394 - Cultura Constitucional

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 394

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE DIREITO

RAONI MACEDO BIELSCHOWSKY

CULTURA CONSTITUCIONAL

Belo Horizonte
2016
Raoni Macedo Bielschowsky

CULTURA CONSTITUCIONAL

Tese de doutorado apresentada por RAONI


MACEDO BIELSCHOWSKY ao Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial para obtenção do grau de doutorado
sob orientação do Prof. Dr. José Luiz
Borges Horta e coorientação do Prof. Dr.
Nuno M. M. S. Coelho [Pesquisa
desenvolvida junto à linha de pesquisa
Estado, Razão e História e ao projeto
coletivo Macrofilosofia, Direito e Estado
com financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES)].

Belo Horizonte
2016
Bielschowsky, Raoni Macedo [1985]
B587c Cultura constitucional / Raoni Macedo Bielschowsky.
- 2016.

Orientador: José Luiz Borges Horta


Co-orientador: Nuno M. M. S. Coelho
Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Direito.

1. Direito – Filosofia - Teses 2. Direito constitucional – Teses


3. Teoria da constituição I.Título

CDU(1976) 340.12: 342.4

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Juliana Moreira Pinto CRB


6/1178
A presente tese foi defendida perante banca examinadora nesta data tendo
sido .

Belo Horizonte, de de 2016.


Aos meus pais, Gorete e Beto,
por tudo e mais um pouco.
AGRADECIMENTOS

Não raro se alega que os trabalhos de pesquisa, especialmente as dissertações de


mestrado e teses de doutorado, são um caminho solitário. Talvez o seja mesmo.
Bernardo Soares, um dos muitos que foi PESSOA, afirma, inclusive, que a liberdade é a
própria possibilidade do isolamento e, até por isso, parafraseando-o, permito-me dizer
que as etapas de formação de certa forma exigem que, de algum modo, atravessemos a
dor de nossa própria solidão.

Entretanto, PESSOA não deixa de lembrar que o poeta é um fingidor e por mais
solitários que sejam os caminhos, é de se saber que a solidão dessas empreitadas é
daquelas que só conseguimos cruzar com o suporte e apoio de pessoas queridas que,
mais que qualquer outra coisa, entendem desprendidamente essa passagem. Algumas,
por experiência, sabem bem como é difícil buscar por essa trajetória tão particular,
outras, no entanto, apenas compreendem que temos de percorrê-la e nos dão algum
amparo e aconchego, sem mais perguntas ou demandas. A todas elas só resta agradecer.

Faço-o, primeiro, a meu orientador o Professor Doutor José Luiz Borges Horta,
que tendo me conhecido ainda como aluno do primeiro ano de graduação, sempre me
instigou a pensar, me incentivou a seguir e me mostrou que posso ter meu próprio curso.
Acredito que essas são, possivelmente, três das mais importantes ações de um Professor
em nossas vidas, todas elas relacionadas ao permitir que nos formemos, que nos
conheçamos a nós mesmos, que nos tornemos aquilo que somos. Particularmente quanto
ao período de doutorado, agradeço por ter me recebido abrindo as portas da
Universidade Federal de Minas Gerais e, também, por ter me permitido ser livre em
minha pesquisa.

Agradeço, ainda, a alguns Professores que tive a felicidade de conviver e com eles
aprender no âmbito institucional. Destaco os Professores Joaquim Carlos Salgado,
Gonçal Mayos, Marcelo Cattoni de Oliveira, Adriana Campos, Karine Salgado, Renato
Cardoso, Rodolfo Viana Pereira e, muito especialmente, com admiração e amizade,
Ricardo Salgado.

Agradeço, também, ao Professor Doutor Nuno Manuel Morgadinho dos Santos


Coelho, da Universidade de São Paulo, por ter me honrado com sua coorientação.

Não me esqueço da amizade do Professor Arthur J. Almeida Diniz, ou apenas,


Arthur, como prefere, por quem tenho muito carinho e admiração, em especial, pela
simplicidade, por seu desprendimento, por ser daquelas pessoas que sabe muito mais do
que faz questão que pensem que sabe, por sempre achar que o novo tem muito a dizer.

Também foram importantes os funcionários da UFMG, notadamente, os técnicos


do Programa de Pós-Graduação em Direito com quem convivi como aluno e como
representante discente no colegiado de Pós-Graduação. Registro meu obrigado a Maria
Luiza Aguiar, Patrícia Salgado e Wellerson Roma.
Ainda foram e sempre serão importantíssimos os alunos de graduação com quem
convivi e trabalhei em meus semestres de estágio docência, os do bacharelado em
Relações Econômicas Internacionais, os do bacharelado em Direito e, em especial, aos
do bacharelado em Ciências do Estado.

Agradeço à Fundação Capes e ao Ministério da Educação (no âmbito do


programa REUNI) pelo financiamento da pesquisa e pela oportunidade de formação
como docente e como investigador.

O doutorado nas Minas Gerais também me trouxe e consolidou uma porção de


amizades que levarei para a vida toda. Elas me ajudaram a conviver e, mesmo, a
contornar a solidão de que falei. Algumas delas vieram de outros tempos, outros lugares,
mas permaneceram e se confirmaram nesses anos. Outras surgiram na vida em Belo
Horizonte, na UFMG e mesmo fora dela, de modo que se tornaram muito importantes
para mim.

Assim, meu enorme agradecimento a Gabriel Lago de Sousa Barroso, Paulo


César de Oliveira, Thiago Simim, José de Magalhães Ambrósio, Ricardo Pleti, Adamo
Alves, Guilherme Figueiredo, Wagner Artur Cabral, Henrique Souza, Mariana Avelar,
Laís Lópes, Lucas Anjos, Victor Hugo Boson, Paulo Roberto Cardoso, Vinícius Balestra,
Pedro Feitoza, Paola Gersztein, Tiago Zanella, Leonardo Antonacci, Ingrid Oliveira de
Almeida. Agradeço, ainda, a Marlene, Devanir, Ana Paula e Regina pelo carinho do dia a
dia.

Muito obrigado, também, a Fábio Queiroz, Gláucia Delboni, Guilherme Deckers,


Isaac Netto, Marcelo Ramos, Maria Clara dos Santos (Cacau), Pedro Nicoli e Tayara
Lemos, que sempre acolheram a mim e a alguns outros potiguares de forma universal,
com carinho e suporte, ajudando a aliviar as saudades de casa.

Há ainda dois amigos que desde Natal e de São Paulo estiveram muito presentes
nesse caminhar. Luiz Felipe Seixas pelas prosas e pelo compartilhar permanente. E, de
maneira especial, a meu irmão Leo Arcoverde que sempre me tira o peso das coisas e
muitas vezes acredita em mim mais do que eu mesmo consigo fazê-lo.

Aos antibianos da quase-República que foi minha casa, agradeço a amizade de


sempre. A Pedro Henrique Cordeiro Lima, o Fundador, amigo de décadas e histórias,
quem primeiro me recebeu em Belo Horizonte. A João Paulo Medeiros de Araújo, o
Anarquista, querido amigo que primeiro me acolheu e me concedeu cidadania. A
Rodrigo Calixto Mello, o Tranquilo, que comigo chegou para dar paz ao Antibes. A
Marcelo Giacomini, o Ancião, com quem muito aprendi e compartilhei cafés, conversas
e amizade. A Felipe Castro, o Intrépido, amigo de outras tantas décadas e histórias, quem
por último me recebeu com o abraço e as risadas de sempre. E a Pablo Leurquin, o
Fraterno, um irmão que a vida me deu, com quem compartilho boa parte das minhas
angustias, esperanças, dores e conquistas, acadêmicas ou não. Muito obrigado!

Desde casa, se Dora significa dádiva, na minha vida tenho pelo menos duas, Dora
e Dorinha. A primeira, a Rainha do Frevo e do (Mara)catú, Dora Macedo Bielschowsky,
minha irmã mais do que querida, que me é tão importante e que tanto amo! A segunda é
Maria das Dores do Nascimento Gomes, Tia Dodora, que na dureza da vida é, sempre,
só riso e sorriso, só carinho e alegria.

A Gabriela Marinho, por mais que tente, não tenho como agradecer o suficiente
pela grande generosidade, pelo carinho, pela amizade, pela cumplicidade. Por ter me
suportado quando nem mesmo eu já me suportava. Por ser só incentivo e aconchego.
Por um amor que adoça a vida como Alfenim!

E, por fim, não posso deixar de falar de meus primeiros, melhores e maiores
professores. Minha mãe, Gorete Ribeiro de Macedo, e meu pai, Roberto Hugo
Bielschowsky. Curioso que minha irmã e eu nascemos com eles já Professores, os vimos
tornarem-se doutores e viverem a Universidade, portanto, desde muito cedo sempre
soubemos o quão importante isso foi para eles e para todos nós. Contudo, a maior
certeza que temos em tudo isso é de que suas vidas sempre tiveram como prioridade... as
nossas. A eles, não há palavras, não há como agradecer, não há o que fazer, até porque
provavelmente eles nem mesmo permitiram qualquer retribuição. Só espero um dia ser
algo parecido com o que eles são como professores, como pais e como pessoas.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 1
1. CULTURA, POLÍTICA E DIREITO ............................................................................... 4
2. DIMENSÕES DA CULTURA CONSTITUCIONAL ....................................................... 10
3. PLANO DE TRABALHO ............................................................................................ 15

PARTE I - PASSADO

CAPÍTULO 1 - DO DIREITO DO ESTADO À TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:


ALGUNS ANTECEDENTES PARA COMPREENDER A LUTA PELO MÉTODO DE
WEIMAR ................................................................................................... 23
1.1. Cenário juspublicista alemão de fins do século XIX início do século XX ........ 32
1.2. República de Weimar .......................................................................................... 57

CAPÍTULO 2 - O NASCIMENTO DA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO: O DIREITO


SEM ESTADO OU O ESTADO SEM DIREITO ............................................... 67
2.1. HANS KELSEN ....................................................................................................... 73
2.2. CARL SCHMITT ..................................................................................................... 87

CAPÍTULO 3 - O NASCIMENTO DA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:


CONCEPÇÕES DIALÉTICAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL .................... 106
3.1. RUDOLF SMEND ................................................................................................. 108
3.2. HERMANN HELLER ............................................................................................ 116

PARTE II - PRESENTE

CAPÍTULO 4 - NORMALIDADE E NORMATIVIDADE: RELAÇÃO DESDE UMA


TEORIA DO DIREITO ............................................................................... 139
4.1. Algo de Teoria do Direito ................................................................................. 142
4.2. Onde mora a Legitimidade ................................................................................ 155
CAPÍTULO 5 - DA CONSTITUIÇÃO COMO PRODUTO DE UMA CULTURA:
LEGITIMIDADE À VALIDADE................................................................... 171
5.1. Constituição como produto de uma cultura ..................................................... 177
5.2. Uma aproximação à questão da soberania........................................................ 189

CAPÍTULO 6 - DO CONSTITUCIONALISMO À IDENTIDADE


CONSTITUCIONAL: O QUE CONSTITUI O PODER CONSTITUINTE ........... 203
6.1. A questão do Poder Constituinte ...................................................................... 204
6.2. Da Identidade do Constitucionalismo à Identidade Constitucional ................ 220

PARTE III - FUTURO

CAPÍTULO 7 - A CONSTITUIÇÃO ENTRE A UNIDADE POLITICA E O


ORDENAMENTO JURÍDICO ...................................................................... 229
7.1. Criação e manutenção do ordenamento jurídico ............................................. 237
7.2. Formação da unidade política: integração pela Constituição ........................... 246
7.3. Configuração social das condições de vida: ordenamento jurídico fundamental
do Estado e da comunidade ..................................................................................... 249

CAPÍTULO 8 - GARANTIA INTERNA DA CONSTITUIÇÃO: A CULTURA DA


CULTURA CONSTITUCIONAL.................................................................. 260
8.1. Vontade de Constituição .................................................................................... 262
8.2. Sentimento Constitucional ................................................................................. 266
8.3. Patriotismo Constitucional ................................................................................. 279

CAPÍTULO 9 - CULTURA DE CONSTITUIÇÃO: FORÇA NORMATIVA,


LEGITIMIDADE E EFICÁCIA ...................................................................... 296
9.1. Identidade Constitucional e Cultura de Constituição ....................................... 305
9.2. Pedagogia Constitucional ................................................................................... 312
9.3. Cultura Constitucional, Cultura de Constituição e lealdade institucional ........ 323
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 335

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 344

RESUMO.................................................................................................. 375

ABSTRACT .............................................................................................. 376


O PÃO DO POVO

A justiça é o pão do povo.


Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante
O resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver logo tudo em abundância.
Alimentado do pão da justiça
Pode ser feito o trabalho
(...) De que resulta a abundância.

Uma vez que o conformismo Como é necessário o pão diário


Faz crescer o egoísmo É necessária a justiça diária.
E a injustiça aumentar
Em favor do bem comum Sim, mesmo várias vezes ao dia.
É dever de cada um De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
Pelos direitos lutar No trabalho que é prazer.
Nos tempos duros e nos felizes.
Por isso vamos lutar O povo necessita do pão diário
Nós vamos reivindicar Da justiça, bastante e saudável.
O direito e a liberdade
Procurando em cada irmão Sendo o pão da justiça tão importante
Justiça, paz e união Quem, amigos, deve prepará-lo?
Amor e fraternidade
Quem prepara o outro pão?
Somente o amor é capaz
E dentro de um país faz Assim como o outro pão
Um só povo bem unido Deve o pão da justiça
Um povo que gozará Ser preparado pelo povo.
Porque assim já não há
Opressor nem oprimido Bastante, saudável, diário.

PATATIVA DO ASSARÉ BERTOLD BRECHT


INTRODUÇÃO

1
A cultura é o que resta depois de se ter esquecido tudo

Qual o sentido de uma Constituição? Qual o conceito de Constituição?


Quais as possibilidades de realização de uma Constituição? São essas três das
questões mais importantes postas pela nossa cultura, na nossa cultura e à nossa
cultura jurídico-política. Elas mesmas estão, em boa medida, relacionadas às
questões da legitimidade, da validade e da eficácia da Constituição. Pretender
respondê-las de forma definitiva, sem dúvida, seria uma causa, pelo menos,
pretensiosa, para não dizer impossível. Essa advertência aprofunda-se quando se
realiza que a própria mundividência que está inerente a este trabalho e o ponto de
partida epistemológico dela decorrente nos impedem de, mesmo, pretender
intentar respostas definitivas a questões como essas.

Nesse sentido, é preciso advertir, com HERMANN HELLER, que “todo


conocimiento sobre el Estado tiene que partir del supuesto de que la vida estatal
incluye siempre al que investiga; éste pertenece a ella de un modo existencial y no
puede nunca abandonarla”2. Neste caso, essa implicação parece-nos ir além, pois,

1
Essa frase é, indistintamente, atribuída a diversas personalidades, por vezes à escritora sueca
SELMA LAGERLOF (Prêmio Nobel de Literatura de 1909), por vezes ao escritor francês ÉMILE
HENRIOT e, ainda, ao político ÉDOUARD HERRIOT (primeiro-ministro da França por três vezes
entre 1924-1932). MIGUEL REALE, por sua vez, a atribui ao dramaturgo franco-romeno EUGÈNE
IONESCO.
2
HELLER, Hermann. Teoría del Estado. México: FCE, 1998, p. 48.

1
especialmente quanto ao Direito Constitucional e à perspectiva metodológica que
parece ser-lhe própria, é de se reconhecer que não é, exatamente, possível uma
abordagem “neutra”. Isso porque se trata, ele, de objeto e campo de investigação,
por excelência, jurídico-político, portanto, que pressupõe em sua análise a
subjacência e, mesmo, explicitação de valores e perspectivas quanto à
comunidade3. Também por isso, o objetivo de apresentar respostas pretensamente
únicas e definitivas não poderia ser exatamente o tom desta abordagem. Apesar
disso, naturalmente, almeja-se, em alguma medida, trilhar caminhos de
aproximação a (algumas) respostas a essas três primeiras indagações, relacionadas
ao fundamento, à validade e à eficácia do Direito Constitucional4.

Assim sendo, inicialmente pode-se identificar o objetivo principal desta tese


com o aproximar-se da relação dialética existente entre essas três dimensões do
fenômeno constitucional, na sequência, postulando que a garantia da força
normativa da ordem constitucional depende da integração dialética – integrante e
integradora – do cidadão na unidade cultural que é a Constituição. Para tanto,
nesta tentativa de compreensão, pretende-se articular os contornos característicos
da chave cultura constitucional.

O conceito de cultura constitucional é formado por dois termos que são,


eles mesmos, bastante polissêmicos e complexos. Tratar de cultura é abordar das
questões relacionadas ao humano, em sua perspectiva antropológica, linguística,

3
OTERO, Paulo. Instituições políticas e Constitucionais I. Coimbra: Almedina, 2007, p. 16: “A
perspectiva metodológica de estudo do Direito Constitucional nunca é axiologicamente neutra,
antes tem sempre subjacente e revela na sua elaboração científica uma determinada pressuposição
de valores: o Direito Constitucional é o sector da ciência jurídica mais ideologicamente
comprometido”.
4
Essa tríade segue, de certa forma, uma recorrente estrutura tripartite comum à Teoria do
Direito, identificadas por MIGUEL REALE com os termos vigência, eficácia e fundamento (norma,
fato e valor), REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
Ela é vista, também, em BOBBIO como validade, justiça e eficácia: BOBBIO, Norberto. Teoria
da Norma Jurídica. 3 ed. Bauru: Edipro, 2005, pp. 45 e ss. Ou, ainda, em ALEXY como
legalidade conforme o ordenamento, eficácia social e correção material: ALEXY, Robert.
Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 15. Vale o destaque que,
apesar da tríade ser recorrente, ela não é necessária e o tratamento dado à relação entre essas três
dimensões varia muito de autor para autor. Em BOBBIO, por exemplo, essas esferas são um tanto
mais estanques e individualizadas; o mesmo não vale para a compreensão realeana que entende
por uma dialética entre essas dimensões, o que parece mais capaz de compreender a
complexidade do fenômeno jurídico.

2
filosófica, social, existencial. Falar de Constituição, por sua vez, é dizer da forma
jurídico-política mais amplamente difundida (ou, ao menos, pretendida), entre os
Estados na contemporaneidade, quanto à organização do político, ao quadro de
instituições, ao ordenamento jurídico, mas, especialmente, quanto ao discurso de
legitimação do poder estatal.

De todo modo, é importante ter-se em conta que Cultura e Direito se


implicam e, nesse sentido, haverá, inclusive, quem trate do “Direito como
Cultura” e, mesmo, da “Cultura como Direito”5. TOBIAS BARRETO, por sua vez,
poeticamente definirá que “O Direito não é filho do céu. É um produto cultural e
histórico da evolução humana”6 e MIGUEL REALE, ao seu modo, definirá o Direito
como força cultural.7

De fato, todo Direito é expoente de uma cultura, expressando de modo


institucionalizado certos valores e mundividências que são construídos e
compartilhados em determinada comunidade política, em normas, símbolos,
formas e conteúdos próprios. Essa relação fica ainda mais clara quando, no locus
constitucional, aproximam-se e, até, tocam-se, as questões relacionadas à validade
e à legitimidade do Direito e do poder. É no âmbito constitucional que Direito e
Política aproximam-se de maneira indelével, em simultânea relação de tensão e
complementariedade.

Falar em legitimidade é falar em justificação que se coloca em referência,


semântica e simbólica, a uma rede de significados e valores que são, ao mesmo

5
MEZEY, Naomi. Law as culture. The Yale Journal of Law & the Humanities, New Haven, v. 13,
p.35-67, 2001, p. 55: “law as culture might mean emphasizing the mutuality and endless recycling
between formal legal meaning-making and the signifying practices of culture, demonstrating that,
despite their denials and antagonisms, these processes are always interdependent”. Apesar de a
perspectiva ser interessante, ela acaba por avançar sobre um debate bastante direcionado ao
contexto norteamericano.
6
BARRETO DE MENEZES, Tobias. "Idéia do Direito" — Discurso proferido em colação de
grau na Faculdade de recife. In: SOUSA, Carlos Aurélio Mota de (org.). Antologia de famosos
discursos brasileiros. São Paulo: Logos, 1957, pp. 92-93. A passagem completa, na verdade, é ela
inteira muito bela: “É mister bater, bater cem vêzes, e cem vêzes repetir: o direito não é um filho
do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade. Serpens
nisi serpentem comederit, non fit draco, a serpe que não devora a serpe, não se faz dragão; a
fôrça que não vence a fôrça, não se faz direito; o direito é a força que matou a própria força”.
7
REALE, Miguel. Direito e Cultura. In: REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 3
ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 292-296.

3
tempo, informados e construídos na cultura e que pretendem expressar o sentido
de uma ordem justa8. Nessa medida, é importante ter-se em conta a politicidade da
Cultura, uma vez que ela é criação humana, projeto de mundo e de vida boa de
uma determinada comunidade, construída na história.

Assim sendo, o conceito de cultura, ainda que complexo e amplo, é


inevitável para conhecer da experiência humana, sobretudo, da experiência do
humano em comunidade. Nesse sentido, a expressão cultura constitucional
aparece na literatura com uma significativa variedade de definições. Nesta
introdução, buscar-se-á apresentar um quadro inicial dos conceitos possíveis à
cultura constitucional, que serão mais detidamente trabalhados adiante e, por fim,
um plano de trabalho geral do texto.

1. Cultura, Política e Direito

O gênero humano é espécie cultural por antonomásia9. É dependente, em


sua existência e em sua qualificação enquanto humano, de uma rede de
significados, símbolos e valores herdada e construída de forma dinâmica e
dialética, que dá sentido a si e ao mundo que o rodeia e do qual faz parte10. O

8
REALE, Miguel. Direito e Cultura, op. cit. p. 292: “O Direito, sob qualquer prisma que se
considere, é sempre uma expressão de ordem, mas de ordem a que é inerente uma
intencionalidade: a ser de ordem justa”.
9
MAYOS SOLSONA, Gonçal. Prologo - Cultura, Historia y Estado: pensadores en clave
macrofilosófica. In: MAYOS SOLSONA, Gonçal; COELHO, Saulo Pinto; GARCÍA
COLLADO, Francis (eds.). Cultura, historia y Estado: pensadores en clave macrofilosófica.
Barcelona: La Busca, 2013, pp. 7-24, p. 8: “‘Cultura’ es una palabra-mundo de máxima amplitud
pues no debemos olvidar que el género humano es claramente la especie cultural, lingüística,
simbólica por antonomasia. Todo en los humanos – incluso la naturaleza, la physis o su propia
vida – se da en un marco cultural, lingüístico, simbólico. Por tanto consideramos que la ‘cultura’
lo incluye en cierta manera todo, eso sí, conscientemente vinculado con la condición cultural y
lingüística humana. Es decir bajo el presupuesto ontológico-existencial (en sentido de Kant,
Hegel, Heidegger o Gadamer) de que los humanos solo podemos experimentar y conocer en la
medida que es mediatizado, asumido y construido cultural y lingüísticamente”.
10
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 29-30: “La conciencia que transforma con
sentido el mundo circundante, guiada por marcadas leyes ideales, pertenece, como algo
necesario, al ser peculiar del hombre. Esta naturaleza del hombre que sale y se destaca de lo
4
indivíduo recebe através da história várias marcas espirituais que, de tão
profundas, duram gerações e gerações. Nesse sentido, a Cultura, em sua
totalidade, é uma forma que se alcança, mantém e atua na formação das gerações,
sucessivamente:

Es, cabalmente, en esta forma impresa, psíquico-espiritual, que


viviendo se desarrolla, y en el afianzamiento y progresos unitarios
de un estilo de vida que conforma el material social-vital con que
encuentra, en lo que la cultura consiste, y no en una especie de
museo del espíritu objetivo11.
Assim, é possível dizer que a cultura é algo que acompanha e constitui o
homem, sendo-lhe definidor. É sua forma de ver e construir o mundo – dar-lhe
sentido, inclusive, a si mesmo –, de dar significado e transformar sua própria
natureza. Mesmo a cisão entre phisys e nomos, de algum modo, é marca da
mundividência típica do Ocidente, pois, mesmo este modo de projetar o mundo,
definidor de nossa racionalidade, reporta, ainda que implícita e mediatamente, a
um parâmetro, a uma identidade específica, ela mesma prescritivo-normativa.

Até por essa característica totalizante, é inevitável reconhecer-se cultura


como um termo polissêmico e complexo. Assim o faz GADAMER, ao identificar
que o conceito de cultura “paira numa indeterminação característica”12. Nesse
sentido, também, EAGLETON, repetindo precisamente seu Professor RAYMOND
WILLIAMS, aponta “cultura” como uma das duas ou três palavras mais complexas

meramente dado puede ser, para la historia natural, una variable, pero para la historia de la
cultura es una constante. Por otra parte, las realidades naturales y culturales que encuentra el ser
del hombre consciente transformador del mundo, y que condicionan su obrar en forma de leyes,
revelan también, aunque en medida muy diferente, una constancia histórico-sociológica, gracias a
la cual, precisamente, es posible la cultura”.
11
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 144-145.
12
GADAMER, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 9: “O conceito de
cultura paira numa indeterminação característica. Se eu fosse um poeta filosófico da categoria de
Platão, talvez não me fosse difícil escrever um diálogo em que Sócrates perguntasse a cada um de
nós o que é que realmente queria dizer com cultura. E todos continuaríamos, no fim, a dever
uma resposta, isto é, saberíamos todos que a cultura é algo que nos sustenta, mas nenhum de nós
saberia o suficiente para poder dizer o que é a cultura. Isso aponta para um problema profundo.
Conhecemo-lo a partir do nexo quase indestrutível entre cultura e crítica da cultura, entre orgulho
cultural e pessimismo cultural”.

5
de língua inglesa13, o que fez autores como KROEBER e KLUCKHOHN esmerarem-
se em compilar inúmeras definições da palavra14.

Esse seu caráter polissêmico e complexo, por essência15, entretanto, não


coloca o conceito de cultura como imprestável à compreensão da experiência
humana, quando, muito pelo contrário, expõe na riqueza de seu sentido sua
capacidade de abarcar e compreender a dinamicidade da realidade do mundo do
Espírito. Aliás, como revela GEERTZ, fazendo referência a LÉVI-STRAUSS, a
“explicação científica” não consiste em reduzir o complexo ao simples, mas sim,
em substituir uma complexidade menos inteligível por uma mais inteligível. Mais
que isso:

No que concerne ao estudo do homem, pode ir-se até mais


adiante, penso eu, no argumento de que a explicação consiste,
muitas vezes, em substituir quadros simples por outros
complexos, enquanto se luta, de alguma forma, para conservar a
clareza persuasiva que acompanha os quadros simples16.
A cultura é processo de caráter histórico em que um determinado grupo
humano, mais ou menos amplo, constrói seu próprio modo de vida e sua
mundividência, que são transmitidos de forma normativa através das gerações, em
uma dinâmica de acumulação e transformação social, contínuas17. Portanto, a
cultura apresenta-se, de algum modo, como expressão e caminhar da identidade
constitutiva e constituída de um Nós que se faz livre na história, a partir de sua
construção contínua e dinâmica, em um cipoal de símbolos, significados e valores

13
EAGLETON, Terry. A ideia de Cultura. 2 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 9;
WILLIAMS, Raymond. Palvaras-Chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo:
Boitempo, 2007, pp. 117-124.
14
KROEBER, A. L.; KLUCKHOHN, Clyde. Culture: a critical review of concepts and
definitions. Cambdrige: The Museum, 1952. Os autores dividem as definições em sete grandes
grupos: a) descritivas; b) históricas; c) normativas; d) psicológicas; e) estruturais; f) genéticas; g)
definições não sistemáticas que tratam por “incomplete definitions”.
15
TYLOR, Edward B. Primitive Culture: researches into the development of mythology,
philosophy, religion, language, art, and custom, v. I. 6 ed. Londres: Murray, 1920, p.1.
16
GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In:
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, pp. pp. 25-39, p.
25.
17
HORTA, José Luiz Borges; RAMOS, Marcelo Maciel. Entre as veredas da cultura e da
civilização. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, a. 58, n. 233, pp. 248-279, jul./dez. 2009, p.
258.

6
que, se apresentando de modo normativo, se colocam em uma objetividade
relativa.

Nesse sentido, é possível dizer que o homem é um ser normativo a espera


de um conteúdo que o preencha: a cultura. Aprofundando essa percepção,
também se vê com GEERTZ que a estrutura normativo-cultural do homem lhe é
inerente a ponto de seu próprio desenvolvimento biológico-evolutivo estar a ela
relacionado, sendo impossível, por exemplo, falar-se em um “ponto crítico” de
surgimento do homo sapiens ou em um “ponto crítico” de surgimento da cultura.
Diante disso, GEERTZ elabora e defende uma antropologia não estratigráfica,
sendo a compreensão da condição do homem possível apenas, justamente, desde
a inter-relação dos níveis biológico, social e cultural18.

Nessa ordem, REALE definirá cultura como o “sistema orgânico de bens de


diversa natureza, nos quais se concretizam, através da história, os valores em razão
dos quais a vida humana adquire sentido e significado”19. E VORLÄNDER assentará
que as “instituições e práticas sociais tornam-se aquilo que são apenas através de
sua localização e ancoragem com um nexo de significados culturais”20.

Sendo assim, é inexorável reconhecer o Direito como filho da Cultura,


mas, mais que isso, como expressão cultural que, assim, se apresenta de modo
dinâmico e dialético, em constante processo vivo, vivido e vivente21. De toda sorte,
dentro da ampla acepção de cultura, é possível restringir um pouco mais o

18
GEERTZ, Clifford. O crescimento da cultura e a evolução da mente. In: GEERTZ, Clifford. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, pp. pp. 41-61.
19
REALE, Miguel. Direito e Cultura, op. cit., p. 293; REALE, Miguel. Lições preliminares do
Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2003: “‘cultura’ é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos
material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para
modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, das obras e
serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio
formando e aperfeiçoando, através da história como cabedal ou patrimônio da espécie humana”.
20
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”? In: HENSEL, Silke et al.
Constitutional Cultures: On the Concept and Representation of Constitutions in the Atlantic
World. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012, pp. 21-42, p. 27:
“institutions and social practices become what they are only through their location and anchoring
within a nexus of cultural meaning”.
21
Sobre a processualidade histórica da experiência jurídica: SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de
justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do Direito como maximum ético.
Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
7
espectro de significados possíveis, acenando, por exemplo, para o, ainda
polissêmico e complexo, conceito de cultura política.

Aponta-se que a expressão cultura política foi primeiramente apresentada


por HERDER. Ele esteve particularmente preocupado com as determinações que
ajudassem a produzir um sentido de identidade coletiva que, por um lado, unisse
os indivíduos e, por outro, os diferenciasse de outras coletividades. Nesse
contexto, o sentido mais restrito de cultura política insere-se e interage com a mais
ampla acepção: cultura sócio-política22. Contemporaneamente, há um primeiro
conceito bastante difundido de cultura política que é particularmente vinculado a
uma perspectiva analítica e que diz respeito ao conceito de sistema político23.
Nesses termos, ela é compreendida como o modelo de atitudes e orientações dos
membros de um sistema político em relação à política, como o conjunto de
significados e finalidades em que cada sistema político está fixado. Essa perspectiva
se coloca de modo um tanto atomista, focando-se na dimensão subjetiva da
política, através da agregação da opinião pública e da analise dos padrões de
comportamento dos indivíduos, agentes sociais e atores políticos. Se relacionada a
esse sentido de cultura política, cultura constitucional seria mais proximamente
identificada com a dimensão sociológica do sistema político.

No entanto, a partir da aproximação da ciência política à teoria cultural e à


antropologia cultural, o conceito de cultura política tende a ser reorientado,
especialmente, sobre duas premissas. A primeira delas é que a política,
fundamentalmente, é uma atividade social que se desenvolve em uma rede de
significados socialmente construídos e que, apesar de sujeita a preferências,
restrições e direcionamentos, contribui pra a construção normativa e simbólica
dessa rede de significados, funcionando como uma guia mestra para interpretação
da vida e dos comportamentos culturais. A segunda coloca-se na compreensão de
que as conotações políticas são cristalizadas nas culturas que encarnam os

22
BARNAND, F. M. Culture and political: development Herder’s suggestive insights. The
American Political Science Review, v. 63, n. 2, pp. 379-397, jun. 1969.
23
ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney. The civic culture: political attitudes and Democracy in
five nations. New Bury Park: Sage Publications, 1989.

8
significados sociais de uma comunidade, portanto, é basicamente a cultura que
distingue uma comunidade da outra24.

Nesse contexto, a ideia de cultura aproxima-se da ideia de identidade,


enquanto identificação e diferenciação de uma comunidade própria, no tempo e
no espaço. Uma identidade que é produzida por uma cultura, sendo-lhe parte e
momento, reflexo e impulso. De mesmo modo, como se desenvolverá, a cultura
constitucional relaciona-se com a identidade constitucional, bem como com a
cultura e com a identidade do constitucionalismo.

Há ainda outro conceito importante que busca relacionar Cultura e Direito


que é o conceito de cultura jurídica. Como aponta RALF MICHELS, por cultura
jurídica muitas vezes compreende-se uma concepção alargada de Direito,
portanto, no sentido de “Direito vivo” (EUGEN EHRLICH) ou “Direito em ação”
(ROSCOE POUND), ou ainda, como sinônimo de família jurídica ou tradição
jurídica. Autores como LAWRENCE M. FRIEDMAN, de modo um pouco diferente,
utilizam a expressão em um sentido mais preciso, articulando-o com os valores,
ideias e atitudes que a sociedade tem em relação ao Direito. PETER HÄBERLE, de
sua parte, trata cultura jurídica como um valor que se coloca em oposição à
barbárie e ao totalitarismo, praticamente, como sinônimo ao Estado de Direito25.

De todo modo, a ideia de cultura jurídica implica que o Direito – práticas,


regras, instituições, doutrina – deve ser tratado como inserido em uma cultura
mais ampla e abrangente. Assim, ela abarca não apenas a concepção de que o
mundo “oficial” do Direito relaciona-se a uma cultura, mas, também, encara o
Direito desde uma consciência mais geral, uma experiência jurídica que é
amplamente compartilhada por aqueles que habitam um ambiente jurídico

24
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”? op. cit., pp. 25-26.
25
MICHELS, Ralf. Legal Culture. Disponível em:
http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3012&context=faculty_scholarship.
MICHELS ainda elenca: “Others understand culture as certain modes of thinking; they speak of
episteme or mentalité (Pierre Legrand), legal knowledge (Annelise Riles) and collective memory
(Niklas Luhmann), law in the minds (William Ewald) or even cosmology (Rebecca French,
Lawrence Rosen). In addition, an anthropologically influenced understanding exists of legal
culture as the practice of law (Clifford Geertz)”.

9
particular26. Nesse contexto, haverá, inclusive, quem fale de uma cultura jurídica
interna (que diz respeito à atitude dos atores oficiais e operadores do Direito) e de
uma cultura jurídica externa (relacionada à atitude da comunidade em geral para
com o Direito)27.

Nesses termos, MICHELS constata que a aproximação do Direito desde a


perspectiva de uma cultura jurídica oferece pelo menos três contribuições
interessantes: para a compreensão das particularidades de cada sistema legal, isto
é, de suas características próprias, sua identidade; para a percepção do efeito do
Direito na sociedade e em que medida o Direito positivado tem aderência na
comunidade, sendo as leis e os julgados por ela implementados; e, também, para a
uniformização do Direito, sua sistematicidade e coerência. Boa parte dessas
contribuições que o conceito de cultura jurídica dá à compreensão do Direito
chega à ideia de cultura constitucional para a compreensão do fenômeno e da
realidade constitucional.

2. Dimensões da Cultura
Cultura Constitucional

A ideia de cultura constitucional, articulando-se com a polissemia e


complexidade dos conceitos de cultura e de Constituição, é ampla, sendo
encontrada com diversas acepções. Ainda assim, elas guardam importante relação,
especialmente, quando abordadas desde a perspectiva de que a Constituição é

26
COTTERRELL, Roger. Comparative Law and Legal Culture. In: ZIMMERMANN, Reinhard;
REIMANN, Mathias (eds.). Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University
Press, 2006, pp. 709-37. Sobre consciência jurídica: SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça
no mundo contemporâneo, cit., passim.
27
MICHELS, Ralf. Legal Culture, cit., p. 2: “More useful is the division between internal and
external legal culture introduced by Lawrence M. Friedman (but already visible in Savigny).
Internal legal culture describes the attitude towards law of legal actors such as judges and lawyers;
external legal culture describes the attitude towards law of the general population. Legal
sociologists frequently consider the external legal culture as more important; doctrinal lawyers, by
contrast, focus more on internal legal culture. The more autonomous law is within the society, the
more important internal legal culture becomes in comparison to external legal culture”.

10
uma unidade cultural, integrante e integradora, dos cidadãos e da comunidade
política.

Em um primeiro sentido, a cultura constitucional é identificada com a


própria tradição do constitucionalismo, na medida em que se coloca como a
construção mais acabada da cultura jurídico-política contemporânea do quadrante
ocidental. Nessa esteira, anda de braços dados com o Estado de Direito,
acompanhando seu desenvolvimento no Estado Liberal de Direito, no Estado
Social de Direito e no Estado Democrático de Direito. É, portanto, a expressão,
na e à comunidade jurídico-política, de uma mundividência muito própria que,
especialmente, pretende a todos os indivíduos como fundamentalmente iguais em
uma humanidade comum e que, por conseguinte, fundamenta e justifica sua
legitimidade em uma premissa cultural: a dignidade da pessoa humana.

Essa acepção revela uma primeira dimensão da cultura constitucional


relacionada à cultura e à identidade do constitucionalismo que se apresentam em
um conjunto dinâmico de símbolos, significados, valores e estruturas que se
sedimenta a partir de processos históricos e se coloca como forma política legítima
da e à comunidade, em justificativa fundamentada nessa cosmovisão particular28.

Sobre essa primeira definição, assenta-se o conceito de constituição


substancializado na premissa cultural do constitucionalismo, especialmente, em
atenção a seu momento e ciclo histórico em relação ao Estado de Direito e à
premissa da dignidade da pessoa humana.

Em uma segunda acepção, particularmente útil à sociologia constitucional, a


cultura constitucional dirá respeito ao nível de conhecimento que o povo tem de
sua constituição. Nesse sentido, não se trata, exatamente, da preocupação com fato
do povo ter um conhecimento literal do texto e/ou da constituição em sentido
instrumental. Sob essa ótica, a questão coloca-se em perguntar-se em que nível os

28
Esse, por exemplo, é o sentido que se vê empregado em: BARROSO, Luís Roberto. Curso de
Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. 5 ed. São Paulo Saraiva, 2015, p. 177. Utilizando a expressão “cultura política
occidental” nesse sentido, em várias passagens: LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento
constitucional (aproximación al estudio del sentir constitucional como modo de integración
política). Madri: Reus, 1985, p. 92.

11
cidadãos, os agentes públicos (!) e a sociedade em geral têm conhecimento do
próprio projeto jurídico-político que a constituição lhes propõe. Assim, afiguram-
se mais claramente a importância aos direitos e deveres fundamentais, ao
compromisso com a igualdade, os instrumentos básicos de cidadania etc. Ainda se
relacionando a esse sentido, está a questão da opinião que a sociedade, os diversos
indivíduos e grupos sociais têm da própria Constituição e, em alguma medida, do
sentimento que têm com relação a ela. Isso importará, naturalmente, em uma
politização da discussão a seu respeito, trazendo colorações ideológicas, chegando,
como aponta FERREIRA DA CUNHA, ao domínio do opinativo.

Uma terceira dimensão estará relacionada à existência e ao fomento de


uma cultura de constituição, no sentido de integração da comunidade política na
construção de um patrimônio ético republicano e democrático comum, com uma
interiorização constitucional pelo povo. Nesse sentido, a concepção da cultura
constitucional passa da sociologia constitucional para o da ética republicana29.
Nesse sentido, estará relacionada a diversos outros conceitos que se apresentam de
modo a complementarem-se, tais como, os de vontade de Constituição,
patriotismo constitucional e sentimento constitucional30.

Haverá ainda um quarto sentido, relativo à dinâmica e contexto da


realidade constitucional, particularmente naquilo que, no debate norteamericano,
muitas vezes se tratará por jurisgenesis. Desde essa perspectiva, cultura
constitucional refere-se à compreensão do papel e das práticas de argumentação
que guiam a interação entre os cidadãos e agentes públicos em questões e matérias

29
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política: poder constituinte, constituição
material e cultura constitucional. Lisboa: Quid Juris, 2012, pp. 30-32. FERREIRA DA CUNHA
tratará, basicamente de três sentidos: “do conhecimento constitucional, grau de informação
(sentido 1), outra coisa é matear as opiniões sobre a constituição (sentido 2), e outra ainda
(sentido 3) é encarar a interiorização constitucional popular, ou por um dado grupo da sociedade,
considerando elementos positivos os preceitos ou os princípios de uma constituição propriamente
dita”, p. 31.
30
É nesse sentido também, que acaba por trabalhar: MIRANDA, Jorge. Notas sobre cultura,
Constituição e direitos culturais. O Direito, Lisboa, a. 138, n. 4, 2006. E tratando a todos esses
sob a ideia de dinamismo constitucional: COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral
da Constituição: da fundamentação da validade do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, pp. 378-81.

12
relacionadas ao sentido da constituição31. Portanto, ao contexto cultural em que se
desenvolve a interpretação do sentido da constituição, não apenas em sua
interpretação oficial, mas, aproximando-se da ideia de Constituição como um
processo aberto, que se relaciona à compreensão de que a própria norma
constitucional, construída na interpretação, dependerá, para além do texto, do
contexto (cultural) em que se encontra32.

Não em sentido destoante, ainda que não absolutamente coincidente,


HÄBERLE entende a Constituição como um processo aberto. Assim, entende a
cultura constitucional em sentido amplo. Define-a como a soma de atitudes,
atividades, ideias, escala de valores, experiências e expectativas subjetivas, bem
como, das ações objetivas que lhes correspondem, quer no nível pessoal do
cidadão, quer no nível de suas associações, dos órgãos estatais e de quaisquer
outros relacionados à constituição33.

