394 - Cultura Constitucional
394 - Cultura Constitucional
394 - Cultura Constitucional
FACULDADE DE DIREITO
CULTURA CONSTITUCIONAL
Belo Horizonte
2016
Raoni Macedo Bielschowsky
CULTURA CONSTITUCIONAL
Belo Horizonte
2016
Bielschowsky, Raoni Macedo [1985]
B587c Cultura constitucional / Raoni Macedo Bielschowsky.
- 2016.
Entretanto, PESSOA não deixa de lembrar que o poeta é um fingidor e por mais
solitários que sejam os caminhos, é de se saber que a solidão dessas empreitadas é
daquelas que só conseguimos cruzar com o suporte e apoio de pessoas queridas que,
mais que qualquer outra coisa, entendem desprendidamente essa passagem. Algumas,
por experiência, sabem bem como é difícil buscar por essa trajetória tão particular,
outras, no entanto, apenas compreendem que temos de percorrê-la e nos dão algum
amparo e aconchego, sem mais perguntas ou demandas. A todas elas só resta agradecer.
Faço-o, primeiro, a meu orientador o Professor Doutor José Luiz Borges Horta,
que tendo me conhecido ainda como aluno do primeiro ano de graduação, sempre me
instigou a pensar, me incentivou a seguir e me mostrou que posso ter meu próprio curso.
Acredito que essas são, possivelmente, três das mais importantes ações de um Professor
em nossas vidas, todas elas relacionadas ao permitir que nos formemos, que nos
conheçamos a nós mesmos, que nos tornemos aquilo que somos. Particularmente quanto
ao período de doutorado, agradeço por ter me recebido abrindo as portas da
Universidade Federal de Minas Gerais e, também, por ter me permitido ser livre em
minha pesquisa.
Agradeço, ainda, a alguns Professores que tive a felicidade de conviver e com eles
aprender no âmbito institucional. Destaco os Professores Joaquim Carlos Salgado,
Gonçal Mayos, Marcelo Cattoni de Oliveira, Adriana Campos, Karine Salgado, Renato
Cardoso, Rodolfo Viana Pereira e, muito especialmente, com admiração e amizade,
Ricardo Salgado.
Há ainda dois amigos que desde Natal e de São Paulo estiveram muito presentes
nesse caminhar. Luiz Felipe Seixas pelas prosas e pelo compartilhar permanente. E, de
maneira especial, a meu irmão Leo Arcoverde que sempre me tira o peso das coisas e
muitas vezes acredita em mim mais do que eu mesmo consigo fazê-lo.
Desde casa, se Dora significa dádiva, na minha vida tenho pelo menos duas, Dora
e Dorinha. A primeira, a Rainha do Frevo e do (Mara)catú, Dora Macedo Bielschowsky,
minha irmã mais do que querida, que me é tão importante e que tanto amo! A segunda é
Maria das Dores do Nascimento Gomes, Tia Dodora, que na dureza da vida é, sempre,
só riso e sorriso, só carinho e alegria.
A Gabriela Marinho, por mais que tente, não tenho como agradecer o suficiente
pela grande generosidade, pelo carinho, pela amizade, pela cumplicidade. Por ter me
suportado quando nem mesmo eu já me suportava. Por ser só incentivo e aconchego.
Por um amor que adoça a vida como Alfenim!
E, por fim, não posso deixar de falar de meus primeiros, melhores e maiores
professores. Minha mãe, Gorete Ribeiro de Macedo, e meu pai, Roberto Hugo
Bielschowsky. Curioso que minha irmã e eu nascemos com eles já Professores, os vimos
tornarem-se doutores e viverem a Universidade, portanto, desde muito cedo sempre
soubemos o quão importante isso foi para eles e para todos nós. Contudo, a maior
certeza que temos em tudo isso é de que suas vidas sempre tiveram como prioridade... as
nossas. A eles, não há palavras, não há como agradecer, não há o que fazer, até porque
provavelmente eles nem mesmo permitiram qualquer retribuição. Só espero um dia ser
algo parecido com o que eles são como professores, como pais e como pessoas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................. 1
1. CULTURA, POLÍTICA E DIREITO ............................................................................... 4
2. DIMENSÕES DA CULTURA CONSTITUCIONAL ....................................................... 10
3. PLANO DE TRABALHO ............................................................................................ 15
PARTE I - PASSADO
PARTE II - PRESENTE
RESUMO.................................................................................................. 375
1
A cultura é o que resta depois de se ter esquecido tudo
1
Essa frase é, indistintamente, atribuída a diversas personalidades, por vezes à escritora sueca
SELMA LAGERLOF (Prêmio Nobel de Literatura de 1909), por vezes ao escritor francês ÉMILE
HENRIOT e, ainda, ao político ÉDOUARD HERRIOT (primeiro-ministro da França por três vezes
entre 1924-1932). MIGUEL REALE, por sua vez, a atribui ao dramaturgo franco-romeno EUGÈNE
IONESCO.
2
HELLER, Hermann. Teoría del Estado. México: FCE, 1998, p. 48.
1
especialmente quanto ao Direito Constitucional e à perspectiva metodológica que
parece ser-lhe própria, é de se reconhecer que não é, exatamente, possível uma
abordagem “neutra”. Isso porque se trata, ele, de objeto e campo de investigação,
por excelência, jurídico-político, portanto, que pressupõe em sua análise a
subjacência e, mesmo, explicitação de valores e perspectivas quanto à
comunidade3. Também por isso, o objetivo de apresentar respostas pretensamente
únicas e definitivas não poderia ser exatamente o tom desta abordagem. Apesar
disso, naturalmente, almeja-se, em alguma medida, trilhar caminhos de
aproximação a (algumas) respostas a essas três primeiras indagações, relacionadas
ao fundamento, à validade e à eficácia do Direito Constitucional4.
3
OTERO, Paulo. Instituições políticas e Constitucionais I. Coimbra: Almedina, 2007, p. 16: “A
perspectiva metodológica de estudo do Direito Constitucional nunca é axiologicamente neutra,
antes tem sempre subjacente e revela na sua elaboração científica uma determinada pressuposição
de valores: o Direito Constitucional é o sector da ciência jurídica mais ideologicamente
comprometido”.
4
Essa tríade segue, de certa forma, uma recorrente estrutura tripartite comum à Teoria do
Direito, identificadas por MIGUEL REALE com os termos vigência, eficácia e fundamento (norma,
fato e valor), REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
Ela é vista, também, em BOBBIO como validade, justiça e eficácia: BOBBIO, Norberto. Teoria
da Norma Jurídica. 3 ed. Bauru: Edipro, 2005, pp. 45 e ss. Ou, ainda, em ALEXY como
legalidade conforme o ordenamento, eficácia social e correção material: ALEXY, Robert.
Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 15. Vale o destaque que,
apesar da tríade ser recorrente, ela não é necessária e o tratamento dado à relação entre essas três
dimensões varia muito de autor para autor. Em BOBBIO, por exemplo, essas esferas são um tanto
mais estanques e individualizadas; o mesmo não vale para a compreensão realeana que entende
por uma dialética entre essas dimensões, o que parece mais capaz de compreender a
complexidade do fenômeno jurídico.
2
filosófica, social, existencial. Falar de Constituição, por sua vez, é dizer da forma
jurídico-política mais amplamente difundida (ou, ao menos, pretendida), entre os
Estados na contemporaneidade, quanto à organização do político, ao quadro de
instituições, ao ordenamento jurídico, mas, especialmente, quanto ao discurso de
legitimação do poder estatal.
5
MEZEY, Naomi. Law as culture. The Yale Journal of Law & the Humanities, New Haven, v. 13,
p.35-67, 2001, p. 55: “law as culture might mean emphasizing the mutuality and endless recycling
between formal legal meaning-making and the signifying practices of culture, demonstrating that,
despite their denials and antagonisms, these processes are always interdependent”. Apesar de a
perspectiva ser interessante, ela acaba por avançar sobre um debate bastante direcionado ao
contexto norteamericano.
6
BARRETO DE MENEZES, Tobias. "Idéia do Direito" — Discurso proferido em colação de
grau na Faculdade de recife. In: SOUSA, Carlos Aurélio Mota de (org.). Antologia de famosos
discursos brasileiros. São Paulo: Logos, 1957, pp. 92-93. A passagem completa, na verdade, é ela
inteira muito bela: “É mister bater, bater cem vêzes, e cem vêzes repetir: o direito não é um filho
do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade. Serpens
nisi serpentem comederit, non fit draco, a serpe que não devora a serpe, não se faz dragão; a
fôrça que não vence a fôrça, não se faz direito; o direito é a força que matou a própria força”.
7
REALE, Miguel. Direito e Cultura. In: REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 3
ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 292-296.
3
tempo, informados e construídos na cultura e que pretendem expressar o sentido
de uma ordem justa8. Nessa medida, é importante ter-se em conta a politicidade da
Cultura, uma vez que ela é criação humana, projeto de mundo e de vida boa de
uma determinada comunidade, construída na história.
8
REALE, Miguel. Direito e Cultura, op. cit. p. 292: “O Direito, sob qualquer prisma que se
considere, é sempre uma expressão de ordem, mas de ordem a que é inerente uma
intencionalidade: a ser de ordem justa”.
9
MAYOS SOLSONA, Gonçal. Prologo - Cultura, Historia y Estado: pensadores en clave
macrofilosófica. In: MAYOS SOLSONA, Gonçal; COELHO, Saulo Pinto; GARCÍA
COLLADO, Francis (eds.). Cultura, historia y Estado: pensadores en clave macrofilosófica.
Barcelona: La Busca, 2013, pp. 7-24, p. 8: “‘Cultura’ es una palabra-mundo de máxima amplitud
pues no debemos olvidar que el género humano es claramente la especie cultural, lingüística,
simbólica por antonomasia. Todo en los humanos – incluso la naturaleza, la physis o su propia
vida – se da en un marco cultural, lingüístico, simbólico. Por tanto consideramos que la ‘cultura’
lo incluye en cierta manera todo, eso sí, conscientemente vinculado con la condición cultural y
lingüística humana. Es decir bajo el presupuesto ontológico-existencial (en sentido de Kant,
Hegel, Heidegger o Gadamer) de que los humanos solo podemos experimentar y conocer en la
medida que es mediatizado, asumido y construido cultural y lingüísticamente”.
10
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 29-30: “La conciencia que transforma con
sentido el mundo circundante, guiada por marcadas leyes ideales, pertenece, como algo
necesario, al ser peculiar del hombre. Esta naturaleza del hombre que sale y se destaca de lo
4
indivíduo recebe através da história várias marcas espirituais que, de tão
profundas, duram gerações e gerações. Nesse sentido, a Cultura, em sua
totalidade, é uma forma que se alcança, mantém e atua na formação das gerações,
sucessivamente:
meramente dado puede ser, para la historia natural, una variable, pero para la historia de la
cultura es una constante. Por otra parte, las realidades naturales y culturales que encuentra el ser
del hombre consciente transformador del mundo, y que condicionan su obrar en forma de leyes,
revelan también, aunque en medida muy diferente, una constancia histórico-sociológica, gracias a
la cual, precisamente, es posible la cultura”.
11
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 144-145.
12
GADAMER, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 9: “O conceito de
cultura paira numa indeterminação característica. Se eu fosse um poeta filosófico da categoria de
Platão, talvez não me fosse difícil escrever um diálogo em que Sócrates perguntasse a cada um de
nós o que é que realmente queria dizer com cultura. E todos continuaríamos, no fim, a dever
uma resposta, isto é, saberíamos todos que a cultura é algo que nos sustenta, mas nenhum de nós
saberia o suficiente para poder dizer o que é a cultura. Isso aponta para um problema profundo.
Conhecemo-lo a partir do nexo quase indestrutível entre cultura e crítica da cultura, entre orgulho
cultural e pessimismo cultural”.
5
de língua inglesa13, o que fez autores como KROEBER e KLUCKHOHN esmerarem-
se em compilar inúmeras definições da palavra14.
13
EAGLETON, Terry. A ideia de Cultura. 2 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 9;
WILLIAMS, Raymond. Palvaras-Chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo:
Boitempo, 2007, pp. 117-124.
14
KROEBER, A. L.; KLUCKHOHN, Clyde. Culture: a critical review of concepts and
definitions. Cambdrige: The Museum, 1952. Os autores dividem as definições em sete grandes
grupos: a) descritivas; b) históricas; c) normativas; d) psicológicas; e) estruturais; f) genéticas; g)
definições não sistemáticas que tratam por “incomplete definitions”.
15
TYLOR, Edward B. Primitive Culture: researches into the development of mythology,
philosophy, religion, language, art, and custom, v. I. 6 ed. Londres: Murray, 1920, p.1.
16
GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In:
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, pp. pp. 25-39, p.
25.
17
HORTA, José Luiz Borges; RAMOS, Marcelo Maciel. Entre as veredas da cultura e da
civilização. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, a. 58, n. 233, pp. 248-279, jul./dez. 2009, p.
258.
6
que, se apresentando de modo normativo, se colocam em uma objetividade
relativa.
18
GEERTZ, Clifford. O crescimento da cultura e a evolução da mente. In: GEERTZ, Clifford. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, pp. pp. 41-61.
19
REALE, Miguel. Direito e Cultura, op. cit., p. 293; REALE, Miguel. Lições preliminares do
Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2003: “‘cultura’ é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos
material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para
modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, das obras e
serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio
formando e aperfeiçoando, através da história como cabedal ou patrimônio da espécie humana”.
20
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”? In: HENSEL, Silke et al.
Constitutional Cultures: On the Concept and Representation of Constitutions in the Atlantic
World. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012, pp. 21-42, p. 27:
“institutions and social practices become what they are only through their location and anchoring
within a nexus of cultural meaning”.
21
Sobre a processualidade histórica da experiência jurídica: SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de
justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do Direito como maximum ético.
Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
7
espectro de significados possíveis, acenando, por exemplo, para o, ainda
polissêmico e complexo, conceito de cultura política.
22
BARNAND, F. M. Culture and political: development Herder’s suggestive insights. The
American Political Science Review, v. 63, n. 2, pp. 379-397, jun. 1969.
23
ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney. The civic culture: political attitudes and Democracy in
five nations. New Bury Park: Sage Publications, 1989.
8
significados sociais de uma comunidade, portanto, é basicamente a cultura que
distingue uma comunidade da outra24.
24
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”? op. cit., pp. 25-26.
25
MICHELS, Ralf. Legal Culture. Disponível em:
http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3012&context=faculty_scholarship.
MICHELS ainda elenca: “Others understand culture as certain modes of thinking; they speak of
episteme or mentalité (Pierre Legrand), legal knowledge (Annelise Riles) and collective memory
(Niklas Luhmann), law in the minds (William Ewald) or even cosmology (Rebecca French,
Lawrence Rosen). In addition, an anthropologically influenced understanding exists of legal
culture as the practice of law (Clifford Geertz)”.
9
particular26. Nesse contexto, haverá, inclusive, quem fale de uma cultura jurídica
interna (que diz respeito à atitude dos atores oficiais e operadores do Direito) e de
uma cultura jurídica externa (relacionada à atitude da comunidade em geral para
com o Direito)27.
2. Dimensões da Cultura
Cultura Constitucional
26
COTTERRELL, Roger. Comparative Law and Legal Culture. In: ZIMMERMANN, Reinhard;
REIMANN, Mathias (eds.). Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University
Press, 2006, pp. 709-37. Sobre consciência jurídica: SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça
no mundo contemporâneo, cit., passim.
27
MICHELS, Ralf. Legal Culture, cit., p. 2: “More useful is the division between internal and
external legal culture introduced by Lawrence M. Friedman (but already visible in Savigny).
Internal legal culture describes the attitude towards law of legal actors such as judges and lawyers;
external legal culture describes the attitude towards law of the general population. Legal
sociologists frequently consider the external legal culture as more important; doctrinal lawyers, by
contrast, focus more on internal legal culture. The more autonomous law is within the society, the
more important internal legal culture becomes in comparison to external legal culture”.
10
uma unidade cultural, integrante e integradora, dos cidadãos e da comunidade
política.
28
Esse, por exemplo, é o sentido que se vê empregado em: BARROSO, Luís Roberto. Curso de
Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. 5 ed. São Paulo Saraiva, 2015, p. 177. Utilizando a expressão “cultura política
occidental” nesse sentido, em várias passagens: LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento
constitucional (aproximación al estudio del sentir constitucional como modo de integración
política). Madri: Reus, 1985, p. 92.
11
cidadãos, os agentes públicos (!) e a sociedade em geral têm conhecimento do
próprio projeto jurídico-político que a constituição lhes propõe. Assim, afiguram-
se mais claramente a importância aos direitos e deveres fundamentais, ao
compromisso com a igualdade, os instrumentos básicos de cidadania etc. Ainda se
relacionando a esse sentido, está a questão da opinião que a sociedade, os diversos
indivíduos e grupos sociais têm da própria Constituição e, em alguma medida, do
sentimento que têm com relação a ela. Isso importará, naturalmente, em uma
politização da discussão a seu respeito, trazendo colorações ideológicas, chegando,
como aponta FERREIRA DA CUNHA, ao domínio do opinativo.
29
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política: poder constituinte, constituição
material e cultura constitucional. Lisboa: Quid Juris, 2012, pp. 30-32. FERREIRA DA CUNHA
tratará, basicamente de três sentidos: “do conhecimento constitucional, grau de informação
(sentido 1), outra coisa é matear as opiniões sobre a constituição (sentido 2), e outra ainda
(sentido 3) é encarar a interiorização constitucional popular, ou por um dado grupo da sociedade,
considerando elementos positivos os preceitos ou os princípios de uma constituição propriamente
dita”, p. 31.
30
É nesse sentido também, que acaba por trabalhar: MIRANDA, Jorge. Notas sobre cultura,
Constituição e direitos culturais. O Direito, Lisboa, a. 138, n. 4, 2006. E tratando a todos esses
sob a ideia de dinamismo constitucional: COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral
da Constituição: da fundamentação da validade do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, pp. 378-81.
12
relacionadas ao sentido da constituição31. Portanto, ao contexto cultural em que se
desenvolve a interpretação do sentido da constituição, não apenas em sua
interpretação oficial, mas, aproximando-se da ideia de Constituição como um
processo aberto, que se relaciona à compreensão de que a própria norma
constitucional, construída na interpretação, dependerá, para além do texto, do
contexto (cultural) em que se encontra32.
31
SIEGEL, Reva B. Constitutional Culture, Social Movement Conflict and Constitutional Change:
the Case of the de facto ERA (2005-06 Brennan Center Symposium Lecture). California Law
Review, Berkeley, v. 94, n. 5, pp. 1323-1419, out. 2006, p. 1325.
32
HÄBERLE, Peter. Métodos y principios de interpretación constitucional. Un catálogo de
problemas. Revista de Derecho Constitucional Europeo, Granada, a. 7, n. 13, pp. 379-411,
jan./jun. 2010; HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura. Madri:
Tecnos, 2000, pp. 39-51.
33
HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura, cit., pp. 36-37;
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição; contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição.
Porto Alegre: SAFE, 1997.
34
HENSEL, Silke. Constitutional cultures in the Atlantic World during the “Age of Revolutions”.
In: HENSEL, Silke et al. Constitutional Cultures: On the Concept and Representation of
Constitutions in the Atlantic World. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012,
pp. 3-16; MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 5 ed.
São Paulo: RT, 2010, p. 43.
35
ROSENFELD, Michael. Constitutional identity. In: ROSENFELD, Michael; SAJÓ, András.
The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford Press University,
2012, pp. 756-776; ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject: selfhood,
citizenship, culture and community. Nova York: Routledge, 2010.
13
premissas do constitucionalismo e as identidades culturais locais, formando
engenharias, contextos e sentidos constitucionais próprios. Nessa linha, várias são,
por exemplo, os sistemas de governo possíveis de serem conciliadas com o
constitucionalismo, havendo formas políticas particulares de presidencialismo,
parlamentarismo e semipresidencialismo. De mesmo modo, variadas e diferentes
são as leituras e abordagens a respeito de questões muito caras ao
constitucionalismo, como o tema da tolerância e, mesmo, da tolerância para com
os intolerantes, o do aborto, do tratamento de minorias etc. É nessa esteira que
HÄBERLE também trata da constituição como peça cultural, para além do texto
jurídico ou do sistema normativo de regulação, considerando-a como expressão
“de un estado de desarrollo cultural, instrumento para la autorepresentación
cultural de un pueblo, reflejo de su patrimonio cultural y fundamento de sus
esperanzas”36.
36
HÄBERLE, Peter. Métodos y principios de interpretación Constitucional, op. cit., p. 384. Não
deixa de ser significativa a referência e remição expressa que faz, nessa passagem, a SMEND,
HELLER e HESSE, dentre outros.
14
3. Plano de Trabalho
15
expectativas para o futuro enquanto projeto normativo que se pretende eficaz e
efetivado.
37
SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional, cit., p. 47
38
STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer Staatsrechtslehre – ein
abgeschlossenes Kapitel der Wissenschaftsgeschichte? Steiner: Stuttgart 2001, p.5.
16
constitucional. Não raro diz-se que aquele foi o momento de fundação e
fundamentação do Estado Social, marcado pelo reconciliar entre Estado e
sociedade e que, nessa esteira, em boa medida, trouxe para dentro do círculo e do
jogo jurídico-constitucional grande parte das disputas político-sociais antes
colocadas à parte do Direito.
39
Em que pesem as imensas diferenças, debates e tensões entre as figuras e as ideias de HANS
KELSEN e CARL SCHMITT, muitas vezes tidos como antípodas – como, de fato, desde uma certa
17
Essa exposição inicial terá como principal intuito apresentar algumas das
questões inerentes à Teoria da Constituição desde seu berço, nas quais subjaz boa
parte da discussão a respeito da realidade constitucional até a
contemporaneidade41.
perspectiva o foram – parece possível identificar como ponto comum a ambos serem leitores de
HOBBES, o que lhes implicou posições não dialéticas a respeito da Teoria da Constituição.
40
Essa dicotomia que acompanhamos, desta forma, é sugerida em: CALDWELL, Peter. Popular
sovereignty and the crisis of german constitutional Law: the theory and practice of Weimar
constitutionalism. Durham: Duke University Press, 1997 (eBook).
41
VEGA GARCÍA, Pedro de. Apuntes para una historia de las doctrinas constitucionales del siglo
XX. In: La ciencia del derecho durante el siglo XX. México: UNAM, 1998, pp. 3-44.
18
quadrante ocidental42 que se organiza, constitui e é constituído, daquilo que aqui
tratamos enquanto cultura do constitucionalismo. Cultura em toda sua
complexidade, logo, envolvida e envolvente de dimensões pretérita, presente e
futura, no que importa compreender que há uma relação dialética entre
legitimidade, validade e eficácia, intrínseca à própria realidade constitucional e à
história do constitucionalismo.
42
Em sua multiplicidade comum, sua “pluralidade em unidade”, de algum modo, como CHARLES
TAYLOR anota: “The contemporary Atlantic world is seen as a culture (or a group of closely
related cultures) with its own specific understandings of, for example, person, nature, and the
good”, TAYLOR, Charles. Two Theories of Modernity. Public Culture, Durham, v. 11, n. 1, pp.
153-174, inverno 1999.
43
SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1985, p. 63; HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 208; RENAN,
Ernst. ¿Qué es una nación?. Buenos Aires: Hidra, 2010.
19
legitimidade e validade da ordem constitucional. No entanto, a constituição como
“ordem jurídica da comunidade política” coloca-se com pretensão de eficácia
social, isto é, com a força normativa que lhe é característica, particularmente, a
partir do Estado Democrático de Direito. Antes de mais, as normas
constitucionais são normas jurídicas e, assim, dotadas de imperatividade. De toda
sorte, em razão de certas circunstâncias, elas possuem algumas características
muito peculiares que lhes colocam em situação excepcional em relação às demais
normas do ordenamento, em especial, no que se refere à sua efetiva concretização,
eficácia e efetividade. Assim, elas dependem de algo para além das sanções e dos
instrumentos coercitivos classicamente tidos em conta pelo Direito. É desde aí que
se propõe a aproximação da relação entre as dimensões da legitimidade e da
eficácia da ordem constitucional, com particular atenção ao elemento vital da
cultura constitucional.
Essa relação mútua entre sentir-se uma ordem legítima (porque justificada)
e sua eficácia/efetivação, de certo modo, trata de um reconhecer de uma
determinada estrutura valorativa imanente no ethos da comunidade, portanto, de
uma consciência. Ao mesmo tempo, é uma vontade, enquanto fator proativo e
vital necessário a essa estrutura para a eficácia e força normativa constitucional. É,
também, um tanto de patriotismo, na medida em que é uma estrutura normativa a
20
ser defendida e revigorada, capaz de produzir uma força integradora. E, ainda, é
sentimento por ser uma ordem axiológico-normativa, não apenas racional ou
coercitivamente cumprida, mas, também sentida e interiorizada como própria da
comunidade e de seus cidadãos, como uma identidade constitucional da
comunidade. É, portanto, mais amplamente bem reconhecida como uma cultura
de constituição que impulsiona o movimento e o viver de uma cultura
constitucional, expondo aquilo que o conceito de Cultura tem a capacidade de
compreender nas dimensões pretérita, presente e futura44.
21
soberano dentro do jogo democrático e da (re)colocação da questão da soberania
em seu efetivo lugar: no Político.
22
Parte I
Passado
O Poder emana do povo
- Mas, para onde ele vai?
BERTOLD BRECHT
CAPÍTULO 1
DO DIREITO DO ESTADO À TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:
ALGUNS ANTECEDENTES PARA COMPREENDER A LUTA
LUTA PELO MÉTODO
DE WEIMAR
46
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política: uma relação difícil. Lua Nova, São Paulo, n. 61,
pp. 5-24, 2004; FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la Antigüedad a nuestros días.
Madrid: Trotta, 2001, p. 149.
47
Ainda que a expressão Methodenstreit esteja muito relacionada à (disputa) luta pelo método na
Teoria da Constituição na República de Weimar, ela também é bastante ligada à importante
disputa travada no mundo germânico, particularmente entre as décadas de 1880 e 1890,
conhecida como Methodenstreit der Nationalökonomie que teve como principais antípodas a
Escola Austríaca – “dedutiva” e “axiomática” –, liderada por CARL MENGER, e a Escola
Historicista alemã – “histórica” e “institucional” – capitaneada por GUSTAV VON SCHMOLLER.
De fato, esta disputa influenciou fortemente todo o curso das ciências sociais aplicadas e suas
23
comunidade política e do Estado, de seu desenvolvimento, vida e dinâmica. Desde
aí, fomentou-se o questionamento, especialmente, a respeito das condições de
possibilidade de conhecimento da realidade estatal, do ordenamento jurídico e,
particularmente, da constituição.
Não que, antes disso, não tenha o Ocidente proposto vários arranjos e
possibilidades para a compreensão e para a aproximação à questão da
comunidade política ou do Estado. Muito pelo contrário, em grande medida, essa
tem sido a pauta de boa parte das principais reflexões sobre o humano desde o
milagre grego, estando presente de modo perene durante toda a Antiguidade, o
Medievo, a Modernidade, chegando ao tempo presente. Entretanto, sua
observação a partir das lentes da Teoria da Constituição coloca-se desde
perspectiva uma jurídico-política determinantemente marcada pelo
constitucionalismo e pelo Estado de Direito. Ela surge como fruto do momento
de crise do formalismo jurídico e do modelo liberal de Estado de Direito;
portanto, coloca-se em momento de certa “reconciliação” entre Estado e
sociedade, o que implicou em alguma juridificação dos próprios processos
políticos e das relações sociais, de modo geral48.
raízes remontam a uma longa história filosófica. Aqui, quando falarmos indefinidamente
Methodenstreit, estaremos nos referindo à luta pelo método do Direito Constitucional na
República de Weimar. Esta também é às vezes tratado como Richtungsstreit. Richtung pode
significar caminho, direção, orientação, tendência, escola de pensamento. SMEND, por exemplo,
utiliza esta expressão para ser referir ao debate weimariano: Die Vereinigung der Deutschen
Staatsrechtlehrer um der Richtungsstreit. In: SMEND, Rudolf. Staatsrechtliche Abhanlungen:
und andere Aufsätze, 4 ed., Berlim, Ducker & Humblot, 2010, pp. 620-635. Entretanto, essa
expressão também é utilizada em outras áreas, tratando de outras discussões não necessariamente
ligadas ao Direito Constitucional ou à Teoria do Estado. É exemplo disso o embate relacionado à
disputa ocorrida, também na Alemanha dos anos 1920, sobre o papel e sentido das bibliotecas
públicas, a Richtungsstreit im Bibliothekswesen, em que polarizavam duas escolas: a Alte
Richtung, liderada por ERWIN ACKERNECHT, e a Neue Richtung, de WALTER HOFMANN.
Sobre a luta pelo método da economia: BOSTAPH, Samuel. Methodenstreit. In: KALDIS,
Byron (ed.). Encyclopedia of Philosophy and Social Science. Thousand Oaks: SAGE
Publications, 2013, pp. 603-605.
48
Juridificação aqui é utilizado no sentido dado por: NOBRE, Marcos; RODRIGUEZ, José
Rodrigo. “Judicialização da política”: déficits explicativos e bloqueios normativistas. Novos
Estudos, São Paulo, n. 91, pp. 5-20, 2011, p. 18: “Utilizamos juridificação aqui no sentido mais
largo e amplo de ‘tradução para o código do direito’, de tal maneira que todos os diferentes
sentidos apontados por Teubner possam ser reunidos sem se excluírem mutuamente”, o que,
portanto, não se confunde com judicialização. Não raro atribuísse a utilização original do termo a
OTTO KIRCHHEIMER, que, na verdade, o propõe de modo crítico, no contexto que da acusação
que a esquerda alemã fazia à “domesticação” da luta de classes pelo Direito: RODRIGUEZ, José
24
Ao iniciar-se esse trabalho com um remontar dessa disputa, principiando
pelo momento que imediatamente lhe antecede, pretende-se apontar para como o
rompimento com percepções e respostas formalistas e/ou positivistas possibilitou
uma mais apurada compreensão das dificuldades e das complexidades do
fenômeno jurídico-político.
Rodrigo. Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann.
São Paulo: Saraiva, 2009, especialmente, pp. 129-168. Para uma visão mais ampla do conceito,
inclusive, destacando mais firmemente sua ambiguidade como algo positivo e negativo:
TEUBNER, Günther. Juridification: concept, aspects, limits, solutions. In: TEUBNER, Günther
(ed.). Juridification of Social Spheres: a comparative analysis in the areas of labor, corporate,
antitrust and social welfare law. Berlim: Walter de Gruyter, 1987, pp. 3-48.
49
CARVALHO, Orlando de. Caracterização da Teoria Geral do Estado. Belo Horizonte:
Kriterion, 1951, pp. 21 e ss.
50
STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer Staatsrechtslehre, cit., p. 5.
Naturalmente, a questão do conceito e sentido do Estado é, ela mesma, anterior a esse momento.
Para não nos estendermos muito, basta apontar para a criação da Ciência Política por
MAQUIAVEL, ainda no século no século XVI, e a construção magna de HEGEL no século XIX. Já
a discussão sobre as formas de vida política é perene e visceral ao Ocidente, bastando apontar
para a República de PLATÃO, para a Política de ARISTÓTELES e todos os que lhes seguiram no
curso da história ocidental. Contanto, o que se aponta aqui, acompanhando STOLLEIS, é que esse
é um privilegiado momento crítico e de crítica sobre essas temáticas a partir de um despertar para
as questões epistemológicas de natureza jurídico-política.
25
Foi basicamente nesse contexto weimariano que nasceu a Teoria da
Constituição, propriamente dita, e se delinearam mais claramente suas principais
correntes que até hoje influenciam e pautam este campo, quer aquelas ligadas ao
positivismo normativo, quer aquelas ligadas ao decisionismo ou, ainda, às posições
marcadamente não positivistas e dialéticas51. Parafraseando NELSON SALDANHA –
ele tratando da sobrevivência de certas ideias na Filosofia – talvez não seja demais
afirmar, quanto à continuidade das questões na Teoria da Constituição, que ela se
dá “mais talvez por conta das perguntas do que das respostas”52.
51
HÄBERLE, Peter. La constitución como cultura. Anuario Iberoamericano de Justicia
Constitucional, Madri, n. 6, pp. 177-198, 2002, p. 182: “«Sobre las espaldas de los gigantes»: esta
expresión, en mi opinión, es particularmente válida para definir, en la Ley Fundamental, la
relación con «Weimar» de los tratadistas alemanes de Derecho público desde 1949 hasta nuestros
días. Así como los famosos años veinte aportaron a Berlín un florecimiento todavía hoy admirado
en el arte y en la ciencia, de la misma forma los publicistas de Weimar, en sus controversias, han
planteado las preguntas y ofrecido las respuestas, que hoy se consideran «clásicas», y frente a las
cuales nosotros todavía somos «enanos sobre las espaldas» de aquellos gigantes, lo que no excluye
que nosotros, que seguimos sobre sus espaldas, podamos, alguna vez, ver más allá de lo que ellos
lo hicieron”. Também: LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la
doctrina del derecho político de la República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp.
259-295.
52
SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 3: “A
filosofia se desdobra continuamente, incorpora temas e problemas, adapta-se aos tempos (...). E
sempre a sobrevivência de certas idéias, mais talvez por conta das perguntas do que das respostas.
Certamente que as transformações históricas afetam as perguntas tanto quanto as respostas, mas
estas são sempre mais precárias: as respostas duram menos do que as perguntas, e geralmente
atingem nível menos fundo”.
53
Sobre o destaque histórico da Constituição de Weimar sobre a Constituição Mexicana de 1917:
PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais
sociais: A preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do
constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917. República de Informação
Legislativa, Brasília, a. 43, n. 169, pp. 101-126, jan./mar. 2006.
26
revolucionários, liberais, modernos, burgueses, que, em boa medida, revelavam a
carta de intenções de revoluções vitoriosas54. Ainda que diferenças marcantes
possam ser identificadas ao comparar essas duas experiências jurídico-políticas55,
ambas são filhas de seu tempo e refletem seu momento histórico56.
54
É de se destacar que, particularmente em França, em que pese a primeira Constituição do novo
regime ser de 1791, várias constituições, cartas constitucionais e governos transitórios sucederam-
se em um bastante curto período. Indicando alguns motivos para essa instabilidade gerou seis
Constituições entre1791 e 1804: DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos:
da idade média ao século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 26. Indo além, inclusive, apontando
para o fato de, nem mesmo, o número de constituições francesas na história ser um consenso na
história constitucional: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A revisão da constituição francesa
de 1958. A permanente procura de uma constituição modelar. Cuestiones Constitucionales,
Cidade do México, n. 3, pp. 121-165, jul./dez. 2000. Tratando do conturbado período pós-
revolucionário francês: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do
constitucionalismo. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013, pp. 134 e ss.
55
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2006, p. 64:
“Sin embargo, América precedió a Europa en la constitucionalización del poder y el motivo se
halla, una vez más, en la ruptura revolucionaria con el poder tradicional. Ciertamente, la
responsabilidad de esa ruptura no puede atribuirse a la burguesía en su acepción continental,
puesto que este concepto no es transferible sin reparos a la sociedad americana, carente de
estamentos; pero, en sentido no corporativo, puede considerarse burgués al conjunto de la
América da aquella época. Esta hipótesis encuentra apoyo en la circunstancia de que los
habitantes blancos no sólo era políticamente libres sino también, en su gran mayoría,
económicamente independientes y que esta independencia la habían obtenido de su actividad
económica, no de empleos públicos o rentas inmobiliarias”; em sentido similar, DALLARI,
Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos, cit., p. 38.
56
A primeira das diferenças que se pode mencionar é exposta no fato de a Constituição de 1787,
efetivamente, fundar e constituir o recém-nascido Estado Norte-Americano, enquanto a
Constituição Francesa de 1791, de certa forma, refunda o já existente Estado Francês. Nesse
sentido, JACOBSON e SCHLINK apontam que na tradição jurídico-política anglo-americana a
Constituição antecede e, mesmo, funda o Estado, enquanto na tradição jurídico-política
continental o Estado antecede a Constituição. Isso se deve a uma série de fatores e características
próprios de cada experiência. Também nessa linha, enquanto, oficialmente, a França vive sua
décima quinta Constituição (vigente desde 4 de outubro de 1958), dentre tantas outras (vinte e
duas) constituições que chegaram a ser escritas (entre oficiais e não adotadas), os Estados Unidos
seguem com sua mesma constituição desde 1787 à qual fora acrescentadas vinte e sete emendas.
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (eds.). Weimar: a jurisprudence of crisis.
Berkeley: University of California Press, 2002, p. xi. Em outro texto, SCHLINK, comentando a
construção da identidade constitucional nos termos de ROSENFELD, destacará, inclusive, que a
identidade alemã é, em muito, tributária de um Staatsvolk, de uma certa identidade estatal, que é
diferente, quer da identidade nacional, quer da identidade constitucional: SCHLINK, Bernhard.
The constitutional subject and its identity: my german experience. Cardozo Law Review, Nova
York, v. 33, n. 5, pp. 1869-1873, 2012, pp. 1871-1873. Com posição diferente, entendendo que é
marca de todas as Constituições liberais constituírem um novo Estado: GRIMM, Dieter.
Constitucionalismo y derechos fundamentales, cit., pp. 45 e ss.
27
igualdade formal, eliminando da organização estatal os privilégios nobiliárquicos57.
Fizeram-no, de certo modo, reproduzindo a divisão entre Estado e sociedade tão
típica dessa modernidade. Nessa visão, o Estado deveria tratar a todos de forma
“igual”, enquanto a sociedade civil deveria organizar-se autonomamente. Com isso,
de alguma maneira, pode-se dizer que as revoluções burguesas romperam com um
status quo social estático – regido por padrões nobiliárquicos, de honra e de
sangue – e, afirmando-se frente esses poderes históricos, instauraram outro
modelo social, também estático, agora regido pelos valores burgueses58. Ou seja, as
constituições liberais não programavam mudanças ou transformações políticas ou
sociais, mas, basicamente, consolidavam e cristalizavam as mudanças ocorridas e
conquistadas no seio social e pelos movimentos revolucionários59.
57
Naturalmente, nem mesmo esse processo de reconhecimento de uma igualdade formal ocorreu
de forma estanque e imediata, simples ou direta. Num primeiro momento, e durante todo o
século XIX, muitas foram as previsões de votos censitários e condições à participação política dos
cidadãos, como se vê na vedação ao voto feminino, que só veio a ocorrer no mundo em 1893 na
Nova Zelândia, para não se falar da base escravagista da economia americana até a Guerra de
Secessão americana.
58
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Alianza Editorial,
1999, pp. 55 e 56, “Este cambio se explica por la distinta función que tenía que cumplir la teoría
del Derecho constitucional, pues una vez asentado y asegurado el régimen liberal burgués, tal
teoría ya no precisaba – como en los tiempos en que el nuevo régimen pugnaba por afirmarse
frente a los poderes históricos – ser un medio de conocimiento al servicio de una transformación,
al modo de la primitiva doctrina constitucional fundada en el iusnaturalismo y tan mezclada con
estimaciones políticas, sino simplemente un medio de explicación de una realidad cuyo
contenido aparecía como indiscutible y definitivamente afirmado. Ahora bien, es claro que toda
evidencia en el contenido conduce, en principio, a un resaltamiento de la forma; toda evidencia
en lo substancial, a una doctrina desustancializada”.
59
É importante destacar que os contextos revolucionários Francês e Americano, em vários
sentidos, são bastante diferentes um do outro. Ainda que tenha havido significativa mudança
social em ambas as realidades, de fato, os principais fronts de batalha política das duas revoluções
eram significativamente diferentes. Enquanto a Revolução Francesa opunha-se forte e
explicitamente aos poderes históricos e aos privilégios nobiliárquicos, a revolução norte-
americana, na verdade, encontrava seu principal motivo e bandeira revolucionária na
emancipação da economia norteamericana em relação à exploração inglesa, marcadamente
personificada na instituição do parlamento. Tais diferenças decorrem e implicam em inúmeros
fatores históricos, que passam pelo formato do Estado Inglês, suas instituições e organização
jurídico-política em comparação ao Estado absolutista francês; pela estrutura e organização
econômica, já, significativamente, mais moderna na Inglaterra que no Reino da França; pelo fato,
também, de a revolução norteamericana tratar-se de uma guerra de independência e a Revolução
Francesa situar-se, justamente, em solo francês; pela estrutura colonial adotada para as colônias
norteamericanas e, particularmente, sua estrutura social, dentre tantos outros.
28
das constituições, ao passo que o jusnaturalismo ligado ao movimento
revolucionário francês foi esgrimindo-se como uma ideologia legitimadora das
reivindicações burguesas. Esse fato foi acentuado pela preponderância da
perspectiva jusprivatista e pelo intenso movimento de secularização do Estado e,
mesmo, da sociedade, que conduziu à formalização dos conceitos e à tecnicização
(tecnificação) das estruturas constitucionais. O que na Alemanha foi visto,
especialmente após a primavera dos povos no annus mirabilis de 1848, com a
resposta conservadora da própria burguesia60.
60
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura? In: HELLER, Hermann. Europa y el
Fascismo. Granada: Comares, 2006, pp. 117-135; LUCAS VERDÚ, Pablo. Reflexiones en torno
y dentro del concepto de Constitución. La Constitución como norma y como integración política.
Revista de Estudios Políticos, n. 83, jan./mar. 1994.
61
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. La constitución de Alemania. Madri, Aguilar, 1972, p.
XXIII, texto originalmente publicado em 1800-02.
62
BAVARESCO, Agemir; KONZEN, Paulo Roberto. Cenários da liberdade de imprensa e
opinião pública em Hegel. Kriterion, Belo Horizonte, 2009, vol.50, n.119, pp. 63-92.
29
contrarrevolucionárias conservadoras capitaneadas pelos junkers63 que restauraram
os privilégios nobiliárquicos.
63
Os Junkers eram latifundiários de origem aristocrática, mas de modos e estilo de vida
absolutamente diferentes dos nobres franceses ou dos Whigs britânicos, também proprietários de
vastas terras. Ao contrário destes, que se caracterizavam por serem classes ociosas, que viviam a
maior parte do tempo longe de suas propriedades, na corte francesa ou em Londres, mantendo-
se a partir do recolhimento de tributos e dívidas feudais ou de rendas de suas propriedades,
respectivamente, os Junkers eram, praticamente, “capitalistas agrários”, mais assemelhados
àqueles que exploravam as pradarias americanas. Apesar das raízes aristocráticas, eles possuíam
as virtudes de eficiência e o valor do trabalho, até mesmo mais fortemente marcantes que na
classe burguesa alemã do século XIX. Essas virtudes eram chave para o processo de
modernização do Estado alemão e, inclusive por esse motivo, formaram a base de sustentação da
sociedade alemão, sendo aliados da corte dos de HOHENZOLLERN. TAYLOR, A. J. P. The
Course of German History: A survey of the development of German history since 1815. Taylor
and Francis e-Library, 2005 (eBook), pp. 20 e ss.
64
ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. Para ELIAS essa incorporação desses valores militares e
nobiliárquicos pela sociedade alemã, como um todo, permaneceu marcando seu habitus mesmo
após 1918 e arraigando-se na sociedade ainda quando da República. Para o autor, algumas dessas
características possibilitaram o regime nazista.
30
aristocracia65, contribui para que esta permanecesse como establishment até 191866.
Isso fez com que o próprio processo de modernização do Estado tedesco ocorre-
se sobre o lastro de um establishment “não burguês” e, em sua maioria, pouco
urbano. Com isso, a estruturação e consolidação do constitucionalismo alemão
ocorrem, também, em um momento histórico e desenho social bastante próprio e
bem diferente dos “momentos fundadores”, estadunidense e francês. Isso
implicou uma necessária e anunciada ruptura constitucional quando da queda da
kaiserinato e da instauração da República, tardiamente, já no século XX.
65
TAYLOR, A. J. P. The Course of German History, cit., pp. 21 e 22: “The Junkers were
hardworking estate managers, thinking of their estates solely in terms of profits and efficiency,
neither more nor less than agrarian capitalists. This economic characteristic had a unique political
result. Everywhere in Europe the Crown was striving to make the organization of the State more
efficient; therefore, despite the King’s personal preference for the manners and culture of the
nobility, he had to turn for political backing to the capitalist middle classes, who alone possessed
the virtues of efficiency and hard work. But these were the very virtues possessed by the Junkers
and not possessed to the same degree by the German burghers of the eighteenth century. The
German trading classes had abandoned all attempt to keep up with the capitalist triumphs of
England, Holland, or even France. Instead they prided themselves on their civic liberties and on
the high level of their culture as citizens of the world. These were not assets likely to appeal to
Frederick II. But the Hohenzollerns had long ago stamped out the last flickers of aristocratic
liberties; and the Junkers had neither the leisure nor the ability to develop a taste for culture – to
go to Berlin was merely to leave the threshing floor for the barrack-room. Thus in Prussia alone
in Europe, a reforming Crown could carry out its reforms through the agency of great landowners;
and the greater the efficiency of the Prussian State, the more it needed the services of the Prussian
Junkers. It was no paradox, but an inevitable development, that Frederick, the most efficient of
the Hohenzollerns, first made absolute the Junker monopoly of civilian and military office. The
State created by Frederick II combined two qualities which were elsewhere opposites. It had, on
the one hand, the unscrupulous authoritarianism, the disregard both of humanity and of principle,
everywhere characteristic of rule by a privileged upper class; on the other hand, a striving after
efficiency and improvement, a rigid devotion to the balancing of accounts, elsewhere associated
with the rule of a reforming middle class. The Prussian Junkers, one might say, were politically in
the Stone Age; economically and administratively they looked forward to the age of steel and
electricity”, TAYLOR, A. J. P. The Course of German History, cit., pp. 21 e 22.
66
ELIAS, Norbert. Os alemães, cit., passim.
67
Antes da Constituição de 1919, a Alemanha teve a Constituição do Império Alemão
(Verfassung des Deutschen Reiches) também conhecida como Constituição Imperial de
Bismarck (Bismarcksche Reichsverfassung) de 1871, que unificava o Império Alemão sob a
chefia dos Reis da Prússia, da casa de Hohenzollern; além dela, houve a tentativa frustrada de um
Império Alemão unificado em sucessão ao Sacro Império Romano-Germânico através da
Constituição de Frankfurt de 1849 (Frankfurter Reichsverfassung, FRV), também conhecida
como Constituição da Igreja de São Paulo (Paulskirchenverfassung), cujo nome oficial também
era, a exemplo de sua sucessora e mais famosa, Constituição do Império Alemão (Verfassung des
Deutschen Reiches).
31
1919 que a República, a despersonificação e desvinculação da razão de Estado da
vontade do Imperador, a questão da soberania popular e da igualdade, tomaram
maior dimensão e tratamento constitucional. Era, também, um momento em que
a Europa central vivia uma avalanche de acontecimentos e transformações, na
sequência da primeira guerra mundial (1914-1918), da Revolução Russa (1917) e
da própria Revolução Alemã (1918).
1.1.
1.1. CENÁRIO JUSPUBLICISTA ALEMÃO DE FINS DO SÉCULO
SÉCULO XIX INÍCIO DO
SÉCULO XX
68
A tradução de Staatsrecht por Direito do Estado ou por Direito Político ou mesmo por Direito
Constitucional não é óbvia, nem precisa. Segundo JACOBSON e SCHLINK, apenas a partir da Lei
Fundamental de 1949 o termo Staatsrecht passou a representar um campo do direito e de ensino
jurídico na Alemanha, tendo sido gradualmente substituído pelo termo Verfassungsrecht. Em que
pese essa progressiva substituição, ainda hoje os cursos e manuais de Direito Constitucional, via
de regra, ainda apresentarem-se como Handbuch des Staatsrechts, bem como, mantem-se o
nome da Associação de Professores Direito do Estado Alemão como Vereinigung der Deutschen
Staatsrechtslehrer. Relatam, também, que a escolha entre chamar o “Direito que rege o Estado”
como Staatsrecht ou como Verfassungsrecht ainda tem uma importante ressonância na política
alemã, sendo o primeiro termo tendencialmente preferido pela direita e o segundo pela esquerda.
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience. In: JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (eds.). Weimar: a
jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 2. Assim, aqui
utilizaremos a tradução literal para nos referimos a Staatsrecht: Direito do Estado.
32
O Direito Público, de um modo geral, e o Direito Constitucional,
especificamente, em comparação ao Direito Privado, desenvolveu-se tardiamente.
Em toda a Europa, mas particularmente na Alemanha, sua consolidação definitiva
ocorreu apenas no século XIX o que lhe legou uma forte influência do espírito
liberal da época e, por conseguinte, de todos os avatares do Direito Privado que
pautaram a jusprivatista desde o Direito romano, passando pelos publicistas
medievais, os renascentistas, a Escola Histórica, a jurisprudência dos conceitos, a
jurisprudência dos interesses, o liberalismo, a jurisprudência dos valores etc. Nesse
sentido, LUCAS VERDÚ atenta que, por ser o Direito, particularmente, o Direito
Constitucional um setor cultural, “el constitucionalista no puede ignorar esto”69.
69
LUCAS VERDÚ, Pablo. La lucha contra el positivismo jurídico en la República de Weimar: la
teoría constitucional de Rudolf Smend. Madri: Tecnos, 1987, p. 75. Registramos o especial
agradecimento pela atenção e solicitude do Professor Doutor GONÇAL MAYOS SOLSONA que,
muito gentilmente, como lhe é habitual, viabilizou o acesso à obra.
70
CAENEGEM, Raoul C. van. Uma introdução histórica ao direito constitucional ocidental.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 65.
71
Um ano antes do Tratado de Verdun, em 842, Carlos, o Calvo, e Luís, o Germânico – também
filhos de Luís I e consagrados reis da Frância Oriental e da Frância Ocidental, respectivamente –
assinaram o Juramento de Estrasburgo (Sacramenta Argentariae) – considerado o primeiro texto
em francês antigo, também escrito em alto-alemão antigo e em latim – que selava uma aliança de
ambos contra seu irmão Lotário I, a fim de conseguirem a divisão do Império. A Lotaríngia era
um longo reino que se localizava entre os outros dois, que posteriormente viria a se tornar,
majoritariamente, Alemanha. Seu nome decorre de seu soberano Lotário I, o neto de Carlos
Magno, filho de Luís I, o Piedoso. Além de territórios da Alemanha, a Lotaríngia também
compreendia terras que hoje pertencem a Itália, França, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O
reino foi dissolvido em 870 com o Tratado de Meersen.
33
“feudalização”72. Depois disso, uma retomada para um poder centralizado só se
dará em França durante o século XII, enquanto no mundo germânico esse
processo ocorrerá apenas vários séculos mais tarde. Em que pese esse fluxo, a
tensão entre esses dois lados foi se reproduzindo ao longo da história e os
episódios da concorrência pela centralidade e preponderância do poder político e
cultural do continente são reiteradas.
72
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: volume 2 Formação do Estado e Civilização. Rio de
Janeiro; Zahar, 1993, pp. 23 e ss. Fragmentação que num primeiro momento, curiosamente, foi
até mais intensa na porção francesa que na porção germânica.
73
Território que no original Tratado de Verdun pertencia ao Reino da Lotaríngia (Lothringer), de
Lotário (Lothar), portanto, da Lorena.
34
regime. Dessa forma, não é exagero afirmar que essa busca por mais segurança
jurídica não fora apenas uma exigência política, mas, também, uma demanda
econômica74. De fato, muito mais que uma renovação do conteúdo do direito
(civil) em si, o movimento de codificação em França significou uma mudança no
formato, no modo de organização do Direito e suas fontes, a partir de um
processo de formalização do universo jurídico, já no início do século XIX, com o
robustecimento da legalidade e a ideia da lei como expressão da vontade geral75.
Ainda assim, é possível dizer com JOHN KELLY que o racionalismo que
influencia o Código de Napoleão não é presente exatamente em seu conteúdo. As
fontes imediatas utilizadas por seus autores foram, basicamente: o direito comum
francês do século XVIII, preponderantemente, o direito consuetudinário em sua
forma anotada (particularmente o Coutume de Paris); o direito romano (erudito),
especialmente desde a sistematização de DOMAT; as três grandes ordenações reais
de 1731 a 1747; e, ainda, de forma complementar, alguma jurisprudência dos
74
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão,
dominação. 6ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 50.
75
Não deixa de ser curiosa a observação de JOHN M. KELLY que, apoiado em RENÉ DAVID e
HENRY P. VRIES, descreve que “Na França, embora fosse a pátria do Iluminismo do século
XVIII, o papel desempenhado pelo direito natural e pela razão pura na construção do código
civil foi extremamente modesto. Este, quando finalmente surgiu em 1804, revelou-se amplamente
composto pelo direito antigo – isto é, a combinação de antigos costumes germânicos da região
norte da França, do direito romano (parte dele na forma que tinha recebido nos códigos
visigóticos) e do direito canônico, cada um predominando em seus próprios setores do sistema.
Houve muito pouca inovação; e, onde houve, o código ‘não aponta nem sanciona sistemas
teóricos totalmente novos; o rompimento com as regras e ideias pré-revolucionárias foi menos
claro do que se esperava’. A razão foi que os que tinham redigido o código eram em sua maioria
homens na faixa dos sessenta anos, que tinham crescido e recebido sua formação profissional
num tempo mais recuados do século XVIII, sob o antigo regime; para eles, ‘a razão escrita era o
direito que sempre tinham conhecido’. Não obstante, embora a prática da codificação fosse
conservadora, como tinha sido na Áustria, a atmosfera em que foi levada a cabo ainda sofria a
pesada influência da doutrina de um direito natural baseado na razão. Repetidas saudações ao
direito da natureza e da razão vieram de oradores na Convenção Nacional, enquanto o artigo de
abertura do projeto do código civil, publicado no Ano VIII da Revolução (1799), declara que
existe uma lei universal e imutável, a fonte de todas as leis positivas: não é outra senão a razão
natural’. Por essa data, contudo, a desilusão e o ceticismo induzido pelo curso da Revolução já
tinham, mesmo na França, começando a esfriar o ardor pela razão que havia alimentado o
movimento codificador”, KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, pp. 347-348. Em sentido um tanto diferente, WIEACKER
entende que forma e conteúdo, não apenas do Code civil, mas de todo movimento de codificação
oitocentista europeu eram bastante influenciados pelo jusnaturalismo racionalista, WIEACKER,
Fraz. História do Direito Privado Moderno. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 365 e
ss.
35
parlamentos franceses, especialmente, do de Paris76. Portanto, o conteúdo do
Code civil não era, exatamente, revolucionário e/ou criado ex nihilo. No entanto,
sua concepção e estrutura sistemática, formal e racional, esta sim é especialmente
moderna77. Foi nesse caminho que se constituiu e fortaleceu a Escola da Exegese,
fruto desse impulso objetivista e neutral(izador), que buscava retirar do aplicador
da lei qualquer margem de subjetividade e discricionariedade, através de um
grande apego à palavra da lei78.
76
CAENEGEM, Raoul C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pp. 8 e 9. Ainda que o autor aponte que o tom geral do código ser
nitidamente conservador, ressalta que: “Embora o antigo direito fosse o elemento mais
importante do Code civil, não era intenção de seus autores restabelecer a ordem jurídica do
regime derrubado e abandonar os avanços conseguidos com a Revolução. Pelo contrário,
numerosos princípios que derivavam das idéias da Revolução e do Iluminismo e eram
considerados socialmente benéficos foram incorporados em sua obra legislativa”.
77
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, cit., p. 231.
78
Nesse sentido, MARGARIDA LACOMBE CAMARGO destaca: “A atividade dos juízes, na França,
então comprometidos com o Antigo Regime, seria controlada pelo atendimento severo e restrito
aos termos da lei”, CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação:
uma contribuição ao estudo do direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 66. Também
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Coimbra:
Almedina, 2012, pp. 400 e ss. HESPANHA ressalta que “apesar da imagem legalista que se criou
desta escola, os juristas que lhe correspondem oscilam entre a fidelidade aos novos códigos e uma
substancial adesão ao jusnaturalismo que dominava na segunda metade do século XVIII. Logo no
discurso de apresentação do projeto do Código Civil ao Conselho de Estado, Jean-Etienne-Marie
Portalis salienta que, afinal, o novo código não seria mais do que a redução a artigos das
aquisições de gerações de juristas que, possuidores de uma especial capacidade de reflexão sobre
o direito e da autoridade que daí provinha, tinham podido sondar na razão natural as melhores
máximas para regular a sociedade” p. 404. Para mais aprofundamentos sobre a Escola da
Exegése: BONNECASE, Julien. La Escuela de la Exegesis em Derecho Civil. Tradução José M.
Cajica Jr. Puebla: José M. Cojica, 1944.
79
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno, cit., p. 400, sobre a Alemanha de
inícios do século XIX: “Aqui não existia qualquer monarquia central; as antigas estruturas da
sociedade e um florescimento cultural desviavam as pessoas – com exceção das que viviam nas
grandes capitais políticas – da acção social para o «poetar e pensar» no sentido mais estrito das
palavras. Na verdade, também na Alemanha, sobretudo depois da legislação napoleónica, uma
parte da elite tinha os olhos postos na França; e quando, depois das guerras de libertação, a
36
essa característica fez com que houvesse uma “fuga” da ideia de monopólio
jurídico-político do Estado, mais ligada à tradição nacional, resultando na
valorização de formas tradicionais e espontâneas de organização política, como
eram as antigas formas comunitárias de vida, as comunas e os concelhos
medievais. Além da fragilidade e, em alguns momentos, inexistência das formas
modernas de Estado Nacional no mundo germânico (e na península itálica) do
início do século XIX, havia outra considerável dificuldade posta naquele espaço à
forma de Estado, nacional e uno, que era, em França, bem simbolizada pelo
sucesso do Código: “seu universalismo cosmopolita e ‘desnacionalizador’ e o seu
artificialismo”80.
Alemanha pareceu, por um momento, estar pronta para uma democracia nacional unificada, esta
elite pensou que o caminho estava livre para uma Constituição comum a toda a Alemanha e para
um Código Geral que fosse, não decretado, mas elaborado por toda a nação. Mas o que se
passou foi que estas forças foram imediatamente subjugadas pela restauração dos Estados
territoriais e forças ao caminho «caminho interno» de uma renovação do direito a partir de uma
consciência jurídica histórica e científica, pois a restauração das dinastias tradicionais da queda de
Napoleão fez abortar a oportunidade de um integração democrática do Estado alemão
unificado”.
80
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 409.
81
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 410.
37
dos Costumes82 – a admissibilidade de seus postulados materiais naturalizáveis,
condicionando-os às situações de quaisquer opções éticas83.
82
A primeira parte da Metafísica dos Costumes, na tradução brasileira da obra, é intitulada
Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. No entanto, na tradução lusitana do
livro de WIEACKER vê-se a referência a Fundamentos metafísicos da Teoria do Direito. Essa, na
verdade, é a tradução literal de Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre, título original da
Parte I da obra. KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Tradução Clélia Aparecida
Martins. Petrópolis: Vozes, 2013.
83
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno, cit., pp. 401 e 402.
84
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., pp. 413 e ss.
85
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997,
21.
86
SAVIGNY, Friedrich Carl van. Metodologia jurídica. Buenos Aires: Depalma, 1994, p. 37. Por
traz dessa primazia há subjacente uma questão político-cultural da sociedade alemã que é o papel
de destaque que os professores universitários exerciam na sociedade alemã, desde meados do
38
exatamente ao modo jusracionalista, mas a partir de reflexões absolutamente
abstratas, a partir da indução desde as máximas do direito positivo87. Nessa ordem,
para LARENZ, é definitivamente com PUCHTA que se apontou o caminho para um
sistema lógico “no estilo de uma «pirâmide de conceitos», decidindo assim a sua
evolução no sentido de uma «Jurisprudência dos conceitos formal»”88.
Desde PUCHTA, seguido por uma série de juristas que se sucederam até
WINDSCHEID, foi-se realizando, gradualmente, a transição entre os ideais
metodológicos do começo da Escola Histórica até o positivismo acadêmico e
jurídico, de modo mais pronto e completo, no que STOLLEIS define como
transição na Metodologia no Direito Civil89.
século XVIII, que será novamente abordado mais adiante. Sobre essa cultura, por todos,
RINGER, Frank K. O declínio dos mandarins alemães: a comunidade acadêmica alemã, 1890-
1933. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
87
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., pp. 415 e 416: “Rudolf v.
