, passa
por aí — exportando matéria prima para a China, principalmente ferro, petróleo e a soja que
alimenta rebanhos.
Mais recentemente, algumas mudanças ocorreram que ajudaram a formar a crise. A primeira é
que a indústria de transporte marítimo se consolidou — hoje, dez companhias controlam 80%
do mercado. Outra é que estas empresas estão construindo navios cada vez maiores.
O resultado prático é que, com menos concorrência, as transportadoras passaram a ter poder
de ditar as rotas que seguirão e o momento em que saem e chegam. Isto quer dizer que estão
esperando mais para encher próximo do máximo cada navio. Os portos, porém, não foram
adaptados para descarregar estes navios gigantes.
Contêineres podem ser empilhados nos pátios de portos. Mas o problema não é apenas que
navios grandes demoram mais tempo para serem descarregados e que os contêineres neles
ocupam mais espaço nos pátios. O problema é também de escoamento. O número de pistas nas
estradas que saem dos portos, assim como o de trilhos de trem, também não foi ampliado. Não
bastasse, contêineres empilhados são mais difíceis de gerenciar. O caminhão chega para pegar
um destes, é preciso localizar onde está no pátio e, caso esteja na base de uma pilha, demora
mais para o guindaste separá-lo. Os navios aumentaram — o resto do sistema, não.
E aí bate na mão de obra. Em países como os da Europa, no Reino Unido o problema é mais
agudo, os motoristas de caminhão estão envelhecendo e não estão sendo substituídos. Os
salários, os benefícios, e o trabalho simplesmente não são atraentes o bastante para as novas
gerações. Nos EUA, impacto semelhante ocorre com os trabalhadores de portos. Há falta de mão
de obra e dificuldade de contratação.
O boom do digital
Em 2019, a indústria global do e-commerce vendeu US$ 3,3 bilhões de dólares em produtos, de
acordo com a Statista. No ano seguinte, o ano da explosão da Covid, vendeu US$ 4,3 bilhões. A
estimativa para este ano é de que cresça perto de outro bilhão. Números assim costumam ser
celebrados e identificados como reflexo de uma cultura digital que se expande rapidamente —
o que é verdade. O e-commerce cresceu. Mas o e-commerce também torna mais complexa toda
a logística de transporte que já estava naturalmente pressionada.
Quando uma grande cadeia de varejo vende celulares, seus executivos ordenam a compra de
grandes lotes que vêm da China ou doutro canto e distribuem as máquinas por um número
restrito de lojas pelo país. Mas quando um rapaz na periferia paulistana percebe que pode
comprar um smartphone turbinado por um site chinês, podendo parcelar e pagando menos, aí
a situação muda. Não são lotes de celulares que são vendidos — é um aparelho. Que é
empacotado, endereçado, e colocado com muitas outras unidades de produtos os mais diversos
num contêiner de miscelânea que chega ao Brasil para ser distribuído, um a um, não para uma
cadeia com número limitado de lojas. Mas cada unidade para um endereço residencial final.
Está acontecendo no Brasil como está acontecendo em todo o mundo. O volume de produtos
transportados aumentou e, cada vez mais, representam não apenas grandes lotes de um grande
comprador mas, também, unidades adquiridas por muitos compradores.
Este é um dos resultados da aceleração da cultura digital criada pela pandemia. Outro resultado
é que as pessoas estão pensando mais a respeito de suas vidas. Sobre o que querem para si
mesmas. Há um debate em curso, nos EUA e na Europa, a respeito de por que algumas indústrias
estão encontrando muita dificuldade de contratar. É o caso, nos EUA, da indústria de hotelaria e
restaurantes. Na Europa, a indústria de transporte de produtos. Alguns políticos conservadores
criticam os benefícios distribuídos durante a pandemia. Argumentam que muitos não querem
trabalhar porque estão recebendo dinheiro sem precisar sair de casa.
Mas não parece ser apenas isso. No Vale do Silício, engenheiros, desenvolvedores e designers
que recebem altos salários estão em choque com os gestores das companhias num debate sobre
o esquema de trabalho. As pessoas se habituaram a trabalhar em casa e não querem voltar para
o escritório. E, em muitos casos, estão dispostas a abrir mão do emprego porque estão
convencidas de que conseguirão trabalhar com a liberdade de poder definir os próprios horários
e o local do serviço noutros cantos. Há quem defenda que este não seja um fenômeno apenas
de gente com profissões bem pagas mas algo que atinja de forma mais generalizada muitos nas
novas gerações. A vontade de ter mais controle e flexibilidade sobre a própria vida.
É uma transformação cultural que o digital permite, que foi acelerada pela experiência da
pandemia, e que impacta diretamente os fluxos de produtos. Mais do que isso — o aumento da
demanda e o gargalo na oferta está gerando inflação por toda parte. Na Alemanha, pela primeira
vez desde a unificação do país, passou de 4% ao ano. No Brasil, em que o dólar vem sendo
mantido artificialmente alto, passou dos 10%. A Argentina já ordenou congelamento do preço
de produtos.
Como resolver?
A Era Industrial acabou, a Era Digital está nascendo — mas não está pronta. A solução do
problema passa por muitos caminhos. Um, evidentemente, é o fim da pandemia. Não sabemos
o quanto das mudanças de comportamento são definitivas ou temporárias. Talvez seja
necessário um ajuste salarial em determinadas profissões. Talvez baste a pressão das contas por
pagar para que estes empregos voltem a ser preenchidos. Ou talvez a solução passe por
reorganizar o trabalho — aumento do número de folgas em troca de menores salários, por
exemplo.
Não é só: inúmeros países já compreenderam que a próxima década é uma que exigirá pesados
investimentos em infraestrutura. Ampliar os portos que existem, erguer novos, melhorar a teia
de estradas de rodagem e de ferro pelos países. Estes gastos, fatalmente, não serão apenas na
ampliação mas também em sustentabilidade. As estruturas precisarão emitir menos carbono. E,
ao redor da infraestrutura física, inteligência artificial será cada vez mais empregada para tornar
os fluxos de idas e vindas mais eficientes. Um just in time aperfeiçoado.
Não basta — outro dos cálculos sendo feitos é de que a globalização precisa ser ampliada e
descentralizada. O Vietnã, por exemplo, está parado faz um mês por conta da variante Delta da
Covid. O surto lá tem razão de ser: de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde,
apenas 17% dos vietnamitas haviam sido vacinados com as duas doses até a última quarta-feira.
Há um mês este número não chegava a 4%. O Brasil, em comparação, já tinha 47% da população
plenamente vacinada na quarta.
É assim no mundo todo: países mais pobres têm tido dificuldades de obter vacinas enquanto os
mais ricos têm doses extras em estoque.
Esta dinâmica tem se repetido em toda a cadeia, em inúmeras indústrias, no último ano e meio.
É irônico, mas uma das características do processo de globalização é que ele concentrou a
manufatura num pedaço da Ásia. As próximas décadas provavelmente levarão ao aumento de
concorrência: uma oportunidade para a África e para a América Latina.
Esta é uma política que, no caso latino-americano, Washington gostaria de incentivar. Os EUA
precisam e desejam diminuir sua dependência da China. O principal obstáculo é que a cultura
econômica latino-americana é uma de mercados fechados e estas barreiras ao comércio exterior
dificultam a criação de grandes parques manufatureiros que possam competir com os de países
asiáticos.
Mas a oportunidade que está na mesa. Afinal, a globalização quebrou. O conserto é mais
globalização. (Publicado originalmente na newsletter do Canal Meio em 16/10/2021)