Ainda nessa esteira é possível falar-se de culturas constitucionais


particulares34 ou de identidades constitucionais35. Esse sentido é pertinente ao
conceito de cultura política e implica em reconhecer-se uma cultura constitucional
brasileira, uma cultura constitucional alemã, francesa, mexicana, americana e assim
por diante. Ele se revela na forma particularizada como interagem as molduras e

31
SIEGEL, Reva B. Constitutional Culture, Social Movement Conflict and Constitutional Change:
the Case of the de facto ERA (2005-06 Brennan Center Symposium Lecture). California Law
Review, Berkeley, v. 94, n. 5, pp. 1323-1419, out. 2006, p. 1325.
32
HÄBERLE, Peter. Métodos y principios de interpretación constitucional. Un catálogo de
problemas. Revista de Derecho Constitucional Europeo, Granada, a. 7, n. 13, pp. 379-411,
jan./jun. 2010; HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura. Madri:
Tecnos, 2000, pp. 39-51.
33
HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura, cit., pp. 36-37;
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição; contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição.
Porto Alegre: SAFE, 1997.
34
HENSEL, Silke. Constitutional cultures in the Atlantic World during the “Age of Revolutions”.
In: HENSEL, Silke et al. Constitutional Cultures: On the Concept and Representation of
Constitutions in the Atlantic World. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012,
pp. 3-16; MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 5 ed.
São Paulo: RT, 2010, p. 43.
35
ROSENFELD, Michael. Constitutional identity. In: ROSENFELD, Michael; SAJÓ, András.
The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford Press University,
2012, pp. 756-776; ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject: selfhood,
citizenship, culture and community. Nova York: Routledge, 2010.

13
premissas do constitucionalismo e as identidades culturais locais, formando
engenharias, contextos e sentidos constitucionais próprios. Nessa linha, várias são,
por exemplo, os sistemas de governo possíveis de serem conciliadas com o
constitucionalismo, havendo formas políticas particulares de presidencialismo,
parlamentarismo e semipresidencialismo. De mesmo modo, variadas e diferentes
são as leituras e abordagens a respeito de questões muito caras ao
constitucionalismo, como o tema da tolerância e, mesmo, da tolerância para com
os intolerantes, o do aborto, do tratamento de minorias etc. É nessa esteira que
HÄBERLE também trata da constituição como peça cultural, para além do texto
jurídico ou do sistema normativo de regulação, considerando-a como expressão
“de un estado de desarrollo cultural, instrumento para la autorepresentación
cultural de un pueblo, reflejo de su patrimonio cultural y fundamento de sus
esperanzas”36.

De toda sorte, mais do que acepções diferentes e desprendidas, essas são,


todas, dimensões de uma ideia de cultura constitucional que gravita em torno da
concepção da Constituição como uma unidade cultural, integrante e integradora,
dos cidadãos e da comunidade política.

Deste modo, é possível dizer que se parte de uma concepção ampla de


cultura constitucional que, em síntese, se identifica com três dimensões: uma
relacionada à identidade e às amarras do constitucionalismo, qualificadora do
próprio conceito de constituição; outra dimensão vinculada à identidade
constitucional, na diferenciação e singularização das experiências constitucionais; e
sua dimensão vital, relacionada à vivência da própria Constituição, que aqui
trataremos em relação a uma cultura de constituição.

É a partir dessas dimensões que buscará se abordar esse conceito, não de


forma enciclopédica, tratando individualmente cada uma das acepções ou
dimensões possíveis à cultura constitucional, mas articulando-os de modo a
evidenciar que todas elas são complementares e implicadas umas nas outras.

36
HÄBERLE, Peter. Métodos y principios de interpretación Constitucional, op. cit., p. 384. Não
deixa de ser significativa a referência e remição expressa que faz, nessa passagem, a SMEND,
HELLER e HESSE, dentre outros.

14
3. Plano de Trabalho

Este trabalho é divido em três partes: Passado, Presente e Futuro. Na


primeira delas, é tratado o caminhar e o formar da própria Teoria da Constituição
até chegar às respostas weimarianas mais claramente ligadas à aproximação
dialética do fenômeno constitucional. Na segunda parte, a partir das considerações
desenvolvidas, apresentam-se apontamentos sobre o local da legitimidade, já em
articulação com a própria dimensão da validade que, por sua vez, é mais
claramente vinculada à ordem jurídica presente. Nesse caminho, avança-se na
terceira parte observando aquilo que a cultura constitucional indica
normativamente para o futuro, daquilo que pretende conformar e transformar,
chegando à dimensão da eficácia de uma Constituição sem, contudo, deixar de
atentar para a relação dessa face com a própria validade e, especialmente, com a
legitimidade.

Portanto, ao tratar da cultura constitucional, não se pretende uma


aproximação ao Direito Constitucional Cultural, isto é, ao tratamento
constitucional positivo e dogmático da cultura pelas diversas ordens jurídicas. Esse
é tema correlato que não será abordado de forma mais detida. De todo modo,
essa é uma questão interessante para a compreensão de uma específica identidade
constitucional, o que tampouco é objeto deste trabalho, especificamente.

Outro registro que se faz é o de que ao organizar o texto em Passado,


Presente e Futuro, não se propõe uma abordagem a respeito do
constitucionalismo do passado, do presente e do futuro. O que se pretende é
articular as questões da legitimidade, da validade e da eficácia da Constituição (da
cultura constitucional) em relação a uma referência que é construída
historicamente no curso da cultura do constitucionalismo, que se pronuncia no
presente com a construção de uma ordem válida e que lança perspectivas e

15
expectativas para o futuro enquanto projeto normativo que se pretende eficaz e
efetivado.

Para abordar e relacionar essas várias dimensões da ideia de cultura


constitucional, é importante ter-se claro as dificuldades, questões e posturas que,
maximamente, subjazem à Teoria da Constituição. Se o Direito Constitucional,
basicamente, nasce e se consolida a partir das construções desenvolvidas na
sequência das Revoluções Liberais, o questionamento acerca das condições de
possibilidade de seu conhecimento e, de algum modo, de sua existência, surge,
efetivamente, apenas no ambiente alemão dos anos de 1920, início dos anos 1930.
As discussões jurídico-políticas a respeito da República e da Constituição de
Weimar de 1919, desenvolveram-se, particularmente, em episódio que é muitas
vezes denominado: a luta pelo método. RUDOLF SMEND aponta, que, com essa
disputa, de algum modo, rompeu-se com certa “ingenuidade” da Teoria do Estado
e do Direito do Estado a respeito do fenômeno constitucional, particularmente, a
partir das considerações elaboradas por KELSEN37, que, de certo modo, inauguram
essa querela.

A Alemanha do entreguerras vivia um momento marcadamente politizado,


não apenas no que diz respeito às disputas sociais e político-partidárias, mas,
também, quanto às discussões e posições acerca do método de conhecimento do
Direito, do Estado, da constituição e das formas de vida política38. Nesse ambiente,
o criticismo kelseniano foi seguido por uma série de visões que, de maneiras
diferentes, responderam, se contrapuseram e se colocaram como alternativa à
Teoria Pura, no mais das vezes, apresentando grande atenção e preocupação com
a politicidade da dinâmica constitucional.

Assim, é possível dizer que a Constituição de Weimar, quer pelo cenário e


atmosfera a que foi vinculada, quer pelos desenvolvimentos da Teoria da
Constituição que ali afloraram – mas, também, pelas previsões e propostas
contidas em seu próprio texto – revelou ao máximo a carga política da experiência

37
SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional, cit., p. 47
38
STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer Staatsrechtslehre – ein
abgeschlossenes Kapitel der Wissenschaftsgeschichte? Steiner: Stuttgart 2001, p.5.

16
constitucional. Não raro diz-se que aquele foi o momento de fundação e
fundamentação do Estado Social, marcado pelo reconciliar entre Estado e
sociedade e que, nessa esteira, em boa medida, trouxe para dentro do círculo e do
jogo jurídico-constitucional grande parte das disputas político-sociais antes
colocadas à parte do Direito.

Portanto, antes de adentrar-se mais propriamente nas questões mais


intimamente relacionadas às dimensões da ideia de cultura constitucional, abordar-
se-á a conjuntura e as formulações presentes no berço da Teoria da Constituição.
Para se compreender mais claramente esse contexto, iniciaremos situando a
questão do Direito Constitucional da segunda metade dos oitocentos, “pré-Teoria
da Constituição”, portanto, do ambiente jurídico-político que deu substrato para o
nascimento da Teoria da Constituição. Nele se registra um caminhar interessante
quanto à consolidação do Direito Público, que, no entanto, é marcado por um
fechar-se sobre uma postura estática e, em boa medida, acrítica sobre o fenômeno
jurídico-político. Dele é fruto, por exemplo, uma Teoria Geral do Estado, de
cunho, particularmente, jurídico e universalista, pretensamente destacada de
qualquer “contaminação política” e intimamente relacionada aos pressupostos do
Gesetzespositivismus mais clássico. A compreensão dessa discussão “intramuros”
é interessante para ter-se em conta a própria razão de ser da Teoria da
Constituição que lhe segue.

Destarte, na sequência, avançar-se-á expondo-se, propriamente, sobre


algumas das principais respostas jurídico-políticas apresentadas naquele momento.
Para tanto, far-se-á uma aproximação às formulações dos principais expoentes da
luta pelo método, tendo como referências os quatro autores, via de regra, tidos
como canônicos da disputa: KELSEN, SMEND, SCHMITT e HELLER. Para essa
abordagem, eles estarão divididos entre aqueles que podem ser identificados com
uma posição epistemológica eminentemente não dialética (KELSEN e SCHMITT)39 e
os de posição epistemológica basicamente dialética (SMEND e HELLER)40.

39
Em que pesem as imensas diferenças, debates e tensões entre as figuras e as ideias de HANS
KELSEN e CARL SCHMITT, muitas vezes tidos como antípodas – como, de fato, desde uma certa
17
Essa exposição inicial terá como principal intuito apresentar algumas das
questões inerentes à Teoria da Constituição desde seu berço, nas quais subjaz boa
parte da discussão a respeito da realidade constitucional até a
contemporaneidade41.

A partir da segunda parte da tese, desenvolver-se-á a sequência do trabalho


mais proximamente alinhada a uma tradição da Teoria da Constituição de matiz
dialético, buscando compreender o Direito Constitucional, a Teoria da
Constituição, o constitucionalismo e a própria constituição, em sua dimensão
cultural. Portanto, não apenas como uma estrutura de normas de organização do
Estado e/ou da sociedade válida tão somente a partir de procedimentos formais,
racionalmente tidos como “legitimadores”, ou desde uma decisão ex nihilo, mas
reconhecendo a experiência constitucional como um processo cultural em curso.
Assim, caminha-se na direção de compreender a constituição como uma unidade
cultural (dinâmica) da qual são parte e estão em constante diálogo: normalidade e
normatividade, conteúdo e forma, política e Direito, indivíduo e comunidade.

Nesse contexto, algumas questões aparecem em destaque. A primeira delas


está relacionada ao fato de o próprio conceito de constituição surgir em referência
a uma determinada rede de valores, signos e significados. A questão original
colocada ao constitucionalismo é, justamente, a necessidade de legitimidade do
poder. Uma legitimidade que se apresenta como justificação em referência a uma
mundividência específica, construída e apresentada pela cultura política do
Ocidente. Esta mesma, com raízes remotas na tradição greco-romana e judaico-
cristã, mas, especialmente, entendida como fruto de lutas sociais, construções
filosóficas e ideológicas, portanto, como decorrente de processos históricos – guia
e produto – de um projeto político-cultural. Este, a princípio, é muito próprio do

perspectiva o foram – parece possível identificar como ponto comum a ambos serem leitores de
HOBBES, o que lhes implicou posições não dialéticas a respeito da Teoria da Constituição.
40
Essa dicotomia que acompanhamos, desta forma, é sugerida em: CALDWELL, Peter. Popular
sovereignty and the crisis of german constitutional Law: the theory and practice of Weimar
constitutionalism. Durham: Duke University Press, 1997 (eBook).
41
VEGA GARCÍA, Pedro de. Apuntes para una historia de las doctrinas constitucionales del siglo
XX. In: La ciencia del derecho durante el siglo XX. México: UNAM, 1998, pp. 3-44.

18
quadrante ocidental42 que se organiza, constitui e é constituído, daquilo que aqui
tratamos enquanto cultura do constitucionalismo. Cultura em toda sua
complexidade, logo, envolvida e envolvente de dimensões pretérita, presente e
futura, no que importa compreender que há uma relação dialética entre
legitimidade, validade e eficácia, intrínseca à própria realidade constitucional e à
história do constitucionalismo.

A implicação dessas dimensões insinua determinadas perspectivas a


respeito da questão da soberania e do poder constituinte, bem como, da atuação
deste no momento de fundação de uma nova ordem jurídica estatal, mas não só
nesse momento fundacional. Eis que, como dito, há uma relação necessária entre
normalidade e normatividade; entre forma e conteúdo; ser e dever ser; entre
indivíduo e comunidade, em integração (em liberdade), numa dinâmica cultural
de amiúde legitimação da constituição, à formula de RENAN, que, por conseguinte,
influencia as construções de SMEND e HELLER43.

Essas, basicamente, são as preocupações expostas na segunda parte da tese.


No capítulo quarto abordar-se-á a legitimidade como justificação político-cultural
da ordem jurídico-política. No quinto, aproximar-se-á das questões da constituição
como produto de uma cultura, da soberania popular. E, no sexto, segue-se para
uma compreensão do que constitui o poder constituinte e deste momento
fundador como uma leitura específica da identidade do constitucionalismo em
articulação com as culturas e identidades locais para, assim, formar-se uma nova
identidade constitucional que se faz viva na cultura constitucional.

Todos esses tópicos estão especialmente, ainda que não exclusivamente,


relacionados à primeira dimensão da cultura constitucional – ou, dito de outro
modo, da cultura e identidade do constitucionalismo – e à relação entre

42
Em sua multiplicidade comum, sua “pluralidade em unidade”, de algum modo, como CHARLES
TAYLOR anota: “The contemporary Atlantic world is seen as a culture (or a group of closely
related cultures) with its own specific understandings of, for example, person, nature, and the
good”, TAYLOR, Charles. Two Theories of Modernity. Public Culture, Durham, v. 11, n. 1, pp.
153-174, inverno 1999.
43
SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1985, p. 63; HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 208; RENAN,
Ernst. ¿Qué es una nación?. Buenos Aires: Hidra, 2010.

19
legitimidade e validade da ordem constitucional. No entanto, a constituição como
“ordem jurídica da comunidade política” coloca-se com pretensão de eficácia
social, isto é, com a força normativa que lhe é característica, particularmente, a
partir do Estado Democrático de Direito. Antes de mais, as normas
constitucionais são normas jurídicas e, assim, dotadas de imperatividade. De toda
sorte, em razão de certas circunstâncias, elas possuem algumas características
muito peculiares que lhes colocam em situação excepcional em relação às demais
normas do ordenamento, em especial, no que se refere à sua efetiva concretização,
eficácia e efetividade. Assim, elas dependem de algo para além das sanções e dos
instrumentos coercitivos classicamente tidos em conta pelo Direito. É desde aí que
se propõe a aproximação da relação entre as dimensões da legitimidade e da
eficácia da ordem constitucional, com particular atenção ao elemento vital da
cultura constitucional.

A eficácia de uma constituição, em última instância, não pode ser


compreendida, tão somente, a partir de uma visão estritamente jurídica.
Considerando que a própria constituição é um fenômeno jurídico-político, atenta-
se para o fato de que a politicidade não é presente apenas na justificação da
legitimidade da ordem, mas, também, a eficácia dela depende do reiterado
compromisso atualizado da comunidade, como um todo, e dos cidadãos,
individualmente, com esse determinado projeto jurídico-político. Assim, em
alguma medida, é possível apontar que a própria possibilidade de a constituição
pautar a comunidade, normativamente, para o futuro, depende de uma cultura
política revelada em um patrimônio ético comum que possibilite esse
compromisso com o cumprimento da normatividade constitucional que incide na
realidade constitucional, isto é, que depende de uma cultura de constituição.

Essa relação mútua entre sentir-se uma ordem legítima (porque justificada)
e sua eficácia/efetivação, de certo modo, trata de um reconhecer de uma
determinada estrutura valorativa imanente no ethos da comunidade, portanto, de
uma consciência. Ao mesmo tempo, é uma vontade, enquanto fator proativo e
vital necessário a essa estrutura para a eficácia e força normativa constitucional. É,
também, um tanto de patriotismo, na medida em que é uma estrutura normativa a

20
ser defendida e revigorada, capaz de produzir uma força integradora. E, ainda, é
sentimento por ser uma ordem axiológico-normativa, não apenas racional ou
coercitivamente cumprida, mas, também sentida e interiorizada como própria da
comunidade e de seus cidadãos, como uma identidade constitucional da
comunidade. É, portanto, mais amplamente bem reconhecida como uma cultura
de constituição que impulsiona o movimento e o viver de uma cultura
constitucional, expondo aquilo que o conceito de Cultura tem a capacidade de
compreender nas dimensões pretérita, presente e futura44.

Sem dúvida, a consolidação de tal cultura constitucional não é a panaceia


de todas as questões referentes à comunidade jurídico-política, tampouco, revela-
se como superadora, por si só, das desigualdades sociais, ou autonomamente
emancipadora dos cidadãos. De mesmo modo, não é o fortalecimento e
encaminhamento da cultura constitucional capaz de, isoladamente, criar e
conformar uma comunidade justa, em que estejam realizados plena e prontamente
(se é que isso seria mesmo possível em alguma hipótese estática) “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade”. Naturalmente, há muitos componentes correlatos e
necessários a esse projeto, como, por exemplo, especialmente nos casos de países
periféricos, a promoção de uma democracia econômica, a superação do
subdesenvolvimento, dentre outros fatores que, em boa medida, demandam uma
renovação de uma Teoria do Estado própria 45.

Contudo, em tempos de discursos de “exceção econômica permanente”,


que, por vezes, indicam o fim, ou, algum fim da estatalidade, quando não do
próprio Estado, a consolidação de uma cultura constitucional na comunidade
jurídico-política é condição para a realização da dinâmica democrática necessária à
persecução do projeto do Estado Democrático de Direito, viabilizador da
emancipação do indivíduo à condição de cidadão, portanto, não apenas como
elemento, mas, realmente, como partícipe do processo político. Isso depende da
repolitização da questão da legitimidade, da insistente identificação do povo como
44
HORTA, José Luiz Borges; RAMOS, Marcelo Maciel. Entre as veredas da cultura e da
civilização, op. cit., passim.
45
BERCOVICI, Gilberto. Intervenção. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.).
Canotilho e a Constituição Dirigente. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 77-79.

21
soberano dentro do jogo democrático e da (re)colocação da questão da soberania
em seu efetivo lugar: no Político.

Quanto aos planos da legitimidade e da eficácia, essas são duas dimensões


que vivem em processo dialético de mútua conformação e conformidade. Nas
discussões acerca das possíveis teorias sobre o justo é recorrente questionar-se:
aquilo que é tido como justo é aquilo que é socialmente eficaz enquanto norma
moral e/ou jurídica? Ou será que aquilo que tem eficácia enquanto norma é que é,
necessariamente, aquilo que é tido como idealmente justo? Ou, em outras
palavras, o Direito conforma a atuação do Político ou o Político é que conforma o
conteúdo do jurídico? Que dimensão explica a outra? A resposta que parece
aplicável é justamente a de que existe um processo dialético que se desenvolve no
sentido de equilibrar ambas as dimensões.

E é nesse limite que se chega ao último ponto a ser explorado. O


compromisso com o projeto jurídico-político da cultura do constitucionalismo e de
uma identidade constitucional coloca-se, não apenas, como um compromisso com
sua normatividade e eficácia, mas, também, necessariamente, como um
compromisso com sua própria concretização e atualização. A identidade
constitucional é em parte dada, em parte criada e renovada. Ela se coloca,
simultaneamente, na natureza contrafactual da normatividade constitucional e na
inerente “normalidade/normatividade” que a justifica em referência à cultura do
constitucionalismo.

22
Parte I
Passado
O Poder emana do povo
- Mas, para onde ele vai?
BERTOLD BRECHT
CAPÍTULO 1
DO DIREITO DO ESTADO À TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:
ALGUNS ANTECEDENTES PARA COMPREENDER A LUTA
LUTA PELO MÉTODO
DE WEIMAR

A Teoria da Constituição surge no contexto da República de Weimar, a


partir das discussões a respeito da comunidade política e do espírito da
Constituição alemã de 1919. Esta foi a primeira experiência que, realmente,
pretendeu combinar constitucionalismo e democracia46 e, até por isso, ainda que
não apenas por essa razão, possibilitou, provocou e foi cenário de uma intensa
disputa metodológica entre diversos pensadores, de variadas posições, sobre os
fundamentos e caminhos da Teoria do Estado e, em desdobramento, da Teoria
da Constituição.

Na luta pelo método (Methodenstreit)47, como ficou conhecido esse


episódio, houve uma significativa ampliação dos campos de discussão a respeito da

46
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política: uma relação difícil. Lua Nova, São Paulo, n. 61,
pp. 5-24, 2004; FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la Antigüedad a nuestros días.
Madrid: Trotta, 2001, p. 149.
47
Ainda que a expressão Methodenstreit esteja muito relacionada à (disputa) luta pelo método na
Teoria da Constituição na República de Weimar, ela também é bastante ligada à importante
disputa travada no mundo germânico, particularmente entre as décadas de 1880 e 1890,
conhecida como Methodenstreit der Nationalökonomie que teve como principais antípodas a
Escola Austríaca – “dedutiva” e “axiomática” –, liderada por CARL MENGER, e a Escola
Historicista alemã – “histórica” e “institucional” – capitaneada por GUSTAV VON SCHMOLLER.
De fato, esta disputa influenciou fortemente todo o curso das ciências sociais aplicadas e suas
23
comunidade política e do Estado, de seu desenvolvimento, vida e dinâmica. Desde
aí, fomentou-se o questionamento, especialmente, a respeito das condições de
possibilidade de conhecimento da realidade estatal, do ordenamento jurídico e,
particularmente, da constituição.

Não que, antes disso, não tenha o Ocidente proposto vários arranjos e
possibilidades para a compreensão e para a aproximação à questão da
comunidade política ou do Estado. Muito pelo contrário, em grande medida, essa
tem sido a pauta de boa parte das principais reflexões sobre o humano desde o
milagre grego, estando presente de modo perene durante toda a Antiguidade, o
Medievo, a Modernidade, chegando ao tempo presente. Entretanto, sua
observação a partir das lentes da Teoria da Constituição coloca-se desde
perspectiva uma jurídico-política determinantemente marcada pelo
constitucionalismo e pelo Estado de Direito. Ela surge como fruto do momento
de crise do formalismo jurídico e do modelo liberal de Estado de Direito;
portanto, coloca-se em momento de certa “reconciliação” entre Estado e
sociedade, o que implicou em alguma juridificação dos próprios processos
políticos e das relações sociais, de modo geral48.

raízes remontam a uma longa história filosófica. Aqui, quando falarmos indefinidamente
Methodenstreit, estaremos nos referindo à luta pelo método do Direito Constitucional na
República de Weimar. Esta também é às vezes tratado como Richtungsstreit. Richtung pode
significar caminho, direção, orientação, tendência, escola de pensamento. SMEND, por exemplo,
utiliza esta expressão para ser referir ao debate weimariano: Die Vereinigung der Deutschen
Staatsrechtlehrer um der Richtungsstreit. In: SMEND, Rudolf. Staatsrechtliche Abhanlungen:
und andere Aufsätze, 4 ed., Berlim, Ducker & Humblot, 2010, pp. 620-635. Entretanto, essa
expressão também é utilizada em outras áreas, tratando de outras discussões não necessariamente
ligadas ao Direito Constitucional ou à Teoria do Estado. É exemplo disso o embate relacionado à
disputa ocorrida, também na Alemanha dos anos 1920, sobre o papel e sentido das bibliotecas
públicas, a Richtungsstreit im Bibliothekswesen, em que polarizavam duas escolas: a Alte
Richtung, liderada por ERWIN ACKERNECHT, e a Neue Richtung, de WALTER HOFMANN.
Sobre a luta pelo método da economia: BOSTAPH, Samuel. Methodenstreit. In: KALDIS,
Byron (ed.). Encyclopedia of Philosophy and Social Science. Thousand Oaks: SAGE
Publications, 2013, pp. 603-605.
48
Juridificação aqui é utilizado no sentido dado por: NOBRE, Marcos; RODRIGUEZ, José
Rodrigo. “Judicialização da política”: déficits explicativos e bloqueios normativistas. Novos
Estudos, São Paulo, n. 91, pp. 5-20, 2011, p. 18: “Utilizamos juridificação aqui no sentido mais
largo e amplo de ‘tradução para o código do direito’, de tal maneira que todos os diferentes
sentidos apontados por Teubner possam ser reunidos sem se excluírem mutuamente”, o que,
portanto, não se confunde com judicialização. Não raro atribuísse a utilização original do termo a
OTTO KIRCHHEIMER, que, na verdade, o propõe de modo crítico, no contexto que da acusação
que a esquerda alemã fazia à “domesticação” da luta de classes pelo Direito: RODRIGUEZ, José
24
Ao iniciar-se esse trabalho com um remontar dessa disputa, principiando
pelo momento que imediatamente lhe antecede, pretende-se apontar para como o
rompimento com percepções e respostas formalistas e/ou positivistas possibilitou
uma mais apurada compreensão das dificuldades e das complexidades do
fenômeno jurídico-político.

É possível dizer que o momento de Weimar, realizado como instante de


abertura de horizontes às possibilidades do Estado de Direito e de realização de
uma cultura de liberdade, já propõe as bases de grande parte das questões que
ainda hoje são caras e decisivas para o debate sobre a Constituição e sobre a
cultura constitucional.

O período de consolidação do Estado alemão, inicialmente sob a


preponderância da corte prussiana e depois com a República de Weimar, foi
marcado por diversas discussões teóricas e políticas sobre o formato, a função e a
estrutura do Estado. Nessa linha, se foi do momento alemão do século XIX –
após a unificação bismarckiana – a preocupação por se autonomizar as Ciências
do Estado (Staatswissenschaften) e por se estabelecer uma Teoria Geral do Estado
(Allgemeinestaatslehre)49, é especialmente das discussões epistemológicas de
Weimar – contexto conhecido como a luta pelo método (Methodenstreit) – que
saíram as principais questões e respostas jurídico-políticas sobre o conceito e
sentido do Estado e sobre as formas de vida política50.

Rodrigo. Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann.
São Paulo: Saraiva, 2009, especialmente, pp. 129-168. Para uma visão mais ampla do conceito,
inclusive, destacando mais firmemente sua ambiguidade como algo positivo e negativo:
TEUBNER, Günther. Juridification: concept, aspects, limits, solutions. In: TEUBNER, Günther
(ed.). Juridification of Social Spheres: a comparative analysis in the areas of labor, corporate,
antitrust and social welfare law. Berlim: Walter de Gruyter, 1987, pp. 3-48.
49
CARVALHO, Orlando de. Caracterização da Teoria Geral do Estado. Belo Horizonte:
Kriterion, 1951, pp. 21 e ss.
50
STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer Staatsrechtslehre, cit., p. 5.
Naturalmente, a questão do conceito e sentido do Estado é, ela mesma, anterior a esse momento.
Para não nos estendermos muito, basta apontar para a criação da Ciência Política por
MAQUIAVEL, ainda no século no século XVI, e a construção magna de HEGEL no século XIX. Já
a discussão sobre as formas de vida política é perene e visceral ao Ocidente, bastando apontar
para a República de PLATÃO, para a Política de ARISTÓTELES e todos os que lhes seguiram no
curso da história ocidental. Contanto, o que se aponta aqui, acompanhando STOLLEIS, é que esse
é um privilegiado momento crítico e de crítica sobre essas temáticas a partir de um despertar para
as questões epistemológicas de natureza jurídico-política.

25
Foi basicamente nesse contexto weimariano que nasceu a Teoria da
Constituição, propriamente dita, e se delinearam mais claramente suas principais
correntes que até hoje influenciam e pautam este campo, quer aquelas ligadas ao
positivismo normativo, quer aquelas ligadas ao decisionismo ou, ainda, às posições
marcadamente não positivistas e dialéticas51. Parafraseando NELSON SALDANHA –
ele tratando da sobrevivência de certas ideias na Filosofia – talvez não seja demais
afirmar, quanto à continuidade das questões na Teoria da Constituição, que ela se
dá “mais talvez por conta das perguntas do que das respostas”52.

A Constituição de Weimar fundou a República alemã que sobreviveu


entre 1919 e 1933. Trata-se de texto, momento e espírito absolutamente
determinantes do e para o constitucionalismo. Ela marca o formular da própria
ideia de Estado Social e Democrático e, em que pese a anterior entrada em vigor
da Constituição Mexicana de 1917, é com ela e com toda a discussão a seu
respeito que se modulam as bases dessas importantes dimensões do Estado de
Direito contemporâneo53.

As primeiras constituições escritas – a de 1787 da Convenção da Filadélfia


e a de 1791 da Assembleia Nacional francesa – surgem como fruto de movimentos

51
HÄBERLE, Peter. La constitución como cultura. Anuario Iberoamericano de Justicia
Constitucional, Madri, n. 6, pp. 177-198, 2002, p. 182: “«Sobre las espaldas de los gigantes»: esta
expresión, en mi opinión, es particularmente válida para definir, en la Ley Fundamental, la
relación con «Weimar» de los tratadistas alemanes de Derecho público desde 1949 hasta nuestros
días. Así como los famosos años veinte aportaron a Berlín un florecimiento todavía hoy admirado
en el arte y en la ciencia, de la misma forma los publicistas de Weimar, en sus controversias, han
planteado las preguntas y ofrecido las respuestas, que hoy se consideran «clásicas», y frente a las
cuales nosotros todavía somos «enanos sobre las espaldas» de aquellos gigantes, lo que no excluye
que nosotros, que seguimos sobre sus espaldas, podamos, alguna vez, ver más allá de lo que ellos
lo hicieron”. Também: LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la
doctrina del derecho político de la República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp.
259-295.
52
SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 3: “A
filosofia se desdobra continuamente, incorpora temas e problemas, adapta-se aos tempos (...). E
sempre a sobrevivência de certas idéias, mais talvez por conta das perguntas do que das respostas.
Certamente que as transformações históricas afetam as perguntas tanto quanto as respostas, mas
estas são sempre mais precárias: as respostas duram menos do que as perguntas, e geralmente
atingem nível menos fundo”.
53
Sobre o destaque histórico da Constituição de Weimar sobre a Constituição Mexicana de 1917:
PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais
sociais: A preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do
constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917. República de Informação
Legislativa, Brasília, a. 43, n. 169, pp. 101-126, jan./mar. 2006.

26
revolucionários, liberais, modernos, burgueses, que, em boa medida, revelavam a
carta de intenções de revoluções vitoriosas54. Ainda que diferenças marcantes
possam ser identificadas ao comparar essas duas experiências jurídico-políticas55,
ambas são filhas de seu tempo e refletem seu momento histórico56.

As revoluções burguesas, em França e na América do Norte,


ambicionaram subverter o status quo de organização da sociedade e das estruturas
jurídico-políticas. Para tanto, institucionalizaram em suas constituições uma

54
É de se destacar que, particularmente em França, em que pese a primeira Constituição do novo
regime ser de 1791, várias constituições, cartas constitucionais e governos transitórios sucederam-
se em um bastante curto período. Indicando alguns motivos para essa instabilidade gerou seis
Constituições entre1791 e 1804: DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos:
da idade média ao século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 26. Indo além, inclusive, apontando
para o fato de, nem mesmo, o número de constituições francesas na história ser um consenso na
história constitucional: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A revisão da constituição francesa
de 1958. A permanente procura de uma constituição modelar. Cuestiones Constitucionales,
Cidade do México, n. 3, pp. 121-165, jul./dez. 2000. Tratando do conturbado período pós-
revolucionário francês: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do
constitucionalismo. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013, pp. 134 e ss.
55
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales. Madri: Trotta, 2006, p. 64:
“Sin embargo, América precedió a Europa en la constitucionalización del poder y el motivo se
halla, una vez más, en la ruptura revolucionaria con el poder tradicional. Ciertamente, la
responsabilidad de esa ruptura no puede atribuirse a la burguesía en su acepción continental,
puesto que este concepto no es transferible sin reparos a la sociedad americana, carente de
estamentos; pero, en sentido no corporativo, puede considerarse burgués al conjunto de la
América da aquella época. Esta hipótesis encuentra apoyo en la circunstancia de que los
habitantes blancos no sólo era políticamente libres sino también, en su gran mayoría,
económicamente independientes y que esta independencia la habían obtenido de su actividad
económica, no de empleos públicos o rentas inmobiliarias”; em sentido similar, DALLARI,
Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos, cit., p. 38.
56
A primeira das diferenças que se pode mencionar é exposta no fato de a Constituição de 1787,
efetivamente, fundar e constituir o recém-nascido Estado Norte-Americano, enquanto a
Constituição Francesa de 1791, de certa forma, refunda o já existente Estado Francês. Nesse
sentido, JACOBSON e SCHLINK apontam que na tradição jurídico-política anglo-americana a
Constituição antecede e, mesmo, funda o Estado, enquanto na tradição jurídico-política
continental o Estado antecede a Constituição. Isso se deve a uma série de fatores e características
próprios de cada experiência. Também nessa linha, enquanto, oficialmente, a França vive sua
décima quinta Constituição (vigente desde 4 de outubro de 1958), dentre tantas outras (vinte e
duas) constituições que chegaram a ser escritas (entre oficiais e não adotadas), os Estados Unidos
seguem com sua mesma constituição desde 1787 à qual fora acrescentadas vinte e sete emendas.
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (eds.). Weimar: a jurisprudence of crisis.
Berkeley: University of California Press, 2002, p. xi. Em outro texto, SCHLINK, comentando a
construção da identidade constitucional nos termos de ROSENFELD, destacará, inclusive, que a
identidade alemã é, em muito, tributária de um Staatsvolk, de uma certa identidade estatal, que é
diferente, quer da identidade nacional, quer da identidade constitucional: SCHLINK, Bernhard.
The constitutional subject and its identity: my german experience. Cardozo Law Review, Nova
York, v. 33, n. 5, pp. 1869-1873, 2012, pp. 1871-1873. Com posição diferente, entendendo que é
marca de todas as Constituições liberais constituírem um novo Estado: GRIMM, Dieter.
Constitucionalismo y derechos fundamentales, cit., pp. 45 e ss.

27
igualdade formal, eliminando da organização estatal os privilégios nobiliárquicos57.
Fizeram-no, de certo modo, reproduzindo a divisão entre Estado e sociedade tão
típica dessa modernidade. Nessa visão, o Estado deveria tratar a todos de forma
“igual”, enquanto a sociedade civil deveria organizar-se autonomamente. Com isso,
de alguma maneira, pode-se dizer que as revoluções burguesas romperam com um
status quo social estático – regido por padrões nobiliárquicos, de honra e de
sangue – e, afirmando-se frente esses poderes históricos, instauraram outro
modelo social, também estático, agora regido pelos valores burgueses58. Ou seja, as
constituições liberais não programavam mudanças ou transformações políticas ou
sociais, mas, basicamente, consolidavam e cristalizavam as mudanças ocorridas e
conquistadas no seio social e pelos movimentos revolucionários59.

Além disso, especialmente no âmbito francês – e europeu de modo geral


–, no curso do século XIX houve um progressivo processo de dessubstancialização

57
Naturalmente, nem mesmo esse processo de reconhecimento de uma igualdade formal ocorreu
de forma estanque e imediata, simples ou direta. Num primeiro momento, e durante todo o
século XIX, muitas foram as previsões de votos censitários e condições à participação política dos
cidadãos, como se vê na vedação ao voto feminino, que só veio a ocorrer no mundo em 1893 na
Nova Zelândia, para não se falar da base escravagista da economia americana até a Guerra de
Secessão americana.
58
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Alianza Editorial,
1999, pp. 55 e 56, “Este cambio se explica por la distinta función que tenía que cumplir la teoría
del Derecho constitucional, pues una vez asentado y asegurado el régimen liberal burgués, tal
teoría ya no precisaba – como en los tiempos en que el nuevo régimen pugnaba por afirmarse
frente a los poderes históricos – ser un medio de conocimiento al servicio de una transformación,
al modo de la primitiva doctrina constitucional fundada en el iusnaturalismo y tan mezclada con
estimaciones políticas, sino simplemente un medio de explicación de una realidad cuyo
contenido aparecía como indiscutible y definitivamente afirmado. Ahora bien, es claro que toda
evidencia en el contenido conduce, en principio, a un resaltamiento de la forma; toda evidencia
en lo substancial, a una doctrina desustancializada”.
59
É importante destacar que os contextos revolucionários Francês e Americano, em vários
sentidos, são bastante diferentes um do outro. Ainda que tenha havido significativa mudança
social em ambas as realidades, de fato, os principais fronts de batalha política das duas revoluções
eram significativamente diferentes. Enquanto a Revolução Francesa opunha-se forte e
explicitamente aos poderes históricos e aos privilégios nobiliárquicos, a revolução norte-
americana, na verdade, encontrava seu principal motivo e bandeira revolucionária na
emancipação da economia norteamericana em relação à exploração inglesa, marcadamente
personificada na instituição do parlamento. Tais diferenças decorrem e implicam em inúmeros
fatores históricos, que passam pelo formato do Estado Inglês, suas instituições e organização
jurídico-política em comparação ao Estado absolutista francês; pela estrutura e organização
econômica, já, significativamente, mais moderna na Inglaterra que no Reino da França; pelo fato,
também, de a revolução norteamericana tratar-se de uma guerra de independência e a Revolução
Francesa situar-se, justamente, em solo francês; pela estrutura colonial adotada para as colônias
norteamericanas e, particularmente, sua estrutura social, dentre tantos outros.

28
das constituições, ao passo que o jusnaturalismo ligado ao movimento
revolucionário francês foi esgrimindo-se como uma ideologia legitimadora das
reivindicações burguesas. Esse fato foi acentuado pela preponderância da
perspectiva jusprivatista e pelo intenso movimento de secularização do Estado e,
mesmo, da sociedade, que conduziu à formalização dos conceitos e à tecnicização
(tecnificação) das estruturas constitucionais. O que na Alemanha foi visto,
especialmente após a primavera dos povos no annus mirabilis de 1848, com a
resposta conservadora da própria burguesia60.

Nessa virada de século, do XVIII para o XIX, enquanto Inglaterra, França


e até os recém-nascidos Estados Unidos, vivam esse processo de “modernização”
de suas sociedades e de seus Estados, os Estados e sociedade germânicos andavam
a outro passo. HEGEL, mesmo, afirmou: “A Alemanha não é mais um Estado”61.
Com isso identificava que o “direito constitucional” alemão convertera-se em
Direito Privado e que, assim, não havia mais soberano na Alemanha. As
instituições políticas germânicas daquele momento eram ultrapassadas e ainda
reproduziam sua herança medieval62. Deste modo, em que pese um atribulado
século XIX – quando a questão da unificação alemã, via de regra, esteve sempre
bastante presente – a modernização dos Estados Alemães não significou um
fortalecimento das classes burguesas, menos ainda alguma transformação da
configuração social ou mudança de valores sociais ou do establishment.

Com o fim do Sacro Império Romano-Germânico em 1806 seguiram-se


diversas tentativas de organização e unificação do território teutônico, até que em
1848 ocorrem as diversas revoluções na Europa central, inclusive nos territórios
dos Estados Alemães. Em 1849, essas culminaram na Constituição de Frankfurt,
que teve vida curta, sendo seguida, quase que imediatamente, pelas respostas

60
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura? In: HELLER, Hermann. Europa y el
Fascismo. Granada: Comares, 2006, pp. 117-135; LUCAS VERDÚ, Pablo. Reflexiones en torno
y dentro del concepto de Constitución. La Constitución como norma y como integración política.
Revista de Estudios Políticos, n. 83, jan./mar. 1994.
61
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. La constitución de Alemania. Madri, Aguilar, 1972, p.
XXIII, texto originalmente publicado em 1800-02.
62
BAVARESCO, Agemir; KONZEN, Paulo Roberto. Cenários da liberdade de imprensa e
opinião pública em Hegel. Kriterion, Belo Horizonte, 2009, vol.50, n.119, pp. 63-92.

29
contrarrevolucionárias conservadoras capitaneadas pelos junkers63 que restauraram
os privilégios nobiliárquicos.

É durante a Primavera dos Povos que ganham espaço movimentos, jornais


e ideais de esquerda (comunistas, socialistas e anarquistas), bem como, se
destacaram lideranças como MARX e ENGELS, que voltavam da Bélgica e
instalavam-se em Colônia, ou BAKUNIN que, escapando do regime czarista russo,
refugiara-se em Dresden. Desde então, burguesia e proletariado, inicialmente
aliados nos movimentos de 1848, foram se distanciando progressivamente. Nesse
processo de afastamento, as camadas burguesas foram gradualmente se
aproximando da aristocracia, de certo modo, incorporando seu habitus de forma
cada vez mais profunda, num processo que durou, pelo menos, até a queda da
monarquia em 191864. Esse acoplamento da burguesia alemã à estrutura
aristocrática foi definitivamente enraizado com a Unificação Alemã em 1871,
quando a aristocracia militarista atendeu aos anseios comuns da nobreza e do
bourgeois.

É partir da década de 1870 que se intensifica um processo de


modernização do Estado alemão. Uma série de fatores particulares da sociedade
teutônica, dentre eles peculiaridades muito próprias da burguesia alemã e da

63
Os Junkers eram latifundiários de origem aristocrática, mas de modos e estilo de vida
absolutamente diferentes dos nobres franceses ou dos Whigs britânicos, também proprietários de
vastas terras. Ao contrário destes, que se caracterizavam por serem classes ociosas, que viviam a
maior parte do tempo longe de suas propriedades, na corte francesa ou em Londres, mantendo-
se a partir do recolhimento de tributos e dívidas feudais ou de rendas de suas propriedades,
respectivamente, os Junkers eram, praticamente, “capitalistas agrários”, mais assemelhados
àqueles que exploravam as pradarias americanas. Apesar das raízes aristocráticas, eles possuíam
as virtudes de eficiência e o valor do trabalho, até mesmo mais fortemente marcantes que na
classe burguesa alemã do século XIX. Essas virtudes eram chave para o processo de
modernização do Estado alemão e, inclusive por esse motivo, formaram a base de sustentação da
sociedade alemão, sendo aliados da corte dos de HOHENZOLLERN. TAYLOR, A. J. P. The
Course of German History: A survey of the development of German history since 1815. Taylor
and Francis e-Library, 2005 (eBook), pp. 20 e ss.
64
ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. Para ELIAS essa incorporação desses valores militares e
nobiliárquicos pela sociedade alemã, como um todo, permaneceu marcando seu habitus mesmo
após 1918 e arraigando-se na sociedade ainda quando da República. Para o autor, algumas dessas
características possibilitaram o regime nazista.

30
aristocracia65, contribui para que esta permanecesse como establishment até 191866.
Isso fez com que o próprio processo de modernização do Estado tedesco ocorre-
se sobre o lastro de um establishment “não burguês” e, em sua maioria, pouco
urbano. Com isso, a estruturação e consolidação do constitucionalismo alemão
ocorrem, também, em um momento histórico e desenho social bastante próprio e
bem diferente dos “momentos fundadores”, estadunidense e francês. Isso
implicou uma necessária e anunciada ruptura constitucional quando da queda da
kaiserinato e da instauração da República, tardiamente, já no século XX.