Jhering distingue claramente estas duas fases do trabalho do jurista. A primeira fase, a que chama
‘jurisprudência inferior’, consistiria na ‘ligação imediata à forma com que o direito aparece na lei,
graças a uma relação puramente receptiva em relação às fontes’ (‘Unsere Aufgabe’, 1857, em
Rudolf v. Jhering, la lotta per il diritto e altri saggi, Milano, Giufrfrè, 1989, 7). A partir daqui,
desenvolver-se-ia a ‘jurisprudência superior’ que produziria, por destilação e síntese da matéria-
prima antes obtida, ‘uma matéria absolutamente nova’ (ibid.), o conceito. A função dos conceitos
é, ao mesmo tempo, (i) facilitar a apreensão do direito, já que eles se tornam sintéticos e
intuitivos, e (ii) tornar possível a produção de novas soluções jurídica por meio do
desenvolvimento conceitual, do chamado ‘poder genético dos conceitos’”.
88
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, cit., p. 23.
89
STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914. Oxford: Berghahn Books, 2001, p.
315.
39
aprioristicamente titulares de um direito originário dessa liberdade. Relativista (e
formalista), por pretender superar os grandes sistemas ético-políticos naturalistas,
entendendo que o poder deveria se limitar, apenas, a atribuir a forma de
organização política que melhor garantisse a liberdade individual (liberalismo).
Desse modo, essa postura pretendia desprender-se de qualquer conteúdo
axiológico, conferindo ao saber jurídico o papel de “observar, descrever e
construir sistemas jurídicos existentes, sem ter a pretensão de decidir sobre os
valores de cada sistema”90.
Vê-se, portanto, a força das ideias liberais que, pelo menos de duas
maneiras diferentes, espraiaram-se na cultura jurídica europeia demarcando
fortemente a modernidade. O espírito desse ímpeto formalizante, marcado por
reforçar e possibilitar valores liberais, modernos e, ao menos tradicionalente,
burgueses, influencia e chega de maneira marcante ao cenário juspublicista
alemão91.
90
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 418. Para maior
aprofundamento sobre a Escola Histórica Alemã, remetemos a WIEACKER, Franz. História do
Direito Privado Moderno, cit.
91
CARVALHO, Orlando de. Caracterização da Teoria Geral do Estado, cit., p. 39;
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 418; BERCOVICI, Gilberto.
Soberania e Constituição, cit., pp. 242 e ss.; KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in
Late Wilhelmine Germany. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.). Weimar: a
jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002 pp. 41-50; COSTA, Piero. O
Estado de Direito: uma introdução histórica. In: ZOLO, Danilo; COSTA, Piero (org.). O Estado
de Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 131.
92
A mesma observação quanto à tradução de Staatsrecht por Direito do Estado é válida aqui.
Neste caso com o agravante de Lehre também não ser uma palavra cuja tradução automática por
ciência, teoria ou doutrina seja simples, especialmente, quando se atenta ao fato de que em
alemão ainda existem os termos Wissenshaft e Theorie.
40
destacada de questões extravagantes de natureza histórica, política ou, mesmo,
jusprivatista93.
93
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford: Oxford University Press, 2010, p.
191.
94
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 42;
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., pp. 13
e ss.
95
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 244; STOLLEIS, Michael. Public
Law in Germany, 1800-1914, cit., p. 316. As duas principais obras de GERBER sobre Direito
Público são: Über öffentliche Rechte (1852) e Grundzüge eines System des deutschen
Staatsrechts (1865).
96
EMERSON aponta ainda, no fim dessa lista, o nome de OTTO MAYER.
41
garantisse certeza, estabilidade e “neutralidade”, favorecia uma formulação de
“pureza dogmática”, assegurada pela utilização de uma lógica formal e pela
supressão de elementos metajurídicos97.
97
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 244.
98
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 16.
99
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 14.
100
MURKENS, Jo Eric Khushal. From Empire to Union: conceptions of German Constitutional
Law since 1871. Oxford: Oxford Press University, 2013 (eBook), p. 14: “His system consists of
concepts and rules that illustrate, rather than derive from, the legal order (the 1871 Imperial
Constitution and properly enacted statutes). The state is the highest personality within the legal
order, whose personal will (Staatsgewalt) equated to the right to rule (Herrschen): Staatsgewalt is
‘the will-power of an ethical organism conceived in personal terms’ (von Gerber 1880: 19). The
role of constitutional law (Staatsrecht) was to determine the structure and legal limits of state
power (von Gerber 1869: 1–8, 190–214): ‘Staatsrecht is the theory of state power’ (ibid.: 3).
Gerber’s theory is best described as ‘legal scientific’ (rechtswissenschaftlich) positivism (Friedrich
1986: 205–6)”.
101
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany. New Haven, Yale University
Press, 1928, p. 33.
42
e original em um sentido juspublicista. Para GERBER, a soberania não era
ilimitada, era apenas um atributo do Estado e com ele não se confundia. O que
caracterizava o poder do Estado soberano era o fato de não haver qualquer outro
poder de Estado externo e superior que o determinasse, pois, para essa
concepção, o que distinguia o poder da vontade do Estado era, justamente, o
poder de determinar. Assim, a personalidade do Estado foi colocada no coração
do Direito Público102.
102
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany, cit., pp. 51-56.
103
Bismarck, nascido no ano de 1815, em Schönhausen, cumulava, de forma até um pouco
paradoxal, algumas das características mais típicas daquela sociedade prussiana e germânica. Pelo
lado paterno, era filho de um oficial militar, Junker, de uma família muito antiga da região do
marquesado de Brandemburgo, enquanto do lado materno, descendia de uma família não
aristocrata de autos funcionários e professores universitários. Estudou direito na Universidade de
Göttingen, onde foi membro da Burschenschaften, uma das famosas corporações estudantis. Para
mais sobre Bismarck: TAYLOR, A. J. P. Bismarck: The Man and the Statesman. Nova York:
Vintage, 1967.
43
liberdade perante o Estado, que na liberdade no Estado, como, inicialmente, era o
projeto do liberalismo político104.
104
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 42.
Nesse sentido é muito interessante a construção de ELIAS ao articular o fato dessa forte demanda
burguesa por unificação ter sido realizada pela monarquia prussiana, fortemente militarista e
baseada em um establishment aristocrático. Para ELIAS, esse fato fez com que os valores dessa
classe, inclusive os valores militaristas guerreiros, fossem incorporados e assumidos para si pela
própria burguesia alemã, como, por exemplo, na cultura do duelo, nas organizações e
corporações estudantis, dentre outros episódios. O autor desenvolve essas ideias até chegar em
raízes que entende viabilizadoras da ascensão do nazismo: ELIAS, Norbert. Os alemães, cit.
105
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 43.
106
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 44;
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 15.
107
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
14: “The affirmative approach to the Bismarckian system expressed itself in the ‘neutral’ language
of science. Both Laban’s legal positivism and its alleged opponent in the empire, the ‘organic’
44
oitocentista, emulava a linguagem das ciências naturais, com o que acabou por
criar a dogmática do Direito Público do Império Alemão. Ela foi de longe a
elaboração de Direito do Estado mais influente do período, tendo caráter,
praticamente, oficial108. Tratava-se de uma analise sistemática e exegética do direito
positivo imperial, caracterizando a forma paradigmática do positivismo legalista
(Gesetzespositivismus).
state theory of Otto von Gierke (1841-1921), were part of a more general trend within the
humanities to emulate natural scientific methods in the nineteenth century. Both schools rejected
notions that the law had a transcendent origin: the positivist school insofar as it saw all law as
posited by the wordly and human state, and the organic school insofar as it derived laws from the
wordly ‘spirit of the nation’ (Volksgeist) in is natural, historical development. At the same time,
both positivist and organic theories — in Germany as in other European states in the nineteenth
century—assumed that the law comprised a unified system or even a real subject. The positivists
assumed that all statutes and ordinances were the expression of a unified “state’s will”; the organic
theorists presupposed the natural unity of the people or nation (Volk) from which law derived.
The two opposing theories of law in the empire shared an anthropomorphism of the state”.
108
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 43.
109
Com posição, em parte, diferente, CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of
german constitutional Law, cit., p. 15: “Like Gerber, he presupposed an organic connection
between state and nation. The statutes and ordinances of the empire expressed the ‘state’s will,'
which he argued was also the will of society. But unlike Gerber, and to the chagrin of scholars in
the organic tradition such as Otto von Gierke, Laband never explicitly theorized how the statutes
and ordinances he studied related to the social “organism.” Prussia’s victory over Austria in 1866
had paved the way for the 1867 Constitution of the North German Confederation, the forerunner
of the 1871 Imperial Constitution. Laband simply assumed that all laws based on the 1871
Constitution were valid. Because of Bismarck’s success in forging a new state, Laband was able to
draw a far stricter line than Gerber had between legal scholarship and politics, history, and
sociology”.
110
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 250.
45
lógica, através de um método jurídico puramente conceitual (Begriffsjurisprudenz)
que bania considerações históricas, políticas e filosóficas da análise do Direito do
Estado111.
46
governo central forte, militarista e autoritário115. Como aponta HERMANN HELLER,
a pureza jurídica que dominou a Alemanha nos tempos de GERBER e LABAND,
com suas exigências lógico-jurídicas e com “a irrealidade de seu Estado”, no fundo,
são uma valoração política referente ao liberalismo116, especialmente, econômico.
115
A questão da vontade do Estado e da Soberania no Estado alemão desse período são bastante
afloradas, sobretudo, tendo-se em conta os arranjos e discussões a respeito da Soberania e
autonomia do federalismo nascente. Tratando bastante desse tema e da posterior inclusão do
argumento da vontade do Povo e da Soberania Popular, antes e durante a República de Weimar,
por todos, a já citada: CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german
constitutional Law, cit.
116
HELLER, Hermann. La soberanía: contribución a la teoría del Derecho Estatal y del Derecho
internacional. Mexico: UNAM, 1965, p. 309.
117
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany, cit., p. 155: “The beginning of
the twentieth century witnessed a marked and significant return in German jurisprudence to the
circle of ideas which had characterized the beginning of the nineteenth. Materialism and
empiricism began to give way to the assaults of idealism and philosophic criticism. The same
general trend was visible in every field of thought, and philosophy came again to take its place as
at once the crown and the foundation of all human speculation. With rallying cry of ‘Back to
Kant’ and ‘Back to Hegel’ whole new schools sprang up in opposition to the era of positivistic
materialism that had lasted for more than half a century. The ’thirties and ’forties of the last
century had seen the gradual dying out of the great flames of philosophy. Hegel proved the
culminating point of great movement. The successors of Hegel divided against themselves into
theological right wing and a materialistic left. With the minor exception of the school of Krause
47
Desde GERBER, durante toda a segunda metade do século XIX, muitas
foram as contribuições ao desenvolvimento da Teoria e Doutrina do Estado e do
Direito do Estado118.
JELLINEK inicia sua magnum opus afirmando que o homem, enquanto ser
psíquico, é objeto da ciência de duas maneiras: como indivíduo e como ser social.
Já também na primeira nota do trabalho expõe a influência recebida do
neokantismo de Baden, ao definir as ciências do Espírito em referência a
RICKERT, identificando seu objeto de investigação com os fenômenos da vida
humana em comum122. Dessa marca desdobra-se a firme distinção entre o ser e o
the one important philosophy of law between Hegel and the close of the century was that of Stahl
which, however, proved of practical rather than philosophical significance. As throughout the
realms of science, in jurisprudence empiricism held almost uncontradicted sway. Philosophical
speculation gave way to an historical positivism absorbed either in the ‘preparation for the judge of
the law currently in force or in the digging up of law long since extinct; its second task of pointing
out the way for the legislator through the evaluation of the existing law and setting up a righter on
it left out of consideration”.
118
Sobre os desenvolvimentos desse período, por todos: STOLLEIS, Michael. Public Law in
Germany, 1800-1914, cit.
119
O filho de GEORG JELLINEK, WALTER JELLINEK, também foi um importante jurista do
Direito Público. Neste trabalho, sempre que se falar de JELLINEK, simplesmente, estará se
referindo ao pai: GEORG JELLINEK.
120
STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914, cit., pp. 440-444.
121
LOS RÍOS URRUTI, Fernando de. Prólogo del traductor. In: JELLINEK, Georg. Teoría
General del Estado. México: FCE, 2000, pp. 13-52. Essa segunda parte traria uma Teoria
especial, particular, do Estado (Besondere Staatslhere).
122
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 55.
48
dever ser, presente em sua obra, o que o levou a identificar o Estado, a um só
tempo, como construção social e como instituição jurídica e, assim, a conceber
que a Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre)123 tem duas faces: uma
“teoria geral social do Estado” (Allgemeine Soziallehre des Staates) e uma “teoria
geral do Direito do Estado” (Allgemeine Staatsrechtlehre)124.
123
A palavra Lehre não raro é traduzida por Doutrina. Isso é visto, por exemplo, nas traduções
das obras alemãs para o italiano, bem como, nos clássicos italianos da disciplina, como as obras
de ORLANDO ou de GROPALLI. Já na tradição francesa ela chega, também, como Teoria, como
se vê, por exemplo, na clássica obra Contribution à la théorie générale de l'Etat de CARRÉ DE
MALBERG, muitíssimo influenciada pela Teoria Geral do Estado de JELLINEK.
124
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 61. Quanto à tradução desses termos,
vale aqui o registro, já realizado em nota anterior, quanto ao sentido de Staatsrecht e
Staatsrechtslehre. No entanto, vale o destaque para o fato de que na tradução castelhana que
utilizamos encontra-se: “doctrina general del Estado” e “doctrina general del derecho público”.
Na versão de língua inglesa do trabalho de STOLLEIS, a tradução segue sentido similar:
“generalized social doctrine of the State” e “generalized doctrine of constitutional law”,
respectivamente. BERCOVICI, por sua vez, traduz por “teoria social do Estado” e “teoria jurídica
do Estado”. STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914, cit., p. 441;
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit.
125
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law, cit., p. 192.
126
STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914, cit., p. 441; LOUGHLIN, Martin.
Foundations of Public Law, cit., p. 193.
49
Desse modo, JELLINEK tentou avançar sobre a teoria de LABAND, não em
busca de uma alternativa propriamente dita, mas almejando construir uma
Allgemeine Staatslehre que, sem abandonar a centralidade do Estado enquanto
pessoa jurídica, superasse a rigidez do método lógico-formal labandiano. Fez isso
porque reconhecia que a compreensão do Estado – quer do ponto de vista social,
quer da perspectiva jurídica – dependia de observações complementares da
política.
Portanto, para ele, a política, ainda que não se confunda com o Direito,
apresenta-se como indispensável para a investigação do Direito do Estado. E
entende que ignorar isso é correr o risco de tornar esta, uma disciplina
estritamente escolástica, como o fez LABAND. Destarte, JELLINEK ambiciona,
justamente, refletir acerca da capacidade da Teoria do Estado oitocentista
compreender e encaminhar os desafios políticos postos na virada do século127.
127
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 254; CARVALHO, Orlando M.
Caracterização da Teoria Geral do Estado, cit., pp. 65-66.
128
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 83. HELLER aponta ainda, de modo um tanto
raivoso, que a tentativa de eliminação radical do político na teoria do Estado é, finalmente levada
a cabo por KELSEN: “y, por cierto, ad absurdum”.
50
poder de domínio não derivado, independente, portanto, originário, na verdade é
um Estado. Nesse sentido, é o poder de domínio que diferencia o Estado de todos
os demais poderes, sendo ele a marca do Estado moderno. Nesses termos, o
conceito social de Estado é definido pelo autor na máxima: “el Estado es unidad
de asociación dotada originariamente de poder de dominación, y formada por
hombres assentados en un território”129.
129
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 194.
130
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 180.
131
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 196.
51
Direito e o poder soberano que o garante podem unir a grande variedade de
concepções éticas, permitindo a vida comum sobre as bases da segurança das
ações mútuas. Destarte, o traço definidor do Direito, em JELLINEK, é justamente a
obrigatoriedade.
132
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 233.
133
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 264.
134
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., pp. 313-314.
52
formulação é fundamental para o constitucionalismo: o Estado obriga-se a cumprir
o Direito que ele mesmo estabelece para os cidadãos, bem como, para todos os
atos do Estado135.
135
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., pp. 346-352. A exceção do ato de
nascimento do próprio Estado: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 256.
136
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 258.
137
LA TORRE, Massimo. Law as institution. Dordrecht: Springer, 2010, p. 10.
138
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., pp.
42-44: “The coexistence of law that bound the state and the presumption of the state’s sovereignty
formed what I will term ‘Jellinek paradox’”.
53
De todo modo, a obra de JELLINEK é bastante ampla e, em muitos
trabalhos, o autor permitiu-se ser “metajurídico”. No entanto, como jurista, é
possível dizer que ele foi profundamente identificado e comprometido com o
método positivista, como posto por GERBER e seu esforço por purificar o
conhecimento jurídico139. Por isso, é possível afirmar que JELLINEK é, se não o
último, ao menos, o mais pronto portador da voz do Gesetzespositivismus
oitocentista140.
139
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany, cit., p.60. CALDWELL,
Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit.: “the legal system was a
closed whole, individual rights existed only as part of that closed system, and jurisprudence had to
exclude political or historical perspectives to remain a science”.
140
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law, cit., p. 192. Apesar de seus “isolamentos” e
positivismos, não deixa de ser interessante a passage da obra clássica de JELLINEK: “El
fundamento último de todo derecho radica en la convicción inmediata de su obrigatoriedad, de
su fuerza determinante y normativa. Las tres características que hemos dado anteriormente del
derecho concuerdan en un punto, a saber: en que se trata siempre en ellas de normas y estas no
significan jamás nada que venga de exclusivamente de fuera, sino que necesitan descansar en una
propiedad del sujeto para que de este modo pueda ser reconocida como legítima por aquél. De
aquí que se trate finalmente de una convicción condicionada por la situación general de cultura en
un pueblo, de lo cual depende el que la exigencia de la conservación de algo en norma llegue
realmente a poseer este carácter en un momento dado”, JELLINEK, Georg. Teoria general del
Estado, cit., p. 349.
141
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience, op. cit., p. 16; HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 84.
54
Com essa breve exposição até aqui, pretendeu-se, basicamente, dois
objetivos. Primeiro, de algum modo, apresentar a sequência que deu azo ao
Direito Público, ao Direito Constitucional e, especialmente, à Teoria da
Constituição de Weimar. Além disso, busca-se reforçar que as pretensas
cientificidade e neutralidade recorrentes e próprias do formalismo jurídico,
presentes na grande maioria de perspectivas positivistas, em geral, são histórica e
logicamente decorrentes de uma perspectiva ideológica e de um projeto político
muito específico, que, no fundo, nada tem de neutral.
142
LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 7 ed. São
Paulo, 1991, p. 40
143
DYZENHAUS, David. Hermann Heller. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard
(org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002, p. 251;
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 254.
55
indutivamente alcançáveis, como se, de algum modo, eles pudessem ser
dogmaticamente acessíveis. Quando, na verdade, essa postura refletia, em si, a
cultura política propugnada pelo modelo político autoritário da época e pelo
próprio modelo de Rechtsstaat formal em torno do qual se amarrava.
144
É verdade que as relações entre Estado de Direito e democracia se colocavam de forma
diferente em outros Estados nacionais, especialmente, em França, nos EUA e, a seu modo, na
Inglaterra. Contudo, como nosso interesse aqui é caminhar no/para o desenvolvimento da Teoria
da Constituição em Weimar, como mencionado antes, seguimos o fluxo do desenvolvimento
alemão.
56
Poder democrático. Não por acaso, é em meio a essas disputas que surge a Teoria
da Constituição.
A República de Weimar, tanto por sua vida, quanto pelo seu destino, é
um episódio muito trabalhado na historiografia. Foi um momento de grande
complexidade social e transformações culturais, convulsões sociais,
experiencialismos e incertezas. Essas características, a amplitude do tema, o espaço
e a natureza deste trabalho, não o habilitam a qualquer tentativa de maior
aprofundamento sobre a complexidade dos anos entre 1919 e 1933. Portanto,
aqui não se pretende, de forma alguma, um remontar mais denso desse período.
No entanto, é inevitável alguma aproximação para que seja possível alguma
compreensão do surgimento da Teoria da Constituição, bem como, a percepção
de que a efetividade de uma constituição depende de uma cultura constitucional.
Não de outra forma, não raro se aponta como um dos principais motivos para o
fracasso de Weimar o fato de ela ter sido uma república sem republicanos145, uma
democracia sem democratas146, um momento em que não foi possível se
desenvolver uma cultura constitucional, tampouco, uma cultura de constituição.
145
A frase é geralmente atribuída a SEBASTIAN HAFFNER.
146
NEUMANN, Franz L. The decay of German democracy. In: NEUMANN, Franz L.;
KIRCHHIMER, Otto; SCHEURMAN, William E. (ed.). The Rule of Law under siege.
University of California Press: Berkeley, 1996, pp. 29-43: “German democracy committed suicide
and was murdered at one and the same time. A democracy without democrats found its end with
the appointment of Hitler as chancellor on January 30, 1933”, p. 41.
57
influenciadas pela revolução russa de 1917, acabaram por promover a
Novemberrevolution entre 1918 e 1919, colaborando de forma preponderante
para o enfraquecimento do poder Hohenzollern, para o fim da Primeira Guerra
Mundial e para a implementação da República e, com ela, a Constituição de
Weimar.
58
Spartakistas, que a condenavam por verem nela um desvio em relação aos fins
socialistas da Revolução150. Por outro lado, as linhas conservadoras viam-na com
maus olhos, especialmente, por causa das disposições sociais de sua segunda parte.
Ainda que o projeto inicial apresentado por HUGO PREUSS não contivesse
um capítulo sobre os direitos fundamentais153, a própria assembleia encarregou-se
de construir e viabilizar a segunda parte da Constituição. Nesse sentido,
BERCOVICI afirma que segundo “Richard Thoma, a democracia de Weimar era
uma democracia na forma e na substância, pois buscava a incorporação das classes
trabalhadoras no Estado com base na emancipação política completa e na
igualdade de direitos”154. HELLER também apontava que com ela, especificamente,
150
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 293.
151
LOUREIRO, Isabel. A revolução alemão [1918-1923]. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
152
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 26.
153
PREUSS, politicamente, era amplamente a favor da democracia social, mas receava que uma
proposta nesse sentido levasse a uma grande disputa política que ameaçasse a unidade nacional.
154
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 27.
59
e com a democracia social, de um modo geral, o que se queria era tocar com o
Estado material de Direito os mundos do trabalho e da mercadoria.
155
STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945, cit., p. 64.
156
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
14. Sobre os momentos constitucionais de formação e reconformação nos Estados Unidos da
América do norte, com bastante ênfase ao papel dos tribunais, é bastante interessante a trilogia
“We the people” de BRUCE ACKERMAN, especialmente o volume 2: ACKERMAN, Bruce. We
the people: transformations. Cambridge: Belknap Press, 2000.
157
ACKERMAN, Bruce, The Rise of World Constitutionalism. Virginia Law Review, v. 83, n. 4,
pp. 771-797, 1997, p. 773.
60
jurídico-política. Várias dicotomias e paralelismos podem ser identificados ao se
comparar o pensamento anglo-americano e o pensamento continental europeu. As
possibilidades de polarização nesse sentido são várias: de um lado o empirismo de
FRANCIS BACON, do outro o racionalismo de DESCARTES158; em uma mão os
sistemas jurídicos de common law, na outra os sistemas jurídicos de matriz
romano-germânica – com a consequente diferença da primazia das fontes do
direito vigorante em cada um dos sistemas; o rule of law anglófono e o Rechtsstaat
(ou em sua versão francesa, um pouco diferente, L’État de Droit)159 continental; de
um lado, uma cultura política em que a Constituição precede/constitui o próprio
Estado (nos EUA mais claramente, mas também, de certo modo, na própria
Inglaterra160) e, de outro, uma cultura política em que o Estado precede a própria
Constituição161; ainda, em uma cultura política em que se constrói o
presidencialismo com uma separação dos poderes mais rígida162, na outra, o
158
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 46.
159
BÖCKENFÖRDE vai além, registrando acerca do conceito de Rechstaat que: “The ‘rule of law’ in
Anglo-Saxon law is not in substance a parallel concept, and French terminology has no
comparable words or concepts whatever”, BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. State, Society and
Liberty. Oxford: Berg Publishers, 1991, p. 48. Já JORGE MIRANDA relaciona: “A expressão
‘Estado constitucional’ parece ser de origem francesa, a expressão ‘governo representativo’ de
origem anglo-saxónica e a expressão ‘Estado de Direito’ de origem alemã. A variedade de
qualificativos inculca, de per si, a diversidade de contribuições, bem como de acentos tónicos”,
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição, cit., p. 33. Abordando, especialmente, as
figuras do Rechtsstaat, do L’État de droit e do rule of law norteamericano e ingês: ZOLO, Danilo.
Teoria e crítica do Estado de Direito. In: ZOLO, Danilo; COSTA, Piero (org.). O Estado de
Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 3-94.
160
Diz-se “de certo modo” porque a tradição constitucional inglesa, inclusive, por não ser
majoritariamente escrita ou organizada, remonta a tempos imemoriais, contando com vários
documentos antiquíssimos existentes desde antes mesmo da constituição da Inglaterra como
Estado, MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.
44.
161
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience, op. cit., pp. 1-2.
162
Destacando-se o fato de essa ser uma realidade norteamericana e não inglesa, são interessantes
as observações feitas por JORGE MIRANDA quanto à aproximação do parlamentarismo britânico
com o presidencialismo: “O realce da posição do Primeiro-Ministro dentro do Gabinete britânico
e o sentido político conferido às eleições gerais na Grã-Bretanha têm levado certos autores a
assimilar o sistema britânico de governo ao sistema americano – ou seja, a sugerir que, sob a capa
de parlamentarismo, o que existe no fundo em Inglaterra é um sistema presidencialista. Na
verdade, dir-se-iam semelhantes a posição do Presidente dos Estados Unidos e a do Primeiro-
Ministro britânico. Ambos são objecto de votação popular (ao elegerem o Deputado do seu
círculo, os eleitores britânicos votam no respectivo partido e no seu chefe, o qual, se o partido for
majoritário, se tornará automaticamente Primeiro-Ministro); e um outro praticamente mantêm-se
no poder por um período certo, sem serem derrubados pelo Congresso ou pela Câmara dos
61
parlamentarismo com uma separação dos poderes um tanto mais fluida163, dentre
tantas outras possibilidades164.
Comuns”, MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição, cit., p. 92. É certo que o
próprio JORGE MIRANDA na sequencia da mesma obra faz uma série de diferenciações quanto às
duas formas políticas.
163
E aqui essa observação vale tanto à separação dos poderes propriamente dita (horizontal, com
tripartição orgânico-funcional entre Executivo, Legislativo e Judiciário) quanto ao federalismo
(separação vertical dos poderes). Apesar de alguns Estados europeus terem o federalismo como
forma de Estado – casos de Alemanha e Áustria, por exemplo –, o Estado federal na Europa tem
configuração um tanto mais fluida e menos estanque que o norteamericano. Inclusive, o debate
sobre a divisão de competências entre União e Estados Federados esteve presente nos grandes
momentos e crises políticas e constitucionais dos Estados Unidos da América do Norte, quer na
Guerra de Secessão, quer no embate entre o presidente FRANKLIN DELANO ROOSEVELT e a
Supreme Court, entre o New Deal e a Doutrina Lochner, apenas para citar dois exemplos
emblemáticos.
164
Por exemplo, falando da filosofia contemporânea: DOMINGUES, Ivan. O continente e a ilha:
duas vias da filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2009.
62
como uma forte aliada contra os setores mais conservadores da aristocracia
reticentes às reformas e modernizações do Estado e da sociedade. RINGER trata-os
por intelectuais mandarins, tamanha sua força165.
165
RINGER, Frank K. O declínio dos mandarins alemães, cit. Apesar dessa aposta inicial do
Kaiser HOHENZOLLERN nessa aliança, RINGER identifica que “embora ainda mantenha algum
controle da lealdade da nova elite, em parte porque é ele quem paga seus salários, o monarca
logo descobre que os mandarins estão prontos a usar seu crescente poder de negociação até
mesmo contra ele. Ele quer que suas universidades sejam apenas institutos para a produção de
auxiliares administrativos úteis e, de preferência humildes. Tem uma noção muito rasteira do
ensino prático. Teorias que não são imediatamente aplicáveis podem despertar-lhes suspeitas,
embora goste de saber que seus professores estão ensinando alguma doutrina sadia e singela de
devoção ativa e moralidade política. Por outro lado, os mandarins começam a se cansar do papel
puramente técnico que esse esquema lhes atribui. Suas aspirações pessoais e sociais vão além da
posição de especialistas ou escribas das classes baixas. Exigem ser reconhecidos como uma
espécie de nobreza espiritual, ser elevados acima de sua classe de origem em virtude dos
conhecimentos adquiridos. Consideram-se homens de grande cultura e seu ideal de ‘formação’
pessoal afeta toda a sua concepção de ensino. Procurando um enobrecimento espiritual na
educação, tendem a rejeitar o conhecimento ‘meramente prático’ e a busca por técnicas de
análise moralmente e emocionalmente neutras. Em vez disso, consideram o ensino um processo
em que o contato com fontes veneradas resulta na absorção de seu conteúdo espiritual, de modo
a conferir ao estudante qualidade indelével de elevação espiritual. Em resumo, à medida que os
mandarins adquirem mais poder, seus líderes intelectuais voltam-se contra a plataforma
ideológica um tanto estreita da qual partiram e substituem-na por um ideal de ensino que possa
funcionar como um substituto honorífico da nobreza de nascimento. Por mais que lamente o
surgimento de uma nova série de pretensões entre servos da coroa originalmente humildes, o
governante é obrigado a resignar-se ao inevitável, pois precisa desses homens tanto quanto antes”,
p. 25.
63
entre os cerca de quarenta anos que separam a Unificação Alemã e Constituição
Imperial (1871)166 do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – que,
curiosamente, por vezes são considerados anos tranquilos e de estabilidade interna
–, o século XX foi absolutamente conturbado na Europa central e no mundo
germânico.
166
Verfassung des Deutschen Reiches, também conhecida como Bismarcksche Reichsverfassung.
167
De fato, o Império Alemão deu lugar a uma república que entrou para a história como a
República de Weimar, especialmente a partir de 1933, e das críticas que o partido nazista fazia ao
período, é verdade. Esse nome se dá pelo fato de a Assembleia Nacional Constituinte ter se
reunido na histórica cidade de Thüringen para votar e aprovar a nova Constituição republicana.
Entretanto, naquele momento a Alemanha continuou a oficialmente chamar-se Deutsches Reich.
Inclusive, a própria nomeação do Estado Alemão era foco de disputas políticas no cenário dos
anos 1920 na Alemanha entre conservadores, antidemocratas, social-democratas e partidos de
centro, que chamavam aquele “novo” Estado Alemão, dentre outras formas, de Deutsches Reich,
Deutsche Republik, Deutscher Volksstaat.
168
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
14: “What may seem foreign to observes in the United States is the abstract level of the German
debates. In part, that abstraction reflects German jurists’ orientation toward the ‘state’ and the high
theory taught at universities rather than toward concrete aspects of legal practice. To this day,
major surveys of German constitutional history contain almost no account of the controversial
judicial decisions of high courts. That abstraction reflects something besides the stereotypically
‘Germanic’ orientation toward abstraction and theorizing, however. It reflects the many breaks in
legal continuity that punctuate twentieth-century German history: the Revolution of 1918, the Nazi
grab for power in 1933, the defeat of Nazism and the elimination of the German state in 1945,
64
De todo modo, como dito, Weimar foi um grande divisor de águas e teve
como consequência determinante possibilitar a todos os grupos sociais a
participação nas tomadas de decisão do Estado. O Estado alemão, especialmente
o Parlamento, não era mais monopolizado pela aristocracia, como ocorria na
Alemanha kaiserista, nem era dominado pelas classes detentoras dos meios de
produção, mas, de mesmo modo, tampouco era concentrado e comandado por
amplas forças de esquerda.
and the formation of two new German states in 1949. Constitutional histories of the United States
can perhaps all too easily assume a stable, continuous development by examining the decisions of
the Supreme Court; in Germany, the highest courts have taken many different institutional
structures and carried out many different political functions over the course of this century.
Accounts of the major Weimar theorists of constitutional law, not court decisions, provide the
continuity between Weimar constitutionalism and that the Federal Republic”.
169
Abordando vários elementos e previsões desse aspecto na Constituição de Weimar,
especialmente, quanto à Constituição Econômica: BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado
de exceção permanente, cit., pp. 25-50.
170
Reitere-se que esse movimento não necessariamente foi bem visto pela esquerda e forças
trabalhistas da época. De fato, juridificar as demandas sociais é formaliza-las de modo a, por um
lado, dar-lhe a força da institucionalidade na forma de direitos, mas, por outro, é, também,
conformá-las em uma gramática e em um formato que, originariamente, é, ele mesmo, burguês.
A disputa e discussão pela juridificação desenrola-se no contexto do Estado Democrático de
Direito, inclusive, na sequência de KIRCHHEIMER e NEUMANN na própria Escola de Frankfurt.
TEUBNER, Günther. Juridification: concept, aspects, limits, solutions, op. cit.
171
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2012, pp.
115-166.
65
político-social aristocrático (dos poderes históricos), Weimar, ao contrário, em
suas próprias tensões internas, propõe programas e compromissos políticos de
transformação do status político-social.
172
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 294-295: “As constituições do
século XX não representam mais a composição pacífica do que já existe, mas lidam com
conteúdos políticos e com a legitimidade, em um processo contínuo de busca de realização de
seus conteúdos, de compromisso aberto de renovação democrática. Não há mais constituições
monolíticas, homogêneas, mas sínteses de conteúdos concorrentes dentro do quadro de um
compromisso deliberadamente pluralista, como em Weimar. A constituição é vista como um
projeto que se expande para todas as relações sociais”.
66
CAPÍTULO 2
O NASCIMENTO DA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:
O DIREITO SEM ESTADO OU O ESTADO SEM DIREITO
173
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 135. De algum modo, essa perspectiva também
está em: SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1985, pp. 87 e 88: “las formas de Estado que prevén constitucionalmente la
existencia de luchas políticas integradoras tienen la ventaja – como es el caso de un Estado
parlamentario, en el que existe un permanente enfrentamiento por alcanzar el poder – de que es
más fácil impedir la obstrucción continuada de determinados grupos sociales al facilitarles la
posibilidad de una participación futura en el poder, lo que, además de tranquilizarles, les
reincorpora activamente en la vida política de un modo continuado; mientras que en aquellas
formas estatales que se basan en el principio de la representación permanente, los grupos sociales
que no aceptan unos valores objetivos determinados se aferran a su situación minoritaria,
distanciándose entonces indefinidamente de la vida política”.
174
HELLER, Herman. Libertad y forma en la constitución del imperio. In: HELLER, Hermann.
El sentido de la política y otros ensayos. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 61-67.
67
Não é a toa que boa parte das críticas recorrentes e contemporâneas à
Constituição de 1919 colocava-se contra seus compromissos dilatórios e sobre sua
pretensa falta de decisão. Essa “acusação” é sustentada, quer por autores à direita,
como SCHMITT, quer por pensadores de esquerda, como KIRCHHEIMMER175.
Essa virada fez com que ficasse ainda mais demarcada como característica
da cultura constitucional sua dinamicidade e plasticidade. Essas possibilidades
abertas com a politização antes negada ao Estado176 e ao Direito, mais claramente
ao Direito Constitucional, fomentaram as discussões da luta pelo método.
STOLLEIS destaca a densidade e complexidade desse episódio afirmando que na
época dizia-se que foi a partir de então que se passou a cuidar do “método e da
essência do Estado”, tendo sido o momento culminante de uma Guerra Mundial
incipiente e o ponto de contato entre a questão do objeto e da forma da Teoria do
Direito e do Estado177.
175
É verdade que KIRCHHEIMMER, em que pese ser ligado ao SPD (Partido Social Democrata
alemão) e à Escola de Frankfurt, foi aluno muito próximo de SCHMITT, por vezes tratado como o
seu “discípulo preferido”.
176
Como o fizeram GERBER, LABAND, JELLINEK, chegando a seu apogeu com KELSEN.
177
STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer Staatsrechtslehre – ein
abgeschlossenes Kapitel der Wissenschaftsgeschichte? Steiner: Stuttgart 2001, p. 5: “Der
Methodenstreit ist der Kulminationspunkt einer vor dem Weltkrieg einsetzenden und den
Zentralnerv des Faches berührenden Frage nach Ziel und Weg der Staatsrechtslehre. Es ging, wie
man damals zu sagen pflegte, und das ‘Wesen des Staates’ und um die Art und Weise,
wissenschaftlich über den Staat zu arbeiten und zu sprechen. Im Grunde war es jedoch eine
Debatte um die politische Lebensform. Der Gegenstand war also unausweichlich politisiert”.
178
Esses geralmente são considerados os quatro principais atores desse debate, vide,
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german Constitutional Law, cit.;
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho político
de la República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp. 259-295, 2008; BERCOVICI,
Gilberto. Carl Schmitt, o Estado Total e o Guardião da Constituição. Revista Brasileira de Direito
Constitucional, São Paulo, n. 1, pp. 195-206, jan./jun. 2003. STOLLEIS, por sua vez, também
coloca nessa lista ERICH KAUFMANN: STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer
Staatsrechtslehre, cit., p. 5. Em que pese esse reconhecimento, é de se destacar a grande
importância de vários outros juristas tais como RICHARD THOMA e GERHARD ANSCHÜTZ em
linhas mais positivistas, HEINRICH TRIPEL, forte opositor do positivismo, e HUGO PREUSS, autor
do projeto da Constituição de Weimar e seu grande defensor. Trabalhando todos esses:
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (eds.). Weimar: a jurisprudence of crisis.
Berkeley: University of California Press, 2002.
68
do ponto de vista da construção jurídica, mas, também, da formulação política,
eles são bastante diferentes entre si. Enquanto HELLER, mais jovem, apresentou a
leitura mais à esquerda dentro desse debate, compreendendo que a Constituição
de 1919 permitia a formação de um Estado socialista democrático, o terceiro,
SCHMITT, foi responsável pela construção mais à direita possível dentro do debate
constitucional (e, mesmo, para além dos limites constitucionais, em um dado
momento), pregando um Estado Total qualitativo, que não interviesse nas
questões econômicas, mas garantisse as instituições mais tradicionais da sociedade
alemã.
179
NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of National Socialism, 1933-1944.
Chicago: Ivan R. Dee, 2009, pp. 29-30: “The Weimar constitution, attacked on the right by
Nationalists, National Socialists, and reactionary liberals, and on the left by Communists,
remained merely a transitory phenomenon for the Social Democrats, a first step to a grater and
better future. And a transitory scheme cannot atrouse enthusiasm”. Ainda comentando algumas
ações anticonstitucionais de lado a lado, e a radicalização da vida política: KLEIN, Claus.
Weimar. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 47-51; 74-76.
180
Naturalmente, esse não foi o único motivo de ascensão do partido nazista ao poder; muito pelo
contrário. Viu-se na Alemanha uma enorme combinação de fatores que possibilitou esse
movimento e mesmo a interpretação acerca do peso de seus motivos determinantes é algo ainda
em disputa. Por exemplo, há leituras que dão maior ênfase aos desacordos da esquerda alemã,
outros à conjuntura econômica. De um modo geral, no entanto, eles vão desde as enormes
imposições do Tratado de Versalhes, à tradição militarista da tradição tudesca, do viés étnico da
sociedade alemã, de seu passado marcadamente autoritário durante todo o século XIX, e mesmo
antes dele, a uma importante crise econômico-social. Da desunião da esquerda à intensidade da
disputa e falta de diálogo entre as forças pró-união. Para algumas variáveis sobre o tema: ELIAS,
Norbert. Os alemães, cit.; NEUMANN, Franz. Behemoth, cit.; KOLB, Eberhard. The Weimar
Republic. 2 ed. Londres: Routledge Taylor and Francis Group, 2004; HENIG, Ruth. The
Weimar Republic 1919-1933. Londres: Taylor & Francis e-Library, 2002.
181
SCHMITT, Carl. La Revolución legal mundial: plusvalía política como prima sobre legalidad
jurídica y superlegalidad. Revista de Estudios Políticos (Nueva época), Madri, n. 10, pp. 5-24,
69
É fato que tal hiperpolitização do debate sobre o Estado foi vista não
apenas na Alemanha, mas esteve também presente em outros países,
especialmente, na Itália e na Rússia, como consequência de suas revoluções
político-sociais, desencadeadas com a Primeira Guerra Mundial182. Entretanto foi
no debate germânico que mais fortemente desenvolveu-se a preocupação com o
superar dos dogmas antes tidos como absolutos e naturalizados de um
“necessário” Estado de Direito, liberal, burguês, formalista e tecnicista. Como
aponta HELLER, os debates entre GERBER, BLUNTSCHLI, LABAND e, mesmo,
JELLINEK, aparentavam-se mais como discussões intramuros, em que os
fundamentos das construções eram admitidos e pressupostos de forma acrítica por
todos “a tal punto que podia aceptarse de buena fe que todos los antagonismos
existentes en la teoría del Estado no eran, en el fondo, outra cosa sino diferencias
de claridade lógica”183. Parece possível dizer que esse era um mundo “velho” em
declínio. Nesse contexto, a politização do Estado e a consolidação das Ciências do
Espírito traziam para a Teoria do Estado a preocupação com os pressupostos
desse conhecimento.
Deste modo, LUCAS VERDÚ aponta, ainda, que as razões que mais
contribuíram para esse surgimento foram: a crise do formalismo jurídico e a
tentativa de se assentar um conceito substantivo de constituição; a crise do Estado
liberal de Direito e as críticas antiliberais apresentadas contra ele; a aparição dos
regimes autoritários e totalitários que atacavam de todos os modos o conceito
demo liberal de Constituição e suas respectivas instituições; e, ainda, o culminar da
Teoria do Estado liberal com KELSEN e sua superação, especialmente, por
HERMANN HELLER187.
Derecho Constitucional, cit., p. 47. Quer HELLER, quer SMEND, principais opositores ao
positivismo normativo nesse debate de Weimar, colocam suas críticas a HANS KELSEN,
sobretudo, referindo-se à obra Allgemeine Staatslehre. Berlin: Springer, 1925, que não deve ser
confundida com a posterior General Theory of Law and State. Cambridge: Harvard University
Press, 1945 (traduzida para o português como Teoria Geral do Direito e do Estado, aqui
utilizada), esta sem versão publicada em alemão. A segunda parte desta obra de 1945
efetivamente tratava de atualizar a obra de 1925, entretanto, sua primeira parte foi destinada à
teoria do direito e, na prática, não apresenta grandes transformações ou revisões em relação ao
Teoria Pura do Direito.
185
Ainda que autores falem de um Constitucionalismo antigo ou, mesmo, medieval:
MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: Ancient and Modern. 2 ed. Ithaca: Cornwell
University Press, 1947.
186
BARACHO, Joaquim Alfredo de Oliveira. Teoria da Constituição. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, a. 15, n. 58, pp. 27-54, abr./jun. 1978, p. 29.
187
LUCAS VERDÚ, Pablo. Lugar de la teoría de la constitución en el marco del derecho político.
Revista de Estudios Políticos, Madri, vol. 188, pp. 5-20, mar./abr. 1973, p. 6. LUCAS VERDÚ
destaca pelo menos duas obras como especialmente marcantes nesse nascimento, as já
71
Nesse contexto, é interessante a aproximação às formulações acerca da
Teoria da Constituição e do conceito de Constituição desses quatro autores
seminais. Para tanto, acompanhando CALDWELL, é possível dividi-los em autores
de respostas não dialéticas e autores de respostas dialéticas. KELSEN e SCHMITT,
que têm como marca comum o monismo metodológico (ainda que o primeiro,
um monismo jurídico, e o segundo, um monismo sociológico)188 podem ser
identificados com formas diferentes de positivismo. SMEND e HELLER, com suas
perspectivas culturais, colocando-se com uma postura metodológica bastante mais
interdisciplinar, podem ser considerados autores de perspectiva dialética.
72
sequência da Teoria da Constituição, o debate sobre: quem é o guardião da
Constituição?
2.1.
2.1. HANS KELSEN
189
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
120: “Despite their many differences, Kelsen and Schmitt both evinced an un-dialectical,
‘Hobbesian’ model of sovereignty state. For Kelsen, the state was identical with law; it could be
apprehended only though a pure theory of law that excluded ‘impure,’ practical considerations.
For Schmitt, the state was a real, existing substance threatened by interest groups. Both men
sought in different ways to separate the moment of sovereignty from everyday political practice –
the ‘Hobbesian’ moment – in order to come to terms with the paradoxical foundations of
constitutional democracy”.
190
Vale o registro quanto ao tema da tese de KELSEN, que parece inusitado, especialmente se
imaginarmos a imagem que comumente se tem do autor: A Teoria do Estado de Dante Alighieri
(Die Staatslehre des Dante Alighieri). Há uma tradução castelhana: KELSEN, Hans. La teoría del
Estado de Dante Alighieri. Tradução de Juan Luis R. Pagés. Oviedo: KRK, 2007.
191
A Habilitationsschrift ou o “trabalho de habilitação”, consiste no primeiro grande trabalho
independente (sem orientação) do pesquisador na Alemanha, portanto, realizado após o
doutorado. Nesse sentido, assemelhar-se-ia à Livre-Docência na estrutura universitária brasileira,
73
Direito do Estado desenvolvida desde a teoria da proposição normativa
(Hauptprobleme der Staatsrechtslehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze).
Nesse mesmo ano tornou-se professor na Universidade de Viena, da qual veio a
ser titular da cadeira de Direito Constitucional e Administrativo entre 1919 e 1930.
74
nos seus Teoria Pura do Direito (1934) e Teoria Geral do Estado e do Direito
(1945), seguindo presente em inúmeras outras produções durante toda sua vida194.
194
Para mais sobre a biografia de KELSEN: Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução Gabriel
Nogueira Dias, José Ignácio Coelho Mendes Neto. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
195
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A norma fundamental de Hans Kelsen como
postulado científico. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84,
jan./jun. 2011. Alguns autores identificam essa aproximação de KELSEN com COHEN e a Escola
de Marburgo em sua primeira fase, quando às vezes é identificado como “primeiro KELSEN”,
nesse sentido: MAIA, Paulo Sávio Nogueira Peixoto. Forma e unidade como condições de uma
ciência pura: a influência do neokantismo de Marburgo no ‘primeiro’ Kelsen. Sequência (UFSC),
Florianópolis, v. 60, p. 195-224, 2010; VERDROSS, Alfred. La filosofía del derecho del mundo
occidental: visión panorámica de sus fundamentos y principales problemas. México: UNAM,
1962, p. 287. De fato, essa aproximação é mais patente nessa primeira etapa da obra kelseniana;
entretanto, é uma marca que em maior ou menor medida o acompanha por toda a vida.
75
sua reflexão centrou-se sempre no dever ser (Sollen), nunca no ser (Sein). Essa
cisão é crucial para o pensamento kelseniano, caracterizado, justamente, pela
presença de muitos outros dualismos, típicos de sua postura, como são as
dicotomias entre sujeito e objeto, natureza e Espírito, entre as ciências naturais –
casualmente determinadas e explanatórias – e as ciências do Espírito – idealistas e
normativamente determinadas196.
196
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.).
Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 209.
197
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998,
pp. 261-262.
76
Estado e a sua ordem jurídica, devemos admitir que a comunidade a que
chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’ ordem jurídica”198.
77
prescrita pelo Direito e, portanto, como conteúdo de um dever jurídico, se uma
norma jurídica liga à conduta oposta um ato coercitivo como sanção”201.
201
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 129: “A afirmação: um indivíduo é
juridicamente obrigado a uma determinada conduta é idêntica à afirmação: uma norma jurídica
prescreve aquela conduta determinada de um indivíduo; e uma ordem jurídica prescreve uma
determinada conduta ligando à conduta oposta um ato coercitivo como sanção”.
202
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 33.
203
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 33.
78
uma norma que lhe seja superior. Assim, a hierarquia dentro do ordenamento
coloca-se, justamente, na relação de fundamentação de validade.
Desse modo, afirma que: “o fundamento da validade já não pode ser posto
em questão. Uma tal norma, pressuposta, como a mais elevada, será aqui
designada como norma fundamental (Grundnorm)”. Esta confere unidade à
ordem normativa, uma vez que toda norma cuja validade seja reconduzida à
mesma norma fundamental hipotética é parte de um mesmo sistema de normas:
“é a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas
enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a
essa ordem normativa”205.
204
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 221.
205
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 217.
79
jurídico-positivo”206. Não sendo uma norma posta, mas pressuposta, ela é o ponto
de partida do processo de criação do próprio direito positivo.
Desse modo, KELSEN refuta, também, qualquer teoria que derive a validade
do Direito de sua eficácia. Tal concepção decorre da própria perspectiva
dicotômica que separa estritamente o ser do dever ser, que tem como fundamento
epistemológico o dualismo entre fatos e valores, proposições e normas, cognição e
vontade, pois, como dito, o que justifica o direito válido, em última instância, tem
de ser uma norma: a norma fundamental.
206
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 222.
207
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 228; SALGADO, Ricardo Henrique
Carvalho. Kant e Kelsen. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 96, pp. 343-
358, jul./dez. 2007, pp. 355-356.
80
como o direito positivo das normas morais ou outros sistemas normativos. Por
razões epistemológicas, ela é relativista e não reconhece valores absolutos; nesse
sentido, o conhecimento e descrição do direito positivo devem ficar
completamente separados de sua valoração. Essa cisão é determinante para a
compreensão do papel da Ciência do Direito na política: a primeira teria como
foco conhecer e descrever o direito positivo, enquanto a segunda teria como
objetivo criar e formar o Direito. Assim, KELSEN pretende que a Ciência do
Direito não possa ser utilizada a serviço de objetivos políticos.
208
SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. Kant e Kelsen, op. cit., p. 351.
81
última instância, KELSEN não nega a Política, apenas a cinde de maneira definitiva
do Direito, pretendendo depurá-lo enquanto objeto e ciência isolada e autônoma.
Nesse sentido, inclusive, talvez não seja demais afirmar que é o relativismo
que liga a Teoria Pura do Direito à teoria da democracia kelseniana. Se sua
percepção do Direito tinha, de certo modo, um teor analítico, politicamente
KELSEN era, essencialmente, um democrata e um liberal. Para ele, a democracia,
sim, realizava a ideia de liberdade como forma de se criar o Direito209.
209
A definição de KELSEN para a democracia está presente, essencialmente, nos textos Essência e
valor da Democracia e Fundamentos da Democracia, ambos publicados na edição brasileira:
HELSEN, Hans. A Democracia. 2ed. São Paulo, Martins Fontes, 2000. Particularmente neste
segundo o jurista austríaco relaciona a Democracia como a forma política comprometida com o
relativismo filosófico e a autocracia com o absolutismo filosófico.
210
LUCAS VERDÚ, Pablo. La teoría escalonada del ordenamiento jurídico de Hans Kelsen
como hipótesis cultural, comparada con la tesis de Paul Schrecker sobre «la estructura de la
civilización». Revista de Estudios Políticos, Madri, n. 66, pp. 7-65, out./dez. 1989; HELLER,
Hermann. La Soberanía: contribución a la teoría del Derecho Estatal y del Derecho
Internacional. México: UNAM, 1965, p. 309. Já em 1934, SCHMITT apontava para o fato de a
“neutralidade” do positivismo, na verdade, indicar o comprometimento com uma mundividência
82
A isso se adicionava uma concepção antropológica um tanto negativa, que,
de algum modo, aproximava-se da Weltanschauung pessimista freudiana. Assim,
partia do pressuposto de que o homem precisa do Direito para que seja
imaginável o convívio pacífico, sendo impossível sua rejeição211.
83
específicos. Entretanto, parece inexorável reconhecer a vinculação de seu
pensamento, método e articulação com essa tradição, com esses valores e, por
conseguinte, de forma mais ou menos consciente ou explícita, com seus objetivos
e consequências políticas, históricas e sociais. Vê-se isso na já mencionada
continuidade – ideológica, mas não apenas214 – do posicionamento kelseniano com
o Gesetzespositivismus oitocentista, bem como, com sua identidade com o círculo
de Viena.
Se, por um lado, não é possível dizer que KELSEN, com suas formulações,
age maquiavelicamente (no sentido vulgar do termo) para a manutenção do status
quo político-social do início XX – como mais claramente pode-se acusar SCHMITT
em suas pretensões, comprometimentos e objetivos políticos – tampouco se pode
tirar o peso ideológico-político de sua pretensa neutralidade e pureza do Direito.
Além de ser difícil sustentar, epistemologicamente, a postura de isolar-se de forma
definitiva o Direito da Política (a forma do conteúdo), ela acaba, de algum modo,
por mobilizá-lo no sentido de uma formalização que, ironicamente, nunca é
ideologicamente neutra, como aponta LUCAS VERDÚ.
214
KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípios. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 13: “Quando a teoria normativa do Estado da Escola de Viena proclama como
uma de suas teses principais que o Estado encontra o seu lugar não no reino da natureza, mas no
reino do espírito, ela não se distingue da teoria dominante por meio de um novo princípio
metodológico, mas apenas por levar adiante, de maneira coerente, o princípio reconhecido como
correto, evitando assim o erro, cometido por Bluntschli e também por Jellinek e Gierke, que, por
um lado, consideram o Estado como formação espiritual e por outro, atribuem-lhe existência
psicofísica, concretamente existente no espaço físico, portanto natural, abolindo
contraditoriamente a distinção entre natureza e espírito, ciência da natureza e ciência do espírito,
da qual partem”.
215
BOBBIO, Norberto. Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
1995, p. 225.
84
regimes arbitrários, essa, sem dúvida, não é uma acusação precisa a ser feita a
KELSEN.
Não foi apenas depois dos eventos que abalaram a República de Weimar, a
Europa e a humanidade, que se constatou esse tipo de acusação à pretensão de
neutralidade kelseniana. Já autores contemporâneos à Teoria Pura, como HELLER
e LOEWENSTEIN, cada um a seu modo, acusavam a nomocracia do Estado de
Direito formal de ser insuficiente para combater as aspirações autoritárias217.
216
Sobre o argumento ad hitlerum sobre o positivismo: MATOS, Andityas Soares de Moura
Costa. Hans Kelsen and the reductio ad Hitlerum: reflections on the incompatibility between legal
positivism and political totalitarism. Jura, Budapeste, v. 19, p. 113-119, jul./dez. 2013;
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico, cit., pp. 257 e ss.
217
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura?. In: HELLER, Hermann. Europa y el
Fascismo. Granada: Comares, 2006, pp. 117-135; LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus
Democracy in Contemporary Europe, I. The American Political Science Review. V. 29, n. 4, pp.
571-593, ago. 1935; LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus Democracy in Contemporary
Europe, II. The American Political Science Review. V. 29, n. 5, pp. 755-784, out. 1935;
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The American Political
Science Review, Washington, v. 31, n. 3, pp. 417-432, jun. 1937; LOEWENSTEIN, Karl.
Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The American Political Science Review,
Washington, v. 31, n. 4, pp. 638-658, ago. 1937.
218
LEPSIUS, por exemplo, destaca o crescimento da influência e interesse por KELSEN nos últimos
anos, tratando-o como o mais perene dos juristas de Weimar: LEPSIUS, Oliver. El
85
Até por ser o mais velho dentre os autores da luta pelo método de Weimar,
por ter sido o primeiro a publicar obras inteiras de maior significância e projeção
(como sua Allgemeines Staatslehre de 1925), mas, especialmente, por ter sido o
primeiro a sair do intramuros da Teoria do Estado oitocentista, lançando olhos,
mais detidamente, sobre as questões epistemológicas219, e assim muitas vezes foi o
ponto de partida de várias críticas, recorrentemente, tendo suas ideias combatidas
pelos demais autores weimarianos.
86
extremo o positivismo do Reich, acabou por forçar aqueles que rejeitavam o
positivismo, incitando-lhes a supera-lo também ao extremo223.
223
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience, op. cit., p. 17.
224
HABERMAS, Jürgen. Liqüidando os danos: os horrores da autonomia. In: SCHMITT, Carl;
MOREIRA, Luís (coord.) . O conceito do Político/Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey,
2009, pp. vii-xix.
225
Desde 1949 corresponde à renomada Humboldt-Universität zu Berlin.
87
militar até 1919. Em 1921 assume a cátedra de Direito Público em Greifswald (no
extremo nordeste da Alemanha) onde fica até 1922, seguindo para Bonn (1922-
1928), Colônia (1923). Em 1928, aceita uma cadeira na Handelshochschule de
Berlim226, onde permanece até tornar-se professor na Friedrich-Wilhelms-
Universität (1933-1945).
Uma delas diz respeito ao fato de até 1933 ele não ter qualquer publicação
ou declaração de teor antissemita. Pelo contrário, tivera bastante proximidade com
figuras públicas e intelectuais judias como WALTER BENJAMIN, HUGO PREUSS e
LEO STRAUSS. Essa relação era tão presente na trajetória de SCHMITT, que em
outubro de 1934, WALDEMAR GURIAN, seu antigo discípulo, e outro desses
226
Foi uma Escola Superior de Negócios criada pelos comerciantes de Berlim, que existiu entre
1906 e 1946. Antes de SCHMITT, HUGO PREUSS lecionou na instituição.
227
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho
político de la República Federal, op. cit., p. 265.
228
Sua filiação foi feita no dia 1º de maio de 1933.
88
destacados intelectuais judeus de seu círculo, sob o pseudônimo de Paul Müller,
publicou um artigo no Schweizerischen Rundschau denunciando as
transformações no pensamento de SCHMITT, seu envolvimento com intelectuais
judeus e outros não arianos229. Apesar disso, é fato que suas posições antissemitas,
não presentes até 1933, lhe permaneceram, ainda que pontualmente, inclusive,
após a queda do terceiro Reich230.
229
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito. 2 ed. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 27. Nessa publicação, GUARIAN destacou também a importância de
SCHMITT no pensamento católico conservador.
230
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 282; DYZENHAUS, David. Legality and
Legitimacy, cit., p. 98-101. Para DYZENHAUS, na verdade, as próprias críticas ao liberalismo que
marcam SCHMITT têm ligação com seu antissemitismo.
231
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 24.
Nesse sentido, não deixa de ser curiosa a observação de VOLKER NEUMANN: “Schmitt’s political
stance against Marxism and his simultaneous intellectual affinity with Marxist political philosophy
become especially clear in The Concept of the Political [Der Begriff des politischen (1928)]. A
contemporary called this work the ‘bourgeois answer to the Marxist theory of class struggle’”,
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.).
Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 283.
232
O texto que confirma essa influência em SCHMITT é publicado em 1934: SCHMITT, Carl.
Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit. Para RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR. o
caminhar do decisionismo em direção a um decisionismo institucionalista é coerente e
compatível com a postura de SCHMITT, particularmente, com sua posição católica conservadora e
com sua defesa das instituições tradicionais alemãs: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl
Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. BERCOVICI, de sua parte,
em resenha da publicação de PORTO MACEDO, defende que: “há muito mais continuidade do
que ruptura no pensamento de Carl Schmitt na década de 1930. A influência institucionalista na
obra de Schmitt vem ao menos desde 1928, quando foi publicada sua Teoria da Constituição
(Verfassungslehre), em que pela primeira vez são mencionadas as ‘garantias institucionais’
(institutionelle Garantien)”. BERCOVICI, Gilberto. Entre institucionalismo e decisionismo.
Revista Novos Estudos, São Paulo, n. 62, pp. 191-193, dez./mar. 2002.
89
alguns pressupostos do próprio conceito de Estado, isto é, daqueles conceitos em
inter-relação com os quais o Estado se define para SCHMITT233.
233
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Os Pressupostos do Conceito de Estado em Carl Schmitt –
Do Direito ao Político. In: MORAIS, Carlos Blanco de; COUTINHO, Luís Pedro Pereira (org.).
Carl Schmitt Revisitado. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Político, 2014, pp. 121-132.
234
Um dos principais advogados do racismo ideológico nazista e o principal “concorrente” de
SCHMITT pelo posto de pensador da teoria jurídico-política nazista.
235
Sobre a disputa entre KOELLREUTTER e SCHMITT pela preponderância no caput teórico
jurídico-político do regime nazista é muito interessante o artigo: CALDWELL, Peter. National
Socialism and constitutional law: Carl Schmitt, Otto Koellreutter and the debate over de nature of
the Nazi State, 1933-1937. Nova York, Cardozo Law Review, v. 16, pp. 399-427, 1994. A tese
colocada por CALDWELL ajuda a explicar a rápida ascensão e o ainda mais rápido descenso de
SCHMITT na estrutura nazista; é a lógica do darwinismo social, assumida pelo nazismo: “I argue
that constitutional theory under Nazism operated under the same radical social-Darwinist logic as
Nazi institutions themselves. In the same way that radical, crisis-oriented policies tended to win
out within Nazi institutions, the more radical theoretical attacks on older constitutional traditions
tended to win out over attempts to find stability. It does not, therefore, make a lot of sense to draw
strict, analytical lines among types of legal theory under Nazism without paying attention to the
petty conflicts and one-upmanship that marked theoretical discussions of the time. Nor is the
intent of the theorists in question of much help in analyzing their roles in the debate. The ‘theory
industry’ under Nazism was itself one of the areas of ravenous, opportunistic struggle among
factions. Once constitutional theorists entered into this debate, they inevitably contributed to the
radically anticonstitutionalist ideology of the Nazi state. Nazi anticonstitutionalism, I will conclude,
was not merely an example of ‘pragmatism’ or a ‘lack of principles,’ but rather an essential part of
the National Socialist world view, manifested in real institutions as well as theory.”, p. 400.
236
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 27.
90
sua crença de que um movimento nunca antes experimentado, em curso a partir
do poder estatal, precisava de juristas e teóricos especialistas em Direito Público237.
Aliado a isso, RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR, na linha de BENDERSKY,
também dá ênfase ao oportunismo de SCHMITT nessa relação e destaca a crença
que o jurista conservador tinha de que, como Kronjurist, poderia estabelecer o
quadro constitucional do III Reich238.
237
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 281.
238
MACEDO JÚNIOR., Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 31;
p. 111.
239
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo. In: MORAIS, Carlos Blanco
de; PEREIRA COUTINHO, Luís Pedro (org.). Carl Schmitt Revisitado. Lisboa: Instituto de
Ciências Jurídico-Político, 2014, pp. 28-39, p. 29.
240
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., pp. 29-31.
91
Todas as questões sobre a pessoa e o posicionamento político de SCHMITT
não apagam o brilhantismo de suas exposições. Ele, talvez mais que qualquer
outro, conseguiu ser, com profunda agudeza, nas palavras de HABERMAS, “um
bom escritor, capaz de unir concisão conceitual com surpreendentes e brilhantes
associações. (...) Além disso, Schmitt foi um intelectual que, até os anos 30
adentro, empregou seu conhecimento técnico para diagnósticos temporais de alta
sensibilidade”241.
241
HABERMAS, Jürgen. Liqüidando os danos, op. cit., p. xiii. Nessa passagem, ainda, é curiosa a
observação: “Infelizmente, esta arte de formular não percutiu na tradução para o inglês”.
Tratando da importância de SCHMITT no contexto da Lei Fundamental Alemã: SCHLINK,
Bernhard. Why Carl Schmitt? Constellations, Oxford, v. 2, n. 3, pp. 429-431, out. 1993.
242
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2 ed. Belo Horizonte:
Initia Via, 2014, p. 30.
243
Há discussão sobre a assistematicidade do trabalho de SCHMITT. Indicando uma efetiva
assistematicidade: DYZENHAUS, David. Legality and legitimacy, cit., p. 41. Alegando ser ela
apenas aparente: LUCAS VERDÚ, Pablo. Carl Schmitt, interprete singular y máximo debelador
de la cultura político-constitucional demoliberal, op. cit., pp. 43-52.
244
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madri: Alianza Editorial, 2011, p. 25. Novamente
se registra a escolha pela tradução de Staatsrechtslehre por Direito do Estado. Na tradução
castelhana da obra se vê Derecho Político. Até por atenção à observação de HABERMAS,
comparou-se com a tradução do termo em versão da obra em inglês. Nela vê-se o termo tratado,
pura e simplesmente, como public law, não fazendo ela a diferenciação entre Staatsrechtslehre e
92
De todo modo, é esse “primeiro SCHMITT” apontado por BLANCO DE
MORAIS que mais nos interessa aqui. É verdade que mesmo ele é muito rico, vasto
e complexo, por isso, não se tem por ambição percorrer todos os conceitos e
articulações que apresenta, o que nem mesmo seria possível neste espaço. De toda
sorte, o que aqui se quer atentar, especialmente, é para sua fundamentação última
da ordem em um argumento de vontade, na decisão, em última análise, na força245.
Öffentliches Recht. A tradução para o inglês consultada para comparação foi: SCHMITT, Carl.
Constitutional Theory. Tradução Jeffrey Seitzer. Durham: Duke University Press, 2008.
245
Vale a ressalva de que, com o avançar do institucionalismo no pensamento schmittiano é
possível dizer de um progressivo caminhar em direção a um cada vez mais claro decisionismo
institucionalista, em que a ordem concreta ganha explícito destaque. Ainda assim, a decisão segue
sendo um elemento importante para suas construções.
246
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 112.
247
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 283.
248
FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no
pensamento de Carl Schmitt. Belo Horizonte: Editora UFMG/Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004, p.
156.
93
Essa postura antiliberal já transparece desde cedo, na influência que recebe
de autores conservadores contrarrevolucionários como DE MAISTRE, BONALD e,
especialmente, DONOSO CORTÉS. Ela também pode ser vista na leitura especial e
particular que faz de HOBBES. Boa parte de seu pensamento, ainda, deve ser
entendido diante da tarefa que empreende em seu Teologia Política quando,
contra a Ilustração, defende que todos os principais e mais importantes conceitos
políticos são, na verdade, secularizações e derivações de conceitos originalmente
teológicos. Nessa esteira, revelando a influência que sofre de DONOSO CORTÉS e
HOBBES, aliada à mundivisão herdada da filosofia da história e da escatologia
cristã, SCHMITT parte de uma perspectiva antropológica pessimista desde a qual
desenvolve sua concepção de Estado, de ordem, de soberano e seu conceito de
político a partir da diferenciação amigo/inimigo (Freund/Feind)249.
249
VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar,
cit., pp. 109-110.
250
ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Carl Schmitt: um
teórico da exceção sob o estado de exceção. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo
Horizonte, n. 105, pp. 225-276, jul./dez. 2012, p. 233; VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho
y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar, cit., pp. 109-110. Em que pese a crítica,
RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR identifica, na esteira de LÖWITH, a afinidade do
pensamento schmittano com o Romantismo, especialmente, na relação entre Decisão e
ocasionalismo: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito,
cit., pp. 38-47.
251
ADVERSE, Helton. Decisionismo. In: AVRITZER, Leonardo et al. (org.). Dimensões
políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 77-84, p. 80.
94
ordem jurídica para sustentá-la sobre normas que “na verdade não se reproduzem
ou aplicam por si próprias”252.
252
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., p.32.
253
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 38
254
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 38: “liberalism subverts the aims of
those who wish to live in accordance with the values of communities which do not support a
liberal view of good”.
95
a alguma comunidade, para que, só assim, fosse possível atribuir valor às vidas dos
indivíduos em si. E, por fim, o quinto ponto da crítica schmittiana, para
DYZENHAUS, se colocaria no fato de, em que pese o Direito ser importante para a
ordem social e política, os parâmetros liberais, na verdade, apresentar-se-iam
como insuficientes para responder às questões sobre a legitimidade do próprio
Direito, do que se desenvolve a crítica do autor conservador ao normativismo
formalista, incapaz de pensar a origem do ordenamento ou da soberania255.
SCHMITT, recorrentemente, abre suas obras com uma frase concisa, densa
e de efeito, quase como que com um aforismo. Nessa linha, tendo em conta tanto
a dimensão política, quanto a sociológica do conceito de soberania, ele inicia seu
Teologia Política afirmando que: “Soberano é quem decide sobre o estado de
exceção”256. Com essa assertiva traz a tona, pelo menos, três conceitos que serão
capitais em seu pensamento: exceção, soberania e decisão257. Particularmente este
último lhe será marcante e definidor, SCHMITT é essencialmente identificado com
a ideia de decisão e com o decisionismo.
255
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 68.
256
SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p. 13.
257
BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. Kriterion, vol.49,
n.118, pp. 401-415, 2008, p. 407.
258
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., p.32.
96
Desde os seus primeiros trabalhos, SCHMITT aborda a decisão, transitando
entre os campos do decisionismo jurídico e do decisionismo político. Nesse
sentido, é possível identificar dois momentos de sua reflexão sobre o tema. Um
primeiro, tratado em 1912, na obra de sua juventude: Direito e Julgamento. Uma
investigação sobre o problema da práxis jurídica (Gesetz und Urteil. Eine
Untersuchung zum Problem der Rechtspraxis), quando aborda de forma
sistemática a questão da decisão judiciária como elemento da práxis jurídica.
Neste, no entanto, como atenta ADVERSE, ainda falta um elemento que é
imprescindível para a formulação do decisionismo, o estado de exceção, que só
começa a tomar forma na obra A Ditadura, de 1921, quando diferencia ditadura
comissarial e ditadura soberana, e se apresenta mais definidamente em Teologia
Política, de 1922259.
259
ADVERSE, Helton. Decisionismo, op. cit., passim.
260
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., pp. 33-
34. SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 145: “Para o jurista
do tipo decisionista, não é o comando enquanto comando, mas a autoridade ou soberania de
uma decisão última, dada com o comando, que constitui a fonte de todo e qualquer ‘direito’, isto
é, de todas as normas e ordenamentos seguintes”.
261
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 147: “a decisão
soberana não é, portanto, explicada a partir de uma norma nem a partir de um ordenamento
concreto, porque, muito pelo contrário, somente a decisão fundamenta para o decisionista tanto a
norma quanto o ordenamento. A decisão soberana é o início absoluto, e o início (também no
sentido de αρχη) não é outra coisa senão decisão soberana”. Na tradução utilizada, há uma nota
97
é a ‘competência’ imprevisível, estranha às normas de direito
público, pois não se trata do término do direito, mas de sua
própria origem. (...) O soberano, assim, está, ao mesmo tempo,
dentro e fora do ordenamento jurídico, pois ao utilizar o seu
poder de suspender a validade do direito, coloca-se legalmente
fora da lei262.
Desse modo, é possível afirmar que, em SCHMITT, a ordem e o soberano
têm um caráter factual. O soberano não é definido por aquele que deve poder
decidir “de direito”, mas, aquele que decide de fato e é capaz de impor ou
suspender a ordem. Nesse sentido, é célebre a citação que SCHMITT faz de
passagem do Leviatã de HOBBES, em mais de um de seus textos: “autoritas, non
veritas facit legem”263.
do tradutor a respeito do sentido de arché: “Arché – palavra grega que contempla igualmente os
significados de princípio, causa, fundamento e ponto de partida”. Registre-se que já neste
trabalho, de 1934, SCHMITT descreve a posição do decisionismo jurídico, mas já se identifica
com um decisionismo institucionalista, em referência a uma ordem concreta.
262
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., pp. 65-66;
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 112;
SCHMITT, Carl. Teología Política, cit., p. 14: “La Constitución puede, a lo sumo, señalar quién
está autorizado a actuar en tal caso. Si la actuación no está sometida a control alguno ni dividida
entre diferentes poderes que se limitan y equilibran recíprocamente, como ocurre en la práctica
del Estado de derecho, al punto se ve quién es el soberano. El decide si el caso propuesto es o no
de necesidad y qué debe suceder para dominar la situación. Cae, pues, fuera del orden jurídico
normalmente vigente sin dejar por ello de pertenecer a él, puesto que tiene competencia para
decidir si la Constitución puede ser suspendida in toto”.
263
“A autoridade não a verdade faz a lei”, SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit. p. 33;
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 147.
264
SCHMITT, Carl. Teología Política, cit., pp. 19-20. “La excepción perturba la unidad y el orden
del esquema racionalista. (…) Pero una filosofía de la vida concreta no puede batirse en retirada
ante lo excepcional y ante el caso extremo, sino que ha de poner en ambos todo su estudio y su
mayor empeño. Más importante puede ser a los ojos de esa filosofía la excepción que la regla, no
por la ironía romántica de la paradoja, sino con la seriedad que implica mirar las cosas calando
más hondo que lo que acontece en esas claras generalizaciones de lo que ordinariamente se
repite. La excepción es más interesante que el caso normal. Lo normal nada prueba; la
excepción, todo; no sólo confirma la regla, sino que ésta vive de aquélla. En la excepción, la
fuerza de la vida efectiva hace saltar la costra de una mecánica anquilosada en repetición”.
265
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 283: “For Schmitt, the normal and the rule
prove nothing; the exception, everything”.
98
mundo, a exceção configura-se como a intervenção direta do soberano na
ordem266. Por conseguinte, é na exceção que é possível observar o soberano, pois
não é no monopólio da coerção ou da dominação que reside a essência da
soberania do Estado, mas na decisão última267. Assim, para SCHMITT, não só a
ideia de soberania está ligada à decisão, mas, também, a de ordem e, mesmo, a
ideia de Constituição.
266
SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p. 37.
267
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 67.
268
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 76.
269
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., p. 33; SCHMITT,
Carl. Teoria de lá Constitución, cit., pp. 57-63.
270
Para o tratamento dessas críticas de SCHMITT, nesse sentido, inclusive, apontando para uma
mudança de posição desde o Teoria da Constituição até o Legalidade e legitimidade:
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., pp. 30-34; 65-107.
99
ser justificada em qualquer norma, ética ou jurídica (“una norma no sería
adecuada a fundar nada aquí”271), sendo válida porque a unidade política tratada
pela Constituição “existe de fato”272. É sobre essa facticidade que o sujeito do poder
constituinte fixa o modo e a forma de existência estatal273. Em suma, a validade da
Constituição emana do poder constituinte, considerado como manifestação
ilimitada e suprema da autoridade soberana274.
271
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución, cit., p. 136.
272
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 43:
“para o decisionismo schmittiano, não há fundamento metafísico, teológico ou baseado numa
moral humanitária, tal como ocorreu XVI, XVII e XVIII. Para ele, ao menos nesta fase de
pensamento (dos anos 1920), não há fundamento para decisão moral”.
273
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución, cit., p. 136.
274
LINDHAL, Hans. Constituent Power and Reflexive Identity: Towards an Ontology of
Collective Selfhood. In: LOUGHLIN, Martin; WALKER, Neil (eds.). Paradox of
constitutionalism: constituent power and constitutional form. Oxford: Oxford University Press,
2007, pp. 9-24, p. 22: “Ironically, having excoriated Kelsen for transforming the law into a self-
grounding, self-serving, self-sustaining order, Schmitt ends up doing just that with respect to
political unity. Schmitt, not Kelsen, is the positivist. Rejecting Schmitt’s move by exposing the
equivocal selfconstitution of political community amounts, ontologically speaking, to recognizing
that the collective self exists in the mode of questionability”.
275
SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
100
plebiscitária schmittiana, especialmente, quando se tem em mente o papel do mito
para a construção do autor276.
276
VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar,
cit., pp. 142-143. Com entendimento diverso, RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR sustenta que:
“Schmitt não defende uma concepção de dominação carismática weberiana. O Füher é a
encarnação da unidade política das instituições, e não a projeção de um poder irracional e pessoal
produto do entusiasmo, tal como defendida por uma postura ocasionalista romântica. Schmitt
entende que a dominação nazista deveria se fundar no poder tradicional das instituições e no
poder burocrático legal criado pela normalidade legal instaurada pela decisão”: MACEDO
JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 111.
277
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 56; BERCOVICI, Gilberto.
Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 52: “Quando o Estado se transforma em
uma estrutura pluralista não há mais fidelidade ao Estado ou à Constituição, mas fidelidade à
organização social, colocando em risco a formação da unidade política”. Uma nação que se afasta
da perspectiva dialética, como encarada por RENAN. RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?, cit.
278
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 72.
279
SCHMITT, Carl. O conceito do Político. In: SCHMITT, Carl; MOREIRA, Luís (coord.) . O
conceito do Político/Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, pp. 1-141, p. 19.
280
Isso fica claro, especialmente, já no início do prefácio da obra: SCHMITT, Carl. O conceito do
Político, op. cit., p. 8.
101
absolutista que deteve o monopólio do político, se colocando, não no mesmo
patamar que a sociedade, como seu antagonista, mas em posição acima dela.
102
políticos relacionam-se, especificamente, com essa diferenciação e é nela que se vê
construir uma definição conceitual – não exaustiva ou conteudística, mas,
qualificativa – no sentido de identificar-se um critério para o político. Com ela
pretende-se propor uma categoria autônoma para caracterizar o “extremo grau de
necessidade de uma união ou separação, de uma associação ou dissociação”284.
De todo modo, ainda que esse confronto seja, via de regra, mais bem
compreendido no enfretamento de um povo contra outro, a dimensão extraestatal
não chega a ser necessária. SCHMITT identifica que é possível que as principais
cisões ocorram no âmbito interno de um Estado, isto é, que as contraposições
interestatais alcancem o grau extremo amigo/inimigo, fazendo-se maiores que a
própria contraposição unidade estatal (amigo)/outro Estado (inimigo), o que
caracterizaria a guerra civil286.
284
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 23.
285
VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar,
cit., p. 117; SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 48.
286
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 34.
103
Como categoria autônoma, a diferenciação amigo/inimigo é teórica e
praticamente independente de qualquer outro modo de diferenciação:
287
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 28.
288
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 41.
104
eliminação e despersonificação da soberania, quer seja na negação de uma suposta
Paz Perpétua, o liberalismo político é sempre o alvo do autor. Nesse sentido,
entendendo a Constituição como decisão política fundamental, entende o
Rechtsstaat como a decisão constitutiva da ordem legal do liberalismo289. Assim
sendo, boa parte de seus esforços foi no sentido de compreender a ordem como
essencialmente derivada da vontade, da decisão, com o fundamento último na
força. Nesse sentido, ALVES e CATTONI afirmam que “não há, portanto, como
pensar o constitucionalismo democrático com, mas somente contra Carl Schmitt.
O constitucionalismo democrático é criticável, mas reconstrutivamente a partir de
si mesmo e não a partir de pensadores autoritários como Carl Schmitt” 290.
289
DYZENHAUS, David. Legality and legitimacy, cit., p. 39.
290
ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Carl Schmitt, op. cit.,
p. 270.
105
CAPÍTULO 3
O NASCIMENTO DA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:
DIALÉTICAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL
CONCEPÇÕES DIALÉTICAS
291
É curiosa a observação de PETER CALDWELL: “A different conception of constitutional law
emerges if one focuses on the process of making and applying law in concrete situations. In the
Anglo-American context, Lon L. Fuller and Ronald Dworkin have each shifted attention to the
complex interaction among legal norms, values, and facts in law. Their approaches counter the
Austinian tradition of H. L. A. Hart and British analytical jurisprudence, with its search for a body
of formal, positive law. Many decades before the critics by Fuller and Dworkin were published, a
similar attack on ‘undialectical’ conceptions of constitutional law appeared in the Weimar
Republic, in the writings of Rudolf Smend and Hermann Heller”. CALDWELL, Peter. Popular
sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 120.
292
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
121: “sovereign was implicated at all times in practical politics; it had a place immanent to a
functioning democracy”; SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional, cit., p. 63;
106
Desse modo, em 1930 ambos defendiam a República e a Constituição de Weimar
(ainda que HELLER de forma mais convicta que SMEND) e, de maneiras bastante
diferentes, argumentavam em favor da democracia, entendendo-a como um modo
de participação constante dos cidadãos na comunidade. Assim, apontavam para
um direito constitucional que envolvesse mais nitidamente questões práticas, éticas
e políticas, argumentando, cada um a sua maneira, a partir de leituras hegelianas.
As posições de ambos foram bastante influentes no contexto da
reconstitucionalização alemã em 1949 e, consequentemente, no
constitucionalismo do Estado Democrático de Direito293.
Não deixa de ser curioso que, em que pesem suas fortes influências e,
menor “radicalismo”, são esses os dois autores menos abordados dentre os quatro
que se destacaram naquele momento. SMEND, por exemplo, apesar de ter sua
importância reconhecida, expressamente, quer por SCHMITT, quer por KELSEN, e
de ter formado grandes constitucionalistas alemães (por vezes agrupados em torno
de uma escola smendiana), em muitos contextos nem mesmo é tratado quando de
estudos sobre o período294. HELLER, por seu turno, é responsável por cunhar a
expressão, e lutar pelo modelo, do Estado Social de Direito (sozialer Rechtsstaat) e
do Estado Democrático de Direito (demokratischen Rechtsstaat). Além disso,
influenciou de modo bastante significativo autores de várias correntes, desde
autores da Escola de Frankfurt, como FRANZ NEUMANN295, a autores da Escola
HELLER, Hermann. La Soberanía: contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del Derecho
Internacional. México: UNAM, 1965, p. 175; HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p.
208; RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?, cit., p. 66.
293
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
122. LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho
político de la República Federal, op. cit.; KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 207.
294
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit.; VITA, Leticia. La legitimidad del
Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar, cit.
295
SCHEUERMAN, William E. Between the norm and the exception: the Frankfurt School and
the Rule of Law. Cambridge: The MIT Press, 1994, pp. 40-46. Isso se vê, explicitamente, por
exemplo, nas várias menções que NEUMANN faz a HELLER em seu trabalho, como em O
Império do Direito, em especial quanto à sua definição de soberania e quanto à perspectiva
dialética. Apenas a título de exemplo, não deixa de ser interessante uma definição que faz de
Direito: “Que o direito tenha que ser entendido como o produto de forças sociais significa que
ele é produto da atividade humana tanto determinada por elas, mas também determinante das
forças sociais”, NEUMANN, Franz. O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na
sociedade moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 72. Nessa passagem se vê de forma
107
smendiana como PETER HÄBERLE. Contudo, seu falecimento prematuro, no
mesmo ano de 1933, quando também morreu a República de Weimar, impediu
maiores desdobramentos de sua obra.
muito marcada a perspectiva dialética explorada por HELLER quando trata de normalidade e
normatividade.
296
Na verdade são três gerações de intelectuais homônimos na família, pois o filho de (CARL
FRIEDRICH) RUDOLF SMEND, também se chama RUDOLF SMEND (1932) e, assim como o avô e
o tio-avô, é teólogo.
297
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
125.
108
idêntica ou similar nas duas constituições apresentavam sentidos diversos para as
duas ordens e realidades298.
A partir daí, com sua teoria da integração, intentou romper com as linhas
positivistas que lhe eram contemporâneas301. Estas se caracterizaram,
epistemologicamente, por identificar vários dualismos, como: o distanciamento
entre o conhecimento subjetivo e o conhecimento objetivo; entre natureza e
Espírito; entre a explicação das ciências naturais, causalmente determinada, e a
explicação das ciências humanas, normativamente determinada e idealista. Nessa
esteira, ao tratarem da análise da Teoria do Estado, para SMEND, tais perspectivas
298
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 207.
299
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., pp. 207-208.
300
LUCAS VERDÚ, Pablo. La lucha contra el positivismo jurídico en la República de Weimar,
cit., p. 55.
301
SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional, cit., p. 39-70.
109
positivistas separavam de modo marcante o ser e o dever ser, a realidade
constitucional e as normas constitucionais302.
302
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., pp. 208 e 209. Quanto ao enfrentamento dessas
dicotomias, KORIOTH, faz menção expressa ao contraponto existente entre as posições de
SMEND e KELSEN.
303
SMEND, Rudolf. Die politische Gewalt im Verfassungsstaat und das Problem der Staatsfrom
(1923). SMEND, Rudolf. Staatsrechtliche Abhandlungen und andere Aufsätze. 4 ed. Berlim:
Duncker & Humblot, 2010, pp. 68-88. SMEND não se coloca como criador do termo. Aponta sua
utilização por outros juristas como KELSEN, THOMA e, especialmente no sentido que trata,
remete a WITTMAYER. Também faz referência ao uso do termo por H. SPENCER, no âmbito da
sociologia.
304
KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit.
305
A principal obra do LITT, que especialmente influenciou SMEND, foi: LITT, Theodor.
Individuum und Gemeinschaft: Grundfragen der sozialen Theorie und Ethik. Leipzig, 1919, que
foi revisada e reeditada em 1924 e em 1926. SMEND faz referência a essas duas edições.
306
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 209: “In an effort to free the theory of state
and constitution from its positivist context, Smend took as his basis, in methodological opposition
to Kelsen, the phenomenological method of Theodor Litt and his Hegelian philosophy”.
110
Teoria do Estado, da Teoria da Constituição e do Direito Constitucional) e
âmbitos de trabalho307.
307
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 39: “en definitiva, al hecho de
que así como no puede existir un derecho constitucional satisfactorio y operativo sin una
fundamentación metodológica clara y consiente en una teoría general del Estado y de la
Constitución, tampoco es posible una teoría viable del Estado y de la Constitución sin una
metodología propia que no puede ser jurídica, sino necesariamente adecuada a la metodología de
las ciencias del espíritu; tan sólidamente fundada en una teoría del conocimiento como la
metodología de cualquier otra ciencia del espíritu”.
308
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., pp. 64-65.
309
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., pp. 62-63.
310
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 46.
111
Estado a partir do processo da síntese de atividades e de valores311. Para HÄBERLE,
retrospectivamente, essa ideia, inclusive, “es vista también como un intento de
contrarrestar la triste polarización de las fuerzas políticas de Weimar. Justo al
contrario C. Schmitt”312.
311
O que não escapa à crítica de KELSEN que o acusa de, assim, cair em contradição com seu
marco teórico de partida: TH. LITT. KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit., p. 12.
312
HÄBERLE, Peter. La constitución como cultura. Anuario iberoamericano de justicia
constitucional, Madri, n. 6, pp. 177-198, 2002. Também apontando nesse sentido: KORIOTH,
Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 210.
313
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 210.
314
Nesse sentido é muito interessante a passagem: “Es fruto de una mentalidad típicamente liberal
– o como diría H. Preuss, de una mentalidad jerárquica – pensar que el problema del caudillaje o
mando político es únicamente un problema de los gobernantes y no tanto por lo menos también
de los gobernados”, SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 71.
315
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., pp. 70-78. O autor trata de modo
especial da chefia de Estado, dando especial atenção à figura de um monarca quando atuando
nesse sentido. Entretanto, aponta também dimensões dessa forma de integração enquanto
112
Quanto ao segundo tipo de integração, ainda relacionada à síntese de
atividades, a integração funcional ou processual, SMEND trata das formas de vida
que tendem a criar um sentido coletivo através de processos que apontam para
produzir uma síntese social. Nelas estariam as manifestações públicas, as paradas
militares, os referendos, as eleições, as atuações parlamentárias, a participação em
instituições pública, a cidadania ativa de um modo geral, mas também, e
especialmente, a própria luta política, quando em torno de valores comuns, através
de uma disputa organizada e regrada. Para o autor, sob condições políticas
saudáveis, seria possível a própria superação das tensões por meio do
enfrentamento político em torno de objetivos comuns, em uma catarse similar
àquela do desfecho de um jogo. Deste modo, a razão de fundo dessa função
reparadora e catártica seria a de ato integrador essencial da vida comunitária para o
aumento da participação vital do indivíduo – independentemente dele pertencer à
maioria ou à minoria – da qual decorreria a formação e fortalecimento de uma
maior unidade política, não exatamente homogênea, mas que comungasse dos
mesmos valores de fundo316.
Acerca desse sentido, SMEND trata o Estado como uma socialidade das
vivências substantivas, especialmente, de uma comunidade cultural ativa. É na
comunidade que os valores são vividos e se atualizam, sendo esta mesma
comunidade, a condição para eles tenham eficácia e vida própria. Contudo, essa
implicação transita nos dois sentidos, pois a própria existência da comunidade
depende dos valores que a sustentam. Se o próprio indivíduo, no desenvolvimento
113
de sua personalidade e de sua participação na vida do Espírito, depende da
atualização dos valores culturais, essa necessidade é ainda mais patente no caso das
coletividades, que, por natureza, carecem de uma existência psicofísica.
317
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 93-95.
318
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política, op. cit., p. 8.
319
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 132.
114
nessas bases, é um eu coletivo que corresponde à representação do eu de cada
um320.
320
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 49.
321
KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit., p. 5.
322
KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit., pp. 26-28.
115
outros críticos contemporâneos. Sua teoria da integração, de algum modo, refletia
as experiências traumáticas da Primeira Guerra Mundial, bastante relacionadas ao
colapso do ideal iluminista de progresso.
Ele influenciou diretamente uma ampla gama de autores que por vezes são
identificados, de algum modo, com uma Escola de Smend. São-lhe representantes
juristas bastante reconhecidos como KONRAD HESSE, ULRICH SCHEUNER,
HORST EHMKE (que foram seus alunos). Ainda são marca dessa “escola” a
abertura e o diálogo que teve com a jurisprudência anglo-americana, bem como, a
influência de suas ideias no desenvolvimento do Tribunal Constitucional Alemão.
323
SMEND, Rudolf. Integrationslehre. In: SMEND, Rudolf. Staatsrechliche Abhandlungen und
anderen Aufsätze. 4 ed. Berlim: Duncker & Humblot, 2010, pp. 475-481.
324
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 210.
116
Já em 1914 alistara-se como voluntário para a Primeira Guerra. Durante o
serviço militar, em 1915, forma-se em Direito na renomada Universidade de Graz,
onde faz seus Staatsexamen, depois de ter passado pelas Universidades de
Innsbruck e de Viena. No mesmo ano, combate pelo exército do Império Austro-
húngaro no front russo, o que lhe causou problemas cardíacos que lhe custaram o
falecimento precoce aos 42 anos. Com o fim da guerra, vê o fim do Império e,
como toda uma geração, sente-se privado de sua identidade política e existencial.
Migra à Alemanha onde segue seus estudos na Universidade de Kiel, defendendo
sua Habilitation em 1920, com o trabalho intitulado: “Hegel e a ideia de Poder
estatal nacional na Alemanha: uma contribuição para a história das ideias políticas”
(Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke in Deutschland: Ein Beitrag zur
politische Geistesgeschichte ).
De modo geral, entre 1920 e 1932 teve vida política bastante ativa.
Considerado um intelectual poderoso e temperamental, nesse período ajudou a
325
LA TORRE, Massimo. La crisi del novecento: giuristi e filosofi nel crepuscolo di Wiemar.
Bari: Dedalo, 2006, p. 55-56.
326
O Kapp Putsch foi uma tentativa de golpe de Estado contra o Presidente da República alemã, o
Social Democrata Friedrich Ebert. O evento ocorreu entre 13 e 17 de março de 1920. Seus
líderes eram Wolfgang Kapp e o General Walther von Lüttwitz (por isso o evento por vezes é
também conhecido como Kapp-Lüttwitz Putsch) que com o putsch militar pretendiam
estabelecer uma governo autocrático de direita. KOLB, Eberhard. The Weimar Republic, cit.,
pp. 37-40; HENIG, Ruth. The Weimar Republic 1919-1933, cit., pp. 25-27.
117
construir a juventude socialista, trabalhou na educação para adultos e teve atuação
bastante importante na vida jurídico-política alemã. Além disso, apesar das
barreiras antissemitas que foram progressivamente aumentando, nesse período
ocupou postos acadêmicos em Kiel (1920-1922), Leipzig (1922-1926)327, Berlim
(1926-1932) e Frankfurt (1932). Na capital da República, incialmente ocupou o
posto de consultor (Referent) no Kaiser-Wilhelm-Institut für ausländisches
öffentliches Recht und Völkerrecht de Berlim328, tornando-se Professor da
Friedrich-Wilhelms-Universität de Berlim em 1928, onde ficou até ser apontado à
Universidade de Frankfurt, em 1932.
327
Ali, particularmente, no sistema de educação para adultos. STOLLEIS, Michael. A history of
public law in Germany 1914-1945, cit., p. 175.
328
O Kaiser-Wilhelm-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht foi fundado
em 1924 e em 1949 deu lugar ao Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und
Völkerrecht, hoje situado em Heidelberg.
329
MONEREO PÉREZ, José Luiz. MONEREO PÉREZ, José Luiz. La defensa del Estado Social
de Derecho: la teoría política de Hermann Heller. Barcelona: El Viejo Topo, 2009, pp. 113-114,
nota 4: “Las medidas de represión del régimen fascista-nazi se ejercieron sobre todos los
intelectuales demócratas y se cebó especialmente en los intelectuales judíos. Fueron obligados a
exiliarse o exterior o interiormente no sólo Hermann Heller, sino también otros intelectuales
(judíos o no), como Moritz Julius Bonn, Gustav Radbruch, G. Kantorowicz, Nawiasky,
Löwenstein, Schücking, Apelt, Jacobi, Anschtz, W. Jellinek, entre muchos. Precisamente
sucesores de Heller e Schücking, fueron designados discípulos de Schmitt: E. Forsthoff y E. R.
Huber, mientras que la cátedra de Nawiasky fue ocupada por Th. Maunz”.
118
um ano após sua morte, ainda incompleta, mas já com uma estrutura e
desenvolvimento significativamente sólidos330.
330
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., pp. 249-250; DYZENHAUS, David.
Hermann Heller and the legitimacy of legality. Oxford Journal of Legal Studies, Oxford, v. 16, n.
40, pp. 641-666, 1996: “The manuscript was in good enough shape to be published in 1934 in
Holland in an edition put together by G. Niemeyer, one of Heller's students”.
331
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., pp.
162-170; BECK, Earl R. The Death of the Prussian Republic: A Study of Reich-Prussian
Relations, 1932-1934. Tallahassee: The Florida State University, 1959, pp. 121-145.
332
O governo deposto por Berlim era composto por uma coalizão entre o SPD e o Zentrum
(Partido Alemão Centro-Católico).
333
Tratando do episódio, trabalhando as posições defendidas no caso: DYZENHAUS, David.
Legal Theory in the collapse of Weimar: Contemporary Lessons?. American Political Science
Review, v. 91, n. 1, pp. 121-134, mar. 1997.
334
STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945, cit., p. 177; MONEREO
PÉREZ, José Luiz. La defensa del Estado Social de Derecho, cit., passim.
335
STOLLEIS destaca a especial rixa que HELLER alimentava contra KELSEN, mencionando que
nos encontros da Associação de Professores de Direito do Estado Alemão ele “era
119
jurídico não era capaz de explicar, nem mesmo, a positividade do Direito. Isso
porque a teoria jurídica, na tentativa de entender o que o Direito é,
invariavelmente, fazia-o de modo não meramente descritivo – por mais que assim
o pretendesse – mas, necessariamente, de forma prescritivo-normativa.
ocasionalmente aceito como um aliado contra Kelsen”. STOLLEIS, Michael. A history of public
law in Germany 1914-1945, cit., pp. 175-178.
336
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, cit., pp. 251-252.
337
STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945, cit., p. 175; HELLER,
Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 49: “desde hace dos generaciones la burguesía alemana
aparece políticamente saturada y los tratadistas alemanes de la teoría del Estado, que se jactaban
de no tener nada que ver con la política práctica, dedicaron los mayores esfuerzos a ‘despolitizar’
su disciplina (...) Estos últimos autores pretendían, queriendo como engañarse a sí mismos, que
les era posible eludir la problemática política de su tempo; pero, de hecho, se vieron forzados a
aplicar soluciones históricamente desplazadas a los problemas tradicionales o, al contrario, a
adoptar soluciones tradicionales sin recoger, con ellas, a las cuestiones a que respondían”.
338
BESTER, Gisela Maria. A concepção de Constituição de Hermann Heller – integração
normativa e sociológica – e sua possível contribuição à Teoria da Interpretação Constitucional.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 36, p. 231-50, 1999, p. 239.
120
conceito de constituição, motivo pelo qual JOSÉ LUIZ BORGES HORTA o trata
como um autor de síntese da Teoria da Constituição339.
339
HORTA, José Luiz Borges. Teoria da Constituição: contornos epistemológicos. Revista
Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 6, pp. 346-357, jul./dez. 2005, p. 351.
340
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit., p. 111; HELLER,
Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 21-53, 83: “Así, para Bluntschli (Allg. Staatsl., VI, p. 2), G
Jellinek (p. 15) y otros muchos, la teoría del Estado y la doctrina del derecho político tendrían
como misión estudiar el ‘orden estatal en reposo’, el Estado ‘como algo fijo y regulado’, y en
cambio, la política se ocuparía del Estado ‘en su vivir’. Tal distinción es, sin embargo,
radicalmente inaceptable porque el Estado, al igual que toda otra forma de la actividad política,
sólo existe como institución en tanto se renueva de modo constante mediante la acción humana”.
341
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 250.
121
tampouco, sobrepô-las umas às outras342. Alegava que toda teoria que inicia sua
abordagem desde as alternativas Direito ou poder, norma ou vontade, objetividade
ou subjetividade, desconhece a construção dialética da realidade estatal e, por isso,
é falsa343.
342
DYZENHAUS, David. Hermann Heller and the Legitimacy of Legality, op. cit., pp. 641-642.
343
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 350-351.
344
HELLER, Hermann. El sentido de la política. In: HELLER, Hermann. El sentido de la
política y otros ensayos. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 57-60, p. 60: “Aun cuando todos los
hombres fuesen justos y se dejasen guiar por motivos morales, seguiría siendo, sin embargo, el
poder el medio de la política, mientras no todos ellos piensen y quieran lo mismo. Pues en ese
caso seguiría habiendo todavía oposición al orden dominante precisamente porque unos motivos
morales no coincidirían con los otros (…). La justicia no se impone por sí misma, para su
realización necesita hombres y poderes, y si todo lo demás no es suficiente, también la violencia
física. Pero el poder social es la capacidad para el dominio en el Estado, la economía, etc., la
capacidad espiritual y material para la dirección”.
122
compreender sua essencial mutabilidade. Por conseguinte, “el conocimiento de la
realidad política y su valoración se hallan, pues, entrañablemente unidos”345.
345
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 86-87.
346
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 180.
347
DYZENHAUS, Legality and Legitimacy, cit., p. 167.
123
contradições e tensões inerentes348. Mais que isso, defendeu que apenas os
princípios éticos e políticos, baseados em práticas sociais e políticas, poderiam
fundar e fundamentar um Estado de Direito349.
348
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit., p. 113: “Ao
contrário de Carl Schmitt, a unidade política, para Heller, não é um dado prévio, mas um fim
ideal continuamente confrontado com a complexidade e as contradições da realidade. Por isso
entende o Estado como unidade na pluralidade”.
349
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 253.
350
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 350-351.
351
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 254: “The basis of Heller's argument in
this respect is a concept of human nature that is necessarily socially and culturally constructed.
Human nature is culturally determined but also determinative of culture. Culture comes about
because human nature is utopian in the sense of setting goals and then trying attain them. But
these goals necessarily operate within the context of a culture that is not directly of our making
and which thus forms a relatively objective and constitutive basis for our individual efforts”. Sobre
cultura em HELLER: NIEMEYER, Gerhart. Prólogo. In: HELLER, Herman. Teoría del Estado,
cit., p. 11: “La naturaleza dialéctica del individuo, es decir, formada por muchas acciones
particulares como un todo, y que, a su vez, también reacciona sobre los factores normativos,
corresponde la estructura del todo social que consiste en la actividad de los individuos”.
352
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 61; tratando da mesma questão, ainda: pp. 29-
30, 107-108.
124
Sobre essas bases, HELLER constrói seu conceito de legitimidade da ordem
jurídica e estatal desde um fundamento de imanência à ordem e, para tanto,
resgata HOBBES. Na leitura que faz do inglês, identifica-o como o primeiro
pensador a renunciar por completo à tese de um soberano como instituição
divina. Por conseguinte, para HELLER, o autor do Leviatã é, também, o primeiro
pensador a montar a fundamentação do poder do Estado e do soberano, de
modo, essencialmente, independente de quaisquer bases ético-religiosas. Entende,
assim, que o que surge como definitivamente contundente em HOBBES é o fato de
sua argumentação a respeito da legitimidade do poder e do soberano ser,
decisivamente, imanente, uma vez que é estabelecida a partir do fim do Estado: na
função sociológica de assegurar a paz e a defesa da comunidade e dos homens que
a integram. Assim, com HOBBES, HELLER conclui que a busca pelo fundamento
da legitimidade é uma busca por um fundamento e por uma estrutura imanente353.
353
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 38. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e
estado de exceção permanente, cit., p. 113: “O Estado, para Heller, tem uma função social, um
fim que nem sempre coincide com os fins subjetivos dos homens que o formam. O que dá
sentido e justificação ao Estado é esta função social. As pretensões do Estado não se justificam
pelo fato deste assegurar qualquer ordenação sócio-territorial, mas somente se o estado aspirar a
uma ordenação mais justa. A justificação do Estado, portanto, não se dá pela força ou pela
legalidade, mas enquanto ele representar a organização necessária para assegurar o direito em
uma determinada etapa de sua evolução histórica. A justificação é essencial para o Estado. Nas
palavras de Heller, ‘o Estado vive de sua justificação’. Quando o povo perde a fé na legitimidade
do Estado enquanto instituição, o Estado chegou ao fim”. Em sentido similar trata FRANZ
NEUMANN, falando da imanência na democracia da Constituição de Weimar: “Germany become
a democracy on the basis of freedom and equality with identity of rulers and ruled. Every kind of
transcendental justification of government was abolished; the justification was only an immanent
one”, NEUMANN, Franz L. The decay of German democracy, op. cit., p. 31.
125
Estado assume sua forma organizacional de unidade de decisão e o monopólio da
coerção. No Estado de Direito, no entanto, o preço pago por essa estabilidade é
de o próprio poder também estar adstrito às amarras da ordem legal354, uma
construção que já é vista em JELLINEK.
Assim, para HELLER, apenas no Estado de Direito, com sua divisão dos
poderes, existe a conexão (formal e material) entre legalidade e legitimidade. Pois,
“en la lucha contra la arbitrariedad absolutista se creyó poder asegurar la
legitimidad por la legalidad, en tal manera, que el pueblo venía a dictar leyes por sí
mismo y el resto de la actividad estatal debía someterse a estas leyes”. Todavia, a
divisão dos poderes tem caráter organizatório, por isso, se coloca como um meio
técnico de garantir a segurança jurídica, que nada tem de ver com a justiça do
Direito. Exatamente pelo fato de a legitimidade democrática não se colocar nos
termos de uma predestinação metafísica, sua referência não se põe, exatamente,
354
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 202.
355
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 217; NIEMEYER, Gerhart. Prólogo,
op. cit., p. 15-16: “Por encima de toda voluntad creadora de derecho, coloca Heller principios
jurídicos generales de contenido ético o lógico-constructivo, que engendran y limitan todas las
posibilidades de contenido de derecho positivo. Sólo dentro del círculo de estas representaciones
de lo que es ‘recto’ (pero no todavía ‘derecho’) puede el poder creador de derecho adoptar su
decisión, para dar carácter positivo a los preceptos jurídicos concretos. Tato la conciencia de la
voluntad que manda, como la que obedece, están determinadas por los contenidos de estas
representaciones. Lo cual significa que sólo puede ser considerado regularmente como precepto
jurídico y, como tal, obedecido, lo que se deriva de principios jurídicos. (…)Claro que es que no
hay que confundir esta vinculación normativa de la voluntad de decisión con una reedición de las
concepciones jusnaturalistas. Precisamente lo que constituye la esencia del derecho natural falta
en la noción helleriana de los principios jurídicos, a saber, la validez de normas jurídicas a
principio, con independencia de la conducta humana del tiempo y del espacio”.
126
em relação ao Direito justo: “por este motivo, la legalidad del Estado de derecho
no puede substituir la legitimidad”356.
356
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 282-285.
357
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 291-302.
358
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit., p. 123.
359
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 277.
360
HELLER, Hermann. Las ideas políticas contemporáneas. Granda: Comares, 2004, p. 45.
127
Aponta, ainda, que a democracia liberal, no curso do século XIX, aboliu os
privilégios jurídicos de estamentos e proclamou a igualdade jurídica formal e que,
sobre essas bases, o Estado passou a não interferir na liberdade de aquisição da
propriedade, apenas preocupando-se em assegura-la a posteriori, através da
garantia da liberdade contratual e do direito de sucessão. Esse formato deu azo a
outro tipo de dominação, a dominação de classe econômica, que, para HELLER,
coloca-se como ainda mais opressora que o modelo anterior, uma vez que nem
mesmo é fixada juridicamente ou se expõe como idealmente legitimada. De outra
parte, na democracia social o governo pretende justificar-se desde o homem em
sua totalidade psicofísica, na medida em que condicionado por suas possibilidades
sociais, econômicas e individuais. Assim, enquanto a democracia liberal abstrai o
sujeito econômico de toda a organização, a democracia social dá maior
importância à organização equitativa das relações social-econômicas361.
361
HELLER, Hermann. Las ideas políticas contemporáneas, cit., pp. 117-118.
362
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 114-136.
128
Tal processo de democratização da razão, para o autor, passa pela
consolidação do sufrágio universal, mas também, por uma especial atenção para
com o fato de a desigualdade social se colocar como impedimento à consideração
do cidadão na condição de autor de sua ordem política e social363. A consciência da
liberdade sob o Direito é, por um lado, a consciência da desigualdade social e, por
outro, a consciência do poder político364. Portanto, frente à desigualdade
econômico-social, encoberta pela democracia formal, colocada como tentativa da
burguesia manter essa desigualdade, burguesia e proletariado só poderiam ser
vistas como duas classes ditatoriais combatentes. Por conseguinte, para uma efetiva
democracia e um efetivo Estado de Direito é necessário construir-se uma
homogeneidade social, plural.
Desse modo, como dito, HELLER não se contenta com uma ideia formal de
Estado de Direito (Rechtsstaat) e clama por um Estado Social de Direito (sozialer
Rechtsstaat), como dimensão necessária para um efetivo Estado de Direito: um
Estado Democrático de Direito (demokratischen Rechtsstaat)365.
129
supraculturais366. Como aponta ORLANDO DE CARVALHO, HELLER “acentua a
necessidade de um Estado ideal, que possa justificar o Estado real social”367.
Os princípios jurídicos, por seu lado, não são normas de direito positivo e
para HELLER eles podem ser de duas naturezas. Ou bem são normas constitutivas
da forma pura do Direito, no sentido de terem validade como regras da lógica
jurídica, ou bem são normas edificadoras do conteúdo do Direito com pretensão
de validade ética. Os princípios jurídicos relacionados à lógica são de efetiva
aplicação a cada ordem jurídica positiva, não demandando qualquer tipo de
especial vontade para sua aplicação. Enquanto isso, os princípios jurídicos
edificadores do conteúdo do Direito têm de ser sempre afirmados por todos os
círculos culturais, na medida em que constituem normas éticas de Direito; assim,
366
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 204; HELLER, Herman. Metas y
límites de una reforma de la constitución alemana. In: HELLER, Hermann. El sentido de la
política y otros ensayos. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 69-74, p. 71.: “Como fundamento de
legitimación autoritaria del Estado hacemos valer sólo al pueblo, al pueblo como portador de
determinados valores que posibilitan la cultura, y no como masa de opiniones e intereses
arbitrarios” (O itálico presente no original).
367
CARVALHO, Orlando. Caracterização da Teoria Geral do Estado. Belo Horizonte: Kriterion,
1951, p. 113.
368
Aqui seguimos o caminho da tradução de Rechsstaz como preceito jurídico e Rechtsgrundsatze
como princípio jurídico, na calha da versão castelhana que aqui tomamos de: HELLER, Herman.
Teoría del Estado, cit., p. 327: precepto jurídico e princípio jurídico, respectivamente. Entretanto
essa dicotomia já aparece em Die Souveränität. Na versão em castelhano que aqui utilizamos,
esses dois termos aparecem traduzidos Rechtsstaz como norma jurídica (positiva) e Rechtssätze
como norma jurídica fundamental ou norma fundamental del derecho. Para comparação de
tradução, foram consultadas as edições HELLER, Herman. Staatslehre. 6 ed. Tübingen: Mohl,
1983. Disponível (parcialmente) em: https://books.google.com.br/books?id=PbLL65Hj-
xoC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false e
HELLER, Hermann. Die Souveränität. Saarbrücken: Verlag Classic Edition, s. d.
130
sua validade condicionada a seu reconhecimento nos círculos culturais da
comunidade. Desse modo, enquanto os princípios jurídicos fundamentais são
possibilidades jurídicas, os preceitos jurídicos possuem realidade jurídica369.
369
HELLER, Hermann. La Soberanía: contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del
Derecho Internacional. México: UNAM, 1965, pp. 127-129.
370
HELLER, Hermann. La Soberanía, cit., p. 131.
371
HELLER, Herman. Metas y límites de una reforma de la constitución alemana, op. cit., p. 71.
131
realidade, tão somente em um tempo e lugar determinados de uma comunidade
jurídica e, nesse sentido, entende imprescindível a soberania372.
372
HELLER, Hermann. La Soberanía, cit., p. 128.
373
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford: Oxford University Press, 2010, p.
234.
374
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, pp.
46-90.
132
de los hechos, hace imposible la comprensión adecuada del problema del deber
jurídico”375.
375
HELLER, Hermann. La Soberanía, cit., p. 133.
376
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 283-284.
133
Tal tensão é tão viva que, em que pese HELLER entender a impossibilidade
de legalização/positivação de um direito de resistência, ao mesmo tempo, registra
que:
377
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit. p. 288, no que finaliza fazendo referência a:
LASKI, Harold Joseph. A grammar of politics. New Haven: Yale University Press, 1925.
378
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit. p. 200.
134
Estado não é processo, mas produto, não é atividade, se não forma (aberta) de
atividade através da qual é a vida em forma e a forma nascida da vida379.
379
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 317. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e
estado de exceção permanente, cit., p. 136-138: “Segundo Heller, uma boa Constituição sempre
deixa às forças do povo que forjam o porvir a liberdade para a formação futura. Portanto, decisiva
para o valor de uma Constituição é essa relação entre forma criada com liberdade criadora, uma
relação de tensão eterna, mas mutável historicamente entre a forma da unidade e a liberdade da
pluralidade. (...) Ao contrário de Schmitt, que entende a Constituição como fruto de uma decisão
soberana, Heller destaca que o essencial de uma Constituição é reforçar a normalidade pela
normatividade do texto constitucional. O reforço da normatividade, assim, significa
racionalização, previsibilidade e aumento da normatividade”.
380
HORTA, José Luiz Borges. Teoria da Constituição, op. cit., p. 351; HELLER, Hermann.
Teoría del Estado, cit., p. 318.
135
eles são intrinsecamente relacionados, na mesma realidade constitucional, sempre
em relação de implicação381.
Destarte, HELLER coloca que o sujeito do poder constituinte, quer seja ele
reconhecido no príncipe, quer seja no povo, adquire tal condição desde uma
norma. É nesses termos que encerra as últimas páginas ainda completas de sua
incompleta Teoria do Estado. Tratando da legitimidade da constituição, isto é,
afirmando que “uma constituição para ser Constituição” não pode deitar sua
justificação sobre qualquer preceito jurídico positivo ou de relação fática e instável
de dominação; precisa colocar-se segundo princípios éticos do Direito:
381
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 351.
382
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Constitucionalismo. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, a. 23, n. 91, pp. 5-62, jul./set. 1986, p. 24.
383
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 352-353.
136
política e a constituição jurídica, entre o mundo real do ser e o mundo ideal da
cultura.
Enfim, muitos foram os caminhos abertos pela luta pelo método, quase
todos encerrados ou, melhor dito, suspensos pela força e pelo terror. O que se
viu, foi um crescente empenho das forças conservadoras e capitalistas em
abandonar a própria estrutura jurídica, originalmente liberal, formal e burguesa.
No início do século XX, a abertura política e a juridificação começavam a colocar-
se como empecilhos aos próprios interesses do capitalismo monopolista e à
conservação do status quo. HELLER chega a mencionar um ódio antibugués contra
a lei, próprio do burguês. Afirma que a burguesia renega sua própria essência
espiritual e se entrega aos braços de um novo “feudalismo irracionalista”, que
“incapaz de dominar espiritual y politico-moralmente la situación sociológica, la
violência constituye su supremo artículo de fe”384. Foge-se do Direito385.
384
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura? op. cit., pp. 124-135.
385
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, cit., pp. 32-43.
137
velho mundo agoniza; o novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro,
irrompem os monstros”. Em 1933 a República de Weimar sucumbiu, a
democracia foi desmantelada e a força se impôs.
138
Parte II
Presente
É mister bater, bater cem vêzes, e cem vêzes repetir: o
direito não é um filho do céu, é simplesmente um
fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade.
Serpens nisi serpentem comederit, non fit draco, a serpe
que não devora a serpe, não se faz dragão; a fôrça que não
vence a fôrça, não se faz direito; o direito é a força que
matou a própria força”.
TOBIAS BARRETO
CAPÍTULO 4
NORMALIDADE E NORMATIVIDADE
NORMATIVIDADE:
TEORIA DO DIREITO
RELAÇÃO DESDE UMA TEORIA
386
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática.
(Syn)Thesis Rio de Janeiro, v. 5, n. p. 23-32, 2012; HORTA, José Luiz Borges. La Era de la
Justicia Derecho, Estado y límites a la emancipación humana, a partir del contexto brasileño.
Astrolabio, Barcelona, n. 11, pp. 75-85, 2010, p. 82.
139
um modo geral, à hermenêutica jurídica, apresentam-se como marcantes nas
discussões da interpretação/aplicação do Direito. O tema da justiça de transição
também ganha especial força já desde a década de 1990, adentrando o século
XXI, particularmente, a partir do fim dos regimes ditatoriais na América Latina e
do apartheid na África do Sul. São também desse período as discussões
relacionadas a um Direito Constitucional Europeu, ao constitucionalismo
multilevel, ao interconstitucionalismo e ao transconstitucionalismo, que fazem,
novamente, importantes os debates a respeito do significado da soberania
nacional, da democracia e da representatividade. Além disso, o multiculturalismo,
os motes levantados pelo constitucionalismo latino-americano e o surgir de novas
dinâmicas e estruturas, expõem o Estado de Direito, o Direito Constitucional e a
Teoria da Constituição a novos desafios.
Com isso, não se quer dizer que a Teoria da Constituição não tenha
caminhado para além das formulações da luta pelo método weimariana, longe
disso. Tampouco que o trágico dilúvio que derrubou a República de Weimar, não
tenha deixado marcas e influências profundas nos desdobramentos teóricos e
práticos, jurídicos e políticos, do constitucionalismo. Afinal, não haveria como ser
diferente.
140
Nesse sentido, não será demais afirmar que é próprio do locus
constitucional ser, por excelência, o ponto privilegiado de contato e de interação
entre Política e Direito, entre conteúdo e forma, liberdade e poder, o que faz com
que, neste âmbito, a questão sobre o método seja mais aflorada e recorrente.
387
GARCIA FIGUEROA, Alfonso. La teoría del derecho en tempos de constitucionalismo. In:
CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). 4 ed. Madri: Trotta, 2009, pp. 159-186,
p. 159: “Decía Jeremy Bentham que «el ser del Derecho es, en los diferentes países, enteramente
distinto, mientras que lo que debe ser es, en todos los países, muy semejante». Que el «ser del
Derecho» pueda ser tan diferente, que su contenido pueda ser cualquiera, explica que la teoría
del Derecho de la tradición positivista haya tratado de construir un concepto de Derecho basado
fundamentalmente en sus propiedades formales. Que el «deber ser del Derecho» sea tan
semejante presupone un Derecho ideal frente al que cualquier sistema jurídico real puede ser
evaluado moralmente. Así pues, dado que la construcción del concepto de Derecho aspira a
reflejar propiedades verificables en todos los sistemas jurídicos por muy distintos que sean sus
contenidos, sólo las propiedades formales serían relevantes para una construcción positivista del
Derecho. Uno de los medios para conseguir que las propiedades sustantivas comunes sean
también relevantes consiste en hallar un vínculo conceptual necesario del derecho real con su
dimensión (pues el deber ser del Derecho es en todos los países muy semejante). Deberá hallarse
algún vínculo del ser del Derecho con su deber ser. Como es sabido, éste es el objetivo que ha
perseguido el iusnaturalismo a lo largo de la historia”.
388
Com essa dicotomia o autor quer articular o Direito que pode ser observado, descrito (ser do
Direito) e a ideia de Direito (dever ser).
141
Constitucionalismo Democrático e de força normativa da Constituição, a estes
grupos autores é comum a clara preponderância de juristas que podem ser
identificados, das duas uma, ou como filósofos do Direito com vocação de
constitucionalistas, ou, ainda, como constitucionalistas com vocação de filósofos
do Direito389.
389
GARCIA FIGUEROA, Alfonso. La teoría del derecho em tempos de constitucionalismo, op.
cit., p. 161.
142
Com o objetivo de estabelecer um conceito de Direito, ROBERT ALEXY
identifica três elementos importantes para essa definição: a legalidade conforme o
ordenamento, a eficácia social e a correção material390. A referência a três
dimensões do fenômeno jurídico não é exclusividade, tampouco inovação de
ALEXY. MIGUEL REALE, por exemplo, é reconhecido por seus trabalhos a
respeito da Teoria Tridimensional do Direito, entendendo o fenômeno jurídico
desde uma visão dialética que articula três polos – norma, fato e valor – dos quais
se desdobram três dimensões da experiência jurídica: vigência, eficácia e
fundamento391. Também BOBBIO fala de três critérios de valoração da norma
jurídica – justiça, validade e eficácia – ainda que trate das relações de interação
entre elas de forma significativamente diversa da que faz REALE, enaltecendo a
independência desses critérios392.
390
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit.
391
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito, cit., REALE mesmo não se coloca como
criador dessa divisão tripartite, destinando o segundo capítulo do “Teoria tridimensional do
Direito” para tratar da tridimensionalidade na Alemanha, na Itália, na França, na área do
Common Law, na Cultura Ibérica e “em outras áreas culturais”. Ainda em REALE, em outras
obras, vê-se também essa tríade em outros termos: validade (vigência), eficácia (efetividade) e
fundamento (motivação axiológica), REALE, Miguel. Fontes de Modelos do Direito. São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 33. E, utilizando em momentos diferentes todas essas definições: REALE,
Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
392
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica, cit., pp. 45 e ss. Apesar de, como apontamos,
ser corrente a organização do raciocínio sobre o Direito em uma estrutura tríplice, ela não chega
a ser unânime ou necessária. Como se verá, os positivistas tendem a não identificar importância à
dimensão do fundamento (correção material, justiça) para a definição do conceito de Direito, por
vezes, nem mesmo enumerando qualquer organização em dimensões.
393
O título em português decorre de tradução literal do original em Alemão: “Begriff um Geltung
des Rechts”. Curiosamente, o título da tradução em língua inglesa é um tanto diferente: “The
Argument from Injustice: a Reply to Legal Positivism”. Segundo explicação feita no prefácio dos
tradutores BONNIE LITSCHEWSKI PAULSON e STANLEY L. PAULSON, essa opção para além da
tradução literal se dá não apenas para demarcar a diferença com a obra de H. L. A. HART, mas
também porque entendem que o título escolhido para a versão em inglês define melhor o foco da
obra.
143
modo geral, dividem-se entre: aquelas que reconhecem como necessárias à
definição do conceito de Direito apenas duas das dimensões tratadas – a da
legalidade conforme e a da eficácia social – o que caracteriza as perspectivas
positivistas394; e as linhas que identificam como necessária ao conceito de Direito –
classificatória ou qualitativamente – a articulação entre as três dimensões: a
legalidade conforme, a eficácia social e, também, a correção material395.
Curiosamente, o entendimento que parece subjazer a essa diferenciação é aquele
que compartilha MATA MACHADO quando acaba por definir positivistas como
aqueles que especializaram suas abordagens na aplicação de normas, tendo em
conta sua vigência e eficácia em uma determinada fração qualquer de tempo e
espaço396.