Naturalmente, essas características acabaram por influenciar a própria


Constituição de Weimar. Passadas as cartas de 1849 e de 187167, foi apenas em

65
TAYLOR, A. J. P. The Course of German History, cit., pp. 21 e 22: “The Junkers were
hardworking estate managers, thinking of their estates solely in terms of profits and efficiency,
neither more nor less than agrarian capitalists. This economic characteristic had a unique political
result. Everywhere in Europe the Crown was striving to make the organization of the State more
efficient; therefore, despite the King’s personal preference for the manners and culture of the
nobility, he had to turn for political backing to the capitalist middle classes, who alone possessed
the virtues of efficiency and hard work. But these were the very virtues possessed by the Junkers
and not possessed to the same degree by the German burghers of the eighteenth century. The
German trading classes had abandoned all attempt to keep up with the capitalist triumphs of
England, Holland, or even France. Instead they prided themselves on their civic liberties and on
the high level of their culture as citizens of the world. These were not assets likely to appeal to
Frederick II. But the Hohenzollerns had long ago stamped out the last flickers of aristocratic
liberties; and the Junkers had neither the leisure nor the ability to develop a taste for culture – to
go to Berlin was merely to leave the threshing floor for the barrack-room. Thus in Prussia alone
in Europe, a reforming Crown could carry out its reforms through the agency of great landowners;
and the greater the efficiency of the Prussian State, the more it needed the services of the Prussian
Junkers. It was no paradox, but an inevitable development, that Frederick, the most efficient of
the Hohenzollerns, first made absolute the Junker monopoly of civilian and military office. The
State created by Frederick II combined two qualities which were elsewhere opposites. It had, on
the one hand, the unscrupulous authoritarianism, the disregard both of humanity and of principle,
everywhere characteristic of rule by a privileged upper class; on the other hand, a striving after
efficiency and improvement, a rigid devotion to the balancing of accounts, elsewhere associated
with the rule of a reforming middle class. The Prussian Junkers, one might say, were politically in
the Stone Age; economically and administratively they looked forward to the age of steel and
electricity”, TAYLOR, A. J. P. The Course of German History, cit., pp. 21 e 22.
66
ELIAS, Norbert. Os alemães, cit., passim.
67
Antes da Constituição de 1919, a Alemanha teve a Constituição do Império Alemão
(Verfassung des Deutschen Reiches) também conhecida como Constituição Imperial de
Bismarck (Bismarcksche Reichsverfassung) de 1871, que unificava o Império Alemão sob a
chefia dos Reis da Prússia, da casa de Hohenzollern; além dela, houve a tentativa frustrada de um
Império Alemão unificado em sucessão ao Sacro Império Romano-Germânico através da
Constituição de Frankfurt de 1849 (Frankfurter Reichsverfassung, FRV), também conhecida
como Constituição da Igreja de São Paulo (Paulskirchenverfassung), cujo nome oficial também
era, a exemplo de sua sucessora e mais famosa, Constituição do Império Alemão (Verfassung des
Deutschen Reiches).

31
1919 que a República, a despersonificação e desvinculação da razão de Estado da
vontade do Imperador, a questão da soberania popular e da igualdade, tomaram
maior dimensão e tratamento constitucional. Era, também, um momento em que
a Europa central vivia uma avalanche de acontecimentos e transformações, na
sequência da primeira guerra mundial (1914-1918), da Revolução Russa (1917) e
da própria Revolução Alemã (1918).

Para melhor compreender o debate weimariano, voltemos um pouco a


atenção para o cenário do Direito Público alemão do século XIX, apresentando,
ainda que de forma apenas panorâmica, o contexto juspublicista no qual se
consolidou a Teoria Geral do Estado e o Direito do Estado (Staatsrecht)68. Ele
apresentava-se desde uma postura que, por um lado, influenciou e foi substrato
para a Teoria da Constituição, mas que também serviu de impulso para
perspectivas que se contrapunham a suas respostas e atitude. Foi-lhe marca a
tentativa de isolamento metodológico do conhecimento do Estado, visto apenas
como jurídico, quando se buscou ao máximo eliminar as relações entre as
dimensões jurídicas e políticas de vivência da comunidade estatal.

1.1.
1.1. CENÁRIO JUSPUBLICISTA ALEMÃO DE FINS DO SÉCULO
SÉCULO XIX INÍCIO DO

SÉCULO XX

68
A tradução de Staatsrecht por Direito do Estado ou por Direito Político ou mesmo por Direito
Constitucional não é óbvia, nem precisa. Segundo JACOBSON e SCHLINK, apenas a partir da Lei
Fundamental de 1949 o termo Staatsrecht passou a representar um campo do direito e de ensino
jurídico na Alemanha, tendo sido gradualmente substituído pelo termo Verfassungsrecht. Em que
pese essa progressiva substituição, ainda hoje os cursos e manuais de Direito Constitucional, via
de regra, ainda apresentarem-se como Handbuch des Staatsrechts, bem como, mantem-se o
nome da Associação de Professores Direito do Estado Alemão como Vereinigung der Deutschen
Staatsrechtslehrer. Relatam, também, que a escolha entre chamar o “Direito que rege o Estado”
como Staatsrecht ou como Verfassungsrecht ainda tem uma importante ressonância na política
alemã, sendo o primeiro termo tendencialmente preferido pela direita e o segundo pela esquerda.
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience. In: JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (eds.). Weimar: a
jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 2. Assim, aqui
utilizaremos a tradução literal para nos referimos a Staatsrecht: Direito do Estado.

32
O Direito Público, de um modo geral, e o Direito Constitucional,
especificamente, em comparação ao Direito Privado, desenvolveu-se tardiamente.
Em toda a Europa, mas particularmente na Alemanha, sua consolidação definitiva
ocorreu apenas no século XIX o que lhe legou uma forte influência do espírito
liberal da época e, por conseguinte, de todos os avatares do Direito Privado que
pautaram a jusprivatista desde o Direito romano, passando pelos publicistas
medievais, os renascentistas, a Escola Histórica, a jurisprudência dos conceitos, a
jurisprudência dos interesses, o liberalismo, a jurisprudência dos valores etc. Nesse
sentido, LUCAS VERDÚ atenta que, por ser o Direito, particularmente, o Direito
Constitucional um setor cultural, “el constitucionalista no puede ignorar esto”69.

França e Alemanha desde o século IX disputavam o legado de Carlos


Magno (742-814). Entre a segunda metade do século VIII e a primeira metade do
século IX a dinastia carolíngia foi responsável por um Império que reuniu a maior
parte da Cristandade do Ocidente sob um poder central. O império de Carlos
Magno, que VAN CAENEGEN chega a chamar de primeira Europa70, segue
relativamente centralizado durante os anos de reinado de seu filho Luís, o Piedoso
(778-840), até que em 843, com o Tratado de Verdun, é definitivamente dividido
em Frância Ocidental (França), Frância Oriental (Alemanha) e Lotaríngia71.

É verdade que as forças descentralizadoras (centrífugas) medievais fizeram


com que esses reinos fragmentassem-se, atravessando um grande processo de

69
LUCAS VERDÚ, Pablo. La lucha contra el positivismo jurídico en la República de Weimar: la
teoría constitucional de Rudolf Smend. Madri: Tecnos, 1987, p. 75. Registramos o especial
agradecimento pela atenção e solicitude do Professor Doutor GONÇAL MAYOS SOLSONA que,
muito gentilmente, como lhe é habitual, viabilizou o acesso à obra.
70
CAENEGEM, Raoul C. van. Uma introdução histórica ao direito constitucional ocidental.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 65.
71
Um ano antes do Tratado de Verdun, em 842, Carlos, o Calvo, e Luís, o Germânico – também
filhos de Luís I e consagrados reis da Frância Oriental e da Frância Ocidental, respectivamente –
assinaram o Juramento de Estrasburgo (Sacramenta Argentariae) – considerado o primeiro texto
em francês antigo, também escrito em alto-alemão antigo e em latim – que selava uma aliança de
ambos contra seu irmão Lotário I, a fim de conseguirem a divisão do Império. A Lotaríngia era
um longo reino que se localizava entre os outros dois, que posteriormente viria a se tornar,
majoritariamente, Alemanha. Seu nome decorre de seu soberano Lotário I, o neto de Carlos
Magno, filho de Luís I, o Piedoso. Além de territórios da Alemanha, a Lotaríngia também
compreendia terras que hoje pertencem a Itália, França, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O
reino foi dissolvido em 870 com o Tratado de Meersen.

33
“feudalização”72. Depois disso, uma retomada para um poder centralizado só se
dará em França durante o século XII, enquanto no mundo germânico esse
processo ocorrerá apenas vários séculos mais tarde. Em que pese esse fluxo, a
tensão entre esses dois lados foi se reproduzindo ao longo da história e os
episódios da concorrência pela centralidade e preponderância do poder político e
cultural do continente são reiteradas.

O pêndulo dessa contenda tem perfil bastante amplo e pode ser


observado, por exemplo, nas diferentes formatações estéticas e filosóficas da
modernidade. Além disso, também a tensão política e geopolítica, sempre foi
muito acirrada. Basta que se lembre da perene querela pelos territórios da Alsácia-
Lorena73, tão marcante na história europeia e mundial. Vários foram os capítulos
dessa rixa, que na Idade Moderna vão desde a incorporação da Alsácia-Lorena
pelo reino francês, com o Tratado da Vestfália em 1648, passando pela Guerra
Franco-Prussiana e o tratado de Frankfurt de 1871, até a Primeira e a Segunda
Guerra Mundial.

Além disso, essas diferenças estão presentes também na história do


direito, como no diferente formato do processo de modernização do Direito em
cada lado da fronteira. Enquanto em França ele ocorre pela codificação, com
particular primazia da fonte legal, acompanhado pela Escola da Exegese, no
Direito alemão ele se fez com o intenso desenvolvimento da Ciência do Direito, a
partir da força da Escola Histórica, seguida pelas demais correntes que vieram na
sua esteira. São essas duas experiências, exemplos do desdobramento de duas
visões distintas da modernidade, nenhuma delas menos moderna que a outra.

Nesse sentido, a codificação em 1804 coloca-se na história francesa em


um momento de valorização dos ideais liberal-burgueses, com a intensa busca por
mais segurança jurídica, decorrente das exigências do capitalismo em expansão,
assentando-se assim, em boa medida, em oposição à insegurança jurídica do antigo

72
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: volume 2 Formação do Estado e Civilização. Rio de
Janeiro; Zahar, 1993, pp. 23 e ss. Fragmentação que num primeiro momento, curiosamente, foi
até mais intensa na porção francesa que na porção germânica.
73
Território que no original Tratado de Verdun pertencia ao Reino da Lotaríngia (Lothringer), de
Lotário (Lothar), portanto, da Lorena.

34
regime. Dessa forma, não é exagero afirmar que essa busca por mais segurança
jurídica não fora apenas uma exigência política, mas, também, uma demanda
econômica74. De fato, muito mais que uma renovação do conteúdo do direito
(civil) em si, o movimento de codificação em França significou uma mudança no
formato, no modo de organização do Direito e suas fontes, a partir de um
processo de formalização do universo jurídico, já no início do século XIX, com o
robustecimento da legalidade e a ideia da lei como expressão da vontade geral75.

Ainda assim, é possível dizer com JOHN KELLY que o racionalismo que
influencia o Código de Napoleão não é presente exatamente em seu conteúdo. As
fontes imediatas utilizadas por seus autores foram, basicamente: o direito comum
francês do século XVIII, preponderantemente, o direito consuetudinário em sua
forma anotada (particularmente o Coutume de Paris); o direito romano (erudito),
especialmente desde a sistematização de DOMAT; as três grandes ordenações reais
de 1731 a 1747; e, ainda, de forma complementar, alguma jurisprudência dos

74
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão,
dominação. 6ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 50.
75
Não deixa de ser curiosa a observação de JOHN M. KELLY que, apoiado em RENÉ DAVID e
HENRY P. VRIES, descreve que “Na França, embora fosse a pátria do Iluminismo do século
XVIII, o papel desempenhado pelo direito natural e pela razão pura na construção do código
civil foi extremamente modesto. Este, quando finalmente surgiu em 1804, revelou-se amplamente
composto pelo direito antigo – isto é, a combinação de antigos costumes germânicos da região
norte da França, do direito romano (parte dele na forma que tinha recebido nos códigos
visigóticos) e do direito canônico, cada um predominando em seus próprios setores do sistema.
Houve muito pouca inovação; e, onde houve, o código ‘não aponta nem sanciona sistemas
teóricos totalmente novos; o rompimento com as regras e ideias pré-revolucionárias foi menos
claro do que se esperava’. A razão foi que os que tinham redigido o código eram em sua maioria
homens na faixa dos sessenta anos, que tinham crescido e recebido sua formação profissional
num tempo mais recuados do século XVIII, sob o antigo regime; para eles, ‘a razão escrita era o
direito que sempre tinham conhecido’. Não obstante, embora a prática da codificação fosse
conservadora, como tinha sido na Áustria, a atmosfera em que foi levada a cabo ainda sofria a
pesada influência da doutrina de um direito natural baseado na razão. Repetidas saudações ao
direito da natureza e da razão vieram de oradores na Convenção Nacional, enquanto o artigo de
abertura do projeto do código civil, publicado no Ano VIII da Revolução (1799), declara que
existe uma lei universal e imutável, a fonte de todas as leis positivas: não é outra senão a razão
natural’. Por essa data, contudo, a desilusão e o ceticismo induzido pelo curso da Revolução já
tinham, mesmo na França, começando a esfriar o ardor pela razão que havia alimentado o
movimento codificador”, KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, pp. 347-348. Em sentido um tanto diferente, WIEACKER
entende que forma e conteúdo, não apenas do Code civil, mas de todo movimento de codificação
oitocentista europeu eram bastante influenciados pelo jusnaturalismo racionalista, WIEACKER,
Fraz. História do Direito Privado Moderno. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 365 e
ss.

35
parlamentos franceses, especialmente, do de Paris76. Portanto, o conteúdo do
Code civil não era, exatamente, revolucionário e/ou criado ex nihilo. No entanto,
sua concepção e estrutura sistemática, formal e racional, esta sim é especialmente
moderna77. Foi nesse caminho que se constituiu e fortaleceu a Escola da Exegese,
fruto desse impulso objetivista e neutral(izador), que buscava retirar do aplicador
da lei qualquer margem de subjetividade e discricionariedade, através de um
grande apego à palavra da lei78.

Enquanto isso, do lado alemão, a primeira resposta do Direito à


modernidade veio com a Escola Histórica, de nomes como PUCHTA (1798-1846)
e WINDSCHEID (1817-1892), com a importante liderança e influência de SAVIGNY
(1779-1861).

A Escola Histórica se dá no contexto alemão que só vai conhecer o


Estado Nacional, unificado, no último terço do século XIX79. Para HESPANHA,

76
CAENEGEM, Raoul C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pp. 8 e 9. Ainda que o autor aponte que o tom geral do código ser
nitidamente conservador, ressalta que: “Embora o antigo direito fosse o elemento mais
importante do Code civil, não era intenção de seus autores restabelecer a ordem jurídica do
regime derrubado e abandonar os avanços conseguidos com a Revolução. Pelo contrário,
numerosos princípios que derivavam das idéias da Revolução e do Iluminismo e eram
considerados socialmente benéficos foram incorporados em sua obra legislativa”.
77
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, cit., p. 231.
78
Nesse sentido, MARGARIDA LACOMBE CAMARGO destaca: “A atividade dos juízes, na França,
então comprometidos com o Antigo Regime, seria controlada pelo atendimento severo e restrito
aos termos da lei”, CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação:
uma contribuição ao estudo do direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 66. Também
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Coimbra:
Almedina, 2012, pp. 400 e ss. HESPANHA ressalta que “apesar da imagem legalista que se criou
desta escola, os juristas que lhe correspondem oscilam entre a fidelidade aos novos códigos e uma
substancial adesão ao jusnaturalismo que dominava na segunda metade do século XVIII. Logo no
discurso de apresentação do projeto do Código Civil ao Conselho de Estado, Jean-Etienne-Marie
Portalis salienta que, afinal, o novo código não seria mais do que a redução a artigos das
aquisições de gerações de juristas que, possuidores de uma especial capacidade de reflexão sobre
o direito e da autoridade que daí provinha, tinham podido sondar na razão natural as melhores
máximas para regular a sociedade” p. 404. Para mais aprofundamentos sobre a Escola da
Exegése: BONNECASE, Julien. La Escuela de la Exegesis em Derecho Civil. Tradução José M.
Cajica Jr. Puebla: José M. Cojica, 1944.
79
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno, cit., p. 400, sobre a Alemanha de
inícios do século XIX: “Aqui não existia qualquer monarquia central; as antigas estruturas da
sociedade e um florescimento cultural desviavam as pessoas – com exceção das que viviam nas
grandes capitais políticas – da acção social para o «poetar e pensar» no sentido mais estrito das
palavras. Na verdade, também na Alemanha, sobretudo depois da legislação napoleónica, uma
parte da elite tinha os olhos postos na França; e quando, depois das guerras de libertação, a
36
essa característica fez com que houvesse uma “fuga” da ideia de monopólio
jurídico-político do Estado, mais ligada à tradição nacional, resultando na
valorização de formas tradicionais e espontâneas de organização política, como
eram as antigas formas comunitárias de vida, as comunas e os concelhos
medievais. Além da fragilidade e, em alguns momentos, inexistência das formas
modernas de Estado Nacional no mundo germânico (e na península itálica) do
início do século XIX, havia outra considerável dificuldade posta naquele espaço à
forma de Estado, nacional e uno, que era, em França, bem simbolizada pelo
sucesso do Código: “seu universalismo cosmopolita e ‘desnacionalizador’ e o seu
artificialismo”80.

Nessa conjuntura, a Escola Histórica Alemã tinha por programa,


justamente, buscar e trabalhar formas e fontes não estaduais e não legislativas do
Direito. O fazia desde uma mundividência de alicerces diferentes dos do
jusnaturalismo racionalista francês, quer do ponto de vista filosófico, quer do
ponto de vista da base sócio-política, no entanto, não menos modernos.

A esse respeito, ANTÓNIO MANUEL HESPANHA aponta para a influência


exercida por HERDER e sua filosofia da cultura. Assim, destaca na Escola Histórica
a pré-compreensão da sociedade como um todo orgânico que, tal como os seres
vivos, estaria sujeita a uma evolução histórica, sendo possível observar no presente
as marcas do passado, que, também, condicionariam seu porvir81.

WIEACKER, por sua vez, dá especial peso à influência kantiana, atribuindo


ao filósofo de Königsberg o primeiro refutar a metafísica jurídica do
jusnaturalismo e do jusracionalismo, antes mesmo de HEGEL, ao negar –
especialmente, na sua Crítica da Razão Prática e na primeira parte da Metafísica

Alemanha pareceu, por um momento, estar pronta para uma democracia nacional unificada, esta
elite pensou que o caminho estava livre para uma Constituição comum a toda a Alemanha e para
um Código Geral que fosse, não decretado, mas elaborado por toda a nação. Mas o que se
passou foi que estas forças foram imediatamente subjugadas pela restauração dos Estados
territoriais e forças ao caminho «caminho interno» de uma renovação do direito a partir de uma
consciência jurídica histórica e científica, pois a restauração das dinastias tradicionais da queda de
Napoleão fez abortar a oportunidade de um integração democrática do Estado alemão
unificado”.
80
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 409.
81
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 410.

37
dos Costumes82 – a admissibilidade de seus postulados materiais naturalizáveis,
condicionando-os às situações de quaisquer opções éticas83.

Quanto à influência kantiana, a posição de WIEACKER é compartilhada


por HESPANHA que, no entanto, sinaliza mais claramente sua importância a partir
da segunda fase da Escola Histórica, com PUCHTA e WINDSHEID, em sua
vertente formalista, na pandectística e no conceitualismo jurídico da jurisprudência
dos conceitos. Tal influência se daria, sobretudo, pelo novo ideal de ciência
(formalista), quando a coerência interna das categorias do sistema de saber passou
a ser garantidora da verdade científica, substituindo a adequação do pensamento a
uma realidade externa. Isto é, ao passo que o quadro categorial passou a ser
decisivo para um saber, em detrimento da apreensão atomística e da “ignorância”
da realidade empírica84.

Também tratando do tema, KARL LARENZ atém-se em demonstrar a


vinculação da ideia de sistema – para o autor herança, de forma imediata, da
doutrina do Direito natural – como fundamentada primordialmente na filosofia do
idealismo alemão de FICHTE, SCHELLING e HEGEL. E aponta, ainda, que tal
influência já pode ser identificada em SAVIGNY e em sua preocupação com a
historicidade85.

No Direito essa concepção importou, desde SAVIGNY, em uma relativa


desvalorização da lei, bem como, dos fatos sociais. Com isso ganhou força a
Ciência do Direito e o direito doutrinal (Professorenrecht), que tem por função
construir um sistema de conceitos jurídicos86. Uma construção feita não

82
A primeira parte da Metafísica dos Costumes, na tradução brasileira da obra, é intitulada
Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. No entanto, na tradução lusitana do
livro de WIEACKER vê-se a referência a Fundamentos metafísicos da Teoria do Direito. Essa, na
verdade, é a tradução literal de Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre, título original da
Parte I da obra. KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Tradução Clélia Aparecida
Martins. Petrópolis: Vozes, 2013.
83
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno, cit., pp. 401 e 402.
84
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., pp. 413 e ss.
85
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997,
21.
86
SAVIGNY, Friedrich Carl van. Metodologia jurídica. Buenos Aires: Depalma, 1994, p. 37. Por
traz dessa primazia há subjacente uma questão político-cultural da sociedade alemã que é o papel
de destaque que os professores universitários exerciam na sociedade alemã, desde meados do
38
exatamente ao modo jusracionalista, mas a partir de reflexões absolutamente
abstratas, a partir da indução desde as máximas do direito positivo87. Nessa ordem,
para LARENZ, é definitivamente com PUCHTA que se apontou o caminho para um
sistema lógico “no estilo de uma «pirâmide de conceitos», decidindo assim a sua
evolução no sentido de uma «Jurisprudência dos conceitos formal»”88.

Desde PUCHTA, seguido por uma série de juristas que se sucederam até
WINDSCHEID, foi-se realizando, gradualmente, a transição entre os ideais
metodológicos do começo da Escola Histórica até o positivismo acadêmico e
jurídico, de modo mais pronto e completo, no que STOLLEIS define como
transição na Metodologia no Direito Civil89.

Nessa tradição prevalecia o entendimento de que a atividade do jurista


não consistia em criar de forma arbitrária os princípios jurídicos, mas observá-los,
identificá-los e descrevê-los a partir de uma estrutura científica, de um formalismo
ascético, que eliminasse as “contaminações” de qualquer natureza (ética, política,
moral, filosófica), preocupado com o rigor da observação e com o rigor conceitual.
Portanto, já nesse momento, apontava-se que considerações de caráter ético,
político ou econômico, não pertenciam aos juristas e seu universo de
preocupações. Vê-se, assim, certa aproximação dessa postura formalista ao papel
do Direito no sistema ético kantista, e, nessa medida, também, a uma posição
quanto ao Direito, tanto individualista, quanto relativista. Individualista por
entender a sociedade como a soma de atos de vontade de indivíduos livres que são

século XVIII, que será novamente abordado mais adiante. Sobre essa cultura, por todos,
RINGER, Frank K. O declínio dos mandarins alemães: a comunidade acadêmica alemã, 1890-
1933. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
87
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., pp. 415 e 416: “Rudolf v.
Jhering distingue claramente estas duas fases do trabalho do jurista. A primeira fase, a que chama
‘jurisprudência inferior’, consistiria na ‘ligação imediata à forma com que o direito aparece na lei,
graças a uma relação puramente receptiva em relação às fontes’ (‘Unsere Aufgabe’, 1857, em
Rudolf v. Jhering, la lotta per il diritto e altri saggi, Milano, Giufrfrè, 1989, 7). A partir daqui,
desenvolver-se-ia a ‘jurisprudência superior’ que produziria, por destilação e síntese da matéria-
prima antes obtida, ‘uma matéria absolutamente nova’ (ibid.), o conceito. A função dos conceitos
é, ao mesmo tempo, (i) facilitar a apreensão do direito, já que eles se tornam sintéticos e
intuitivos, e (ii) tornar possível a produção de novas soluções jurídica por meio do
desenvolvimento conceitual, do chamado ‘poder genético dos conceitos’”.
88
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, cit., p. 23.
89
STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914. Oxford: Berghahn Books, 2001, p.
315.

39
aprioristicamente titulares de um direito originário dessa liberdade. Relativista (e
formalista), por pretender superar os grandes sistemas ético-políticos naturalistas,
entendendo que o poder deveria se limitar, apenas, a atribuir a forma de
organização política que melhor garantisse a liberdade individual (liberalismo).
Desse modo, essa postura pretendia desprender-se de qualquer conteúdo
axiológico, conferindo ao saber jurídico o papel de “observar, descrever e
construir sistemas jurídicos existentes, sem ter a pretensão de decidir sobre os
valores de cada sistema”90.

Vê-se, portanto, a força das ideias liberais que, pelo menos de duas
maneiras diferentes, espraiaram-se na cultura jurídica europeia demarcando
fortemente a modernidade. O espírito desse ímpeto formalizante, marcado por
reforçar e possibilitar valores liberais, modernos e, ao menos tradicionalente,
burgueses, influencia e chega de maneira marcante ao cenário juspublicista
alemão91.

A influência dessa tendência formalista, legada do Direito Privado, é nítida


quando se observa que os dois principais e mais influentes scholars do Direito
Público alemão daquele período – CARL FRIEDRICH VON GERBER (1823-1891) e
PAUL LABAND (1838-1918) – são oriundos do Direito Privado. De fato, suas
escolas visavam desenvolver uma Ciência do Direito do Estado ou uma Teoria do
Direito do Estado (Staatsrechtswissenschaft)92, autônoma e nova, em boa medida,

90
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 418. Para maior
aprofundamento sobre a Escola Histórica Alemã, remetemos a WIEACKER, Franz. História do
Direito Privado Moderno, cit.
91
CARVALHO, Orlando de. Caracterização da Teoria Geral do Estado, cit., p. 39;
HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia, cit., p. 418; BERCOVICI, Gilberto.
Soberania e Constituição, cit., pp. 242 e ss.; KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in
Late Wilhelmine Germany. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.). Weimar: a
jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002 pp. 41-50; COSTA, Piero. O
Estado de Direito: uma introdução histórica. In: ZOLO, Danilo; COSTA, Piero (org.). O Estado
de Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 131.
92
A mesma observação quanto à tradução de Staatsrecht por Direito do Estado é válida aqui.
Neste caso com o agravante de Lehre também não ser uma palavra cuja tradução automática por
ciência, teoria ou doutrina seja simples, especialmente, quando se atenta ao fato de que em
alemão ainda existem os termos Wissenshaft e Theorie.

40
destacada de questões extravagantes de natureza histórica, política ou, mesmo,
jusprivatista93.

No contexto da metade do século XIX, em meio à resposta


contrarrevolucionária conservadora de 1849, a própria burguesia tudesca já
começava a aceitar o status quo político, preocupada com os movimentos de
esquerda que tomaram forma e dimensão na Primavera dos Povos. Essa situação
de instabilidade desembocava em um “generalizado desapontar com a situação
política alemã”. Dessa forma, ao contrário do que acontecera na primeira metade
do século XIX, a teoria do Direito do Estado começava a não mais expor
explicitamente projetos políticos, mas, ao contrário, passava a voltar os olhos para
o Direito que era posto pelo Estado94. Esse espírito, de sua parte, contribuiu para
que o Direito Público aspirasse e conduzisse-se a um distanciamento e “convívio
pacífico” com a política. Esses aspectos fizeram com que se elaborasse, já nesse
período, a ideia da política como mera substância do Direito do Estado, mas não
seu propósito.

Tal formulação foi primeiramente arranjada por GERBER, sendo-lhe


marcante a tentativa de definir os objetivos e fronteiras do Direito do Estado,
isolando-os dos aspectos “puramente políticos”, para identifica-los nos aspectos
“estritamente jurídicos”. Por esse motivo atribui-se a esse autor o primeiro grande
avanço na transição no método em Direito Público95, o que fez dele pai de uma
escola que tem como filhos prodigiosos LABAND e JELLINEK96.

GERBER já demonstrava o apego ao direito posto desde seus trabalhos em


Direito Privado, particularmente, em seu System des deutschen Privatrechts
(1848/49), e toda essa conjuntura que exigia da nova ordem de racionalidade que

93
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford: Oxford University Press, 2010, p.
191.
94
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 42;
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., pp. 13
e ss.
95
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 244; STOLLEIS, Michael. Public
Law in Germany, 1800-1914, cit., p. 316. As duas principais obras de GERBER sobre Direito
Público são: Über öffentliche Rechte (1852) e Grundzüge eines System des deutschen
Staatsrechts (1865).
96
EMERSON aponta ainda, no fim dessa lista, o nome de OTTO MAYER.

41
garantisse certeza, estabilidade e “neutralidade”, favorecia uma formulação de
“pureza dogmática”, assegurada pela utilização de uma lógica formal e pela
supressão de elementos metajurídicos97.

Para efeitos de Direito Público, a Alemanha já não existia enquanto


Estado desde a queda do Sacro-Império Romano Germânico, em 1806, e a
maioria dos Estados germânicos tinham adotado constituições escritas após a
invasão napoleônica, via de regra, baseando-se no princípio monárquico, portanto,
entendendo o monarca como o poder soberano98. Nesse contexto, GERBER
buscou descrever um Direito do Estado alemão geral, compilando, sintetizando e
sistematizando o Direito de vários dos Estados teutônicos a partir de um método
comum, buscando identificar-lhes uma unidade subjacente99. Assim, o sistema de
GERBER “consistia em conceitos e regras que ilustravam mais que derivavam da
ordem legal”100. Para GERBER, entretanto, o monarca era apenas a encarnação da
personalidade abstrata do poder do Estado e seu mais alto órgão de vontade.
Entendia-se, a partir de então, que o príncipe exercia a soberania não porque o
Estado lhe pertencesse, mas, sim, porque, como monarca, ele era o órgão “do
grande organismo do Estado” com a função de dar expressão concreta a sua
vontade soberana101.

Por conseguinte, o que marcou seu método foi a ideia básica de


reconstruir o Direito Público levando adiante a personalidade do Estado, não de
forma análoga ou derivada à concebida pelo Direito Privado, mas de modo único

97
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 244.
98
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 16.
99
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 14.
100
MURKENS, Jo Eric Khushal. From Empire to Union: conceptions of German Constitutional
Law since 1871. Oxford: Oxford Press University, 2013 (eBook), p. 14: “His system consists of
concepts and rules that illustrate, rather than derive from, the legal order (the 1871 Imperial
Constitution and properly enacted statutes). The state is the highest personality within the legal
order, whose personal will (Staatsgewalt) equated to the right to rule (Herrschen): Staatsgewalt is
‘the will-power of an ethical organism conceived in personal terms’ (von Gerber 1880: 19). The
role of constitutional law (Staatsrecht) was to determine the structure and legal limits of state
power (von Gerber 1869: 1–8, 190–214): ‘Staatsrecht is the theory of state power’ (ibid.: 3).
Gerber’s theory is best described as ‘legal scientific’ (rechtswissenschaftlich) positivism (Friedrich
1986: 205–6)”.
101
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany. New Haven, Yale University
Press, 1928, p. 33.

42
e original em um sentido juspublicista. Para GERBER, a soberania não era
ilimitada, era apenas um atributo do Estado e com ele não se confundia. O que
caracterizava o poder do Estado soberano era o fato de não haver qualquer outro
poder de Estado externo e superior que o determinasse, pois, para essa
concepção, o que distinguia o poder da vontade do Estado era, justamente, o
poder de determinar. Assim, a personalidade do Estado foi colocada no coração
do Direito Público102.

Com o avançar do século XIX, o espírito formalista combinou-se, na


Alemanha, a uma característica peculiar e, a princípio, aparentemente paradoxal.
Em plenos anos 1860-70 a Unificação alemã foi realizada por um aristocrata
(junker), nomeado primeiro-ministro pelo Kaiser Guilherme I: Bismarck103. Uma
unificação que não poderia ter sido menos vinculada aos métodos e ideais do
liberalismo político, feita pela força militar e pela pragmática da Realpolitik.

Apesar desses aparentes paradoxos, o que é certo é que as esperanças


burguesas de uma Alemanha unificada que se viam frustradas desde a tentativa
revolucionária de 1848 foram atendidas. A partir do militarismo aristocrático
prussiano, a realidade germânica, antes marcadamente caracterizada por uma
profunda fragmentação do território (e especialmente do poder), em vários
pequenos Estados (de um modo geral, monárquicos), deu lugar a um Estado-
potência que garantia a segurança tão ansiada pelo capitalismo-liberal. Ao mesmo
tempo, na Europa e na própria Alemanha, fortaleciam-se as aspirações pelo
liberalismo econômico, âmbito em que a demanda se colocava muito mais na

102
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany, cit., pp. 51-56.
103
Bismarck, nascido no ano de 1815, em Schönhausen, cumulava, de forma até um pouco
paradoxal, algumas das características mais típicas daquela sociedade prussiana e germânica. Pelo
lado paterno, era filho de um oficial militar, Junker, de uma família muito antiga da região do
marquesado de Brandemburgo, enquanto do lado materno, descendia de uma família não
aristocrata de autos funcionários e professores universitários. Estudou direito na Universidade de
Göttingen, onde foi membro da Burschenschaften, uma das famosas corporações estudantis. Para
mais sobre Bismarck: TAYLOR, A. J. P. Bismarck: The Man and the Statesman. Nova York:
Vintage, 1967.

43
liberdade perante o Estado, que na liberdade no Estado, como, inicialmente, era o
projeto do liberalismo político104.

Assim, com o início da formação do Império Alemão, entre 1867 e 1871,


a monarquia e o establishment aristocrático (representado em Bismarck)
“capturam” definitivamente a confiança da burguesia que ansiava pela Unificação,
mas que não tinha força política para realizá-la. Em 1871 entra em vigor a
Constituição Imperial, que apesar de seu caráter conservador, buscava de algum
modo conciliar as forças que lhe davam suporte. Nesse sentido, por exemplo,
evitou decidir a respeito da legitimidade: se monárquica ou democrática105.

E foi nessa esteira que seguiu caminho o Direito Público alemão


oitocentista. Sob a influência da consolidação de um Estado forte e unificado,
garantidor de segurança, de tendência formalizadora, decorrente de um
capitalismo em forte marcha.

Aplicando o método juspublicista de GERBER de forma sistemática e


radical à ordem constitucional alemã vigente, LABAND aprofundou a cisão entre
político e jurídico, retirando qualquer importância das questões relacionadas à
legitimidade, aos aspectos políticos do Direito ou à realidade social106.

Foi com esse aprofundamento, e sem efetivamente debruçar-se


detidamente sobre questões epistemológicas, que LABAND levou a cabo a tarefa de
descrever – e afirmar – o sistema constitucional de 1871. O fez desde um aporte
que se pretendia neutro, utilizando uma “linguagem científica”107, que, no espírito

104
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 42.
Nesse sentido é muito interessante a construção de ELIAS ao articular o fato dessa forte demanda
burguesa por unificação ter sido realizada pela monarquia prussiana, fortemente militarista e
baseada em um establishment aristocrático. Para ELIAS, esse fato fez com que os valores dessa
classe, inclusive os valores militaristas guerreiros, fossem incorporados e assumidos para si pela
própria burguesia alemã, como, por exemplo, na cultura do duelo, nas organizações e
corporações estudantis, dentre outros episódios. O autor desenvolve essas ideias até chegar em
raízes que entende viabilizadoras da ascensão do nazismo: ELIAS, Norbert. Os alemães, cit.
105
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 43.
106
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 44;
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 15.
107
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
14: “The affirmative approach to the Bismarckian system expressed itself in the ‘neutral’ language
of science. Both Laban’s legal positivism and its alleged opponent in the empire, the ‘organic’
44
oitocentista, emulava a linguagem das ciências naturais, com o que acabou por
criar a dogmática do Direito Público do Império Alemão. Ela foi de longe a
elaboração de Direito do Estado mais influente do período, tendo caráter,
praticamente, oficial108. Tratava-se de uma analise sistemática e exegética do direito
positivo imperial, caracterizando a forma paradigmática do positivismo legalista
(Gesetzespositivismus).

GERBER partiu de uma perspectiva metodológica positivista e com ela


entendia o Estado de forma orgânica e material e a partir dessa fórmula
fundamentou a personalidade jurídica estatal. LABAND, por sua vez, depurou
ainda mais sua visão, expurgando do Estado qualquer substrato material,
entendendo-o e pretendendo-o de forma mecanicista, à imagem de uma
máquina109. E é sobre esses termos que BERCOVICI chega a assinalar que LABAND
é mais “civilista” que GERBER110.

Deste modo, a abordagem labandiana sobre o Direito do Estado fixa sua


articulação em torno do conceito de lei (Gesetz), entendida como a mais alta
expressão da vontade do Estado. Metodologicamente, seu positivismo legalista
pretendia identificar o correto desde uma abordagem estritamente legal, jurídica e

state theory of Otto von Gierke (1841-1921), were part of a more general trend within the
humanities to emulate natural scientific methods in the nineteenth century. Both schools rejected
notions that the law had a transcendent origin: the positivist school insofar as it saw all law as
posited by the wordly and human state, and the organic school insofar as it derived laws from the
wordly ‘spirit of the nation’ (Volksgeist) in is natural, historical development. At the same time,
both positivist and organic theories — in Germany as in other European states in the nineteenth
century—assumed that the law comprised a unified system or even a real subject. The positivists
assumed that all statutes and ordinances were the expression of a unified “state’s will”; the organic
theorists presupposed the natural unity of the people or nation (Volk) from which law derived.
The two opposing theories of law in the empire shared an anthropomorphism of the state”.
108
KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p. 43.
109
Com posição, em parte, diferente, CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of
german constitutional Law, cit., p. 15: “Like Gerber, he presupposed an organic connection
between state and nation. The statutes and ordinances of the empire expressed the ‘state’s will,'
which he argued was also the will of society. But unlike Gerber, and to the chagrin of scholars in
the organic tradition such as Otto von Gierke, Laband never explicitly theorized how the statutes
and ordinances he studied related to the social “organism.” Prussia’s victory over Austria in 1866
had paved the way for the 1867 Constitution of the North German Confederation, the forerunner
of the 1871 Imperial Constitution. Laband simply assumed that all laws based on the 1871
Constitution were valid. Because of Bismarck’s success in forging a new state, Laband was able to
draw a far stricter line than Gerber had between legal scholarship and politics, history, and
sociology”.
110
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 250.

45
lógica, através de um método jurídico puramente conceitual (Begriffsjurisprudenz)
que bania considerações históricas, políticas e filosóficas da análise do Direito do
Estado111.

Nessa perspectiva, a Constituição, para LABAND, apesar de “redentora”,


não podia ser considerada em posição acima do Estado, mas, apenas como um ato
e vontade deste, como qualquer outra lei. Destarte, ela também poderia ser
modificada por vontade do Estado112. Nesse sentido, a relação da Constituição com
a lei ordinária seria equivalente à relação de uma lei geral com uma lei especial,
logo, o Estado, entendido como vontade organizada e autônoma, teria prioridade
sobre quaisquer normas113. Essa vontade do Estado, por sua vez, era exprimida não
pelo parlamento, mas sim pelo monarca, ele mesmo, órgão estatal114.

Desse modo, através de sua “neutralidade”, LABAND ao mesmo tempo


afirmava fortemente o poder do monarca na estrutura estatal, de modo que os
próprios direitos individuais eram considerados como provenientes da decisão da
vontade do Estado. Essa formulação acompanhou e contribuiu para um momento
de relativa calmaria interna do Estado Alemão a partir de 1871, muito fruto de um
111
MURKENS, Jo Eric Khushal. From Empire to Union, cit., p. 14: “In methodological terms,
statutory positivism sought to derive what was ‘right’ from the statute via a purely conceptual
juristic method (Begriffsjurisprudenz) which banned historical, political, philosophical
considerations from the analysis of state law. Legal analysis had to be juristic and logical”; também
em, KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany, op. cit., p.
43. Ou, nas palavras do próprio LABAND: “le rôle scientifique de la dogmatique, dans un droit
positif déterminé, consiste à analyser les formes juridiques, à ramener les notions particulières à
des principes plus généraux et à déduire de ces príncipes les conséquences qu'ils impliquent.
Tout cela – abstraction faite de l'exploration des règles de droit positif, de la connaissance
approfondie et de l'entendement complet de la matière que l’on traite – est un travail d'esprit
purement logique. Pour remplir cette tâche, il n'y a pas d'autre moyen que la logique; rien ne peut
ici la remplacer; toutes les considérations historiques, politiques et philosophiques, si précieuses
qu'elles puissent être en elles mêmes, sont sans importance pour la dogmatique d'un Droit
concret et ne servent trop souvent qu'à voiler le manque de travail systématique”, LABAND,
Paulo. Le droit public de l'Empire allemand. Tomo I. Paris: V. Girard & E. Brière, 1900, pp. 9 e
10; trata-se de passagem inscrita no prefácio da segunda edição alemã de sua obra.
112
Essa compreensão fica clara em uma passagem recorrentemente reproduzida na literatura
sobre o autor, como em CALDWELL e BERCOVICI, em que LABAND nomeadamente expressa:
“La Constitution n'est pas une puissance mystique, qui plane au-dessus de l'Etat, elle est, comme
toule autre loi, un acte de volonté de l'Etat et, par conséquent, variable au gré de lá volonté de
l'Etat”, LABAND, Paul. Le droit public de l'Empire allemand. Tomo II. Paris: V. Girard & E.
Brière, 1901, p. 314.
113
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
36.
114
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 252.

46
governo central forte, militarista e autoritário115. Como aponta HERMANN HELLER,
a pureza jurídica que dominou a Alemanha nos tempos de GERBER e LABAND,
com suas exigências lógico-jurídicas e com “a irrealidade de seu Estado”, no fundo,
são uma valoração política referente ao liberalismo116, especialmente, econômico.

No aproximar da virada do século e, especialmente, nas primeiras décadas


do novecentos, o “método jurídico-legal” de GERBER e LABAND seguiram
dominantes, mas começaram a ser alvo de questionamentos. Se, por um lado,
iniciou-se uma fase de reflexão e crítica desde dentro da tradição positivista,
marcada pela maior preocupação epistemológica sobre a autonomização da
argumentação legal, com autores como GEORG JELLINEK e, posteriormente,
HANS KELSEN; por outro, começam a aflorar construções antipositivistas (ao
menos, contrárias ao positivismo jurídico), de modos muito diversos,
desenvolvidas por autores como ERICH KAUFMANN, RUDOLF SMEND e CARL
SCHMITT, preocupadas com questões substantivas que ganharam volume,
especialmente, depois de 1919.