394
REALE, Miguel. Fontes de Modelos do Direito, cit., p. 4: “Parece-me necessário realçar a
correlação que faço supra entre fonte de direito e validade jurídica, de um lado, e modelo
jurídico e eficácia jurídica, de outro, devendo-se ter presente que toda relação jurídica envolve
sempre uma correlação entre validade e eficácia, sem a qual não se pode falar em positividade do
direito. É claro que validade e eficácia nunca existem em estado puro, isto é, sem um mínimo,
respectivamente de eficácia ou de validade, porquanto, quando dizemos que uma norma jurídica
é válida, tal afirmação implica admitir que ela importa necessariamente efeitos no plano factual,
pois, de outro modo, seria um enunciado inútil e vazio. Da mesma forma, quando declaramos
que uma norma jurídica tem eficácia, esta só é jurídica na medida em que pressupõe a validez da
norma que a insere no mundo jurídico, por não estar em contradição com outras normas do
sistema, sob pena de tornar-se inconsistente".
395
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit., p. 15.
396
MATA MACHADO, Edgar da. Elementos de Teoria Geral do Direito. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 1995, p. 143: “‘Positivistas’ foram e têm sido todos os que, onde haja
sociedade humana e organização política, se especializaram no estudo e aplicação de normas, cuja
vigência e eficácia limitada a uma fração qualquer de tempo e de espaço. E, no tocante às
tentativas de, à custa ou não do direito natural, construir-se uma ciência do Direito Positivo, cabe
o nome de ‘positivistas’ aos sofistas da geração imediatamente anterior a Sócrates, aos epicuristas,
aos glosadores, a Hobbes e Thomasius, assim como Savigny, Von Jhering e Austin e ainda aos
‘exegetas’ franceses, autores que precederam o positivismo às vezes de séculos ou, quanto aos
últimos citados, contemporâneos do positivismo filosófico”.
144
ALEXY primeiramente identifica os positivismos cujo conceito de Direito
são primordialmente orientados pela observância à eficácia397. Dentre estes, pode-
se, ainda, apontar a existência de duas posições de abordagem: as concepções que
observam o aspecto externo da eficácia e as que dão destaque a seu aspecto
interno. Além dos positivismos que dão maior peso à dimensão da eficácia, é
possível também notar aqueles que conceituam o Direito, primordialmente,
orientando-se para a normatização formal, logo, priorizando o elemento da
legalidade conforme (validade) para a definição do Direito.
397
Essa dimensão que aqui se trata por eficácia diz respeito ao sentido mais correntemente
relacionado a eficácia social, ou, efetividade material, na nomenclatura de EROS GRAU. Mais a
frente tratar-se-á da dimensão da eficácia, abordando a questão da eficácia jurídica e eficácia
social, mas, também, atentando ao desenvolvimento de EROS GRAU que, na esteira de
JEAMMAUD e OSCAR CORREAS, diferenciará não apenas duas, mas três dimensões, diferentes,
mas correlatas a esse tema. Tratará efetividade jurídica/efetividade formal (que se relaciona ao
que classicamente, no Brasil, é tido como eficácia jurídica), efetividade material (sinônimo desse
sentido de eficácia social) e eficácia (realização dos fins da norma). HABERMAS, por sua vez,
tratará essa dimensão sob a chave da validade social: “A validade social diz respeito à capacidade
de imposição das normas entre os destinatários, isto é, a sua aceitação fáctica e que na teoria do
Direito se chama de eficácia. Já a validade, no sentido utilizado na teoria do Direito sob o nome
de legitimidade”, SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. Habermas e a desobediência civil.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 71; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre
facticidade de validade I. 2 ed. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 2012, pp. 48-55. Ele, por sua
vez, segue a esteira de outro autor da Escola de Frankfurt, FRANZ NEUMANN, que lhe antecede e
que, em sentido similar, já tratara da validade sociológica da norma jurídica: NEUMANN, Franz.
O Império do Direito, cit., p. 48.
145
WEBER, por exemplo, não será um problema a sobreposição e identificação do
conceito de legitimidade no de legalidade398.
398
WEBER, Max. Economia e Sociedade. 4 ed. Brasília: Editora UnB, 2014, vol. 1, p. 22: “A
forma de legitimidade hoje mais corrente é a crença na legalidade: a submissão a estatutos
estabelecidos pelo procedimento habitual e formalmente correto. Nestas condições, a oposição
entre ordens pactuadas e ordens impostas é apenas relativa, pois, quando a vigência de uma
ordem pactuada não reside num acordo unânime – o que, nos tempos passados, freqüentemente
foi considerado indispensável para alcançar a verdadeira legitimidade – mas na submissão efetiva,
dentro de determinado círculo de pessoas, dos discordantes à vontade da maioria – caso muito
freqüente –, temos, na realidade, a imposição desta vontade à minoria. O caso contrário, em que
minorias violentas ou, pelo menos, mais enérgicas e inescrupulosas impõem ordens, que afinal
são consideradas legítimas também pelos que no começo a elas se opuseram, é extremamente
freqüente. Quando o meio legal para a criação ou a modificação de ordens é a ‘votação’,
observamos freqüentemente que a vontade minoritária alcança a maioria formal e que a maioria a
ela se submete, quer dizer: que o caráter majoritário é apenas aparência. A crença na legalidade
de ordens pactuadas remonta a tempos muito remotos e também se encontra, às vezes, entre os
chamados povos primitivos: neste caso, porém, quase sempre completada pela autoridade dos
oráculos”.
399
SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica
jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1988; WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo
jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3 ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001.
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Direito como Liberdade: o Direito achado na rua experiências
emancipatórias de criação do Direito. UnB, 2008. 338 f. Tese (Doutorado em Direito) –
Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília,
Brasília, 2008. Quanto a esses casos vale uma ressalva importante. A abordagem dessas leituras,
via de regra, encaram que a eficácia social acaba por se operar mais em termos de aceitação e,
mesmo, sentimento de correção, desde uma motivação e/ou justificação própria a um
determinado grupo social em particular. Portanto, o que se verifica, não é exatamente uma
inobservância de qualquer preocupação com a questão do “sentimento de legitimidade”, quando,
muito, pelo contrário, o que tende a ser marca dessas linhas é uma exacerbação da importância
de um sentimento imediato de legitimidade de uma ordem normativa em termos fragmentários e
não de universalidade (para a comunidade), de objetividade. Assim, é visto um esvaziamento da
estatalidade e oficialidade do Direito e da identificação de um padrão de juridicidade, logo, da
dimensão da validade.
146
estritamente à jurisprudência e ao direito dos tribunais, como o faz OLIVER
HOLMES (especialmente no ambiente anglófono), e ainda, de algum modo, a
perspectiva decisionista de SCHMITT, desde uma específica leitura hobbesiana400.
400
Como tratado no segundo capítulo, não é, efetivamente, comum a definição peremptória de
SCHMITT enquanto positivista, especialmente, por ser ele a voz que mais aberta e ferozmente se
pôs contra o positivismo normativista kelseniano. Essa dificuldade é combinada às várias
mudanças que ocorrem no pensamento de SCHMITT, já mencionadas, sendo interessante
apontar, especialmente, para as considerações que este faz a esse respeito partir de seu texto:
Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, de 1934. De todo modo, identificando um
positivismo schmittiano: HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 1991, p.12; LUCAS VERDÚ, Pablo. Carl Schmitt Interprete Singular Y
Maximo Debelador De La Política-Constitucional Demoliberal. Revista de Estudios Políticos,
Madri, n. 64, pp. 25-92, abr./jun. 1989, p. 76; VEGA GARCÍA, Pedro de. Apuntes para una
historia de las doctrinas constitucionales del siglo XX, op. cit., pp. 3-44; GARGANO, Antonio. Il
pensiero politico nella Repubblica di Weimar. Nápoles: Istituto Italiano per gli Studi Filosofici,
2011, pp. 70 e ss.; DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 253; LINDHAL, Hans.
Constituent Power and Reflexive Identity, op. cit., p. 22; BERKMANA, Tomas. Schmitt v. (?)
Kelsen: The Total State of Exception Posited for the Total Regulation of Life. Baltic Journal of
Law & Politics, v. 3, n. 2, pp. 98-118, 2010. Inclusive, aproximando HOLMES e SCHMITT,
relacionando-os, especialmente, por suas versões do “positivismo hobbesiano”: DYZENHAUS,
David. Holmes and Carl Schmitt: An Unlikely Pair. Brooklyn Law Review, v. 63, pp. 165-188,
1997. Relacionando a posição de LUHMANN à de SCHMITT acerca da legitimidade:
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Edições
Tempo Brasileiro, 1980, pp. 125-129. BONAVIDES, por sua vez, também aponta para o relegar da
legitimidade em SCHMITT, relacionando-o a KELSEN e LUHMANN: “Depois de Weber, com o
formalismo de Kelsen, o decisionismo de Schmitt e o funcionalismo de Luhmann, a legitimidade
já não se define como uma crença na legalidade, senão como uma legalidade sem crença”.
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade. In: BONAVIDES, Paulo. A
Constituição aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade. 3 ed. São Paulo: Malheiros,
2004, pp. 33-51, p. 51.
401
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 77 e 85-165, ao que não deixa de
destacar que: “a diferenciação terminológica entre positivismo jurídico lato sensu e o positivismo
jurídico stricto sensu não se encontra na bibliografia nacional ou internacional. Mesmo assim,
consideramos que sua adoção é oportuna porque permite evitar confusão bastante comum nas
referências ao positivismo jurídico”.
147
estão os clássicos Gesetzespositivismus oitocentistas, o normativismo jurídico de
KELSEN402 e a jurisprudência analítica de AUSTIN e J. H. HART. Marcam essas
correntes, uma perspectiva e um método de abordagem analítico do Direito,
ligado à análise lógica e conceitual da prática jurídica.
402
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
403
MATA MACHADO, Edgar da. Elementos de Teoria Geral do Direito, cit., p. 141-146.
404
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça, cit., pp. 21 e 22. São
interessantes as colocações do autor que, na continuidade do capítulo, acaba por definir o
positivismo jurídico, acompanhando BOBBIO, como, ao mesmo tempo, metodologia, teoria e
ideologia.
405
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 150, e segue:
“‘Metajurídicos’ são, no entanto, todos os outros pontos de vista atinentes à visão do mundo
[weltanschaulich], moral economia, política ou qualquer outras esferas, precisamente os pontos
de vista não puramente jurídicos”.
148
perspectiva do participante da estrutura de aplicação do Direito, especialmente, do
juiz406.
406
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit., p. 20. Nesse sentido é bastante
interessante a construção realizada por DIMOULIS ao tentar identificar e diferenciar entre si
algumas respostas ligadas a correntes do positivismo jurídico stricto sensu: DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo Jurídico, cit., passim.
407
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit., p. 24. O autor utiliza o termo moral,
colocando-se dentro de uma posição por vezes tida como moralismo jurídico, à qual
compartilhamos algumas posições e fundamentos, mas não nos filiamos no todo.
408
Essa classificação de ALEXY entre positivistas – ligados à tese da separação – e não positivistas –
relacionados, por sua vez, à tese da vinculação – não passa ao largo de críticas. Nesse sentido é
interessante o debate travado entre o importante positivista (hartiano) JOSEPH RAZ e o próprio
ALEXY : RAZ, Joseph, The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism.
Oxford Legal Studies Research Paper Series, Oxford, n. 15, 2007, pp. 17-36; e a resposta:
ALEXY, Robert. An answer to Joseph Raz. In: PAVLAKOS, George (ed.). Law , right and
discourses: the legal philosophy of Robert Alexy. Oxford: Hart Publishing, 2007 (o texto de RAZ
é também reproduzido nesta mesma obra editada por PAVLAKOS). Ou ainda, o debate entre
ALEXY e BULYGIN, realizado na 1st Conference on Philosophy and Law Neutrality and Theory
of Law, Girona, 2010, publicados em: FERRER BELTRÁN, Jordi et al (ed.). Neutrality and
Theory of Law. Dordrecht: Springer, 2013, nos textos: BULYGIN, Eugenio. Alexy Between
Positivism and Non-positivism, pp. 49-59; e ALEXY, Robert. Between Positivism and Non-
positivism? A Third Reply to Eugenio Bulygin, pp. 225-238.
149
de algum modo não relacionam o conceito de Direito à sua legitimidade material,
seu fundamento.
150
se algum pós-positivismo pudesse ser realmente definido e definitivo,
simplesmente, por vir após (algum) positivismo (jurídico)412, que tampouco deixou
de existir, permanecendo ainda no tempo presente em variadas e sólidas
correntes, algumas bastante influentes413. Ou, ainda, como se algum novo
constitucionalismo pudesse ser identificado por superação a algum velho, como se
por oposição ao neoconstitucionalismo fosse possível falar em algum
geroconstitucionalismo.
151
exemplo, do jusnaturalismo”, mas que mantém forte conexão com o próprio
positivismo jurídico414. Nesta ordem, DIMOULIS chega a mencionar que “autores
que consideram que o direito está vinculado à moral, a interesses de determinados
grupos sociais, à evolução da sociedade, a finalidades políticas atuais etc. deverão
ser classificados no positivismo jurídico, pois seguramente não são
jusnaturalistas”415.
414
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Sobre o caráter argumentativo do direito: uma defesa do
pós-positivismo de MacCormick. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 106,
pp. 263-313, jan./jun. 2013, p. 299.
415
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico, cit., pp. 77-78.
416
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 41 e ss.; pp. 350-351. Tratando
expressamente da relação entre Direito e moral, p. 252: “si la amoralización del derecho conduce
a la glorificación religiosa de la situación real del poder, su moralización nos lleva a la anarquía.
Siempre que se declare que un precepto jurídico no es obligatorio porque le falta legitimación
ética, lo único que impide caer en el anarquismo es la ficción jusnaturalista de una comunidad
jurídica absolutamente uniforme. (…) Lo mismo la moralización que la amoralización del derecho
pasan por alto el condicionamiento recíproco de la formación de derecho por el poder y de la
formación de poder por el derecho; ambas se esfuerzan por una irrealizable y falsa amoralización
de la justicia y el derecho, de la legitimidad y la legalidad, de la normatividad y la positividad. La
152
formulação da ideia de Direito, como STAMMLER, RADBRUCH, HAURIOU,
LARENZ ou CASTANHEIRA NEVES417, também foram bastante importantes, tendo,
inclusive, forte influência sobre as ideias não positivistas da segunda metade do
século XX418.
Nesse sentido, não seria demais afirmar que forma e conteúdo nem mesmo
podem ser compreendidos de maneira destacada. A própria construção de um
sistema de normas racionais, seguras, que são emanadas através de procedimentos
sociedad más homogénea precisa del derecho positivo y, con ello, de un poder de voluntad que
lo cree y asegure”.
417
COELHO, Nuno M. M. S. Pessoa, igualdade (isogoria) e controvérsia. Notas sobre o sentido
da idéia do direito, (co)fundadora da experiência civilizacional ocidental. Revista da Faculdade de
Direito do Sul de Minas, a. 23, n. 25, pp. 183-192, jul./dez. 2007: “Resta, sempre, a ideia do
direito como o princípio normativo da pessoa a fundar a juridicidade, ao impor a reflexão sobre
cada problema concreto da coexistência o direito como um problema, como a pergunta pela
pessoa cujo reconhecimento e respeito coincide com a reafirmação do direito como modo de
convivência”.
418
GARCIA FIGUEROA, Alfonso. La teoría del derecho em tempos de constitucionalismo, op.
cit., p. 180. Particularmente a influencia de RADBRUCH é absolutamente determinante no
trabalho e concepção de Direito de ALEXY, por exemplo.
419
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 208 e 209.
153
tidos como democráticos e que, por isso, podem validamente vincular e obrigar
todos os cidadãos, é, ela própria, fruto de um parâmetro normativo anterior e
conformador desse sistema420. Nesse sentido, MIGUEL REALE, por exemplo,
diferencia poder e arbítrio em razão da dialeticidade daquele, postulando que é
ilegítimo o poder que se põe como fundamento do Direito e não como seu
momento decisivo421.
Seguindo essa linha, entende-se que um sistema normativo não pode ser
concebido ex nihilo, desde alguma razão desterrada (como se isto, de algum
modo, fosse possível) ou da mera observância e descrição – pretensamente neutral
– de condições sociológicas e fáticas, de uma ordem concreta pura e simples422.
Tampouco pode ser esse sistema compreendido adequadamente, se destacada e
isolada sua forma de seu conteúdo, simplesmente desde a observação (positivista)
de suas estruturas.
154
da organização jurídico-política são parte e, por conseguinte, fazem parte da
identidade dessa própria cultura.
423
COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa, cit., p. 30: “O
Direito não é ‘uma qualquer institucionalização, mas uma institucionalização de certa índole’, cuja
configuração não resulta simplesmente de sua natureza. A condição decisiva da emergência do
Direito como Direito é a condição ética, que surpreende o humano como pessoa, possibilidade
axiológica, não necessidade ontológica (nem antropológica). Trata-se do homem como sujeito
ético, marcado pela liberdade, pela pessoalidade de que decorrem as inferências axiológico-
normativas de sua igualdade e responsabilidade”.
424
Essa perspectiva não é uníssona. Como mencionado, há várias teorias do Direito que dão
menor importância à dimensão da validade, falando, maximamente em um pluralismo jurídico,
em que a estatalidade não cumpre papel caracterizador ao Direito. Sobre o pluralismo jurídico:
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico, cit.
425
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador.
Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. 2 ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2001, pp. 14-15.
155
Afirma, também, que a legitimação refere-se à inserção da Constituição de
um Estado de Direito nas próprias estratégias de justiça política, isto é, à
institucionalização jurídico-constitucional dos critérios fundamentais do justo
comum e da política justa426.
426
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., p.
459.
427
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 378, nota 1300.
156
do Direito” aborda validade, legitimidade e autoridade moral em sinonímia428.
PEREIRA COUTINHO, em sua formulação, de uma forma geral, retira o peso da
decisão e do poder, especialmente, quando trata da questão da validade e
argumenta que o Direito injusto, em última instância, não pode, nem mesmo, ser
considerado Direito.
428
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 548-556.
157
formas, que a partir do argumento de validade, colocam-se como obstáculos à
absorção absoluta da ratio pela voluntas429.
429
Nesse aspecto é interessante a caracterização que NEUMANN faz do Direito fascista como não
Direito: “If general law is the basic form of right, if law is not only voluntas but also ratio, then we
must deny the existence of law in the fascist state. Law, as distinct from the political command of
the sovereign, is conceivable only if it is manifest in general law, but true generality is not possible
in a society that cannot dispense with power”, NEUMANN, Franz. Behemoth, cit., p. 451. Sobre
essa fuga do direito, a partir de NEUMANN: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, cit.
430
STRECK, Lênio Luiz. Os meios e acesso do cidadão à jurisdição constitucional, a arguição de
descumprimento de preceito fundamental e a crise de efetividade da Constituição brasileira. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.). Hermenêutica e
jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, pp. 249-294, p. 251.
158
política última – isto é, questionar-se a respeito da legitimidade da ordem instituída
– mas, apenas, a coordenação e integração da norma em particular, com a rede
normativa geral da ordem institucionalizada pelo poder. Portanto, se o poder gera
Direito, ele o faz sobre bases de um argumento de validade, no sentido de que a
norma que é posta pelo poder é direito válido431.
Isso porque o poder, em sentido amplo, pode ser eficaz quer pela força,
quer espontaneamente. No primeiro caso ele é tão somente fático. É imposto
amiúde com a pretensão de normalizar-se (criar uma normalidade) apenas pela
imposição e obediência, não, necessariamente, pela incorporação/aceitação dos
parâmetros de “dominação” pela comunidade e pelos cidadãos.
431
Essa, por exemplo, é a noção política de Direito para FRANZ NEUMANN: NEUMANN, Franz.
O Império do Direito, cit., pp. 97-98.
432
LEVI, Lucio. Legitimidade. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política: v. 2. 13 ed.
Brasília: Editora UnB, 2010, pp. 675-679. E conclui: “É por esta razão que todo poder busca
alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência
em adesão. A crença na Legitimidade é, pois, o elemento integrador na relação de poder que se
verifica no âmbito do Estado”.
433
De algum modo, é nesse sentido que MONTESQUIEU apontara que “Os costumes de um povo
escravo são parte de sua servidão: os de um povo livre são parte de sua liberdade”,
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. São Paulo: Martin Fontes, 2007, p.
331.
159
Nesses termos, o Direito que, enquanto Direito, pretende-se legítimo,
coloca-se em relação a sua justificação434. Todo ato de poder, para não se
confundir com um ato de arbítrio, tem de justificar-se em um contexto fático e
valorativo específico. Tem de pautar-se em um fundo objetivo (ainda que apenas
relativamente objetivo) de valores, sentidos e símbolos, que é referencial para essa
justificação que se pretende racional. Portanto, a legitimidade coloca-se em
referência aos termos de um conteúdo, de um espectro de possibilidades
culturalmente informado, de um ethos que, como destaca LIMA VAZ, “não é dado
ao homem, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído”435.
160
universalistas” só encontra razão de ser quando assentada em uma premissa
comum aos indivíduos envolvidos438.
MIGUEL REALE, de sua parte, e a seu modo, também trata dos valores que
dão conteúdo ao Direito em termos de objetividade relativa. Entende que os
valores não possuem existência ontológica em si, mas se revelam na História, na
experiência humana. Portanto, são algo que o homem realiza em sua própria
experiência, não em uma realidade ideal a ser contemplada em formato definitivo.
Assim, os valores vão assumindo expressões diversas, exemplares e paradigmáticas
no curso do tempo.
438
MICHELMAN, Frank I. Morality, Identity and ‘Constitutional Patriotism’. Ratio Juris,
Bolonha, v. 14, n. 3, pp. 253-271, set. 2001, especialmente na irônica provocação que faz ao
texto: HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado Democrático Constitucional.
In: TAYLOR, Charles et al. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento.
Lisboa: Instituto Piaget, 1998, pp. 125-164, quando comparado as posições apresentadas em
alguns dos textos publicados em: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria
política. São Paulo: Loyola, 2002 (nesta edição também há uma versão do texto originalmente
publicado na obra coletiva organizada por TAYLOR).
439
REALE, Miguel. Filosofia do Direito, cit., pp. 208-209: “Não se entenda, porém, que os
valores só valham por se referirem a dado sujeito empírico, posto como sua medida e razão de
ser. Os valores não podem deixar de ser referidos ao homem como sujeito universal de
estimativa, mas não se reduzem às vivências preferenciais deste ou daquele indivíduo da espécie:
— referem-se ao homem que se realiza na História, ao processus da experiência humana de que
161
Desse modo, em que pesem as importantes diferenças entre os autores,
parece comum a HELLER e REALE a preocupação com encontrar alguma
objetividade ao conteúdo do Direito, uma vez ser a normatividade objetiva e
coercitiva do Direito expressão de uma dada normatividade anterior em que
reside a dimensão da legitimidade. A ambos, também, é comum o identificar
nesses parâmetros – quer dos princípios jurídicos fundamentais de HELLER, quer
em termos de valores como trata REALE – figuras não claramente definidas, mas
normas que apresentam possibilidades de concreção diversas, que se realizam,
quer como possibilidades (princípios jurídicos fundamentais), quer como
concreção (preceitos jurídicos positivos), na História, na forma de normas culturais
ou postas.
162
prescritivo-normativos de uma cultura e identidade específica, de mundividência
própria, perspectivas de humano e de comunidade particulares, no tempo e no
espaço.
Por conseguinte, desde esse ponto de vista, é possível falar em duas grandes
posições que caminham paralelamente. Uma delas que tenta explicar o humano,
especialmente, a partir de uma razão universal(ista) e desprendida, e outra que, ao
invés disso, pretende compreender a experiência humana a partir de seus
sentimentos de pertença, compartilhados e construídos amiúde.
442
CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo, cit., pp. 53-54.
443
Originalmente colocada no debate da Filosofia Moral e Política do mundo anglófono,
especialmente desde Uma teoria da Justiça de JOHN RAWLS, de 1971, há muito já extrapolou
essas fronteiras, sendo hoje bastante reproduzida, quer no cenário continental europeu, quer na
América Latina e, especificamente, em: TAYLOR, Charles. Propósitos entrelaçados: o debate
liberal-comunitário. In: TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo, Edições Loyola,
2000, pp. 197-220; TAYLOR, Charles et al. Multiculturalismo: examinando a política de
reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1998; SANDEL, Michael. Liberalism and the limits of
Justice. 2 ed. Cambridge, Cambridge University Press, 1998; BRUGGER, Winfried.
Commuinitarianism as the social and legal theory behind the German Constitution. I-CON,
Oxford/Nova York, v. 2, n. 3, jul. 2004, pp. 431-460; HONNETH, Axel. The limits of liberalism:
on the political-ethical discussion concerning communitarianism. In: HONNETH, Axel;
WRIGHT, Charles W. (ed.). The fragmented world of the social: essays in social and political
philosophy. Nova York: State University of New York Press, 1995, pp. 231-346; GALUPPO,
Marcelo Campos. Comunitarismo e liberalismo na fundamentação do Estado e o problema da
163
Parece possível identificar cada uma dessas tradições com uma pergunta a
respeito dos projetos de vida dos sujeitos. Enquanto uma das tradições procura
explicar sua identidade buscando resposta a “quem queremos ser?”, outra
pretende compreendê-la desde o perquirir pela identidade, por “de onde
viemos?”.
tolerância. SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Crise e Desafios da Constituição. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 337-346. Articulando em sentido similar, ainda que não idêntico, a
chave Republicanismo e Liberalismo, tratando, aparentemente, o Republicanismo como gênero e
o Comunitarismo como espécie: CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. Devido
Processo Legislativo, cit.; Relacionando a dicotomia liberais e comunitaristas à tensão entre KANT
e HEGEL: GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de
filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, pp. 137: “Essa disputa entre
comunitaristas e liberais pode ser vista como um novo capítulo de um enfrentamento de longa
data, como o que opunha as posições ‘kantianas’ e ‘hegelianas’. De fato, e em boa parte, o
comunitarismo retoma as críticas que HEGEL fazia a KANT: enquanto KANT mencionava a
existência de certas obrigações universais que deveriam prevalecer sobre aquelas mais
contingentes, derivadas do fato de pertencermos a uma comunidade particular, HEGEL invertia
essa formulação para dar prioridade a nossos laços comunitários. Assim, em vez de valorizar –
junto com KANT – o ideal de um sujeito ‘autônomo’, HEGEL defendia que a plena realização do
ser humano derivava da mais completa integração dos indivíduos em comunidade”. Já tivemos
oportunidade de abordar a temática do Liberalismo Vs. Comunitarismo em trabalho anterior,
especialmente, quanto à questão da Democracia, relacionando essa dicotomia a outra entre
Positivistas Vs. Não positivistas, em BIELSCHOWSKY, Raoni. Democracia Constitucional, cit.,
pp. 51-80.
164
comunidade, independentemente de sua rede de significados, de seus valores
compartilhados, enfim, de sua cultura444.
444
TAYLOR, Charles. Two Theories of Modernity, Public Culture, Durham, v. 11, n. 1, pp. 153–
174, 1999 p. 154: “an acultural theory describes these transformations in terms of some culture-
neutral operation. By this I mean an operation that is not defined in terms of the specific cultures
it carries us from and to, but is rather seen as of a type that any traditional culture could undergo.
An example of an acultural type of theory, indeed a paradigm case, would be one that conceives
of modernity as the growth of reason, defined in various ways: for example, as the growth of
scientific consciousness, or the development of a secular outlook, or the rise of instrumental
rationality, or an ever-clearer distinction between fact-finding and evaluation. Or else modernity
might be accounted for in terms of social, as well as intellectual changes: Transformations,
including intellectual ones, are seen as coming about as a result of increased mobility,
concentration of populations, industrialization, or the like. In all these cases, modernity is
conceived as a set of transformations which any and every culture can go through—and which all
will probably be forced to undergo. These changes are not defined by their position in a specific
constellation of understandings of, say, person, society, or good; rather, they are described as a
type of transformation to which any culture could in principle serve as ‘input.’ For instance, any
culture could suffer the impact of growing scientific consciousness, any religion could undergo
secularization, any set of ultimate ends could be challenged by a growth of instrumental thinking,
any metaphysic could be dislocated by the split between fact and value”.
445
RAWLS, John. Kantian Constructivism in Moral Theory. The Journal of Philosophy, v. 77, n.
9, pp. 515-572, set. 1980; TAMPIO, Nicholas. Rawls and the Kantian Ethos. Polity, v. 39, n. 1,
pp. 79-102, jan. 2007; SANDEL, Michael. Liberalism and the limits of Justice, cit. É verdade que
do Uma Teoria de Justiça para o Liberalismo Político RAWLS, mantendo a postura
procedimental, caminhou no sentido de propor alguns limites substanciais. Relacionando,
criticamente, as posições de RAWLS e KELSEN: DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy,
cit., p. 234.
446
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit.,
pp. 17-18: “Como a história do Estado de Direito e do Estado Constitucional demonstra, à
«racionalidade processual» pode não corresponder a uma garantia de ordem constitucional
material”.
165
No entanto, do ponto de vista “ontológico” – aqui utilizando o sentido dado
à questão por CHARLES TAYLOR447 – parece possível perguntar-se sobre o quanto
esse argumento é passível de compreender a experiência humana. Se, por acaso, é
aceitável uma descrição universal do sentido do humano, ou se, como dito, o
sentido é algo sempre suposto.
Refletindo sobre isso, ALAIN SUPIOT atenta ser a própria razão humana
apenas uma frágil conquista de um sentido cuja crença é compartilhada por cada
um daqueles que nela acredita. E, assim, que a própria razão se assenta em
certezas indemonstráveis, “em recursos dogmáticos, que são tantas outras pontes
lançadas entre o universo do sentido e o universo dos sentidos”. Tais certezas
podem variar de uma sociedade a outra, e, inclusive, dentro de uma mesma
sociedade de uma época a outra. Contudo, a necessidade de tais certezas é
invariável, uma vez que, mesmo no mundo natural, “não há um sentido que se
possa descobrir, pois o sentido é, necessariamente, suposto”448. Ou, de certo
modo, como afirma JOAQUIM CARLOS SALGADO:
447
TAYLOR, Charles. Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário, op. cit., passim.
448
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Lisboa:
Instituto Piaget, 2005, p. 31. Em sentido bastante similar quanto a essa perspectiva: KAHN, Paul
W. The cultural study of Law: reconstructing legal scholarship. Chicago: University of Chicago
Press, 1999, pp. 96-90.
449
SALGADO, Karine. História e Estado de Direito. Revista do TCEMG, Belo Horizonte, v. 71,
n. 2, pp. 102-113, abril-junho, 2009, pp. 102-103.
166
própria continuidade entre a estrutura normativa e sua razão de ser: no despregar
de valor e norma.
Nessa linha, a questão sobre “de onde venho?” não nega a preocupação
com o “quem queremos ser?”. Pelo contrário. Coloca-a desde uma perspectiva em
que passado, futuro e presente não podem ser compreendidos de forma
450
TAYLOR, Charles. Fontes do Self: a construção da identidade moderna. 2 ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2005.
451
SUPIOT, Alain. Homo juridicus, cit., p. 35, no contexto: “Como qualquer outra sociedade a
nossa assenta numa determinada concepção do homem, que dá sentido à vida humana. (...) É,
com efeito, necessário postular que o homem é um sujeito capaz de razão para que a ciência seja
possível. E esta definição do ser humano não resulta de uma demonstração científica, mas de
uma afirmação dogmática; é um produto da história do Direito e não da história das ciências.
(Num sistema de pensamento que ignorasse estas dicotomias, as querelas escolásticas que opõem,
por exemplo hoje, um neurólogo «materialista» e um filósofo «espiritualista» seriam muito
simplesmente despidas de sentido. Um sistema cultural como o da China imperial, que ignorava a
ideia de sujeito, não podia, evidentemente, ao contrário da Roma imperial, qualificar como
objectos determinados homens e, logo, não podia senão ignorar a escravatura no próprio sentido
do termo. Era preciso pensar o homem como objecto material para conceber a medicina como
uma ciência e o trabalho como um bem negociável. A ciência e a economia modernas não teriam
visto a luz do dia sem esta configuração jurídica própria do Ocidente, que é a pessoa humana”.
452
SALDANHA, Nelson. Historicismo e Culturalismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Recife:
FUNDARPE, 1986, p. 18.
453
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude: um estudo de teoria moral. Bauru, SP: EDUSC,
2001, pp. 450.
167
desprendida, mas em implicação dialética. Assim, a identidade é encontrada nos
sentimentos (culturais) de pertença, nas relações e compromissos e,
principalmente, no projeto da comunidade que o indivíduo identifica como seu e
que, também, se sente parte integrante e integrada, portanto, que o reconhece e
em que é reconhecido.
454
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., passim.
455
TAYLOR complexifica um pouco a questão, cindindo aquilo que chama questões ontológicas e
questões de defesa. As primeiras delas diriam respeito aos termos últimos que explicariam a vida
social, termos em que poderiam ser identificados atomistas (individualistas metodológicos) e
holistas; enquanto as questões de defesa, diriam respeito à posição moral e política que se adota,
que variam amplamente entre a suprema primazia dos direitos individuais à máxima prioridade
da vida comunitária e dos bens da coletividade. Nesse contexto, identifica ainda, que, em que
pese, via de regra, trabalhar-se autores individualistas como atomistas (exemplo máximo seria
NOZICK) e coletivistas como holistas (nesse caso o paradigma seria MARX), é possível identificar
individualistas holistas (usa HUMBOLDT, como exemplo) e, até mesmo, coletivistas atomistas.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos, cit., pp. 197-220. É bastante interessante a
observação que faz JESSÉ SOUZA sobre a construção de TAYLOR: “Taylor pretende encontrar a
autocompreensão dos atores na topografia moral da época e cultura nas quais esses atores se
inserem. É essa senda crítica que lhe permiti defender a preeminência do ‘holismo
metodológico’. Indivíduos só podem ser tidos como última ‘ratio’ da explicação sociológica na
medida em que o pano de fundo social e cultural que os condiciona permanece não tematizado.
Esses sentidos culturais, por sua vez, são quase sempre implícitos se expressando antes em
práticas sociais, mores e instituições do que em doutrinas explícitas. É esse pressuposto
metodológico que permite a Taylor tomar o partido do comunitarismo como ‘ontologia’, e não
como partidarismo normativo, no sentido de uma opção pelo coletivo contra o individual. Este
princípio implica apenas assumir a posição do holismo metodológico contra o atomismo, ou até
mesmo contra posições mais sofisticadas como a habermasiana, que propõe uma incerta
‘simultaneidade’ entre intersubjetivo e subjetivo. Este esclarecimento é importante para afastar a
acusação algo simplista de conservadorismo para qualquer postura comunitarista, como se todas
defendessem, da mesma forma, a subordinação normativa, e não antes de tudo metodológica
como é o caso de Taylor, do indivíduo em relação à cultura”, SOUZA, Jessé. A dimensão política
do reconhecimento social. In: AVRITZER, Leonardo; DOMINGUES, José Maurício (org.).
Teoria social e modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, pp. 159-184.
168
cultura. Ela é identidade reflexiva, imediatamente informativa e formativa, e
mediatamente formada pelo cidadão e pela comunidade.
456
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Do que é a República? Uma República baseada na
dignidade humana. Lisboa: ICJP. p. 7.
457
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. México: UNAM, 2003, pp. 169 e ss.;
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional Europeo, op. cit., pp. 92 e ss.; HÄBERLE, Peter.
Os problemas da verdade no Estado Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
2008, pp. 105 e ss.
458
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., p.
31, e segue citando SMEND, no original: “eine demokratische Staat- und Verfassungslehre kann
nicht am formalen Staatswillen einstezen, sodern nur am Menschen in seiner geselschftliche,
politishcen Lage, an der Frage”, was von ihm zu erwarten, was ihm zu bieten und zuzumuten sein
möge”, SMEND, Rudolf. Deutsche Staatsrechtwissenschaft vor hundert Jahren – und heute. In:
SMEND, Rudolf. Staatsrechliche Abhandlungen und anderen Aufsätze. 4 ed. Berlim: Duncker &
Humblot, 2010, pp. 609-619.
169
ocidental, essa cultura apresenta uma configuração muito claramente explicita no
Estado de Direito e no constitucionalismo, por tanto, na cultura do
constitucionalismo, em suas sedimentações, processos e transformações,
instituições, formas e normas, ou seja: na sua identidade. Nas amarras do
constitucionalismo que, em certo sentido, articulam-se todas em torno da dinâmica
do reconhecimento do eu e do outro459.
459
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 44. SALGADO, Joaquim
Carlos. Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, pp. 252-253: “Somente como
consciência de si para outra consciência de si, na medida em que é eu e objeto ao mesmo tempo,
ela é Espírito cuja dialética começa pela cisão da luta de morte e da desigualdade do senhor e o
escravo, cisão decorrente do fato de reivindicar a consciência de si, isoladamente, a absoluta
universalidade e reconhecimento, até o advento do nós ou do momento em que a consciência é
um eu e um nós. Esse momento luminoso só será realizado quando a consciência de si
reconhecer a outra consciência de si, conheça a outra como também livre e para si, como igual. O
processo de reconhecimento é exatamente essa conquista da igualdade das consciência de si,
como para si, em que o eu se conhece em primeiro lugar nele mesmo e, em segundo lugar, se
conhece no outro, ou se vê também no outro (um duplo conhecimento), porque seu igual”
170
CAPÍTULO 5
DA CONSTITUIÇÃO COMO PRODUTO
PRODUTO DE UMA CULTURA:
LEGITIMIDADE À VALIDADE
460
Para um inventário das definições do conceito de Constituição: CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., pp. 81-130; SAMPAIO, José
Adércio Leite. Teorias constitucionais em perspectiva: em busca de uma Constituição
pluridimensional. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.) Crise e Desafio da Constituição. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 3-54.
171
Além disso, mais que um fundamento legitimador comum, as várias
constituições colocam-se em articulação com as várias identidades e forças
culturais de cada comunidade, na formação de identidades constitucionais, o que
importa em formas, conceitos, definições e medidas diferentes para um conceito
de constituição em cada cultura constitucional em particular, isto é, na expressão
de sua identidade461.
De todo modo, no século XX, as questões colocadas pela Teoria da
Constituição, florescem como fruto e, ao mesmo passo, fundamento da
complexificação do fenômeno constitucional e estatal. O Estado Social que
“concilia” Estado e sociedade, marcadamente cindidos nos oitocentos, traz para o
âmbito institucional as disputas e preocupações sociais e políticas da sociedade.
Particularmente com o segundo pós-guerra, a constituição passa a ocupar
um posto de centralidade cada vez mais destacado na dinâmica do Estado de
Direito. Se o fenômeno jurídico do século XIX é bastante marcado pelo espírito
jusprivatístico462, decorrente dos valores liberal-burgueses e da expansão do
capitalismo nos moldes próprios do período oitocentista, no século XX o caráter
público do Direito destaca-se e sobressai-se.
De fato, especialmente a partir do entreguerras, há um movimento geral de
publicização do Direito. Ele atinge seu ápice na segunda metade do século XX,
461
Nesse sentido, LÊNIO STRECK, ratificando posição de BERCOVICI, por exemplo, em um dado
contexto chega a afirmar que não seria “mais possível, hoje, falar em uma teoria geral da
Constituição. A Constituição (e cada Constituição) depende de sua identidade nacional, das
especificidades de cada Estado Nacional e de sua inserção no cenário internacional. Do mesmo
modo, não há ‘um constitucionalismo’, e, sim, vários constitucionalismos. É necessário, assim,
que se entenda a teoria da Constituição enquanto uma teoria que resguarde as especificidades
histórico-factuais de cada Estado nacional. Desse modo, a teoria da Constituição deve conter um
núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias próprias do Estado Democrático (e
Social) de Direito, assentado, como especificado na tradição, no binômio ‘democracia e direitos
humanos-fundamentais’. Dito de outro modo, afora o número mínimo universal que conforma
uma teoria geral da Constituição, que pode ser considerado comum a todos os países que
adotaram formas democrático-constitucionais de governo, há um núcleo específico de cada
Constituição, que inexoravelmente, será diferenciado de Estado-Nação para Estado-Nação.
Refiro-me ao que se pode denominar de núcleo de direitos sociais-fundamentais plasmados em
cada texto que atendam ao cumprimento das promessas (incumpridas) da modernidade”,
STRECK, Lênio. Intervenção. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e
a Constituição Dirigente. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 79-85, pp. 81-82.
462
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of German constitutional Law, cit.,
especialmente capítulo 1, intitulado: “The will of State and the redemption of the German
Nation: legal positivism and Constitutional Monarchism in the German Empire”; também em,
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 242 e ss.
172
com uma efetiva constitucionalização do Direito, da qual são marcantes: o
fortalecimento e crescimento do Estado desde o Constitucionalismo Social; as
gerações de direitos (fundamentais) prestacionais do Estado; a
(re)substancialização da Constituição e, consequentemente, do Direito463; a
reconciliação entre Estado e sociedade; a discussão sobre a Constituição dirigente
e sua relação com a atuação do legislador e, mesmo, da morte dela464. Todos esses
temas, de certa forma, ainda estão em disputa. Por exemplo, desde a década de
1980, ouvem-se os brados por uma redução do Estado em moldes neoliberais,
tema que demonstra a necessidade de uma nova abordagem da Teoria do Estado
para a defesa do Estado Democrático de Direito contra essas tentativas de
enfraquecê-lo.
Além disso, ocorre, também, a dita revolução copernicana do Direito
Público, caracterizada pela supremacia da constituição no ordenamento jurídico,
com vozes indicando uma verdadeira constitucionalização do Direito,
constitucionalização do Direito Privado e, mesmo, constitucionalização do Direito
Civil465.
Esse próprio movimento de (re)substancialização do Direito Constitucional
e, por consequência, de todo o Direito e da experiência jurídico-política, faz
revolver o sentido original de constituição, que parece imprescindível para a
463
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política, op. cit., p. 9.
464
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:
Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. 2 ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2001. Esse tema esteve bastante presente no debate brasileiro desde 1988. Em
2001, com a publicação de nova edição, CANOTILHO publica um novo prefácio em que fala,
inclusive, da morte da Constituição Dirigente. Esse prefácio acabou sendo discutido em um
evento que reuniu alguns dos principais constitucionalistas brasileiros, cujas intervenções foram
reunidas em: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a Constituição
Dirigente. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
465
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito; o triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 02, n. 01, pp. 1-48,
2006. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. Apontando no sentido da interpretação
do Direito para uma constitucionalização da hermenêutica jurídica, PEREIRA, Rodolfo Viana.
Hermenêutica Filosófica e Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, especialmente, pp.
119 e ss.; FACHIN, Luiz Edson. Los derechos fundamentales en la construcción del derecho
privado contemporáneo brasileño a partir del derecho civil-constitucional. Revista de Derecho
Comparado, Santa Fé v.15, p. 243-272, 2009; SARMENTO, Daniel. A normatividade da
Constituição e a Constitucionalização do Direito privado. Revista EMERJ, v. 6, n. 23, pp. 273-
297, jul./set. 2003.
173
compreensão do que significa a experiência constitucional. Ela se desenvolve,
especialmente, a partir da centralidade da dignidade da pessoa humana, que passa
a ser reconhecida nos mais variados textos constitucionais e, também, na
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Desde seu nascimento, o constitucionalismo teve como projeto justificar o
Estado submetido ao Direito, assim, estruturando-o como um Estado com
qualidades que fazem dele Estado Constitucional466. Portanto, o conceito de
constituição que aqui pretendemos parte daquilo que GRIMM aponta como
fundamento primeiro da experiência do constitucionalismo: a legitimidade do
poder. E, em sendo referente à legitimidade, o conceito de constituição se erige
como um conceito normativo, como um dever ser da organização e exercício do
poder estatal que lhe serve de justificação467.
Nesse sentido, CANOTILHO entende a Teoria da Constituição, a um só
tempo, como teoria política do direito constitucional e como teoria científica do
direito constitucional. Política porque busca compreender a ordenação
constitucional do político e científica porque pretende descrever, explicar e refutar
os fundamentos, as ideias, postulados, construções, estruturas e métodos do
Direito Constitucional. No entanto, CANOTILHO também entende que ela
ultrapassa essas duas dimensões e se configura como teoria crítica e normativa da
constituição. Ela é assim, uma teoria normativa da política, orientada para a
realidade social do seu tempo, como bem quis HELLER468.
Nessa esteira, a questão da legitimidade está intimamente relacionada ao
fato da ordem e do poder justificarem-se enquanto reflexo da própria imagem do
466
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ed. Coimbra:
Almedina, 2000, p. 93.
467
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 277-278: “el Estado vive de su justificación
(…). Toda explicación se refiere al pasado, toda justificación al futuro (…). Las pretensiones
realmente extraordinarias del Estado no se justifican por el hecho de que éste asegure ‘cualquier’
ordenación social-territorial, sino tan sólo, en cuanto aspire a una ordenación justa. La
consagración del Estado únicamente se hace posible relacionando la función estatal con la
función jurídica”.
468
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1334-
1335.
174
sujeito constitucional469. Mais que isso, nos parece possível afirmar que a própria
preocupação com a legitimidade é, ela mesma, uma demanda (prescritivo-
normativa) própria de uma cultura. Outrossim, os supostos (valores) ontológicos
(prescritivo-normativos) de humano, sobre os quais se fundamenta essa
legitimidade – de indivíduos dignos, fundamentalmente iguais e livres – são reflexo
e decorrência de uma específica mundividência, frutos de uma cultura470. Uma
cultura que na modernidade desenvolveu o constitucionalismo como sua forma
própria de organização do poder, em uma rede de símbolos, significados, valores e
estruturas, que, dialeticamente, informa e é informada pelas experiências políticas,
sociais e humanas dessa cultura.
Destarte, dizer de um Estado Constitucional é dizer de um Estado que se
pretende legítimo sob vistas dos padrões de bem e vida boa de uma determinada
cultura (de liberdade), construídos nos termos daquilo que poderíamos dizer de
uma cultura constitucional471. Portanto, de um Estado em que o poder não se
coloca como, simplesmente, autoritário, mas como legítimo uma vez que
justificado e assentado diante de uma cultura de justificação472.
Essa perspectiva não implica, de forma alguma, uma homogeneidade
absoluta das experiências, valores, textos e normas constitucionais, quando se
469
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 17 e ss. Nesta obra
ROSENFELD joga com o duplo sentido que a palavra subject tem em língua inglesa, podendo ter o
significado de sujeito, mas também, de assunto, tema: “The very notion of the constitutional
subject is ambiguous. It is not clear whether the notion refers to the makers of the constitution,
those subjected to it, or its subject-matter”. Aqui, naturalmente, quando se fala de sujeito
constitucional trata-se da dimensão que este termo possui em sua transliteração para o português.
470
COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa. Curitiba: Juruá,
2012, p. 28: “A pergunta que institui um caso como um caso jurídico, e que está na base de todo
pensamento jurídico, é a pergunta acerca do humano, é a pergunta por uma certa forma de vida
em que o humano se afirma como pessoa – é a pergunta pela pessoa como igualdade, liberdade e
responsabilidade”.
471
HELLER, Hermann. Political democracy and social homogeneity, op. cit., p. 260.
472
MUREINIK, Etienne. A bridge to where?. MUREINIK trata detidamente da transição
constitucional sul-africana, ou, mais precisamente, da Constituição Provisória da África do Sul de
1993 (particularmente, de seu capítulo 3, que se referia ao Bill of Rights), como uma ponte entre
uma cultura autoritária em superação e uma cultura de justificação, em construção: “If the new
Constitution is a bridge away from a culture of authority, it is clear what it must be a bridge to. It
must lead to a culture of justification - a culture in which every exercise of power is expected to be
justified; in which the leadership given by government rests on the cogency of the case offered in
defence of its decisions, not the fear inspired by the force at its command. The new order must be
a community built on persuasion, not coercion”, p. 32.
175
comparam as diversas ordens e Estados constitucionais. Portanto, dentro daquilo
que aqui tratamos por cultura constitucional (em sentido amplo) – ou, em termos
mais estritos, atinentes à relação entre validade e legitimidade, por cultura do
constitucionalismo – é possível identificar várias culturas constitucionais473, várias
identidades constitucionais particulares que se pronunciam desde a articulação
entre a cultura do constitucionalismo e as heranças e construções socioculturais
próprias e particulares474.
Para a aproximação a um conceito de Constituição como produto de uma
cultura, serão resgatadas aquelas posturas dialéticas encontradas ainda no berço da
Teoria da Constituição, articulando-as com os desenvolvimentos mais conexos da
Teoria e da Filosofia da Constituição. Para tanto, avançar-se-á sobre uma questão
que é elementar desde o surgimento do Estado Moderno, especialmente, desde o
início do constitucionalismo. Questão que é, particularmente, importante à Teoria
da Constituição: a soberania. Tratar-se-á mais propriamente da soberania popular
como elemento indispensável do próprio constitucionalismo, ou, pelo menos, do
constitucionalismo dito democrático.
473
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”?, op. cit., pp. 21-22; MÜLLER, Jan-
Werner. Constitutional Patriotism. Princeton: Princeton University Press, 2007, p. 56.
474
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 45: “Constitutional
discourse must articulate a self-identity by means of counterfactual narrative that takes into
account both the applicable constitutional text and the normative constraints flowing form
constitutionalism. Such narrative, moreover, must strive to bridge the gap the splits the
constitutional subject into self and other, while, at the same time, furnishing sustenance to the
constitutional subject by endowing it with a distinct identity. From the standpoint of those who
seek to vindicate the constitutional status quo, constitutional discourse must bridge the gap
between the actual constitution and the precepts of constitutionalism, and forge sufficient
common grounds between self and other to lend the requisite support for the constitutional
subject to maintain a distinct identity. From the standpoint of those who appeal to the
counterfactual imagination to launch a critique of existing constitutional arrangements, on the
other hand, constitutional discourse must expose mere semblances of harmony between the
constitution and constitutionalism, and pierce through constitutional identities that oppress or
unduly constrain self or other”. Ainda, também, utilizando a chave identidade constitucional
(constitutional identity): FLETCHER, George P. Constitutional Identity. In: ROSENFELD,
Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: Theoretical Perspectives.
Durham: Duke University Press, 1994, pp. 223-232. Aproximando-se desse sentido: SALCEDO
REPOLÊS, María Fernanda. Identidade do sujeito constitucional e controle de
constitucionalidade: raízes históricas da atuação do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Edições Casa de Rui Barbosa, 2010.
176
5.1. CONSTITUIÇÃO COMO PRODUTO
PRODUTO DE UMA CULTURA
475
Falando, não propriamente, em cultura constitucional, mas da cultura da modernidade mais
amplamente: TAYLOR, Charles. Two Theories of Modernity. Public Culture, Durham, v. 11, n.
1, pp. 153-174, inverno 1999, p. 153: “The contemporary Atlantic world is seen as a culture (or a
group of closely related cultures) with its own specific understandings of, for example, person,
nature, and the good”. Mais que isso, para TAYLOR, a cultura da modernidade possui autonomia
em relação à cultura ocidental que a antecede, sendo-lhe tributária, entretanto, diferenciada.
476
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., pp. 21 e ss.: “Identificamos na
história ocidental uma tensão permanente entre a matéria em dionisíaca ebulição e a forma
apolineamente forjada. O mudo grego, assim legou-nos o olhar sobre o poder, pólis, a
democracia; já Roma, com o poderoso racionalismo estoico (apolítico), descobre a pessoa e o
direito. O medievo, alienação do Espírito, é todo ele dionisíaco, soturno, imerso em trevas das
quais emerge o poder absoluto da Igreja, e a seguir o absolutismo do Estado Moderno. O Estado
liberal de Direito é reação do apolíneo, com a formalização das liberdades e o cerceamento do
poder; o Estado social é o retorno dionisíaco, e por vezes barrocamente contraditório, do poder,
ora mais, ora menos embriagado de si. Para onde oscilará o pêndulo da história? Será o Estado
democrático de Direito a síntese, já em Nietzsche ansiada, das forças e desejos que movem o
homem e seu mundo?”, pp. 22 e 23.
477
Falando em constitucionalismo antigo e constitucionalismo moderno: CANOTILHO, J. J.
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 51 e ss.; FIORAVANTI, por sua
vez, fala não exatamente em constitucionalismo antigo, medieval e moderno, mas sim, em
Constituição dos antigos, Constituição medieval e Constituição dos modernos: FIORAVANTI,
177
sentido em que a compreendemos e a pretendemos, é uma construção
notadamente ligada ao Estado moderno e, mais propriamente, filha das
transformações e revoluções político-sociais dos séculos XVII e XVIII, deste em
especial478.
É inevitável reconhecer a modernidade como filha da(s) cultura(s) pré-
moderna(s) do Ocidente e que mesmo no processo de negação dessa(s) cultura(s)
pré-moderna(s), ela(s) está(ão) suprassumida(s) como parte própria e inevitável da
cultura que as nega479.
Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
480
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do Constitucionalismo, op. cit.;
FIORAVANTI, Maurizio, Constitucionalismo, cit.
481
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição: da fundamentação da
validade do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 582: “não propomos um
qualquer ‘conceito neutro’ de Direito Constitucional. Antes o procuramos apreender enquanto
realidade normativa que nuclearmente identifica as experiências políticas vividas neste nosso
quadrante cultura, neste nosso momento histórico. De resto, um qualquer ‘conceito neutro’ de
Direito Constitucional (...) construído a pretexto de um não ‘eurocentrismo’ ou de uma maior
abrangência ‘científica’, deixará necessariamente por apreender o que o Direito Constitucional é
no contemporâneo quadrante ocidental”.
179
razões de pensamento, eles mesmos, bastante implicados e comprometidos com
uma perspectiva ideológica muito específica e, em alguma medida, datada482.
Como já dito, parece inevitável entender, com HERMANN HELLER, que
aquele que observa o Estado e o analisa não pode pretender-se, a si mesmo, fora
desta realidade, mas nela imerso. Afinal, todo o conhecimento sobre o Estado e,
consequentemente, sobre a Constituição, tem como pressuposto o fato de a vida
estatal sempre incluir quem a investiga, portanto, que o investigador sempre está
nela inserido de modo existencial e, até por isso, não tem o poder de abandoná-
la483.
Por conseguinte, a constituição – assim como o próprio Direito
Constitucional e a Teoria da Constituição – nunca poderá ser entendida de forma
estritamente técnica ou neutra, justamente porque essencialmente política
(jurídico-política, para ser mais preciso). Não parece haver sentido compreendê-la
de modo apartado da realidade ou da normalidade em que se coloca e se faz viva,
uma vez que a Constituição está situada, por excelência, no próprio processo
político484. Tampouco poderá ser compreendida desde uma mera situação fática de
poder relativamente permanente, sem considerar que o Direito cria poder tanto
quanto o poder cria Direito485.
Existe, portanto, uma relação dinâmica, dialógica e dialética, entre jurídico
e político, entre Direito e poder, mas também, entre constituição posta e o corpo
de prescrições normativas da cultura do constitucionalismo486. É próprio dessa
cultura constitucional não ser estática ou estagnada, mera ordem concreta, mas
viva em uma relação na qual se embatem e, simultaneamente, se articulam,
realidade e norma, político e jurídico, ser e dever ser.
482
LUCAS VERDÚ, Pablo. La teoría escalonada del ordenamiento jurídico de Hans Kelsen como
hipótesis cultural, comparada con la tesis de Paul Schrecker sobre «la estructura de la
civilización». Revista de Estudios Políticos, Madri, n. 66, pp. 7-65, out./dez. 1989.
483
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 48.
484
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 14 e 15. Nesse sentido, também,
OTERO, Paulo Instituições políticas e Constitucionais, cit., p. 16.
485
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 350-351: “toda teoría que prescinda da
alternativa derecho o poder, norma o voluntad, objetividad o subjetividad, desconoce la realidad
estatal y es, por eso, falsa ya en su punto de partida”.
486
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 41-45.
180
Por conseguinte, do mesmo modo que HELLER não aceitava a formulação
de KELSEN que afirmava ser todo Estado um Estado de Direito487, nos parece
menos ainda possível dizer que todo Estado é um Estado Constitucional, portanto,
que todo Estado possui uma constituição488.
Um Estado Constitucional é, por definição, um Estado que se pretende
legitimado em bases materiais produzidas, informadas e dialogadas, em uma
determinada cultura, por conseguinte, justificado em um projeto político-cultural.
É assim que coloca MÜLLER, quando diz que se “não importassem os conteúdos
da ação estatal considerada ‘legítima’, ‘Constituição’ não seria um conceito
jurídico, mas apenas um suporte fático existencial, apenas ‘vontade’ e ‘decisão’”489.
De modo similar, DIETER GRIMM aponta como um dos aspectos imprescindíveis
da constituição normativa o fato de que aquilo que configura uma constituição não
é propriamente seu objeto, mas as premissas das decisões políticas490.
487
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura?, op. cit., pp. 124. Parece, também, ser
possível dizer, nesse sentido, com MÜLLER: “A questão aqui examinada é de teoria constitucional.
Esta não precisa – por assim dizer como Teoria Especial do Estado Constitucional moderno –
restringir-se incondicionalmente a um ordenamento constitucional individual. Com as fontes
materiais da história do direito e do Direito Comparado, ela pode chegar também a uma teoria
estrutural tipológica, cujo cerne, que pode ser circunscrito tem termos de conteúdo,
necessariamente não seria mais normativo no âmbito interno das constituições individuais
vigentes do grupo de países”, MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do
Povo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 120.
488
Assim, HÄBERLE define peremptoriamente: “entendemos por Estado constitucional la
comunidad política que encuentra su fundamento antropológico-cultural en la dignidad del
hombre, como decía E. Kant, y que, en la democracia pluralista, encuentra su estructura
organizativa”, HÄBERLE, Peter. La constitución como cultura. Anuario Iberoamericano de
Justicia Constitucional, cit., p. 178. E ainda: HÄBERLE, Peter. Constituição – Cultura –
Previsões Relativas a Deus. In: TORRES, Ricardo Lobo; BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula
(org.). Estudos de Direito Público e Filosofia do Direito: um diálogo entre Brasil e Alemanha.
Rio de Janeiro: Renovar, 2011, pp. 249-262: “O ‘tipo Estado Constitucional’, uma realização
cultural de muitos séculos e reunião de textos clássicos de Aristóteles que passa por Montesquieu
e Rousseau, Federalist Papers (1787) e ‘Princípio da Responsabilidade’ de H. Jonas do Direito
Ambiental, é encontrado em muitas variações (nacionais), mas é apresentado também como
‘tipicamente ideal’: como os direitos humanos que, em seus fundamentos e elementos, cada vez
mais se diferenciaram quanto aos temas e às suas dimensões (p. ex: direitos dos deficientes);
como uma realização da democracia de partidos (pluralistas); da divisão dos poderes; da
identidade (nesse sentido, artigos acerca dos símbolos do Estado, como bandeiras); dos objetivos
do Estado, como o Estado de Direito, Estado Social, Estado Cultural e nos últimos tempos,
Estado Ambiental; também frequentemente Estado como classificação de poderes (federalismo e
regionalismo)”.
489
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 114.
490
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales, cit., p. 32, e segue:
“Ciertamente, el resultado depende de la medida en que las diferentes posiciones sean incluidas
181
É nessa esteira que insistimos que um conceito de constituição só pode ser
construído percebendo-se que a questão base de sua razão de ser é, justamente, a
preocupação com a legitimidade do poder, que se erige sobre bases (culturais)
originaria e eminentemente modernas. Estas, notadamente, a partir da segunda
metade do século XX, em seus textos normativos, reconhecem-se legítimas,
explicitamente, sobre uma igualdade fundamental de todos os homens em uma
humanidade comum, portanto, em indivíduos igualmente livres, ou seja: na
dignidade da pessoa humana. Por isso afirmar-se que o poder e o Direito, em seu
formato constitucional, legitimam-se em referência a um conceito normativo491.
No curso do primeiro século e meio do constitucionalismo, essa aspiração
foi sendo minada, deixada de lado e esquecida. O movimento de
dessubstancialização do conceito de constituição em escalada no caminho do
século XIX culminou em um desprendimento do conceito de constituição, da
original preocupação com essa legitimidade específica. Isso, de algum modo,
possibilitou ou, ao menos, contribui em grande parte para a instituição dos
regimes totalitários e ditatoriais que o século XX viveu.
É possível dizer que, na disputa do contexto weimariano, a fé vazia numa
nomocracia colaborou para que a confusão entre arbítrio e poder se
aprofundasse492. Weimar foi uma república sem republicanos, uma democracia
sem democratas, em que, curiosa e tragicamente, a norma pela norma e a forma
pela forma foram incapazes de dialogar com a realidade e com a legitimidade,
182
possibilitando a institucionalização do Terror que eliminou a própria forma
jurídica.
O Estado tornou-se um Behemoth, que, como no mito judaico, trabalhado
por HOBBES e relembrado por NEUMANN493, apresentava-se como um gigante
caótico, um monstro amorfo, cheio de normas e regulamentos, mas sem Direito,
sem ratio, só voluntas. Verdade que seria uma injustiça para com o normativismo
imputar-lhe a culpa por tal dilúvio. Aliás, como dito, o próprio KELSEN, era, ele
mesmo, um democrata e um liberal convicto, maximamente preocupado com a
tolerância. De mesmo modo, seria demais indicar que o frustrar da República de
Weimar e sua perversão foram decorrentes, apenas, do fracasso de suas estruturas
jurídico-constitucionais. Afinal, o Direito é cultura, mas não é toda ela. De toda
sorte, foi sobre o paradigmático e progressivo desprendimento entre a legitimação
do Estado e do Direito e a validade do Direito que, de certo modo, se alicerçaram
a maior parte das “justificações” dos regimes autocráticos dos novecentos494.
E foi sobre as cinzas, escombros e vidas desumanizadas que se iniciou
mais um fluxo da história do constitucionalismo e do Estado de Direito: o Estado
Democrático de Direito495. Ele não simplesmente refuta os paradigmas do Estado
Liberal de Direito ou do Estado Social de Direito, mas os suprassume, trazendo
consigo os direitos fundamentais individuais e políticos (de primeira geração), os
direitos fundamentais sociais (de segunda geração), agregando os direitos
493
NEUMANN, Franz. Behemoth, cit.
494
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade, op. cit., pp. 44-45: “Era o princípio da
legalidade radicalizado, servindo, como serviu, de veículo de destruição do próprio ordenamento
democrático-representativo, a saber, decretando o fim da República de Weimar, conforme
patenteou Schmitt. Tal destruição, segundo o mesmo autor, se fez por um partido que entrou
pela porta aberta da legalidade, mas logo fechou essa porta aos seus adversários e levou a cabo o
excêntrico modelo da ‘revolução legal’, cujos resultados catastróficos foram, como se sabe, o
advento do nacional-socialismo”.
495
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit. Há basicamente duas posições a
respeito do significado da expressão Estado Constitucional. Autores como JOSÉ LUIZ BORGES
HORTA e JORGE MIRANDA defendem que as expressões Estado de Direito e Estado
Constitucional são sinônimas. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição, cit., p. 33.
De forma diferente, outros, como CANOTILHO e ZAGREBELSKY, entendem o Estado
Constitucional como um Estado de Direito qualificado, relacionando-o ao Estado Democrático
de Direito, como suprassunção do Estado legal de Direito. Nesse contexto, destacam a íntima
relação entre Estado de Direito, democracia e supremacia da constituição. CANOTILHO, J. J.
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., passim. ZAGREBELSKY, Gustav.
El derecho dúctil: Ley, derechos y justicia. 10 ed. Madri: Trotta, 2011, pp. 21-45.
183
fundamentais difusos (de terceira geração)496, combinados a um movimento
tendente a, mais uma vez, ressubstancializar o conceito de constituição497. Agora,
explicitamente, em volta da ideia/parâmetro de dignidade humana.
Esse ponto de chegada – naturalmente, não definitivo, mas conceitual –
não estará distante dos fundamentos primeiros do constitucionalismo, muito pelo
contrário. É possível dizer que, ao menos no plano positivo-constitucional, os
ideais da revolução francesa, provavelmente, nunca estiveram tão em voga quanto
neste último momento do constitucionalismo498. É marca deste modelo o
reconhecimento da relação de complementariedade entre “liberdade, igualdade e
fraternidade” na experiência constitucional-democrática, implicando-se as três,
mútua e dialeticamente na construção de uma comunidade jurídico-política justa e
livre.
Uma liberdade parametrizada pela igualdade fundamental de todos em
uma humanidade comum499, uma igualdade comprometida com a liberdade de
cada um e de todos, logo, um sentimento de fraternidade constitucional existente
entre os cidadãos500. Esse é, ainda, o projeto político-cultural do constitucionalismo,
daquilo que FRIEDRICH MÜLLER vem a chamar de família constitucional501.
Dialético, inclusive, porque cultural; ou, pelo menos, justamente, por ser o projeto
de uma cultura de liberdade que, por isso mesmo, tem como característica básica a
dialeticidade e, também porque cultural, normativo.
496
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., pp. 217-233; HORTA, José
Luiz Borges. Hegel e o Estado de Direito. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz
Borges (coord.). Hegel, Liberdade e Estado. Belo Horizonte: Forum, 2010, pp. 247-264, p. 254.
497
LUCAS VERDÚ, Pablo. Reflexiones en torno y dentro del concepto de constitución, cit.,
passim.
498
Nesse sentido, não deixa de ser curioso a prescrição do art. 3º, I, da Constituição da República
Federativa do Brasil, que, ao mencionar os objetivos fundamentais da República, os inicia por:
“construir uma sociedade livre, justa e solidária”, reproduzindo, em outras palavras, mas não em
outra ordem, nem em outro sentido, a antiga tríade francesa: “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade”.
499
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 129-163.
500
HORTA, José Luiz Borges. La Era de la Justicia Derecho, Estado y límites a la emancipación
humana, a partir del contexto brasileño, op. cit., pp. 76-77.
501
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., em várias
passagens, como, por exemplo, nas pp. 54 e 118; MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?, cit., p.
41: “países pertencentes à ‘família constitucional’, i.e., aos países em conformidade ao Estado
democrático de Direito”.
184
Essa ressubstancialização, de algum modo, reputa-se ao conceito original
de constituição que, como dito, vincula-se basicamente à preocupação com a
legitimidade do poder. Ela ocorreu de forma clara e evidente no plano do direito
constitucional positivo desde a Lei Fundamental alemã de 1949502, bastante
influenciada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pensada como
resposta às atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Foi seguida pelos vários
países que passaram por processos de reconstitucionalização e redemocratização
na segunda metade do século XX, como foram os casos dos países ibéricos
(Portugal, em 1976503 e Espanha, em 1978504), do Leste europeu (incluindo aqui a
unificação alemã) e da América Latina, desde fins da década de 1980, no Brasil
em 1988505.
Nesse momento ocorreu uma virada na estrutura de gravitação jurídico-
política estatal, aquilo que JORGE MIRANDA vem a chamar de revolução
copernicana do Direito Público, quando se passa a identificar de forma patente e
decorrente da estrutura constitucional, a centralidade que tem a constituição na
502
Lei Fundamental da República Federal Alemã: “Art 1(1) Die Würde des Menschen ist
unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt”. A discussão
sobre a Lei Fundamental Alemã, seu valor simbólico e a relação que revela entre o trágico
passado nazista e o novo Estado Constitucional que se instala (recupera) é riquíssima e promoveu
muitos dos maiores debates sobre a forma política na segunda metade do século XX. A esse
respeito é importante o episódio conhecido como a disputa dos historiadores (Historikerstreit) da
segunda metade da década de 1980 na Alemanha, que tratava, especialmente sobre a forma como
a Alemanha e os alemães deveriam encarar o passado e o regime nazista. Antes mesmo disso,
JASPERS já trabalhava os conceitos de culpa coletiva e responsabilidade coletiva tratados em:
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt. 2 ed. Nova York: Fordham University Press,
2000. Encaminhando-se nesse sentido, também, ACKERMAN, por exemplo, destaca um caráter
muito particular ao novo começo alemão, que se formulou a partir de uma catastrophic defeat, ao
contrário do que mais corriqueiramente acontece, quando uma nova constituição geralmente se
ergue em um triumphalist scenario. ACKERMAN, Bruce, The Rise of World Constitutionalism,
op. cit.
503
Constituição da República Portuguesa: “Artigo 1º. Portugal é uma República soberana, baseada
na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária”.
504
Constituição Espanhola: “Preámbulo. La Nación española, deseando establecer la justicia, la
libertad y la seguridad y promover el bien de cuantos la integran, en uso de su soberanía,
proclama su voluntad de:(…) Promover el progreso de la cultura y de la economía para asegurar a
todos una digna calidad de vida”.
505
Constituição da República Federativa do Brasil: “Art. 1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa
humana”.
185
dinâmica normativa e estatal506. Foi também nesse sentido que CANOTILHO
desenvolveu seu conceito de Constituição dirigente como teoria social, vinculativa,
inclusive e especialmente, da atividade do legislador507.
Nessa ordem, a grande maioria dos textos constitucionais do entre nós
chamado Estado Democrático de Direito traz, expressamente, a dependência do
projeto constitucional ao valor da dignidade da pessoa humana, verdadeira
premissa antropológico-cultural do Estado Constitucional, nos termos de
HÄBERLE508. Premissa na qual se depositam as expectativas de legitimidade do
poder, que apontam para sua justificação, constituindo assim o traço definidor de
um Estado enquanto Estado Democrático de Direito, por conseguinte, de um
Estado que se pretende constitucional. Portanto, o próprio conceito de
constituição é um conceito normativo, cuja normatividade decorre da premissa em
que deposita suas expectativas de legitimidade e justificação. É, assim, um conceito
sem sentido se compreendido desde perspectivas formalistas, porque
substantivamente comprometido com esse fundamento de legitimidade, que é, ele
mesmo cultural.
Desse marco inicial típico do Estado constitucional, do homem com
dignidade, derivam-se: sua forma organizativa na democracia pluralista; uma série
de direitos fundamentais de liberdade e igualdade; os princípios de solidariedade e
de igualdade material que direcionam e apontam os fins do Estado social de
Direito; uma estrutura de limitação dos poderes509.
506
MIRANDA, Jorge. Controle da Constitucionalidade e Direitos Fundamentais. Revista da
EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 21, pp. 61-84, 2003, p. 65.
507
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit.
508
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., pp. 169 e ss.; HÄBERLE, Peter. El Estado
Constitucional Europeo. Cuestiones Constitucionales, México, n. 2, pp. 87-104, jan. 2000, pp. 92
e ss.; HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado Constitucional, cit., pp. 105 e ss.
509
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., p. 3: “El Estado constitucional de cuño
común europeo y atlántico se caracteriza por la dignidad humana como premisa antropológico-
cultural por la soberanía popular y la división de poderes, por los derechos fundamentales y la
tolerancia, por la pluralidad de los partidos y la independencia de los tribunales; hay buenas
razones entonces para caracterizarlo elogiosamente como democracia pluralista o como sociedad
abierta”. BARACHO sintetizará dizendo que: “entre os caracteres do constitucionalismo coloca-se
em primeiro lugar, como finalidade essencial, a preservação da dignidade da pessoa humana.
Com princípios, estão dois pressupostos fundamentais: o império da lei e a soberania do povo”,
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do Constitucionalismo, op. cit., p. 27.
186
Se, por um lado, o modelo social burguês não cumpriu suas promessas,
feitas ainda pelas revoluções setecentistas, mostrando-se incapaz de promover o
justo equilíbrio social esperado, embaraçando-se nas paradoxais amarras de um
liberalismo e nas limitações de uma igualdade puramente formal, por outro, o
discurso e o ideal revolucionário da modernidade (especialmente francês)
seguiram alicerçando o substrato de legitimidade e apontando à justificação e ao
projeto de Estado e de comunidade entendidos como justos.
Assim entende JOAQUIM CARLOS SALGADO, relacionando a unidade entre
o poder e a liberdade com a experiência da Revolução (francesa) e a ideia da
autonomia privada e pública no Estado Democrático de Direito510. Também
PETER HÄBERLE faz alusão explícita à relação entre o projeto do Estado
constitucional e a Revolução, intitulando uma de suas obras: “1789 como parte da
história, do presente e do futuro do Estado Constitucional”511. Vê-se também em
HELLER, cujo projeto buscava conciliar socialismo e democracia, que “la
reivindicación por el proletariado de una democracia social no significa otra cosa
que la extensión al orden del trabajo y de las mercancías de la idea del Estado
material de Derecho”512. Mesmo, dentro do marxismo, leituras como a de ERNST
BLOCH tendem a apontar a perenidade do ideal revolucionário513. E, ainda dentro
do campo da esquerda, FRANZ NEUMANN, jurista da Escola de Frankfurt,
identifica no próprio Estado de Direito a semente do projeto para a emancipação
do homem, apontando ser ele, não um impeditivo, mas um possível caminho,
510
SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético. Revista do Tribunal de
Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n.2, p. 03-34, 1998.
511
Essa é a tradução literal do título original em alemão: “1789 als Teil der Geschichte, Gegenwart
und Zukunft des Verfassungsstaates”. No entanto, a edição que tivemos acesso foi a tradução
castelhana, em que o título é um pouco diferente do original: HÄBERLE, Peter. Libertad,
igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madri:
Trotta, 1998.
512
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura?, op. cit., p. 124, e segue,
imediatamente, na sequência: “dentro de la burguesía se ha perdido el nervio para dar nuevo
cumplimiento a su mandato histórico. La burguesía reniega de su propia esencia espiritual y se
entrega en brazos de un nuevo feudalismo irracionalista”.
513
BLOCH, Ernst. Upright Carriage, Concrete Utopia. In: BLOCH, Ernst. On Marx. Nova York:
Herder and Herder, 1971, pp. 159-173, pp. 168-170.
187
uma etapa possível, para a construção de uma sociedade livre para o ideal
socialista514.
De certa forma, debruçando-se mais detidamente sobre a experiência de
Constituição, GRIMM também constata que a situação especial que marcou o
constitucionalismo em fins do século XVIII, de algum modo, sobrevive ainda
como regra geral, o que significa que: não se pode reconhecer a nenhum sujeito o
poder em razão de uma qualquer origem divina ou, ainda, baseado em si mesmo.
Sobre isso, sustenta ser duvidoso verificar qualquer decadência iminente do
sentido da constituição normativa515. E é assim que a constituição, com sua forma
democrática, ainda hoje revela a dialética entre “poder e liberdade”516.
Há, portanto, uma identidade do constitucionalismo, que é (re)lida mais
amplamente a cada momento fundacional, quando se forma uma nova ordem
válida, mas, também, na amiúde vivência, leitura e releitura, concretização e
construção dessa identidade. Esse caminhar é a própria essência da cultura
constitucional, que com um sentido normativo, coloca-se sob as amarras do
constitucionalismo, sem, no entanto, sufocar os caminhos jurídico-políticos das
comunidades que as leem. Pelo contrário, tais amarras têm o condão de abrirem
possibilidades para o Político em termos democráticos, pois são, em última
instância, fórmulas de uma cultura que compreende a todos como igualmente
livres e que, por isso, assimilam e expõem uma lógica que pretende uma
514
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit.
515
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales, cit., p. 41: “Preguntarse por el
futuro de la constitución a la luz de esos datos significa, ante todo, deja constancia de que un
fenómeno nacido bajo determinadas condiciones históricas no puede sobrevivir a la supresión de
tales condiciones; si lo logra, es tan sólo al precio de quedar vacío de sentido. Con todo, es
dudoso que esta decadencia sea inminente para la constitución normativa: de hecho, en algún
aspecto la especial situación de las primeras constituciones se ha convertido hoy en regla. En
general, ya no se reconoce a sujeto alguno un derecho a ocupar el poder de origen divino o
basado en sí mismo”.
516
SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético. Revista do Tribunal de
Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n.2, p. 03-34, 1998: “O embate ‘poder
e liberdade’ tem dimensões bem diferentes na cultura ocidental, que é por excelência, ou pelo
menos assim se mostrou, uma cultura da liberdade ou que revela e realiza a liberdade, pois esses
dois termos aparecem no mundo ocidental não como oposições abstratas, mas dialéticas, isto é,
não cristalizadas e afastadas uma da outra, como incompatíveis, de modo a sujeitar o poder à
liberdade, mas como momentos que apontam um momento posterior e superior à sua oposição,
pela sua superação. O poder e a liberdade, após cumprirem uma trajetória de lutas na história do
ocidente surgem como faces de uma mesma realidade, o poder político na sua forma democrática
ou do Estado de Direito contemporâneo”.
188
comunidade baseada no pluralismo e, especialmente, no reconhecimento do eu e
do outro.
517
SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 82.
518
De algum modo, no sentido de ROUSSEAU: “O mais forte nunca é bastante forte para ser
sempre o senhor, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever. Daí o direito
do mais forte, direito tomado aparentemente com ironia e na realidade estabelecido como
princípio. Mas será que um dia nos explicarão essa palavra? A força é um poder físico; não vejo
que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, e não de
vontade; é, quando muito, um ato de prudência. Em que sentido poderá constituir dever?
Suponhamos por um momento esse pretenso direito. Digo que dele só resulta um galimatias
inexplicável. Pois, tão logo seja a força que gera o direito, o efeito muda com a causa; toda força
que sobrepuja a primeira há de sucedê-la nesse direito. Tão logo se possa obedecer
impunemente, torna-se legítimo fazê-lo, e, como o mais forte sempre tem razão basta agir de
modo a ser o mais forte. Ora, o que é um direito que perece quando cessa a força? Se é preciso
obedecer pela força, não necessidade de obedecer por dever, e se, se já não se é forçado a
obedecer, também não já é obrigado a fazê-lo. Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescente à
força, não significa, aqui, absolutamente nada. Obedecei aos poderosos. Se isso quer dizer: ‘cedei
à força’, o preceito é bom, mas supérfluo; afirmo que jamais será violado. Todo poder vem de
Deus, reconheço-o, mas também todas as doenças. Significa isso que não se deva chamar o
médico? Quando um bandido me ataca num canto do bosque, não só preciso forçosamente
entregar-lhe a bolsa, mas também, caso pudesse salvá-la, estaria obrigado, em são consciência, a
entrega-la? Afinal, a pistola que ele empunha é também um poder. Convenhamos, pois, que a
forção não faz direito, e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos”, ROUSSEAU,
Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 4 ed., São Paulo: Martins Fontes,
2006, pp. 12 e 13. Também em: “Todo poder estatal, por necesidad existencial, tiene que aspirar
a ser poder jurídico; pero esto significa no solamente actuar como poder en sentido técnico-
jurídico, sino valer como autoridad legítima que obliga moralmente a lá voluntad”, HELLER,
Herman. Teoría del Estado, cit., p. 277
189
Não sendo a Constituição mera norma de hierarquia superior na pirâmide
do ordenamento jurídico, nem, de outro modo, simples decisão ex nihilo, é
importante constatar em que termos se dá essa passagem do discurso cultural-
constitucional ao poder estatal, e desse ao poder jurídico. Em que termos se
fundamentam a soberania e a construção dessa ordem que se pretende legítima e
que, sobre essa legitimidade, se justifica como válida.
Nesse contexto, uma constituição não deixa de ser um símbolo, colocando-
se como veículo de criação de sentido, que dá propósito e integração interpretativa
às ações da comunidade. Nessa esteira, VORLÄNDER aponta que as formas
simbólicas são responsáveis por transformar ideias fundamentais do político em
algo com finalidade e validade. E, nesses termos, o significado de uma constituição
como uma ordem simbólica coloca-se, menos em relação às funções normativas e
reguladoras do texto e mais vinculadas às ideias fundamentais da ordem e do
projeto político da comunidade, do fato deles estarem nela reconhecidos de modo
que se espera da Constituição uma função instrumental de guia519.
Vários são os arranjos institucionais e, mesmo, normativos, possíveis para
atender as exigências culturais de governo limitado, de Estado de Direito (em
sentido formal), de legalidade, de proteção aos direitos fundamentais, de
pluralismo e de democracia, característicos do constitucionalismo520. A leitura
519
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”?, op. cit., pp. 27-29. Vale a advertência
feita por GRIMM: “Constitution of this type are frequently called ‘symbolic constitutions.’
Symbolic constitution in this sense, however, should not be confused with symbolic effects of
normative constitutions”, GRIMM, Dieter. Integration by Constitution. International Journal of
Constitutional Law, Nova York, v. 3, ns. 2-3, pp. 193-208, mai. 2005, p. 199, nota 13. Apontando
a esse segundo sentido de constituição simbólica (melhor colocado seria constitucionalização
simbólica) o autor menciona trabalhos de MARCELO NEVES, particularmente, a versão em
alemão de: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3 ed. São Paulo: Marins Fontes,
2013. O próprio MARCELO NEVES faz menção à função simbólica inerente à constituição
normativa: “a função simbólica das ‘Constituições normativas’ está vinculada à sua relevância
jurídico-instrumental, isto é, a um amplo grau de concretização normativa generalizada das
disposições constitucionais. Além de servir de expressão simbólica da ‘consistência’, ‘liberdade’,
‘igualdade’, ‘participação’ etc. como elementos caracterizadores da ordem política fundada na
Constituição, é inegável que as ‘Constituições normativas’ implicam juridicamente um grau
elevado de direção da conduta em interferência intersubjetiva e de orientação das expectativas de
comportamento”, NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização
fática: mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder. Revista
de Informação Legislativa, Brasília, a. 33 n. 132 , pp. 321-330, out./dez. 1996, p. 325.
520
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 39-40: “There are, of
course, many different ways in which constitution makers may seek to fulfill the conditions for
190
dessas estruturas tem como marco inicial em uma ordem a fundação de sua
validade a partir de um momento constituinte.
Da questão cultural importa compreender que a ordem jurídico-política
típica do constitucionalismo implica em uma forma muito específica de Estado: o
Estado de Direito. Estado de Direito em sentido amplo, como o trabalhado por
JOSÉ LUIZ BORGES HORTA, já é presente também em HELLER, entendido não
apenas desde perspectiva formalista, típica do Rechtsstaat oitocentista, mas como
uma formulação cultural do Ocidente, correspondente ao modelo típico de
organização do poder e ordenação da liberdade521.
É marca desse modelo, próprio da cultura ocidental, a preocupação não
apenas com a validade e com a eficácia do ordenamento jurídico e da atuação
estatal, mas também, com sua legitimidade, seu fundamento. É nesse ponto que se
vê a relação íntima entre Estado de Direito, constituição e constitucionalismo522. E
é nesse contexto, também que subjaz a questão da soberania523.
emergence of a legitimate constitutional subject, but they all involve alienation of power and a
construction of self-identity dependent on the will and self-image of the other”.
521
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit.
522
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales, op. cit., p. 49: “la constitución
moderna fijaba en un documento con forma jurídica, con pretensión sistemática y exhaustiva, la
exigencia de cómo debía organizarse y ejercerse el poder estatal; de este modo la constitución se
hizo una con la ley que regulaba la organización y el ejercicio del poder del Estado. Ya no se
refería a la situación jurídicamente creada, sino a la norma creadora de aquélla: la constitución se
erigió así en concepto normativo. En este nuevo sentido, en modo alguno podía decirse que
todos los Estados tuvieran una. La existencia de un documento constitucional, que contuviera los
derechos fundamentales y la representación popular, se convirtió en la característica distintiva
para clasificar el poder estatal y la pregunta sobre si sólo podría pretender legitimidad un Estado
constitucional entendido en este sentido dominó a lo largo de todo siglo XIX”.
523
KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado: os fundamentos históricos da legitimidade
do Estado Constitucional Democrático. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Ed., 2009, p. 29:
“Dois conceitos formam a chave para a compreensão de quase todos os problemas da Teoria do
Estado relacionados com o Estado da Idade Moderna: o conceito de soberania e o conceito da
legitimidade. Numa primeira e provisória caracterização, a soberania está direcionada ao poder
de imposição do poder público, enquanto a legitimidade à questão da sua justificação. As duas
questões estão estreitamente interligadas e formam, de certa forma, a parte externa e a parte
interna do mesmo problema. Porque o poder de imposição do poder público só existe enquanto
vale como justificado – no mínimo pelos detentores do aparato estatal. Se o fundamento da
legitimidade do poder público está abalado, então surge a resistência passiva e ativa, a
desobediência jurídica, a sabotagem e, finalmente, a polarização total e a guerra civil, a qual
desemboca na sujeição de um partido ao outro e, portanto, no terror da guerra civil com forças
policiais. A soberania de um Estado depende de sua legitimidade e a legitimidade fundamenta a
sua soberania. Neste sentido, a questão da legitimidade é a parte interna da questão da
soberania”.
191
A discussão sobre a soberania é corrente na história jurídico-política
ocidental, especialmente, desde a fundação do Estado moderno, mas mesmo antes
dele. Essa preocupação se aprofunda e torna-se ainda mais intensa desde o
surgimento do constitucionalismo e, particularmente, dos fluxos e
desenvolvimentos do conceito moderno de democracia. Nesse sentido, KAHN
aponta que os dois principais movimentos para a acepção moderna do rule of law
são duas transformações culturais: a passagem de uma compreensão religiosa da
ordem política, para uma secular; e transformação de uma concepção monárquica
para uma popular de soberania524. Essa mesma afirmação faz sentido para o Estado
de Direito de tipo continental.
As posições existentes e as respostas dadas à questão são das mais variadas.
Elas não apenas alternam-se no tempo e nos diferentes momentos do Estado de
Direito, mas, inclusive, colocam-se enquanto muito dispares, mesmo dentre
aquelas apresentadas por autores que encararam e encaram as mesmas situações e
conjunturas. Veja-se, por exemplo, as discussões travadas em WEIMAR525.
Além disso, trata-se a soberania de questão complexa, assim como o
próprio Estado. Ela é pluridimensional e, por isso, BONAVIDES, por exemplo, vai
diferenciar a soberania do Estado da soberania no Estado. Enquanto a primeira
refere-se aos elementos característicos do poder estatal que permitem distingui-lo
dos outros poderes e instituições sociais, a segunda é referente à “determinação da
autoridade suprema no interior do Estado, na verificação hierárquica dos órgãos
da comunidade política e sobretudo na justificação da autoridade conferida ao
sujeito ou titular do poder supremo”526.
De algum modo, é também nesse sentido que KRIELE, ao mesmo tempo,
reconhece que há soberania jurídico-estatal no Estado constitucional e defende
que não há um soberano no Estado constitucional. Entende que, se por um lado,
524
KAHN, Paul W. The cultural study of Law, cit., p. 41. Rule of law para o autor tem um sentido
mais amplo, relacionando-o, mesmo como uma experiência cultural, aproximando-se da
construção do Estado de Direito. Nessa passagem, é curioso o fato dele expressar que uma das
falhas do pensamento de CARL SCHMITT foi a de perceber, apenas, uma dessas transformações
culturais.
525
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit.
526
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 137.
192
neste Estado os órgãos e o direito estatal apresentam-no como soberano face à
sociedade, por outro, afirma que nesse modelo não há qualquer sujeito que,
constitucionalmente, tenha poder ou palavra finais ilimitados. Para KRIELE, a
existência de um sujeito com essas características coloca em risco a própria
existência do Estado Constitucional527.
Assim, parece razoável tratar de pelo menos duas dimensões da soberania:
enquanto poder objetivo da organização estatal e como poder subjetivo sobre e/ou
na organização estatal528.
A dimensão relacionada ao poder objetivo da organização estatal, se coloca
na capacidade do Estado fazer-se soberano do ponto de vista social e fático
(objetivamente), logo, de atuar de modo eficaz impondo sua vontade. Trata-se,
portanto, da soberania do Estado em sua totalidade como unidade de ação e
decisão que resulta da própria natureza do poder social atuante interna e
externamente. Assim sendo, essa face corresponde à soberania como poder de
domínio (Herrschergewalt), qualidade que diferencia o poder do Estado de
qualquer outro poder na sociedade, no que, por vezes, é entendido como um dos
elementos (caracterizadores) do Estado529.
527
KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado, cit., p. 169-176. Como se verá, não se
concorda com KRIELE quando este entende que a democracia pressupõe o Estado constitucional,
no sentido de que, pressuponha suas amarras jurídicas, a separação dos poderes, os Direitos
Humanos, sendo juridicamente vinculada. Isso porque tal perspectiva que chega a uma resposta
estática e demiúrgica – tudo se inicia com o Estado constitucional – o que nos parece pouco
adequado para a compreensão dessa dinâmica.
528
HELLER dirá de três dimensões: a) à que diz respeito ao poder objetivo da organização estatal;
b) à que se refere ao poder subjetivo sobre a organização estatal; c) e a relacionada ao poder
subjetivo na organização estatal. Portanto, cindindo a questão do poder subjetivo no Estado da
questão do poder subjetivo sobre o Estado. HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 311.
529
GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1968, pp. 127 e ss.;
DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
72; BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Soberania. In: BARACHO, José
Alfredo de Oliveira; HORTA, José Luiz Borges (org.). Direito e Política: ensaios selecionados.
Florianópolis: Conpedi, 2015, pp. 72-207, pp. 108-109. Vale destacar a posição de JELLINEK,
autor original da teoria dos elementos do Estado. JELLINEK diferencia o poder de dominação
(Herrschergewalt) – auto-organização do poder de mando – da soberania. O faz entendendo o
primeiro como nota essencial de um Estado, sendo, portanto, constituído da capacidade de
organizar-se a si mesmo e de ter autonomia. Por sua parte, a soberania de um Estado seria
caracterizada pelo fato de não haver qualquer poder que se colocasse sobre si. Nesses termos, o
poder de dominação seria elemento necessário a um Estado, mas não a soberania: JELLINEK,
Georg. Teoria General del Estado. México: FCE, 2000, pp. 397 e ss. Essa construção se dá muito
em razão da conjuntura alemã da segunda metade do século XIX. A questão que se coloca diante
dessa formulação tem muito que ver com as preocupações com a unidade alemã em tensão com
193
Destarte, não parece compreensível um Estado que do ponto de vista
jurídico-político não possa colocar-se ou, ao menos, não pretenda colocar-se,
como unidade de ação e decisão capaz de fazer valer sua vontade perante a
sociedade e perante os demais Estados.
Um Estado tem de ser soberano, por definição. As normas de Direito
Internacional – ou, mesmo, as amarras do constitucionalismo que aqui tratamos –
fazem-se direito positivo, institucionalizadas e exigíveis coercitivamente, apenas
quando reconhecidas e cumpridas pelo Estado, a partir de uma decisão soberana
por ele emanada. Por um lado, essa decisão demanda justificação e fundamento
para que seja legítima, mas, por outro, faz-se válida apenas porque
institucionalizada de forma soberana e, com isso, portadora de pretensão de
eficácia. Portanto, em sua dimensão objetiva, a soberania estará relacionada,
especialmente, à capacidade de imposição (ação) da vontade (decisão) do Estado
(unidade) frente às forças sociais (internamente) e, mesmo, perante outros Estados
no plano internacional, nos limites de suas fronteiras (externamente).
Enquanto a primeira dimensão da soberania – como poder objetivo da
organização estatal – é elemento do Estado moderno sua face relacionada ao
poder subjetivo sobre e/ou no Estado revela-se ambígua. As diversas posições
tomadas sobre essa questão trabalham de forma diferente a temática, sem,
194
necessariamente, atentar a uma demanda anterior que parece fundamental: qual a
pergunta a se fazer a respeito da soberania?
Em outras palavras, parece acertado identificar que as diversas definições
que são apresentadas à temática muitas vezes podem ser mais bem diferenciadas,
não exatamente, pelas respostas oferecidas, mas pelas perguntas que são feitas a
respeito do tema: “quem é o soberano?” ou “quem deve ser o soberano?”.
Essas duas perguntas são subjacentes à vida jurídico-política do Estado de
Direito, entretanto, não coincidem e, apesar de relacionadas, caminham, quando
muito, em constante tensão e diálogo. A conexão entre elas e o próprio conceito a
que fazem referência poderia ser colocada em outra questão: a soberania é mais
bem compreendida como uma norma ou como um fato?
A pergunta sobre “quem é o soberano” é ligada à facticidade do poder.
Diz respeito a quem efetivamente é capaz ou tem maior probabilidade de impor
sua vontade em uma relação social, ainda que contra resistências, independente de
qual seja o fundamento dessa capacidade/probabilidade. Assim sendo, entende-la
como pergunta de partida da soberania significa, em boa medida, procurar
responder sobre este ponto desde uma perspectiva positivista e/ou sociológica.
Neste sentido, também, essa é uma questão que pode ser colocada, quer no plano
supra/meta-estatal, quer no âmbito intra-estatal.
“Quem é o soberano?” é a pergunta que responde SCHMITT com a frase
que inicia seu Teologia Política: “Soberano é quem decide sobre o estado de
exceção”530. Esta não deixa de ser uma resposta positivista, uma vez que o próprio
SCHMITT descreve a soberania não como “la expresión adecuada de una realidad,
sino una fórmula, un signo, una señal”, logo, como algo que é simplesmente
constatado, caracterizado pela lei da causalidade531.
530
SCHMITT, Carl. Teologia Política: cuatro capítulos sobre lá doctrina de lá soberania. Madri:
Trotta, 2009, p. 13. Como já mencionado, é habitual do autor iniciar a obra com uma frase de
efeito, como que com um aforismo. O faz assim peremptoriamente, entretanto, mais a frente, na
mesma obra, quando reconhece: “La unión del poder supremo fáctico y jurídico es el problema
cardinal del concepto de lá soberanía. He ahí toda su dificultad, y la cuestión estriba en formular
una definición que aprehenda este concepto fundamental de la jurisprudencia sin valerse de
predicados tautológicos generales y precise sus líneas esenciales desde el punto de vista jurídico”,
p. 22.
531
SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p. 22.
195
Ao recorrer ao estado de exceção, também põe suas bases de definição da
soberania sobre uma indeterminação, pois, para ele, o que caracteriza o soberano
é sua possibilidade de suspender a vigência regular da própria norma e instaurar
um estado de exceção532 ao mesmo tempo em que “a competência do soberano
depende da sua capacidade de se impor no estado de exceção e instaurar um
quadro de normalidade”533. Logo, a norma válida é aquela que é decidida pelo
soberano e soberano é o poder de decisão que subjaz à própria validade da
norma, dando-lhe sustentação.
Essa perspectiva não está preocupada, ao menos a princípio, com o projeto
que se pretende justificado e legitimado nos termos da cultura do
constitucionalismo, com sua concepção específica de humano e, de algum modo,
com o soberano que lhe é próprio.
SCHMITT, especialmente em seu Teologia Política, sustenta que o soberano
é alguém que pode ser identificado, não normativamente, mas faticamente a partir
da marca “decidir sobre o Estado de exceção”, portanto, independentemente de
justificativa ou justificação em respeito à “legitimidade” dessa decisão. Quando
muito, sua visão estará comprometida com a “fundamentação” do poder/soberania
em uma, qualquer, ordem concreta534, mas não exatamente em um parâmetro
normativo relacionado ao pluralismo, ao reconhecimento e à igual liberdade dos
indivíduos.
532
SÁ, Alexandre Franco de. O Ficcionalismo na emergência do decisionismo schmittiano. In:
MORAIS, Carlos Blanco de; COUTINHO, Luís Pedro Pereira (org.). Carl Schmitt Revisitado.
Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Político, 2014, p. 14.
533
ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Carl Schmitt, op. cit.,
p. 240.
534
A esse respeito são interessantes as observações de RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR a
respeito do decisionismo mitigado que SCHMITT adota na década de 1930 em oposição ao
ocasionalismo de seu pensamento em anos anteriores. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto.
Constituição, soberania e ditadura em Carl Schmitt. Lua Nova, São Paulo, n. 42, pp. 119-144,
1997. Também não deixa de ser interessante a já mencionada observação de HELLER a respeito
da contradição do pensamento de SCHMITT em seu Teoría da Constituição: “Contradiciendo sus
propios supuestos, dice C. Schmitt que a toda Constitución existente hay que atribuirle la
legitimidad, pero que una Constitución, sin embargo, sólo es legítima, ‘es decir, reconocida no
sólo como situación de hecho sino también como ordenación jurídica, cuando se reconoce el
poder y (!) la autoridad del poder constituyente en cuya decisión ella se apoya’”, HELLER,
Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 352-353.
196
Outra resposta possível à pergunta sobre “quem é o soberano?” pode ser
respondida não exatamente por quem fática e eficazmente é o soberano, mas por
quem validamente é reconhecido como soberano na ordem jurídico-política. Esse
parece ser um salto importante da cultura constitucional, isso porque o soberano
que necessária e validamente deve ser reconhecido em um Estado que se pretende
constitucional tem de coincidir com o mesmo que responde à questão da
legitimidade da soberania. Quanto a isso, a identidade do constitucionalismo traz
como uma de suas faces inarredáveis a soberania popular, expressão de uma
cosmovisão que reconhece a todo e qualquer cidadão igual dignidade.
É elemento essencialmente caracterizador de um Estado Democrático de
Direito o reconhecimento do povo enquanto soberano. E é nessa medida que a
questão sobre “quem é o soberano?” toca outra que diz respeito a “quem deve ser
o soberano?”. Esta, relacionada à legitimidade que, como dito, em um Estado
Democrático de Direito, é respondida pela adjetivação da soberania enquanto
popular. Dizer dela é tratar de um conceito que se divide entre as dimensões da
validade (soberania) e da legitimidade (popular).
Fundamentar o poder em alusão ao povo é uma afirmação cultural –
política, inclusive, porque cultural (Cultural is Political)535 – que, assim, se coloca
enquanto prescritivo-normativa. Isso porque o poder do povo não se faz de modo
necessário, fática e eficazmente, irresistível em um Estado constitucional, mas, se
coloca, de forma inexorável, como dever ser de uma ordem que se pretende
legítima porque fundamentada em referência aos parâmetros da cultura do
constitucionalismo.
Dito de outro modo, o poder do povo não é um dado a ser descrito, mas
algo que efetivamente é produto de uma cultura, portanto, normativo, produzido e
posto por uma cultura específica: a cultura do constitucionalismo. É um dever ser
que, em maior ou menor medida, sempre está em constante risco de não vir a ser,
isto é, de não se tornar um ser na realidade social apresentando-se como
535
MAYOS SOLSONA, Gonçal. 'Cultural is Political'. Libertad y reconocimiento culturales. In:
Actas de las Jornadas de Filosofía sobre la Libertad. Disponível em: http://www.ub.edu/filosofia-
estetica-cultura/sobrelalibertad/goncalmayos.html
197
“prescrição ineficaz”. A luta quanto a isso é política e não deixa de ser nesse
sentido que BONAVIDES clama por uma repolitização da legitimidade536.
O alicerce dessa fundamentação decorre, enquanto dever ser, de um valor
específico dessa cultura do Ocidente, da visão de que há uma igualdade
fundamental de todos em uma humanidade comum – não uma igualdade
substantiva ou excludente, mas uma igualdade em liberdade, ética – portanto, de
uma premissa cultural-identitária que ao mesmo tempo “descreve” e “conforma” o
humano nos moldes como ele é entendido por essa cultura537. Assim sendo, aos
olhos de uma mundividência específica, de uma premissa antropológico-cultural
de igual dignidade538. Nesses termos, trata-se de um valor que se pretende no plano
do ser, enquanto descrição da “natureza humana”, mas que, como valor, importa
em uma proposição deontológica de que se reconheça a todos, e que todos os
indivíduos reconheçam-se entre si, nessa igualdade fundamental. Assim, que sejam
tidos em igual medida para a constituição da comunidade política que, ao mesmo
tempo, constituem e lhes constituem, integram e são integrados.
Nessa ordem, a soberania popular é expressão da concepção, originalmente
rousseauniana, de que, sendo todos igualmente livres, ninguém deve obedecer a
ninguém além de si mesmo. Essa ideia foi relida e retomada por muitos autores
como KANT, KELSEN e tantos outros, contudo, em ROUSSEAU ela guarda uma
peculiaridade que parece fundamental, que muitas vezes passa ao largo. Para ele,
se por um lado, o cidadão é livre na medida em que obedece a ninguém mais que
a si mesmo – portanto, à vontade geral – por outro, a vontade geral não se
confunde com a vontade de todos. Ela não corresponde à soma aritmética das
vontades individuais, mas coloca-se no parâmetro de bem compartilhado pelos
536
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade, op. cit.
537
Efetivamente, não descreve um dado natural, mas, na verdade, uma percepção, ela mesma
cultural, em boa medida, “naturalizada”. Nessa linha já se vê em MIGUEL REALE: “Por outras
palavras, se assiste razão a Ortega y Gasset quando diz que ‘eu sou eu e a minha circunstância’, a
começar pela circunstancialidade estrutural do sujeito que conhece, não há como não reconhecer
que o ‘paradigma cultural’ – dado seu caráter universal – também se põe como valor
transcendental no ato de conhecer, acrescentando algo de novo aos elementos até agora
estudados. Por outras liberdades, a questão do conhecimento não pode se reduzir a uma relação
puramente lógica entre ser cognoscente e realidade cognoscível, porquanto um e outra se situam
ab initio em um contexto cultural, alargando-se, desse modo, o espectro da transcendentalidade”,
REALE, Miguel. Cinco temas do Culturalismo. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000, p. 28.
538
HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado Constitucional, cit., p. 106.
198
cidadãos, latente no corpo social539. Como afirma PEREIRA COUTINHO: “o que está
fundamentalmente em causa, em Rousseau, é ‘encontrar uma forma de associação
que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada
associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, contudo, senão a
si mesmo’”540.
Nesse contexto, já está em ROUSSEAU – em que pesem leituras totalizantes
que lhes foram feitas – a questão da individualidade frente à coletividade. Ela não
se apresenta, exatamente, no sentido da individualidade colocar-se em oposição à
própria vontade geral, mas, inclusive, como elemento próprio e necessário dela541.
A vontade geral rousseauniana revela que a soberania está no povo, expressa na
vontade geral, que, por sua vez, está na comunhão dos cidadãos enquanto
coletividade, mas também em cada um enquanto igual.
Nesses termos, já em ROUSSEAU, a soberania não está abaixo, nem acima
do povo. Entender a soberania enquanto soberania popular significa compreender
que o poder da comunidade jurídico-política deve ser reportado ao povo e
percebido como pertencente a ele, em sua totalidade e em cada um de seus
integrantes. Só assim esse poder será legítimo542.
539
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social, cit., p. 48: “Como uma multidão cega que
muitas vezes não sabe o que quer, porque raramente sabe o que lhe convém, levará a bom termo
uma empresa tão grande e difícil como o é um sistema de legislação? O povo, por si, quer
sempre o bem, mas nem sempre o reconhece por si só. A vontade geral é sempre reta, mas o
julgamento que a guia nem sempre é esclarecido. É necessário que veja os objetos tais como são,
às vezes tais como lhe devem parecer, mostra-lhe o bom caminho que procura preservá-la da
sedução das vontades particulares”.
540
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade moral da Constituição, cit., pp. 351-352, e
segue: “Não obedeça, contudo, ‘senão a si mesmo’ porque terá interiorizado, reconhecido, a sua
condição não escrava de igual, reconhecendo a todos os outros correspondente condição –
consequentemente, reconhecendo como válidas as normas que reflictam a igualdade fundamental
de todos, que assim traduzam a defesa comum da ‘pessoa’ e dos ‘bens de cada associado’”.
541
N’O contrato social essa questão coloca-se exemplarmente quando o autor trata da tolerância
religiosa. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social, cit., pp. 165 e ss.
542
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade moral da Constituição, cit., p. 359: “ROUSSEAU
plenamente compreende na sua dinâmica realidade vivida, será, pois, num ‘acto fundacional
renovado a cada momento’ ou ‘vontade geral’ (uma ‘vontade geral’ que o seja ‘verdadeiramente’
porque integrada por homens que auto e mutuamente se reconhecem na sua condição não
escrava de iguais, continuamente se projectando na normatividade a que se subordinam e que
reflecte o seu compromisso) que se encontrará verdadeiramente o fundamento último de
validade de uma ordem de Direito, desde logo de Direito Constitucional”.
199
Trata-se de uma justificação – ainda que normativa – imanente, não
transcendente543. Isso porque a cultura constitucional, em seu parâmetro normativo
realizado na premissa de igual dignidade, não é externa ao indivíduo, sendo-lhe, na
verdade, própria. Como cultural, ela, a um só passo, nos é mediata, porque
normativo-prescritiva (onde mora sua objetividade) e imediata porque dinâmica e
dialética (no que se relativiza essa objetividade). Assim, não chega a ser uma fonte
de fundamentação heterônoma à própria ordem ou a seus indivíduos, mas
autônoma na medida em que é algo que lhes é próprio enquanto componente
constitutivo de sua particular identidade e mundividência.
Nesse sentido, HELLER aponta que apenas uma profunda incompreensão
do conceito de soberania em JEAN BODIN explica a ideia de conceber a soberania
do Estado como pura questão de fato, como muitas vezes lhe é imputado. Para
HELLER, BODIN reconhecera que o problema da soberania é o problema
normativo fundamental, uma vez que expressa a relação entre norma e
individualidade, não sendo o soberano, de forma alguma, ilimitado544. Ele é
limitado por uma normatividade que lhe é acessível imediatamente na cultura,
portanto, mediatamente conformada e construída no processo histórico-cultural,
em termos de uma objetividade relativa.
Será também nesse sentido que FRANZ NEUMANN diferencia o sentido
jurídico e o sentido sociológico de soberania. Juridicamente, considera que uma
instituição pode ser considerada soberana quando possui o poder não delegado ou
ilimitado para emitir normas gerais e comandos individuais. Já em sentido
sociológico, soberana é a instituição que, para além desses direitos jurídicos, tem
também a habilidade de sustentar as normas e os comandos individuais emitidos
543
Nesse ponto, discordamos de PEREIRA COUTINHO, que encontra no argumento de
ROUSSEAU, sim, um argumento de transcendência: COUTINHO, Luís Pedro Pereira.
Autoridade moral da Constituição, cit., pp. 369-375.
544
HELLER, Hermann. La Soberanía: contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del
Derecho Internacional. México: UNAM, 1965, p. 82. Afirma isso, não sem antes, ironicamente,
mencionar à página 79: “Conviene, antes de intentar justificarnos o confesar nuestro pecado,
entendernos acerca del contenido de la doctrina de la soberanía de Bodino, pues me parece que
muchos de los que hablan de él, en verdad no saben con certeza qué es lo que Bodino enseñó;
quién alguna vez haya comprado los juicios emitidos sobre Bodino y las citas tomadas de su obra,
tendrá que convenir que este ilustre teórico del estado pertenece al grupo de autores más
frecuentemente citados, pero menos leídos”; COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade
Moral da Constituição, cit., p. 369.
200
através desses direitos. Sendo assim, a soberania em sentido sociológico abrange
um elemento jurídico e um elemento de poder. Em decorrência dessa
diferenciação, NEUMANN também acaba por apresentar duas noções de Direito,
uma política e outra material. A primeira é maximamente realizada na percepção
hobbesiana, satisfeita pelo fato de qualquer norma geral ou comando individual
imputável ao Estado, justo ou injusto, ser considerado Direito. Afirma que, nesses
termos, se poderia considerar que: “toda decisão do órgão soberano do Estado é
lei. A lei, portanto, é apenas voluntas e não ratio. Destituída de todas as qualidades
materiais”, dessa maneira, “o direito nada mais é senão a vontade do Estado em
forma jurídica”, e é só nesse domínio que a soberania pode ser tida como
absoluta545.
Destaca, no entanto, que o “postulado da soberania absoluta” é antagônico
à perspectiva do “império dos direitos materiais”, na medida em que define o
direito material na situação em que as normas do Estado são compatíveis com os
postulados éticos definidos, “a partir do momento em que a essência das normas é
o princípio racional (logos) que as engloba. Elas devem sua autoridade apenas a
isto”. No que conclui que “o direito material e a soberania absoluta são, de uma
forma clara, mutuamente excludentes”546.
Há, portanto, algo de especial na questão da soberania, pois é justamente
no momento em que seu aspecto normativo-prescritivo (cultural) justificador
coincide com seu aspecto fático (fazer-se soberano) que se tocam legitimidade e
validade. O Estado e o Direito vivem de sua justificação, mas fazem-se vivos na sua
eficácia que só é possível no comando do Direito válido. O Direito válido
depende, necessariamente, da racionalização e institucionalização de uma norma
que se pretende legítima por uma vontade (faticamente) soberana.
Em um Estado que se quer constitucional, a facticidade dessa vontade
(institucional) soberana tem de estar aliada a sua própria justificação (ética) na
545
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., pp. 97-98: “O império da noção política de
direito e a existência da soberania absoluta do Estado são na realidade duas diferentes expressões
para uma e mesma coisa”.
546
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., pp. 69-71; 97-100.
201
liberdade da cada cidadão. E é nessa dupla dimensão da soberania – justificada e
de fato – que repousa o diálogo, necessário, entre legitimidade e validade.
De tal modo, o fundamento da validade, no locus limite que é o da
soberania, é político sem deixar de ser jurídico: é constitucional e, assim, jurídico-
político por excelência.
202
CAPÍTULO 6
DO CONSTITUCIONALISMO À IDENTIDADE CONSTITUCIONAL
CONSTITUCIONAL: O QUE
CONSTITUI O PODER CONSTITUINTE
203
tratando do conceito de constituição em bases culturais, ele se relaciona com a
própria ordem do constitucionalismo democrático, com a democracia
constitucional e com o Estado Democrático de Direito, momento da cultura
jurídico-política ocidental em andamento desde o segundo pós-guerra.
204
vez, afirmam e negam certas características dessa identidade, em seu caminhar.
Portanto, o momento constituinte, enquanto fundador de uma nova ordem
jurídica e instituidor de uma nova constituição, é crucial para a marcha da cultura
constitucional em uma comunidade.
547
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 34. E segue, imediatamente: “Sem
soberania, o conceito de poder constituinte de Negri perde a base material de sustentação e se
torna algo etéreo, metafísico”.
548
BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do Povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre
a crise constituinte. Lua Nova, São Paulo, n. 88, pp. 305-325, 2013, p. 306.
549
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo. Un concepto límite
del derecho constitucional. In: BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios sobre el Estado de
Derecho y la democracia. Madrid: Editorial Trotta, 2000, pp. 159-180. Nesse texto (p. 179),
BÖCKENFÖRDE, inclusive, endossa explicitamente essa posição helleriana.
205
Se por poder constituinte entende-se aquele que pela força funda qualquer
ordem, inclusive aquele que constitui uma ordem arbitrária, não há muito o que se
discutir sobre o tema. Trata-se, apenas, de mais um poder social, sem qualquer
pretensão de justificação típica, pois nem mesmo é possível falar em uma ordem
que, enquanto constitucional, se coloque em contraposição à exceção e ao
arbítrio550.
550
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 39: “Not only the past, but
also the present and the future, are bound to constrain revolutionary constitution makers. This
belies the notion that a genuine constitutional self may impose its will by eliminating or
disregarding the other. Unrestrained imposition of revolutionary will leads the experience of the
French Revolution, untampered revolutionary zeal merely succeeds in replacing a repressive
tradition, which disregards the other, with an equally rigid and repressive order predicated on
exclusion rather than inclusion”.
551
BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do Povo no Brasil, op. cit.
552
SALDANHA, Nelson. Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 65: “Em
torno do conceito do poder constituinte. Ocorre uma espécie de refração quando o poder, fato
social primário, assume sentido jurídico. A noção de poder constituinte, que se entende
sociologicamente a partir da noção de poder social, apresenta um momento bastante nítido se a
interpretamos como concentração de um tipo de passagem do poder ao direito”; MAGALHÃES,
José Luiz Quadros. Democracia e Poder Constituinte. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.).
Quinze anos de constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp.115-128.
206
No mesmo sentido, BÖCKENFÖRDE afirma haver duas razões pelas quais o
poder constituinte não pode ser compreendido como uma magnitude ou força
arbitrária e caprichosa. A primeira consiste no fato de o pouvoir constituant, como
já se afirma na própria expressão, ser determinado por uma vontade de
Constituição, entendida como a ordenação e organização jurídica do poder do
Estado e, já por isso, um poder absoluto não cabe em uma constituição. A
segunda razão reside no fato de que a formulação inicial do poder constituinte não
se assentar sobre uma vontade natural de uma população empírica, mas sobre a
consciência conjunta de um povo, consciente de si mesmo como sujeito político.
É, assim, vontade geral, não mera vontade de todos no sentido que trata
ROUSSEAU553.
553
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., pp. 176-177.
554
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 66.
207
Dito de outra forma, um Estado não-constitucional não funda, fundamenta
ou justifica seu poder no argumento de legitimidade próprio e típico da identidade
do constitucionalismo, ou seja, no povo plural, mas em outra hipótese de
normatividade qualquer, ou mesmo, na mera facticidade do poder social555. Logo,
é possível dizer que “o sistema jurídico de uma ditadura não é, por conseguinte,
‘Constituição’”556, pois é do “cerne normativo” da identidade do constitucionalismo
que o poder do Estado parta do povo e que o titular do poder constituinte seja o
povo557.
555
SALDANHA, Nelson. Poder Constituinte, cit., pp. 65 e 66: “É para observar-se que, enquanto
num regime não-constitucional não existe poder constituinte, num regime constitucional é ele o
pressuposto fundamental. Portanto, mesmo como força colocadora de ordenamento básico
(passível de ser concebido como poder supralegal e pré-jurídico), existe em função da natureza
jurídica do regime. Pode-se dizer então que no regime constitucional o direito coloca antes de si
um poder que o vai basear, ou por outra: que o direito se estabelece a si mesmo através de um
poder (um poder amoldado a esta conveniência jurídica mesma, a qual o esculpe e inspira ao
atraí-lo como objetivo)”. Em sentido similar: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade;
GOMES, David Francisco Lopes. A Constituição entre o direito e a política: novas contribuições
para a teoria do poder constituinte e o problema da fundação moderna da legitimidade. In:
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Initia
Via, 2012, pp. 87-132, p. 125: “Começa-se a alcançar a compreensão, talvez, já presente na
primeira das constituições modernas, a americana de 1787, de que aquilo que o poder
constituinte elabora não é apenas um texto dotado de uma dificuldade maior para ser alterado.
Ele é responsável, na verdade, pela construção de um projeto constituinte. Como todo projeto,
também este se lança ao futuro carregado de expectativas, em partes presentes na constituição,
que serão ou não realizadas, de acordo com a configuração que vier a alcançar, no cotidiano das
práticas sociais, e a relação sempre tensa entre facticidade e validade”.
556
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 110.
557
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., pp. 92-93: “O
poder do Estado, que deve partir ‘do povo’, e o poder constituinte, que deve ser ‘do povo’, dizem
respeito ao cerne normativo da família constitucional, historicamente desenvolvido durante a
realização da idéia de um Estado que em sentido especificamente moderno compete ‘ao povo’,
emana ‘do povo’, é responsável perante o povo, atua por causa ‘do povo’. Só que esse cerne não
é ‘aplicável’ de modo transfronteiriçamente normativo, em virtude da restrição das Constituições
às suas respectivas áreas de soberania (Estado Constitucional na forma do Estado-nação)”.
558
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 65-66.
208
Isso porque, se a mundividência da cultura constitucional é aquela que
importa em uma comunidade que tem por projeto a construção de uma liberdade
concreta, apenas o povo, em sua totalidade plural, poderá fundamentar o poder
legítimo559.
559
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Democracia e Poder Constituinte, op. cit., p. 126:
“Portanto, podemos concluir que este poder de fato será também de Direito, se efetivamente
democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o
debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional”.
560
CHUERI, Vera Karam; GODOY, Miguel G. Constitucionalismo e Democracia – soberania e
poder constituinte. Revista Direito GV, São Paulo, v. 6, n. 1, pp. 159-174, jan./jun. 2010.
561
SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético, op. cit.
562
HORTA, José Luiz Borges. Ratio juris, ratio potestatis; breve abordagem da missão e das
perspectivas acadêmicas da filosofia do Direito e do Estado. Revista da Faculdade de Direito da
UFMG, Belo Horizonte, n. 49, pp. 121-132, jul./dez. 2006. Com essa alegoria de origem
nietzschiana o autor quer aponta o caráter ponderado da Liberdade – medida, razão, ordem,
equilíbrio – e o do poder como força viva, inebriante, excessiva e vertiginosa.
209
essas duas dimensões, faces de uma mesma cultura, pois o fundamento último da
democracia é também um fundamento, ele mesmo, cultural. Isso porque trata-se
de um regime que só tem sentido enquanto reconhecido numa mundividência
culturalmente construída e compartilhada, num common ground563, que entende a
igual liberdade de cada um e que, a esse passo, considera em mesma medida a
opinião de cada cidadão para a tomada de decisão da comunidade564.
563
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here?: principles for a new political debate.
Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 6 e ss. “I shall argue, first, that in spite of the
popular opinion I just described, we actually can find shared principles of sufficient substance to
make a national political debate possible and profitable (…) there is enough substance in the deep
principles about human value that I describe as common ground to sustain an argument about
what follows, by way of social, foreign, or economic political policy, from these principles”.
564
Essa ideia está presente em vários trabalhos do autor, dentre eles: DWORKIN, Ronald.
Constitutionalism and Democracy. European Journal of Philosophy, v. 3, n. 1, pp. 2-11, 1995;
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: WFM
Martins Fontes, 2005, pp. 255 e ss.; DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? cit.
Também em HELLER, Herman. Political democracy and social homogeneity, cit., p. 260: “The
significance of social homogeneity for democracy is also comprehended in the problem just
outlined. Democracy is supposed to be a conscious process of the formation of political unity
from bottom to top; all representation is supposed to remain legally dependent on the
community's will. The people as a plurality is supposed consciously to form itself into the people
as a unity. For the formation of political unity to be possible at all, there must exist a certain
degree of social homogeneity. So long as there is belief in such homogeneity and the assumption
that the possibility of arriving through discussion at political agreement with one's opponent exists
and so long as can one debate with one's opponent and renounce suppression by physical force”.
565
BIELSCHOWSKY, Raoni. Democracia Constitucional, cit., pp. 129-164.
210
efetivamente, democrática, na medida em que vigorem, sejam praticados e
respeitados os direitos fundamentais individuais e políticos566.
211
liberdade nunca será tarefa particular e isolada de cada indivíduo, mas, sempre, de
todos juntos em comunidade. É nela que, efetivamente, se garante a Liberdade
através de uma institucionalização efetiva, em última instância, no Estado. Ao
contrário do conceito liberal, a liberdade, entendida de forma concreta, mais que
colocar os indivíduos em conflito e em distanciamento, porque fechados em si
mesmos, lança pontes entre eles570.
570
MAYOS SOLSONA, Gonçal. G. W. F. Hegel. Vida, pensamento e obra. Barcelona, Planeta
De Agostini, 2008, p. 112: “Hegel, tal como Rousseau, Herder e Hörderlin – apesar de estes três,
cada um à sua maneira, também denunciarem o despotismo das instituições sobre os indivíduos –
, pensa que o reconhecimento mútuo da própria liberdade deve também implicar o
reconhecimento do partilhado. Rousseau, Herder e Hölderlin dão igualmente muita importância
ao reconhecimento emotivo da amizade, do amor e do sentimento que leva os homens a
sentirem-se como irmãos e não só como participantes de frias e distantes instituições – o pior
sentido de concidadãos”.
571
Tanto é poder, que GRIMM não nos deixa esquecer: “Outrossim, parece difícil adotar um
conceito de democracia que seja puramente formal. Primeiro, um conceito de democracia
baseado somente no princípio majoritário é incapaz de assegurar eficazmente um governo
democrático. Ele não previne a maioria de abolir a regra da maioria. Foi isso que ocorreu na
Alemanha em 1933 – uma experiência que teve grande impacto na história legislativa da Lei
Básica”, GRIMM, Dieter Jurisdição constitucional e democracia. Revista de Direito do Estado,
Rio de Janeiro, n. 4, pp. 3–22, out./dez. 2006, pp. 7 e 8.
572
MATOS, Manuel João. Rousseau e a lógica democrática. Lisboa, Edições Colibri, 2008, p.