Também é com o início do século XX que, novamente, mais


detidamente, voltam-se os olhos sobre a Filosofia do Direito, que, segundo
EMERSON, ficara adormecida e deixada de lado na segunda metade do Século
XIX, perdendo espaço para abordagens materialistas e empiristas117.

115
A questão da vontade do Estado e da Soberania no Estado alemão desse período são bastante
afloradas, sobretudo, tendo-se em conta os arranjos e discussões a respeito da Soberania e
autonomia do federalismo nascente. Tratando bastante desse tema e da posterior inclusão do
argumento da vontade do Povo e da Soberania Popular, antes e durante a República de Weimar,
por todos, a já citada: CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german
constitutional Law, cit.
116
HELLER, Hermann. La soberanía: contribución a la teoría del Derecho Estatal y del Derecho
internacional. Mexico: UNAM, 1965, p. 309.
117
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany, cit., p. 155: “The beginning of
the twentieth century witnessed a marked and significant return in German jurisprudence to the
circle of ideas which had characterized the beginning of the nineteenth. Materialism and
empiricism began to give way to the assaults of idealism and philosophic criticism. The same
general trend was visible in every field of thought, and philosophy came again to take its place as
at once the crown and the foundation of all human speculation. With rallying cry of ‘Back to
Kant’ and ‘Back to Hegel’ whole new schools sprang up in opposition to the era of positivistic
materialism that had lasted for more than half a century. The ’thirties and ’forties of the last
century had seen the gradual dying out of the great flames of philosophy. Hegel proved the
culminating point of great movement. The successors of Hegel divided against themselves into
theological right wing and a materialistic left. With the minor exception of the school of Krause
47
Desde GERBER, durante toda a segunda metade do século XIX, muitas
foram as contribuições ao desenvolvimento da Teoria e Doutrina do Estado e do
Direito do Estado118.

Dentre os juristas desse período, GEORG JELLINEK (1851-1911)119,


certamente, merece destaque e pode ser tratado como o autor de síntese desse
caminhar120. Sua Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatsrechtslehre), em boa
medida, é uma expressão sistemática de uma série de conclusões que foram
desenvolvidas em trabalhos anteriores. Em que pese ser, na verdade, uma obra
inacabada, sendo a versão publicada apenas a primeira parte de um trabalho
maior, cuja segunda parte foi, tão somente, registrada num ligeiro esquema não
desenvolvido em virtude da morte prematura do autor121, trata-se de obra muito
importante, quiçá, a mais importante e influente para a Teoria Geral do Estado,
tendo sido traduzida para vários idiomas de forma praticamente imediata à sua
publicação.

JELLINEK inicia sua magnum opus afirmando que o homem, enquanto ser
psíquico, é objeto da ciência de duas maneiras: como indivíduo e como ser social.
Já também na primeira nota do trabalho expõe a influência recebida do
neokantismo de Baden, ao definir as ciências do Espírito em referência a
RICKERT, identificando seu objeto de investigação com os fenômenos da vida
humana em comum122. Dessa marca desdobra-se a firme distinção entre o ser e o

the one important philosophy of law between Hegel and the close of the century was that of Stahl
which, however, proved of practical rather than philosophical significance. As throughout the
realms of science, in jurisprudence empiricism held almost uncontradicted sway. Philosophical
speculation gave way to an historical positivism absorbed either in the ‘preparation for the judge of
the law currently in force or in the digging up of law long since extinct; its second task of pointing
out the way for the legislator through the evaluation of the existing law and setting up a righter on
it left out of consideration”.
118
Sobre os desenvolvimentos desse período, por todos: STOLLEIS, Michael. Public Law in
Germany, 1800-1914, cit.
119
O filho de GEORG JELLINEK, WALTER JELLINEK, também foi um importante jurista do
Direito Público. Neste trabalho, sempre que se falar de JELLINEK, simplesmente, estará se
referindo ao pai: GEORG JELLINEK.
120
STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914, cit., pp. 440-444.
121
LOS RÍOS URRUTI, Fernando de. Prólogo del traductor. In: JELLINEK, Georg. Teoría
General del Estado. México: FCE, 2000, pp. 13-52. Essa segunda parte traria uma Teoria
especial, particular, do Estado (Besondere Staatslhere).
122
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 55.

48
dever ser, presente em sua obra, o que o levou a identificar o Estado, a um só
tempo, como construção social e como instituição jurídica e, assim, a conceber
que a Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre)123 tem duas faces: uma
“teoria geral social do Estado” (Allgemeine Soziallehre des Staates) e uma “teoria
geral do Direito do Estado” (Allgemeine Staatsrechtlehre)124.

Desse modo, JELLINEK indica expressamente a necessidade de se


reconhecer as ciências sociais empíricas, sem, com isso, confundi-las com a
independência da área jurídica, sendo-lhe absolutamente importante a
compreensão de que todo o conhecimento só se faz possível quando isolado o
objeto de estudo. Por esse motivo, é possível apontar que JELLINEK, embora
partindo das construções jurídicas formais de GERBER e LABAND, intenta
reintegrar os aspectos sociais e históricos da formação do Estado125.

Desde essa perspectiva, entende que a teoria social considera o Estado em


sua unidade, a partir da metodologia das ciências sociais, enquanto a teoria jurídica
o realiza a partir de métodos estritamente jurídicos. Assim, a primeira estaria
relacionada à natureza, propósitos e à legitimidade do Estado e a segunda aos
conceitos e às formas. Nesse sentido, afirma que ambas as perspectivas são formas
igualmente corretas de se entendê-lo, que, no entanto, não devem ser confundidas,
uma vez que o Estado é uma entidade multifacetada que não pode ser reduzida a
um aspecto único126.

123
A palavra Lehre não raro é traduzida por Doutrina. Isso é visto, por exemplo, nas traduções
das obras alemãs para o italiano, bem como, nos clássicos italianos da disciplina, como as obras
de ORLANDO ou de GROPALLI. Já na tradição francesa ela chega, também, como Teoria, como
se vê, por exemplo, na clássica obra Contribution à la théorie générale de l'Etat de CARRÉ DE
MALBERG, muitíssimo influenciada pela Teoria Geral do Estado de JELLINEK.
124
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 61. Quanto à tradução desses termos,
vale aqui o registro, já realizado em nota anterior, quanto ao sentido de Staatsrecht e
Staatsrechtslehre. No entanto, vale o destaque para o fato de que na tradução castelhana que
utilizamos encontra-se: “doctrina general del Estado” e “doctrina general del derecho público”.
Na versão de língua inglesa do trabalho de STOLLEIS, a tradução segue sentido similar:
“generalized social doctrine of the State” e “generalized doctrine of constitutional law”,
respectivamente. BERCOVICI, por sua vez, traduz por “teoria social do Estado” e “teoria jurídica
do Estado”. STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914, cit., p. 441;
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit.
125
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law, cit., p. 192.
126
STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914, cit., p. 441; LOUGHLIN, Martin.
Foundations of Public Law, cit., p. 193.
49
Desse modo, JELLINEK tentou avançar sobre a teoria de LABAND, não em
busca de uma alternativa propriamente dita, mas almejando construir uma
Allgemeine Staatslehre que, sem abandonar a centralidade do Estado enquanto
pessoa jurídica, superasse a rigidez do método lógico-formal labandiano. Fez isso
porque reconhecia que a compreensão do Estado – quer do ponto de vista social,
quer da perspectiva jurídica – dependia de observações complementares da
política.

Portanto, para ele, a política, ainda que não se confunda com o Direito,
apresenta-se como indispensável para a investigação do Direito do Estado. E
entende que ignorar isso é correr o risco de tornar esta, uma disciplina
estritamente escolástica, como o fez LABAND. Destarte, JELLINEK ambiciona,
justamente, refletir acerca da capacidade da Teoria do Estado oitocentista
compreender e encaminhar os desafios políticos postos na virada do século127.

Essa disposição é reconhecida, inclusive, por HELLER. No entanto, este o


faz, não sem apontar para o fato de que JELLINEK percebe essa dinamicidade, mas
não consegue desprender-se dos pressupostos científicos de seu tempo: do
positivismo. Até por isso, JELLINEK também não consegue rechaçar a dissociação
entre teoria e prática, entre a ordem estatal em repouso e em movimento,
aceitando, em boa medida, os “resultados vazios” do Gesetzespositivismus,
pretendendo, apenas, “complementá-los” mediante a observação do político128.

É marcante a JELLINEK, em ambas as formas de se conhecer o Estado, a


identificação de seus três elementos: território, povo e dominação (esta, para ele,
não se confunde com soberania). Deste modo, afirma que não é possível conceber
o Estado como um conceito que se submete a uma categoria política superior de
comunidade, porque no próprio conceito do político já se encontra compreendido
o de Estado e, por isso, todo o poder de domínio exercido em seu contexto só
pode defluir dele mesmo. Deste modo, qualquer comunidade que disfrute de um

127
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 254; CARVALHO, Orlando M.
Caracterização da Teoria Geral do Estado, cit., pp. 65-66.
128
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 83. HELLER aponta ainda, de modo um tanto
raivoso, que a tentativa de eliminação radical do político na teoria do Estado é, finalmente levada
a cabo por KELSEN: “y, por cierto, ad absurdum”.

50
poder de domínio não derivado, independente, portanto, originário, na verdade é
um Estado. Nesse sentido, é o poder de domínio que diferencia o Estado de todos
os demais poderes, sendo ele a marca do Estado moderno. Nesses termos, o
conceito social de Estado é definido pelo autor na máxima: “el Estado es unidad
de asociación dotada originariamente de poder de dominación, y formada por
hombres assentados en un território”129.

Do ponto de vista jurídico, JELLINEK, primeiramente, refuta as posições


que se aproximam de uma definição do “Estado como objeto” ou do “Estado
como uma relação jurídica”, para, então, trata-lo como um sujeito de direito,
comparando o conceito de Estado ao conceito de corporação. Assim, anota que o
conhecimento jurídico do Estado não se propõe explicar sua natureza real, mas
formular um conceito que abarque, sem contradições, todas as propriedades
jurídicas do Estado130. Portanto, nas palavras de JELLINEK, juridicamente o Estado
é: “la corporación formada por un pueblo, dotada de un poder de mando
originario y asentada en determinado territorio; o para aplicar un término muy en
uso, la corporación territorial dotada de un poder de mando originario”131.

Apesar dessa primeira definição, o autor avança em superar as acepções


que o antecedem, identificando que o Estado precisa ser justificado. Entende que
os fins do Estado justificam sua ação (seu conteúdo material) e seu fundamento
seu ser. Ambas as dimensões, juntas, realizam a justificação completa do processo
da vida do Estado, termos em que, apenas no Estado é possível formar-se o
Direito. Isso significa que o Estado antecede o Direito e que, por isso, seu ato de
nascimento está fora deste.

Direito e Estado, no entanto, coincidem em seu fundamento: possibilitar


uma vida social garantida. Desse modo, JELLINEK refuta qualquer perspectiva
otimista de vida social que dispense formas de controle. Em razão da própria
multiplicidade ética dos indivíduos, acredita ser impossível calcular de maneira
precisa os efeitos das motivações egoístas ou altruístas sobre eles. Assim, só o

129
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 194.
130
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 180.
131
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 196.

51
Direito e o poder soberano que o garante podem unir a grande variedade de
concepções éticas, permitindo a vida comum sobre as bases da segurança das
ações mútuas. Destarte, o traço definidor do Direito, em JELLINEK, é justamente a
obrigatoriedade.

Adverte, todavia, que a justificação científica do Estado só é possível na


medida em que não se tenha em conta uma única e determinada forma do Estado.
Com isso, afirma que um tipo ideal, de valor universal, só é presumível quando se
parte de princípios com fundamentos metafísicos, “acerca de los cuales
precisamente jamás existe conformidade”. Para JELLINEK, todo Estado em sua
forma concreta e particular é obra das forças históricas que nem mesmo podem
ser facilmente representadas de maneira absolutamente racional:

el Estado en su forma concreta, en la variedade de sus


manifestaciones históricas, sólo aparece justificado mediante los
fines que ejecuta. De aquí que la doctrina de la justificación del
Estado tenga necesidad para completarse de la doctrina de los
fines132.
Nesse contexto, JELLINEK desenvolve que há três gêneros de interesses
solidários que o Estado deve cuidar: os individuais, os nacionais e os humanos. E é
tendo-os em consideração que define a justificação teleológica do Estado no seu
caráter de:

asociación de un pueblo, poseedora de una personalidad jurídica


soberana que de un modo sistemático y centralizador, valiéndose
de medios exteriores, favorece los intereses solidarios
individuales, nacionales y humanos en la dirección de una
133
evolución progresiva y común .
Avançando especialmente quanto ao Estado moderno, JELLINEK atribui-
lhe três características básicas: sua unidade, sua organização conforme uma
constituição e a autolimitação frente ao indivíduo134. Logo, o que lhe é
determinante, é a autolimitação do Estado como garantia jurídica. É a submissão
ao direito posto em referência à segurança jurídica que coloca a relação entre o
Estado e o indivíduo nos termos de uma relação jurídica e não de mera força. Essa

132
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 233.
133
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., p. 264.
134
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., pp. 313-314.

52
formulação é fundamental para o constitucionalismo: o Estado obriga-se a cumprir
o Direito que ele mesmo estabelece para os cidadãos, bem como, para todos os
atos do Estado135.

Contudo, “a identidade entre Estado e povo, a partir das ideias de


soberania popular e poder constituinte, é, segundo Jellinek, equivocada, pois
confunde a convivência dos indivíduos com a concepção do povo como
comunidade”136. O povo é apenas um elemento e um órgão do Estado, sendo os
indivíduos, enquanto sujeitos, dotados de direitos subjetivos e, enquanto objeto,
sujeitos de deveres.

Como mencionado, desde a metade do século, com GERBER, o Estado


deixa de ser entendido como propriedade do príncipe, que, assim como o povo,
passa a ser dele um órgão. Nessa ordem, para essa construção, a soberania não é
do povo, nem do governante, a soberania é do Estado. Com isso, demarca-se
fortemente a relação entre o Estado moderno e a segurança da ordem, marcas que
configuram a essência do Estado de Direito formal, e apenas com a autolimitação
do Estado ele se torna Estado de Direito137.

Sobre essa percepção, não raro se aponta ao paradoxo de JELLINEK. Isso


porque, do ponto de vista social, ele reconhecia o Estado como uma questão de
fato, da facticidade do poder, e do ponto de vista jurídico, como uma pessoa legal.
Assim, do ponto de vista social o Estado se confrontaria e seria influenciado por
outras forças sociais (poder normativo dos fatos), enquanto do ponto de vista
jurídico, apenas o próprio Estado poderia autolimitar-se. Essa questão expõe, em
boa medida, parte das dificuldades de um isolamento do campo jurídico, sendo
retomada por vários dos debates subsequentes138.

135
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, cit., pp. 346-352. A exceção do ato de
nascimento do próprio Estado: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 256.
136
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 258.
137
LA TORRE, Massimo. Law as institution. Dordrecht: Springer, 2010, p. 10.
138
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., pp.
42-44: “The coexistence of law that bound the state and the presumption of the state’s sovereignty
formed what I will term ‘Jellinek paradox’”.

53
De todo modo, a obra de JELLINEK é bastante ampla e, em muitos
trabalhos, o autor permitiu-se ser “metajurídico”. No entanto, como jurista, é
possível dizer que ele foi profundamente identificado e comprometido com o
método positivista, como posto por GERBER e seu esforço por purificar o
conhecimento jurídico139. Por isso, é possível afirmar que JELLINEK é, se não o
último, ao menos, o mais pronto portador da voz do Gesetzespositivismus
oitocentista140.

Todo o Direito do Estado e, na sequência, todo desenvolvimento da


Teoria da Constituição, tiveram como ponto de partida a crítica e a oposição a
essa perspectiva. Os primeiros trabalhos que desembocam na luta pelo método já
se apresentam, nos quinze primeiros anos do século XX que antecederam a
Primeira Guerra Mundial. Nesse período, KELSEN, SCHMITT, SMEND e outros, já
publicavam seus primeiros textos que tendiam a propor os problemas dos
caminhos da Teoria e Doutrina do Estado e do Direito do Estado que os
antecedem.

Nesse contexto, como se verá, KELSEN, de certo modo, liga o período e


espírito do Império à República de Weimar e, assim, simbolicamente, o espírito
do Direito do Estado do XIX ao espírito do Direito do Estado do século XX,
fazendo-o de forma bastante particular, levando ao extremo o pensamento
positivista141.

139
EMERSON, Rupert. State and Sovereignty in modern Germany, cit., p.60. CALDWELL,
Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit.: “the legal system was a
closed whole, individual rights existed only as part of that closed system, and jurisprudence had to
exclude political or historical perspectives to remain a science”.
140
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law, cit., p. 192. Apesar de seus “isolamentos” e
positivismos, não deixa de ser interessante a passage da obra clássica de JELLINEK: “El
fundamento último de todo derecho radica en la convicción inmediata de su obrigatoriedad, de
su fuerza determinante y normativa. Las tres características que hemos dado anteriormente del
derecho concuerdan en un punto, a saber: en que se trata siempre en ellas de normas y estas no
significan jamás nada que venga de exclusivamente de fuera, sino que necesitan descansar en una
propiedad del sujeto para que de este modo pueda ser reconocida como legítima por aquél. De
aquí que se trate finalmente de una convicción condicionada por la situación general de cultura en
un pueblo, de lo cual depende el que la exigencia de la conservación de algo en norma llegue
realmente a poseer este carácter en un momento dado”, JELLINEK, Georg. Teoria general del
Estado, cit., p. 349.
141
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience, op. cit., p. 16; HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 84.

54
Com essa breve exposição até aqui, pretendeu-se, basicamente, dois
objetivos. Primeiro, de algum modo, apresentar a sequência que deu azo ao
Direito Público, ao Direito Constitucional e, especialmente, à Teoria da
Constituição de Weimar. Além disso, busca-se reforçar que as pretensas
cientificidade e neutralidade recorrentes e próprias do formalismo jurídico,
presentes na grande maioria de perspectivas positivistas, em geral, são histórica e
logicamente decorrentes de uma perspectiva ideológica e de um projeto político
muito específico, que, no fundo, nada tem de neutral.

Como aponta MICHAEL LÖWY, “O positivismo, que se apresenta como


ciência livre de juízos de valor, neutra, rigorosamente científica, que no dizer de
Augusto Comte, ‘não admira nem amaldiçoa os fatos políticos’, acaba tendo uma
função política e ideológica”142. Essa marca aprofunda-se, especialmente, quando se
tem em conta uma realidade, eminentemente, jurídico-política como é a
experiência constitucional. Em seu contexto, a posição de pretender-se neutro é,
ela mesma, uma posição ideologicamente comprometida e será nesses termos que
HELLER transformará a própria Teoria Geral do Estado em Teoria do Estado e
postulará que o positivismo jurídico não é capaz de explicar, nem mesmo, a
positividade do direito143.

Deste modo, pode-se apontar ao Gesetzespositivismus, em suas diversas


formas, o comprometimento com a manutenção de uma ordem posta,
economicamente liberal e politicamente conservadora, como era a ordem do
então Império Alemão.

As questões relacionadas à cultura política e à cultura constitucional,


propriamente dita, quase nunca estiveram presentes nas bases do Direito Público
pré-Teoria da Constituição, tampouco, foi articulada a relação entre legitimidade,
validade e eficácia de uma Constituição. Pretendia-se, naquele momento, que,
“científica” ou positivamente, o Direito fosse concebido a partir de conceitos

142
LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 7 ed. São
Paulo, 1991, p. 40
143
DYZENHAUS, David. Hermann Heller. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard
(org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002, p. 251;
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 254.

55
indutivamente alcançáveis, como se, de algum modo, eles pudessem ser
dogmaticamente acessíveis. Quando, na verdade, essa postura refletia, em si, a
cultura política propugnada pelo modelo político autoritário da época e pelo
próprio modelo de Rechtsstaat formal em torno do qual se amarrava.

Em boa medida, isso se colocava em relação com o desprendimento da


dinâmica constitucional e seu próprio fundamento na soberania popular e sua
dimensão política. O Direito seria válido e/ou legítimo, desde que refletisse
conceitos racionalmente acessíveis ou, mesmo, que fossem frutos do poder estatal.
Essa postura pouco dialética por muitas vezes foi colocada como, praticamente,
oficial. A preocupação com a identidade entre cidadão e constituição passava ao
largo dos questionamentos desse Direito do Estado pré-Weimar, em muito,
inclusive, pela pouca relevância das questões democráticas nesse momento. Isso
retira, ou melhor, esconde o peso da própria politicidade da dinâmica
constitucional e de sua compreensão.

Nesse momento, o Direito do Estado germânico não se pretende


enquanto modelo que vence a força pela não força ou, ao menos, é muito pouco
disso ainda. Ele é força em si. Autoridade ainda muito atrelada aos poderes
históricos, de modo que a identidade entre povo e soberano colocava-se de forma
muito pouco aguçada e consolidada144.

Com Weimar, o cenário muda de figura. Há um processo de alargamento


da atuação do Estado, bem como, um processo de juridificação da vida e das
questões políticas. Mesmo as disputas essencialmente políticas – pelo menos, um
número significativo delas – passaram a ser colocadas nos termos de uma disputa
democrática constitucionalizada e institucionalizada. A ordem normativa de
Weimar, por uma série de fatores, a princípio, não mais tentava colocar-se
simplesmente pela força do poder, mas pelo argumento do poder justificado.

144
É verdade que as relações entre Estado de Direito e democracia se colocavam de forma
diferente em outros Estados nacionais, especialmente, em França, nos EUA e, a seu modo, na
Inglaterra. Contudo, como nosso interesse aqui é caminhar no/para o desenvolvimento da Teoria
da Constituição em Weimar, como mencionado antes, seguimos o fluxo do desenvolvimento
alemão.

56
Poder democrático. Não por acaso, é em meio a essas disputas que surge a Teoria
da Constituição.

1.2. REPÚBLICA DE WEIMAR

A República de Weimar, tanto por sua vida, quanto pelo seu destino, é
um episódio muito trabalhado na historiografia. Foi um momento de grande
complexidade social e transformações culturais, convulsões sociais,
experiencialismos e incertezas. Essas características, a amplitude do tema, o espaço
e a natureza deste trabalho, não o habilitam a qualquer tentativa de maior
aprofundamento sobre a complexidade dos anos entre 1919 e 1933. Portanto,
aqui não se pretende, de forma alguma, um remontar mais denso desse período.
No entanto, é inevitável alguma aproximação para que seja possível alguma
compreensão do surgimento da Teoria da Constituição, bem como, a percepção
de que a efetividade de uma constituição depende de uma cultura constitucional.
Não de outra forma, não raro se aponta como um dos principais motivos para o
fracasso de Weimar o fato de ela ter sido uma república sem republicanos145, uma
democracia sem democratas146, um momento em que não foi possível se
desenvolver uma cultura constitucional, tampouco, uma cultura de constituição.

A Monarquia alemã adentra o século XX, mas encerra-se com a derrota


na Primeira Guerra Mundial e a assinatura do Tratado de Versailles. As massas e
forças de trabalhadores que começaram a movimentar o cenário político europeu
desde a Primavera dos Povos, foram ganhando cada vez mais espaço,
fortalecendo-se na conjuntura sócio-política alemã. Essas forças, também

145
A frase é geralmente atribuída a SEBASTIAN HAFFNER.
146
NEUMANN, Franz L. The decay of German democracy. In: NEUMANN, Franz L.;
KIRCHHIMER, Otto; SCHEURMAN, William E. (ed.). The Rule of Law under siege.
University of California Press: Berkeley, 1996, pp. 29-43: “German democracy committed suicide
and was murdered at one and the same time. A democracy without democrats found its end with
the appointment of Hitler as chancellor on January 30, 1933”, p. 41.

57
influenciadas pela revolução russa de 1917, acabaram por promover a
Novemberrevolution entre 1918 e 1919, colaborando de forma preponderante
para o enfraquecimento do poder Hohenzollern, para o fim da Primeira Guerra
Mundial e para a implementação da República e, com ela, a Constituição de
Weimar.

STOLLEIS, inclusive, dirá que praticamente tudo que despertou paixões no


Direito do Estado alemão e no direito internacional no período do entreguerras
giram em torno desses três polos: a Novemberrevolution, a Constituição de
Weimar e o Tratado de Versailles147.

Desde 1848, a disputa social na Europa central, particularmente da


Alemanha, vinha sofrendo pressões populares e do proletariado. A influência
dessas lutas e reinvindicações acabaram por ser incorporadas e, em boa medida,
colocaram-se como determinantes para o constitucionalismo do século XX. Nesse
sentido GRIMM chega a dizer que “a revolução de 1848 foi uma revolução nos
direitos fundamentais” 148.

Após um conturbado fim de guerra e uma Revolução em 1918, que até


hoje é objeto de disputa, instaura-se a primeira República alemã. Junto com ela
chega sua Constituição, feita em 1919, na histórica e cultural cidade de Weimar,
longe da guerra civil que se via nas ruas de Berlim.

A Constituição de Weimar sucedeu a Constituição Imperial de 1871, que


nem ao menos previa direitos básicos e limitava-se a descrever a forma do Estado
e os procedimentos para criação de leis. Até por isso, a Constituição de Bismarck
era tida como uma carta constitucional “apolítica”149.

Weimar, a seu turno, foi uma Constituição já desde cedo muito


combatida, mesmo no período de sua Assembleia Constituinte. Inicialmente
foram os militantes de esquerda, dentre eles, ROSA DE LUXEMBURGO e as Ligas
147
Para aprofundamento sobre esse período e sua complexidade, especialmente acerca do Direito
Público, por todos: STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945.
Oxford: Oxford University Press, 2004, pp. 45-105.
148
GRIMM, Dieter. Constituição e política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 77-82.
149
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., pp.
IX e X.

58
Spartakistas, que a condenavam por verem nela um desvio em relação aos fins
socialistas da Revolução150. Por outro lado, as linhas conservadoras viam-na com
maus olhos, especialmente, por causa das disposições sociais de sua segunda parte.

A Constituição de Weimar teve, como marca original, uma assembleia


eleita em sufrágio que pela primeira vez, na Alemanha, contou com o voto
feminino, de soldados e de jovens a partir dos vinte e cinco anos. Foi uma
assembleia politicamente bastante dividida, que deixava transparecer a pouca
unicidade do cenário político nacional. A realidade que transparecia era a de que:
“nenhum partido tinha maioria para governar sozinho”151. Até por isso, a
Constituição de Weimar não era “homogênea, monolítica, mas uma expressão das
relações entre as forças em disputa em 1919”, era um compromisso politicamente
aberto de renovação democrática que por diversos fatores, políticos, econômicos e
sociais, não puderam ser levados a cabo152.

Tratou-se, maximamente, de uma Constituição compromissária,


programática, cuja segunda parte introduziu – na sequência da Constituição
mexicana de 1917 – os direitos sociais no constitucionalismo. Boa parte da luta
pelo método se deu, em alguma medida, em torno dos limites e possibilidades
dessas inovações.

Ainda que o projeto inicial apresentado por HUGO PREUSS não contivesse
um capítulo sobre os direitos fundamentais153, a própria assembleia encarregou-se
de construir e viabilizar a segunda parte da Constituição. Nesse sentido,
BERCOVICI afirma que segundo “Richard Thoma, a democracia de Weimar era
uma democracia na forma e na substância, pois buscava a incorporação das classes
trabalhadoras no Estado com base na emancipação política completa e na
igualdade de direitos”154. HELLER também apontava que com ela, especificamente,

150
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 293.
151
LOUREIRO, Isabel. A revolução alemão [1918-1923]. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
152
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 26.
153
PREUSS, politicamente, era amplamente a favor da democracia social, mas receava que uma
proposta nesse sentido levasse a uma grande disputa política que ameaçasse a unidade nacional.
154
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 27.

59
e com a democracia social, de um modo geral, o que se queria era tocar com o
Estado material de Direito os mundos do trabalho e da mercadoria.

De todo modo, a nova Constituição alemã, como a natimorta


Paulskirchenverfassung de 1849, consolidava um novo Direito que emergia da
ruptura com o velho, menos preocupada com sua recepção no presente que com
formar os arranjos para um futuro político155.

Toda essa conjuntura, na esteira de um intenso desenvolvimento das


questões relacionadas à Teoria do Estado, culminou no nascimento da Teoria da
Constituição. Esse fato, aliado à grande e preponderante influência que o
constitucionalismo e o Direito Constitucional alemão tiveram em toda a cultura
jurídico-política romano-germânica, fazem da luta pelo método de Weimar o
ponto de partida para os caminhos à(s) resposta(s) sobre o conceito de
Constituição e sobre a cultura constitucional.

Um traço comum aos debates desse momento é o fato deles,


curiosamente, via de regra, serem travados em nível teórico-abstrato, a partir de
construções conceituais. É bastante pequena a influência das decisões dos tribunais
na história constitucional alemã até 1949, como, do contrário, é marca
característica da história constitucional estadunidense156. É possível que essa
característica tenha, inclusive, contribuído para o fato de o constitucionalismo
americano ter caminhado na direção de um enfático provincianismo, como aponta
ACKERMAN157.

Normalmente, alegam-se algumas razões para compreender essa


abstração. A primeira delas coloca-se no caráter mais marcadamente conceitual-
abstrato da própria cultura romano-germânica em relação à cultura anglófona,
especialmente, no que diz respeito às concepções de Estado e da comunidade

155
STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945, cit., p. 64.
156
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
14. Sobre os momentos constitucionais de formação e reconformação nos Estados Unidos da
América do norte, com bastante ênfase ao papel dos tribunais, é bastante interessante a trilogia
“We the people” de BRUCE ACKERMAN, especialmente o volume 2: ACKERMAN, Bruce. We
the people: transformations. Cambridge: Belknap Press, 2000.
157
ACKERMAN, Bruce, The Rise of World Constitutionalism. Virginia Law Review, v. 83, n. 4,
pp. 771-797, 1997, p. 773.

60
jurídico-política. Várias dicotomias e paralelismos podem ser identificados ao se
comparar o pensamento anglo-americano e o pensamento continental europeu. As
possibilidades de polarização nesse sentido são várias: de um lado o empirismo de
FRANCIS BACON, do outro o racionalismo de DESCARTES158; em uma mão os
sistemas jurídicos de common law, na outra os sistemas jurídicos de matriz
romano-germânica – com a consequente diferença da primazia das fontes do
direito vigorante em cada um dos sistemas; o rule of law anglófono e o Rechtsstaat
(ou em sua versão francesa, um pouco diferente, L’État de Droit)159 continental; de
um lado, uma cultura política em que a Constituição precede/constitui o próprio
Estado (nos EUA mais claramente, mas também, de certo modo, na própria
Inglaterra160) e, de outro, uma cultura política em que o Estado precede a própria
Constituição161; ainda, em uma cultura política em que se constrói o
presidencialismo com uma separação dos poderes mais rígida162, na outra, o

158
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 46.
159
BÖCKENFÖRDE vai além, registrando acerca do conceito de Rechstaat que: “The ‘rule of law’ in
Anglo-Saxon law is not in substance a parallel concept, and French terminology has no
comparable words or concepts whatever”, BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. State, Society and
Liberty. Oxford: Berg Publishers, 1991, p. 48. Já JORGE MIRANDA relaciona: “A expressão
‘Estado constitucional’ parece ser de origem francesa, a expressão ‘governo representativo’ de
origem anglo-saxónica e a expressão ‘Estado de Direito’ de origem alemã. A variedade de
qualificativos inculca, de per si, a diversidade de contribuições, bem como de acentos tónicos”,
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição, cit., p. 33. Abordando, especialmente, as
figuras do Rechtsstaat, do L’État de droit e do rule of law norteamericano e ingês: ZOLO, Danilo.
Teoria e crítica do Estado de Direito. In: ZOLO, Danilo; COSTA, Piero (org.). O Estado de
Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 3-94.
160
Diz-se “de certo modo” porque a tradição constitucional inglesa, inclusive, por não ser
majoritariamente escrita ou organizada, remonta a tempos imemoriais, contando com vários
documentos antiquíssimos existentes desde antes mesmo da constituição da Inglaterra como
Estado, MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.
44.
161
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience, op. cit., pp. 1-2.
162
Destacando-se o fato de essa ser uma realidade norteamericana e não inglesa, são interessantes
as observações feitas por JORGE MIRANDA quanto à aproximação do parlamentarismo britânico
com o presidencialismo: “O realce da posição do Primeiro-Ministro dentro do Gabinete britânico
e o sentido político conferido às eleições gerais na Grã-Bretanha têm levado certos autores a
assimilar o sistema britânico de governo ao sistema americano – ou seja, a sugerir que, sob a capa
de parlamentarismo, o que existe no fundo em Inglaterra é um sistema presidencialista. Na
verdade, dir-se-iam semelhantes a posição do Presidente dos Estados Unidos e a do Primeiro-
Ministro britânico. Ambos são objecto de votação popular (ao elegerem o Deputado do seu
círculo, os eleitores britânicos votam no respectivo partido e no seu chefe, o qual, se o partido for
majoritário, se tornará automaticamente Primeiro-Ministro); e um outro praticamente mantêm-se
no poder por um período certo, sem serem derrubados pelo Congresso ou pela Câmara dos
61
parlamentarismo com uma separação dos poderes um tanto mais fluida163, dentre
tantas outras possibilidades164.

Além desses dois aspectos, deve-se ter em conta o fato de as universidades


alemãs, especialmente até 1918, serem maximamente voltadas para a formação
dos funcionários públicos da burocracia estatal – via de regra, homens bem
nascidos, oriundos da aristocracia, mas, especialmente, das camadas mais altas da
classe média de toda a Alemanha. Desse modo, esse ensino era voltado para
questões do Estado, com um viés bastante mais teórico e, àquele momento, pouco
atento às questões de prática legal, mais detidamente. O próprio papel da doutrina
na vida jurídica alemã é bastante diferente, até hoje, daquele que a pesquisa em
Direito tem no cenário norte-americano, o que se estende ao próprio modelo de
ensino jurídico de cada país.

Ainda quanto ao papel das universidades na Alemanha dos oitocentos,


início dos novecentos, é de se ter em conta o prestígio e alta colocação dos
professores universitários na sociedade. Esse fenômeno desenvolveu-se,
especialmente, a partir do século XVIII e levou a uma verdadeira “nobilitação” da
posição, ao ponto de, em alguns momentos, o “título” de “Professor Doutor” ser
considerado mais prestigioso que alguns títulos menores de nobreza. Nesse
sentido, FRANK K. RINGER levanta a tese de que a monarquia prussiana
deliberadamente apoiou e apoiou-se no fortalecimento dessa elite intelectual de
funcionários não oriundos exatamente do seio da nobreza, com a intenção de tê-la

Comuns”, MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição, cit., p. 92. É certo que o
próprio JORGE MIRANDA na sequencia da mesma obra faz uma série de diferenciações quanto às
duas formas políticas.
163
E aqui essa observação vale tanto à separação dos poderes propriamente dita (horizontal, com
tripartição orgânico-funcional entre Executivo, Legislativo e Judiciário) quanto ao federalismo
(separação vertical dos poderes). Apesar de alguns Estados europeus terem o federalismo como
forma de Estado – casos de Alemanha e Áustria, por exemplo –, o Estado federal na Europa tem
configuração um tanto mais fluida e menos estanque que o norteamericano. Inclusive, o debate
sobre a divisão de competências entre União e Estados Federados esteve presente nos grandes
momentos e crises políticas e constitucionais dos Estados Unidos da América do Norte, quer na
Guerra de Secessão, quer no embate entre o presidente FRANKLIN DELANO ROOSEVELT e a
Supreme Court, entre o New Deal e a Doutrina Lochner, apenas para citar dois exemplos
emblemáticos.
164
Por exemplo, falando da filosofia contemporânea: DOMINGUES, Ivan. O continente e a ilha:
duas vias da filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2009.

62
como uma forte aliada contra os setores mais conservadores da aristocracia
reticentes às reformas e modernizações do Estado e da sociedade. RINGER trata-os
por intelectuais mandarins, tamanha sua força165.

Em complemento, se por um lado a abstração e teorização são


relacionadas à própria cultura e mundividência que comumente marcam o
estereótipo alemão, por outro, elas estão também vinculadas à instabilidade
político-estatal teutônica particular do início do século XX. Durante os 87 anos
que separam a nomeação de Otto von Bismarck para o cargo de ministro-
presidente da Prússia (1862) e a criação das duas Alemanhas (1949), o mundo
germânico teve diversos momentos jurídico-políticos absolutamente cortantes em
sua história, que significaram repetidas quebras de continuidade da estrutura
jurídico-institucional vigente. A aparente “calmaria” interna do período kaiserista
se dava, bastante mais, pela força do poder central que pela consolidação de uma
cultura constitucional e de Estado de Direito.

Não bastassem os diversos conflitos e disputas externos, da Prússia (e


Alemanha) com a Dinamarca, com o Império Austro-húngaro e com a França,

165
RINGER, Frank K. O declínio dos mandarins alemães, cit. Apesar dessa aposta inicial do
Kaiser HOHENZOLLERN nessa aliança, RINGER identifica que “embora ainda mantenha algum
controle da lealdade da nova elite, em parte porque é ele quem paga seus salários, o monarca
logo descobre que os mandarins estão prontos a usar seu crescente poder de negociação até
mesmo contra ele. Ele quer que suas universidades sejam apenas institutos para a produção de
auxiliares administrativos úteis e, de preferência humildes. Tem uma noção muito rasteira do
ensino prático. Teorias que não são imediatamente aplicáveis podem despertar-lhes suspeitas,
embora goste de saber que seus professores estão ensinando alguma doutrina sadia e singela de
devoção ativa e moralidade política. Por outro lado, os mandarins começam a se cansar do papel
puramente técnico que esse esquema lhes atribui. Suas aspirações pessoais e sociais vão além da
posição de especialistas ou escribas das classes baixas. Exigem ser reconhecidos como uma
espécie de nobreza espiritual, ser elevados acima de sua classe de origem em virtude dos
conhecimentos adquiridos. Consideram-se homens de grande cultura e seu ideal de ‘formação’
pessoal afeta toda a sua concepção de ensino. Procurando um enobrecimento espiritual na
educação, tendem a rejeitar o conhecimento ‘meramente prático’ e a busca por técnicas de
análise moralmente e emocionalmente neutras. Em vez disso, consideram o ensino um processo
em que o contato com fontes veneradas resulta na absorção de seu conteúdo espiritual, de modo
a conferir ao estudante qualidade indelével de elevação espiritual. Em resumo, à medida que os
mandarins adquirem mais poder, seus líderes intelectuais voltam-se contra a plataforma
ideológica um tanto estreita da qual partiram e substituem-na por um ideal de ensino que possa
funcionar como um substituto honorífico da nobreza de nascimento. Por mais que lamente o
surgimento de uma nova série de pretensões entre servos da coroa originalmente humildes, o
governante é obrigado a resignar-se ao inevitável, pois precisa desses homens tanto quanto antes”,
p. 25.

63
entre os cerca de quarenta anos que separam a Unificação Alemã e Constituição
Imperial (1871)166 do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – que,
curiosamente, por vezes são considerados anos tranquilos e de estabilidade interna
–, o século XX foi absolutamente conturbado na Europa central e no mundo
germânico.

Tendo como ponto de partida a Primeira Grande Guerra (1914-1918),


foram trinta e cinco anos de muita ebulição, reviravoltas, golpes e eventos: desde a
Revolução Alemã (1918/1919); passando pela formulação e implementação da
Constituição de Weimar que fundou a República Alemã167 e o Tratado de
Versailles (1919); pelo crash da Bolsa de Nova York e a crise mundial (1929); pelo
Preußenschlag (1932); pela ascensão do nazismo e a tomada decisiva do poder por
HITLER, que encerra o período conhecido como República de Weimar (1933);
pelo início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945); a perda da guerra, o fim do
nazismo e a eliminação do Estado Alemão (1945); e a formação das duas
Alemanhas (1949).

Nesses anos conturbados, as várias instituições foram mudando,


adaptando-se, sendo criadas e eliminadas. Nesse ínterim, as construções jurídicas,
judiciais e, mesmo, institucionais, tenderam a ter menos vida que aquelas teóricas
provenientes das universidades168.

166
Verfassung des Deutschen Reiches, também conhecida como Bismarcksche Reichsverfassung.
167
De fato, o Império Alemão deu lugar a uma república que entrou para a história como a
República de Weimar, especialmente a partir de 1933, e das críticas que o partido nazista fazia ao
período, é verdade. Esse nome se dá pelo fato de a Assembleia Nacional Constituinte ter se
reunido na histórica cidade de Thüringen para votar e aprovar a nova Constituição republicana.
Entretanto, naquele momento a Alemanha continuou a oficialmente chamar-se Deutsches Reich.
Inclusive, a própria nomeação do Estado Alemão era foco de disputas políticas no cenário dos
anos 1920 na Alemanha entre conservadores, antidemocratas, social-democratas e partidos de
centro, que chamavam aquele “novo” Estado Alemão, dentre outras formas, de Deutsches Reich,
Deutsche Republik, Deutscher Volksstaat.
168
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
14: “What may seem foreign to observes in the United States is the abstract level of the German
debates. In part, that abstraction reflects German jurists’ orientation toward the ‘state’ and the high
theory taught at universities rather than toward concrete aspects of legal practice. To this day,
major surveys of German constitutional history contain almost no account of the controversial
judicial decisions of high courts. That abstraction reflects something besides the stereotypically
‘Germanic’ orientation toward abstraction and theorizing, however. It reflects the many breaks in
legal continuity that punctuate twentieth-century German history: the Revolution of 1918, the Nazi
grab for power in 1933, the defeat of Nazism and the elimination of the German state in 1945,
64
De todo modo, como dito, Weimar foi um grande divisor de águas e teve
como consequência determinante possibilitar a todos os grupos sociais a
participação nas tomadas de decisão do Estado. O Estado alemão, especialmente
o Parlamento, não era mais monopolizado pela aristocracia, como ocorria na
Alemanha kaiserista, nem era dominado pelas classes detentoras dos meios de
produção, mas, de mesmo modo, tampouco era concentrado e comandado por
amplas forças de esquerda.

De fato, a preocupação com a igualdade material, a partir dos direitos


sociais e dos mecanismos de participação de todo o povo nas esferas de decisão
do Estado169, foram responsáveis por outro fenômeno importantíssimo para o
constitucionalismo: as tensões e demandas políticas da sociedade acabaram por ser
introduzidas e, em alguma medida, institucionalizadas na experiência
constitucional170.