232: “A regra da maioria dá a forma do funcionamento possível do Estado democrático; não
porém, o seu conceito, pois essa regra trata do processo de decisão e não do princípio de decisão,
ou seja, é a condição necessária, mas não suficiente para a existência do regime democrático. É
imprescindível, mas isoladamente não conduz, por sua mera utilização, a uma forma democrática
do exercício do poder em sociedade. Tendo a democracia como condição de possibilidade os
princípios da liberdade e da igualdade, a viabilizam. Daí a determinação da intangibilidade desses
princípios, e dos direitos fundamentais, para a perpetuidade da ideia da democracia. Em
conclusão, a regra da maioria é uma prática de legitimação eventual, finita no espaço e no tempo,
212
compreendida como mera soma de interesses, vontades e opiniões, mas como
ação “coletiva em seu sentido mais profundo”, que demanda que cada indivíduo
reconheça a existência da comunidade jurídico-política a que pertence e, em
última instância, identifique-se com ela573.
cujas decisões são portanto, sujeitas a contínua revisão, e não pode a decisão ser obtida por uma
maioria conjuntural para anular o direito das futuras maiorias decidir diferentemente, tolhendo a
liberdade das gerações posteriores e a igualdade formal da maioria de hoje e a de amanhã”.
573
DWORKIN, Ronald. Constitutionalism and Democracy, op. cit., p. 4: “The distinction
between statistical and communal action allows us two conceptions of democracy as collective
action. The first is a statistical conception: that in a democracy political decisions are made in
accordance with some function - a majority or plurality - of the votes or decisions or wishes of
individual citizens. The second is a communal conception: that in a democracy political decisions
are taken by a distinct entity - the people as such - rather than any set of individuals one by one.
Rousseau’s idea of government by general will is an example of a communal rather than a
statistical conception of democracy”. Justamente aproximando as “Teorias jurídicas” de HEGEL e
de DWORKIN, particularmente tratando da questão da democracia na quarta parte: BROOK,
Thom. Between Natural Law and Legal Positivism. Georgia State University Law Review, Atlanta,
n. 23, n.3, pp. 513-560, 2007.
574
No original: “Die Staatsgewalt geht vom Volke aus. - Aber wo geht sie hin?”, essa passagem
inaugura o Parágrafo 1 do Drei Paraphen der Weimaraner Verfassung, de BRECHT. HÄBERLE
faz uma interessante observação quanto à ambiguidade da frase de BRECHT, apontando à
duplicidade do verbo ausgehen que tanto significa emanar, quanto sair. HÄBERLE, Peter. La
constitución como cultura. Anuario iberoamericano de justicia constitucional, Madri, n. 6, pp.
177-198, 2002, p. 194
213
patente à própria ordem posta575. Nessa linha, BÖCKENFÖRDE define o poder
constituinte como a força e autoridade política capaz, não apenas de criar, mas
também de sustentar e cancelar a constituição em sua pretensão de validade
normativa. E destaca que essa concepção se diferencia da de SCHMITT, justamente
por que não se limita ao aspecto de tomada de decisões políticas, mas, também, à
proteção, manutenção e superação da pretensão normativa de validade: “el poder
constituyente se recibe así como um concepto referido a la legitimación”576.
Não deixará de ser nesse sentido que MÜLLER, ainda que analisando o
texto da Lei Fundamental Alemã, menciona o poder constituinte do povo não
apenas em alusão a uma legitimidade histórica, restrita ao momento fundacional,
mas, inclusive, como parte essencial da legitimação amiúde do poder do Estado577.
Desse modo, afirma que os conceitos de poder constituinte, de legitimidade, de
direito revolucionário e de direito de resistência são conceitos jurídicos, o que
significa tê-los como conceitos normativos. Também por essa qualificação, os
575
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 34-35: “O poder constituinte atua de
forma permanente. Ele se refere ao povo concreto, com autoridade e força para estabelecer a
constituição e manter sua pretensão normativa e revoga-la”.
576
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 163.
577
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., É verdade que é
traço da perspectiva de MÜLLER uma aproximação analítica, baseada, especialmente, na
abordagem sobre o texto de norma. Nessa linha, de fato, no Preâmbulo da Lei Fundamental
Alemã há referência expressa ao verfassunggebende Gewalt (poder constituinte) do povo alemão,
em virtude do qual “outorgou-se” a Lei Fundamental. Na Constituição brasileira, por exemplo,
não há referência expressa a um poder constituinte, propriamente dito, nesses termos, apenas no
artigo 11, a respeito “dos poderes constituintes” das Assembleias Legislativas para elaboração das
constituições estaduais. Contudo, é possível identificar na formulação preambular da CRFB a
alusão ao poder constituinte do povo, ainda que ela tenha um formato, significativamente,
diferente daquele da Grundgesetz alemã. Além disso, enquanto o texto alemão fala como o “povo
alemão” em primeira pessoa, no preâmbulo da CRFB também é colocado na primeira pessoa,
mas sua “narrativa” é feita pelos próprios representantes do povo brasileiro reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte. Além disso, MÜLLER, até por sua perspectiva analítica
própria, refletida ao longo não apenas desta, mas de várias outras obras, prende sua análise de
suas conclusões ao texto de norma presente na Lei Fundamental e, por extensão, a textos de
norma similares do Direito Comparado. Assim, reduz suas observações e conclusões a essa
condição de textificação, não sendo, para ele, possível afirmar, como pretendemos aqui, que o
“poder constituinte” seja o teor central consuetudinário da família constitucional (a esse respeito
ver pp. 130-132). Por tudo que vem sendo exposto até aqui e que vem adiante, não concordamos
exatamente com esses termos, nem com essa ressalva, no que não importa rejeitar várias das
conclusões do autor, que são, na medida do possível, incorporadas e coordenadas com nosso
ponto de vista. De todo modo, a maior parte das conclusões do autor a respeito do poder
constituinte do povo são bastante coerentes e pertinentes a toda cultura constitucional, ou, em
seus termos, a toda a família constitucional.
214
entende como conceitos materialmente vinculados, que oferecem critérios de
aferição, revelando o caráter vinculante do Direito e da constituição a normas em
parte escritas, em parte, mesmo, não escritas. Dessa maneira, MÜLLER pretende
que esses conceitos libertem-se de voluntarismos, decisionismos, normologismos e
sociologismos, uma vez que lhes são marcantes o âmbito material, logo:
578
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 32. Também é
interessante a passagem: “‘Legitimidade’, ‘poder constituinte do povo’, revolução ‘legítima’ não
são entidades absolutas, mas foram obtidas a partir de, mediadas por uma determinada tradição
constitucional, decerto não unilinear. O quadro é demarcado pelo espaço histórico e não está
sujeito à decisão gratuita; isso significa que essa cultura jurídica somente pode caracterizar como
ilegítimas, em termos político-morais, práticas de Estado do seu âmbito que não correspondam a
uma atualização do poder constituinte do povo”, MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o
Poder Constituinte do Povo, cit., p. 118.
579
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 352-353. Essa perspectiva será tratada por
LOUGHLIN, em oposição ao normativismo e ao decisionismo, como relacionalismo
(relationalism), apontando-a como adequada para compreender a complexidade do poder
constituinte. Embora aponte para a importância da formulação helleriana no caminho de
compreender o poder constituinte ele, no entanto, entende a que ela ainda se colocou de forma
215
Destarte, os “limites à decisão” do poder constituinte decorrem exatamente
de sua legitimação normativa, de sua coerência com seus fundamentos e de suas
próprias condições de existência. Portanto, provém de uma implicação da cultura
a que pertence, das amarras do constitucionalismo.
Não se quer com isso afirmar que não há decisão no momento constituinte
fundador. Naturalmente há, pois, ainda que se pretenda um momento de
fundação jurídica, antes de tudo, ele é um momento político de fundação jurídica
que, assim, se coloca como justificado e não desmedido. Desse modo, a decisão
tomada não é desterrada ou tomada ex nihilo, pois, é fundadora de uma ordem
que se pretende medida pelo parâmetros históricos e lógicos de uma cultura com
a qual se identifica, que pretende ser uma leitura fundamentada e coerente,
portanto, que se expressa na formação de uma nova identidade: uma identidade
constitucional.
um tanto abstrata: LOUGHLIN, Martin. The concept of constituent power. European Journal of
Political Theory, v. 13, n. 2, pp. 218–237, 2014.
580
LOUGHLIN, Martin. The concept of constituent power, op. cit., p. 231: “Political power is
maintained and augmented only through institutionalization”.
581
HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, cit., pp. 39 e ss.
582
HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado Constitucional, cit., p. 106. É verdade
que LOUGHLIN, com sua perspectiva relacionista por vezes refuta os normativismo que aponta a
DYZENHAUS, DWORKIN, ALEXY, dentre outros. Com isso, tampouco deixa de negar o nada
216
Nessa busca por legitimação, haverá de se falar em pelo menos duas
dimensões do poder constituinte, no que MÜLLER chamará de questão de direito
processual e questão de direito material583.
normativo decisionista. Assim, o desenvolvimento que aqui fazemos, que se coloca, com
HELLER, nos termos de que o “Estado vive de sua justificação” e que o poder constituinte
também se justifica em termos normativos, sem deixar de ser poder, não estão, ao menos
explicitamente, em LOUGHLIN.
583
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit.
584
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 37, quando
entende adequado a um Estado Democrático de Direito a combinação dessas duas combinações.
585
BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo (org.). Teoria geral da política: a Filosofia
Política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 416-454; DAHL, Robert.
Sobre a democracia. Brasília: Editora da UnB, 2001, pp. 49-50.
217
partilhado, ou, como dito acima, em uma premissa antropológico-cultural que
entende a todos os cidadãos como fundamentalmente iguais em dignidade, o que
implica a igual consideração de cada indivíduo para a ação coletiva, ou seja, para a
democracia.
586
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 282-308. No
caso americano, havia várias questões em aberto geraram debates políticos e ainda geram debates
teóricos e históricos na análise dos procedimentos adotados para aprovação e, especialmente,
para ratificação da Constituição da Federação. O fato de ser a primeira Constituição escrita, de
criar o federalismo a partir de uma confederação, o presidencialismo e, particularmente, por,
efetivamente, ser o momento fundador de um novo Estado, pois fruto de um imediato processo
de independência. Apresentando posições diferentes, mas igualmente importantes: KAY, Richard
S. The illegality of the Constitution. Constitutional Commentary. Minneapolis, v. 4, pp. 57-80,
1987; KAY, Richard S. The Creation of Constitutions in Canada and the United States. Canada-
United States Law Journal, Cleveland, v. 7, pp. 111-163, 1984; AMAR, Akhil Reed. Philadelphia
Revisited: Amending the Constitution Outside Article V. The University of Chicago Law Review,
Chicago, v. 55, n. 4, pp. 1043-1104, 1988.
587
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., pp. 37-52, para o
autor, “a Lei Fundamental 1949 não satisfaz essas exigências” relacionadas ao direito processual
do poder constituinte. A posição de MÜLLER é uma posição significativa e corrente no Direito
Constitucional alemão, que de algum modo será partilhada por GRIMM, que inclusive, retira o
218
De mesmo modo, também esse déficit muitas vezes é apontado aos
processos constituintes das constituições brasileiras, por exemplo na Assembleia
Nacional Constituinte Brasileira de 1988, convocada por emenda à Carta de 1969,
(E.C. n. 26, de 27.11.85), e que na verdade, funcionava em um formato de
Congresso Constituinte, ora que composta por parlamentares ordinários que
também exerciam a função constituinte e não por constituintes eleitos
exclusivamente para o feito. Consequentemente, aqueles parlamentares que
desempenhavam o poder constituinte originário em um dos turnos de trabalho
eram os mesmos que desempenhavam o poder legislativo constituído pela Carta
Constitucional de 1969, no outro588.
219
6.2. DA IDENTIDADE DO CONSTITUCIONALISMO À IDENTIDADE
CONSTITUCIONAL
590
ROSENFELD, Michel. Constitutional identity, op. cit., p. 757: “To the extent that the ideal of
constitutionalism requires constitutions to provide a definition and limitation of the powers of
government, commitment to adherence to the rule of law and protection of fundamental rights, all
constitutions that comply with those prescriptions can be said to share a common identity. That
identity, however, cannot account for the fact that similar provisions found in a number of
constitutions can lead to widely divergent interpretations and applications”.
591
ROSENFELD, Michel. Modern Constitutionalism as interplay between identity and diversity.
In: ROSENFELD, Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy:
Theoretical Perspectives. Durham: Duke University Press, 1994, pp. 03-35. ROSENFELD,
220
uma identidade sempre “aberta, fragmentada, parcial e permanentemente
incompleta”, que no movimento de diferenciação e diálogo com outras
identidades desdobra-se em um incessante processo de desconstrução, construção
e reconstrução de seu conteúdo592.
Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 06-14; FLETCHER, George P.
Constitutional Identity, op. cit.
592
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David Francisco Lopes. A justiça e a
democracia como hipérbole: o PNDH-3 e o projeto constituinte do Estado Democrático de
Direito entre nós. Rechtd, v. 3, n. 1, pp. 95-101, jan./jun. 2011, p. 97.
593
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 26.
594
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 45. HELLER, Hermann.
Political democracy and social homogeneity, op. cit., p. 260.
595
SCHLINK, Bernhard. The constitutional subject and its identity, op. cit., p. 1873,
especificamente sobre o livro de ROSENFELD o professor de Berlim registra: “Michel's book also
221
As ideias de identidade constitucional e cultura constitucional aproximam-
se e, em certa media, intersectam-se. JAN-WERNER MÜLLER, por exemplo, trata
como se ambas fossem duas formas de se nomear a mesma ideia, preferindo a
segunda expressão à primeira por entender que o conceito de identidade guarda
denotação mais estática, enquanto o de cultura transmite mais claramente a
percepção dinâmica de movimento e transformação596.
Mais do que dois nomes possíveis para a mesma ideia, no entanto, talvez
seja melhor tratar identidade e cultura constitucionais como duas faces
complementares da mesma dinâmica, uma vez que uma identidade faz-se viva
enquanto constitucional, justamente, no fluxo de uma cultura que se constrói e se
atualiza de acordo com e na vivência dos padrões constitucionais, portanto, em
referência à realização da rede de valores, símbolos e significados do
constitucionalismo597.
shows how constitutional subjects, striving for the ideal of constitutionalism, can transcend the
limitations of their identity”.
596
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional patriotism, cit., pp. 56-58.
597
SCHLINK, Bernhard. German constitutional culture in transition. In: ROSENFELD, Michel
(ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: Theoretical Perspectives. Durham:
Duke University Press, 1994, pp. 197-222: “A country's constitutional culture lives through its
constitution. It will be free if the constitution is free, democratic if it is democratic, authoritarian if
it is authoritarian. Where a constitutional culture does not exist, a constitution that functions as
the basis and standard for state and political life is also lacking. There may be a constitutional
facade, but behind it, and in reality, the decisive factors are the program and organization of a
state party, the familiar intertwining of a governing clan or the alliances and rivalries of a military
junta. These party, family, or military structures are not the actual constitution behind the
constitutional facade. A constitution, at least in the modern sense, is a legal ordering of state and
political life independent of such structures; its independence is the result of the process of social
differentiation, the external and internal differentiation of law”.
222
compreensão de que há um processo dialético de formação da identidade que
permite que se identifique a identidade própria de uma dada Constituição598.
598
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity. The Review of Politics, Notre Dame, v.
68, n. 3, pp. 361-397, verão, 2006.
599
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 10.
600
Não falando exatamente da identidade constitucional, mas do conceito de Direito em si:
COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa, cit., p. 31: “Para além
da liberdade, a pessoa afirma-se no reconhecimento, pelo outro, do ser-pessoa do humano, a
denunciar o caráter histórico e a coexistencialidade de todo valor: o valor humano não é dado,
mas constrói-se enquanto o humano afirma-se e mantém-se, em sua relação de coexistência
histórica, como dignidade, no recíproco reconhecimento do seu valor”.
223
tem constituição é significativamente diferente das daquelas que não têm. Um
segundo relacionado ao conteúdo específico de uma constituição que, por sua vez,
fornece diferentes elementos de identidade. E, ainda, um terceiro sentido relativo
à questão do contexto em que uma constituição opera que, inevitavelmente, acaba
por exercer um importante e decisivo papel na construção da identidade
constitucional601.
Desse modo, não raro se busca compreender essa dinâmica a partir de sua
comparação com a formação da própria identidade do indivíduo. ROSENFELD,
por exemplo, partindo de pressupostos hegelianos e utilizando chaves da
psicanálise602, propõe que a identidade constitucional, assim como a identidade
pessoal, é elaborada através de um processo dinâmico e complexo que se opera
visando integrar sucessivas instâncias de negação e identificação em narrativas
coerentes e mutuamente consistentes de mesmidade (sameness) e ipseidade
(selfhood)603. Sobre a identidade pessoal, afirma que os parâmetros para o
autoreconhecimento apresentam-se de duas maneiras: reconheço-me porque
pareço o mesmo indivíduo de ontem e de todos os dias; ou reconheço-me porque
apesar de algumas mudanças que eu experimentei desde a infância (já não tenho a
mesma aparência, não penso da mesma forma, não sinto a mesma coisa)
permaneço como um único indivíduo (self) que é distinto dos demais indivíduos
(selves)604.
601
ROSENFELD, Michel. Constitutional identity, op. cit., p. 757.
602
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 73-74. Nesse processo há
três chaves caras à explanação de ROSENFELD sobre as ferramentas de construção do discurso
constitucional: a negação, a metáfora (condensação) e a metonímia (deslocamento).
603
Essas chaves são, explicitamente, emprestadas de PAUL RICOEUR: mêmeté e ipseité. É o
próprio RICOEUR que faz a tradução do francês para o inglês: “Let me recall the terms of the
confrontation: on one side, identity as sameness (Latin idem, German Gleichheit, French
memete); on the other, identity as selfhood (Latin ipse, German Selbstheit, French ipseit)”.
RICOEUR, Paul. Oneself as another. Tradução Kathleen Blarney. Chicago: The University of
Chicago Press, 1995, p. 116. Dê um modo geral, a tradução usualmente encontrada para o
português dessa expressão de RICOEUR é: mêmeté por mesmidade (ou mesmice) e ipseité por
ipseidade. RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. Tradução de Lucy Moreira Cesar.
Campinas: Papirus, 1991.
604
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 27: “I can recognize
myself either because I look the same as I did yesterday or because in spite of all the changes
which I have experienced since childhood – I no longer look the same, think the same, feel the
same, etc. – I have endured as a sigle self that is distinct from all other selves”.
224
Nesses termos, ROSENFELD propõe que o mesmo vale, analogamente, para
a identidade constitucional. Ela se constrói, especialmente, na dinâmica entre a
projeção daquilo que permanece igual (sameness) e a imagem da individualidade
daquela identidade em referência a outras identidades (selfhood)605.
605
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 27-36.
606
Aqui utilizamos outra tradução porque o autor não articula sameness em qualquer referência à
chave de RICOEUR.
607
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity, op. cit., p. 365.
225
continuidade no que ainda permanece através das mudanças que ocorrem na
dinâmica da sociedade. São:
608
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity, op. cit., pp. 373: “The collective
memories that persist as part of the cultural personality of a nation form the core of constitutional
identity, which is not established by acts of abstract reason, but is developed over time, evolving in
tandem with the habits and experiences of the body politic”.
609
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity, op. cit., pp. 373-375.
610
“Constitution makers must take the people as they are and, at the same moment, seek to make
them something else”, TUSHNET, Mark. How do constitutions constitute constitutional
identity?, op. cit., p. 672.
611
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 238.
226
fundamentais levantados por CANOTILHO: “1 – A constituição é garantia do
existente. 2 – A constituição é um programa ou linha de direção para o futuro”612.
Essa nova ordem, válida, possui funções jurídicas e políticas típicas, que
variam de acordo com as identidades constitucionais particulares, mas que
612
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., p.
151.
613
SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. A identidade do sujeito constitucional no Brasil: uma
visita aos seus pressupostos histórico-teoréticos na passagem do Império para a República, da
perspectiva da forma de atuação do guardião máximo da constituição. In: XVI Encontro
Preparatório do Conpedi, 2007, Campos dos Goytacazes - RJ. Anais Conpedi / Campos dos
Goytacazes, 2007: “Buscamos reforçar a idéia de que a construção dessa identidade do sujeito
constitucional é um processo de aprendizado social do qual o guardião máximo da Constituição é
apenas um dos atores, cuja função precípua é a de manter abertos os processos de definição de
identidade constitucional que permitem que esse aprendizado institucional se afirme em longo
prazo, como um processo político democrático, em que as diferenças sejam incorporadas por via
da realização de direitos fundamentais apoiados em uma soberania popular difusa”.
227
mantém certa similaridade em razão do momento histórico do constitucionalismo
no qual opera, especialmente, em tempos de intensa interação global, como são os
atuais, e de fortalecimento e preocupação pela proteção internacional dos direitos
humanos, o que instiga o crescimento de um Direito Constitucional Comparado.
228
Parte III
Futuro
Nunca haverá uma boa e sólida Constituição
além daquela em que a lei reinará sobre os
corações dos cidadãos. Enquanto a força
legislativa não foi até lá, as leis serão sempre
eludidas
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
CAPÍTULO 7
A CONSTITUIÇÃO ENTRE A UNIDADE POLITICA E O ORDENAMENTO
JURÍDICO
229
ordem é o de que o próprio poder também esteja adstrito às amarras da ordem legal
que coloca.
615
Ainda que, em grande medida, o constitucionalismo e a Cconstituição tenham, em parte, se
desprendido dessas precisas bases originárias, avançando no sentido da inclusão de outras demandas
sociais – como foram aquelas incorporadas, a posteriori, sob do signo de 1848, por exemplo – ainda
assim, a normalidade constitucional deixa de se colocar, propriamente, a partir do imediato interesse
capitalista, quando, muitas vezes, em sua oposição. Nessa tensão, especialmente a partir do século XX,
não raro jogam-se luzes sobre o estado de exceção como forma de manter o regime e o status quo e não
mais a ordem constitucional que, em si, muitas vezes coloca-se como socialmente transformadora. É
nesse sentido que desenvolve e aprofunda BERCOVICI em: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e
Constituição, cit. De todo modo, há quem entenda que, ao mesmo tempo em que o Estado
intervencionista é uma concessão do capitalismo, em boa medida, ele é, também, a única maneira de a
própria sociedade capitalista preservar-se ao promover a diminuição das desigualdades: STRECK,
Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.
11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 24.
616
GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado. Madrid: Alianza, 1999,pp. 128-
133. REALE vai além identificando ao Direito tout court: “O Direito, como força cultural que é, e, mais
precisamente, como elemento de ordem e garantia dos valores culturais de uma comunidade, não pode
ser só estabilidade – que é a estagnação e a morte – nem só movimento e mudança, que é a falta de
continuidade, o estilhaçamento, o desperdício da vida”, REALE, Miguel. Direito e Cultura, op. cit., pp.
292-296.
617
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 327.
231
Fundamental Alemã, que, inclusive, imaginada para possivelmente ser substituída por
uma constituição618, vige e vigora desde 1949, passando pelas experiências de uma
Alemanha dividida (inclusive fisicamente por um muro), pela reunificação pós-1989 e,
mesmo, por algumas transformações de seu texto. Apesar de tudo isso, a Lei de Bonn
permanece efetiva até hoje, com patente força normativa e, principalmente,
conservando sua identidade constitucional619.
618
“Artigo 146. [Prazo de vigência da Lei Fundamental]. Esta Lei Fundamental que, após a consumação
da unidade e da liberdade da Alemanha, é válida para todo o povo alemão, deixará de vigorar no dia em
que entrar em vigor uma Constituição, que tenha sido adotada em livre arbítrio por todo o povo
alemão”, Lei Fundamental Alemã.
619
GRIMM, Dieter. Identidad y transformación: la Ley Fundamental en 1949 y hoy. Teoría y Realidad
Constitucional, Madri, n. 25, pp. 263-277, jan./jun. 2010.
232
Assim, ainda que abertas, as constituições sempre se pretendem estáveis em suas
raízes e fundamentos, em sua identidade constitucional que caminha no fluxo da cultura
constitucional. Essa ambiguidade, necessária, é possível, inclusive, porque são elas
dinâmicas em seus desdobramentos e possibilidades620.
620
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 199; HÄBERLE, Peter. El Estado
Constitucional, cit., p. 3: “La constitución es creadora del momento de la estabilidad y de la
permanencia; el ejemplo más impresionante lo ofrece la Constitución de los Estados Unidos con sus
más de dos siglos de vigencia. No obstante, en virtud de esta duración – la Ley Fundamental alemana
(en adelante LF) incluso plantea una ‘pretensión de eternidad’ a favor de los principios fundamentales
de su artículo 70, inciso 3, en forma análoga a algunas Constituciones anteriores y a otras que le han
seguido – se requieren instrumentos y procedimientos gracias a los cuales la Constitución se adapte en
forma flexible, como ‘proceso público’, a los acontecimientos de la época, sin detrimento de su sentido:
a saber, como ‘estímulo y límite’, en los términos de R Smend, a también como ‘norma y tarea’ (U.
Scheuner), lo mismo que como ‘limitación y racionalización’ del poder del Estado (H. Ehmke), pero
también del poder de la sociedad. Precisamente la Constitución de los Estados Unidos, además de las
muy escasas enmiendas (actualmente 28) que ha sufrido en doscientos años, conoce el procedimiento
del cambio, especialmente a través de la jurisprudencia constitucional".
233
a constituição como constituição total, no que se avança no sentido de uma concepção
estrutural de constituição, sendo considerado o aspecto normativo para além da norma
pura, em sua conexão com a realidade social, em seu conteúdo fático e sentido
axiológico621. Nessa linha, CANOTILHO, com sua Constituição Dirigente, vai tratar que “a
interdependência da teorético-jurídica e teorético-social surge no campo da
«reconstrução» da teoria da constituição, através de uma teoria material da constituição
concebida como teoria social”622.
621
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 39. SCHNEIDER, Hans-Peter. La Constitución: función y estructura. In: SCHNEIDER, Hans-Peter.
Democracia y Constitución. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 35-52, p. 42: “el
concepto moderno de constitución se debe orientar atendiendo a las funciones cambiantes de ésta y a su
modo especifico de funcionamiento en la comunidad pluralista y antagónica de la sociedad industrial. Se
debe rechazar tanto una concepción únicamente «decisionista de la Constitución, entendida como
decisión global sobre el tipo y a forma de la unidad política» (C. Schmitt), cuanto una transcripción
puramente formalista de la misma, como una «ley de difícil modificabilidad» (Kelsen). En conexión con
Smend, Heller y Hesse, la Constitución se debe entender más bien en su sentido funcional: es orden
jurídico fundamental para la formación de la unidad política, la asignación del poder estatal y la
configuración de la vida; por consiguiente y ante todo, un instrumento de control social del proceso de
consociación”.
622
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., pp. 13-
14.
623
GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado, cit., p. 99-103.
624
SCHNEIDER, Hans-Peter. La Constitución – Función y Estructura, op. cit.; citando-o: BERCOVICI,
Gilberto. Constituição e Política, op. cit.; STRECK, Lênio. La jurisdicción constitucional y las
234
HESSE, nessa mesma linha, trata de duas tarefas fundamentais da Constituição,
estreitamente relacionadas entre si: a de formação e manutenção da unidade política e a
da criação e manutenção do ordenamento jurídico625. Tratando delas, desenvolve-as em
três funções: a de integração, a de organização e a de direção jurídica626.
Nesses termos, todos esses autores colocam-se em uma mesma tradição que,
partindo de SMEND e HELLER, não aparta as características de estabilidade (jurídica) e
dinamicidade (política), mas coloca-as em necessária relação dialética.
628
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, cit., p. 44.
629
STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de
Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2, pp.257-
301, mai./ago. 2003, p. 260.
630
Para uma formulação bastante representativa da linha procedimentalista: CATTONI DE
OLIVERIA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo, cit. Para uma construção significativa da
corrente substancialista: STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, cit.
631
STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de
Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, op. cit., pp. 259-260.
236
constituição dirigente-compromissária, talvez, tampouco possa mesmo ser afastada
definitivamente632.
Entretanto, GRIMM não deixa de lembrar que “não existe oficial de justiça em
matéria constitucional”, o que significa que, em última análise, em situação limite, o
descumprimento de um mandamento constitucional não possui meios de impor-se pela
força633. Ele é dependente da própria estrutura de legitimação da democracia para fazer-
se impor.
632
STRECK, Lênio. Intervenção, op. cit.
633
Naturalmente, entendida interpretação como um processo de concretização de textos normativos e
programas normativos em normas jurídicas, e de normas jurídicas em normas de decisão, em muitos
casos, a norma jurídica constitucional é concretizada em e por normas jurídicas que, por sua vez,
possuem tais mecanismos coercitivos.
634
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 194: “As the embodiment of the highest-
ranking legal norms, the constitution is primarily intended to produce normative effects”.
237
constituição visa exprimir, muito simplesmente, que a constituição sendo uma lei como
lei deve ser aplicada”635.
635
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1150.
Tratando em um sentido um pouco mais amplo MARCELO NEVES dirá que a força normativa deve ser
“entendida como a orientação das expectativas e o direcionamento das condutas na esfera pública de
acordo com o modelo normativo constitucional”. NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e
desconstitucionalização fática, op. cit., p. 323.
636
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p.
235.
238
JOSÉ AFONSO DA SILVA, tratando da Aplicabilidade das normas constitucionais,
vai relacionar positividade, vigência, eficácia, observância, facticidade e efetividade,
desenvolvendo mais detidamente os três primeiros termos. Por positividade do Direito
identifica a característica que tem o Direito que rege a conduta humana por normas
bilaterais e atributivas, socialmente postas, in concreto, quer histórica, quer atualmente.
Para caracterizar o Direito vigente JOSÉ AFONSO aproxima-se da definição kelseniana de
vigência; entende-o como aquele que rege hic et nunc as relações sociais, portanto, o
Direito presente637. Por eficácia do Direito o autor tratará de, pelo menos, duas
dimensões: a da eficácia jurídica e a da eficácia social638.
637
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 11-16.
638
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
pp. 63-66.
639
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 66.
640
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 81.
641
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do Direito. 4 ed. São Paulo: RT, 2011: “a
validade da norma (...) é denominada, às vezes, de ‘eficácia jurídica’”. 283
642
ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
pp. 35-37; OTERO, Paulo. Lições de Introdução ao Estudo do Direito. Lisboa: Pedro Ferreira, 1999,
v. I, t. 2, pp. 143-208. No mesmo sentido, ANA PAULA DE BARCELLOS vai identificar que: “o elemento
essencial do direito, e da norma jurídica em particular, consiste na imperatividade dos efeitos
239
A imperatividade, como trata OLIVEIRA ASCENSÃO, não se coloca no fato de as
normas jurídicas (em geral) ou das normas constitucionais (particularmente) serem de
fato cumpridas ou não, mas que elas devem ser cumpridas no plano normativo. Isto é,
nos casos em que ocorrem as hipóteses para aplicação da norma, é imperativo que seu
comando seja, efetivamente, tido em conta e respeitado na operação de interpretação
do Direito.
propostos”, BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio
da dignidade da pessoa humana. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 38
643
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, cit., p. 44.
644
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, cit.; BARCELLOS, Ana Paula
de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, cit.; BARROSO, Luís Roberto. Intepretação e
240
a eficácia jurídica, tomada neste sentido, na verdade coloca-se como uma pretensão de
eficácia (Geltungsanspruch) e, como aponta HESSE, particularmente quanto à força
normativa da constituição, “não pode ser separada das condições históricas de sua
realização”645.
Quanto à eficácia social, JOSÉ AFONSO DA SILVA define-a como a efetiva conduta
presente na norma, portanto, realiza-a no fato de uma norma ser obedecida e aplicada.
Como aponta o próprio autor, esse é, também, o sentido dado à eficácia, de modo
geral, por BOBBIO647, mas, também, nas tríades de REALE e ALEXY. Nesse sentido, JOSÉ
AFONSO trata os conceitos de eficácia social e de efetividade como sinônimos, posição
corrente na Teoria do Direito brasileira648 sendo possível, inclusive falar em uma
646
Não será em sentido diferente que JOSÉ AFONSO DA SILVA afirma: “Uma norma só é aplicável na
medida em que é eficaz. Por conseguinte, eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais
constituem fenômenos conexos, aspectos talvez do mesmo fenômeno, encarados por prismas
diferentes: aquela como potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade. Se a norma não dispõe
de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de
aplicabilidade. Esta se revela, assim como possibilidade de aplicação. Para que haja essa possibilidade, a
norma há que ser capaz de produzir efeitos jurídicos”, SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das
normas constitucionais, cit., p. 60. VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA relata que muitos autores apontam para
a falta de clareza nessa diferenciação feita por JOSÉ AFONSO DA SILVA. O próprio VIRGÍLIO AFONSO
DA SILVA propõe uma diferenciação que, coerente com sua postura sobre interpretação jurídica (que,
particularmente, não compartilhamos), identifica a eficácia jurídica com a aptidão de uma norma
produzir efeitos e a aplicabilidade com a conexão entre fatos e normas em um caso concreto,
envolvendo, portanto, uma dimensão fática. SILVA, Virgílio Afonso. A Constitucionalização do Direito,
cit., pp. 54-57; SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais, cit., pp. 210-212.
647
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica, cit., p. 47: “o problema da eficácia de uma norma é
o problema de ser ou não segunda pelas pessoas a quem é dirigida (os chamados destinatários da norma
jurídica) e, no caso de violação, ser imposta através de meios coercitivos pela autoridade que a evocou.
Que uma norma exista como norma jurídica não implica que seja também constante seguida”.
648
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, cit., pp. 112-115; FERRAZ JÚNIOR, Tércio
Sampaio. Introdução ao estudo do Direito, cit., pp. 165-171; BARROSO, Luís Roberto. O Direito
Constitucional e a Efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 84-89; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos
Fundamentais, cit., pp. 235-241.
242
doutrina brasileira da efetividade649, que tende a se aproximar do que CANOTILHO trata
por realização constitucional650.
649
Por todos: BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas, cit.
Tratando da própria “doutrina brasileira da efetividade”: BARROSO, Luís Roberto. A doutrina
brasileira da efetividade. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques Lima, BEDÊ,
Faya Silveira (Org.). Constituição e Democracia: estudos em Homenagem ao professor J.J. Gomes
Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 435-447. LÊNIO STRECK apresenta, ainda que ligeiramente,
em nota de rodapé, uma crítica interessante a essa doutrina, especialmente, alegando que seus
partidários, recorrentemente, não observariam a diferença entre texto normativo e norma: STRECK,
Lênio. A interpretação da constituição no Brasil: breve balanço crítico. Revista Paradigma, Ribeirão
Preto, a. 17, n. 21, pp. 2-35, jan./dez. 2012. A crítica parece válida, apesar de, possivelmente, um pouco
generalista e taxativa. STRECK destaca como se BARROSO classificasse dentro de uma “doutrina
brasileira da efetividade” diversos autores, particularmente, JOSÉ AFONSO DA SILVA, CELSO ANTÔNIO
BANDEIRA DE MELLO, CELSO RIBEIRO BASTOS, CARLOS AYRES DE BRITTO, MARIA HELENA DINIZ,
além do próprio LUÍS ROBERTO BARROSO. Esse “agrupamento” não nos parece efetivamente feito por
BARROSO, que, sem generalizar esses autores, apenas destaca suas contribuições para o “tema da
eficácia e do próprio papel das normas constitucionais”. Assim, é difícil tratar a todos de forma
uníssona. Nesse sentido, ainda que os termos utilizados por JOSÉ AFONSO DA SILVA em seu
Aplicabilidade das normas constitucionais (tese originariamente escrita entre 1967 e 1968 e defendida
como tese de livre-docência na Universidade Federal de Minas Gerais) por vezes possam dar a entender
essa não diferenciação, não nos parece que essa seja, necessariamente, sua posição, especialmente se
levadas em conta as observações mais específicas que desenvolve em: SILVA, José Afonso. Teoria do
conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 717-1000.
650
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1200:
“Realizar
Realizar a constituição significa tornar juridicamente eficazes as normas constitucionais. Qualquer
constituição só é juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através da sua realização. Esta realização é
uma tarefa de todos os órgãos constitucionais que, na actividade legiferante, administrativa e judicial,
aplicam as normas da constituição. Nesta «tarefa realizadora» participam ainda todos os cidadãos
‘pluralismo de interpretes’ que fundamentam na constituição, de forma directa e imediata, os seus
direitos e deveres”. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha, cit., p. 47-52.
651
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 17 ed. São Paulo:
Malheiros, 2015, pp. 315 e ss.
652
JEAMMAUD, Antoine. En torno al problema de la efectividad del derecho. Crítica Jurídica: Revista
Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, n. 1, pp. 5-15, 1984, pp. 11-12.
653
CORREAS, Oscar. Teoría sociológica del Derecho y Sociología Jurídica: parte II. Crítica Jurídica:
Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, n. 8, pp. 73-108, jan./jun. 1988, pp. 92-95. Na
verdade, CORREAS divide dois grandes grupos de efetividade: a) no cumprimento, ao que identifica por
consenso e por temor; b) na aplicação, que dividirá em formal e material. Além disso, identifica dois
tipos de efetividade: a) subjetiva; b) objetiva.
243
para EROS GRAU, seria aquela qualidade que se manifesta quando há a “conformidade
de uma situação jurídica concreta ao modelo que constitui a norma”654.
No entanto, para além dessas duas dimensões, que se aproximam em muito das
duas dimensões correntemente trabalhadas no debate brasileiro como eficácia jurídica e
eficácia social, EROS GRAU identifica uma terceira dimensão a que chama,
simplesmente, eficácia (sem adjetivação). Para o autor, ela consiste na “realização efetiva
dos resultados (fins) buscados pela norma”657.
654
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 317.
655
“Efectividad material” é o termo encontrado, tanto em JEAMMAUD, quanto em CORREAS.
656
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., p. 48 : “para poder decidir se uma certa norma
jurídica é sociologicamente válida, temos de investigar se o Estado, enquanto aparelho coercitivo, provê
de acordo com aquelas normas jurídicas tal garantia apoiada pela coerção sobre o comportamento, ou
se ele tem tal poder em razão de um comportamento médio, o qual se supõe que as normas vão se
realizar. Trata-se, então, de uma questão sobre o comportamento típico”.
657
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 316.
658
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 318: “Estou inteiramente
consciente da inconveniência do uso de um vocábulo ou expressão que costumeiramente seja destinado
a conotar determinado conceito para, ele ou ela mesma, conotar diverso conceito. Eficácia é o vocábulo
que tem sido usado, pela doutrina que referi, para conotar a realização efetiva dos resultados (fins)
buscados pela norma; efetividade material é a expressão que tem sido usada, pela mesma doutrina, para
conotar a ideia, corrente entre nós, de eficácia social. Permito-me, em respeito ao leitor, insistir em que
não estou a distorcer o significado do vocábulo eficácia, porém tão somente trabalhando com um novo
conceito. Penso merecer também eu respeito, no sentido de que se me torne possível expô-lo tal como
conotado pela doutrina que o acolhe”.
659
A primeira delas diz respeito, não exatamente à construção em si, mas à sua compatibilidade à
metódica estruturante que EROS GRAU coloca e desenvolve com perspectivas próprias, ainda que sob
forte influência das formulações MÜLLER. Isso porque, desde essa perspectiva, via de regra, é difícil
identificar fins da norma, uma vez que, para ele, a rigor, a norma só é constituída na
interpretação/aplicação. Por outro lado, essa dimensão destacada por GRAU não parece incompatível
com outras perspectivas relacionadas à interpretação jurídica e constitucional, como os métodos
concretizadores e concretistas de HESSE e HÄBERLE.
244
parte dos casos, a eficácia social (efetividade material) de uma norma, não importará no
completo atingir de seus objetivos últimos. GRAU faz esses reparos justamente ao tratar
das normas constitucionais, particularmente, à previsão de aplicação imediata dos
direitos e garantias individuais, prevista no art. 5º, §1º da Constituição Federativa do
Brasil.
Fato é que todas essas três dimensões da eficácia, em sentido amplo, relacionam-
se à ideia original de força normativa da Constituição de KONRAD HESSE, mas, mesmo
antes disso, na própria dicotomia que historicamente se apresentou na discussão entre o
caráter (exclusivamente) político ou, eminentemente, jurídico de uma constituição.
Uma constituição não se propõe como mera norma capaz de conduzir todo o
ordenamento jurídico, apenas (projeto jurídico), mas pretende ver esse ordenamento
implementado pela e na comunidade de modo a transformá-la e conduzir suas
dinâmicas de acordo com a identidade da qual ela é símbolo (projeto político). É nessa
esteira que também se relaciona à dimensão dinâmica da cultura constitucional e,
especialmente, a seu elemento vital. Esta extrapola a relação dialética entre validade e
legitimidade, uma vez que não se esgota no diálogo entre o ser e o dever ser de uma
Constituição, mas, de algum modo, também não deixa de estar contida na relação entre
normalidade e normatividade. Por isso, consequentemente, também é abrangida pelo
conceito dinâmico de cultura, colocando-se na relação entre legitimidade e eficácia661.
660
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica, cit., pp. 47-48.
661
Lembra-se que a relação entre validade e eficácia é mais patente que essa que se traça entre
legitimidade e eficácia. O próprio KELSEN discorre a seu respeito: KELSEN, Hans. Teoria Pura do
Direito, cit., pp. 235-238.
245
7.2. FORMAÇÃO DA UNIDADE POLÍTICA
POLÍTICA: INTEGRAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO
A princípio ela é bastante relacionada àquela que HESSE identificará como sua
função integradora, que, por sua vez, bebe no conceito de integração pretendido por
SMEND. Desta, inclusive, desenvolvem-se várias chaves muito caras ao
constitucionalismo democrático, como são a vontade de Constituição, o patriotismo
constitucional e o sentimento constitucional, que ainda serão mais detidamente tratadas.
662
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 46.
663
RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?, cit., p. 66. Também lembrado em: HABERMAS, Jürgen.
Cidadania e identidade nacional. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e
validade, v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, pp. 279-305, pp. 282-283.
246
Nessa esteira, a chave da integração pela constituição (ou integração através da
constituição) é colocada em diversos momentos e debates, sempre no sentido de
processo de consolidação de unidade política em alternativa a outros processos de
formação de unidade, alicerçados sobre outros parâmetros de unidade, como nação,
religião, etnia etc. Coloca-se, também, frente à própria ausência ou tenuidade dos
parâmetros de unidade da comunidade jurídico-política que se pretende664, portanto, ela
se articula com a dimensão da identidade constitucional que se forma e é formada no
fluxo da cultura constitucional.
Dito de outra forma, a integração pela Constituição tem por escopo, justamente,
criar uma unidade a partir da Constituição, colocando-a como vértice e centro comum
de uma unidade cultural em sentido político, mas não apenas. Isso porque, a
Constituição entendida em seu sentido total, se converte em ordenamento jurídico
fundamental não apenas do Estado, mas, também, de toda a vida dentro do território de
um Estado, apresentando-se, efetivamente, como “ordenamento jurídico fundamental
do Estado e da comunidade”665. Trata-se, portanto, de uma integração em liberdade666,
do indivíduo crítico na comunidade.
664
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 204. Quanto a esses casos, como tantos
outros, GRIMM destaca os casos da unidade política dos Estados Unidos da América do norte, que se
funda e se constrói, basicamente, como um país de imigrantes e de grande diversidade, o caso da
Alemanha dividida da segunda metade do século XX, e, contemporaneamente, da situação europeia,
iminente. Tratando do caso europeu contemporâneo: BOGDANDY, Armin von. The European
Constitution and the European Identity: text and subtext of the treaty establishing a Constitution for
Europe. I-CON, Oxford/Nova York, v. 3, n. 2 & 3 (edição especial), mai. 2005, pp. 295-315; HESSE,
Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., pp. 3 e ss.; DWORKIN, Ronald. A virtude
soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2005, pp. 324 e ss.;
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política, op. cit., passim.
665
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., p. 5. BÖCKENFÖRDE, Ernst-
Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 161. HÄBERLE dirá “ordenamento jurídico
fundamental do Estado e da sociedade”: HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., p. 3;
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., pp. 150-
154.
666
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 50.
247
comunidades. Nesse contexto, aponta que, em que pese a integração ser vista como
condição de unidade e ação coletiva, ela não implica na eliminação forçada da
pluralidade de opiniões e interesses dentro da unidade do sujeito constitucional667.
PAULO FERREIRA DA CUNHA, por sua vez, identifica essa função como própria
de todo Direito, sendo ela destacada quanto à constituição, especialmente, em razão de
sua abrangência e preponderância. Assim, define a função integradora como a
solidificação da “sociedade política” estatal, com a consolidação das instituições, com o
estabelecimento de ordem, hierarquia e paz sociais, e ainda, resgatando ENGISH,
destaca que a constituição também contribui para dar sentido ao mundo, o que é uma
das mais relevantes funções sociais do Direito668.
667
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 193. GRIMM não chega a utilizar a expressão
sujeito constitucional.
668
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Princípios-tópicos de hermenêutica constitucional. Disponível em:
http://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1031&context=pfc, p.14.
669
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: WFM Martins
Fontes, 2005, pp. 324-325.
248
movimento, que tem como impacto, de algum modo, o consolidar de uma mundivisão
e de valores a serem remontados e reconstruídos coerentemente com a identidade
constitucional pluralista.
Após século e meio de cisão entre Estado e sociedade, não raro aponta-se a
Weimar, ao Estado Social de Direito e, por conseguinte, ao Constitucionalismo Social,
o papel e o momento de (re)conciliação entre esses dois polos.
249
Húngaro), fez surgir o Estado Social de Direito em alternativa ao formato liberal até
então dominante, ainda que decadente.
250
comunidade livre, igual e fraterna. Nesse sentido, é possível afirmar, novamente com
ROSENFELD, que é da identidade do constitucionalismo e, consequentemente, das
amarras que lhe são próprias e decorrentes, a promoção do reconhecimento mútuo
entre os indivíduos entre o eu e o outro, em pé de igual dignidade.
Ela também aspira que os poderes sociais, eles mesmos, não gerem situações de
opressão e exploração que importem na perda de identidade constitucional daquela
própria comunidade, portanto, que maculem sua premissa cultural que é a igual
liberdade de todos672. Isso se reflete nos mais diversos âmbitos, econômicos, sociais ou
culturais, e, muitas das vezes, é encontrado de maneira bastante expressa nos textos
constitucionais673.
670
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, cit., p. 48.
671
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit.
672
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: derrubada da Constituição e a
recolonização pelo golpe de Estado institucional. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 19-31, p. 21: “À
púnica dos globalizadores neoliberais opõe-se o humanismo do Estado social e sua filosofia do bem
comum e o poder legítimo do Estado social que, gerado no constitucionalismo de origem weimariana e
aperfeiçoado nas Constituições subseqüentes à Segunda Grande Guerra Mundial, até ser atropelado,
ultimamente, pela onda de expansionismo da reação capitalista, nem por isso se desfez de seu potencial
de luta ou perdeu por inteiro a capacidade de resistência eficaz ao novo status quo do capitalismo”. Em
sentido similar, JOSÉ LUIZ BORGES HORTA vai identificar como adversários do Estado de Direito tanto
os neoliberais, como os neoconservadores, que com suas pautas e métodos “tecnicistas”, atropelam os
fundamentos do próprio Estado de Direito, em nome de uma dita nova ordem mundial. O fazem,
especialmente, utilizando-se de um discurso de tecnicização e racionalização que pretende a
despolitização do debate, esvaziando o próprio Estado de Direito. HORTA, José Luiz Borges et al.
História do Estado de Direito, cit., pp. 199-203; HORTA, José Luiz Borges. A era pós-ideologias e suas
ameaças à política e ao Estado de Direito. Confluências, Niterói, v. 14, n. 2., pp. 120-133, dez. 2012.
673
Exemplo patente disso está no fato de os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
elencados na CRFB, estarem, basicamente, todos eles relacionados à construção e ao desenvolvimento
da própria sociedade: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I -
construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
251
Essa característica fica ainda mais clara quando do reconhecimento da
aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, amplamente prevista nos textos
constitucionais como, também, aos efeitos dela decorrentes, maximamente, na
vinculação dos particulares e na eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Além disso, não raro se vê, nos diversos textos normativos da família
constitucional, disposições que vão definir (pluralisticamente) valores e conceitos
próprios da sociedade. Em que pesem suas implicações jurídicas, essas disposições, na
verdade, são particularmente relacionados à vida da comunidade e de seus membros,
independente do Estado, como são os casos das definições constitucionais sobre a
família (quer diretamente pelo texto normativo, quer pela norma formulada em
jurisdição constitucional), sobre políticas de inclusão social e redução das desigualdades,
na vedação ao preconceito de toda espécie, inclusive nas relações particulares, dentre
outros674. Portanto, a constituição pretende guiar, para além da atuação ou abstenção
obrigatória do Estado, as próprias relações sociais intra-particulares.
Também como já dito, quer como projeto, quer como norma, a Constituição
coloca-se como um dever ser a essa comunidade autorreferenciada. Assim, ela
apresenta-se com o intento de modular o ser, presente e futuro, ainda que de forma
nunca acabada, como aponta SCHLINK, transcendendo as próprias limitações da sua
identidade, fazendo-a mais plural e inclusiva. Destarte, é norma em sentido amplo,
enquanto dever ser pretendido. Desse modo, os objetivos de igual tratamento,
erradicação das desigualdades e de igual liberdade, seguem em construção como pautas
de um projeto (também compromissário) que é renovado amiúde em sua identidade,
representatividade e autorreferência na comunidade.
Isso se coloca de forma inexorável na medida em que a Constituição, ela mesma, é projeto político,
portanto, que se presta a normatizar para além das estruturas e instituições estatais.
674
Esses foram casos de grande repercussão, quer no Brasil: ADPF 132/ADI 4277 (STF); quer nos
EUA: Obergefell v. Hodges (Supreme Court).
252
a norma válida a ser reproduzida, recorre-se ao aparato do Estado para que este diga
qual a norma oficialmente válida para que, então, ela seja imposta pelo exercício
legítimo e regular da força. Assim, quer a ideia de eficácia jurídica, quer a de eficácia
social, via de regra, apoiam-se, particularmente, sobre a coercitividade da norma
jurídica.
675
Apontando para problemas recorrentes nas construções das teorias e correntes de interpretação
constitucional no Brasil: SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação constitucional e sincretismo
metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros,
2005, pp. 115-143.
676
BARROSO, Luís Roberto. Intepretação e aplicação da Constituição, cit., p. 107.
677
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., pp. 6-9.
253
seu descumprimento e não observância. Quanto a este traço, mesmo nas hipóteses em
que eles existem de forma institucional ou simbólica, raras vezes se colocam a partir de
um aparato de coerção oficial classicamente vinculado às formas de sanção estatal.
678
ZAGREBELSKY, Gustav. El derecho dúctil, cit., pp. 9-20. O título original em italiano é “Il Diritto
Mite. Legge, diritti, giustizia”. Mite, que é traduzido por dúctil nessa edição castelhana, pode ser
traduzido por: moderado, suave, módico, manso, tranquilo, aplicável. A explicação para a escolha de
dúctil está na nota 11, p. 19 da tradução utilizada. Por ser um cognato, aproveitamos a tradução
castelhana, dúctil, já consagrada. Apresentando o termo, LA TORRE, Massimo. Constitutionalism and
Legal Reasoning. Dordrecht: Springer, 2007, p. 36: “A constitutional law is a ‘mild law’ first in the sense
that it is open to justification and refers to argumentation and discourse, to a ‘civil conversation’. But it
also mild in the sense that within its province – which is essentially discursive – the use of force and
coercion is reduced as drastically as possible, in order to make it possible for collective autonomy”.
679
KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da Constituição? In: KELSEN, Hans. Jurisdição
Constitucional. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 237-298, em que concorda com SCHMITT
acerca do caráter político (em sentido amplo) da atividade jurisdicional. É de se destacar que a crítica a
suas perspectivas quanto à teoria interpretativa é ampla. Para uma crítica da postura kelseniana:
254
Nessa ordem, há ainda uma antiga questão que acompanha o constitucionalismo:
quanto ao destinatário de uma constituição680. Esta, porque considerada o ordenamento
jurídico do Estado e da comunidade, tem como destinatários todos os poderes
constituídos (legislativo, executivo e judiciário) e seus agentes, assim como todos os
cidadãos681. Disso decorre, também, o fato de a Constituição, enquanto unidade cultural,
ser interpretada por todos esses destinatários, não apenas pelos agentes dos poderes
constituídos, mas por todo cidadão, na concretização das normas constitucionais, em
sua vivência e realização. Como expõe HÄBERLE:
quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-
interpretá-la (Wer die Norm ‘lebt’, interpretiert sie auch (mit). Toda
atualização da Constituição por meio da atuação de qualquer indivíduo,
constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional
antecipada682.
Considerada essa dimensão, é possível identificar que a eficácia e, mesmo,
efetividade e realização de uma constituição, por muitas vezes, apoiam-se em um lastro
683
GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Revista de Direito do Estado, Rio de
Janeiro, a. 01, n. 4, pp. 03-22, out/dez, 2006, p. 10.
684
GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia, op. cit., p. 10; GRIMM, Dieter.
Constitucionalismo y derechos fundamentales, op. cit., p. 31. HESSE, Konrad. Constitución y Derecho
Constitucional, op. cit., pp. 7-8: “El Derecho Constitucional se diferencia del Derecho de otras ramas
jurídicas en que, en definitiva, no existe instancia que pueda imponer su observancia; el Derecho
Constitucional tiene que garantizarse por sí mismo, lo cual supone la existencia previa de una
configuración que esté en condiciones de asegurar en lo posible tal garantía inmanente. Las funciones
ordenadora y pacificadora del Derecho ordinario dependen en gran medida de que si resulta necesario,
se impongan por vía ejecutiva, mediante la coerción estatal. Su observancia, pues, siempre resulta
garantizada desde fuera. Todo lo contrario ocurre con las normas de la Constitución. Su observancia no
se garantiza ni por un ordenamiento jurídico existente por encima de ella ni por una coactividad
superstatal; la Constitución no depende sino de su propia fuerza y de las propias garantías”.
685
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., pp. 215-217; LOEWENSTEIN, Karl.
Teoría de la Constitución. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1976, p. 325; HELLER, Herman. Teoría del Estado,
cit., p. 329.
256
E é nessa ordem que se vincula a força normativa da Constituição aos conceitos e
ideias de lealdade institucional, leal colaboração e cooperação institucional, por sua vez,
bastante conexos ao elemento vital da cultura constitucional.
Com isso, não se quer dizer, de forma alguma, que a coerção não seja essencial e
típica a uma ordem constitucional. Menos ainda, que a ordem constitucional possa
pretender-se a par ou sobre o Estado686. Pelo contrário. Considerando a advertência de
BÖCKENFÖRDE – de que a política é o destino de todos nós, especialmente em uma
época democrática687 –, o que se quer apontar é que: também é papel e função da
constituição atuar como figura integradora da ordem, apontando para uma unidade (em
pluralidade) necessária para uma comunidade jurídico-política, que acaba por tocar,
inclusive, as condições de eficácia jurídica e social da norma constitucional.
686
Tratando dessas posições de maneira crítica: BERCOVICI, Gilberto. Soberanía e Constituição, cit.,
pp. 319-343.
687
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 169. E, com
NUNO COELHO: “o sentido que dá à política o seu significado particular, e no qual o homem pode
experimentar-se como livre”, COELHO, Nuno M. M. S. Ensaio sobre o sentido grego do político – e o
nosso tempo. Revista Crítica do Direito, v. 53, n. 3, out./nov. 2013.
257
realização e para a vida constitucional amiúde na sociedade, mas, também, quando se
considera que para a realização da Constituição, mesmo, pelos próprios órgãos
constituídos nas situações limites, o fiador dessa normatividade, em última análise, é o
próprio povo, normativa e faticamente, isto é: politicamente688.
688
BERCOVICI, Gilberto. Ainda faz sentido a Constituição dirigente? Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, v. 1, n. 6, pp. 149-162, 2008, p.158: “O risco do afastamento da
constituição em relação ao Estado e à política, com a hegemonia dos tribunais constitucionais e de uma
teoria da constituição sem preocupação com o Estado é o do abandono, pela política democrática e
partidária, da esfera da constituição. Afinal, a constituição se liberta da política, mas a política também
acaba se desvinculando dos fins e tarefas previstos no texto constitucional”.
689
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 118; SALDANHA,
Nelson. O Poder Constituinte, cit., pp. 83-83; BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do povo
no Brasil, op. cit., pp. 305-325, jan./abr. 2013; BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p.
35: “A manutenção ou erosão da normatividade constitucional está ligada à permanência do poder
constituinte, fonte de sua força normativa”.
690
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit.
691
MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo?, cit., p. 49.
258
compreenda o processo do qual faz parte, do qual é sujeito, de uma comunidade em
que esteja maximamente difundida uma cultura de constituição.
259
CAPÍTULO 8
GARANTIA INTERNA DA CONSTITUIÇÃO:
A CULTURA DA CULTURA CONSTITUCIONAL
Uma segunda, que se vincula à própria leitura específica que cada comunidade
faz dessas amarras em articulação com as culturas particulares sobre as quais ela opera,
bem como, com as outras identidades (pré- e extra-constitucionais) de uma
comunidade, dimensão que diz respeito à ideia de identidade constitucional. Essa
leitura não se põe de forma definitiva apenas no momento constituinte fundador, na
interpretação primeira com pretensão de validade pelo poder constituinte, pelo
contrário, ela se faz, inclusive, no viver cotidiano da própria cultura constitucional, em
suas interpretações, concretizações e transformações.
692
SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição e o pluralismo na encruzilhada: justiça constitucional
como guardiã das minorias políticas. Revista latino-americana de estudos constitucionais, Belo
Horizonte, n. 2, p. 79-131, jul./dez. 2003, p. 81.
261
constitucional693, relacionada à garantia interna da Constituição, logo, à “adesão à
normatividade constitucional por parte daqueles que se lhe subordinam”694.
693
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição: da fundamentação da validade
do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 377: “À expressão dinamismo
constitucional são imputáveis dois sentidos distintos, ambos relevantes caso se pretenda compreender
uma qualquer experiência política assente numa Constituição normativa, assim efetivamente
condicionadora de um processo político. Num primeiro sentido, refere-se tal expressão à necessária
renovação em cada geração do compromisso ético que subjaz à Constituição, sob pena de esta não
subsistir no tempo. Num segundo sentido, refere-se a mesma expressão à necessária actualização da
normatividade constitucional escrita e não escrita – necessária, desde logo, para que a mesma
permaneça reflectora daquele compromisso no âmbito de renovados circunstancialismos históricos”.
694
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 377. E mais a frente:
“Isto é, que na ausência de uma adesão à normatividade constitucional por parte daqueles que se lhe
subordinam – e a que subordinam o poder a que obedecem, constituindo uma ‘garantia interna’ da
Constituição que nenhuma ‘garantia externa’ substitui –, a mesma se encontra condenada, bastando para
o demonstrar o paradigmático exemplo de Weimar”, pp. 379-80.
262
poder” (Wille zur Macht)695. Com isso assinalou que muitas constituições foram
destruídas ou, até mesmo, eliminadas, porque alguma vontade de poder assim quisera696.
695
KÄGI, Werner. La Constitución como ordenamiento jurídico fundamental del Estado:
investigaciones sobre las tendencias desarrolladas en el moderno Derecho Constitucional. Madrid:
Dykinson, 2005, pp. 55-56. O texto é, originalmente, de 1945.
696
KÄGI, Werner. La Constitución como ordenamiento jurídico fundamental del Estado, cit., p. 54.
Não deixando de advertir na sequência: “Sin embargo, no debe olvidarse que ese ocaso de las
Constituciones europeas tiene también sus causas más profundas y objetivas. Para un análisis completo
aún estamos demasiado cerca de lo acontecido; no obstante, algunas líneas de desarrollo ya se han
destacado tan claramente que puede arriesgarse un intento de síntesis. Especialmente hoy debe
imponerse una diferenciación que – buscando una apreciación con objetividad – sirva para aclarar la
situación del Derecho del Estado y de la Teoría del Derecho del Estado, puesto que en la lucha entre
los espíritus y los poderes, la propaganda busca influir sobre las opiniones”.