Enquanto era marcante das constituições liberais a cisão “esclarecida”


entre Estado e Sociedade, Direito e Política, Weimar vai pelo caminho de
reconciliar essas dimensões171. Em consequência a isso, enquanto as Constituições
dos Séculos XVIII e XIX apresentavam-se em modelos formais, exibindo
programas rígidos, pré-estabelecidos desde o reconhecimento dos valores das
revoluções burguesas já bem sucedidas em seu objetivo de subverter o status

and the formation of two new German states in 1949. Constitutional histories of the United States
can perhaps all too easily assume a stable, continuous development by examining the decisions of
the Supreme Court; in Germany, the highest courts have taken many different institutional
structures and carried out many different political functions over the course of this century.
Accounts of the major Weimar theorists of constitutional law, not court decisions, provide the
continuity between Weimar constitutionalism and that the Federal Republic”.
169
Abordando vários elementos e previsões desse aspecto na Constituição de Weimar,
especialmente, quanto à Constituição Econômica: BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado
de exceção permanente, cit., pp. 25-50.
170
Reitere-se que esse movimento não necessariamente foi bem visto pela esquerda e forças
trabalhistas da época. De fato, juridificar as demandas sociais é formaliza-las de modo a, por um
lado, dar-lhe a força da institucionalidade na forma de direitos, mas, por outro, é, também,
conformá-las em uma gramática e em um formato que, originariamente, é, ele mesmo, burguês.
A disputa e discussão pela juridificação desenrola-se no contexto do Estado Democrático de
Direito, inclusive, na sequência de KIRCHHEIMER e NEUMANN na própria Escola de Frankfurt.
TEUBNER, Günther. Juridification: concept, aspects, limits, solutions, op. cit.
171
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2012, pp.
115-166.

65
político-social aristocrático (dos poderes históricos), Weimar, ao contrário, em
suas próprias tensões internas, propõe programas e compromissos políticos de
transformação do status político-social.

Logo, a Constituição, a partir de então, deixa de ser fruto de um processo


político já realizado e formalmente declarado e passa a ser um momento do
processo político dialético, entranhando a própria dinâmica política da sociedade
na cultura constitucional172.

172
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 294-295: “As constituições do
século XX não representam mais a composição pacífica do que já existe, mas lidam com
conteúdos políticos e com a legitimidade, em um processo contínuo de busca de realização de
seus conteúdos, de compromisso aberto de renovação democrática. Não há mais constituições
monolíticas, homogêneas, mas sínteses de conteúdos concorrentes dentro do quadro de um
compromisso deliberadamente pluralista, como em Weimar. A constituição é vista como um
projeto que se expande para todas as relações sociais”.

66
CAPÍTULO 2
O NASCIMENTO DA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:
O DIREITO SEM ESTADO OU O ESTADO SEM DIREITO

Ao “constitucionalizar” a disputa política entre as diferentes forças da


sociedade, o fenômeno constitucional, ao menos do ponto de vista jurídico, deixa
de ser um óbice às transformações políticas, passando a ordenar e conduzir esse
processo, possibilitando a suprassunção dessas tensões no contexto interno de
uma unidade em pluralidade, como anotava HELLER173. Enquanto, antes de 1919,
as tensões políticas tendiam a serem resolvidas com a manutenção do status quo
(quando venciam as forças conservadoras de uma ordem) ou com uma revolução
(quando triunfavam as forças transformadoras), Weimar trazia para a disputa
política institucionalizada e regrada, possibilidades de mudança política sem
quebra com o modelo estatal/político174.

173
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 135. De algum modo, essa perspectiva também
está em: SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1985, pp. 87 e 88: “las formas de Estado que prevén constitucionalmente la
existencia de luchas políticas integradoras tienen la ventaja – como es el caso de un Estado
parlamentario, en el que existe un permanente enfrentamiento por alcanzar el poder – de que es
más fácil impedir la obstrucción continuada de determinados grupos sociales al facilitarles la
posibilidad de una participación futura en el poder, lo que, además de tranquilizarles, les
reincorpora activamente en la vida política de un modo continuado; mientras que en aquellas
formas estatales que se basan en el principio de la representación permanente, los grupos sociales
que no aceptan unos valores objetivos determinados se aferran a su situación minoritaria,
distanciándose entonces indefinidamente de la vida política”.
174
HELLER, Herman. Libertad y forma en la constitución del imperio. In: HELLER, Hermann.
El sentido de la política y otros ensayos. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 61-67.

67
Não é a toa que boa parte das críticas recorrentes e contemporâneas à
Constituição de 1919 colocava-se contra seus compromissos dilatórios e sobre sua
pretensa falta de decisão. Essa “acusação” é sustentada, quer por autores à direita,
como SCHMITT, quer por pensadores de esquerda, como KIRCHHEIMMER175.

Essa virada fez com que ficasse ainda mais demarcada como característica
da cultura constitucional sua dinamicidade e plasticidade. Essas possibilidades
abertas com a politização antes negada ao Estado176 e ao Direito, mais claramente
ao Direito Constitucional, fomentaram as discussões da luta pelo método.
STOLLEIS destaca a densidade e complexidade desse episódio afirmando que na
época dizia-se que foi a partir de então que se passou a cuidar do “método e da
essência do Estado”, tendo sido o momento culminante de uma Guerra Mundial
incipiente e o ponto de contato entre a questão do objeto e da forma da Teoria do
Direito e do Estado177.

Nesse contexto, HANS KELSEN (1881-1973), RUDOLF SMEND (1882-1975),


CARL SCHMITT (1888-1985) e HERMANN HELLER (1891-1933), são
recorrentemente tratados como os principais nomes desse episódio178. Não apenas

175
É verdade que KIRCHHEIMMER, em que pese ser ligado ao SPD (Partido Social Democrata
alemão) e à Escola de Frankfurt, foi aluno muito próximo de SCHMITT, por vezes tratado como o
seu “discípulo preferido”.
176
Como o fizeram GERBER, LABAND, JELLINEK, chegando a seu apogeu com KELSEN.
177
STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer Staatsrechtslehre – ein
abgeschlossenes Kapitel der Wissenschaftsgeschichte? Steiner: Stuttgart 2001, p. 5: “Der
Methodenstreit ist der Kulminationspunkt einer vor dem Weltkrieg einsetzenden und den
Zentralnerv des Faches berührenden Frage nach Ziel und Weg der Staatsrechtslehre. Es ging, wie
man damals zu sagen pflegte, und das ‘Wesen des Staates’ und um die Art und Weise,
wissenschaftlich über den Staat zu arbeiten und zu sprechen. Im Grunde war es jedoch eine
Debatte um die politische Lebensform. Der Gegenstand war also unausweichlich politisiert”.
178
Esses geralmente são considerados os quatro principais atores desse debate, vide,
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german Constitutional Law, cit.;
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho político
de la República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp. 259-295, 2008; BERCOVICI,
Gilberto. Carl Schmitt, o Estado Total e o Guardião da Constituição. Revista Brasileira de Direito
Constitucional, São Paulo, n. 1, pp. 195-206, jan./jun. 2003. STOLLEIS, por sua vez, também
coloca nessa lista ERICH KAUFMANN: STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer
Staatsrechtslehre, cit., p. 5. Em que pese esse reconhecimento, é de se destacar a grande
importância de vários outros juristas tais como RICHARD THOMA e GERHARD ANSCHÜTZ em
linhas mais positivistas, HEINRICH TRIPEL, forte opositor do positivismo, e HUGO PREUSS, autor
do projeto da Constituição de Weimar e seu grande defensor. Trabalhando todos esses:
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (eds.). Weimar: a jurisprudence of crisis.
Berkeley: University of California Press, 2002.

68
do ponto de vista da construção jurídica, mas, também, da formulação política,
eles são bastante diferentes entre si. Enquanto HELLER, mais jovem, apresentou a
leitura mais à esquerda dentro desse debate, compreendendo que a Constituição
de 1919 permitia a formação de um Estado socialista democrático, o terceiro,
SCHMITT, foi responsável pela construção mais à direita possível dentro do debate
constitucional (e, mesmo, para além dos limites constitucionais, em um dado
momento), pregando um Estado Total qualitativo, que não interviesse nas
questões econômicas, mas garantisse as instituições mais tradicionais da sociedade
alemã.

Naturalmente, correntes políticas mais extremadas continuaram a existir


com projetos, por dizer, anticonstitucionais – quer à direita, quer à esquerda179.
Inclusive, como entrou para história, uma dessas forças anticonstitucionais de
direita chegou ao poder em 1933, em boa medida, beneficiada pelos desacordos
imperantes entre os grupos constitucionais, especialmente, entre as forças político-
partidárias pré-Constituição180. De algum modo, foi a partir da argumentação
constitucional de CARL SCHMITT (ainda que não apenas dela), que se começou a
implodir a Constituição de Weimar desde dentro, mais precisamente, desde seu
artigo 48, com: Hitler e o Partido Nazista181.

179
NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of National Socialism, 1933-1944.
Chicago: Ivan R. Dee, 2009, pp. 29-30: “The Weimar constitution, attacked on the right by
Nationalists, National Socialists, and reactionary liberals, and on the left by Communists,
remained merely a transitory phenomenon for the Social Democrats, a first step to a grater and
better future. And a transitory scheme cannot atrouse enthusiasm”. Ainda comentando algumas
ações anticonstitucionais de lado a lado, e a radicalização da vida política: KLEIN, Claus.
Weimar. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 47-51; 74-76.
180
Naturalmente, esse não foi o único motivo de ascensão do partido nazista ao poder; muito pelo
contrário. Viu-se na Alemanha uma enorme combinação de fatores que possibilitou esse
movimento e mesmo a interpretação acerca do peso de seus motivos determinantes é algo ainda
em disputa. Por exemplo, há leituras que dão maior ênfase aos desacordos da esquerda alemã,
outros à conjuntura econômica. De um modo geral, no entanto, eles vão desde as enormes
imposições do Tratado de Versalhes, à tradição militarista da tradição tudesca, do viés étnico da
sociedade alemã, de seu passado marcadamente autoritário durante todo o século XIX, e mesmo
antes dele, a uma importante crise econômico-social. Da desunião da esquerda à intensidade da
disputa e falta de diálogo entre as forças pró-união. Para algumas variáveis sobre o tema: ELIAS,
Norbert. Os alemães, cit.; NEUMANN, Franz. Behemoth, cit.; KOLB, Eberhard. The Weimar
Republic. 2 ed. Londres: Routledge Taylor and Francis Group, 2004; HENIG, Ruth. The
Weimar Republic 1919-1933. Londres: Taylor & Francis e-Library, 2002.
181
SCHMITT, Carl. La Revolución legal mundial: plusvalía política como prima sobre legalidad
jurídica y superlegalidad. Revista de Estudios Políticos (Nueva época), Madri, n. 10, pp. 5-24,
69
É fato que tal hiperpolitização do debate sobre o Estado foi vista não
apenas na Alemanha, mas esteve também presente em outros países,
especialmente, na Itália e na Rússia, como consequência de suas revoluções
político-sociais, desencadeadas com a Primeira Guerra Mundial182. Entretanto foi
no debate germânico que mais fortemente desenvolveu-se a preocupação com o
superar dos dogmas antes tidos como absolutos e naturalizados de um
“necessário” Estado de Direito, liberal, burguês, formalista e tecnicista. Como
aponta HELLER, os debates entre GERBER, BLUNTSCHLI, LABAND e, mesmo,
JELLINEK, aparentavam-se mais como discussões intramuros, em que os
fundamentos das construções eram admitidos e pressupostos de forma acrítica por
todos “a tal punto que podia aceptarse de buena fe que todos los antagonismos
existentes en la teoría del Estado no eran, en el fondo, outra cosa sino diferencias
de claridade lógica”183. Parece possível dizer que esse era um mundo “velho” em
declínio. Nesse contexto, a politização do Estado e a consolidação das Ciências do
Espírito traziam para a Teoria do Estado a preocupação com os pressupostos
desse conhecimento.

A nova postura e as construções teórico-abstratas que ali surgiam, em boa


medida, até hoje embasam boa parte dos debates jurídico-políticos no mundo
constitucional. Como dito, até a República de Weimar o conhecimento do Estado
carecia da preocupação com o método. É nesse sentido, inclusive, que HERMANN
HELLER, discordando de praticamente todas as respostas dadas por KELSEN,
reconhece a importância crucial que ele e seus seguidores na Teoria Pura do
Direito tiveram ao apresentar sua preocupação com o método para as questões
sobre o tema184.

jul./ago. 1979. KELSEN, Hans. O controle judicial da constitucionalidade (um estudo da


Constituições austríaca e americana). In: KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 299-319, página 306, nota 2.
182
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 54.
183
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 55.
184
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 56. No mesmo sentido, comenta SMEND: “La
única influencia que va a tener esta segunda orientación metodológica [positivismo] en el análisis
de los problemas concretos se va a deber a que, a partir de la gran crítica de Kelsen a aquella
ingenuidad inicial [aqui se referindo a GIERKE], no va a ser posible seguir trabajando sin una
absoluta clarificación de los presupuestos metodológicos”, SMEND, Rudolf. Constitución y
70
Desse modo, é possível dizer que, originalmente, o constitucionalismo, a
experiência constitucional e a própria constituição, são filhos das revoluções
liberal-burguesas do século XVII-XVIII185, mas que a Teoria da Constituição, no
entanto, enquanto disciplina autônoma e reflexiva é filha desse início de século
XX186, especialmente, das discussões da luta pelo método.

É também nesse sentido que entende LUCAS VERDÚ, ao apontar que o


período do entreguerras, berço da Teoria da Constituição na Alemanha, foi um
momento fortemente marcado pela crise política. Foi-lhe característico a quebra
dos pressupostos e das certezas sociopolíticas da democracia liberal, originalmente
inspirada e sustentada pela ideologia burguesa que enfrentava ataques de todos os
lados, quer de esquerda, quer de direita, especialmente, das correntes mais
extremadas.

Deste modo, LUCAS VERDÚ aponta, ainda, que as razões que mais
contribuíram para esse surgimento foram: a crise do formalismo jurídico e a
tentativa de se assentar um conceito substantivo de constituição; a crise do Estado
liberal de Direito e as críticas antiliberais apresentadas contra ele; a aparição dos
regimes autoritários e totalitários que atacavam de todos os modos o conceito
demo liberal de Constituição e suas respectivas instituições; e, ainda, o culminar da
Teoria do Estado liberal com KELSEN e sua superação, especialmente, por
HERMANN HELLER187.

Derecho Constitucional, cit., p. 47. Quer HELLER, quer SMEND, principais opositores ao
positivismo normativo nesse debate de Weimar, colocam suas críticas a HANS KELSEN,
sobretudo, referindo-se à obra Allgemeine Staatslehre. Berlin: Springer, 1925, que não deve ser
confundida com a posterior General Theory of Law and State. Cambridge: Harvard University
Press, 1945 (traduzida para o português como Teoria Geral do Direito e do Estado, aqui
utilizada), esta sem versão publicada em alemão. A segunda parte desta obra de 1945
efetivamente tratava de atualizar a obra de 1925, entretanto, sua primeira parte foi destinada à
teoria do direito e, na prática, não apresenta grandes transformações ou revisões em relação ao
Teoria Pura do Direito.
185
Ainda que autores falem de um Constitucionalismo antigo ou, mesmo, medieval:
MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: Ancient and Modern. 2 ed. Ithaca: Cornwell
University Press, 1947.
186
BARACHO, Joaquim Alfredo de Oliveira. Teoria da Constituição. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, a. 15, n. 58, pp. 27-54, abr./jun. 1978, p. 29.
187
LUCAS VERDÚ, Pablo. Lugar de la teoría de la constitución en el marco del derecho político.
Revista de Estudios Políticos, Madri, vol. 188, pp. 5-20, mar./abr. 1973, p. 6. LUCAS VERDÚ
destaca pelo menos duas obras como especialmente marcantes nesse nascimento, as já
71
Nesse contexto, é interessante a aproximação às formulações acerca da
Teoria da Constituição e do conceito de Constituição desses quatro autores
seminais. Para tanto, acompanhando CALDWELL, é possível dividi-los em autores
de respostas não dialéticas e autores de respostas dialéticas. KELSEN e SCHMITT,
que têm como marca comum o monismo metodológico (ainda que o primeiro,
um monismo jurídico, e o segundo, um monismo sociológico)188 podem ser
identificados com formas diferentes de positivismo. SMEND e HELLER, com suas
perspectivas culturais, colocando-se com uma postura metodológica bastante mais
interdisciplinar, podem ser considerados autores de perspectiva dialética.

O que se vê como marca dessas posições é uma disputa por se


compreender o que é o Estado e a constituição, especialmente, desde suas
abordagens a respeito da forma como se articulam a dinâmica política e a ordem
jurídica, a sociedade e o Estado, muitas vezes, se questionando sobre quem tem a
palavra final, válida e/ou legítima, e no que esses conceitos implicam para a
efetivação da ordem.

A maior ou menor ênfase, a forma mais ou menos explícita, que essas


formulações dão à questão da legitimidade e à da eficácia, por vezes expõe
(noutras, esconde, inclusive) o quão a relação entre essas três dimensões –
validade, eficácia e legitimidade – são importantes para cada autor e o quanto se
pretende compreender a constituição como um projeto jurídico-político a ser
vivido e feito vivo pela comunidade, através de uma cultura constitucional.

À primeira vista juntar KELSEN e SCHMITT sob uma mesma classificação


pode causar espécie. Isso porque, dentre outras coisas, SCHMITT foi o maior
antagonista e mais forte crítico do liberalismo e do normativismo kelseniano, quer
jurídica, quer politicamente. Além disso, ambos foram os atores do mais famoso
embate jurídico-epistemológico (e político, e ideológico, e científico) da República
de Weimar, que também é, provavelmente, o mais lembrado e trabalhado na

mencionadas: Teoria da Constituição (Verfassungslehre) de CARL SCHMITT e o Constituição e


Direito Constitucional (Verfassung und Verfassungsrecht) de RUDOLF SMEND, ambas de 1928.
188
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho
político de la República Federal. Historia Constitucional, Madri, pp. 259-295, n. 9, 2008, p. 264.

72
sequência da Teoria da Constituição, o debate sobre: quem é o guardião da
Constituição?

No entanto há motivos relevantes para aproximar a postura desses dois


autores e o que tende a aproxima-los são suas perspectivas não dialéticas do
Direito, do Estado e, consequentemente, da constituição189. Assim, é possível dizer
que ambos, de forma bastante diferentes, possuem perspectivas positivistas,
KELSEN com seu positivismo normativo, SCHMITT com seu positivismo
sociológico.

2.1.
2.1. HANS KELSEN

HANS KELSEN é o mais velho dentre os quatro autores mais reconhecidos


da luta pelo método weimariana. Ele nasceu em 11 de outubro de 1881, em Praga,
à época ainda Império Austro-Húngaro, numa modesta família burguesa de
origem judia. Ainda muito novo, mudou-se para Viena, capital imperial, tendo ali
estudado Direito e concluido seu doutorado em 1906190.

Em 1908 teve a oportunidade de estudar em Heidelberg com GEORG


JELLINEK, a grande referência da Teoria do Estado de seu tempo. Em 1911
publicou seu Habilitationsschrift191 com o tema: Principais problemas da Teoria do

189
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
120: “Despite their many differences, Kelsen and Schmitt both evinced an un-dialectical,
‘Hobbesian’ model of sovereignty state. For Kelsen, the state was identical with law; it could be
apprehended only though a pure theory of law that excluded ‘impure,’ practical considerations.
For Schmitt, the state was a real, existing substance threatened by interest groups. Both men
sought in different ways to separate the moment of sovereignty from everyday political practice –
the ‘Hobbesian’ moment – in order to come to terms with the paradoxical foundations of
constitutional democracy”.
190
Vale o registro quanto ao tema da tese de KELSEN, que parece inusitado, especialmente se
imaginarmos a imagem que comumente se tem do autor: A Teoria do Estado de Dante Alighieri
(Die Staatslehre des Dante Alighieri). Há uma tradução castelhana: KELSEN, Hans. La teoría del
Estado de Dante Alighieri. Tradução de Juan Luis R. Pagés. Oviedo: KRK, 2007.
191
A Habilitationsschrift ou o “trabalho de habilitação”, consiste no primeiro grande trabalho
independente (sem orientação) do pesquisador na Alemanha, portanto, realizado após o
doutorado. Nesse sentido, assemelhar-se-ia à Livre-Docência na estrutura universitária brasileira,
73
Direito do Estado desenvolvida desde a teoria da proposição normativa
(Hauptprobleme der Staatsrechtslehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze).
Nesse mesmo ano tornou-se professor na Universidade de Viena, da qual veio a
ser titular da cadeira de Direito Constitucional e Administrativo entre 1919 e 1930.

Teve papel absolutamente decisivo no desenvolvimento da Constituição


Austríaca de 1920, por muitas vezes, sendo considerado seu criador. Também
atuou no Tribunal Constitucional Austríaco até 1929. Neste ano, por motivos
políticos, transferiu-se para a Universidade de Colônia, onde ficou até 1933, ano
em que, como tantos outros, teve sua cátedra cassada em razão de sua
ascendência. Seguiu para Genebra, onde trabalhou no Instituto Universitário de
Altos Estudos Internacionais (Institut Universitaire des Hautes Études
Internationales)192 e, eventualmente, em Praga, até 1940. Nesse ano, emigrou para
os Estados Unidos onde primeiro lecionou na Harvard Law School e,
posteriormente, em Berkeley (University of California Berkeley), no departamento
de ciência política. Voltou a Viena apenas poucas vezes, por curtos períodos em
rápidas visitas, falecendo na Califórnia em 1973193.

Como mencionado, já os próprios juristas contemporâneos a KELSEN


atribuíram-lhe o mérito de ter sido o primeiro a realmente preocupar-se com o
método e com os fundamentos da Teoria do Estado e do Direito depois da
consolidação do Estado liberal-burguês.

Seu marco central foi o desenvolvimento de uma Teoria Pura do Direito.


Ainda que ela já tivesse raízes no seu Habilitationsschrift, a primeira exposição
mais pronta desse projeto ocorreu na obra Teoria Geral do Estado (1925). Na
sequência suas ideias foram sendo desenvolvidas e aprofundadas, principalmente,

à Agregação na estrutura lusitana, no entanto, com um impacto e importância bastante maior.


Enquanto no Brasil, mas especialmente em Portugal, o trabalhado doutoral representa o primeiro
grande trabalho na vida acadêmica, na Alemanha, o Habilitationsschrift ocupa papel de
significativa proeminência na carreira universitária, sendo considerado um marco determinante na
carreira do pesquisador. Por falta de tradução precisa, utilizaremos, quando for necessária, a
referência o termo original em alemão.
192
Hoje, após algumas fusões: Institut de hautes études internationales et du développement.
193
JABLONER, Clemens. Hans Kelsen. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.).
Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002, pp. 67 e 68.

74
nos seus Teoria Pura do Direito (1934) e Teoria Geral do Estado e do Direito
(1945), seguindo presente em inúmeras outras produções durante toda sua vida194.

KELSEN é particularmente influenciado pela cultura científica vienense e


pelo criticismo kantiano em sua versão da Escola de Marburgo, especialmente,
por HERMANN COHEN195. Até por essas características, que o moldam como um
pensador eminentemente liberal e formalista, não raro lhe é reconhecida certa
continuidade em relação ao pensamento da Teoria do Estado oitocentista de
GERBER, LABAND e, especialmente, JELLINEK. Deste modo, KELSEN pode ser
considerado, ainda que de forma bastante peculiar, um elo lógico entre o período
e o espírito da Teoria do Estado e Staatsrechtslehre do Império e o Direito
Constitucional e Teoria da Constituição da República de Weimar, tendo
desenvolvido, complexificado e talvez levado ao extremo o pensamento positivista.
Como seus antecessores imediatos, entende o Estado, essencialmente, como um
aparato de coerção, mas, diferente deles, especialmente de JELLINEK, define-o
como essência puramente normativa. Portanto, em KELSEN resta o espírito
formalista e positivista dos oitocentos que, no entanto, é matizado pelo criticismo
kantiano, o que lhe implicou a busca pelos porquês – ou, pelo menos, por
“explicações últimas” – além da própria preocupação com o método.

Se aos autores liberais do século XIX bastava abordar as questões do


Estado, basicamente, desde o direito positivo, KELSEN foi buscar pelos
fundamentos jurídicos últimos da validade que justificassem essa postura. Desse
modo, procurou as bases para uma Ciência do Direito, centrando sua abordagem
em métodos “puramente jurídicos”, nunca interdisciplinares. Assim, o objeto de

194
Para mais sobre a biografia de KELSEN: Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução Gabriel
Nogueira Dias, José Ignácio Coelho Mendes Neto. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
195
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A norma fundamental de Hans Kelsen como
postulado científico. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84,
jan./jun. 2011. Alguns autores identificam essa aproximação de KELSEN com COHEN e a Escola
de Marburgo em sua primeira fase, quando às vezes é identificado como “primeiro KELSEN”,
nesse sentido: MAIA, Paulo Sávio Nogueira Peixoto. Forma e unidade como condições de uma
ciência pura: a influência do neokantismo de Marburgo no ‘primeiro’ Kelsen. Sequência (UFSC),
Florianópolis, v. 60, p. 195-224, 2010; VERDROSS, Alfred. La filosofía del derecho del mundo
occidental: visión panorámica de sus fundamentos y principales problemas. México: UNAM,
1962, p. 287. De fato, essa aproximação é mais patente nessa primeira etapa da obra kelseniana;
entretanto, é uma marca que em maior ou menor medida o acompanha por toda a vida.

75
sua reflexão centrou-se sempre no dever ser (Sollen), nunca no ser (Sein). Essa
cisão é crucial para o pensamento kelseniano, caracterizado, justamente, pela
presença de muitos outros dualismos, típicos de sua postura, como são as
dicotomias entre sujeito e objeto, natureza e Espírito, entre as ciências naturais –
casualmente determinadas e explanatórias – e as ciências do Espírito – idealistas e
normativamente determinadas196.

Em seu Teoria Geral do Direito e do Estado, KELSEN assinala a dificuldade


de definir-se o sentido da palavra Estado. Para tanto, aponta para a necessidade de
um conceito puramente jurídico, definindo que: “o Estado, então, é tomado em
consideração apenas como um fenômeno jurídico, como uma pessoa jurídica, ou
seja, como uma corporação”, ao modo que fez JELLINEK. Para KELSEN, no
entanto, o que diferencia o Estado das demais corporações é sua ordem
normativa:

o Estado é a comunidade criada por uma ordem jurídica nacional


(em contraposição a uma internacional). O Estado como pessoa
jurídica é uma personificação dessa comunidade ou a ordem
jurídica nacional que constitui essa comunidade. De um ponto de
vista jurídico, o problema do Estado, portanto, surge como o
problema da ordem jurídica nacional197.
Nessa medida, o autor vienense refuta as proposições que lhe antecederam,
assim como várias das que lhe eram contemporâneas, que concebiam o Estado
como um fato social concreto e anterior ao Direito, isto é, que o Estado precedia o
Direito que, por sua vez, dele derivava. Do contrário, KELSEN coloca que o
dualismo entre Estado e Direito é teoricamente indefensável, pois o Estado como
comunidade jurídica não é separável de sua ordem jurídica. Isso porque uma
comunidade só é formada, justamente, porque uma ordem normativa regulamenta
as condutas. Com isso, afirma peremptoriamente que: “como não temos nenhum
motivo para supor que existam duas ordens normativas diferentes, a ordem do

196
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.).
Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 209.
197
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998,
pp. 261-262.

76
Estado e a sua ordem jurídica, devemos admitir que a comunidade a que
chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’ ordem jurídica”198.

Nesse sentido, KELSEN afasta-se de JELLINEK, que, a seu modo, concebia o


Estado de diversas maneiras, especialmente, em sua dupla face: social e jurídica.
Ao contrário disso, para KELSEN o Estado é pura e simplesmente um conceito
jurídico; por conseguinte, entende o Direito sem o Estado, isto é, entende o
Estado como Direito, levando a cabo uma das máximas da Teoria Pura do
Direito: eliminar o político da Teoria do Estado e do Direito do Estado.

JABLONER resume a Teoria Pura do Direito de KELSEN em cinco


elementos essenciais: a) ela é uma teoria sobre as normas e seu objeto é o direito
positivo; b) trata-se de uma teoria positivista; c) a Teoria Pura do Direito tem
como objeto conhecer e descrever o direito positivo, de modo que trata da
validade do direito; d) a Teoria Pura do Direito pretende conhecer e descrever o
direito positivo sem valorá-lo, especialmente, separando-o de outros sistemas
normativos como a política e a moral; e) desde a Teoria Pura do Direito, a Ciência
do Direito não cria normas jurídicas199.

Portanto, a primeira característica da Teoria Pura do Direito é que ela é


uma teoria sobre normas. Seu objeto é o direito positivo, logo, uma ordem de
normas jurídicas e não de fatos sociais, uma ordem de dever ser e não de ser.
Destarte, para essa perspectiva, apenas a aproximação normativa faz justiça ao
sentido imanente do Direito, em que reside a demanda por validade. Dessa
maneira, para KELSEN, o objeto primordial da ciência jurídica são as normas
jurídicas e a conduta humana só o será também na medida em que constitui
conteúdo de normas jurídicas, isto é, em que é determinada como seu pressuposto
ou conseqüência200.

O Direito, ao prescrever uma conduta a um indivíduo, o obriga, sendo seu


dever segui-la. Nesse sentido, KELSEN define que: “se o Direito é concebido como
ordem coercitiva, uma conduta apenas pode ser considerada como objetivamente
198
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, cit., p. 263.
199
JABLONER, Clemens. Hans Kelsen, op. cit., p. 68-69.
200
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78.

77
prescrita pelo Direito e, portanto, como conteúdo de um dever jurídico, se uma
norma jurídica liga à conduta oposta um ato coercitivo como sanção”201.

Destarte, o Direito é ordem social de conduta humana normativa de


coação, no sentido de que reage “contra as situações consideradas indesejáveis por
serem socialmente perniciosas”202. É uma estrutura escalonada em que: “uma
norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada
ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua
validade se funda na norma fundamental dessa ordem”203. Assim as relações
humanas só serão objeto do conhecimento jurídico quando constituírem relações
jurídicas, ou seja, quando forem constituídas através de normas jurídicas. Com
essa posição KELSEN não refuta a possibilidade de uma sociologia do Direito; pelo
contrário, ele apenas justifica uma Ciência do Direito, normativa e doutrinária.

Além disso, a Teoria Pura do Direito, como afirma JABLONER, é uma


teoria positivista e a tarefa da dogmática jurídica é saber, o mais precisamente
possível, qual a vontade do legislador. Assim sendo, uma vez que considera as
normas jurídicas como o sentido dos atos humanos de vontade, refuta qualquer
hipótese de direito natural, teológica ou racional.

Deste modo, em sendo a questão da Ciência do Direito estritamente


jurídica, o ponto crucial das preocupações de KELSEN é, explicitamente, a
validade. Para ele, dizer-se que uma norma vale (é vigente), significa dizer que o
indivíduo deve agir de acordo com o que ela prescreve, por isso, é afirmar que ela
é vinculativa. Contudo, para a Teoria Pura, uma norma nunca vale em razão de
um fato (um ser), mas, sempre, em razão de um dever ser. Ou seja, o fundamento
de validade funciona em cadeia, na medida em que uma norma é válida, porque
outra norma superior lhe confere validade. Nesses termos, a própria competência
de uma autoridade criar uma determinada norma só é válida se determinada por

201
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 129: “A afirmação: um indivíduo é
juridicamente obrigado a uma determinada conduta é idêntica à afirmação: uma norma jurídica
prescreve aquela conduta determinada de um indivíduo; e uma ordem jurídica prescreve uma
determinada conduta ligando à conduta oposta um ato coercitivo como sanção”.
202
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 33.
203
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 33.

78
uma norma que lhe seja superior. Assim, a hierarquia dentro do ordenamento
coloca-se, justamente, na relação de fundamentação de validade.

A partir dessa perspectiva, entende-se que a validade de uma norma


jurídica, via de regra, não está relacionada a seu conteúdo específico (esta relação
caracterizaria um princípio estático, para KELSEN). Ainda que isso seja possível, as
normas geralmente valem porque são criadas de uma determinada forma que, em
última análise, é fixada pela norma fundamental pressuposta (princípio/caráter
dinâmico). Dessa estrutura formal e positiva decorre a célebre e muito rebatida
afirmação de KELSEN: “todo conteúdo pode ser Direito”204.

Buscando consolidar sua teoria, o próprio KELSEN reconhece que essa


corrente de vinculações de fundamentação de validade não pode ser infinita. No
entanto, a solução que propõe (ou pressupõe), não deixa de ser, no mínimo
curiosa. Indica que toda essa estrutura tem de ser, então, sustentada por uma
norma pressuposta. Ela é pressuposta porque não pode ser posta por uma
autoridade, cuja validade, por sua vez, dependeria de outra norma superior que
lhe concedesse competência.

Desse modo, afirma que: “o fundamento da validade já não pode ser posto
em questão. Uma tal norma, pressuposta, como a mais elevada, será aqui
designada como norma fundamental (Grundnorm)”. Esta confere unidade à
ordem normativa, uma vez que toda norma cuja validade seja reconduzida à
mesma norma fundamental hipotética é parte de um mesmo sistema de normas:
“é a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas
enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a
essa ordem normativa”205.

Nessa esteira, KELSEN afirmará que “a norma fundamental é a instauração


do fato fundamental da criação jurídica e pode, nesses termos, ser designada como
constituição no sentido lógico-jurídico, distinguindo-o da Constituição em sentido

204
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 221.
205
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 217.

79
jurídico-positivo”206. Não sendo uma norma posta, mas pressuposta, ela é o ponto
de partida do processo de criação do próprio direito positivo.

Destarte, por analogia explícita à construção kantiana, afirmará que a


norma fundamental é uma pressuposição lógico-transcendental para o
conhecimento na ciência jurídica: “é a condição sob a qual o sentido subjetivo do
ato constituinte e o sentido subjetivo dos atos postos de acordo com a Constituição
podem ser pensados como o seu sentido objetivo, como normas válidas, até
mesmo quando ela própria o pensa desta maneira”207. É nesses termos que
pretende que a Teoria Pura do Direito, a partir da teoria da norma fundamental,
tenha inaugurado um novo método do conhecimento jurídico.

Desse modo, KELSEN refuta, também, qualquer teoria que derive a validade
do Direito de sua eficácia. Tal concepção decorre da própria perspectiva
dicotômica que separa estritamente o ser do dever ser, que tem como fundamento
epistemológico o dualismo entre fatos e valores, proposições e normas, cognição e
vontade, pois, como dito, o que justifica o direito válido, em última instância, tem
de ser uma norma: a norma fundamental.

De acordo com o positivismo jurídico kelseniano, essa suposição não seria


aplicada a toda ordem de dever ser, mas, tão somente, àquelas que são eficazes em
seu conjunto. A eficácia social, no entanto, não é razão da validade da lei, mas,
apenas um guia para a Ciência do Direito no seu interesse em descrever ordens
coercitivas eficazes. Assim, a Teoria Pura do Direito centra suas atenções em
compreender a descrição do direito positivo, relativizando seu valor moral,
entendendo-o como independente do fato de os indivíduos obedecerem-no,
ignorarem-no ou, mesmo, resistirem a ele ou lutarem contra o sistema legal. Isto é,
à Teoria Pura do Direito interessa conhecer todo e qualquer sistema legal.

A quarta característica levantada por JABLONER identifica-se com o fato de


a Teoria Pura do Direito separar absolutamente Ciência do Direito e política, bem

206
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 222.
207
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., p. 228; SALGADO, Ricardo Henrique
Carvalho. Kant e Kelsen. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 96, pp. 343-
358, jul./dez. 2007, pp. 355-356.

80
como o direito positivo das normas morais ou outros sistemas normativos. Por
razões epistemológicas, ela é relativista e não reconhece valores absolutos; nesse
sentido, o conhecimento e descrição do direito positivo devem ficar
completamente separados de sua valoração. Essa cisão é determinante para a
compreensão do papel da Ciência do Direito na política: a primeira teria como
foco conhecer e descrever o direito positivo, enquanto a segunda teria como
objetivo criar e formar o Direito. Assim, KELSEN pretende que a Ciência do
Direito não possa ser utilizada a serviço de objetivos políticos.

Por fim, o quinto e último elemento essencial da Teoria Pura do Direito,


para JABLONER, se coloca na separação entre direito positivo e Ciência do Direito,
isto é, ela diferencia normas jurídicas prescritivas de proposições normativas
descritivas. A Ciência do Direito não pode criar normas jurídicas, mas, apenas,
conhecer e descrever as normas jurídicas prescritivas de um ordenamento real
posto. Com isso, revela-se uma dupla função da Teoria Pura do Direito, por um
lado, epistemologicamente, ela se pretende uma metodologia aos juristas que
deveriam desenvolver a doutrina a partir dela. De outro, ela também apresenta um
desafio crítico para a Ciência do Direito dominante, a que KELSEN acusava de
distorcer o direito positivo com finalidade ideológica, protegendo-se sob o manto
de uma construção jurídica.

Portanto, as questões do fundamento (correção material, legitimidade) ou


da eficácia social não são foco da Ciência do Direito concebida pela Teoria Pura
kelseniana. A ela basta observar o direito posto, independentemente de qualquer
valoração quanto a seu conteúdo. Desse modo, “KELSEN rejeita a liberdade como
fundamento do direito, e afirma o contrário: o direito pode existir porque a
conduta do homem é determinável por uma sanção coercitiva”208.

Amplamente relativista, KELSEN pretende ter uma postura essencialmente


“tolerante”, conhecendo e descrevendo todo e qualquer direito positivo de forma
“neutra”. Assim, tenta explicar mais do que compreender, o Direito. Com isso,
contudo, pretendeu, também, expurgar os “falseamentos” da ordem jurídica. Em

208
SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. Kant e Kelsen, op. cit., p. 351.

81
última instância, KELSEN não nega a Política, apenas a cinde de maneira definitiva
do Direito, pretendendo depurá-lo enquanto objeto e ciência isolada e autônoma.

Nesse sentido, inclusive, talvez não seja demais afirmar que é o relativismo
que liga a Teoria Pura do Direito à teoria da democracia kelseniana. Se sua
percepção do Direito tinha, de certo modo, um teor analítico, politicamente
KELSEN era, essencialmente, um democrata e um liberal. Para ele, a democracia,
sim, realizava a ideia de liberdade como forma de se criar o Direito209.

Em toda essa busca por neutralidade e relativismo, a questão que se coloca,


entretanto, é se a teoria escalonada do ordenamento jurídico kelseniano, na
verdade, não reflete de forma geométrica a imagem de um Estado liberal de
Direito, inclusive por razões ideológicas, despreocupado com qualquer
fundamentação social.

Ainda que KELSEN resistisse a seus críticos que acusavam (e continuam a


acusar) sua Teoria Pura de refletir uma determinada ideologia, a identificação que
ele faz entre Estado e Direito, a partir de uma normatização escalonada que
pretende a absorção do Estado pelo ordenamento jurídico, depurado de qualquer
elemento metajurídico, deixa à mostra a mesma configuração geométrica do
liberalismo àquele tempo estabelecido. Este, por sua vez, negava seus antecedentes
jusnaturalistas e se caracterizava por formalizar as relações sociais, para, assim,
evitar quaisquer argumentos (político-valorativos) contrários, quer mais à esquerda,
quer mais à direita. Dessa forma, o status quo sócio-político era mantido,
conservava-se a segurança jurídica burguesa, ascética e alheia a qualquer disputa
social, ética, econômica e/ou política210.

209
A definição de KELSEN para a democracia está presente, essencialmente, nos textos Essência e
valor da Democracia e Fundamentos da Democracia, ambos publicados na edição brasileira:
HELSEN, Hans. A Democracia. 2ed. São Paulo, Martins Fontes, 2000. Particularmente neste
segundo o jurista austríaco relaciona a Democracia como a forma política comprometida com o
relativismo filosófico e a autocracia com o absolutismo filosófico.
210
LUCAS VERDÚ, Pablo. La teoría escalonada del ordenamiento jurídico de Hans Kelsen
como hipótesis cultural, comparada con la tesis de Paul Schrecker sobre «la estructura de la
civilización». Revista de Estudios Políticos, Madri, n. 66, pp. 7-65, out./dez. 1989; HELLER,
Hermann. La Soberanía: contribución a la teoría del Derecho Estatal y del Derecho
Internacional. México: UNAM, 1965, p. 309. Já em 1934, SCHMITT apontava para o fato de a
“neutralidade” do positivismo, na verdade, indicar o comprometimento com uma mundividência
82
A isso se adicionava uma concepção antropológica um tanto negativa, que,
de algum modo, aproximava-se da Weltanschauung pessimista freudiana. Assim,
partia do pressuposto de que o homem precisa do Direito para que seja
imaginável o convívio pacífico, sendo impossível sua rejeição211.

Nessa ordem, especialmente quanto à “abstenção frente às disputas


sociais”, ANDITYAS COSTA MATOS defende a posição de KELSEN,
particularmente, contra a crítica feita por ANTÔNIO CARLOS WOLKMER212.
MATOS aponta que uma “acusação” dessa ordem só poderia ser realizada em
direção a um positivismo ético extremado, mas não à sua versão “atenuada”, como
seria a de KELSEN, que não pretende justificar nada, apenas descrever e explicar o
direito positivo. MATOS, ainda, recorrentemente indica haver certa resistência
agressiva ao positivismo jurídico, fundamentada na alegação de que este poderia
proporcionar “justificação” a qualquer vontade política, inclusive, a sistemas e
regimes autocráticos e totalitários do século XX. O autor entende ser esta, uma
crítica, apenas, parcialmente verdadeira213.

No que diz respeito à relação traçada entre o “liberalismo-individualista e


racionalidade burguês-capitalista” e a postura ideológica da versão moderada do
positivismo ético, especialmente, de HANS KELSEN, não se concorda exatamente
com o ponto de MATOS. De fato, é razoável afirmar que o posicionamento
kelseniano não tem o escopo explícito de fundamentar tal ordem e/ou tais valores

e com valores típicos do liberalismo-individualista: SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do


Pensamento Jurídico. In: MACEDO JÚNIOR., Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a Fundamentação
do Direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 131-176, especialmente, pp. 149 e 150.
211
VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar:
Hans Kelsen, Carl Schmitt y Hermann Heller. Buenos Aires: Eudeba, 2014, pp. 54-61.
212
“Perde espaço e significação o cultivo de um historicismo jurídico oculto no mito da
neutralidade do saber e na universalidade dos princípios do formalismo positivista, que serviram
de instrumentos de justificação da ordem liberal-individualista e da racionalidade burguês-
capitalista”, WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de história do Direito. 3 ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. XV. Curiosamente, esse texto consta na “Apresentação à 1ª Edição”
e foi suprimido em edições sequentes. Sabidamente já não consta da sexta edição. Não tivemos
acesso nem à quarta, nem à quinta.
213
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça: na obra de Hans
Kelsen. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 29 e 30. Em sentido similar e, inclusive,
dialogando com ANDITYAS COSTA MATOS: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico:
introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método,
2006, pp. 257 e ss.