697
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, cit.
698
LA TORRE, Massimo. Constitutionalism and Legal Reasoning, cit., p. 33.
699
O título original é Über Verfassungwesen. Ele poderia ser traduzido de forma literal por: Sobre a
natureza da Constituição ou ainda Sobre a essência da Constituição. Esta última, inclusive, sendo a
opção de tradução de algumas edições, como, por exemplo: LASSALLE, Ferdinand. A essência da
Constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001. As edições brasileiras são confusas quanto aos
dados relativos aos eventuais tradutores, não sendo muito claro, quer nas edições físicas, quer nas
digitais, a referência precisa e segura quanto a eles. De todo modo, o título do ensaio não raramente
recebeu a tradução livre que, aparentemente, decorre da tradução castelhana mais corrente, em diversas
edições: Qué es una Constitución? (por exemplo em:
http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/libro.htm?l=2284); em português: O que é uma Constituição?
(disponível em: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Ferdinand%20Lassalle-
1.pdf) .
700
FERDINAND LASSALE (1825-1864) é uma figura importante no desenrolar jurídico-político europeu.
Nascido em uma rica família de origem judia de Breslau, e tendo estudado filosofia em Berlim, escreveu
alguns textos importantes, mas ficou mais conhecido por sua participação, liderança e atividade política.
Em 1863 fundou a Associação Geral dos Trabalhadores da Alemanha (Allgemeiner Deutscher
Arbeiterverein) – ADAV, que anos mais tarde em 1875, já após sua morte, uniu-se e passou a compor o
Partido Social Democrata da Alemanha (Sozialdemokratische Arbeiterpartei Deutschlands) – SPD. É
263
essência da Constituição como “a soma dos fatores reais de poder que regem um
país”701. Assim, afirma que os problemas constitucionais são, primariamente, problemas
de poder e não de Direito. Nesse sentido, assinala que as constituições escritas só têm
valor e são duradouras na medida em que deem fiel expressão aos fatores de poder
imperantes na realidade social702. É de se apontar que a análise lassaliana coloca-se não
como prescritiva ou normativa do que deve ser uma constituição, mas sociológica e, de
modo especial, criticamente frente àquela realidade política e jurídico-política vivida no
mundo alemão de meados do século XIX.
Para HESSE, embora a constituição não possa, ela mesma, realizar nada, pode,
no entanto, impor tarefas e torna-se força ativa na medida em que tais tarefas sejam
efetivamente realizadas e que exista disposição dos cidadãos – particularmente dos
principais responsáveis pela ordem constitucional – de orientar a própria conduta de
acordo com a ordem por ela estabelecida. Ou, nas palavras de HESSE: “se a despeito de
todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder
identificar a vontade de concretizar essa ordem”703. Assim, o autor apela para um
espírito, uma consciência geral de todos, que desenvolve na chave da vontade de
Constituição. Com ela, HESSE acaba por apontar para uma atitude voluntária de opor-se
comumente citado nos debates jurídico-políticos sobre o conceito de Constituição, por exemplo em dois
dos autores trabalhados nessa seção, como HESSE e, também, em STERNBERGER, Dolf. La Amistad
hacia al Estado. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional. Bogotá: Universidad Externado
de Colombia, 2001, pp. 121-163.
701
LASSALE, Ferdinand. Qué es una Constitución?. Madri: Cenit, 1931, p. 65.
702
LASSALE, Ferdinand. Qué es una Constitución?, cit., p. 90.
703
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, cit., p. 19.
264
àquelas tendências constitucionais (decisionistas e antidemocráticas) que mais
comumente pleiteiam e instrumentalizam a ideia de vontade.
704
LA TORRE, Massimo. Constitutionalism and Legal Reasoning, pp. 33-34.
705
COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse: uma nova crença na constituição. Direito Público,
Porto Alegre, a. 1, n.3, p. 05-23, jan./mar. 2004.
706
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho político de la
República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp. 259-295, 2008, p. 269.
707
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, cit., p. 28.
265
concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de
atos de vontade”708.
Portanto, de algum modo, ainda que não explicitamente, reconhece uma relação
necessária entre o processo de legitimação e o sentimento de legitimidade de uma
ordem democrática com sua eficácia (enquanto realização e concreção), na medida em
que, no plano constitucional, ela necessariamente demanda vontade de Constituição.
HESSE, assim, já aponta para uma relação necessária entre eficácia e reafirmação
política da comunidade com o projeto constitucional, de modo volitivo, em alguma
medida, político.
708
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, cit., pp. 19-20. Nesse ponto, fazendo referência,
em rodapé à obra de HELLER.
709
HORTA, Raúl Machado. Permanência e mudança na Constituição. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, a. 29, n. 115, pp. 5-26, jul./set. 1992, p. 8.
266
O conceito de sentimento constitucional desenvolve-se, basicamente, da
articulação entre o dinamismo constitucional e o sentir jurídico, tendo por base a chave
mais antiga do sentimento jurídico (Rechtsgefühl). Esta foi amplamente utilizada por
importantes juristas do século XIX e da primeira metade do XX, como RUDOLF
STAMMLER, RUDOLF VON JHERING, GUSTAV RADBRUCH e, especialmente, ERWIN
RIEZLER, responsável pela principal monografia sobre o tema: Das Rechtsgefühl,
publicada em 1923. Com o sentimento jurídico, todos eles buscavam chamar a atenção
à importância da dimensão emotiva à experiência jurídica.
710
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional (aproximación al estudio del sentir
constitucional como modo de integración política). Madri: Reus, 1985, pp. 04-05. Em sentido similar:
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 158: “O
sentimento jurídico une em si dois momentos aparentemente contraditórios: a sensibilidade, que
costuma ser aplicada apenas ao intuitivo-concreto, com a generalidade abstrata do preceito jurídico. Para
quem luta pelo direito, é característica a mistura singular de frieza e ardor, de intelectualismo
generalizador que do caso concreto leva ao seu princípio, e da paixão individualizadora que fulmina o
ilícito a que combate como se fosse uma monstruosidade única”.
711
JHERING, Rudolf von. A evolução do Direito. Lisboa: Antiga Casa Bertrand – José Bastos & C.a. –
Editores, s.d.: p. 241: “A essência do sentimento jurídico não está só em saber que o direito existe, mas
em querel-o: é a acção enérgica da personalidade, que sabe que ella própria constitue um fim, que visa a
afirmar-se por si mesma, sentindo que essa afirmação se converteu para ella em uma necessidade
impreterível, como que em uma lei da sua existência”.
267
partir de suas virtualidades conceituais e formais, mas, também, é intensamente
incorporada pelos cidadãos que passam a tê-la e senti-la como sua.
712
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 04-05. É também nesse sentido que,
ao transladar o conceito para a tradição anglófona, DUBBER faz a seguinte observação: “Recent work in
moral psychology will help us correct a common misconception about the sense of justice as a sense.
Occasionally the sense of justice is still associated with emotionality, and therefore with irrationality. The
sense of justice, however, is a moral sentiment, an emotional response triggered by an identification
based on characteristics relevant from the standpoint of justice. Note that the sense of justice is a sense
(or sentiment) and not a sensation (or feeling)—in German, a Rechtsgefühl and not a Rechtsempfindung.
The point here is not to distinguish the psychological phenomenon from its physical manifestation, but
to distinguish a rational psychological phenomenon from an arational one. The sense of justice is neither
necessarily irrational nor necessarily rational. The sense of justice is a sense of the appropriateness
regarding a given resolution of a legal conflict based upon the application of principles of justice, rather
than a psychological (or physiological) sensation unattributable to principles and their satisfaction, but
instead to a bad breakfast or, for that matter, the racial characteristics of the parties to the conflict”,
DUBBER, Markus Dirk. The sense of justice: empathy in Law and punishment. Nova York: New
York University Press, 2006, p. 8.
713
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 50-51.
714
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 64.
268
conteúdo do sentimento jurídico, enquanto representação emocional de um ideal
jurídico, coloca-se em relação à história, “cambiante de la mediación entre la idea de la
igualdad y la idea de la liberdad y por las energias para aquella mediación”715.
715
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 57-58.
716
Ao trabalhar essa questão e esses termos em LOEWENSTEIN, alguns autores acabam dando mais
destaque ao mencionar seu desenvolvimento sobre a “consciência constitucional”, como, por exemplo,
o faz: COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 378-81; enquanto
outros acabam enfatizando sua articulação em torno do “sentimento constitucional”, como, por
exemplo, o fazem: HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., p. 148, e SAMPAIO,
José Adércio Leite. A Constituição e o pluralismo na encruzilhada, op. cit., na linha da escola mineira
que tem como fonte RAÚL MACHADO HORTA. De fato, o tema da consciência constitucional aparece
em LOEWENSTEIN apenas colateralmente, sem maiores desenvolvimentos, quando, na verdade, trata da
erosão da consciência constitucional.
717
LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus Democracy in Contemporary Europe, I. The American
Political Science Review. v. 29, n. 4, pp. 571-593, ago. 1935; LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus
Democracy in Contemporary Europe, II. The American Political Science Review. v. 29, n. 5, pp. 755-
784, out. 1935; LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The
American Political Science Review, Washington, v. 31, n. 3, pp. 417-432, jun. 1937; LOEWENSTEIN,
Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The American Political Science Review,
Washington, v. 31, n. 4, pp. 638-658, ago. 1937.
718
LOEWENSTEIN, Karl. Political power and the governmental process. 2 ed. Chicago: Chicago
University Press, 1965. A primeira edição é de 1957. Para este trabalho, fora consultada a, já
mencionada, segunda edição de 1965 que conta com um post scriptum adicional à primeira edição.
Essa obra original em Inglês, corresponde substancialmente ao conteúdo de seu ulterior
Verfassungslehre (Teoria de lá Constitución), ainda que esta possua novos post scripti não encontrados
na edição americana que tivemos acesso. Além da edição americana, para esta pesquisa foi utilizada,
basicamente, a segunda edição em castelhano: LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2 ed.
Barcelona: Ariel, 1976.
719
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism. Princeton: Princeton University Press, 2007, 23 e
ss.
269
A ideia de democracia militante é desenvolvida em meio ao auge das
experiências autoritárias da primeira metade do século XX. Nesse espírito,
LOEWENSTEIN inicia um de seus artigos de 1937 afirmando que o fascismo não se
tratava de mais um simples incidente isolado na história particular de alguns países, mas
que, àquele tempo, desenvolvia-se em um movimento universal, em um “impulso
aparentemente irresistível” comparável, inclusive, à própria insurreição do liberalismo
europeu contra o absolutismo na sequência da Revolução Francesa720. Em resposta a
essa ascensão, LOEWENSTEIN protestava alegando que uma democracia não poderia se
contentar em responder ao desafio de enfrentar e resistir contra esse fascismo apenas
através de uma postura passiva, com um “legalismo cego” ou com o “formalismo
exagerado do Estado de Direito” (liberal). Alegava que, juntos, em um discurso de
“fundamentalismo democrático”, essas duas formas poderiam servir, ambas, como
cavalo de Tróia contra o próprio regime democrático721. Assim, seria necessária uma
democracia militante que se colocasse ativamente, impondo medidas que a aportassem
substantivamente de modo a enfrentar e impedir o avanço do autoritarismo.
720
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I, op. cit., p. 417.
721
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I, op. cit., p. 424.
722
LOEWENSTEIN, Karl. Reflections on the Value of Constitutions in Our Revolutionary Age. In:
ZURCHER, Arnold J. Constitutions And Constitutional Trends Since World War II: An examination
of significant aspects of postwar public law with particular reference to the new constitutions of western
Europe. 2 ed. Nova York: New York University Press, 1955, pp. 191-224; LOEWENSTEIN, Karl.
Teoria de lá Constitución, cit., pp. 216-222.
270
Para sua classificação ontológica, LOEWENSTEIN considera a relação de
concordância das normas constitucionais com a realidade do processo do poder, tendo
como ponto de partida “a tese de que uma Constituição é o que os detentores do poder
dela fazem na prática – o que, por seu termo, depende, em larga medida, do meio social
e político em que a Constituição deve ser aplicada”723.
723
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., p. 330.
724
LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constitución como ciencia cultural. Madrid, Dykinson, 1998,
p. 40.
725
LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constitución como ciencia cultural, cit., p. 44.
271
Uma constituição nominal, por seu turno, é aquela que é formal e materialmente
constitucional, porém, não vivida na prática. Ela é legítima e válida, mas não eficaz. Ou
seja, quando uma comunidade tem constituição, mas não está em constituição.
Nesses termos, defende que para que uma constituição seja viva, ela tem de ser
vivida por todos os membros da comunidade, quer pelos destinatários, quer pelos
detentores do poder, sendo necessário que comunidade e constituição estejam em
simbiose, sendo esta, por sua vez, integrada e integrante da sociedade estatal.
Consequentemente, para que a constituição seja efetiva, é indispensável que ela seja
observada lealmente por todos os cidadãos, sendo possível, somente neste caso, falar
em constituição normativa, isto é, quando: “sus normas dominan el proceso político o, a
inversa, el proceso del poder se adapta a las normas de la constitución y se somete a
ellas”727. Nesse sentido, para LOEWENSTEIN, a constituição normativa só será alcançável
a partir de um enorme esforço político728.
726
Se, por uma perspectiva positivista, um texto axiologicamente descompromissado pode também ser
chamado constituição. Entretanto, a nosso ver uma constituição, sobretudo a partir das formulações
feitas no segundo pós-guerra em resposta às atrocidades do Terror, necessariamente tem de ser
comprometida com a ordem democrática, com a liberdade, igualdade, enfim, com a dignidade da
pessoa humana.
727
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 217.
728
GONZALEZ CASANOVA, J. A. La idea de Constitución en Karl Loewenstein. Revista de Estudios
Políticos, Madri, n. 139, pp. 73-98, jan./fev. 1965, p. 85: “La solución obligada es el acercamiento del
pueblo al espíritu constitucional mediante una educación de la «conciencia o sentimiento constitucional
» y un acercamiento de la Constitución al pueblo mediante reformas que la modernicen radicalmente y
que la permitan subsumir normativizándola, la realidad del proceso del Poder políticosocial. La
Constitución ideal, limitadora del Poder y promotora de una total participación democrática en el
mismo, relacionada dialécticamente con la realidad social, tan sólo sería alcanzable por un enorme
esfuerzo político que rebasa las posibilidades de un estudioso de ciencia política, pero éste tiene la
obligación de recordar que en el origen de muchos errores políticos de las democracias constitucionales
272
Tal esforço se destaca, na medida em que se constata que, como toda obra
humana, a constituição escrita não apenas é incompleta, mas especialmente “deficiente”,
no sentido de que cada constituição, na verdade, não é mais que um compromisso entre
as forças sociais e grupos pluralistas que participam em sua conformação729. É a esse
compromisso, ou, mais precisamente, à força que possibilita seu cumprimento que
LOEWENSTEIN chamará sentimento constitucional (Verfassungsgefühl).
O autor dirá que a expressão sentimento constitucional acaba por tocar um dos
fenômenos psicológico-sociais e sociológicos da vida política de mais difícil
compreensão. Ele se coloca como a consciência da comunidade que integra os
detentores e os destinatários do poder no marco de uma ordem comunitária obrigatória,
a constituição, de modo a submeter o processo político aos interesses da comunidade,
alocando-o acima de todos os antagonismos e tensões nela existentes. Para
LOEWENSTEIN, esse fenômeno pode ser fomentado através da educação e, em
aproximação a SMEND, pela utilização consciente, mas não insistente, do simbolismo
nacional. Registra, no entanto, que ele pertence ao imponderável e que é impossível de
ser produzido racionalmente. Para o autor, seria algo relacionado a fatores irracionais, à
mentalidade e à vivência histórica de um povo, não se confundindo, entretanto, com a
consciência nacional. Além disso, reconhece que o sentimento constitucional não pode
ser explicado tão somente a partir da constatação da longevidade de uma constituição,
contudo, afirma que a ampla e amiúde reforma constitucional colabora para o
enfraquecimento desse sentimento.
se instala una incorrecta comprensión de lo que es realmente una Constitución, de lo que debe ser en
las cambiantes circunstancias de una época de transición o de revolución, una Constitución”.
729
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 199.
273
de vigência até aquele momento730. De todo modo, relata que o povo (alemão) deixou
de ter contato pessoal com sua constituição, apontando para certa “desconfiança” e,
mesmo, alguma inimizade entre aquela constituição e o povo, no que destaca, ainda,
novamente em aproximação a SMEND, que a participação política do povo
(particularmente, no caso da reforma constitucional) é uma “contribuición viva a la
educación política e un elemento de integración política. Una nación vivirá tan sólo
democráticamente cuando le esté permitido comportarse democráticamente”731.
730
A primeira edição do Political Power and the governamental process é de 1957 e a segunda de 1965.
731
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 205.
732
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 231. É curiosa a sinceridade do autor ao
apontar não poder dizer ao certo quais os caminhos desse processo: “la revitalización de la conciencia
constitucional en los destinatarios del poder tiene una importancia crucial si la sociedad democrático-
constitucional quiere sobrevivir. Cómo tendrá que ser llevada a cabo esta – bien acercando al pueblo las
274
Ainda que LOEWENSTEIN não tenha ido além nesse conceito, ele acabou sendo
mais desenvolvido por alguns autores. MIGUEL ANGEL FERNÁNDEZ GONZÁLEZ,
utilizando a definição de consciência como um saber comum sobre um mesmo fato733,
diferencia a consciência sobre a Constituição da consciência constitucional. A primeira
diz respeito ao saber comum acerca do texto constitucional vigente, relacionada ao
conhecimento constitucional. A segunda, para o autor chileno, está mais relacionada a
uma consciência sobre o constitucionalismo, sobre os valores e princípios
constitucionais que são historicamente construídos. Nesses termos sintetiza:
735
FERNÁNDEZ GONZÁLEZ, Miguel Ángel. La conciencia constitucional y su aplicación al caso
chileno, op. cit., p. 462: “Efectividad es ‘la calidad de efectivo’, es decir, de ‘real y verdadero en
oposición a lo quimérico, dudoso o nominal’. Aplicado a nuestro tema, se refiere a si efectivamente la
Constitución, respecto de la cual existiría un saber en común o conciencia, es o no válida, eficaz y
representativa para la sociedad a la cual rige”. No capítulo seguinte, quando formos falar da relação
entre educação e cultura constitucional, abordaremos dois temas correlatos que são os da consciência
moral e o da consciência jurídica.
736
LUCAS VERDÚ, Pablo. La lucha contra el positivismo jurídico en la República de Weimar, cit.
737
Como mencionado, provavelmente, a mais importante delas se vê na dicotomia que formula entre ter
e estar em constituição, que utiliza para argumentar a respeito da classificação ontológica originalmente
de LOEWENSTEIN: LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constitución como ciencia cultural, cit., pp.
40 e ss.; LUCAS VERDÚ, Pablo. Tener y estar en Constitución. Revista de Derecho Político, Madrid,
n. 75-76, pp. 275-285, mai./dez. 2009.
738
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 14-40.
276
compensatória do ambiance”. Para LUCAS VERDÚ, o que todas essas propostas têm
como marca comum é a dissolução da racionalidade normativa ou, pelo menos, sua
relativização a outras dimensões. Segundo a leitura do catedrático de Madri, SMEND o
fez em relação aos valores culturais e à simbologia política, SCHMITT deu destaque ao
acento voluntarista, HELLER e SCHINDLER, cada um a seu modo, deram ênfase às de
objetivações sociais, a uma comunidade em que se vive em uma estrutura (HELLER) ou
que disfruta de um meio ambiente adequado para o desenvolvimento da pessoa
(SCHINDLER). Em todas essas construções, LUCAS VERDÚ identifica importância e
espaço para a compreensão do sentimento constitucional739.
739
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 69.
740
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 131.
277
funcionamiento) que son buenas y convenientes para la integración,
741
mantenimiento y desarrollo de una justa convivencia” .
Como atenta NELSON CAMATTA MOREIRA, sentir, em LUCAS VERDÚ, significa
“estar implicado em algo”742, portanto, o sentimento constitucional, para ele, identifica-se
como a conexão subjetiva entre o cidadão, de um lado, e o ordenamento jurídico e
instituições constitucionais da comunidade, de outro. Essa implicação se alicerça,
justamente, na identificação especialmente emotiva – ainda que não apenas emotiva –
de que as normas e instituições de sua constituição são boas, justas e aptas para o
desenvolvimento e perpetuação da comunidade. Assim: “el sentimiento constitucional
tiende a persistir a pesar de su labilidad, es espontáneo – aunque estimulado por el
contexto, por el ambiente ideológico y la situación sociopolítica –, es público y
representativo y muestra, además, cierta expansividad”743.
741
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit. p. 71 (itálico no original).
742
MOREIRA, Nelson Camatta. A filosofia política de Charles Taylor e a política constitucional de
Pablo Lucas Verdú: pressupostos para a construção do sujeito constitucional. Revista de Direitos e
Garantias Fundamentais, n 8, Vitória, pp. 15-54, jul./dez. 2010, p. 37.
743
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 72.
744
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 155.
278
medida, como algo identitário, constituinte (integrante e integrador) da própria
comunidade e de cada cidadão.
745
Depois dessa primeira abordagem, voltou ao tema em trabalhos e discursos posteriores. Destaque-se,
especialmente, um proferido em 1982, por ocasião do jubileu da “Academia para formação política”, e
um de 1987, em colóquio sobre “Patriotismo” realizado pelo Instituto de Ciência Política e da
Faculdade Histórico-Filosófica da Universidade de Heidelberg, por ocasião de homenagem e
comemoração do aniversário de 80 anos de STERNBERGER. O prestígio do autor é revelado no fato de
Richard von Weizsächer, à oportunidade, Presidente da República Federal da Alemanha, ter
apresentado uma conferência no evento. STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional. Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 2001.
279
um tanto mais indireta, em torno dos procedimentos da constituição democrática e
liberal746.
746
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 01.
747
É curioso que a relação entre patriotismo constitucional e estatalismo se relaciona bastante mais ao
primeiro sentido dado à expressão por STERNBERGER que, exatamente, aos contornos que ele foi
tomando no curso dos debates de Teoria Política, especialmente, por HABERMAS.
748
INGRAM, Attracta. Constitutional patriotism. Philosophy & Social Criticism, v. 22, n. 6, pp. 1-18,
nov. 1996.
749
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., pp. 10-11.
280
grupos tidos como “inimigos da democracia” que atuaram na Alemanha Ocidental da
segunda metade do século XX750.
Nesse contexto, muitos intelectuais sentiam ser imputada “ao povo alemão” certa
culpa coletiva pelas atrocidades do nazismo, o que para JASPERS não fazia sentido. Ele
considerava a ideia de culpa coletiva como inadequada, por entender não ser possível
fazer-se, de “um povo”, “um indivíduo”. Defendia que essa compreensão pressuporia
uma falsa e equivocada substancialização que resultaria na degradação da condição de
indivíduo das pessoas. Isso, porque um povo não poderia ser destruído heroicamente,
tampouco, poderia ser considerado criminoso, não poderia agir moral ou imoralmente,
e, por isso, seu julgamento categórico como um ente único e substantivado sempre seria
750
Esse combate implicou o banimento de partidos políticos pelo Tribunal Constitucional Federal
Alemão na década de 1950, quer de direita (do neonazista Socialist Reich Party, SRP, em 1952), quer
de esquerda (Kommunistische Partei Deutschlands, KPD), em 1956).
751
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt, cit., pp. 25-26. O livro foi originalmente publicado
em 1947. De forma resumida, JAN-WERNER MÜLLER esboça essa distinção: “Definitions of criminal
and moral guilt were relatively straightforward; political guilt, in Jaspers’s conception, attached to all
those living under cruel and unjust regimes; metaphysical guilt, finally, referred to a rupture in a deep
level of solidarity that Jaspers assumed existed among all human beings”, MÜLLER, Jan-Werner.
Constitutional Patriotism, cit., p. 16.
281
injusto. Para JASPERS, as ações seriam feitas apenas pelos indivíduos e, por essa razão,
somente estes poderiam ser considerados culpados ou inocentes, nunca um povo em
unidade752. É nesse contexto, em oposição à ideia de culpa coletiva, que apresenta seu
conceito de responsabilidade coletiva dos alemães que permitiram que o regime nazista
erguesse-se sobre eles753. Assim, apenas a partir do assumir dessa responsabilidade seria
possível construir a unidade alemã.
752
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt, cit., pp. 35.
753
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt, cit., pp. 55-57: “Every German is made to share the
blame for the crimes committed in the name of the Reich. We are collectively liable, The question is in
what sense each of us must feel co-responsible. Certainly in the political sense of the joint liability of all
citizens for acts committed by their state – but for that reason not necessarily also in the moral sense of
actual or intellectual participation in crime. Are we Germans to be held liable for outrages which
Germans inflicted on us, or from which we were saved as by a miracle? Yes – inasmuch as we let such a
régime rise among us. No – insofar as many of us in our deepest hearts opposed all this evil and have no
morally guilty acts or inner motivations to admit. To hold liable does not mean to hold morally guilty.
Guilt, therefore, is necessarily collective as the political liability of nationals, but not in the same sense as
moral and metaphysical, and never as criminal guilt. True, the acceptance of political liability with its
fearful consequences is hard on every individual. What it means to us is political impotence and a
poverty which will compel us for long times to live in or on the fringes of hunger and cold and to struggle
vainly. Yet this liability as such leaves the soul untouched. Politically everyone acts in the modern state,
at least by voting, or failing to vote, in elections. The sense of political liability lets no man dodge”. 69-75.
754
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism. Princeton: Princeton University Press, 2007, pp.
16-17: “In fact, Jaspers linked the idea of ‘working through the past’ explicitly with a new kind of
cosmopolitanism: the project of continuously contested memory and the idea of ‘universal membership’
were to become inseparable – even if it remained unclear what precisely ‘universal membership’ was
supposed to entail”.
282
Foi sob essa influência que, anos mais tarde, em 1979, STERNBERGER
desenvolveu seu conceito de patriotismo constitucional, ainda que o tema do
patriotismo, em si, já lhe tivesse surgido anos antes.
755
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 18. Em outros textos JAN-WERNER
MÜLLER trata que STERNBERGER também fora pupilo de HANNAH ARENDT. A verdade é que
ARENDT, nascida em 1906, é apenas um ano mais velha que o cientista político, o que é seguro é que
desde que se conheceram em 1927, ao que consta, nas aulas do próprio JASPERS em Heidleberg,
travaram uma forte amizade que durou por toda a vida: MÜLLER, Jan-Werner; SCHEPPELE, Kim
Lane. Constitutional patriotism: an introduction. International Journal Constitutional Law, v. 6, n. 1, pp.
67-71, jan./mar. 2008; VOGEL, Bernhard. Dolf Sternberger, Vater des Verfassungspatriotismus. Die
Politische Meinung: Integrationsland Deutschland, n. 452, pp. 69-72, jul. 2007.
756
STERNBERGER, Dolf. Conceito de pátria. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 53-83.
757
“Il n’y a pas de Patrie dans le despotisme”, passagem da única obra conhecida do autor, Les
Caractères ou les Mœurs de ce siècle, uma coleção de textos curtos e crônicas sobre o cotidiano francês
do século XVII. A frase completa que é reproduzida em nota de rodapé por STERNBERGER, seria:
“Não há pátria para o despotismo; outras coisas suprem sua falta: a cobiça, a glória, o serviço do
príncipe”. A passagem é do capítulo intitulado Do soberano e da república. In: LA BRUYÈRE, Jean.
Caractéres. Tradução Luiz Fontoura. Disponível em:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/caracteres.html
758
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1982). In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo
Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 91-110, nas páginas 93 e 94: “El
Tercer Reich, el sistema dictatorial del partido nacional-socialista, en cambio, se caracterizó exactamente
por el extravagante sentimiento del doble simbolismo, las dos banderas y los dos himnos. Se cantaba
todavía ‘Alemania, Alemania sobre todo’, pero luego seguía el himno del partido, ‘La bandera en alto,
las filas bien cerradas’, y así aparecía la vieja bandera restauradora negra-blanca-roja acoplada al nuevo
emblema ideológico de la cruz gramada, en una oscura coalición. Todavía era nacionalismo, pero
283
Já na década de 1960, STERNBERGER desenvolve a ideia de amizade para o
Estado (Staatsfreundschaft)760, chamando-a de uma “razão passional”. Nesse
desenvolvimento, é marcante o traço da militância em seu pensamento, quando tem
uma clara tomada de posição no sentido de defender uma democracia não neutral, mas,
sim, ativa e bastante relacionada às ideias e estruturas da democracia militante761. Desse
modo, JAN-WERNER MÜLLER definirá a Staatsfreundschaft como: um tipo de razão
cívica que faria com que os cidadãos se identificassem com o Estado democrático e,
também, o defendessem de seus inimigos762.
partidarista, y bajo e rugido de la rabiosa concepción del mundo perecieron ambos: tanto la
Constitución como el patriotismo. Pienso que aquellos que lo vieron, al recordarlo estarán de acuerdo
conmigo cuando digo que el patriotismo no era lo que alentaba a esas marchas colectivas, las pardas, las
negras y al final sombrías columnas; además la misma palabra casi había desaparecido del vocabulario
oficial. Las fórmulas, por ejemplo en los anuncios mortales de la guerra, decían algo distinto. Rara vez se
usaba la palabra ‘patria’. Se establecía en ese punto una distancia, un apartamiento frente a la formula
‘Führer und Reich’ (caudillo e imperio). Patriotas en un sentido genuino fueron los conspiradores del
20 de julio. Se puede ver que bajo Hitler el ethos del patriotismo ciertamente ha sufrido, pero mediante
su dominación no está desacreditado y no lo está por razón de que él mismo no lo no lo reclamó en
absoluto para sí y para sus fines. En la medida en que podemos consolarnos de este modo, al mismo
tiempo podemos retornar sin desmedro íntimo ni cargas de conciencia al concepto de patria y a la
conciencia de patria, al patriotismo”.
759
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional. Belo
Horizonte, 2006, p. 67.
760
STERNBERGER, Dolf. La Amistad hacia al Estado. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo
Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 121-163, discurso producido
por ocasição do centenario do SPD (Partido Social Democrata da Alemanha), com muitas referências a
MARX e, especialmente, a LASSALE.
761
Sobre os “inimigos da Constituição e da Democracia”, a partir dos quais se vê o conceito de
democracia militante posto em prática, na década de 1970 houve o emblemático caso da Fração do
Exército Vermelho - Rote Armee Fraktion (RAF), também conhecido como Grupo Baader-Mainhofer.
Nesse episódio, DOLF STERNBERGER posicionou-se publicamente contra o perdão de Ulrike Meinhof,
militante da RAF. Para uma abordagem geral sobre a democracia militante, desde LOEWENSTEIN,
passando pelo tratamento do tema na Alemanha da segunda metade do século XX, chegando ao
conceito de republicanismo negativo: MÜLLER, Jan-Wener. Militant Democracy. In: ROSENFELD,
Michel; SAJÓ, András. The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford
University Press, 2012, pp. 1253-1269.
762
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 21.
763
Falando da filiação de STERNBERGER a um republicanismo moderno: ROSALES, José Maria.
Estúdio preliminar: experiência constitucional e identidade cívica. In: STERNBERGER, Dolf.
Patriotismo Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 11-52. MARCELO
CATTONI também indica esse traço, mencionando o termo republicanismo cívico: CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional, cit., p. 66.
284
muitas referências a MONTESQUIEU, articulando-o, em mais de uma oportunidade,
com o pré-romântico THOMAS ABBT764.
Nessa linha, em metáfora, o autor descreve a pátria como algo diferente do seio
materno ou de algum ser místico ou mítico qualquer, no qual se enterrasse toda
personalidade e liberdade individual. Ao contrário disso, STERNBERGER entende que é
um dever da Constituição conferir solidez e conteúdo ao patriotismo, afirmando que:
764
THOMAS ABBT (1738-1766) foi um filósofo e matemático alemão cuja obra mais famosa foi A morte
pela pátria (Vom Tode fürs Vaterland), de 1761.
765
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 21. PEREIRA COUTINHO tratara que: “O
‘patriotismo constitucional’ revela de uma leal identificação dos cidadãos com a sua Constituição ou,
mais rigorosamente, de uma geral comunhão identitária em torno da paideia (reportando-se
STERNBERGER expressamente a ARISTÓTELES) de que a Constituição constitui expressão normativa (...)
(aristotelicamente cunhada precisamente porque relevante da adesão interiorizada pelos cidadãos a uma
parametrizadora porque relevante da adesão interiorizada pelos cidadãos a uma parametrizadora paideia
de que a Constituição ou politeia constitui expressão normativa)”, COUTINHO, Luís Pedro Pereira.
Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 377, nota 1300.
766
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1982), op. cit., p. 100.
767
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1982), op. cit., p. 101. Segue com uma
interessante observação crítica sobre essa ordem fundamental e sobre a complexidade do Estado
285
Desse modo, STERNBERGER carrega algo que já está presente em HELLER e
também, ainda que de modo um pouco diferente, em SMEND, que é a compreensão da
constituição – e para STERNBERGER, por conseguinte, da pátria – como algo não
estático, mas que se faz viva a partir de sua própria vivência pela comunidade768.
constitucional moderno: “todavía em esta caracterización de lá esencia general del orden fundamental se
colocan demasiadas abstracciones y conceptos jurídico-dogmáticos, como para pudieran en su conjunto
convocar algún sentimiento fuerte. Y este tampoco era el sentido de una formulación tan sofisticada. El
Estado constitucional moderno es en realidad una criatura muy compleja. No basta invocar los
respetables conceptos y lemas de la libertad y la igualdad, allí donde se han reflejado a lo largo de dos
siglos de entusiasmo, así como los impulsos y sacrificios sangrientos de Occidente. Pero tampoco
podemos darnos por satisfechos del todo con la magna palabra ‘democracia’ que durante tanto tiempo y
en forma tan amplia fue utilizada en Occidente como un símbolo general del Estado constitucional,
cuando de repente, hacia finales de los años de 1960, en las cabezas y las bocas de grupos rebeldes se
adoptó un tono combativo, radical, revolucionario, de tal manera que uno veía confuso y tenía que
preguntarse qué se había pasado por alto en la Constitución cuando se la denominó democrática”.
768
STERNBERGER, Dolf. Concepto de patria, op. cit., p. 83: “En palabras políticas más claras, el
concepto de patria se realiza en principo [sic] en su Constitución libre, no sólo en la escrita sino en la
Constitución viva, en la que os encontremos todos como ciudadanos de este país, en la que diariamente
participemos y continuemos construyendo. La patria llama cada día, pues cada día tenemos y queremos
nosotros vivir allí, vivir unos con otros. Este es el concepto vivo, y no el muerto, de patria”. Aqui o autor
utiliza a ideia de “um conceito vivo” em expressa oposição à formulação de ABBT que, segundo o
próprio STERNBERGER, defende a ideia de pátria, mesmo, sob uma monarquia absolutista.
769
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 22. Nesse sentido é bastante interessante a
observação de SCHLINK acerca da identidade constitutional alemã: I believe that, in addition to the
constitutional and the national identities about which Michel writes so profoundly, there exists an
identity as a people of a state, as a Staatsvolk. The roof of the Federal Republic, under which the East
Germans wanted to move as quickly as possible, was the state. The state had its constitution, of course,
but the constitution didn't constitute the state. Rather, the constitution was one of the state's attributes,
and not even the most important one”, SCHLINK, Bernhard. The constitutional subject and its identity,
op. cit., p. 1871.
286
política a partir do que, por vezes, foi chamado patriotismo constitucional protetivo. É
nessa dimensão que se destaca sua relação com os elementos controversos da
democracia militante770.
Nesse sentido, esse vínculo e essa lealdade colocam-se em relação a uma tradição
constitucional particular, a suas instituições jurídico-políticas específicas, construídas e
“historicamente obtidas”. Tal lealdade e vínculo se dariam a partir de uma vontade
continuamente renovada de dar suporte a essas instituições, particularmente, em
oposição a outras propostas políticas não correspondentes, tidas como
“antidemocráticas”771.
770
Controversos porque, apesar de muito influentes na cultura política alemã do segundo pós-guerra,
significavam posturas e medidas antiliberais, que, quando abusadas ou mal utilizadas, importavam no
risco de se cercear não apenas movimentos patentemente extremistas e anticonstitucionais, mas,
também demandas legítimas.
771
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., pp. 24-25.
287
dos anos 1980. Ele iniciou-se no verão de 1986 e foi marcado pela publicação de textos
e troca de acusações públicas em jornais de grande circulação. No episódio, o autor da
segunda geração da Escola de Frankfurt teve papel preponderante, sendo considerado,
inclusive, seu principal instigador.
772
LEAMAN, Jeremy. The decontamination of German history: Jürgen Habermas and the
‘Historikerstreit’ in West Germany. Economy and Society, v. 17, n. 4, pp. 518-520, 1998, p. 520.
288
Himmler. NOLTE, por sua vez, justificava que Hitler tinha boas razões para acreditar
que os inimigos (judeus) também queriam sua aniquilação, o que fazia de sua postura,
meramente reativa. Sustentava esse ponto utilizando como prova uma “declaração de
guerra” que Chaim Wiezmann teria entregado no Congresso Judaico Mundial, em
setembro de 1939, o que, para NOLTE, permitia a Hitler tratar todos os judeus como
prisioneiros de guerra e o autorizava a deportá-los. Além disso, também defendia que o
horror de Auschwitz pouco tinha de único, uma vez que era uma reprodução de um
modelo “asiático”, aos Gulags, e que a “tão falada aniquilação dos Judeus durante o
terceiro Reich era uma reação ou uma cópia distorcida e não um primeiro ato, uma
versão original”773.
773
HABERMAS, Jürgen. A Kind of Settlement of Damages (Apologetic Tendencies). New German
Critique, n. 44, v. especial sobre o Historikerstreit, pp. 25-39, primavera/verão, 1988. Esse é um dos
artigos seminais do debate publicado no jornal Die Zeit, em 11 de julho de 1986, sob o título de Eine
Art Schadenabwicklung. Nele, HABERMAS faz um apanhado dos principais argumentos desses
historiadores conservadores revisionistas.
774
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional, cit.,
p. 67.
775
Um dos episódios mais importantes que ajudou a desencadear a discussão foi a construção de dois
museus/memoriais sobre a Alemanha nacional-socialista, um em Berlim Ocidental, outro em Bonn.
776
HABERMAS, Jürgen. A Kind of Settlement of Damages (Apologetic Tendencies), op. cit., p. 36:
“The ideology planners want to construct a consensus about the revitalization of national consciousness,
but at the same time, they have to banish the enemy images of the nation state from the sphere of
NATO. Nolte's theory offers a great advantage to this strategy of manipulation by killing two birds with
one stone: the Nazi crimes lose their singularity by being made at least comprehensible as an answer to
289
O autor de Frankfurt colocou-se, justamente, contra essa agenda, entendendo
que a ausência de um patriotismo exacerbado no pós-guerra permitia à Alemanha
desenvolver o comprometimento com valores liberais e, nesse contexto, passou a
utilizar a chave do patriotismo constitucional777. Essa postura vai ao encontro do que
HABERMAS pretende quando trata da racionalização das identidades coletivas, pós-
convencionais e reflexivas, nas sociedades pós-tradicionais, formadas no locus
privilegiado da esfera pública.
De algum modo, isso pode ser visto, por exemplo, quando, tratando do
multiculturalismo, o autor de Frankfurt indica haver duas esferas de assimilação
(integração) no processo de imigração de um indivíduo a um novo país. Uma delas
relativa à integração cultural (ético-cultural), propriamente dita, e outra relativa ao que
chama de integração ético-política.
Bolshevist threats of destruction which persist today. Auschwitz shrinks to the level of a technical
innovation and is explained by reference to the ‘Asiatic’ threat of an enemy who is still standing at our
gates”.
777
HABERMAS, Jürgen. A Kind of Settlement of Damages (Apologetic Tendencies), op. cit., p. 39:
“The only patriotism which does not alienate us from the West is a constitutional patriotism. A
commitment to universalistic constitutional principles which is anchored by conviction has unfortunately
only been able to develop in the German Kulturnation since - and because of – Auschwitz”.
HABERMAS, neste texto, não faz qualquer menção a STERNBERGER ao tratar do termo patriotismo
constitucional.
778
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 259.
779
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 31.
290
aculturado”, de incorporar práticas, costumes e modo de vida da cultura local. A outra
esfera, no entanto, é relacionada à “aceitação dos princípios da constituição dentro do
escopo de interpretação determinado pelo auto-entendimento ético-político dos
cidadãos e pela cultura política do país”780. Nessa ordem, defende que a “integração ética
de grupos e subculturas com as próprias identidades colectivas deve ser separada da
integração política abstracta que inclui todos os cidadãos igualmente”781.
780
HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado Democrático Constitucional, op. cit., p.
155: “Noutras palavras, assimilação do modo no qual a autonomia dos cidadãos é institucionalizada na
sociedade recipiente e o modo como o «uso público da razão» é aqui praticado”.
781
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo constitucional contra fraudes à
Constituição. Vitu, Salvador, n. 1, pp. 1-11, mar./mai. 2007, p. 5: “A noção de patriotismo constitucional
assenta a adesão autônoma aos fundamentos de um regime constitucional-democrático não em
substratos culturais pré-políticos de uma pretensa comunidade étnico-nacional, como numa visão
nacionalista ou excessivamente comunitarista, mas sim nas condições jurídico-constitucionais de um
processo deliberativo democrático capaz de estreitar a coesão entre os diversos grupos culturais e de
consolidar uma cultura política de tolerância entre eles. Isso somente é possível em razão da
diferenciação que se deve reconhecer entre dois níveis de integração social, o da integração ético-cultural
e o da integração político-constitucional, em que a construção de uma cultura política pluralista, através
da práxis e do exercício dos direitos políticos de cidadania, deve ser reflexivamente levada adiante. O
que, enfim, também significa que a defesa do patriotismo constitucional representa uma forma de
cultura política que permite ancorar o sistema de direitos e a sua pretensão de universalidade no
contexto histórico de uma comunidade política determinada”.
782
Essa “cultura política comum”, será tratada, ainda que não em termos idênticos, por FLETCHER e
ROSENFELD, por identidade constitucional e por JAN-WERNER MÜLLER como cultura constitucional.
Avançaremos sobre o tema no capítulo seguinte.
783
HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado Democrático Constitucional, op. cit., p.
151. A ideia de ponto fixo do constitucionalismo, sem que ele seja implicitamente ligado a alguma
substância é questionável. Não se pode negar que a ideia de pluralidade é absolutamente determinante a
HABERMAS, mas as bandeiras dos valores liberdade e igualdade, sempre estiveram presentes no
discurso da imensa maioria dos regimes que se pretenderam legítimos no Ocidente. Por exemplo,
GIOVANNI GENTILE, principal pensador do fascismo italiano, não hesitava em identificar o Estado
Fascista como o efetivo “Estado do povo”, portanto, como o Estado Democrático por excelência. O
mesmo pode se dizer da aproximação dos conceitos de democracia e ditadura em SCHMITT. Por outro
291
Essa posição expõe o pensamento de HABERMAS a, pelo menos, duas críticas
que não necessariamente se excluem784. A primeira consiste, basicamente, no
questionamento sobre se os “direitos e princípios constitucionais” e os valores,
premissas e parâmetros dos quais eles decorrem são efetivamente universais, ou se esses
direitos, princípios, valores, premissas, parâmetros, instituições, procedimentos e
direitos não são, em si, culturalmente localizados e particulares de uma dada cultura
política típica do Ocidente. Ou seja, quando HABERMAS identifica as vantagens do
patriotismo constitucional, apontando para o sentido universalista do coração desse tipo
de patriotismo785, pergunta-se se não seria possível questionar se ele, efetivamente, é
universalista ou se, na verdade, não trata de arranjos típicos de uma cultura específica, a
do constitucionalismo786. Dito de outra forma, ambas as formas de integração,
efetivamente se diferenciariam de algum modo?
lado, em alguns momentos, há uma importante seletividade no que é ou não tolerável sob a capa desses
valores. Isto é, as elites, por diversas vezes, rearticulam esses “pontos fixos” de modo a eles adequarem-
se a seus interesses e aspirações. Utilizando documentos da política externa do governo George W.
Bush como exemplo: HAYWARD, Clarissa Rile. Democracy’s Identity Problem: Is “Constitutional
Patriotism” the Answer? Constellations, v. 14, n 2, pp. 182-196, abr./jun. 2007.
784
Dentre algumas outras. Pra um apanhado dessas críticas: HAYWARD, Clarissa Rile. Democracy’s
Identity Problem, op. cit. MÜLLER, com um tom, inclusive, algo irônico, também aponta para algumas
críticas existentes no artigo: MÜLLER, Jan-Werner. Seven ways to misunderstand constitutional
patriotism. Notize di POLITEIA, v. 25, n. 96, pp. 20-24, 2009.
785
HABERMAS, Jürgen. On Law and Disagreement; Some Comments on “Interpretative Pluralism”.
Ratio Juris, v. 16 n. 2, pp. 187-194, jun. 2003, p. 193: “The advantage of a recourse to ‘constitutional
patriotis’ lies in the universalist meaning of the core of this kind of patriotism, thus providing an implicit
overlap with the patriotism of other communities. On this basis we might even hope to develop further
interculturally acceptable interpretations of human rights”.
786
Aparentemente, nem o próprio HABERMAS nega a origem “localizada” dos direitos humanos, por
exemplo. Nesse sentido, aponta GISELE CITTADINO: “o patriotismo constitucional revela como os
direitos humanos não podem ser considerados apenas uma expressão valorativa de um sistema cultural
específico. Ainda que tenham surgido, como idéia normativa, em um mundo particular de cultura – a
Europa – isto não significa que os direitos humanos não possam ser vistos como o resultado de um
processo reflexivo a partir do qual os indivíduos podem tomar uma certa distância em relação às suas
próprias tradições e aprender a ‘entender o próximo a partir de sua própria perspectiva’. Portanto,
quando as Constituições configuram um conjunto de direitos fundamentais, elas contextualizam
princípios universalistas e, assim, transformam-se na única base comum a todos os cidadãos. Em
mundos pós-convencionais, onde os indivíduos não integram sólidas comunidades étnicas ou culturais,
são as Constituições que, incorporando um sistema de direitos, podem conformar uma nação de
cidadãos. Eis o patriotismo constitucional como modalidade pós-convencional de conformação de uma
identidade coletiva”, CITTADINO, Gisele. Patriotismo constitucional, cultura e história. Revista
Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 31, pp. 58-68, jul./dez. 2007, p. 67.
292
ao tratar do patriotismo constitucional, de algum modo, curiosamente, reporta-se a uma
ordem ética, concreta e substantiva de valores não universais. Assim, a justificação
política que lhe é tão cara, dependeria do partilhar consciente pelos cidadãos do
sentimento de pertença à comunidade concreta, na forma de uma constituição
integradora. Essa posição, aparentemente, colide com a tentativa de formulações de
“tendências universais” e dos pressupostos neoiluministas do autor de FRANKFURT.
Nesse aspecto, MICHELMAN chega a, ironicamente, apontar contradição entre o
conceito de patriotismo constitucional e os pressupostos da filosofia habermasiana787.
787
MICHELMAN, Frank I. Morality, Identity and ‘Constitutional Patriotism’, op. cit., especialmente na
irônica provocação que faz ao texto: HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado
Democrático Constitucional, op. cit. Nesse texto, HABERMAS parece apontar a alguma preocupação de
cunho comunitário, quando afirma que: “os debates são sempre sobre a melhor interpretação dos
mesmos direitos e princípios constitucionais. Estes formam o ponto de referência fixo para qualquer
patriotismo constitucional que situa o sistema de direitos dentro do contexto histórico de uma
comunidade legal. Eles devem estar fortemente ligados às motivações e convicções dos cidadãos, pois,
sem semelhante apoio motivacional, não se poderiam tornar a força motriz por detrás do projecto
dinamicamente concebido para produzir uma associação de indivíduos livres e iguais. Por isso, a
partilhada cultura política na qual os cidadãos se reconhecem como membros de sua política também é
permitida pela ética”. Em linha similar, de certo modo, criticando a concepção abstrata e transnacional
de patriotismo constitucional em HABERMAS: ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional
subject, cit., pp. 258-269; ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado
Democrático de Direito. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v.7, n. 12, p. 11-63,
jan./jun.2004, p. 29. Em posição diferente à crítica de MICHELMAN, aportando continuidade e
coerência entre a “proposta filosófica pragmática universal ou formal” e o patriotismo constitucional:
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional, cit.,
pp. 65-74.
788
Não por acaso, ainda em 1990, HABERMAS aponta que, especificamente, esses movimentos mexem
com a relação entre cidadania e identidade nacional: HABERMAS, Jürgen. Cidadania e identidade
nacional, op. cit., Nesse texto o autor chega a falar de um “patriotismo constitucional europeu”.
HABERMAS, Jürgen. O Estado-Nação europeu frente aos desafios da globalização: o passado e o
futuro da Soberania e da cidadania. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 43, pp. 87-101, nov. 1995,
p. 96.
293
saída para agregar várias culturas nacionais em torno de uma cultura política comum,
plural e inclusiva.
É nesse sentido que avança, por exemplo, DIETER GRIMM que, tratando da
chave da integração pela Constituição789, aborda o patriotismo constitucional não
precisamente desde a Teoria e/ou a Filosofia Política, como o fazem STERNBERGER e
HABERMAS790, mas atento a preocupações mais típicas de um constitucionalista791.
GRIMM atenta para o fato de a Lei Fundamental alemã ter ocupado um “vácuo de
fatores de identificação”, especialmente, na medida em que ela se apresentou como
garantidora de prosperidade econômica e estabilidade política.
Nesse contexto, para o jurista, nada define melhor a situação alemã que a
expressão do patriotismo constitucional. Ela se tornou símbolo do papel integrador da
constituição alemã, que em uma sociedade desprovida de outras bases de identificação
nacional, se tornou o documento que representava e representa os valores alcançados e
estimados pela sociedade da Alemanha, antes Ocidental, hoje unida. Nesse sentido,
destaca que, diferentemente da Constituição de Weimar, as disputas a respeito das
normas constitucionais, apesar de por vezes muito acirradas, nunca se desenvolveram
em torno da validade e/ou legitimidade em si (sempre entendida como
fundamentalmente aceita), mas, apenas, em torno de diferentes interpretações
constitucionais. Assim, quando se argumenta a respeito de qual o “sentido adequado da
constituição”, de forma reflexa, está a se reafirmar a constituição através desses conflitos
básicos, isto é, da disputa pelo sentido da Constituição em alternativa a uma tentativa de
fuga dela, portanto, nessas disputas reafirma-se a própria força da Lei Fundamental792.
789
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit.
790
Há um diálogo público entre HABERMAS e GRIMM: GRIMM, Dieter. Does Europe need a
Constitution? European Law Journal, v. 1, n. 3, pp. 282–302, nov. 1995; e HABERMAS, Jürgen.
Remarks on Dieter Grimm's ‘Does Europe Need a Constitution?’. European Law Journal, v. 1, n. 3, pp.
303–307, nov. 1995.
791
GRIMM, inclusive, foi juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão entre 1987-1999.
792
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 203.
294
normativos e procedimentos democráticos e constitucionais. Assim, o patriotismo
constitucional de algum modo, encara a constituição como um símbolo através do qual
se dá o processo de integração dos indivíduos, sem que essa integração intervenha na
identidade ético-cultural de cada um, afirmando-a apenas no plano ético-político. Nesse
contexto, a “idéia de patriotismo constitucional baseado em uma lealdade à
Constituição”793, seria, de algum modo, um conceito normativo de “natureza
instrumental” a essa integração política.
793
BUNCHAFT, Maria Eugenia. A integração do conceito de patriotismo constitucional na cultura
política brasileira. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n.30, pp. 177-199, jan./jun. 2007.
295
CAPÍTULO 9
CULTURA DE CONSTITUIÇÃO
ONSTITUIÇÃO:
FORÇA NORMATIVA, LEGITIMIDADE E EFICÁCIA
EFICÁCIA
Isso leva, portanto, ao caminhar dessa dinâmica, no que acaba por apresentar-se
a terceira dimensão da cultura constitucional, identificada com seu elemento vital que
podemos chamar de cultura de constituição. Ela extrapola a relação entre validade e
legitimidade e não se esgota no diálogo entre o ser e o dever ser de uma constituição.
No entanto, tampouco deixa de estar contida na relação entre normalidade e
normatividade da realidade constitucional e identifica-se com a relação necessária entre
legitimidade e eficácia, inerente ao dinamismo constitucional.
794
Nesse sentido, é possível interpretar a afirmação de SALGADO: “o dever ser e não o devir é o que dá a
nota essencial do homem, pois como devir é determinado, como dever ser é autodeterminação que, no
caso, é autoformação”, SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p.
19.
297
do segundo pós-guerra, nesse mesmo período acompanhou-lhe uma reiterada afirmação
da normatividade jurídica da constituição.
Nesses termos, é possível dizer que a eficácia jurídica, a eficácia social da norma
e, mesmo, a efetividade de uma constituição797, por muitas vezes, apoiam-se em um
lastro um tanto mais etéreo que o do monopólio da violência pelo Estado798. E, nesse
795
NEUMANN aponta que essas características nas normas constitucionais são marca especial do
constitucionalismo social do século XX: NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., pp. 72-100.
796
Com isso não se está a afirmar a inexistência de aparelho coercitivo nas normas constitucionais.
Menos ainda, relativizando a dimensão da coercitividade como própria à definição de Direito. Não se
diverge de LUÍS ROBERTO BARROSO quando afirma que: “as normas constitucionais, tal como as
demais, articulam-se usualmente na dualidade típica preceito e sanção, quer esta resulte diretamente da
regra, quer deflua do sistema em seu conjunto”, BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e
a Efetividade de suas normas, cit., p. 87. Inclusive, este trabalho do autor, que vem a ser um dos
principais nomes da doutrina brasileira da efetividade, tem como principal objetivo chamar a atenção
aos mecanismos jurídicos e aos “meios para assegurar a efetividade das normas constitucionais”. O que
aqui se pontua é que, na maior parte das vezes, essa vinculação não se faz de modo imediato. Um
exemplo dessa peculiaridade se coloca nos limites a serem respeitados pelas cortes constitucionais
quanto a sua autocontenção. Ou ainda, à questão do suporte difuso e da lealdade institucional, que
ainda serão abordadas. O próprio BARROSO chama a atenção ao que trata como a “primeira faceta do
controle de efetividade do Direito, por via informal, não institucionalizada, de natureza essencialmente
política e social”.
797
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 118: “Cuando décimos que todas las
normas de la Constitución tienen alcance jurídico ha de entenderse que esa validez debe intentar su
coincidencia con su efectividad””.
798
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., pp. 7-8: “El Derecho
Constitucional se diferencia del Derecho de otras ramas jurídicas en que, en definitiva, no existe
instancia que pueda imponer su observancia; el Derecho Constitucional tiene que garantizarse por sí
mismo, lo cual supone la existencia previa de una configuración que esté en condiciones de asegurar en
lo posible tal garantía inmanente. Las funciones ordenadora y pacificadora del Derecho ordinario
dependen en gran medida de que si resulta necesario, se impongan por vía ejecutiva, mediante la
coerción estatal. Su observancia, pues, siempre resulta garantizada desde fuera. Todo lo contrario
ocurre con las normas de la Constitución. Su observancia no se garantiza ni por un ordenamiento
jurídico existente por encima de ella ni por una coactividad superstatal; la Constitución no depende sino
298
sentido, renova-se o discurso de TOBIAS BARRETO: o Direito é a força que matou a
própria força.
Tem razão MARCELO CATTONI quando bem coloca que é “muito complicado
achar que pelo simples fato do direito à moradia ter sido inserido expressamente na
Constituição, todas as pessoas do País já terão moradia, ou que a Constituição, por ela
mesma, vai sair construindo casas por aí. É necessária uma política habitacional
condizente. Ou, que considerar racismo crime, que as pessoas vão deixar de ser racistas.
É necessário fomentar uma cultura pluralista”799.
de su propia fuerza u de las propias garantías.”. Corroborando essa compreensão: GRIMM, Dieter.
Constitucionalismo y derechos fundamentales, op. cit., p. 31.
799
CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. O projeto constituinte de um Estado Democrático
de Direito: por um exercício do Patriotismo Constitucional, no marco da Teoria Discursiva do Direito e
do Estado Democrático de Direito, de Jürgen Habermas. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.).
Quinze anos de constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 131-154, p. 147. Ou, na pagina
anterior, quando afirma: “Talvez um dos grandes equívocos, mais uma vez, ou dos piores ‘vírus’ do
Direito, para usar o termo que Dom Luciano utilizou, seja justamente a incapacidade de compreender
que realmente o Direito não é capaz por si só de transformar a realidade ou de transformar o mundo.
Que no máximo, no máximo, a Constituição pode promover mudanças na medida em que essa
Constituição constitua algo. Que ela seja o centro de mobilização ou de integração de uma sociedade,
no sentido do desenvolvimento de um patriotismo constitucional. Mas daí a achar que a Constituição,
por ela mesma é capaz de transformar a realidade, ou que mais uma emenda constitucional vai resolver
o problema da falta de efetividade da Constituição, isso é insistir num equívoco. No equívoco que
contribui para mais frustação e para o agravamento do sentimento de fracasso constitucional”.
299
constituição, para fazer com que esse projeto político-jurídico e social ganhe vida em sua
efetividade, mas, também, que seja vivido enquanto construído e reconstruído.
las normas sociales mantienen necesaria relación con la esfera del ser
en cuanto sólo tienen validez, es decir, reciben existencia y se
mantienen, en virtud de una orden dictada por una voluntad de una
observancia voluntaria, o sea que su deber ser tiene siempre como
supuesto y como objetivo un querer real800.
Portanto, quanto à eficácia, especialmente no caso do Direito Constitucional, tão
importante, ou até mesmo, mais importante que a garantia externa da constituição é sua
garantia interna.
É nesse sentido que LUÍS PEREIRA COUTINHO afirma que a vigência de uma
constituição só é possível “por um longo termo, caso se lhe encontre subjacente uma
‘vontade geral’ continuamente actualizada”801. Nesse contexto, propõe uma “recuperação
da vontade geral” rousseauniana em leitura que a compreende dentro de uma
determinada “tradição contratualista ‘não desterrada’”, na qual se inserem, também,
800
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 238.
801
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 377. E mais a frente:
“Isto é, que na ausência de uma adesão à normatividade constitucional por parte daqueles que se lhe
subordinam – e a que subordinam o poder a que obedecem, constituindo uma ‘garantia interna’ da
Constituição que nenhuma ‘garantia externa’ substitui –, a mesma se encontra condenada, bastando para
o demonstrar o paradigmático exemplo de Weimar”, pp. 379-80. Em termos parecido, HÄBERLE
coloca a “Constitución entendida como contrato (social) dinâmico en el sentido de una ‘convivencia
constantemente resignificada’”, HÄBERLE, Peter. Tiempo y cultura constitucional. Contextos, Buenos
Aires, n. 2, pp. 36-81, 2011, p. 38.
300
ESPINOSA e LOCKE (este entendido como continuador daquele)802, que nega aos
contratantes o caráter de seres “absolutamente livres, sem amarras e sozinhos”803,
negando, também, a possibilidade de um contrato tomado ex nihilo. Ao contrário disso,
PEREIRA COUTINHO percebe, sob a influência de CHARLES TAYLOR, que os
“‘contraentes’ internalizam uma parametrização moral igualitária”804. Destarte, coloca a
autoridade da constituição em termos de uma autoridade moral805, no que propõe ser:
uma autoridade então relevante, não de a Constituição ter sido
aprovada por um Povo-com-P-maiúsculo, mas de a mesma ser
plasmadora de uma sabedoria – de uma identitária parametrização
normativa – com a qual, compulsivamente, “não estamos em posição
de entrar em conflito”806.