83
específicos. Entretanto, parece inexorável reconhecer a vinculação de seu
pensamento, método e articulação com essa tradição, com esses valores e, por
conseguinte, de forma mais ou menos consciente ou explícita, com seus objetivos
e consequências políticas, históricas e sociais. Vê-se isso na já mencionada
continuidade – ideológica, mas não apenas214 – do posicionamento kelseniano com
o Gesetzespositivismus oitocentista, bem como, com sua identidade com o círculo
de Viena.

Se, por um lado, não é possível dizer que KELSEN, com suas formulações,
age maquiavelicamente (no sentido vulgar do termo) para a manutenção do status
quo político-social do início XX – como mais claramente pode-se acusar SCHMITT
em suas pretensões, comprometimentos e objetivos políticos – tampouco se pode
tirar o peso ideológico-político de sua pretensa neutralidade e pureza do Direito.
Além de ser difícil sustentar, epistemologicamente, a postura de isolar-se de forma
definitiva o Direito da Política (a forma do conteúdo), ela acaba, de algum modo,
por mobilizá-lo no sentido de uma formalização que, ironicamente, nunca é
ideologicamente neutra, como aponta LUCAS VERDÚ.

No entanto, quanto à acusação extrema de que a formulação kelseniana dá,


ou pode dar sustentação a sistemas autoritários e totalitários – que acaba por ser
recorrentemente tratada na famosa expressão reductio ad hitlerum215 – ainda que
em parte, parece necessário concordar com a objeção de MATOS. Se por um lado,
o pretenso desprendimento do conceito de Direito de uma ordem extralegal, ou,
“metajurídica”, pode, de forma ingênua ou deliberada, conduzir à validação de

214
KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípios. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 13: “Quando a teoria normativa do Estado da Escola de Viena proclama como
uma de suas teses principais que o Estado encontra o seu lugar não no reino da natureza, mas no
reino do espírito, ela não se distingue da teoria dominante por meio de um novo princípio
metodológico, mas apenas por levar adiante, de maneira coerente, o princípio reconhecido como
correto, evitando assim o erro, cometido por Bluntschli e também por Jellinek e Gierke, que, por
um lado, consideram o Estado como formação espiritual e por outro, atribuem-lhe existência
psicofísica, concretamente existente no espaço físico, portanto natural, abolindo
contraditoriamente a distinção entre natureza e espírito, ciência da natureza e ciência do espírito,
da qual partem”.
215
BOBBIO, Norberto. Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
1995, p. 225.

84
regimes arbitrários, essa, sem dúvida, não é uma acusação precisa a ser feita a
KELSEN.

Como dito, politicamente ele foi um liberal-democrata, sem qualquer


ligação com ideias fascistas ou autoritárias, menos, ainda, com o regime ou o
partido nazista, quer por razões ideológicas, quer por razões pessoais.
Independentemente das observações que possam ser feitas a respeito de sua
moderação no plano do positivismo ético, ainda assim, não deixam de ser
importantes os apontamentos sobre os riscos de tal postura de “absoluto
comprometimento” com a neutralidade e a procedimentalidade216.

Não foi apenas depois dos eventos que abalaram a República de Weimar, a
Europa e a humanidade, que se constatou esse tipo de acusação à pretensão de
neutralidade kelseniana. Já autores contemporâneos à Teoria Pura, como HELLER
e LOEWENSTEIN, cada um a seu modo, acusavam a nomocracia do Estado de
Direito formal de ser insuficiente para combater as aspirações autoritárias217.

É verdade que a posição de KELSEN sofre algumas mudanças na segunda


metade do século XX, como se vê, por exemplo, na forma em que a norma
fundamental é tratada em Teoria Geral das Normas. De todo modo, o
pensamento kelseniano abriu portas para novas questões e preocupações antes
inexistentes ou apenas latentes e, como fez com muitos de seus contemporâneos,
segue influenciando vários juristas e correntes do Direito ainda na
contemporaneidade218.

216
Sobre o argumento ad hitlerum sobre o positivismo: MATOS, Andityas Soares de Moura
Costa. Hans Kelsen and the reductio ad Hitlerum: reflections on the incompatibility between legal
positivism and political totalitarism. Jura, Budapeste, v. 19, p. 113-119, jul./dez. 2013;
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico, cit., pp. 257 e ss.
217
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura?. In: HELLER, Hermann. Europa y el
Fascismo. Granada: Comares, 2006, pp. 117-135; LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus
Democracy in Contemporary Europe, I. The American Political Science Review. V. 29, n. 4, pp.
571-593, ago. 1935; LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus Democracy in Contemporary
Europe, II. The American Political Science Review. V. 29, n. 5, pp. 755-784, out. 1935;
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The American Political
Science Review, Washington, v. 31, n. 3, pp. 417-432, jun. 1937; LOEWENSTEIN, Karl.
Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The American Political Science Review,
Washington, v. 31, n. 4, pp. 638-658, ago. 1937.
218
LEPSIUS, por exemplo, destaca o crescimento da influência e interesse por KELSEN nos últimos
anos, tratando-o como o mais perene dos juristas de Weimar: LEPSIUS, Oliver. El
85
Até por ser o mais velho dentre os autores da luta pelo método de Weimar,
por ter sido o primeiro a publicar obras inteiras de maior significância e projeção
(como sua Allgemeines Staatslehre de 1925), mas, especialmente, por ter sido o
primeiro a sair do intramuros da Teoria do Estado oitocentista, lançando olhos,
mais detidamente, sobre as questões epistemológicas219, e assim muitas vezes foi o
ponto de partida de várias críticas, recorrentemente, tendo suas ideias combatidas
pelos demais autores weimarianos.

Com SMEND, KELSEN teve um debate público acerca da Teoria da


Integração, entendendo que a proposta smendiana era de pouca clareza
metodológica e de natureza política velada220. Com SCHMITT, travou a mais
conhecida discussão teórica do Direito Constitucional weimariano, sobre Quem
deve ser o guardião da Constituição?221. À esquerda, debateu com HELLER,
especialmente, no encontro da Associação de Professores de Direito do Estado
Alemão, de 1927, realizada em Munique sobre O conceito de lei na Constituição
do Reich222.

Nesse sentido, JACOBSON e SCHLINK atentam para o fato de a empreitada


de KELSEN por purificar o Direito e o Estado de qualquer política, levando ao

redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho político de la República


Federal, op. cit. Não deixa de ser curioso que esse interesse por KELSEN tenha coincidido com o
crescimento do movimento neoliberal no mundo.
219
É interessante o fato de, tanto SMEND, quanto HELLER, reconhecerem, explicitamente, o
mérito de KELSEN de ser o primeiro lançar-se sobre as questões do método no conhecimento do
Estado. De algum modo, SMEND vai chamar indicar que essa postura age “quebrando a
ingenuidade” antes instaurada. SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 47
e HELLER, Teoría del Estado, cit., p. 56.
220
A posição de KELSEN foi publicada, especialmente, em: KELSEN, Hans. O Estado como
integração, cit.
221
Ela inicia-se em 1931 com a publicação da obra: SCHMITT, Carl. O guardião da constituição.
Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007; que foi respondida em: KELSEN, Hans. Quem deve ser
o guardião da Constituição? In: KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, pp. 237-298
222
Esse é o texto da conferência proferida por HELLER na oportunidade. A discussão
desenvolveu-se, especialmente, em torno da “pseudo-pureza” do método kelseniano, que, na
verdade, acabava por sustentar a arbitrariedade de qualquer sistema legal. STOLLEIS, Michael.
A history of public law in Germany 1914-1945, cit., pp. 185-187.

86
extremo o positivismo do Reich, acabou por forçar aqueles que rejeitavam o
positivismo, incitando-lhes a supera-lo também ao extremo223.

Provavelmente, a resposta teórica mais extremada e contundente, foi a de


CARL SCHMITT.

2.2. CARL SCHMITT

CARL SCHMITT nasceu em 11 de julho de 1888 (pouco mais de um mês


depois do Kaiser Guilherme II ter sido coroado), em Plettenberg, atual Estado da
Renânia do Norte-Vestefália. Nasceu em uma família católica, numa cidade
predominante protestante, onde a tensão entre as duas visões do cristianismo era
presente. A religião e cultura católicas são reiteradamente presentes e influentes
em seu pensamento e obra, sendo-lhe por vezes registrado um certo catolicismo
político224.

Estudou Direito, primeiro, na Friedrich-Wilhelms-Universität de Berlim225 e


depois em Estrasburgo. Nesta, em 1910, defendeu tese de doutorado em Direito
Penal, obtendo classificação máxima com o trabalho: Sobre a Culpa e as suas
Formas. Uma investigação terminológica (Über Schuld und Schuldarten. Eine
terminologische Untersuchung). Em 1916 realizou seu Habilitationsschrift, ainda
em Estrasburgo, com a tese: O valor do Estado e o significado do indivíduo (Der
Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen). No mesmo ano chega a
lecionar na Universidade alsaciana.

Na sequência, foi a Munique, onde, depois de ter sido considerado


inadequado para o serviço de armas por razões de saúde, serve na administração

223
JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience, op. cit., p. 17.
224
HABERMAS, Jürgen. Liqüidando os danos: os horrores da autonomia. In: SCHMITT, Carl;
MOREIRA, Luís (coord.) . O conceito do Político/Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey,
2009, pp. vii-xix.
225
Desde 1949 corresponde à renomada Humboldt-Universität zu Berlin.

87
militar até 1919. Em 1921 assume a cátedra de Direito Público em Greifswald (no
extremo nordeste da Alemanha) onde fica até 1922, seguindo para Bonn (1922-
1928), Colônia (1923). Em 1928, aceita uma cadeira na Handelshochschule de
Berlim226, onde permanece até tornar-se professor na Friedrich-Wilhelms-
Universität (1933-1945).

Depois de todos os acontecimentos na Alemanha até 1945, SCHMITT não


recuperou sua cátedra, tampouco foi admitido como membro na refundada
Associação de Professores Alemães de Direito Político. Viveu como um estudioso
particular em sua terra natal, recolhido, ainda que bastante visitado, tomando
posições públicas apenas ocasionalmente227.

SCHMITT é, em si, um autor polêmico e complexo, e isso pode ser


afirmado por diversos motivos. Um deles está relacionado ao seu íntimo
envolvimento com o partido e com a Alemanha nazista. Enquanto KELSEN e
HELLER, ambos de origem judia, tiveram de exilar-se, SMEND, durante algum
tempo, enquanto possível, permaneceu ligado à oposição pública ao regime.
Assim, dos quatro autores mais marcantes da luta pelo método de Weimar,
SCHMITT foi o único efetivamente associado e partícipe – e em algum momento,
com bastante influência – do partido nazista e do regime nacional-socialista.

Esse fato influenciou sua carreira em dimensões distintas. Se por um lado


essa ligação – que, efetivamente, foi bastante forte apenas entre 1933228 e 1936/37 –
significou sua ascensão na vida política e acadêmica alemã, por outro, representou
verdadeiras mudanças no pensamento jurídico-político do autor.

Uma delas diz respeito ao fato de até 1933 ele não ter qualquer publicação
ou declaração de teor antissemita. Pelo contrário, tivera bastante proximidade com
figuras públicas e intelectuais judias como WALTER BENJAMIN, HUGO PREUSS e
LEO STRAUSS. Essa relação era tão presente na trajetória de SCHMITT, que em
outubro de 1934, WALDEMAR GURIAN, seu antigo discípulo, e outro desses
226
Foi uma Escola Superior de Negócios criada pelos comerciantes de Berlim, que existiu entre
1906 e 1946. Antes de SCHMITT, HUGO PREUSS lecionou na instituição.
227
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho
político de la República Federal, op. cit., p. 265.
228
Sua filiação foi feita no dia 1º de maio de 1933.

88
destacados intelectuais judeus de seu círculo, sob o pseudônimo de Paul Müller,
publicou um artigo no Schweizerischen Rundschau denunciando as
transformações no pensamento de SCHMITT, seu envolvimento com intelectuais
judeus e outros não arianos229. Apesar disso, é fato que suas posições antissemitas,
não presentes até 1933, lhe permaneceram, ainda que pontualmente, inclusive,
após a queda do terceiro Reich230.

Outra mudança importante está no fato de em 1933, na nova edição d’O


Conceito do Político, SCHMITT preocupou-se em expurgar do texto referências a
MARX e LUKÁCS a fim de tornar a obra mais palatável aos nazistas231. Além desses
aspectos, houve importantes mudanças em algumas perspectivas de seu
pensamento, como, por exemplo, a introdução de uma determinada leitura da
tradição institucionalista e da ênfase cada vez maior que dá ao ordenamento
concreto ao longo dos anos232. Ainda, há alguma alteração da visão em relação a

229
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito. 2 ed. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 27. Nessa publicação, GUARIAN destacou também a importância de
SCHMITT no pensamento católico conservador.
230
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 282; DYZENHAUS, David. Legality and
Legitimacy, cit., p. 98-101. Para DYZENHAUS, na verdade, as próprias críticas ao liberalismo que
marcam SCHMITT têm ligação com seu antissemitismo.
231
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 24.
Nesse sentido, não deixa de ser curiosa a observação de VOLKER NEUMANN: “Schmitt’s political
stance against Marxism and his simultaneous intellectual affinity with Marxist political philosophy
become especially clear in The Concept of the Political [Der Begriff des politischen (1928)]. A
contemporary called this work the ‘bourgeois answer to the Marxist theory of class struggle’”,
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.).
Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 283.
232
O texto que confirma essa influência em SCHMITT é publicado em 1934: SCHMITT, Carl.
Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit. Para RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR. o
caminhar do decisionismo em direção a um decisionismo institucionalista é coerente e
compatível com a postura de SCHMITT, particularmente, com sua posição católica conservadora e
com sua defesa das instituições tradicionais alemãs: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl
Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. BERCOVICI, de sua parte,
em resenha da publicação de PORTO MACEDO, defende que: “há muito mais continuidade do
que ruptura no pensamento de Carl Schmitt na década de 1930. A influência institucionalista na
obra de Schmitt vem ao menos desde 1928, quando foi publicada sua Teoria da Constituição
(Verfassungslehre), em que pela primeira vez são mencionadas as ‘garantias institucionais’
(institutionelle Garantien)”. BERCOVICI, Gilberto. Entre institucionalismo e decisionismo.
Revista Novos Estudos, São Paulo, n. 62, pp. 191-193, dez./mar. 2002.

89
alguns pressupostos do próprio conceito de Estado, isto é, daqueles conceitos em
inter-relação com os quais o Estado se define para SCHMITT233.

Ainda sobre a trajetória biográfica de SCHMITT, é marcante que já a partir


de 1934, OTTO KOELLREUTTER234 comece a praticar ataques pessoais contra
SCHMITT, que, apesar disso, goza de significante prestígio no partido até, pelo
menos, 1936235. Também é a partir de 1934 que a Gestapo e a SS intensificam a
pressão para eliminar os “oportunistas e ‘desviantes’ do interior do movimento
nacional-socialistas”236. Nesse movimento, em dezembro de 1936 a própria SS
passa a atacar publicamente o Kronjurist, acusando-o de reacionarismo,
oportunismo e de filojudaísmo.

De fato, a relação de SCHMITT com o regime nazista, sua filiação ao partido


e contribuição com a Alemanha nazista são objeto de muitas discussões. Dentre
elas a interpretação de que suas publicações e ativismo político de cunho nazista se
deram simplesmente para autoproteção, parece muito pouco sustentável, pois,
aparentemente, SCHMITT nunca esteve em perigo real. Para VOLKER NEUMANN,
um importante motivo que explica a adesão de SCHMITT ao nazismo colocasse em

233
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Os Pressupostos do Conceito de Estado em Carl Schmitt –
Do Direito ao Político. In: MORAIS, Carlos Blanco de; COUTINHO, Luís Pedro Pereira (org.).
Carl Schmitt Revisitado. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Político, 2014, pp. 121-132.
234
Um dos principais advogados do racismo ideológico nazista e o principal “concorrente” de
SCHMITT pelo posto de pensador da teoria jurídico-política nazista.
235
Sobre a disputa entre KOELLREUTTER e SCHMITT pela preponderância no caput teórico
jurídico-político do regime nazista é muito interessante o artigo: CALDWELL, Peter. National
Socialism and constitutional law: Carl Schmitt, Otto Koellreutter and the debate over de nature of
the Nazi State, 1933-1937. Nova York, Cardozo Law Review, v. 16, pp. 399-427, 1994. A tese
colocada por CALDWELL ajuda a explicar a rápida ascensão e o ainda mais rápido descenso de
SCHMITT na estrutura nazista; é a lógica do darwinismo social, assumida pelo nazismo: “I argue
that constitutional theory under Nazism operated under the same radical social-Darwinist logic as
Nazi institutions themselves. In the same way that radical, crisis-oriented policies tended to win
out within Nazi institutions, the more radical theoretical attacks on older constitutional traditions
tended to win out over attempts to find stability. It does not, therefore, make a lot of sense to draw
strict, analytical lines among types of legal theory under Nazism without paying attention to the
petty conflicts and one-upmanship that marked theoretical discussions of the time. Nor is the
intent of the theorists in question of much help in analyzing their roles in the debate. The ‘theory
industry’ under Nazism was itself one of the areas of ravenous, opportunistic struggle among
factions. Once constitutional theorists entered into this debate, they inevitably contributed to the
radically anticonstitutionalist ideology of the Nazi state. Nazi anticonstitutionalism, I will conclude,
was not merely an example of ‘pragmatism’ or a ‘lack of principles,’ but rather an essential part of
the National Socialist world view, manifested in real institutions as well as theory.”, p. 400.
236
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 27.

90
sua crença de que um movimento nunca antes experimentado, em curso a partir
do poder estatal, precisava de juristas e teóricos especialistas em Direito Público237.
Aliado a isso, RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR, na linha de BENDERSKY,
também dá ênfase ao oportunismo de SCHMITT nessa relação e destaca a crença
que o jurista conservador tinha de que, como Kronjurist, poderia estabelecer o
quadro constitucional do III Reich238.

Considerando isso, CARLOS BLANCO DE MORAIS anotará que, ao falar-se


de SCHMITT, está a se falar de três personagens distintos: um primeiro jovem
católico, “conservador e autoritário, cientista do direito, saudoso do Império
alemão, émulo de Hobbes e Maquiavel, cético do que denominava de Estado
Parlamentar e de Estado Judiciário, profundamente crítico da desordem da
República de Weimar e protagonista de notáveis polémicas como a que manteve
com Kelsen”239. Essa é a figura de sua “época de ouro”, que durou até 1933,
período em que publicou seus escritos filosóficos e jurídicos mais marcantes,
como a Teoria da Constituição, a Teologia Política, a Ditadura, o Defensor da
Constituição, o Conceito do Político e Legalidade e Legitimidade.

Um segundo SCHMITT é o Kronjurist, filiado ao partido nazista, opositor


contumaz da SA (Sturmabteilung), escritor de O Füher protege o Direito. Este
durou pouco, apenas até iniciar sua perseguição pela SS (Schutzstaffel), o que o
obrigou a largar todos seus cargos públicos e a restar em silêncio durante toda a
guerra, dedicando-se ao Direito Internacional Público. Por fim, há um terceiro
SCHMITT, retirado do mundo acadêmico após ter sido preso por mais de um ano
pelas forças aliadas. Este retoma as investigações, especialmente, em Direito
Internacional Público e Filosofia do Direito, publicando Captivitate Salus, Nomos
da Terra e Teoria do Partizan240.

237
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 281.
238
MACEDO JÚNIOR., Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 31;
p. 111.
239
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo. In: MORAIS, Carlos Blanco
de; PEREIRA COUTINHO, Luís Pedro (org.). Carl Schmitt Revisitado. Lisboa: Instituto de
Ciências Jurídico-Político, 2014, pp. 28-39, p. 29.
240
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., pp. 29-31.

91
Todas as questões sobre a pessoa e o posicionamento político de SCHMITT
não apagam o brilhantismo de suas exposições. Ele, talvez mais que qualquer
outro, conseguiu ser, com profunda agudeza, nas palavras de HABERMAS, “um
bom escritor, capaz de unir concisão conceitual com surpreendentes e brilhantes
associações. (...) Além disso, Schmitt foi um intelectual que, até os anos 30
adentro, empregou seu conhecimento técnico para diagnósticos temporais de alta
sensibilidade”241.

Suas contribuições chegam com muita força ao tempo presente, quer no


campo da Filosofia e da Ciência Política, quer no da Teoria do Direito e da Teoria
da Constituição. MARCELO CATTONI, por exemplo, aponta a enorme importância
da obra Verfassungslehre (1927) para o desenvolvimento de um estudo sistemático
acerca da Constituição, bem como, para a autonomização da disciplina Teoria da
Constituição e sua diferenciação da Teoria do Estado242.

De fato, SCHMITT inicia o prólogo da obra relatando que não se trata de


um comentário, tampouco, de uma série de dissertações monográficas, mas de
uma tentativa de formular um sistema243. Além disso, afirma ser necessário erigir
uma Teoria da Constituição que se coloque como ramo especial da teoria do
Direito Público. No mesmo prefácio, acusa o papel “de uma certa concepção de
‘positivismo’” para o não desenvolvimento da disciplina, que acabou por ter suas
questões próprias trabalhadas, no mais das vezes, pelo Direito do Estado ou pela
Teoria geral do Estado244.

241
HABERMAS, Jürgen. Liqüidando os danos, op. cit., p. xiii. Nessa passagem, ainda, é curiosa a
observação: “Infelizmente, esta arte de formular não percutiu na tradução para o inglês”.
Tratando da importância de SCHMITT no contexto da Lei Fundamental Alemã: SCHLINK,
Bernhard. Why Carl Schmitt? Constellations, Oxford, v. 2, n. 3, pp. 429-431, out. 1993.
242
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2 ed. Belo Horizonte:
Initia Via, 2014, p. 30.
243
Há discussão sobre a assistematicidade do trabalho de SCHMITT. Indicando uma efetiva
assistematicidade: DYZENHAUS, David. Legality and legitimacy, cit., p. 41. Alegando ser ela
apenas aparente: LUCAS VERDÚ, Pablo. Carl Schmitt, interprete singular y máximo debelador
de la cultura político-constitucional demoliberal, op. cit., pp. 43-52.
244
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madri: Alianza Editorial, 2011, p. 25. Novamente
se registra a escolha pela tradução de Staatsrechtslehre por Direito do Estado. Na tradução
castelhana da obra se vê Derecho Político. Até por atenção à observação de HABERMAS,
comparou-se com a tradução do termo em versão da obra em inglês. Nela vê-se o termo tratado,
pura e simplesmente, como public law, não fazendo ela a diferenciação entre Staatsrechtslehre e
92
De todo modo, é esse “primeiro SCHMITT” apontado por BLANCO DE
MORAIS que mais nos interessa aqui. É verdade que mesmo ele é muito rico, vasto
e complexo, por isso, não se tem por ambição percorrer todos os conceitos e
articulações que apresenta, o que nem mesmo seria possível neste espaço. De toda
sorte, o que aqui se quer atentar, especialmente, é para sua fundamentação última
da ordem em um argumento de vontade, na decisão, em última análise, na força245.

Se KELSEN tentou purificar ao máximo o Direito e o Estado, eliminando a


política, chegando ao extremo de eliminar o Estado, SCHMITT percorre caminho
contrário. Potencializou a decisão e o político e, em alguma medida, eliminou o
próprio Direito, especialmente, no momento chave da exceção quando:
“fundamenta-se na política sem direito para combater a ausência do direito”246.
Diante disso, no cenário anglófono sua posição chega a ser identificada como Law
as Politics.

Para se compreender as posições schmittiana é importante ter-se em mente


que, mais que tudo, trata-se de um autor conservador e antiliberal. Sua empreitada
é marcada pelo combate das instituições políticas liberal-burguesas, como a
democracia parlamentarista e o normativismo positivista. Para ele, por exemplo, a
própria metodologia de pureza jurídica do positivismo seria uma expressão da
segurança burguesa que, naquele momento, se encontrava em crise como todo o
Estado Liberal de Direito e a sociedade burguesa247. Para o autor do decisionismo,
nem mesmo existiria “uma política liberal, mas apenas uma crítica liberal da
política”248.

Öffentliches Recht. A tradução para o inglês consultada para comparação foi: SCHMITT, Carl.
Constitutional Theory. Tradução Jeffrey Seitzer. Durham: Duke University Press, 2008.
245
Vale a ressalva de que, com o avançar do institucionalismo no pensamento schmittiano é
possível dizer de um progressivo caminhar em direção a um cada vez mais claro decisionismo
institucionalista, em que a ordem concreta ganha explícito destaque. Ainda assim, a decisão segue
sendo um elemento importante para suas construções.
246
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 112.
247
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 283.
248
FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no
pensamento de Carl Schmitt. Belo Horizonte: Editora UFMG/Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004, p.
156.

93
Essa postura antiliberal já transparece desde cedo, na influência que recebe
de autores conservadores contrarrevolucionários como DE MAISTRE, BONALD e,
especialmente, DONOSO CORTÉS. Ela também pode ser vista na leitura especial e
particular que faz de HOBBES. Boa parte de seu pensamento, ainda, deve ser
entendido diante da tarefa que empreende em seu Teologia Política quando,
contra a Ilustração, defende que todos os principais e mais importantes conceitos
políticos são, na verdade, secularizações e derivações de conceitos originalmente
teológicos. Nessa esteira, revelando a influência que sofre de DONOSO CORTÉS e
HOBBES, aliada à mundivisão herdada da filosofia da história e da escatologia
cristã, SCHMITT parte de uma perspectiva antropológica pessimista desde a qual
desenvolve sua concepção de Estado, de ordem, de soberano e seu conceito de
político a partir da diferenciação amigo/inimigo (Freund/Feind)249.

Apontam ADAMO ALVES e MARCELO CATTONI que o pessimismo e o


realismo conservador de SCHMITT já se revelam na obra Romantismo Político,
mais propriamente, na acusação que faz contra o Romantismo e contra o
liberalismo, que, para ele, colocam o sujeito como ponto último de legitimação da
ordem, postergando a decisão250. Nessa linha, do mesmo modo que DONOSO
CORTÉS praguejou contra a burguesia, tratando-a como “classe discutidora” avessa
à decisão, SCHMITT é firme crítico da democracia parlamentar e de seu espírito
eminentemente deliberativo, “pouco decisório”251. Nesse sentido, é crítico também
do normativismo kelseniano que elimina todo elemento humano e pessoal da

249
VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar,
cit., pp. 109-110.
250
ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Carl Schmitt: um
teórico da exceção sob o estado de exceção. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo
Horizonte, n. 105, pp. 225-276, jul./dez. 2012, p. 233; VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho
y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar, cit., pp. 109-110. Em que pese a crítica,
RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR identifica, na esteira de LÖWITH, a afinidade do
pensamento schmittano com o Romantismo, especialmente, na relação entre Decisão e
ocasionalismo: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito,
cit., pp. 38-47.
251
ADVERSE, Helton. Decisionismo. In: AVRITZER, Leonardo et al. (org.). Dimensões
políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 77-84, p. 80.

94
ordem jurídica para sustentá-la sobre normas que “na verdade não se reproduzem
ou aplicam por si próprias”252.

DYZENHAUS resume as principais críticas de SCHMITT ao liberalismo em


cinco pontos que, de um modo geral, têm alguma relação com a pretensa
neutralidade que esse movimento apregoava253. Indica como primeiro ponto da
crítica schmittiana, o fato de o comprometimento liberal com o Estado neutro ser,
na verdade, apenas um subterfúgio. Em que pese sua pretensa neutralidade, na
prática, o liberalismo anularia e trataria como inadequados os objetivos dos
indivíduos que desejassem viver de acordo com valores da comunidade que não
dessem suporte à visão liberal de vida boa254. Nessa mesma linha, o fato de
liberalismo arrogar-se como uma teoria de democracia política, permitia-lhe impor
que a tomada de decisão democrática ficasse presa às suas próprias amarras.
Assim sendo, a neutralidade liberal, antes de qualquer coisa, seria um estratagema,
pois, ao pregar uma suposta neutralidade, na verdade retiraria das possibilidades
de escolha dos indivíduos os caminhos que não estivessem de acordo com o
próprio ideal liberal. De mesmo modo, o segundo ponto levantado por
DYZENHAUS relaciona-se ao fato de que, para SCHMITT, o alegado compromisso
liberal dos indivíduos e dos grupos de indivíduos na sociedade civil com o Estado
neutro, na prática, acabaria por simplesmente reduzir a capacidade do Estado de
se defender dos grupos de interesse da sociedade, tornando-o um Estado fraco.

O terceiro ponto de DYZENHAUS relaciona a crítica de SCHMITT à própria


impossibilidade de se conceber – como o faz o liberalismo – uma racionalidade
que transcenda as ideologias particulares e os contextos das comunidades em que
o confronto entre ideologias ocorre. Portanto, estaria ligado à própria
incapacidade de fundamentação e sustentação do liberalismo enquanto baseado e
uma “racionalidade neutra”. O quarto, também nessa linha, seria pertinente ao
fato de SCHMITT entender ser necessária alguma ideia de pertença dos indivíduos

252
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., p.32.
253
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 38
254
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 38: “liberalism subverts the aims of
those who wish to live in accordance with the values of communities which do not support a
liberal view of good”.

95
a alguma comunidade, para que, só assim, fosse possível atribuir valor às vidas dos
indivíduos em si. E, por fim, o quinto ponto da crítica schmittiana, para
DYZENHAUS, se colocaria no fato de, em que pese o Direito ser importante para a
ordem social e política, os parâmetros liberais, na verdade, apresentar-se-iam
como insuficientes para responder às questões sobre a legitimidade do próprio
Direito, do que se desenvolve a crítica do autor conservador ao normativismo
formalista, incapaz de pensar a origem do ordenamento ou da soberania255.

Tendo em conta essa postura crítica à ideologia e mundivisão dominante


do período, pode-se melhor compreender algumas das questões e preocupações
do pensamento do autor.

SCHMITT, recorrentemente, abre suas obras com uma frase concisa, densa
e de efeito, quase como que com um aforismo. Nessa linha, tendo em conta tanto
a dimensão política, quanto a sociológica do conceito de soberania, ele inicia seu
Teologia Política afirmando que: “Soberano é quem decide sobre o estado de
exceção”256. Com essa assertiva traz a tona, pelo menos, três conceitos que serão
capitais em seu pensamento: exceção, soberania e decisão257. Particularmente este
último lhe será marcante e definidor, SCHMITT é essencialmente identificado com
a ideia de decisão e com o decisionismo.

Como afirma BLANCO DE MORAIS, para SCHMITT, a sociedade demanda


um poder político organizado e legitimado para decidir sobre: o bem público, a
distinção entre amigo e inimigo e exigir obediência. Assim, “a decisão, como ideia-
chave do realismo schmittiano, entronca na noção de ordem e de poder
político”258. Isso porque a questão chave da teoria constitucional schmittiana, não
será outra, que não a questão da homogeneidade e da unidade política, que deve
ser garantida a todo custo.

255
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 68.
256
SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p. 13.
257
BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. Kriterion, vol.49,
n.118, pp. 401-415, 2008, p. 407.
258
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., p.32.

96
Desde os seus primeiros trabalhos, SCHMITT aborda a decisão, transitando
entre os campos do decisionismo jurídico e do decisionismo político. Nesse
sentido, é possível identificar dois momentos de sua reflexão sobre o tema. Um
primeiro, tratado em 1912, na obra de sua juventude: Direito e Julgamento. Uma
investigação sobre o problema da práxis jurídica (Gesetz und Urteil. Eine
Untersuchung zum Problem der Rechtspraxis), quando aborda de forma
sistemática a questão da decisão judiciária como elemento da práxis jurídica.
Neste, no entanto, como atenta ADVERSE, ainda falta um elemento que é
imprescindível para a formulação do decisionismo, o estado de exceção, que só
começa a tomar forma na obra A Ditadura, de 1921, quando diferencia ditadura
comissarial e ditadura soberana, e se apresenta mais definidamente em Teologia
Política, de 1922259.

É a partir de então que se desenrola o segundo momento do decisionismo


schmittiano, quando o autor desenvolve seu pensamento compreendendo que o
Direito, como um todo, não se estrutura apenas em normas, mas, também, em
decisões e instituições (a partir de um dado momento, em ordenações concretas).
Essa articulação surge inicialmente quando aborda a questão da ditadura e da
soberania em intima relação com a decisão no contexto das obras: Teologia
Política e Teoria da Constituição. Nelas, a soberania é definida como a decisão no
estado de exceção, da qual depende a validade de todo o ordenamento260.

Para SCHMITT, portanto, a soberania é, ao mesmo tempo, fundamento de


afirmação e de negação da ordem que está à disposição de quem decide261. Assim,
ela:

259
ADVERSE, Helton. Decisionismo, op. cit., passim.
260
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., pp. 33-
34. SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 145: “Para o jurista
do tipo decisionista, não é o comando enquanto comando, mas a autoridade ou soberania de
uma decisão última, dada com o comando, que constitui a fonte de todo e qualquer ‘direito’, isto
é, de todas as normas e ordenamentos seguintes”.
261
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 147: “a decisão
soberana não é, portanto, explicada a partir de uma norma nem a partir de um ordenamento
concreto, porque, muito pelo contrário, somente a decisão fundamenta para o decisionista tanto a
norma quanto o ordenamento. A decisão soberana é o início absoluto, e o início (também no
sentido de αρχη) não é outra coisa senão decisão soberana”. Na tradução utilizada, há uma nota
97
é a ‘competência’ imprevisível, estranha às normas de direito
público, pois não se trata do término do direito, mas de sua
própria origem. (...) O soberano, assim, está, ao mesmo tempo,
dentro e fora do ordenamento jurídico, pois ao utilizar o seu
poder de suspender a validade do direito, coloca-se legalmente
fora da lei262.
Desse modo, é possível afirmar que, em SCHMITT, a ordem e o soberano
têm um caráter factual. O soberano não é definido por aquele que deve poder
decidir “de direito”, mas, aquele que decide de fato e é capaz de impor ou
suspender a ordem. Nesse sentido, é célebre a citação que SCHMITT faz de
passagem do Leviatã de HOBBES, em mais de um de seus textos: “autoritas, non
veritas facit legem”263.

De todo modo, é apenas na exceção que melhor se pode observar essa


dinâmica. Na normalidade, o soberano não é exposto, pois a ordem está posta e é
mantida264. “O normal e a regra nada provam; a exceção, tudo”265, assim sendo,
SCHMITT compara o papel desempenhado pela exceção no Direito, com o do
milagre na teologia. Enquanto o milagre é uma intervenção direta de Deus no

do tradutor a respeito do sentido de arché: “Arché – palavra grega que contempla igualmente os
significados de princípio, causa, fundamento e ponto de partida”. Registre-se que já neste
trabalho, de 1934, SCHMITT descreve a posição do decisionismo jurídico, mas já se identifica
com um decisionismo institucionalista, em referência a uma ordem concreta.
262
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., pp. 65-66;
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 112;
SCHMITT, Carl. Teología Política, cit., p. 14: “La Constitución puede, a lo sumo, señalar quién
está autorizado a actuar en tal caso. Si la actuación no está sometida a control alguno ni dividida
entre diferentes poderes que se limitan y equilibran recíprocamente, como ocurre en la práctica
del Estado de derecho, al punto se ve quién es el soberano. El decide si el caso propuesto es o no
de necesidad y qué debe suceder para dominar la situación. Cae, pues, fuera del orden jurídico
normalmente vigente sin dejar por ello de pertenecer a él, puesto que tiene competencia para
decidir si la Constitución puede ser suspendida in toto”.
263
“A autoridade não a verdade faz a lei”, SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit. p. 33;
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 147.
264
SCHMITT, Carl. Teología Política, cit., pp. 19-20. “La excepción perturba la unidad y el orden
del esquema racionalista. (…) Pero una filosofía de la vida concreta no puede batirse en retirada
ante lo excepcional y ante el caso extremo, sino que ha de poner en ambos todo su estudio y su
mayor empeño. Más importante puede ser a los ojos de esa filosofía la excepción que la regla, no
por la ironía romántica de la paradoja, sino con la seriedad que implica mirar las cosas calando
más hondo que lo que acontece en esas claras generalizaciones de lo que ordinariamente se
repite. La excepción es más interesante que el caso normal. Lo normal nada prueba; la
excepción, todo; no sólo confirma la regla, sino que ésta vive de aquélla. En la excepción, la
fuerza de la vida efectiva hace saltar la costra de una mecánica anquilosada en repetición”.
265
NEUMANN, Volker. Carl Schmitt, op. cit., p. 283: “For Schmitt, the normal and the rule
prove nothing; the exception, everything”.

98
mundo, a exceção configura-se como a intervenção direta do soberano na
ordem266. Por conseguinte, é na exceção que é possível observar o soberano, pois
não é no monopólio da coerção ou da dominação que reside a essência da
soberania do Estado, mas na decisão última267. Assim, para SCHMITT, não só a
ideia de soberania está ligada à decisão, mas, também, a de ordem e, mesmo, a
ideia de Constituição.

Do mesmo modo que KELSEN, com seu normativismo, distingue a


Constituição em sentido lógico-jurídico (a norma fundamental) da Constituição em
sentido jurídico-positivo, SCHMITT, com seu decisionismo, diferencia a
Constituição da Lei Constitucional. “A Constituição não é um contrato, mas uma
268
decisão sobre o tipo e forma de unidade política” , é a decisão política
fundamental que exprime a essência da autoridade política fundadora da ordem
estatal. Enquanto isso, a Lei Constitucional é apenas o texto formal, a norma de
hierarquia superior que tão somente decorre da decisão original269. É nesse sentido,
inclusive, que discorre boa parte da análise e crítica schmittiana a respeito da
Constituição de Weimar. Para o autor, ela peca por assumir “compromissos
dilatórios” que adiam a decisão, ao passo que a decisão fundamental acabava
sendo relativizada por uma pluralidade de leis constitucionais270.

Em Teoria da Constituição, SCHMITT, curiosamente, afirma que uma


Constituição é legítima quando identificada não apenas como uma situação de
fato, mas, também, como ordem jurídica. Isso aconteceria quando fosse
reconhecida a força e a autoridade do poder constituinte que toma a decisão
fundamental. Ironicamente, no entanto, SCHMITT entende que a decisão política
fundamental tem seu sentido na existência política, que, por sua vez, não precisa
ser legitimada. Desse modo, para ele a decisão política fundamental não necessita

266
SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p. 37.
267
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 67.
268
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 76.
269
MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo, op. cit., p. 33; SCHMITT,
Carl. Teoria de lá Constitución, cit., pp. 57-63.
270
Para o tratamento dessas críticas de SCHMITT, nesse sentido, inclusive, apontando para uma
mudança de posição desde o Teoria da Constituição até o Legalidade e legitimidade:
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., pp. 30-34; 65-107.

99
ser justificada em qualquer norma, ética ou jurídica (“una norma no sería
adecuada a fundar nada aquí”271), sendo válida porque a unidade política tratada
pela Constituição “existe de fato”272. É sobre essa facticidade que o sujeito do poder
constituinte fixa o modo e a forma de existência estatal273. Em suma, a validade da
Constituição emana do poder constituinte, considerado como manifestação
ilimitada e suprema da autoridade soberana274.

Nesses termos, SCHMITT identifica duas classes históricas de legitimidade, a


dinástica e a democrática, que corresponderiam aos dois sujeitos históricos do
poder constituinte: o príncipe e o povo. LETÍCIA VITA entende que, com isso,
SCHMITT refuta, pelo menos, os dois primeiros, dos três tipos de legitimidade
weberianos, que são: o tradicional, o racional-legal e o carismático. A legitimidade
tradicional, relacionada ao absolutismo, existira historicamente, mas tornara-se
ultrapassada com a queda das monarquias, sendo substituída pela fundamentação
democrática. O segundo seria a fórmula típica pleiteada pelo liberalismo,
maximamente, na forma do Estado legiferante, de que SCHMITT trata em seu
Legalidade e Legitimidade275. Tendo isso em conta, VITA sustenta que a
legitimidade em SCHMITT coloca-se nos termos específicos que o autor dá à
democracia plebiscitária que, em ultima instância, é uma decisão existencial.
Nesses termos, a autora relaciona essa compreensão com o desenvolvimento que
WEBER faz da “rotinização” do carisma que serviria de base para uma democracia

271
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución, cit., p. 136.
272
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 43:
“para o decisionismo schmittiano, não há fundamento metafísico, teológico ou baseado numa
moral humanitária, tal como ocorreu XVI, XVII e XVIII. Para ele, ao menos nesta fase de
pensamento (dos anos 1920), não há fundamento para decisão moral”.
273
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución, cit., p. 136.
274
LINDHAL, Hans. Constituent Power and Reflexive Identity: Towards an Ontology of
Collective Selfhood. In: LOUGHLIN, Martin; WALKER, Neil (eds.). Paradox of
constitutionalism: constituent power and constitutional form. Oxford: Oxford University Press,
2007, pp. 9-24, p. 22: “Ironically, having excoriated Kelsen for transforming the law into a self-
grounding, self-serving, self-sustaining order, Schmitt ends up doing just that with respect to
political unity. Schmitt, not Kelsen, is the positivist. Rejecting Schmitt’s move by exposing the
equivocal selfconstitution of political community amounts, ontologically speaking, to recognizing
that the collective self exists in the mode of questionability”.
275
SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

100
plebiscitária schmittiana, especialmente, quando se tem em mente o papel do mito
para a construção do autor276.

De todo modo, em SCHMITT, a democracia é definida como a identidade


entre o governante e o governado, entre aqueles que comandam e aqueles que
obedecem. Essa identidade decorre da igualdade substantiva pressuposta em sua
concepção de democracia. Para ele, a igualdade democrática é a igualdade de fato,
logo, a igualdade de um povo. Ela não deve se colocar a partir de critérios éticos
ou econômicos, mas políticos, por excelência, em última instância, a partir da
diferenciação entre amigo/inimigo para separação e agregação. Assim, seu conceito
de democracia diz respeito a um povo e não à humanidade, ele é exclusivista e
não plural, o que abre portas para a ênfase que é dada ao nacionalismo nessa
construção277.

Assim, a concepção schmittiana de Estado é, em muito, tributária de


HOBBES278. O Estado, para o autor, pode ser definido como “o status político de
um povo organizado dentro de uma unidade territorial”279. Trata-se, portanto, de
um fenômeno histórico, não eterno280, que se diferencia de todas as formas
anteriores de unidade política, tendo uma finalidade específica: a pacificação no
interior do território. Desse modo, sua maior expressão teria sido o Estado

276
VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar,
cit., pp. 142-143. Com entendimento diverso, RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR sustenta que:
“Schmitt não defende uma concepção de dominação carismática weberiana. O Füher é a
encarnação da unidade política das instituições, e não a projeção de um poder irracional e pessoal
produto do entusiasmo, tal como defendida por uma postura ocasionalista romântica. Schmitt
entende que a dominação nazista deveria se fundar no poder tradicional das instituições e no
poder burocrático legal criado pela normalidade legal instaurada pela decisão”: MACEDO
JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, cit., p. 111.
277
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 56; BERCOVICI, Gilberto.
Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 52: “Quando o Estado se transforma em
uma estrutura pluralista não há mais fidelidade ao Estado ou à Constituição, mas fidelidade à
organização social, colocando em risco a formação da unidade política”. Uma nação que se afasta
da perspectiva dialética, como encarada por RENAN. RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?, cit.
278
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., p. 72.
279
SCHMITT, Carl. O conceito do Político. In: SCHMITT, Carl; MOREIRA, Luís (coord.) . O
conceito do Político/Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, pp. 1-141, p. 19.
280
Isso fica claro, especialmente, já no início do prefácio da obra: SCHMITT, Carl. O conceito do
Político, op. cit., p. 8.

101
absolutista que deteve o monopólio do político, se colocando, não no mesmo
patamar que a sociedade, como seu antagonista, mas em posição acima dela.

Diante dessa concepção, SCHMITT abre sua obra O conceito do Político


afirmando que “o conceito de Estado pressupõe o conceito do Político”281. Assim,
aponta para a compreensão de que o político não se acaba no estatal. Embora
coincida com ele na maior parte das vezes, a equação que iguala o político e o
estatal é incorreta e induz ao erro. Exemplo disso seria a própria realidade de seu
tempo, quando Estado e sociedade passavam a interpenetrar-se cada vez mais,
caminhando para um Estado total (quantitativo)282. Desse modo, na medida em
que tudo parecia se tornar afeito ao âmbito de Estado, a estatalidade deixava de ser
critério suficiente para caracterizar o que é diferenciadamente político283.

Assim, SCHMITT pleiteia para o político suas próprias diferenciações


extremas. Como na moral vê-se bom e mau; na estética, belo e feio; no
econômico, útil e prejudicial, rentável e não rentável; a diferenciação
especificamente política é aquela entre amigo e inimigo. As ações e os motivos
281
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 19.
282
Quanto a este ponto, vale um destaque, em que pese a forte crítica de SCHMITT ao liberalismo,
ela não se transporta de modo necessário ao liberalismo econômico. Como tantos outros, esse é
um tema muito interessante em SCHMITT que aqui é impossível de ser desenvolvido de forma
mais detida. De toda sorte, vale acenar para a diferença que o autor estabelece entre o Estado
Total Quantitativo (fraco e indesejado) e o Estado Total Qualitativo (forte e desejável). Grosso
modo, o primeiro estaria bastante identificado com o Estado Alemão de Weimar, em que um
grande número de demandas da sociedade, especialmente econômicas, foi introduzido no âmbito
estatal. Com isso, haveria uma maior interpenetração entre Estado e Sociedade, em algum
momento, gerando a própria confusão entre esses dois âmbitos. Esse movimento inflaria o
Estado, deixando-o fraco e, em boa medida, incapaz de decidir. O Estado Total Qualitativo seria
o Estado forte em “energia e qualidade” e seria a alternativa para Weimar. A democracia
econômica confundiria economia e política, quando, no entanto, a administração econômica
demandaria a distinção entre Estado e economia. Diante disso, BERCOVICI apresenta as posições
de FRANZ NEUMANN e KIRCHHEIMER que sustentam que o fascismo cresce na Europa como
reação à democratização da economia, tentando barra-la através de um Estado forte. Nesse
sentido, aproxima algumas das posições de SCHMITT, especialmente, sobre o Estado total
quantitativo, às propostas dos ordo-liberais. Nesse contexto, HERRERA aponta para uma questão
interessante. Defende a tese de que, se por um lado, KELSEN é um liberal do ponto de vista
político, seu conceito de democracia independe de qualquer postura liberal quanto à economia, e
que o contrário pode ser apontado quanto à posição de SCHMITT, que ao definir um conceito de
Estado forte (Estado total qualitativo), o alia a uma liberalização da economia. BERCOVICI,
Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente, cit., pp. 99-107; VITA, Leticia. La
legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar, cit., pp. 118-120;
HERRERA, Carlos Miguel. Schmitt, Kelsen y liberalismo. Doxa, Alicante, n. 21. fasc. II, pp. 201-
218, 1998, p. 216.
283
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., pp. 23-24.

102
políticos relacionam-se, especificamente, com essa diferenciação e é nela que se vê
construir uma definição conceitual – não exaustiva ou conteudística, mas,
qualificativa – no sentido de identificar-se um critério para o político. Com ela
pretende-se propor uma categoria autônoma para caracterizar o “extremo grau de
necessidade de uma união ou separação, de uma associação ou dissociação”284.

É importante ter-se em mente que, em SCHMITT, os conceitos de amigo,


inimigo e combate, devem ser tomados em sentido real e literal, não podendo ser
confundidos com qualquer forma de enfretamento retórico ou partidário, mas,
sim, identificados com o efetivo embate que envolve a real possibilidade de morte
física. Trata-se, portanto, da ideia de inimigo em sentido estrito, de inimigo
público (hostis) que não se confunde com o mero adversário ou inimigo privado
(inimicus).

Por conseguinte, o inimigo é o conjunto de pessoas que em eventual


combate defronta-se com um conjunto idêntico, isto é, o inimigo é o corpo similar
por oposição ao corpo homogêneo de pertença, o amigo. Até por isso, em sua
definição de Estado, SCHMITT tende a privilegiar a dimensão exterior da
soberania, sendo, justamente, o ius belli o principal atributo da potência estatal,
tendendo a preterir as questões relacionadas à forma ou à legitimidade da
ordem285.

De todo modo, ainda que esse confronto seja, via de regra, mais bem
compreendido no enfretamento de um povo contra outro, a dimensão extraestatal
não chega a ser necessária. SCHMITT identifica que é possível que as principais
cisões ocorram no âmbito interno de um Estado, isto é, que as contraposições
interestatais alcancem o grau extremo amigo/inimigo, fazendo-se maiores que a
própria contraposição unidade estatal (amigo)/outro Estado (inimigo), o que
caracterizaria a guerra civil286.

284
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 23.
285
VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar,
cit., p. 117; SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 48.
286
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 34.

103
Como categoria autônoma, a diferenciação amigo/inimigo é teórica e
praticamente independente de qualquer outro modo de diferenciação:

o inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa


ser esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como
concorrente econômico e, talvez, pode até mesmo parecer
vantajoso fazer negócios com ele. Ele é precisamente o outro, o
desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, em um
sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e
desconhecido, de modo que, em caso extremo, sejam possíveis
conflitos com ele, os quais não podem ser decididos nem através
de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem
através da sentença de um terceiro “não envolvido” e, destarte,
“imparcial”287.
A guerra, assim, é a realização extrema da inimizade, definida como a
negação ôntica do outro ser. Ela, não precisa ser quotidiana, tão pouco, é desejável
ou deve ser almejada. Precisa, no entanto, continuar existindo como possibilidade
real para a concepção do conceito de inimigo. Nesse sentido, qualquer outro tipo
de contraposição – ética, moral, econômica ou religiosa – tornar-se-á uma
contraposição política na medida em que seja forte o suficiente para agrupar os
indivíduos em amigo/inimigo.

Assim, o político não caracteriza nenhum domínio próprio, podendo


extrair suas forças do âmbito religioso, econômico etc. Ele caracteriza-se, tão
somente, como “grau de intensidade de uma associação ou dissociação de
pessoas”. Se as forças antagônicas de qualquer desses âmbitos forem capazes de
definir por si a decisão sobre a situação crítica, elas terão se convertido na própria
substância da unidade política. Nesses termos:

Político é, em todo caso, sempre o agrupamento que se orienta


pelo caso crítico. Destarte, ele é sempre o agrupamento humano
normativo e, por conseguinte, a unidade política sempre quando
existe um absoluto, sendo a unidade normativa ‘soberana’ no
sentido de que, por necessidade conceitual, a decisão sobre o
caso normativo, mesmo quando este for um caso excepcional,
sempre haverá de residir nela288.
De todo modo, novamente, o que é marcante em todo o pensamento
schmittiano é a forte oposição ao liberalismo e suas formas. Quer seja na

287
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 28.
288
SCHMITT, Carl. O conceito do Político, op. cit., p. 41.

104
eliminação e despersonificação da soberania, quer seja na negação de uma suposta
Paz Perpétua, o liberalismo político é sempre o alvo do autor. Nesse sentido,
entendendo a Constituição como decisão política fundamental, entende o
Rechtsstaat como a decisão constitutiva da ordem legal do liberalismo289. Assim
sendo, boa parte de seus esforços foi no sentido de compreender a ordem como
essencialmente derivada da vontade, da decisão, com o fundamento último na
força. Nesse sentido, ALVES e CATTONI afirmam que “não há, portanto, como
pensar o constitucionalismo democrático com, mas somente contra Carl Schmitt.
O constitucionalismo democrático é criticável, mas reconstrutivamente a partir de
si mesmo e não a partir de pensadores autoritários como Carl Schmitt” 290.

Se a resposta de SCHMITT é a primeira e mais contundente em oposição a


KELSEN, não foi a última. Se KELSEN achou possível compreender o Direito e o
Estado apenas a partir da ratio, SCHMITT respondeu fundamentando toda a
ordem sobre a voluntas. As respostas de SMEND e HELLER, de maneiras distintas,
tentaram articular ambas as dimensões de forma dialética.

289
DYZENHAUS, David. Legality and legitimacy, cit., p. 39.
290
ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Carl Schmitt, op. cit.,
p. 270.

105
CAPÍTULO 3
O NASCIMENTO DA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO:
DIALÉTICAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL
CONCEPÇÕES DIALÉTICAS

Dentre aqueles que em Weimar, preocupados com o método,


desenvolveram suas construções teóricas sobre o Estado e a constituição desde
perspectivas marcadamente dialéticas, temos como principais expoentes RUDOLF
SMEND e HERMANN HELLER. Estes concentram sua abordagem nos processos de
feitura e aplicação do Direito Constitucional, contrapondo-se a perspectivas como
as de KELSEN e SCHMITT291.

Quer SMEND, quer HELLER, invocam RENAN e sua ideia de plebiscito


diário, sobre a dinâmica e contínuo desdobramento da soberania popular,
entendendo que “o soberano estava envolvido em todos os momentos na prática
política; ele teria um lugar imanente para o funcionamento de uma democracia”292.

291
É curiosa a observação de PETER CALDWELL: “A different conception of constitutional law
emerges if one focuses on the process of making and applying law in concrete situations. In the
Anglo-American context, Lon L. Fuller and Ronald Dworkin have each shifted attention to the
complex interaction among legal norms, values, and facts in law. Their approaches counter the
Austinian tradition of H. L. A. Hart and British analytical jurisprudence, with its search for a body
of formal, positive law. Many decades before the critics by Fuller and Dworkin were published, a
similar attack on ‘undialectical’ conceptions of constitutional law appeared in the Weimar
Republic, in the writings of Rudolf Smend and Hermann Heller”. CALDWELL, Peter. Popular
sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p. 120.
292
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
121: “sovereign was implicated at all times in practical politics; it had a place immanent to a
functioning democracy”; SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional, cit., p. 63;
106
Desse modo, em 1930 ambos defendiam a República e a Constituição de Weimar
(ainda que HELLER de forma mais convicta que SMEND) e, de maneiras bastante
diferentes, argumentavam em favor da democracia, entendendo-a como um modo
de participação constante dos cidadãos na comunidade. Assim, apontavam para
um direito constitucional que envolvesse mais nitidamente questões práticas, éticas
e políticas, argumentando, cada um a sua maneira, a partir de leituras hegelianas.
As posições de ambos foram bastante influentes no contexto da
reconstitucionalização alemã em 1949 e, consequentemente, no
constitucionalismo do Estado Democrático de Direito293.

Não deixa de ser curioso que, em que pesem suas fortes influências e,
menor “radicalismo”, são esses os dois autores menos abordados dentre os quatro
que se destacaram naquele momento. SMEND, por exemplo, apesar de ter sua
importância reconhecida, expressamente, quer por SCHMITT, quer por KELSEN, e
de ter formado grandes constitucionalistas alemães (por vezes agrupados em torno
de uma escola smendiana), em muitos contextos nem mesmo é tratado quando de
estudos sobre o período294. HELLER, por seu turno, é responsável por cunhar a
expressão, e lutar pelo modelo, do Estado Social de Direito (sozialer Rechtsstaat) e
do Estado Democrático de Direito (demokratischen Rechtsstaat). Além disso,
influenciou de modo bastante significativo autores de várias correntes, desde
autores da Escola de Frankfurt, como FRANZ NEUMANN295, a autores da Escola

HELLER, Hermann. La Soberanía: contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del Derecho
Internacional. México: UNAM, 1965, p. 175; HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p.
208; RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?, cit., p. 66.
293
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
122. LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho
político de la República Federal, op. cit.; KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 207.
294
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit.; VITA, Leticia. La legitimidad del
Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de Weimar, cit.
295
SCHEUERMAN, William E. Between the norm and the exception: the Frankfurt School and
the Rule of Law. Cambridge: The MIT Press, 1994, pp. 40-46. Isso se vê, explicitamente, por
exemplo, nas várias menções que NEUMANN faz a HELLER em seu trabalho, como em O
Império do Direito, em especial quanto à sua definição de soberania e quanto à perspectiva
dialética. Apenas a título de exemplo, não deixa de ser interessante uma definição que faz de
Direito: “Que o direito tenha que ser entendido como o produto de forças sociais significa que
ele é produto da atividade humana tanto determinada por elas, mas também determinante das
forças sociais”, NEUMANN, Franz. O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na
sociedade moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 72. Nessa passagem se vê de forma
107
smendiana como PETER HÄBERLE. Contudo, seu falecimento prematuro, no
mesmo ano de 1933, quando também morreu a República de Weimar, impediu
maiores desdobramentos de sua obra.

3.1. RUDOLF SMEND

RUDOLF SMEND, cujo nome completo era CARL FRIEDRICH RUDOLF


SMEND, nasceu em 1882, no seio de uma família conhecida e reconhecida na elite
acadêmica e intelectual alemã. Seu pai, também chamado RUDOLF SMEND (1851-
1913), e seu tio, JULIUS SMEND (1857-1930), por exemplo, foram importantes
teólogos calvinistas296. Além desse berço acadêmico e intelectual, as ideias
protestantes acabaram por influenciar sua obra, talvez, tanto quanto o catolicismo
influenciou a obra de SCHMITT297.

SMEND estudou na universidade de Göttingen e em 1904 apresentou a


dissertação: A Constituição Prussiana em comparação à Constituição Belga (Die
Preuβische Verfassungsurkunde im Vergleich mit der Belgischen). Essas duas
constituições comparadas no trabalho possuíam termos, textos e previsões, em
muitas passagens, iguais e/ou similares, com a diferença de que a Constituição
Belga (1831) era, nomeadamente, baseada no princípio da soberania popular, o
que não acontecia com a Constituição Prussiana (1850). Como ressalta KORIOTH,
já nesse trabalho SMEND afastava-se do “método científico-legal” labandiano e
apontava para o superar da estrita interpretação do texto constitucional e da
construção de conceitos. Assim, trazia os elementos históricos e políticos do
direito constitucional para explicar porque termos e textos constantes de forma

muito marcada a perspectiva dialética explorada por HELLER quando trata de normalidade e
normatividade.
296
Na verdade são três gerações de intelectuais homônimos na família, pois o filho de (CARL
FRIEDRICH) RUDOLF SMEND, também se chama RUDOLF SMEND (1932) e, assim como o avô e
o tio-avô, é teólogo.
297
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., p.
125.

108
idêntica ou similar nas duas constituições apresentavam sentidos diversos para as
duas ordens e realidades298.

Em 1908 SMEND apresentou em Kiel seu Habilitationsschrift sobre o


Reichskammergericht, mais alto tribunal do Sacro Império Romano-Germânico,
em trabalho que realizou sob a supervisão de ALBERT HÄNEL, um dos principais
críticos de LABAND. No ano seguinte foi nomeado para a Universidade de
Greifswald, seguindo para Tübingen (1911), Bonn (1915) e Berlim (1922).
Durante os primeiros anos da Constituição de Weimar, SMEND foi-lhe bastante
crítico, tendo encampado sua defesa com o avançar da década de 1920. Negou-se
a colaborar com o regime nazista, limitando suas publicações, entre 1933-1945, a
trabalhos de história do direito. Até por isso, em 1935 foi forçado a abdicar de sua
cadeira na Universidade de Berlim, assumindo outra em Göttingen, tendo sido
seu primeiro reitor do pós-guerra. Permaneceu em Göttingen até o fim de sua
vida, vindo a falecer em 1975299.

A base da perspectiva de SMEND é sua abordagem da Teoria do Estado


como Ciência do Espírito. Nesse contexto, coloca um problema típico da filosofia
social e da sociologia alemãs: a relação entre o indivíduo e a comunidade, entre o
indivíduo e o Estado. Para ele, essas são questões mais estruturais, que valorativas,
comuns a todas as ciências do Espírito, que seguirão insolúveis a menos que se
deixe de contrapor de modo substantivo o Eu frente ao todo social300.

A partir daí, com sua teoria da integração, intentou romper com as linhas
positivistas que lhe eram contemporâneas301. Estas se caracterizaram,
epistemologicamente, por identificar vários dualismos, como: o distanciamento
entre o conhecimento subjetivo e o conhecimento objetivo; entre natureza e
Espírito; entre a explicação das ciências naturais, causalmente determinada, e a
explicação das ciências humanas, normativamente determinada e idealista. Nessa
esteira, ao tratarem da análise da Teoria do Estado, para SMEND, tais perspectivas
298
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 207.
299
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., pp. 207-208.
300
LUCAS VERDÚ, Pablo. La lucha contra el positivismo jurídico en la República de Weimar,
cit., p. 55.
301
SMEND, Rudolf, Constitución y Derecho Constitucional, cit., p. 39-70.

109
positivistas separavam de modo marcante o ser e o dever ser, a realidade
constitucional e as normas constitucionais302.

A opus Magnum de SMEND, Constituição e Direito Constitucional, é


publicada em 1928. Entretanto, sua teoria da integração já começara a ser
apontada desde, pelo menos, 1923303. A questão despertou o interesse de muitos
de seus contemporâneos e já em 1927, CARL SCHMITT, no prólogo de seu Teoria
da Constituição, manifestou expectativa pela obra de SMEND que já se anunciava.
KELSEN, por sua vez, como mencionado, publicou uma resposta ao trabalho de
SMEND em 1930304.

Nessa principal obra, SMEND constrói muitas de suas questões em expressa


oposição às formulações positivistas, especialmente, às kelsenianas. Ele indica não
pretender esboçar uma Teoria do Estado, nem mesmo, uma Teoria da
Constituição, tampouco, tratar das consequências de uma análise do direito
positivo alemão (da Constituição de Weimar). Seu objetivo central foi o de expor
os pressupostos filosóficos para uma Teoria da Constituição. Para tanto, alega
partir do método fenomenológico de THEODOR LITT305 e de sua filosofia
hegeliana306, pondo como tese central de sua formulação a necessidade de um
entrelaçamento mútuo e uma implicação recíproca de todos esses métodos (da

302
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., pp. 208 e 209. Quanto ao enfrentamento dessas
dicotomias, KORIOTH, faz menção expressa ao contraponto existente entre as posições de
SMEND e KELSEN.
303
SMEND, Rudolf. Die politische Gewalt im Verfassungsstaat und das Problem der Staatsfrom
(1923). SMEND, Rudolf. Staatsrechtliche Abhandlungen und andere Aufsätze. 4 ed. Berlim:
Duncker & Humblot, 2010, pp. 68-88. SMEND não se coloca como criador do termo. Aponta sua
utilização por outros juristas como KELSEN, THOMA e, especialmente no sentido que trata,
remete a WITTMAYER. Também faz referência ao uso do termo por H. SPENCER, no âmbito da
sociologia.
304
KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit.
305
A principal obra do LITT, que especialmente influenciou SMEND, foi: LITT, Theodor.
Individuum und Gemeinschaft: Grundfragen der sozialen Theorie und Ethik. Leipzig, 1919, que
foi revisada e reeditada em 1924 e em 1926. SMEND faz referência a essas duas edições.
306
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 209: “In an effort to free the theory of state
and constitution from its positivist context, Smend took as his basis, in methodological opposition
to Kelsen, the phenomenological method of Theodor Litt and his Hegelian philosophy”.
110
Teoria do Estado, da Teoria da Constituição e do Direito Constitucional) e
âmbitos de trabalho307.

Isso porque o objeto da Teoria do Estado e do Direito Constitucional, para


SMEND, encontra-se na compreensão do Estado enquanto parte da realidade
espiritual. A vida do Espírito é, ao mesmo tempo, autorrealização do individuo e
da comunidade. Por isso, o Estado existe unicamente por causa e na medida em
que esteja imerso neste processo de auto-integração que se desenvolve a partir do
indivíduo e no próprio indivíduo308.

Nessa dinâmica, as formas espirituais coletivas não poderiam ser


compreendidas como substância estática, mas, sim, como unidade de sentido de
atos espirituais, portanto, a partir de um amiúde processo de atualização funcional
e de árdua configuração social, pelo qual se realizariam tais formas coletivas. Por
conseguinte, o Estado não poderia ser entendido como totalidade imóvel, que se
expressasse externamente apenas pela produção de leis, de acordos diplomáticos,
de sentenças ou de atos administrativos. Pelo contrario:

el Estado existe y se desarrolla exclusivamente en este proceso de


continua renovación y permanente reviviscencia; por utilizar aquí
la célebre caracterización de la Nación en frase de Renan, el
Estado vive de un plebiscito que se renueva cada día. Para este
proceso, que es el núcleo sustancial de la dinámica del Estado, he
propuesto ya en otro lugar la denominación integración309.
SMEND pretendia revelar a essência da integração como sendo um
“processo de participação ininterrupta das consciências individuais à realidade
total do Estado, ou seja, adesão sempre renovada dos membros da comunidade às
ideias e aos valores que constituem a razão de ser da própria existência da
comunidade”310. Para tanto, constrói uma ideia de uma unidade da comunidade no

307
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 39: “en definitiva, al hecho de
que así como no puede existir un derecho constitucional satisfactorio y operativo sin una
fundamentación metodológica clara y consiente en una teoría general del Estado y de la
Constitución, tampoco es posible una teoría viable del Estado y de la Constitución sin una
metodología propia que no puede ser jurídica, sino necesariamente adecuada a la metodología de
las ciencias del espíritu; tan sólidamente fundada en una teoría del conocimiento como la
metodología de cualquier otra ciencia del espíritu”.
308
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., pp. 64-65.
309
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., pp. 62-63.
310
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 46.

111
Estado a partir do processo da síntese de atividades e de valores311. Para HÄBERLE,
retrospectivamente, essa ideia, inclusive, “es vista también como un intento de
contrarrestar la triste polarización de las fuerzas políticas de Weimar. Justo al
contrario C. Schmitt”312.

Nessa esteira, SMEND identifica três tipos de integração: a integração


pessoal, a integração funcional (ambas, síntese de atividades) e a integração
material ou objetiva (síntese de valores). Por conseguinte, para ele, o Estado, ou,
mais precisamente, a estatalidade, seria um processo de contínua integração de
cada cidadão no Estado, em parte, de forma ativa, em parte de forma passiva,
através de sua experiência de ação estatal em que atuam com força de coesão
símbolos, paradas, bandeiras, hinos, processos e dinâmicas de participação política
e a própria Constituição313.

A primeira das formas de integração, a integração pessoal, se daria nos


termos de pessoas, figuras políticas e líderes simbólicos. Especialmente
preocupado com as correntes políticas pró-fascismo que lhe eram
contemporâneas, SMEND adverte para os riscos e erros na leitura sobre essa
dimensão, sem, no entanto, negar-lhe importância314. Essa forma de integração
seria maximamente colocada nas funções e tarefas classicamente desempenhadas e
identificadas com a figura do Chefe de Estado, sobre a qual, em maior ou menor
grau, se estriba a representação da unidade política de um povo, no que SMEND
tratava, também, daqueles que chamou de funcionários políticos em sentido
amplo315.

311
O que não escapa à crítica de KELSEN que o acusa de, assim, cair em contradição com seu
marco teórico de partida: TH. LITT. KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit., p. 12.
312
HÄBERLE, Peter. La constitución como cultura. Anuario iberoamericano de justicia
constitucional, Madri, n. 6, pp. 177-198, 2002. Também apontando nesse sentido: KORIOTH,
Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 210.
313
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 210.
314
Nesse sentido é muito interessante a passagem: “Es fruto de una mentalidad típicamente liberal
– o como diría H. Preuss, de una mentalidad jerárquica – pensar que el problema del caudillaje o
mando político es únicamente un problema de los gobernantes y no tanto por lo menos también
de los gobernados”, SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 71.
315
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., pp. 70-78. O autor trata de modo
especial da chefia de Estado, dando especial atenção à figura de um monarca quando atuando
nesse sentido. Entretanto, aponta também dimensões dessa forma de integração enquanto
112
Quanto ao segundo tipo de integração, ainda relacionada à síntese de
atividades, a integração funcional ou processual, SMEND trata das formas de vida
que tendem a criar um sentido coletivo através de processos que apontam para
produzir uma síntese social. Nelas estariam as manifestações públicas, as paradas
militares, os referendos, as eleições, as atuações parlamentárias, a participação em
instituições pública, a cidadania ativa de um modo geral, mas também, e
especialmente, a própria luta política, quando em torno de valores comuns, através
de uma disputa organizada e regrada. Para o autor, sob condições políticas
saudáveis, seria possível a própria superação das tensões por meio do
enfrentamento político em torno de objetivos comuns, em uma catarse similar
àquela do desfecho de um jogo. Deste modo, a razão de fundo dessa função
reparadora e catártica seria a de ato integrador essencial da vida comunitária para o
aumento da participação vital do indivíduo – independentemente dele pertencer à
maioria ou à minoria – da qual decorreria a formação e fortalecimento de uma
maior unidade política, não exatamente homogênea, mas que comungasse dos
mesmos valores de fundo316.

SMEND, entretanto, registra que, em última instância não é possível nenhum


modo de integração formal (pessoal e funcional) sem que haja uma comunidade
material de valores. A esse passo, trata da integração material apontando para o
desenvolvimento de uma Teoria do Estado que o entenda como alicerçado na
consecução de objetivos comuns, no qual seja alimentado o sentido comunitário.

Acerca desse sentido, SMEND trata o Estado como uma socialidade das
vivências substantivas, especialmente, de uma comunidade cultural ativa. É na
comunidade que os valores são vividos e se atualizam, sendo esta mesma
comunidade, a condição para eles tenham eficácia e vida própria. Contudo, essa
implicação transita nos dois sentidos, pois a própria existência da comunidade
depende dos valores que a sustentam. Se o próprio indivíduo, no desenvolvimento

exercidas pelo gabinete, no parlamentarismo weimariano, e, mesmo, em alguma medida,


colateralmente e não precipuamente, pela burocracia e pela judicatura, articulando com WEBER.
Com isso afirma que os “funcionarios que realizan primariamente una labor integrador son los
funcionarios políticos”.
316
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., pp. 78-93.

113
de sua personalidade e de sua participação na vida do Espírito, depende da
atualização dos valores culturais, essa necessidade é ainda mais patente no caso das
coletividades, que, por natureza, carecem de uma existência psicofísica.

Assim, para SMEND é indiferente dizer que o Estado é uma forma da


Cultura ou que os âmbitos culturais imersos no Estado são uma forma de vida do
Estado, pois, entende que não se pode distinguir forma e conteúdo. A relação
entre Estado e Cultura deve ser compreendida como momentos de um fenômeno
único. O Estado não é uma essência real em si, que pode ser mecanicamente
utilizada para realizar quaisquer objetivos aleatórios que lhe sejam exteriores. Pelo
contrário, o Estado é, ele mesmo, real tão somente na medida em que é realização
de um significado material. Assim, sua justificação não depende de qualquer
vinculação teleológica com objetivos ou finalidades que lhe sejam externos, mas
decorre, exatamente, de sua natureza substantiva como realização de valores317.

O processo de integração transmite e constrói, exatamente, esse sentimento


de corpo conjunto de indivíduos comprometidos com um projeto comum de vida
boa, plasmado na constituição. Deste modo, o autor coloca a constituição como
sendo o ponto de referência, em lugar da tradicional Teoria Geral do Estado318.
Para SMEND, a Constituição é a ordenação jurídica da dinâmica vital em que se
desenvolve a vida do Estado, portanto, de seu processo de integração que tem
como finalidade a perpétua reimplantação da realidade total do Estado. Assim, a
Constituição é a cristalização legal-normativa de determinados aspectos desse
processo319.

Esse princípio de coesão gira em torno de determinados valores que


emanam justamente do parâmetro normativo da ordem jurídica, a qual, por sua
vez, deve refletir o parâmetro valorativo-cultural da comunidade. Dessa maneira,
pode-se compreender o Estado como realidade, “enquanto realização espiritual e
idêntica a ela”. Desse modo, funde-se o ser e o dever ser com o vir a ser, o devir
da realidade espiritual do Estado, mediante o processo de integração. O Estado,

317
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 93-95.
318
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política, op. cit., p. 8.
319
SMEND, Rudolf, Constitución y derecho constitucional, cit., p. 132.

114
nessas bases, é um eu coletivo que corresponde à representação do eu de cada
um320.

A principal crítica sofrida por SMEND vem de KELSEN, que em 1930


publica um livro de resposta ao “autor de Berlim”: O Estado como Integração: um
confronto de princípios. Curiosamente, o tom crítico dessa publicação é bastante
mais elevado que a média dos trabalhos do autor de Viena. Ele inicia o texto de
forma bastante irônica e ácida, buscando apontar alguns mal-entendidos que alega
terem sido provocados e afirmados por SMEND. Por exemplo, quanto ao fato da
teoria normativa do Estado de Viena ser uma teoria espiritual-científica do Estado,
o que, aparentemente, seria negado pela teoria da integração.

Em suma, além de apontar obscuridade e falta de clareza ao professor de


Berlim, KELSEN afirma, em várias passagens, que SMEND faz afirmações
equivocadas sobre sua posição quanto ao Estado. O ponto principal de sua crítica
oscila em dois pólos. Por um lado, afirma que a empreitada pretendida pelo
Constituição e Direito Constitucional de realizar uma crítica científico-espiritual à
teoria dominante – “isto é, à teoria do Estado do século XIX, classicamente
resumida na obra Teoria Geral do Estado de Georg Jellinek”321 – não seria oposta
ao projeto da teoria normativa do Estado da Escola de Viena, mas com ela
coincidiria. Por outro, o autor de Viena busca demonstrar incoerências entre o
desenvolvimento de SMEND e seus pressupostos, especialmente, no que diz
respeito à sua fundamentação em THEODOR LITT. Para ele, haveria certa
confusão na abordagem que SMEND fazia essas premissas e, por causa disso, a
teoria da integração acabava mais por coincidir do que combater a teoria dualista
do Estado de JELLINEK. Nessa ordem, também critica a dialética de LITT que,
para ele, no fim das contas, não propunha qualquer unidade do conceito ou objeto
do conhecimento, estancando em um “insuperável dualismo”322.

SMEND silenciou-se durantes muitos anos sobre a teoria da integração, não


tendo apresentado qualquer resposta pública à obra de KELSEN, tampouco a

320
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 49.
321
KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit., p. 5.
322
KELSEN, Hans. O Estado como integração, cit., pp. 26-28.

115
outros críticos contemporâneos. Sua teoria da integração, de algum modo, refletia
as experiências traumáticas da Primeira Guerra Mundial, bastante relacionadas ao
colapso do ideal iluminista de progresso.

Já no segundo pós-guerra, em Integrationslehre, de 1956, olhando para trás,


SMEND vai defender que a base de sua teoria era oferecer um sentido
originalmente saudável da vida da constituição em oposição ao caos político e ao
doente Estado Constitucional dos anos 1920323. Destarte, SMEND colocava-se
diante da morte do Iluminismo e sua confiança na racionalidade, a partir da ao
menos parcial irracionalidade da experiência da integração324.

Ele influenciou diretamente uma ampla gama de autores que por vezes são
identificados, de algum modo, com uma Escola de Smend. São-lhe representantes
juristas bastante reconhecidos como KONRAD HESSE, ULRICH SCHEUNER,
HORST EHMKE (que foram seus alunos). Ainda são marca dessa “escola” a
abertura e o diálogo que teve com a jurisprudência anglo-americana, bem como, a
influência de suas ideias no desenvolvimento do Tribunal Constitucional Alemão.

3.2. HERMANN HELLER

HERMANN HELLER nasceu em 1891, na cidade de Cieszyn (Teschen, em


alemão), à época, parte do Império Austro-Húngaro, hoje República Checa. De
família burguesa de origem judia, assim como KAFKA e tantos outros judeus
nascidos na região, era falante do alemão, não apenas pela hegemonia de Viena,
mas, também, por influência da cultura Yiddisch. Portanto, por nascimento,
HELLER não era cidadão do Reich guilhermino, mas súdito do Império católico
dos Habsburgo.

323
SMEND, Rudolf. Integrationslehre. In: SMEND, Rudolf. Staatsrechliche Abhandlungen und
anderen Aufsätze. 4 ed. Berlim: Duncker & Humblot, 2010, pp. 475-481.
324
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 210.

116
Já em 1914 alistara-se como voluntário para a Primeira Guerra. Durante o
serviço militar, em 1915, forma-se em Direito na renomada Universidade de Graz,
onde faz seus Staatsexamen, depois de ter passado pelas Universidades de
Innsbruck e de Viena. No mesmo ano, combate pelo exército do Império Austro-
húngaro no front russo, o que lhe causou problemas cardíacos que lhe custaram o
falecimento precoce aos 42 anos. Com o fim da guerra, vê o fim do Império e,
como toda uma geração, sente-se privado de sua identidade política e existencial.
Migra à Alemanha onde segue seus estudos na Universidade de Kiel, defendendo
sua Habilitation em 1920, com o trabalho intitulado: “Hegel e a ideia de Poder
estatal nacional na Alemanha: uma contribuição para a história das ideias políticas”
(Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke in Deutschland: Ein Beitrag zur
politische Geistesgeschichte ).

Animado por GUSTAV RADBRUCH, socialista de longa data, ingressa no


SPD (Partido Social Democrata alemão) no dia 09 de março de 1920, um dia
antes de sua defesa de Habilitation. HELLER compôs a ala não marxista do SPD e,
no momento de filiação, fez constar na ata de adesão que não compartilhava de
alguns dos pontos do programa do partido, nomeadamente: do materialismo
histórico e do internacionalismo325. Juntos, HELLER e RADBRUCH tiveram
significativa atuação política, sendo particularmente notórias suas participações
junto à resistência no porto de Kiel contra a tentativa de golpe de Estado ocorrida
entre 13 e 17 de março de 1920, episódio conhecido como Kapp Putsch326, apenas
quatro dias após a filiação de HELLER ao SPD e três dias após sua defesa de
Habilitation.

De modo geral, entre 1920 e 1932 teve vida política bastante ativa.
Considerado um intelectual poderoso e temperamental, nesse período ajudou a

325
LA TORRE, Massimo. La crisi del novecento: giuristi e filosofi nel crepuscolo di Wiemar.
Bari: Dedalo, 2006, p. 55-56.
326
O Kapp Putsch foi uma tentativa de golpe de Estado contra o Presidente da República alemã, o
Social Democrata Friedrich Ebert. O evento ocorreu entre 13 e 17 de março de 1920. Seus
líderes eram Wolfgang Kapp e o General Walther von Lüttwitz (por isso o evento por vezes é
também conhecido como Kapp-Lüttwitz Putsch) que com o putsch militar pretendiam
estabelecer uma governo autocrático de direita. KOLB, Eberhard. The Weimar Republic, cit.,
pp. 37-40; HENIG, Ruth. The Weimar Republic 1919-1933, cit., pp. 25-27.

117
construir a juventude socialista, trabalhou na educação para adultos e teve atuação
bastante importante na vida jurídico-política alemã. Além disso, apesar das
barreiras antissemitas que foram progressivamente aumentando, nesse período
ocupou postos acadêmicos em Kiel (1920-1922), Leipzig (1922-1926)327, Berlim
(1926-1932) e Frankfurt (1932). Na capital da República, incialmente ocupou o
posto de consultor (Referent) no Kaiser-Wilhelm-Institut für ausländisches
öffentliches Recht und Völkerrecht de Berlim328, tornando-se Professor da
Friedrich-Wilhelms-Universität de Berlim em 1928, onde ficou até ser apontado à
Universidade de Frankfurt, em 1932.

Em 1933, a convite de HAROLD LASKI, lecionou como professor


convidado na Inglaterra. Sendo judeu e socialista, combinava características que
lhe faziam um alvo especialmente visado da perseguição nazista. Justamente
durante esse curto período fora da Alemanha, vários eventos tornaram sua volta,
no mínimo, perigosa. Dentre eles, a aprovação da "Lei para a Restauração do
Serviço Público Profissional", de 7 de abril de 1933. Ela determinava que judeus e
funcionários públicos “politicamente não confiáveis” deveriam ser exonerados de
seus cargos, o que acabou por retirar HELLER e tantos outros intelectuais de seus
postos acadêmicos329. Diante desse cenário, seguiu para a Espanha, onde aceitou
cadeira na Universidade de Madri. Tinha como objetivo seguir para a
Universidade de Chicago, plano que não chegou a ser concretizado, vindo a
falecer no mesmo ano de 1933, em virtude de seus problemas cardíacos. Sua
principal obra, Teoria do Estado, acabou sendo publicada postumamente, apenas

327
Ali, particularmente, no sistema de educação para adultos. STOLLEIS, Michael. A history of
public law in Germany 1914-1945, cit., p. 175.
328
O Kaiser-Wilhelm-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht foi fundado
em 1924 e em 1949 deu lugar ao Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und
Völkerrecht, hoje situado em Heidelberg.
329
MONEREO PÉREZ, José Luiz. MONEREO PÉREZ, José Luiz. La defensa del Estado Social
de Derecho: la teoría política de Hermann Heller. Barcelona: El Viejo Topo, 2009, pp. 113-114,
nota 4: “Las medidas de represión del régimen fascista-nazi se ejercieron sobre todos los
intelectuales demócratas y se cebó especialmente en los intelectuales judíos. Fueron obligados a
exiliarse o exterior o interiormente no sólo Hermann Heller, sino también otros intelectuales
(judíos o no), como Moritz Julius Bonn, Gustav Radbruch, G. Kantorowicz, Nawiasky,
Löwenstein, Schücking, Apelt, Jacobi, Anschtz, W. Jellinek, entre muchos. Precisamente
sucesores de Heller e Schücking, fueron designados discípulos de Schmitt: E. Forsthoff y E. R.
Huber, mientras que la cátedra de Nawiasky fue ocupada por Th. Maunz”.

118
um ano após sua morte, ainda incompleta, mas já com uma estrutura e
desenvolvimento significativamente sólidos330.

Em muitos aspectos, especialmente do ponto de vista político, HELLER


pode ser considerado um antípoda de SCHMITT. Isso é bem representado pelas
posições tomadas por ambos na querela Preussen contra Reich, decorrente do
fatídico Preussenschlag (golpe de Estado prussiano), em julho de 1932331. Nela,
HELLER foi o representante legal do SPD prussiano deposto332, enquanto
SCHMITT atuou como um dos representantes legais do Reich333. Também em
posição diametralmente oposta à de SCHMITT, HELLER foi um dos principais
defensores da Constituição de Weimar, além de sempre ter sido especialmente
comprometido com a democracia, com o pluralismo e com o Rechtsstaat. Além
disso, foi um dos mais importantes formuladores do Estado Social, influenciando
profundamente as construções sobre o Estado Constitucional no pós-guerra, quer
na Alemanha, quer na Europa de um modo geral334.

No que diz respeito à teoria jurídica, HELLER colocou-se, especialmente,


em contraposição a KELSEN, seu normativismo e seguidores. As divergências entre
suas posições colocam-se já desde seus pressupostos. Enquanto KELSEN construía
suas formulações desde as bases do neokantismo de Marburgo, HELLER colocava-
se em perspectiva hegeliana e sustentava que a separação entre ser e dever ser,
tipicamente neokantista, era falsa335. Nessa linha, entendia que o positivismo

330
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., pp. 249-250; DYZENHAUS, David.
Hermann Heller and the legitimacy of legality. Oxford Journal of Legal Studies, Oxford, v. 16, n.
40, pp. 641-666, 1996: “The manuscript was in good enough shape to be published in 1934 in
Holland in an edition put together by G. Niemeyer, one of Heller's students”.
331
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit., pp.
162-170; BECK, Earl R. The Death of the Prussian Republic: A Study of Reich-Prussian
Relations, 1932-1934. Tallahassee: The Florida State University, 1959, pp. 121-145.
332
O governo deposto por Berlim era composto por uma coalizão entre o SPD e o Zentrum
(Partido Alemão Centro-Católico).
333
Tratando do episódio, trabalhando as posições defendidas no caso: DYZENHAUS, David.
Legal Theory in the collapse of Weimar: Contemporary Lessons?. American Political Science
Review, v. 91, n. 1, pp. 121-134, mar. 1997.
334
STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945, cit., p. 177; MONEREO
PÉREZ, José Luiz. La defensa del Estado Social de Derecho, cit., passim.
335
STOLLEIS destaca a especial rixa que HELLER alimentava contra KELSEN, mencionando que
nos encontros da Associação de Professores de Direito do Estado Alemão ele “era
119
jurídico não era capaz de explicar, nem mesmo, a positividade do Direito. Isso
porque a teoria jurídica, na tentativa de entender o que o Direito é,
invariavelmente, fazia-o de modo não meramente descritivo – por mais que assim
o pretendesse – mas, necessariamente, de forma prescritivo-normativa.

Desse modo, HELLER teve como projeto repensar e reconstruir a teoria


jurídica e não miná-la desde dentro336, como parecia pretender SCHMITT. Para o
autor socialdemocrata, a consistência do pensamento de KELSEN apenas
confirmava o quão absurdo era o caminho da Teoria Geral do Estado das últimas
duas gerações de pensadores alemães que lhes antecederam. Assim sendo, o
ponto crucial da crítica helleriana colocava-se sobre o fato dele não admitir o
Estado como uma ordem normativa, mas sim, como parte da cultura humana, no
que importava incluir a Teoria do Estado (Staatslehre) dentro da ciência política337.