Não que tal sabedoria não se atualize na dinâmica política. Dito de outra forma,
em termos que não estão necessariamente em PEREIRA COUTINHO, trata-se de um
parâmetro objetivo culturalmente construído, que, enquanto cultural, é humano e está
em constante caminhar sobre a terra. Assim, trata-se de um parâmetro, apenas,
relativamente objetivo, pois não externo à própria dinâmica da cultura. Destarte, é
cultural, por excelência, conformado e conformador do indivíduo e de sua identidade807.
802
Essa não é a leitura necessária, nem mesmo a usual, que se faz de LOCKE. Para tanto, PEREIRA
COUTINHO formula sua posição, especialmente, recorrendo às leituras que fazem LUÍS CABRAL DE
MONCADA (este relacionando LOCKE e ESPINOSA) e JEREMY WALDRON.
803
WALZER, Michael. The Communitarian Critique of Liberalism. Political Theory, v. 18, n. 1., pp. 6-
23, fev. 1990, 7-9.
804
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 350. E segue na mesma
página: “Na tradição em causa, o contrato é, pois, um compromisso ético relevante da interiorização,
pelos ‘contraentes’, de uma parametrização moral centrada na igualdade fundamental de todos. Uma
parametrização em cujo âmbito é reconhecida autoridade moral a uma normatividade constitucional
que a reflicta”.
805
Por autoridade moral o autor entende: “Falar em autoridade moral do Direito significa, claro está,
identificar a normatividade correspondente como boa, como sede de uma República bem regulada ou
como projecção de justiça”, COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit.,
p. 13.
806
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 349. E aqui remete
explicitamente: ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa: Relógio D’Água, 2001, p. 236.
807
KAHN, Paul W. The cultural study of Law, cit., p. 6; 36-40.
301
hombres como una convicción viva, y se integran en una fuerza o en
una magnitud política que las sostiene808.
Nesse contexto, tocam-se legitimidade e eficácia. Uma legitimidade que não se dá
simplesmente em referência a um (mais ou menos) mitológico momento fundador, mas
na amiúde renovação, reafirmação e reinvenção da própria identidade político-cultural
na cultura constitucional. Uma identidade que tem na sua constituição um símbolo
dessa cultura, importante para a identificação de sua identidade, e na sua garantia
interna a força vital motriz da normatividade809.
Também MAZZONE dará ênfase ao elemento vital para sua definição de cultura
constitucional. Para ele, esta abarca elementos como a disposição dos cidadãos de
808
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 162.
809
VORLÄNDER, Hans. What is “Constitutional Culture”?, op. cit., p. 28: “Constitutions are not fixed
orders; they express statements of order and claims of validity, but cannot redeem these by themselves.
Constitutions have to rely on symbolic forms of representation that lend them validity, that is, acceptance
and recognition. Symbolic and functional features therefore cannot be separated; the function of a
constitution is based in its symbolic meaning”.
810
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política: poder constituinte, constituição material e
cultura constitucional. Lisboa: Quid Juris, 2012, pp. 30-32.
811
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política, cit., p. 33.
302
reconhecer e aceitar que eles estão vinculados por um documento escrito, que cria as
instituições do poder e estabelece limites sobre sua atuação. Inclui, também, a própria
aceitação e “crença” compartilhada na comunidade de que essa carta de poder é criada
pela cidadania e que, não sendo eterna, ela pode ser modificada sob certas
circunstâncias, mas, enquanto não for alterada, todos os cidadãos estão a ela vinculados,
devendo ir até as últimas consequências para cumpri-la e efetivá-la, ainda que sejam
livres para discordar de suas posições pontuais. Para MAZZONE, a cultura constitucional
encampa, ainda, a compreensão de que a constituição une a população em um sentido
mais amplo, para além daqueles vínculos mais imediatos de pertencimento (família,
congregação religiosa etc.), vinculando e sendo comum a todos os cidadãos da
comunidade jurídico-política812.
Dito de outra forma, uma Constituição tem como principal projeto normativo
fazer com que uma cultura política específica torne-se suficientemente comprometida
812
MAZZONE, Jason. The creation of a constitutional culture. Tulsa Law Review, n. 40, n. 4, pp. 671-
698, 2004, p. 672.
303
com o parâmetro normativo do constitucionalismo para que possa, ela mesma, ser
considerada – e considerar-se – uma comunidade com/em cultura constitucional.
304
agentes e de cada cidadão com esse projeto, na amiúde renovação e revitalização do
próprio argumento legitimador/justificador da ordem constitucional enquanto tal.
813
Falando do processo de (re)constitucionalização da Polônia após queda do regime comunista:
“Which should be attended to first? Should we undertake a broad educational attempt to create a
constitutional culture and adopt a constitution only after such culture is formed? Or should we enact a
constitution first and then use it to form a constitutional culture? Poland tried to do both at the same
time, i.e., to use the process of constitution making for a broad educational effort about
constitutionalism. In fact, however, politicians used the referendum campaign for a constitution for win
support for their own parties rather than to solidify a constitutional compromise. The constitution
became divisive, did not teach any lesson to anybody, and did not work. We learned that constitutional
culture is best built by application of a constitution daily life. There also exists a very powerful practical
argument not to delay the adoption of a new constitution until social consciousness changes. There is
much evidence that once a short-lived ‘constitutional moment’ is missed, it becomes more difficult to
reach a constitutional agreement about rules and principles, particularly in conditions of a simultaneous
transition to constitutionalism and democracy”, OSIATYNSKI, Wiktor. Paradoxes of constitutional
borrowing. International Journal of Constitutional Law, Nova York, v. 1, n.2, pp. 244-268, abr. 2003,
pp. 266-267.
305
não apenas letra morta, tampouco, declaração estática, mas, ela mesma, viva e vivida
através das práticas cotidianas da cultura constitucional814.
814
VORLÄNDER, Hans. What is “Constitutional Culture”?, op. cit., pp. 28-29: “We can therefore
identify as constitutional cultures those solidified, temporally extended collective imaginations,
interpretations and practices that normatively distinguish the meaning of a given political order”.
306
válida, respeitando-a, endossando-a e implementando-a na própria rotina da
comunidade jurídico-política. Destarte, se “quem vive a norma acaba por interpretá-la
ou pelo menos co-interpretá-la”, a interpretação da constituição de um Estado
Democrático de Direito não pode ser coisa de uma sociedade fechada e é realizada
amiúde por cada cidadão no espontâneo cumprir e dar suporte ao Direito e às
interpretações (oficiais) dadas à constituição815.
815
COELHO, Nuno M. M. S. Compreensão como arte: notas “hermenêuticas” sobre Constituição e
constitucionalismo. Prisma Jurídico, v. 8, n. 1, pp. 53-75, jan./jun., 2009, p. 72: “A interpretação é
verdadeira quando experimenta o texto no contexto da própria vida. Compreensão é vida, é viver o
texto, ou é reviver. Com respeito à interpretação da Constituição, é preciso chamar a atenção para o
titular (melhor seria dizer: o lugar) da interpretação do direito: o direito é lá onde é experimentado,
vivido, e onde efetivamente as intuições do constituinte são revividas. Ali é que se instaura (ou não) o
diálogo com o constituinte (assim, é ali que se o instaura como constituinte). Ali onde a Constituição é
interpretada: da sessão do STF à assembléia condominial. Da jurisprudência dos tribunais à opinião
pública, passando pelos órgãos de imprensa. É claro que não é um assunto apenas de juristas – a não ser
que se admita sermos todos juristas. Para além dos tribunais constitucionais, nos quais passa apenas uma
parte da vida da Constituição, a assunção do que o constituinte disse é obra quotidiana de todos os que
integram (compreendem) a Constituição como parte de sua própria língua”.
816
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional, cit., p. 13. SIEGEL, Reva. Constitutional Culture,
Social Movement Conflict and Constitutional Change: The Case of the de facto ERA – 2005-06
Brennan Center Symposium Lecture. California Law Review, v. 94, n. 5, pp. 1323-1420, set./out. 2006.
307
e reconstrução da identidade constitucional, em última instância, no processo de
contínua interpretação da constituição.
817
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 29.
818
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo constitucional contra fraudes à
Constituição, op. cit., p. 4. E segue: “Para Habermas, num diálogo crítico com a tradição do
republicanismo cívico, os direitos fundamentais de liberdade e de igualdade seriam, pois, a própria
explicitação do sentido performativo da práxis de autolegislação democrática e da noção complexa de
autonomia jurídica que lhe é subjacente”.
819
MIRANDA, Jorge. Notas sobre cultura, Constituição e direitos culturais. O Direito, Lisboa, a. 138, n.
VI, 2006.
308
(relacionado à cultura própria da comunidade), é o que chamamos de consolidação de
uma cultura de constituição.
Um projeto que pretende vencer a força pela não força, que, em última instância,
pretende fazer-se eficaz porque válido e válido porque legítimo. Nesses termos, a
própria efetividade da ordem constitucional acaba por depender de sua amiúde
renovação e identificação com a identidade do constitucionalismo, igualitária e
pluralista. Dito de outra forma, no fundo, a condição última de possibilidade para a
perpetuação e efetividade de uma ordem constitucional é ela fazer-se sentida legítima,
na sempre renovada identificação de todos os cidadãos – do eu e do outro – com aquela
identidade constitucional, como parte e partícipe do sujeito constitucional. Ou, ainda,
nas palavras de BERCOVICI: “a Constituição só é real se significa algo para os
cidadãos”821.
820
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 44.
821
BERCOVICI, Gilberto. Democracia, inclusão social e igualdade. In: XIV Congresso Nacional do
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI, 2006, Fortaleza - CE. Anais
do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.
309
Constituição que fornecerão um governo melhor, com o qual, talvez, o imaginário da
população não se identifique”. O que entende como importante, na verdade, é colocar
as pessoas envolvidas com “algum laço emocional entre o que o sentimento popular
possa ser e o governo, de fato, é”, mas, mais que isso, afirma que: “o que é importante é
que há, na consciência coletiva do país, uma certa ligação com a Constituição”822.
822
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado Democrático de Direito,
op. cit., p. 29: “Eu acho que a expressão que você usou, do seu colega, de construção do sentimento
constitucional, é uma expressão muito melhor. Uma forma de colocar as pessoas envolvidas com a
Constituição não é, necessariamente, por meio de aspectos da Constituição que fornecerão um governo
melhor, com o qual, talvez, o imaginário da população não se identifique. Antes, porém o que é de
certo modo estranho, e é aqui que eu acho que a noção de identidade constitucional é importante, é
necessário que as preocupações, os sonhos, os pesadelos, os mitos, as lendas, os pontos de referência
comuns, históricos etc., estejam na base desse governo constitucional, de forma que possamos conseguir
algum laço emocional entre o que o sentimento popular possa ser e o governo, de fato, é: muito técnico
e reservado a advogados e legisladores. É nesse sentido que eu me refiro à imaginação constitucional do
povo nos Estados Unidos, e ela, de alguma forma, entrou na cultura popular. No entanto, isso não é
necessariamente importante. O que é importante é que há, na consciência coletiva do país, uma certa
ligação com a Constituição”. Também nesse sentido: MOREIRA, Nelson Camatta. A filosofia política
de Charles Taylor e a política constitucional de Pablo Lucas Verdú, op. cit., p. 37.
823
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana, cit., pp. 323-324: “Os cidadãos se identificam com a sua
comunidade política quando reconhecem que a comunidade tem uma vida comunitária, e que o êxito
ou fracasso de sua própria vida depende eticamente do êxito ou fracasso dessa vida”.
310
conducta, de modo más o menos consciente, por normas
autónomas o heterónomas824.
A identidade constitucional, portanto, faz-se viva quando consegue, ela mesma,
colocar-se em movimento e efetivação social por uma cultura de constituição. Esta é o
elemento vital de uma da cultura constitucional. Toca o patriotismo constitucional, que
pretende uma integração pela constituição, mas o transcende, na medida em que se
articula não apenas a partir de um momento fundador, mas, também, em relação a toda
uma identidade do constitucionalismo, relida na construção de uma identidade
constitucional. Essa força gravitacional, até porque cultural e identitária, tão pouco se
coloca de forma unidimensional, quer na razão, quer na vontade, mas, articula-se com o
próprio sentimento de pertença e identificação da comunidade e do sujeito
constitucional com aquela identidade constitucional particular, possível, inclusive, a
partir da dinâmica de reconhecimento que lhe é própria825.
824
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 318.
825
Nesse sentido, sobre o caso brasileiro e articulando o pensamento de TAYLOR e de LUCAS VERDÚ:
MOREIRA, Nelson Camatta. A filosofia política de Charles Taylor e a política constitucional de Pablo
Lucas Verdú, op. cit., p. 39: “Por tudo isso, reforça-se que o problema eficacial do texto constitucional
brasileiro, no que tange ao alcance dos objetivos previstos no art. 3º e à efetivação dos direitos
fundamentais sociais, passa, fundamentalmente, pela necessidade de uma ética do reconhecimento
como uma dimensão ‘pré’ e ‘ultrajurídica’. O dirigismo assumido pelo discurso transformador da
realidade da Constituição de 1988, além da postura garantidora e efetivadora da Jurisdição
Constitucional, depende fundamentalmente do estímulo de um sentimento constitucional dos cidadãos
– e não de subcidadãos – brasileiros”.
826
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado Democrático de Direito,
op. cit., pp. 29-30.
311
difundir e consolidar uma cultura de constituição de modo que seja presente a vontade
de constituição, tanto nos agentes oficiais responsáveis por essa efetivação via Estado
quanto pelos próprios cidadãos identificados com esse projeto, é promover a própria
garantia interna da ordem constitucional. Trata-se, portanto, do fomento e reafirmação
de uma cultura pluralista, inclusiva, igualitária e de igual liberdade. De uma cultura de
tornar esse projeto constitucional, essa identidade constitucional, efetiva e viva. Projeto
vivo e vivido na dinâmica da cultura constitucional.
Como não poderia deixar de ser, a ideia de educação também está intimamente
vinculada a qualquer discurso referente ao processo de fortalecimento dos laços entre os
cidadãos na identidade constitucional e na comunidade, de formação e cultivo de uma
cultura de constituição.
O próprio termo cultura vem do verbo latino colere e está relacionado aos
significados de cultivar, criar, cuidar. Não distante desse significado, da expressão
cultura decorre também o sentido de culto (inicialmente dos deuses), bem como, do
cuidado com a educação e com a formação, do cultivo do espírito das crianças a fim de
312
torna-las membros virtuosos pelo aperfeiçoamento das qualidades naturais. Destarte,
em uma acepção primeira, a cultura foi entendida como a intervenção deliberada e
voluntária do homem sobre a natureza de alguém, para moldá-la aos valores de sua
comunidade. Por esse ponto de vista:
Tão antigas quanto o próprio Ocidente são as conexões feitas entre formação e
educação do indivíduo para o agir ético, para a democracia, para o Direito e para a
827
CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2006, p. 105; WILLIAMS, Raymond. Palavaras-Chave, op. cit., pp. 117-124.
828
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana, cit.
829
HÄBERLE, Peter. La Constitución «en el contexto». Anuario Iberoamericano de Justicia
Constitucional, Madri, n. 7, pp. 223-245, 2003, p. 234. Chegando a tratar da importancia da pedagogia
como disciplina não jurídica aliada da Teoría da Constituição: “En la comprensión de los requisitos
establecidos por varias constituciones de los Estados alemanes en 1945 y 1990, entre los objetivos
educativos ha de incluirse la ciencia de la pedagogía, por ejemplo, como la educación constitucional.
Recordemos el lema “Ciudadanía a través de la Educación” europea (principalmente en el sentido del
Clasicismo de Weimar) y los objetivos educativos como la tolerancia, el respeto a la dignidad humana, el
respeto por los derechos humanos y la protección del medio ambiente”, HÄBERLE, Peter. Palabras
clave para el constitucionalismo de hoy - Una perspectiva alemana. THĒMIS, Lima, n. 67, pp. 15-22,
2015, p. 21.
313
cidadania830. Afinal, qual não é o principal projeto socrático (e platônico, e aristotélico)
que não a paideia. A preocupação com educação segue com grande importância no
curso da história, sendo corrente e crucial para várias mundividências como aquelas
ligadas à ilustração, ao romantismo e ao idealismo, em pensadores como KANT,
ROUSSEAU e FICHTE, dentre outros. Essa reflexão adentra no universo jurídico por
inúmeras portas, por exemplo, na questão da educação para exercício de Direitos
Humanos.
LIMA VAZ tem na categoria da consciência moral um dos pontos centrais de seu
pensamento. O filósofo trata da Ética como a ciência do ethos, que, por sua vez, é por
ele definido como a segunda natureza do humano, que na dimensão social se apresenta
830
A própria Constituição da República Federativa do Brasil faz essa relação: “Art. 205. A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho”. Analisando o Direito Constitucional da Educação, como um todo, e
este artigo, em especial: HORTA, José Luiz Borges. Direito Constitucional da Educação. Belo
Horizonte: Decálogo, 2007, pp. 125-127.
831
Sobre a Escola Jusfilosófica Mineira: HORTA, José Luiz Borges. La Era de la Justicia Derecho,
Estado y límites a la emancipación humana, a partir del contexto brasileño, op. cit., p. 79, nota 13.
832
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia V: introdução à ética filosófica 2. São Paulo: Loyola,
2000; LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça: filosofar do agir humano. Síntese Nova Fase, Belo
Horizonte, v. 23, n. 75, pp. 437-453, 1996.
833
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002.
834
BROCHADO FERREIRA, Mariá. Paideia jurídica: pressupostos e caracterização. Revista Brasileira
de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 101, p. 159-190, jul./dez. 2010: “Adjetivamos a palavra
‘paideia’ com o termo “jurídica” com o intuito de apontar a relevância do Direito nessa formação
integral dos sujeitos morais (perspectiva grega) que também são na atualidade sujeitos de direito(s).
Trata-se de um esforço de releitura da preocupação grega com a formação do indivíduo para a prática
das virtudes, mas, que na cultura ocidental contemporânea, estende-se também para o exercício de
(seus) direitos. Nestes termos, podemos concluir que a formação ética é integrada pela formação moral
e pela formação jurídica sobre a essência do Direito, em especial seu núcleo mais significativo: os
direitos humanos-fundamentais”.
314
como costume e na individual como hábito. É o ethos, portanto, a “dimensão do agir
humano social e individual na qual se faz presente uma normatividade ou um dever-ser,
ou que se supõe provir da natureza ou que é estatuído pela sociedade”835. Nesse sentido,
ele não é “senão a face da cultura que se volta para o horizonte do dever ser ou do
bem”836, é paradigma de tudo o que constitui o sistema humano de vida: a face
normativa da cultura837. E, nesse sentido, é possível definir a Ética como a ciência da
razão prática – forma de razão não voltada, simplesmente, para o conhecimento, mas
ordenada para a ação (práxis), que exprime as normas e os fins do próprio agir ético838.
835
LIMA VAZ, Henrique. Antropologia filosófica I. 4 ed. São Paulo: Loyola, 1998, p. 17, e segue:
“Enquanto social o ethos é costume, enquanto individual é hábito. Sendo coextensivo à cultura, o ethos
é objeto, desde os inícios da história da filosofia ocidental, de saberes específicos, a Ética tendo por
objeto o agir individual e o Direito, e a Política, o agir social. O problema da cultura tomou-se tema de
um ramo das ciências do homem que conheceu também um grande crescimento a partir do século
XIX, a Antropologia cultural. Investigando a grande variedade das culturas e, portanto, dos ethê, ela
situou em novas perspectivas os problemas clássicos da Ética e das ciências jurídico-políticas, renovando
a tradicional conceptualização filosófica a respeito. Mas a interrogação filosófica fundamental
permanece, nesse campo, voltada para essa prerrogativa essencial do homem que é a dimensão
conscientemente teleológica e axiológica do seu agir, à qual corresponde o paradoxo da livre
necessidade da aceitação de um universo de normas reguladoras desse agir. Trata-se, em suma, de
repensar filosoficamente, em face das ciências do ethos como forma de cultura, o problema já
reconhecido por Hegel quando definiu o Direito (entendido em sentido amplo cobrindo toda a esfera
do ethos) como “realização concreta da liberdade", a saber, o problema da realização histórica, social e
cultural da liberdade, que só subsiste como sendo manifestação da essência do homem ao se constituir
como liberdade consensual, enraizada no terreno da Ética e do Direito”.
836
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 19.
837
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica, cit., p. 37.
BROCHADO relaciona essa afirmação à passagem de Verdade e Método II, de GADAMER,
referenciando sua versão castelhana. Acreditamos que corresponda a: GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e Método II. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 369-380, no texto complementar: Problemas da
Razão Prática, de 1980.
838
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia V, cit., p. 25.
839
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia V, cit., p. 52.
315
um agir ético em relação a outro agir ético, em diálogo; e um momento objetivo,
quando o agir ético coloca-se frente à realidade objetiva que o cerca, expresso no ethos.
Nessa esteira, para LIMA VAZ, Ética, Política e Direito são, especialmente, as
fontes de auto-legitimação de uma sociedade e, nesse sentido, mais até que simples
“corpos teóricos na enciclopédia dos saberes reconhecidos e praticados na nossa cultura
superior” são eles verdadeiros programas pedagógicos, que existem de forma
teoricamente articulada e interdependente, voltados à educação do indivíduo e da
comunidade para a vida plenamente humana. A partir dessa percepção, LIMA VAZ
afirma que:
840
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica, cit., p.32.
841
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica, cit., p.142.
842
LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça, op. cit., pp. 450-451.
316
posse das suas prerrogativas os atores da vida moral concreta que deve
ser vivida pelos indivíduos e pelas comunidades. Por sua vez, a
conquista dessas prerogativas não é obra da natureza, é um processo
cultural que se define como paideia, como educação para uma forma
superior de vida843.
LIMA VAZ, portanto, dá destaque à educação ética como elemento de formação
do homem para o agir ético, logo, para o agir plenamente humano, em especial alusão à
paideia grega, definida por JOAQUIM CARLOS SALGADO como exemplo de consciência
cultural. SALGADO, por sua vez, parte da consciência moral de LIMA VAZ para
desenvolver sua perspectiva da consciência jurídica.
843
LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça, op. cit., p. 450.
844
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 24.
845
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 25: “Razão jurídica é
desse modo o resultado dialético da consciência jurídica transcendental e dos valores da cultura que são
seu objeto, na processualidade histórica da experiência jurídica”.
317
consciência deixa de ser mera universalidade do eu abstratamente, sendo, agora,
universalização do eu concretamente: um nós846. E é assim que conceberá o Direito
como maximum ético.
846
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., pp. 35-36: “Somente a
consciência jurídica capta o universal imanente, porque consciência de um nós (que é um eu), cuja
objetividade é o seu ethos. A consciência jurídica envolve toda objetividade do ethos, já universalizada
na lei, e a subjetividade da consciência moral universalizada na consciência de um nós, que também é
um eu, cujo conteúdo é a universalidade objetiva do ethos”.
847
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 41.
848
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 21: “a invenção da
educação está, pois, ligada à inconformidade do homem de ser como é, e à necessidade de ser como
entende que deve ser, através de um projeto de formação, vale dizer, à estrutura eleutérica do seu ser,
cuja epifania se dá no drama da história, e se efetiva no sujeito universal de direitos pela experiência da
consciência jurídica” (grifos original).
318
reconhecimento, de declaração e de efetivação dos direitos
fundamentais considerados o núcleo da ordem justa se realiza segundo
uma estrutura transcendental da consciência e segundo a sua
experiência na elaboração dos valores da cultura ocidental. Trata-se da
experiência da consciência jurídica, que se projeta na história do
Ocidente como um processo de formação do homem livre, cujo
veículo é a educação849.
Ainda que com gramáticas e perspectivas diferentes, o destaque dado por LIMA
VAZ e SALGADO à educação e aquilo que aqui pretendemos com pedagogia
constitucional, aproximam-se no sentido de formação de uma consciência, por um lado,
mas, também, de uma identidade entre os indivíduos e o ethos que se pretende
perenizado – de forma não estática – na comunidade constitucional, entre o cidadão e a
identidade constitucional. Nesse sentido, a realização de uma constituição enquanto
projeto (dever ser) demanda um mínimo de conhecimento e reconhecimento da
comunidade e dos cidadãos.
849
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 26.
850
BROCHADO FERREIRA, Mariá. Pedagogia jurídica para o cidadão: formação da consciência
jurídica a partir de uma compreensão ética do direito. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo
Horizonte, n. 48, pp. 159-188, jan./jun. 2006, p. 165
319
efetivo, real e necessário e não como paliativo para falhas morais
individuais851.
Nessa linha, conhecer do Direito, através da educação jurídica, é o primeiro
passo de um verdadeiro acesso ao Direito, nos termos dados por JORGE MIRANDA:
“como costuma se dizer, a primeira forma de defesa dos direitos é a que consiste no seu
conhecimento”852. Só a partir de então é possível exigi-los, quer frente ao poder público,
quer mesmo, frente a particulares, na dinâmica da comunidade, em um processo de
reinvindicação e reconhecimento que dá vida ao Direito, que dá vida à constituição. Um
processo que se coloca não apenas na luta pelo meu direito, mas inclusive, do “direito
do outro, porque igual a mim, numa sociedade consentida e politizada na forma de
Estado de Democrático de Direito”853.
PAULO FERREIRA DA CUNHA, por sua vez, apontará que um tal conhecimento
constitucional não se trata de um saber estatístico ou charadístico, mas de compreender
o próprio espírito da Constituição, “saber-se que a Constituição abre para grandes
avenidas de sonho, para grandes projectos, para os valores políticos fundamentais”854.
Relaciona-se, portanto, com a difusão das bases valorativas desse projeto político-
cultural, justamente, para a construção de uma comunidade que se paute por eles, nos
termos de uma ética republicana855.
É, nesse sentido, projeto normativo contrafactual, uma vez que se afirma como
fundamentado em uma dada identidade, na cultura do constitucionalismo. Cultura esta
que, por um lado, quer-se preservada em seus fundamentos últimos de igual dignidade,
mas que, enquanto cultura de liberdade, por essência e coerência não se pretende
conservada de forma estática. É cultura que se faz viva e reafirmada em sua própria
dinâmica de transformação, no mútuo reconhecimento dos cidadãos entre si, do qual
decorre o igual valor da livre participação de cada um na formação da identidade
constitucional. Como afirma NUNO COELHO, o que nos marca enquanto cultura é o
fato de sermos “uma civilização em que as pessoas mantêm o direito de participar da
856
SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant. Belo
Horizonte: Decálogo, 2008, p. 42.
857
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., pp. 190-191.
321
luta pelo mundo”858. Nesses termos é possível afirmar, novamente com HÄBERLE, que a
democracia é a consequência organizativa da dignidade da pessoa humana859.
INSTITUCIONAL
Há, ainda, pelo menos uma questão importante quanto a esse elemento vital de
que aqui se trata e ele se coloca na própria formulação básica do Estado de Direito e do
constitucionalismo: o Direito deve ser limitado.
862
A pedagogia constitucional é tarefa da própria comunidade, de modo a possibilitar a própria
comunidade constitucional. Ela pode ser levada a cabo através de diversos caminhos, através de
programas educacionais, ensino formal em escolas nos mais diversos níveis, dentre outros. Aqui nos
limitaremos, efetivamente, por apontar a essa tarefa e a seus fundamentos. O desenvolvimento mais
detalhado dessas possibilidades demandaria um trabalho autônomo, provavelmente, com uma
abordagem desde teorias de educação e da pedagogia, que por uma série de razões são impossíveis a
esta tese.
323
poder se encontre limitado pela ordem jurídica, sendo-lhe coerente, comprometido
com suas amarras e que a interprete com integridade.
Essa constatação pode soar como um fato elementar – ou, ao menos, deveria sê-
lo – contudo, ela complexifica-se na medida em que a observância dos limites de
atuação e de competência das máximas instâncias oficiais de interpretação constitucional
são, em última análise, bastante dependentes da observância da lealdade institucional.
Uma ordem que propõe vencer a força pela não força, como é o projeto do
Estado de Direito, como dito, tem seu equilíbrio viabilizado não por um poder (factual)
último, um soberano que se impõe, mas por um arranjo que lhe permite o progressivo
caminhar de construção, reconstrução e desconstrução de uma identidade, a partir das
amarras do constitucionalismo que, por sua vez, incorporam a dinâmica do
reconhecimento do eu e do outro. Se o soberano do Estado Democrático de Direito
não é definido por aquele que decide na exceção, por aquele que tem a palavra final,
863
DWORKIN, Ronald. O império do direito, cit., p. 213.
864
DWORKIN, Ronald. O império do direito, cit., 229.
324
mas, do contrário, é identificado com aquele que deve ser o soberano – o povo – a
velha questão já lembrada permanece latente, afinal, “por muchos controles que se
establezcan nunca pondrá resolverse el problema: Quis custodiet custodes?865.
Ainda que não seja possível dizer de um padrão ou formato único de limitação e
organização do poder do Estado de Direito – afinal, essa é uma amarra do
865
HELLER, Herman. Teoría del Estado, cit., p. 329, e segue: “No hay forma ninguna de inviolabilidad
de las normas constitucionales que pueda detener revoluciones y restauraciones; ninguna división de
poderes de derecho constitucional puede impedir que en un conflicto insoluble, por ejemplo entre el
gobierno y el parlamento, decida, a falta de una unidad superior de acción, el poder prácticamente más
fuerte, realizando así la necesaria unidad del poder del Estado”.
866
COELHO, Nuno M. M. S. Compreensão como arte, op. cit., p. 67: “A interpretação do direito é
uma constante revisão do ato fundador (ato Constituinte) que se caracteriza pelo permanente diálogo
acerca dos fundamentos da vida ético-político-jurídica. A compreensão da Constituição é a recriação
permanente das bases do viver político comum, a partir da retomada dos problemas a que o direito
responde, tal como é possível compreendê-los hoje, isto é, tal como fazem sentido tomando a nós
mesmos, hoje, como contexto”.
867
NEUMANN, Franz. O Império do direito, cit., p. 131.
868
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, cit.; RODRIGUEZ, José Rodrigo. As figuras de
perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica. Revista Prolegómenos – Derechos y
Valores, Bogotá, v. 19, n. 37, pp. 99-108 jan./jun. 2016. Tratando de deformação do direito: MÜLLER,
Friedrich. Quem é o povo?, cit., pp. 53-54. Falando em fraude à Constituição: CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo constitucional contra fraudes à Constituição, op. cit. Nesse
sentido, ainda que em uma âmbito mais restrito ao texto constitucional, MARCELO NEVES fala em
desconstitucionalização fática ou concretização desconstitucionalizante em cenários de “constituições
nominalistas”, afirmando que a “Desconstitucionalização fática apresenta-se, portanto, como forma
principal de desjuridicização no processo concretizador”: NEVES, Marcelo. Constitucionalização
simbólica e desconstitucionalização fática, op. cit. p. 324.
325
constitucionalismo que se apresenta de modo particular em cada uma das várias
identidades constitucionais – o mais importante é que na dinâmica da comunidade as
regras de decisão estabelecidas pela constituição sejam respeitadas.
A busca por um poder cada vez mais legítimo coloca-se diante da caminhada
rumo a práticas que sejam cada vez mais reflexivas do argumento último de legitimação
de uma ordem que se propõe como constitucional. Não que este possa ser tratado
como um direito natural imutável, mas, pelo menos, como um fundamento do modo
de caminhar da cultura constitucional, de desdobramento e desenvolvimento da
identidade em uma cultura constitucional que se coloca, a todo tempo, com a crítica e a
reflexão a respeito das próprias interpretações dessa premissa e identidade. É nesse
sentido que, como mencionado, os laços do constitucionalismo deixam abertas as portas
para a reconstrução da identidade constitucional em um formato que possibilita a
contínua verificação da legitimidade das normas constitucionais vigentes.
327
restrição na atuação e seu ônus argumentativo no momento de decisão. Isso porque é
essencial que, particularmente, os poderes do Estado mantenham a coerência com o
projeto colocado. Afinal, como dito, é dele que deflui a própria validade de suas
competências, sendo, assim, impreterível o respeito a esses limites de atividade para
que, em última instância, o povo respeite, endosse, implemente e possibilite a eficácia
das decisões do Estado, porque as identifica com o próprio concretizar, coerente, da
identidade constitucional.
871
Existe uma discussão importante sobre a tensão entre a supremacia dos parlamentos ou dos tribunais,
que se inicia, especialmente, no contexto anglófono, mas que chega a outros âmbitos de debate,
inclusive o brasileiro. Sobre o tema, partindo de JEREMY WALDRON, mas falando de forma interessante
e propondo um diálogo entre essas teorias e instituições: FERNANDES, Bernardo Gonçalves. A
Defence of a Broader Sense of Constitutional Dialogues Based on Jeremy Waldron’s Criticism on
Judicial Review. In: BUSTAMANTE, Thomas; GONÇALVES, Bernardo Ferreira (eds.).
Democratizing Constitutional Law: Perspectives on Legal Theory and the Legitimacy of
Constitutionalism. Suíça: Springer, 2016, pp. 147-164.
872
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O valor constitucional dos “direitos de defesa”: jurisdição e
Constituição. In: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos
contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2008, pp. 683-689, p. 689: “A legitimidade de origem, a
autoridade, a competência já não são suficientes para justificar atuação dos três poderes, particularmente
a judicatura. É imprescindível a legitimidade do exercício para dar razão a seus atos, não só razões
jurídicas, mas é necessário justificar-se ante os cidadãos que a jurisdição responde suas objeções e
reclamações através de atos objetivos e não arbitrários e caprichosos”.
873
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo, cit., p. 128
328
concretizador das promessas substantivas da ordem874. Contudo, o que parece
comumente imprescindível para qualquer dessas respostas, é que as decisões do poder
judiciário não se apresentem apenas como volutas, mas que ele atue de acordo com os
limites e previsões estabelecidas. Isto é, que o poder judiciário, por mais competências
que tenha, especialmente em um cenário de constituição dirigente e vinculação do
legislador, não ultrapasse as próprias barreiras do jurídico.
874
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, cit., pp. 52 e ss.
875
BOGDANDY, Armin von. The past and promise of doctrinal constructivism: A strategy for
responding to the challenges facing constitutional scholarship in Europe. International Journal of
Constitutional Law, v. 7, n. 3, pp. 364-400, 2009; SCHLINK, Bernhard. German constitutional culture
in transition, op. cit., p. 197: “However, a country's constitutional culture does not emerge only from its
written or unwritten constitution. Hardly less important is the way in which the constitution is dealt with
by legislation and administration, judicial decision making and legal scholarship. How legislation and
administration deal with the constitution essentially depends upon the sort of supervision to which they
are subjected by judicial decision making. How this supervising adjudication in turn deals with the
constitution, how strictly or laxly it interprets its provisions, and in what spirit it applies them essentially
depends upon how legal scholarship deals with the constitution and with judicial decision making”.
876
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e
métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Método, 2012 (eBook), p. 309: “Há, na democracia, um
espaço legítimo para que o Tribunal pratique uma espécie de ‘pedagogia constitucional’, auxiliando a
disseminar pela sociedade, por meio da autoridade da sua argumentação, o discurso constitucional
voltado para os direitos fundamentais”.
329
dizer quanto à cultura constitucional, especialmente, por ela estar no limiar entre o
jurídico e o político.
É nessa linha, por exemplo, que TERCIO SAMPAIO FERRAS JÚNIOR trabalha a
função social da dogmática jurídica878, e LÊNIO STRECK, ao falar da função da pesquisa
em Direito, aponta para sua dimensão essencialmente crítica a respeito da correção das
decisões jurisdicionais, referindo-se ao constrangimento epistemológico às decisões
judiciais pela doutrina879. Também é nessa dimensão, ainda que com abordagem
bastante diversa, que JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ vai mencionar o papel da dogmática
jurídica no “controle do soberano”880.
877
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Dogmática jurídica é conflito: a racionalidade jurídica entre sistema e
problema. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL, Flavia Portella; MACHADO, Marta
Rodriguez de Assis (org.) Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2012, pp. 21-31, p. 27.
878
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito, cit. Na obra, o autor trata de
três tipos diferentes de dogmática e suas consequentes funções sociais: dogmática analítica (pp. 218-
219), dogmática hermenêutica (quando fala da função social da hermenêutica, p. 284) e dogmática da
decisão (pp. 321-323). Especialmente com essa última aflora a questão da justificação e do fundamento.
879
STRECK, Lênio Luiz. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio: dilemas da
crise do direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 49 n. 194, pp. 07-21, abr./jun. 2012: “O
que é ‘constrangimento epistemológico’? Trata-se de uma forma de, criticamente, colocarmos em xeque
decisões que se mostram equivocadas. No fundo, é um modo de dizermos que a ‘doutrina deve voltar a
doutrinar’ e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária das decisões tribunalícias”.
880
RODRIGUEZ, José Rodrigo. A dogmática jurídica como controle do poder soberano: pesquisa
empírica e Estado de Direito. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL, Flavia Portella;
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (org.) Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade
jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 75-87.
330
O controle do poder não se restringe apenas ao âmbito das esferas institucionais
e acaba por influenciar também a própria comunidade que, em estando comprometida
com sua identidade constitucional, convive e reage à (in)coerência e (não) integridade
das decisões do Estado em relação à sua própria justificação.
331
Criar esse ambiente democrático, de modo que todo cidadão sinta-se partícipe
desse processo é estabelecer uma cultura constitucional que, de certo modo, importa na
própria efetivação de uma constituição. Até porque, se, por um lado, o que dá suporte
ao jurídico, à própria eficácia do Direito, é o Político, por outro, o Direito com o
Político não se confunde. É essencial que esses limites sejam mais firmemente
respeitados, especialmente, no que concerne ao limite do jurídico para que não se
abram os portões para a politização da justiça, o que faria dela apenas voluntas, não
mais ratio, perdendo, assim, sua razão de ser.
Ainda que seja grande a distância entre o déficit de representatividade dos órgãos
de decisão e uma situação de crise dessa representatividade que leve a uma ruptura com
a ordem, à desobediência civil ou, mesmo, a um momento revolucionário, o elidir
desses balanços retira em muito as condições de sustentação e efetivação mais adequada
de uma ordem constitucional. É nesse sentido que é válido relembrar a advertência de
GRIMM: “não há ‘oficial de justiça’ em matéria constitucional. Isso mostra que não só
constitucionalismo, mas também o controle judicial de constitucionalidade depende de
bases culturais”881.
881
GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Revista de Direito do Estado, Rio de
Janeiro, a. 01, n. 4, pp. 03-22, out/dez, 2006, p. 10.
882
POST, Robert. Foreword: Fashioning the Legal Constitution: Culture, Courts, and Law. Harvard Law
Review, v. 117, n. 4, pp. 4-112, 2003, pp. 8-9: “Of course culture comes in a myriad different guises. We
332
imediatamente vinculada à questão da validade, marco inicial e referencial do direito
positivo que lhe prevê o aparelho coercitivo, a relação e imposição do Direito como
força legítima, nunca estará totalmente dissociada da dimensão da legitimidade. O
reconhecimento da legitimidade da ordem como um todo – inclusive, do uso da força
por ela – é que permite a estabilidade mínima para sua existência, bem como, a
identificação daquela ordem normativa como projeção e projeto da própria
comunidade.
can identify, for example, a specific subset of culture that encompasses extrajudicial beliefs about the
substance of the Constitution. I shall call this subset constitutional culture. The boundary between
culture and constitutional culture is quite indistinct, because lay persons typically do not frame their
beliefs in terms that admit of ready classification. They can fervently believe that the federal government
ought to have plenary power, or that abortion is murder, without ever connecting these views to a
conclusion about the nature of the Constitution. It is useful to retain the concept of constitutional
culture, however, because the legitimacy of constitutional law depends in part upon what extrajudicial
actors explicitly believe about the Constitution”.
883
NEUMANN, Franz. The concept of Political Freedom. In: NEUMANN, Franz; KICHHEIMER,
Otto; SCHEUERMAN, William E. (ed.). The rule of Law under Siege. Berkeley: University of
California Press, 1996, pp. 195-230.
333
En cuanto se pierde la fe en la legitimidad de la existencia del Estado
concreto o del Estado como institución, puede estimarse que ha llegado
su fin, ya sea para el pueblo del Estado, ya para el correspondiente
círculo de cultura, ya incluso para toda la humanidad. En este sentido
el Estado vive de su justificación. El problema de la consagración del
Estado hay que plantearlo de nuevo, con carácter de necesidad
psicológica, para cada generación. Por este motivo, cabalmente, no
puede pasarlo por alto una teoría del Estado que tenga carácter
científico real. No constituye el único objetivo del problema de la
justificación del Estado, como se dice corrientemente, o la cuestión de
por qué hay que suportar la coacción estatal sino, en primer lugar, la de
por qué hay que ofrecer al Estado los máximos sacrificios personales y
patrimoniales: pues el Estado nace y se mantiene, en primer término,
por este sacrificio espontáneo y sólo en segundo lugar, por la coacción
suportada pasivamente884.
Nesses termos, reforça-se a tese de que, sendo a constituição a ordem jurídica do
Estado e da comunidade, ela tem por principal função ser a unidade cultural, integrante
e integradora, dos cidadãos e da comunidade. Desse modo, seu principal objetivo
normativo é, especialmente, criar uma cultura de constituição que se desdobre na
construção, desconstrução e reconstrução de uma identidade que, por sua vez, conduza-
se em referência ao reconhecimento do eu e do outro. Nesses termos, ela se caracteriza
como identidade constitucional, democrática, capaz de integrar a todos os cidadãos de
modo que estes, identificando maximamente essa identidade e esse projeto enquanto
seu, sintam-no como legítimo e, por isso, façam-no vivo e vivido, na participação no jogo
democrático, na cobrança por um Estado de Direito e dando eficácia e efetividade às
normas constitucionais em conjunto. Esta será, mesmo, a última instância de realização
de uma constituição.
884
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 277.
334
CONSIDERAÇÕES FINAIS
335
complementariedade. O poder gera Direito, do mesmo modo que o Direito gera poder.
A percepção dessa dinâmica é o elemento crucial da cultura constitucional.
A partir de Weimar ela começa a ser abordada a partir de uma nova perspectiva,
quer em razão das características da fase do constitucionalismo que ali iniciava com o
Estado Social, quer pelas respostas que começaram a se apresentar naquele contexto.
Essa conjuntura fez com que, naquele momento, se estabelecesse uma nova gramática
para a abordagem dos temas relacionados à comunidade jurídico-política, a partir da
formulação da Teoria da Constituição.
336
Ninguém incorporou melhor essa figura da crise que o principal antagonista de
KELSEN: CARL SCHMITT. Se o vienense levou ao extremo a tentativa de compreender a
experiência jurídico-política da comunidade apenas desde seu viés jurídico, construindo
uma Teoria puramente Normativa do Estado, SCHMITT fez o inverso. Partindo da
exceção e, especialmente, da decisão, formulou uma Teoria do Estado sem Direito. Da
experiência jurídico-política da comunidade, extremou a face política, no que, por vezes,
chega-se a se chamar Law as Politics, no cenário anglófono.
HELLER, por sua vez, reformula a própria concepção de uma Teoria Geral do
Estado, apontando para a necessidade de direcionar-se a lupa de análise sobre a
realidade social e sua transformação, isto é, para uma, não mais geral, Teoria do Estado.
Percebe, justamente, que o poder gera Direito e, que, ao mesmo tempo, o Direito gera
poder. Nesses termos, afirma que o Estado vive, ele mesmo, de sua justificação e
depende de alguma homogeneidade mínima para seu desenvolvimento político, sem
337
nunca abrir mão do pluralismo, pois a própria disputa democrática a respeito das
questões da comunidade é essencial para o Estado de Direito em sua vida dinâmica.
Uma segunda relacionada à leitura que cada comunidade faz dessa identidade
mais ampla. Ela se dá a partir da interpretação inicial que se realiza na sua articulação
com as demais identidades locais, a partir do marco inicial de uma decisão soberana do
poder constituinte, criando uma nova ordem de validade, uma nova legalidade. Esta
segue se desenvolvendo e renovando cotidianamente, fazendo-se cultura constitucional
na própria reafirmação de seu fundamento (identidade constitucional).
342
identidade, a partir da articulação entre constitucionalismo e a cultura a partir da qual
ele se coloca. De mesma forma, é vivida, é eficaz, em virtude da própria capacidade que
tenha de fazer essa identidade reconhecida como ordem normativa necessária pela
própria comunidade.
O Estado de Direito, mais que uma estrutura sólida e estática, mais que um
corpo monolítico que se impõe pela força, é um projeto. Para parafrasear ALAIN
SUPIOT, é uma frágil conquista de um sentido cuja crença é compartilhada por cada um
daqueles que nela acredita, uma bela e difícil construção cultural, que, para seguir viva,
tem de ser vivida através de um conjunto de vontades de todos esses que comungam
dessa mundivisão. Nesse contexto, a Constituição é um símbolo de uma identidade que
se constrói, desconstrói e reconstrói na e pela comunidade jurídico-política e que tem
como principal ambição normativa ser vivida e tornarda viva pela própria comunidade,
pela identidade renovada entre cada cidadão e essa ordem, em uma cultura
constitucional.
343
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
344
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o
princípio da dignidade da pessoa humana. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política: uma relação difícil. Lua Nova, São
Paulo, n. 61, pp. 5-24, 2004.
345
2006, Fortaleza - CE. Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. 2006.
Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/043.p
df
BERKMANA, Tomas, Schmitt v. (?) Kelsen: The Total State of Exception Posited for
the Total Regulation of Life. Baltic Journal of Law & Politics, v. 3, n. 2, pp. 98-118,
2010. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1776453
BLOCH, Ernst. Upright Carriage, Concrete Utopia. In: BLOCH, Ernst. On Marx.
Tradução John Maxwell. Nova York: Herder and Herder, 1971, pp. 159-173.
346
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo. Un concepto
limíte del derecho constitucional. In: BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios
sobre el Estado de Derecho y la democracia. Tradução Rafael de Agapito Serrano.
Madrid: Editorial Trotta, 2000, pp. 159-180.
BOGDANDY, Armin von. The European Constitution and the European Identity: text
and subtext of the treaty establishing a Constitution for Europe. I-CON, Oxford/Nova
York, v. 3, n. 2 & 3 (edição especial), mai. 2005, pp. 295-315.
BROOK, Thom. Between Natural Law and Legal Positivism. Georgia State University
Law Review, Atlanta, n. 23, n.3, pp. 513-560, 2007.
BRUGGER, Winfried. Commuinitarianism as the social and legal theory behind the
German Constitution. I-CON, Oxford/Nova York, v. 2, n. 3, jul. 2004, pp. 431-460.
347
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Comment on Petroski—On MacCormick’s Post-
Positivism. German Law Journal, v. 12, n 02, pp. 693-728, 2011. Disponível em:
http://www.germanlawjournal.com/index.php?pageID=11&artID=1339
CALDEIRA, Gregory; GIBSON, James. The Etiology of Public Support for the
Supreme Court. American Journal of Political Science, v. 36, n. 3, pp. 635-664, agosto
1992.
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law:
the theory and practice of Weimar constitutionalism. Durham: Duke University Press,
1997 (eBook)
CALDWELL, Peter. National socialism and constitutional law: Carl Schmitt, Otto
Koellreutter and the debate over de nature of the Nazi State, 1933-1937. Nova York,
Cardozo Law Review, v. 16, pp. 399-427, 1994.
348
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
7ed. Coimbra: Almedina, 2000.
349
CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2006.
CORREAS, Oscar. Teoria sociológica del Derecho y Sociologia Jurídica: parte II.
Crítica Jurídica: Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, n. 8, pp. 73-
108, jan.-jun. 1988, pp. 92-95. Disponível em:
http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/critica/cont/8/teo/teo6.pdf
COSTA, Piero. O Estado de Direito: uma introdução histórica. In: ZOLO, Danilo;
COSTA, Piero (org.)O Estado de Direito: história, teoria e crítica. Tradução Carlos
Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 95-198.
350
COTTERRELL, Roger. Comparative Law and Legal Culture. In: ZIMMERMANN,
Reinhard; REIMANN, Mathias (eds.). Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford:
Oxford University Press, 2006, pp. 709-37.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 29 ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
DUBBER, Markus Dirk. The sense of justice: empathy in Law and punishment. Nova
York: New York University Press, 2006.
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? principles for a new political debate.
Princeton: Princeton University Press, 2008.
351
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução
Jussara Simões. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2005.
DYZENHAUS, David. Hermann Heller and the legitimacy of legality. Oxford Journal
of Legal Studies, Oxford, v. 16, n. 40, pp. 641-666, 1996.
DYZENHAUS, David. Holmes and Carl Schmitt: An Unlikely Pair. Brooklyn Law
Review, Nova York, v. 63, pp. 165-188, 1997.
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and
Hermann Heller in Weimar. Oxford: Oxford University Press, 1997.
EAGLETON, Terry. A ideia de Cultura. Tradução Sandra Castello Branco. 2 ed. São
Paulo: Editora UNESP, 2011.
ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos
XIX e XX. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty. New Haven Yale University Press, 1928.
352
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Cultura constitucional & revisões constitucionais.
International Studies on Law and Education, n. 8, pp. 5-16, maio/agosto 2011.
Disponível em: http://www.hottopos.com/isle8/05-16PFC.pdf
353
GEERTZ, Clifford. O crescimento da cultura e a evolução da mente. In: GEERTZ,
Clifford. A interpretação das culturas. Tradução Rio de Janeiro: LTC, 2008, pp. pp. 41-
61.
GIBSON, James L. Judicial Institutions. In: RHODES, R. A. W.; BINDER, Sarah A.;
ROCHMAN, Bert A. (eds.). The Oxford Handbook of Political Institutions. Oxford:
Oxford University Press, 2006, pp. 514-534.
354
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution. International Journal of Constitutional
Law, Nova York, v. 3, n. 2-3, pp. 193-208, mai. 2005.
355
HÄBERLE, Peter. Palabras clave para el constitucionalismo de hoy - Una perspectiva
alemana. THĒMIS, Lima, n. 67, pp. 15-22, 2015.
356
HELLER, Herman. Libertad y forma en la constitución del imperio. In: HELLER,
Hermann. El sentido de la política y otros ensayos. Tradução Maximiliano Hernández
Marcos e Encarnación Vela Sánchez. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 61-67.
HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Tradução Luís Tobio. México: FCE, 1998.
HENIG, Ruth. The Weimar Republic 1919-1933. Londres: Taylor & Francis e-Library,
2002.
HERRERA, Carlos Miguel. Schmitt, Kelsen y liberalismo. Doxa, Alicante, n. 21. fasc.
II, pp. 201-218, 1998.
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional. In: BENDA, Ernst et. al.
Manual de derecho constitucional. Tradução de Antonio López Pina 2 ed. Madrid:
Marcial Pons, 2001, pp. 1-15.
HORTA, José Luiz Borges et al. A era pós-ideologias e suas ameaças à política e ao
Estado de Direito. Confluências, Niterói, v. 14, n. 2., pp. 120-133, dez. 2012.
357
HORTA, José Luiz Borges. Direito Constitucional da Educação. Belo Horizonte:
Decálogo, 2007.
HORTA, José Luiz Borges. Hegel e o Estado de Direito. In: SALGADO, Joaquim
Carlos; HORTA, José Luiz Borges (coord.). Hegel, Liberdade e Estado. Belo
Horizonte: Forum, 2010, pp. 247-264.
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2012.
HORTA, José Luiz Borges. Ratio juris, ratio potestatis; breve abordagem da missão e
das perspectivas acadêmicas da filosofia do Direito e do Estado. Revista da Faculdade
de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 49, pp. 121-132, jul./dez. 2006.
HORTA, José Luiz Borges; RAMOS, Marcelo Maciel. Entre as veredas da cultura e da
civilização. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, a. 58, n. 233, pp. 248-279, jul./dez.
2009.
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience. In: JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (ed.).
Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002, pp. 1-
39.
358
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt. Tradução E. B. Ashton. 2 ed. Nova
York: Fordham University Press, 2000.
JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Tradução Fernado de los Rios. México:
FCE, 2000.
KAHN, Paul W. The cultural study of Law: reconstructing legal scholarship. Chicago:
University of Chicago Press, 1999
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução Marylene
Pinto Michael. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
KELSEN, Hans. A Democracia. Tradução Ivone Castilho Benedetti et al. 2ed. São
Paulo, Martins Fontes, 2000.
KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da Constituição? In: KELSEN, Hans.
Jurisdição Constitucional. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 237-298.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges. 3
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
359
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 7 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
KLEIN, Claus. Weimar. Tradução Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva,
1995.
KOLB, Eberhard. The Weimar Republic. Tradução P. S. Falla and R. J. Park. 2 ed.
Londres: Routledge Taylor and Francis Goup, 2004.
LEAMAN, Jeremy. The decontamination of German history: Jürgen Habermas and the
‘Historikerstreit’ in West Germany. Economy and Society, v. 17, n. 4, pp. 518-520,
1998.
360
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho
político de la República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp. 259-295,
2008. Disponível em: http://hc.rediris.es/09/index.html
LIMA VAZ, Henrique. Antropologia filosófica I. 4 ed. São Paulo: Loyola, 1998.
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. 4 ed. São Paulo: Loyola,
2004.
LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça: filosofar do agir humano. Síntese Nova Fase,
Belo Horizonte, v. 23, n. 75, pp. 437-453, 1996.
LOEWENSTEIN, Karl. Political power and the governamental process. 2 ed. Chicago:
Chicago University Press, 1965.
361
particular reference to the new constitutions of Western Europe. 2 ed. Nova York: New
York University Press, 1955, pp. 191-224.
LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 7 ed.
São Paulo, 1991.
362
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito. 2 ed.
São Paulo: Saraiva, 2011.
MAIA, Paulo Sávio Nogueira Peixoto. Forma e unidade como condições de uma
ciência pura: a influência do neokantismo de Marburgo no ‘primeiro’ Kelsen. Sequência
(UFSC), Florianópolis, v. 60, p. 195-224, 2010.
363
MAZZONE, Jason. The creation of a constitutional culture. Tulsa Law Review, n. 40,
n. 4, pp. 671-698, 2004.
MEZEY, Naomi. Law as culture. The Yale Journal of Law & the Humanities, New
Haven, v. 13, p.35-67, 2001. Disponível em:
http://scholarship.law.georgetown.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1310&context=facpub
MONEREO PÉREZ, José Luiz. La defense del Estado Social de Derecho: la teoría
política de Hermann Heller. Barcelona: El Viejo Topo, 2009.
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo. In: MORAIS, Carlos
Blanco de; PEREIRA COUTINHO, Luís Pedro (org.)Carl Schmitt Revisitado. Lisboa:
Instituto de Ciências Jurídico-Político, 2014, pp. 28-39.
MUREINIK, Etienne. A bridge to where? Introducing the interim Bill of Righs. South
African Journal On Human Rights, Johannesburg, n. 10, pp. 31-48, 1994.
NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of National Socialism, 1933-
1944. Chicago: Ivan R. Dee, 2009.
NEUMANN, Franz L. The decay of German democracy. In: NEUMANN, Franz L.;
KIRCHHIMER, Otto; SCHEURMAN, William E. (ed.). The Rule of Law under siege.
University of California Press: Berkeley, 1996, pp. 29-43.
365
NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática:
mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 33 n. 132 , pp. 321-330, out./dez. 1996.
NIEMEYER, Gerhart. Prólogo. In: HELLER, Herman. Teoría del Estado. Tradução
Luis Tobío. México: FCE, 1998.
PETROSKI, Karen. Is post-positivism possible? German Law Journal, v. l2, n. 02, 663-
692, 2011, Disponível em:
http://www.germanlawjournal.com/index.php?pageID=11&artID=1338
RAZ, Joseph, The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism.
Oxford Legal Studies Research Paper n. 15, 2007, pp. 17-36. Disponível em:
http://ssrn.com/abstract=999873.
REALE, Miguel. Cinco temas do Culturalismo. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000
REALE, Miguel. Direito e legitimidade. In: REALE, Miguel. Nova fase do Direito
Moderno. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, pp. 65-69.
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?. Tradução Ana Kuschnir e Rosáio González Sola.
Buenos Aires: Hidra, 2010.
367
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject: selfhood, citizenship,
culture and community. Nova York: Routledge, 2010.
SALDANHA, Nelson. Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.
SALGADO, Joaquim Carlos. Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996.
368
SALGADO, Joaquim Carlos. O Espírito do Ocidente, ou a razão como medida - II- A
Razão Teorética como medida: ciência e verdade. Cadernos de Pós-Graduação em
Direito: estudos e documentos de trabalho/Comissão de Pós-Graduação da Faculdade
de Direito da USP, São Paulo, v. 9, p. 23-38, 2012.
SALGADO, Karine. A filosofia da dignidade humana: por que a essência não chegou
ao conceito? Belo Horizonte: Mandamentos, 2011.
SANDEL, Michael. Liberalism and the limits of Justice. 2 ed. Cambridge, Cambridge
University Press, 1998.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2009.
SCHEUERMAN, William E. Between the norm and the exception: the Frankfurt
School and the Rule of Law. Cambridge: The MIT Press, 1994.
369
SCHLINK, Bernhard. German constitutional culture in transition. In: ROSENFELD,
Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: Theoretical
Perspectives. Durham: Duke University Press, 1994, pp. 197-222.
SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Tradução: Tito Lívio Cruz Romão. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del
Rey, 2006.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7 ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
370
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30 ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
371
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1979). In: STERNBERGER,
Dolf. Patriotismo Constitucional. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad
Externado de Colombia, 2001, pp. 85-89.
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica
da construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
372
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito.
Tradução Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.
VEGA GARCÍA, Pedro de. Apuntes para una historia de las doctrinas constitucionales
del siglo XX. In: VEGA GARCÍA, Pedro de et al. La ciencia del derecho durante el
siglo XX. México: UNAM, 1998, pp. 3-44.
VERDROSS, Alfred. La filosofía del derecho del mundo occidental: visión panorámica
de sus fundamentos y principales problemas. Tradução Mario de La Cueva. 2 ed.
México: UNAM, 1983.
373
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”?. In: HENSEL, Silke et al.
Constitutional Cultures: On the Concept and Representation of Constitutions in the
Atlantic World. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012, pp. 21-
42.
ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: ZOLO, Danilo; COSTA,
Piero (org.). O Estado de Direito: história, teoria e crítica. Tradução Carlos Alberto
Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 3-94.
374
RESUMO
Palavras
Palavras Chave:
Chave Cultutra Constitucional – Constitucionalismo – Identidade
Constitucional – Cultura de Constituição – Legitimidade – Validade – Eficácia
375
ABSTRACT
The Theory of Constitution appears in the Weimar Constitution context, with the
debates of the 1920’s, and early 1930’s, about the Theory of the State, the Law of
the State and the German Constitution itself. The very start was the Kelsenian
formulation that was followed by different answers including those ones
characterized by a dialectical perspective of the constitutional phenomenon, which
are very important to the comprehension of the democratic Rechtsstaat. With
them, there were a special attention to the issues of legitimacy, validity and efficacy
of Constitution, especially, to the relation between them. The approach to the
constitutional experience since the key constitutional culture intents to evidence
these relations from three basic dimensions: the identity of the constitutionalism,
the constitutional identity and the culture of constitution. With them it is assumed
that an order intended as constitutional bases its own legitimacy on a particular
Western identity very identified with constitutionalism, which demands the
articulation between local identities and cultures, conforming and building a very
new and unique reading: a new constitutional identity. This one is never
completely ready or finished, it becomes alive at the very same time that it is lived,
constructed, deconstructed and reconstructed in and by the juridical-political
community. An identity that reflects this collectivity at the same time it proposes
itself as a normative project to it, demanding tasks and transformations to the
community. Therefore, the possibility of such tasks has as central topic the
consolidation and the reaffirmation of a culture of constitution, linked to these two
identities, the broader one of the constitutionalism and the narrower one of a
constitutional identity, which is the internal guarantee of efficacy and effectiveness
of a Constitution. Hence, a constitutional order has its effectiveness rather linked
to the strengthening and often reconciliation of its legitimacy in the community. In
these terms it is possible to affirm that the Constitution stands as a cultural unit,
integrant and integrated, of the community and its citizens.
Keywords:
Keywords: Constitutional Culture – Constitutionalism – Constitutional Identity –
Culture of Constitution – Legitimacy – Validity - Efficacy
376