A maior marca do pensamento helleriano é sua postura eminentemente


dialética, que pode ser vista na relação que faz entre Direito e poder, normalidade
e normatividade, ser e dever ser, direito positivo e princípios jurídicos
fundamentais, entre o mundo do real (ser) e o mundo da cultura (dever ser)338. Em
toda sua construção o autor, recorrentemente, refuta posições especialmente
exclusivistas, de lado a lado. Ou seja, aponta como não compreensivas posições
que buscam explicar o Estado e o Direito, cada uma de sua parte, calcadas apenas
em uma dessas duas dimensões. Isso transparece claramente também em seu

ocasionalmente aceito como um aliado contra Kelsen”. STOLLEIS, Michael. A history of public
law in Germany 1914-1945, cit., pp. 175-178.
336
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, cit., pp. 251-252.
337
STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945, cit., p. 175; HELLER,
Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 49: “desde hace dos generaciones la burguesía alemana
aparece políticamente saturada y los tratadistas alemanes de la teoría del Estado, que se jactaban
de no tener nada que ver con la política práctica, dedicaron los mayores esfuerzos a ‘despolitizar’
su disciplina (...) Estos últimos autores pretendían, queriendo como engañarse a sí mismos, que
les era posible eludir la problemática política de su tempo; pero, de hecho, se vieron forzados a
aplicar soluciones históricamente desplazadas a los problemas tradicionales o, al contrario, a
adoptar soluciones tradicionales sin recoger, con ellas, a las cuestiones a que respondían”.
338
BESTER, Gisela Maria. A concepção de Constituição de Hermann Heller – integração
normativa e sociológica – e sua possível contribuição à Teoria da Interpretação Constitucional.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 36, p. 231-50, 1999, p. 239.

120
conceito de constituição, motivo pelo qual JOSÉ LUIZ BORGES HORTA o trata
como um autor de síntese da Teoria da Constituição339.

Nesse contexto, BERCOVICI identifica na proposta de HELLER uma Teoria


do Estado atual, desprendida do estilo das tradicionais teorias gerais do Estado
alemãs que buscavam explicar o Estado como invariável, em repouso, com
características constantes e caráter universal, independente de tempo ou lugar. Ao
contrário disso, buscava uma investigação da “realidade estatal que nos rodeia”,
portanto, uma Teoria do Estado enquanto ciência da realidade de formação real e
histórica340.

DYZENHAUS atribui, justamente, a essa perspectiva inovadora de HELLER


sua pouca difusão no mundo anglófono. Destaca, também, que o autor
compartilhava com SCHMITT determinada crítica ao normativismo kelseniano, ao
apontar que as concepções de Direito são fundamentalmente políticas e
relacionadas a contextos históricos e sociais particulares, portanto, que o substrato
da Filosofia do Direito encontra-se na sociedade e na cultura. Todavia, ao mesmo
tempo, opunha-se à celebração schmittiana à ditadura e à eliminação do conflito
político através da imposição da homogeneidade política do povo (Volk) sobre a
sociedade plural. Nessa medida, HELLER não deixava de se aproximar de
KELSEN, em seu comprometimento com a democracia, com a liberdade individual
e com a igualdade social. Com KELSEN também partilhava o respeito e o
compromisso com as amarras do Estado de Direito para a construção e
desenvolvimento de uma sociedade política decente341.

Desse modo, HELLER buscou compreender Direito, moralidade e poder,


considerando todas essas estruturas e dimensões, sem minorá-las ou destaca-las,

339
HORTA, José Luiz Borges. Teoria da Constituição: contornos epistemológicos. Revista
Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 6, pp. 346-357, jul./dez. 2005, p. 351.
340
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit., p. 111; HELLER,
Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 21-53, 83: “Así, para Bluntschli (Allg. Staatsl., VI, p. 2), G
Jellinek (p. 15) y otros muchos, la teoría del Estado y la doctrina del derecho político tendrían
como misión estudiar el ‘orden estatal en reposo’, el Estado ‘como algo fijo y regulado’, y en
cambio, la política se ocuparía del Estado ‘en su vivir’. Tal distinción es, sin embargo,
radicalmente inaceptable porque el Estado, al igual que toda otra forma de la actividad política,
sólo existe como institución en tanto se renueva de modo constante mediante la acción humana”.
341
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 250.

121
tampouco, sobrepô-las umas às outras342. Alegava que toda teoria que inicia sua
abordagem desde as alternativas Direito ou poder, norma ou vontade, objetividade
ou subjetividade, desconhece a construção dialética da realidade estatal e, por isso,
é falsa343.

Em HELLER, tampouco é possível compor uma imagem do Estado na


atualidade sem que se realize uma representação do porvir, de modo que a relação
entre a Teoria do Estado e a política tem de ser entendida como necessária. Por
política pretende toda sorte de ordem de cooperação recíproca de relações
humanas, sejam elas no âmbito econômico, educativo, artístico e, especialmente,
estatal. Onde quer que haja cooperação de ações sociais recíprocas que não se
compreendam a si mesmas, haverá política. Deste modo, a finalidade da política é
a organização da sociedade e a finalidade da política estatal, particularmente, é a
ordem de cooperação das relações sociais em um espaço determinado de
soberania. Assim, configura-se, como fim imediato de toda política, a ordem pela
ordem, tanto quanto possível, com a máxima exclusão da coação física e da
violência344.

O juízo sobre o que é politicamente possível decorre da própria valoração


do político real, das diversas tendências contemporâneas de evolução. Desse
modo, nenhuma análise quanto ao Estado e quanto à política é passível de ser
realizada por um sujeito distanciado, através de mera descrição de um objeto a ser
conhecido, sem qualquer relação volitiva com este. Tampouco pode fazê-lo sem

342
DYZENHAUS, David. Hermann Heller and the Legitimacy of Legality, op. cit., pp. 641-642.
343
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 350-351.
344
HELLER, Hermann. El sentido de la política. In: HELLER, Hermann. El sentido de la
política y otros ensayos. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 57-60, p. 60: “Aun cuando todos los
hombres fuesen justos y se dejasen guiar por motivos morales, seguiría siendo, sin embargo, el
poder el medio de la política, mientras no todos ellos piensen y quieran lo mismo. Pues en ese
caso seguiría habiendo todavía oposición al orden dominante precisamente porque unos motivos
morales no coincidirían con los otros (…). La justicia no se impone por sí misma, para su
realización necesita hombres y poderes, y si todo lo demás no es suficiente, también la violencia
física. Pero el poder social es la capacidad para el dominio en el Estado, la economía, etc., la
capacidad espiritual y material para la dirección”.

122
compreender sua essencial mutabilidade. Por conseguinte, “el conocimiento de la
realidad política y su valoración se hallan, pues, entrañablemente unidos”345.

Em HELLER, a questão da Teoria do Estado se coloca em contraste com a


completa relativização do Direito ao poder, bem como, a contingência de uma
particular situação de poder que aponte para uma irracional deificação do poder e
da Decisão, que espera por purificar a sociedade de suas contradições e tensões,
como pretendia SCHMITT. Assim pensava, não porque entendesse impossível a
eliminação desses componentes da unidade dialética da comunidade jurídico-
política, mas porque acreditava que a tentativa schmittiana de escapar da
normatividade poderia custar a própria destruição da cultura ocidental346.

Por outro lado, HELLER também se opôs à purificação do Direito


pretendida por KELSEN. Esta – acusa ele – não é capaz de dar conta do fato do
poder ser constitutivo de Direito e, com isso, faz do Direito também inteiramente
submisso ao poder, ainda que essa não tenha sido, exatamente, a intenção inicial
daqueles que entenderam por essa depuração.

Tais purificações, de lado a lado, quer a da teoria de SCHMITT,


pretensamente fundada em uma “ordem concreta”, quer a de KELSEN, baseada
em uma pretensa cientificidade, afirmavam que as práticas éticas eram estéreis e
inúteis para a compreensão do Direito, uma vez que não ofereceriam certezas
absolutas ou, mesmo, uma fundamentação segura. Todavia, para HELLER, esse
erro assemelha-se ao de defender que o teto de uma casa cujas fundações fossem
inseguras, simplesmente pudesse existir e sustentar-se por si mesmo, sem
quaisquer fundações. Portanto, diferentemente de KELSEN e SCHMITT, HELLER
aspirava manter as tensões e contradições no coração da Filosofia do Direito,
formulando uma teoria democrática em que o Estado de Direito e os direitos
individuais ocupavam um papel central347. Nessa ordem, coloca o Direito em bases
normativas e sociais, em termos que pretendem, necessariamente, manter suas

345
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 86-87.
346
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 180.
347
DYZENHAUS, Legality and Legitimacy, cit., p. 167.

123
contradições e tensões inerentes348. Mais que isso, defendeu que apenas os
princípios éticos e políticos, baseados em práticas sociais e políticas, poderiam
fundar e fundamentar um Estado de Direito349.

Nessa linha, é muito importante para a construção helleriana a constatação


de que o poder tem de ser entendido em termos de normas, ao mesmo tempo em
que as normas não podem ser compreendidas a par de sua relação com o poder,
necessário para sua positivação. Assim sendo, quanto à relação dialética entre
Direito e poder, é crucial observar que Direito cria poder do mesmo modo que
poder cria Direito350.

Tratando dos fundamentos para essa construção, DYZENHAUS afirma que:

a base do argumento de Heller a esse respeito é o conceito de


natureza humana, necessariamente, construído social e
culturalmente. A natureza humana é culturalmente determinada,
mas também determinante da cultura. A cultura se coloca porque
a natureza humana é utópica no sentido de estabelecer objetivos
e, na sequencia, tentar alcançá-los. Porém, esses objetivos
necessariamente operam-se no contexto da cultura que, por sua
vez, não decorre imediatamente do nosso fazer e, por isso, forma
uma base relativamente objetiva e constitutiva dos nossos esforços
individuais351.
Nesse mesmo sentido, nas palavras de HELLER: “Comprendimos la cultura.
Sólo porque nosotros mismos somos un pedazo de cultura”352.

348
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit., p. 113: “Ao
contrário de Carl Schmitt, a unidade política, para Heller, não é um dado prévio, mas um fim
ideal continuamente confrontado com a complexidade e as contradições da realidade. Por isso
entende o Estado como unidade na pluralidade”.
349
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 253.
350
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 350-351.
351
DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 254: “The basis of Heller's argument in
this respect is a concept of human nature that is necessarily socially and culturally constructed.
Human nature is culturally determined but also determinative of culture. Culture comes about
because human nature is utopian in the sense of setting goals and then trying attain them. But
these goals necessarily operate within the context of a culture that is not directly of our making
and which thus forms a relatively objective and constitutive basis for our individual efforts”. Sobre
cultura em HELLER: NIEMEYER, Gerhart. Prólogo. In: HELLER, Herman. Teoría del Estado,
cit., p. 11: “La naturaleza dialéctica del individuo, es decir, formada por muchas acciones
particulares como un todo, y que, a su vez, también reacciona sobre los factores normativos,
corresponde la estructura del todo social que consiste en la actividad de los individuos”.
352
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 61; tratando da mesma questão, ainda: pp. 29-
30, 107-108.

124
Sobre essas bases, HELLER constrói seu conceito de legitimidade da ordem
jurídica e estatal desde um fundamento de imanência à ordem e, para tanto,
resgata HOBBES. Na leitura que faz do inglês, identifica-o como o primeiro
pensador a renunciar por completo à tese de um soberano como instituição
divina. Por conseguinte, para HELLER, o autor do Leviatã é, também, o primeiro
pensador a montar a fundamentação do poder do Estado e do soberano, de
modo, essencialmente, independente de quaisquer bases ético-religiosas. Entende,
assim, que o que surge como definitivamente contundente em HOBBES é o fato de
sua argumentação a respeito da legitimidade do poder e do soberano ser,
decisivamente, imanente, uma vez que é estabelecida a partir do fim do Estado: na
função sociológica de assegurar a paz e a defesa da comunidade e dos homens que
a integram. Assim, com HOBBES, HELLER conclui que a busca pelo fundamento
da legitimidade é uma busca por um fundamento e por uma estrutura imanente353.

Diante dessa posição, para HELLER tanto KELSEN, quanto SCHMITT,


erravam ao reduzirem (colapsarem) a conformidade com a legalidade à segurança
jurídica (curiosamente, ambos, a partir de HOBBES). Isso porque essa redução se
fazia a partir de um argumento de legitimidade que se colocava sobre bases de
transcendentalidade, para um da coerção, para o outro da absoluta
homogeneidade social.

HELLER, de sua parte, vê, sim, a segurança jurídica como importantíssima


para o Estado moderno, especialmente, dada a complexidade de sua organização.
Inclusive, diante dessas condições, para manter a segurança e garantir o Direito, o

353
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 38. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e
estado de exceção permanente, cit., p. 113: “O Estado, para Heller, tem uma função social, um
fim que nem sempre coincide com os fins subjetivos dos homens que o formam. O que dá
sentido e justificação ao Estado é esta função social. As pretensões do Estado não se justificam
pelo fato deste assegurar qualquer ordenação sócio-territorial, mas somente se o estado aspirar a
uma ordenação mais justa. A justificação do Estado, portanto, não se dá pela força ou pela
legalidade, mas enquanto ele representar a organização necessária para assegurar o direito em
uma determinada etapa de sua evolução histórica. A justificação é essencial para o Estado. Nas
palavras de Heller, ‘o Estado vive de sua justificação’. Quando o povo perde a fé na legitimidade
do Estado enquanto instituição, o Estado chegou ao fim”. Em sentido similar trata FRANZ
NEUMANN, falando da imanência na democracia da Constituição de Weimar: “Germany become
a democracy on the basis of freedom and equality with identity of rulers and ruled. Every kind of
transcendental justification of government was abolished; the justification was only an immanent
one”, NEUMANN, Franz L. The decay of German democracy, op. cit., p. 31.

125
Estado assume sua forma organizacional de unidade de decisão e o monopólio da
coerção. No Estado de Direito, no entanto, o preço pago por essa estabilidade é
de o próprio poder também estar adstrito às amarras da ordem legal354, uma
construção que já é vista em JELLINEK.

A segurança jurídica, contudo, não pode, ela mesma, colocar-se como um


argumento de legitimação transcendente e, por isso, não pode pretender exaurir o
significado do Estado de Direito (Rechtsstaat). A segurança jurídica só se coloca
como expressão, forma e necessidade dos princípios éticos e políticos do Direito
e, assim, por vezes, pode apresentar-se como conflitante com outros valores
jurídicos, igualmente, caros ao Estado de Direito, notadamente, a ideia substantiva
de justiça, sobre a qual o Direito alicerça sua legitimidade355.

Assim, para HELLER, apenas no Estado de Direito, com sua divisão dos
poderes, existe a conexão (formal e material) entre legalidade e legitimidade. Pois,
“en la lucha contra la arbitrariedad absolutista se creyó poder asegurar la
legitimidad por la legalidad, en tal manera, que el pueblo venía a dictar leyes por sí
mismo y el resto de la actividad estatal debía someterse a estas leyes”. Todavia, a
divisão dos poderes tem caráter organizatório, por isso, se coloca como um meio
técnico de garantir a segurança jurídica, que nada tem de ver com a justiça do
Direito. Exatamente pelo fato de a legitimidade democrática não se colocar nos
termos de uma predestinação metafísica, sua referência não se põe, exatamente,

354
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 202.
355
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 217; NIEMEYER, Gerhart. Prólogo,
op. cit., p. 15-16: “Por encima de toda voluntad creadora de derecho, coloca Heller principios
jurídicos generales de contenido ético o lógico-constructivo, que engendran y limitan todas las
posibilidades de contenido de derecho positivo. Sólo dentro del círculo de estas representaciones
de lo que es ‘recto’ (pero no todavía ‘derecho’) puede el poder creador de derecho adoptar su
decisión, para dar carácter positivo a los preceptos jurídicos concretos. Tato la conciencia de la
voluntad que manda, como la que obedece, están determinadas por los contenidos de estas
representaciones. Lo cual significa que sólo puede ser considerado regularmente como precepto
jurídico y, como tal, obedecido, lo que se deriva de principios jurídicos. (…)Claro que es que no
hay que confundir esta vinculación normativa de la voluntad de decisión con una reedición de las
concepciones jusnaturalistas. Precisamente lo que constituye la esencia del derecho natural falta
en la noción helleriana de los principios jurídicos, a saber, la validez de normas jurídicas a
principio, con independencia de la conducta humana del tiempo y del espacio”.

126
em relação ao Direito justo: “por este motivo, la legalidad del Estado de derecho
no puede substituir la legitimidad”356.

Portanto, se para HELLER o Estado é uma unidade organizada de decisão e


ação em pluralidade357, a democracia é a forma típica de legitimação moderna do
Estado, em que a fundamentação/justificação da ordem jurídico-política se coloca,
não em termos de transcendência, mas de imanência. “A democracia é o governo
do povo, mas também é uma forma de dominação, uma unidade de ação e de
decisão que unifica as vontades pelo critério da maioria”358; ela, no entanto, se
justifica em razão desse povo, pois, para HELLER, o Estado vive de sua
justificação359.

Desse modo, em sentido negativo, governo democrático é aquele que não


se funda em privilégios hierárquicos ou tradicionais do sujeito de governo, e em
sentido positivo, democrático é aquele governo que se legitima de baixo para cima,
desde seus governados, pelo povo. Assim sendo, destaca que a justificação
imanente é racional frente à sanção, que é transcendente, uma vez que:

el conocimiento causal de la sociedad, en el ordre naturel, rige


siempre aquel precepto de Spinoza: obedientia facit imperantem.
La consciencia social y legítima de la sumisión del gobierno a los
gobernados, hace que aparezca como racional y natural aquella
forma de gobierno, en la cual el pueblo soberano sea el
mandatario de los órganos del gobierno360.
Nessa linha, HELLER contrapõe a democracia liberal à democracia social.
Para ele, enquanto a primeira pretende legitimar a governança política “pela
melhor parte do povo” – esta entendida desde valores burgueses, portanto,
selecionada “pela inteligência e pela propriedade” – a democracia social reconhece
como fundamento de justificativa do governo o próprio povo em sua totalidade
socialmente solidária.

356
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 282-285.
357
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 291-302.
358
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit., p. 123.
359
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 277.
360
HELLER, Hermann. Las ideas políticas contemporáneas. Granda: Comares, 2004, p. 45.

127
Aponta, ainda, que a democracia liberal, no curso do século XIX, aboliu os
privilégios jurídicos de estamentos e proclamou a igualdade jurídica formal e que,
sobre essas bases, o Estado passou a não interferir na liberdade de aquisição da
propriedade, apenas preocupando-se em assegura-la a posteriori, através da
garantia da liberdade contratual e do direito de sucessão. Esse formato deu azo a
outro tipo de dominação, a dominação de classe econômica, que, para HELLER,
coloca-se como ainda mais opressora que o modelo anterior, uma vez que nem
mesmo é fixada juridicamente ou se expõe como idealmente legitimada. De outra
parte, na democracia social o governo pretende justificar-se desde o homem em
sua totalidade psicofísica, na medida em que condicionado por suas possibilidades
sociais, econômicas e individuais. Assim, enquanto a democracia liberal abstrai o
sujeito econômico de toda a organização, a democracia social dá maior
importância à organização equitativa das relações social-econômicas361.

Nesses termos, para HELLER, a Democracia, enquanto alicerce de uma


ordem estatal legítima, deve ser uma Democracia social, que, por conseguinte,
demanda homogeneidade social. De todo modo, uma homogeneidade em termos
significativamente diferentes daqueles propostos por SCHMITT, pois, sendo o
Estado uma unidade de decisão e ação plural, a referida homogeneidade não pode
pressupor, nem mesmo propor, o desaparecer do conflito político ou o aniquilar
das tensões e das contraposições internas a essa unidade. Isso porque elas são
inerentes à ordem política e, particularmente, à ordem democrática. Assim,
HELLER sugere que a função própria de uma democracia social é levar quantos
mais conflitos forem possíveis para a superfície da vida pública. Existe em
HELLER, portanto, a identidade do Eu com o Nós, de forma integrada, todavia,
plural e não totalizadora362, no que defende que os direitos individuais
“descobertos” pelo liberalismo devem integrar a democracia social. Para tanto, no
processo de democratização da razão, é necessário transformar o Estado liberal de
Direito (formal) em um Estado social de Direito (substantivo), comprometido em
promover certo grau de homogeneidade social.

361
HELLER, Hermann. Las ideas políticas contemporáneas, cit., pp. 117-118.
362
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 114-136.

128
Tal processo de democratização da razão, para o autor, passa pela
consolidação do sufrágio universal, mas também, por uma especial atenção para
com o fato de a desigualdade social se colocar como impedimento à consideração
do cidadão na condição de autor de sua ordem política e social363. A consciência da
liberdade sob o Direito é, por um lado, a consciência da desigualdade social e, por
outro, a consciência do poder político364. Portanto, frente à desigualdade
econômico-social, encoberta pela democracia formal, colocada como tentativa da
burguesia manter essa desigualdade, burguesia e proletariado só poderiam ser
vistas como duas classes ditatoriais combatentes. Por conseguinte, para uma efetiva
democracia e um efetivo Estado de Direito é necessário construir-se uma
homogeneidade social, plural.

Desse modo, como dito, HELLER não se contenta com uma ideia formal de
Estado de Direito (Rechtsstaat) e clama por um Estado Social de Direito (sozialer
Rechtsstaat), como dimensão necessária para um efetivo Estado de Direito: um
Estado Democrático de Direito (demokratischen Rechtsstaat)365.

Consequentemente, a formulação do Estado de Direito não pode ser


compreendida em termos relativistas, pois, como acusa HELLER, todo o exercício
do poder político, independentemente de qual ideologia advogue – democrática,
fascista, bolchevista ou anarquista – afirma-se como a serviço da justiça. Nessa
ordem, aponta que o Estado é justificado enquanto representação da organização
necessária para garantir o Direito, em determinado momento histórico. Um
Direito não identificado simplesmente com o direito positivo, mas compreendido
na relação em que o direito positivo deve basear-se nos princípios éticos de
Direito, cuja validade social é imanente e a validade ideal deve ser suposta, termos
em que os princípios éticos colocam-se enquanto suprapositivos, mas não como
363
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 196.
364
HELLER, Hermann. Political democracy and social homogeneity. In: JACOBSON, Arthur;
SCHLINK, Bernhard (org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California
Press, 2002, p. 262.
365
HELLER, Hermann. Rechtsstaat oder Diktatur? Tübingen: Verlag von J. C. B. Mohr, 1930.
Foram consultadas e utilizadas para comparação dos termos tanto a versão original alemã, como
uma tradução castelhana: HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura? op. cit., p.
124: “La reivindicación por el proletariado de una democracia social no significa otra cosa que la
extensión al orden del trabajo y de las mercancías de la idea del Estado material de Derecho”.

129
supraculturais366. Como aponta ORLANDO DE CARVALHO, HELLER “acentua a
necessidade de um Estado ideal, que possa justificar o Estado real social”367.

Nesses termos, o autor do Estado Social fala em preceitos jurídicos


positivos (Rechtssätze) e em princípios jurídicos fundamentais
(Rechtsgrundsätze)368. O direito positivo é parte da realidade histórico-espiritual e,
assim, possui validade empírica em tempo e espaço de determinada comunidade.
O preceito jurídico vale, não exatamente porque seja reconhecido como
verdadeiro, mas porque deve ser reconhecido em vinculação à vontade soberana.
De todo modo, a objetividade de tais regras é, tão somente, relativa, pois é uma
figura histórico-individual e, mesmo assim, deve dialogar com a dimensão da
legitimidade.

Os princípios jurídicos, por seu lado, não são normas de direito positivo e
para HELLER eles podem ser de duas naturezas. Ou bem são normas constitutivas
da forma pura do Direito, no sentido de terem validade como regras da lógica
jurídica, ou bem são normas edificadoras do conteúdo do Direito com pretensão
de validade ética. Os princípios jurídicos relacionados à lógica são de efetiva
aplicação a cada ordem jurídica positiva, não demandando qualquer tipo de
especial vontade para sua aplicação. Enquanto isso, os princípios jurídicos
edificadores do conteúdo do Direito têm de ser sempre afirmados por todos os
círculos culturais, na medida em que constituem normas éticas de Direito; assim,
366
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit., p. 204; HELLER, Herman. Metas y
límites de una reforma de la constitución alemana. In: HELLER, Hermann. El sentido de la
política y otros ensayos. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 69-74, p. 71.: “Como fundamento de
legitimación autoritaria del Estado hacemos valer sólo al pueblo, al pueblo como portador de
determinados valores que posibilitan la cultura, y no como masa de opiniones e intereses
arbitrarios” (O itálico presente no original).
367
CARVALHO, Orlando. Caracterização da Teoria Geral do Estado. Belo Horizonte: Kriterion,
1951, p. 113.
368
Aqui seguimos o caminho da tradução de Rechsstaz como preceito jurídico e Rechtsgrundsatze
como princípio jurídico, na calha da versão castelhana que aqui tomamos de: HELLER, Herman.
Teoría del Estado, cit., p. 327: precepto jurídico e princípio jurídico, respectivamente. Entretanto
essa dicotomia já aparece em Die Souveränität. Na versão em castelhano que aqui utilizamos,
esses dois termos aparecem traduzidos Rechtsstaz como norma jurídica (positiva) e Rechtssätze
como norma jurídica fundamental ou norma fundamental del derecho. Para comparação de
tradução, foram consultadas as edições HELLER, Herman. Staatslehre. 6 ed. Tübingen: Mohl,
1983. Disponível (parcialmente) em: https://books.google.com.br/books?id=PbLL65Hj-
xoC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false e
HELLER, Hermann. Die Souveränität. Saarbrücken: Verlag Classic Edition, s. d.

130
sua validade condicionada a seu reconhecimento nos círculos culturais da
comunidade. Desse modo, enquanto os princípios jurídicos fundamentais são
possibilidades jurídicas, os preceitos jurídicos possuem realidade jurídica369.

Destarte, os princípios jurídicos fundamentais tendem a encampar formas


permanentes ou temporais, bem como, normais das instituições, cujas formas
individuais e concretas, por sua vez, se dão através dos preceitos jurídicos
positivos. Os primeiros apresentam-se de maneira mais ampla e ideal e os últimos
de modo concreto e específico, vinculados às possiblidades ideais dos próprios
princípios, no entanto, caracterizados pela concretude e individualidade histórica
da vontade soberana. Nesses termos, HELLER define que “positividad, existencia,
validez y realidad, son términos que se refieren al mismo hecho y corresponden,
exclusivamente, al derecho que deriva de una decisión”370. De todo modo, uma
decisão calcada em um Estado coercitivo que, necessariamente, se coloca em
reflexo da legitimidade em imanência371.

Por isso, o autor não coloca a normatividade em termos de transcendência.


Para HELLER, o Direito, na condição de vínculo normativo intersubjetivo de
vontades, possui objetividade. Entretanto, esta é uma objetividade absolutamente
diferente daquela dos fenômenos da natureza, pois é relacionada à realidade que
se apresenta na história. Desse modo, não se trata de uma objetividade que
depende da representação normativa formada da generalidade dos seres humanos,
é, ela, objetivação do real, porque produzida por atos reais de vontade dos sujeitos
de direitos individuais e pode ser, igualmente, destruída por estes mesmo sujeitos.
Todavia, independentemente disso, enquanto existência, ela não depende da
atitude adotada pela comunidade.

HELLER, portanto, trata da validade do Direito como a existência das


normas jurídicas como uma objetivação particular do Espírito. No entanto, ao
mesmo tempo reconhece que o Direito possui validade, existência social e

369
HELLER, Hermann. La Soberanía: contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del
Derecho Internacional. México: UNAM, 1965, pp. 127-129.
370
HELLER, Hermann. La Soberanía, cit., p. 131.
371
HELLER, Herman. Metas y límites de una reforma de la constitución alemana, op. cit., p. 71.

131
realidade, tão somente em um tempo e lugar determinados de uma comunidade
jurídica e, nesse sentido, entende imprescindível a soberania372.

Vê-se nesses dois polos, novamente, a dialeticidade helleriana, nesse caso


entre o real, representado pelos preceitos jurídicos, e o ideal, colocado nos termos
de princípios jurídicos fundamentais. LOUGHLIN compara essa dualidade àquela
colocada pelo institucionalismo de HAURIOU entre direito positivo e droit
politique373, que também pode ser vista sob a perspectiva da influência de
RADBRUCH na relação que identifica entre o conceito de Direito e a ideia de
Direito374.

Nessa relação, também transparece o monismo jurídico do pensamento de


HELLER, refletido na importância que dá à relação entre soberania e Direito e, de
forma mais bem acaba, na já mencionada definição de Estado como unidade de
ação e decisão concreta e individual.

Para o autor, apenas a vontade humana pode transformar os princípios


jurídicos fundamentais em direito positivo. Identifica, pois, que a positividade do
Direito deita-se, ao mesmo tempo, no caráter ideal dos princípios jurídicos
fundamentais e na facticidade social da unidade de vontade decisória suprema: o
Estado. Apenas sobre essas duas dimensões, concomitantemente, que se pode
compreender a obrigatoriedade do direito positivo. Por um lado, pela força
obrigatória dos princípios éticos fundamentais e, por outro, pela força obrigatória
da autoridade da comunidade. Se os princípios jurídicos fundamentais impõem-se
apenas eticamente, os preceitos jurídicos positivos impõem-se coercitivamente,
sem pretensão de obrigar as consciências dos sujeitos. Assim, define que: “todo
intento para juzgar unilateralmente esta cuestión, ya en su aspecto ideal ya del lado

372
HELLER, Hermann. La Soberanía, cit., p. 128.
373
LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford: Oxford University Press, 2010, p.
234.
374
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, pp.
46-90.

132
de los hechos, hace imposible la comprensión adecuada del problema del deber
jurídico”375.

Essa dialeticidade transparece, também, na passagem do Teoria do Estado


em que o autor realiza que: “tan sólo como algo que es a la vez ser y debe ser
tiene, en general, un sentido el deber ser de tales principios del derecho; no se
contentan con poseer una validez de carácter ideal, absoluto, sino que aspiran a
operar también como preceptos jurídicos positivos hasta donde sea posible”. E
surge, novamente, quando mais a frente, na mesma obra, ainda completa:

El precepto jurídico recibe toda su fuerza moral obligatoria


exclusivamente del principio ético del derecho supraordinario.
Este principio del derecho, sin embargo, se distingue del
precepto jurídico por su carencia de seguridad jurídica o certeza
jurídica, que consiste, de una parte, en la certidumbre de su
sentido, en la determinación del contenido de la norma y, de otra
parte, en la certeza de su ejecución. Los principios del derecho
proporcionan sólo las directrices generales sobre cuya base debe
establecerse el status jurídico entre los miembros de la
comunidad jurídica; nos suministran una decisión para el caso
concreto. Fáltales para ello el carácter de determinación taxativa,
o sea que se precisa siempre de una decisión sobre lo que, en una
situación de intereses determinada espacial, temporal y
personalmente, debe ser derecho según aquellos principios376.
Nessa sequencia, HELLER, de algum modo, caminha em paralelo a SMEND,
mas, ao contrário deste – que coloca o processo de integração, ainda que dialético,
especialmente, desde o todo para a individualidade – HELLER vai indicar que,
apenas a consciência jurídica individual poderá assegurar sempre a justiça. Nesta
ordem, no Estado moderno surge um conflito necessário e insolúvel entre a
juridicidade e a segurança jurídica.

O caráter necessário de tal conflito se coloca porque, em um povo vivo, não


é possível se imaginar, em qualquer hipótese, um pleno acordo sobre o conteúdo
e a aplicação dos princípios jurídicos vigentes. Enquanto isso, sua insolubilidade
reside no fato de que tanto o Estado quanto os indivíduos vêm-se forçados a viver
por meio dessa relação de tensão entre direito positivo e consciência política.

375
HELLER, Hermann. La Soberanía, cit., p. 133.
376
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 283-284.

133
Tal tensão é tão viva que, em que pese HELLER entender a impossibilidade
de legalização/positivação de um direito de resistência, ao mesmo tempo, registra
que:

más ‘derecho’ tiene la razón de derecho a sostener que una


capitulación sin resistencia de la conciencia jurídica ante el poder
estatal ha de conducir fatalmente al aniquilamiento del hombre
como personalidad moral y, consiguientemente y a la postre,
también a la destrucción de aquellas energías que posee para la
formación del Estado377.
Assim, a tarefa que HELLER impõe a si mesmo é, portanto, a de recuperar
o ideal substantivo que inspira e subjaz o Estado de Direito. Um ideal que possa
dar sentido ao conceito de constituição378.

A constituição de um Estado se coloca em referência à forma e estrutura da


situação política real que se renova amiúde mediante os atos de vontade. Nesse
sentido, ela é sua organização, a ação concreta de dar forma à cooperação dos
participantes do todo mediante “supra-, sub- y co-ordenação”, por sua vez,
produzidas mediante a atividade humana consciente.

Enquanto realidade atual, a Constituição apresenta-se na efetividade


presente da conduta dos membros ordenados para a ação unitária (poder),
enquanto realidade potencial (dever ser) coloca-se na probabilidade relativamente
possível de que a cooperação entre os partícipes volte a produzir-se de modo
similar no futuro (Direito). “Toda organización humana perdura en cuanto
constantemente renace”. Apesar de o Estado e o Direito serem dinâmicos por
antonomásia, suas formas de existência em cooperação organizada exigem
normatividade e alguma certeza. Portanto, não obstante a dinâmica do Estado e
dos processos de integração constantemente cambiantes, à constituição importa
reconhecer-se um caráter relativamente estático. Nesses termos, a constituição do

377
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit. p. 288, no que finaliza fazendo referência a:
LASKI, Harold Joseph. A grammar of politics. New Haven: Yale University Press, 1925.
378
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy, cit. p. 200.

134
Estado não é processo, mas produto, não é atividade, se não forma (aberta) de
atividade através da qual é a vida em forma e a forma nascida da vida379.

Assim, sendo impossível separar-se completamente o dinâmico do estático,


tampouco, pode-se separar a normalidade da normatividade. A eficácia de uma
Constituição, portanto, se dá na probabilidade da repetição da conduta humana de
acordo com ela, que se assenta na normalidade do fato conforme a Constituição,
mas também em uma normalidade normada. A esse passo, HELLER identifica
como dimensões (conteúdos parciais) da constituição política: a constituição não
normada, a constituição normada extrajuridicamente e a constituição normada
juridicamente380.

Com isso, o esforço de HELLER coloca-se em não cindir constituição


política e constituição jurídica, do contrário, pretendendo um conceito de
constituição total. Logo, demanda reconhecer, também e, especialmente quanto à
constituição, o caráter do Direito como criador de poder, que impede pretender-
se uma constituição como “decisão” de poder sem norma, não deixando, de outra
parte, de apontar ao caráter de criador de Direito que tem o poder.

Nesses termos, afasta-se de um conceito de constituição sem conteúdo, que


receba sua validade de uma norma estritamente lógica, destituída de poder, isto é,
com seu conteúdo vinculado ao ato de vontade da autoridade constituinte, por sua
vez, também estabelecida pela norma fundamental, tautologicamente. Por
conseguinte, para HELLER é inescapável reconhecer que, se por um lado, eficácia
e validade (ser e dever ser) têm de permanecer logicamente cindidos, por outro,

379
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 317. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e
estado de exceção permanente, cit., p. 136-138: “Segundo Heller, uma boa Constituição sempre
deixa às forças do povo que forjam o porvir a liberdade para a formação futura. Portanto, decisiva
para o valor de uma Constituição é essa relação entre forma criada com liberdade criadora, uma
relação de tensão eterna, mas mutável historicamente entre a forma da unidade e a liberdade da
pluralidade. (...) Ao contrário de Schmitt, que entende a Constituição como fruto de uma decisão
soberana, Heller destaca que o essencial de uma Constituição é reforçar a normalidade pela
normatividade do texto constitucional. O reforço da normatividade, assim, significa
racionalização, previsibilidade e aumento da normatividade”.
380
HORTA, José Luiz Borges. Teoria da Constituição, op. cit., p. 351; HELLER, Hermann.
Teoría del Estado, cit., p. 318.

135
eles são intrinsecamente relacionados, na mesma realidade constitucional, sempre
em relação de implicação381.

Nesses termos, BARACHO vai classificar o poder constituinte em HELLER


como dialético-plenário, uma vez que ele se articula a partir da conexão
indissolúvel entre o mundo real e o mundo cultural. O faz de modo a não
reconhecer oposição entre existencialidade, normatividade e poder constituinte,
mas relação de condicionamento e articulação recíprocas, definindo que: “um
Poder Constituinte que não esteja vinculado aos setores de decisiva influência para
a estrutura de poder, por meio de princípios jurídicos comuns, não tem poder
nem autoridade e, por conseguinte, também não tem existência”382.

Destarte, HELLER coloca que o sujeito do poder constituinte, quer seja ele
reconhecido no príncipe, quer seja no povo, adquire tal condição desde uma
norma. É nesses termos que encerra as últimas páginas ainda completas de sua
incompleta Teoria do Estado. Tratando da legitimidade da constituição, isto é,
afirmando que “uma constituição para ser Constituição” não pode deitar sua
justificação sobre qualquer preceito jurídico positivo ou de relação fática e instável
de dominação; precisa colocar-se segundo princípios éticos do Direito:

Contradiciendo sus propios supuestos, dice C. Schmitt que toda


Constitución existente hay que atribuirle la legitimidad, pero que
una Constitución, sin embargo, sólo es legítima, ‘es decir,
reconocida no sólo como situación de hecho sino también como
ordenación jurídica, cuando se reconoce el poder y (!) la
autoridad del poder constituyente en cuya decisión ella se apoya’.
La existencialidad y la normatividad del poder constituyente no
se hallan, ciertamente, en oposición, sino que se condicionan
recíprocamente. Un poder constituyente que no esté vinculado a
los sectores que son de decisivo influjo para la estructura de
poder, por medio de principios jurídicos comunes, no tiene
poder ni autoridad y, por consiguiente, tampoco existencia383.
Assim, para HELLER, a constituição estatal coloca-se na
complementariedade entre normalidade e normatividade, entre a constituição

381
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 351.
382
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Constitucionalismo. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, a. 23, n. 91, pp. 5-62, jul./set. 1986, p. 24.
383
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 352-353.

136
política e a constituição jurídica, entre o mundo real do ser e o mundo ideal da
cultura.

Desse modo, HELLER antecipa questões fundamentais ao Estado


Democrático de Direito e às discussões que se desenvolvem acerca do
Constitucionalismo Democrático e da Teoria da Constituição da segunda metade
do século XX. No mais, ele foi capaz de, por um lado, captar a característica
dinâmica e a politicidade do Estado de Direito e da constituição, aliando-as à
reflexão sobre o elemento substantivo-cultural do Direito. Não bastasse isso, já
compreende, nessa dinamicidade, a importância do elemento vital para a
realização desse projeto jurídico-político.

Mesmo as formas contemporâneas de compreensão do fenômeno


constitucional ainda podem ser entendidas nos termos das articulações entre a
polaridade poder e Direito que, se relacionando, desenvolvem-se nas dimensões e
no diálogo entre validade, eficácia e legitimidade de uma Constituição.

Enfim, muitos foram os caminhos abertos pela luta pelo método, quase
todos encerrados ou, melhor dito, suspensos pela força e pelo terror. O que se
viu, foi um crescente empenho das forças conservadoras e capitalistas em
abandonar a própria estrutura jurídica, originalmente liberal, formal e burguesa.
No início do século XX, a abertura política e a juridificação começavam a colocar-
se como empecilhos aos próprios interesses do capitalismo monopolista e à
conservação do status quo. HELLER chega a mencionar um ódio antibugués contra
a lei, próprio do burguês. Afirma que a burguesia renega sua própria essência
espiritual e se entrega aos braços de um novo “feudalismo irracionalista”, que
“incapaz de dominar espiritual y politico-moralmente la situación sociológica, la
violência constituye su supremo artículo de fe”384. Foge-se do Direito385.

Aqueles tempos de Weimar eram tempos em que se via o novo surgir,


talvez de modo mais lento e menos tenaz que o necessário, ainda na presença do
velho que tardava em esvair-se. Na frase que não raro se atribui a GRAMSCI: “o

384
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura? op. cit., pp. 124-135.
385
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, cit., pp. 32-43.

137
velho mundo agoniza; o novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro,
irrompem os monstros”. Em 1933 a República de Weimar sucumbiu, a
democracia foi desmantelada e a força se impôs.

138
Parte II
Presente
É mister bater, bater cem vêzes, e cem vêzes repetir: o
direito não é um filho do céu, é simplesmente um
fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade.
Serpens nisi serpentem comederit, non fit draco, a serpe
que não devora a serpe, não se faz dragão; a fôrça que não
vence a fôrça, não se faz direito; o direito é a força que
matou a própria força”.
TOBIAS BARRETO
CAPÍTULO 4
NORMALIDADE E NORMATIVIDADE
NORMATIVIDADE:
TEORIA DO DIREITO
RELAÇÃO DESDE UMA TEORIA

Com o segundo pós-guerra e a reconfiguração do Estado de Direito no


Estado Democrático de Direito, as questões que antes se colocavam tenderam a
desdobrarem-se em outras dimensões e novos arranjos institucionais. Desde então,
consolida-se a ideia de força normativa da Constituição e opera-se um processo de
constitucionalização do Direito. Esse fluxo relaciona-se a uma nova configuração
do papel institucional do poder judiciário que cresce, notadamente, com a
ampliação e consolidação da jurisdição constitucional, inclusive, nos sistemas
constitucionais de matriz romano-germânica, particularmente na Alemanha e, de
forma significativa, no Brasil.

Essa nova face desenrola-se em problemas relacionados à politização da


justiça e à judicialização da política e, articulada com o surgir de novos direitos e
de novas roupagens de antigos direitos (em dimensões individual, social e difusa),
em situações extremadas, aparece como judicialização da própria vida386. Além
disso, novas questões, especialmente ligadas à hermenêutica constitucional e, de

386
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática.
(Syn)Thesis Rio de Janeiro, v. 5, n. p. 23-32, 2012; HORTA, José Luiz Borges. La Era de la
Justicia Derecho, Estado y límites a la emancipación humana, a partir del contexto brasileño.
Astrolabio, Barcelona, n. 11, pp. 75-85, 2010, p. 82.

139
um modo geral, à hermenêutica jurídica, apresentam-se como marcantes nas
discussões da interpretação/aplicação do Direito. O tema da justiça de transição
também ganha especial força já desde a década de 1990, adentrando o século
XXI, particularmente, a partir do fim dos regimes ditatoriais na América Latina e
do apartheid na África do Sul. São também desse período as discussões
relacionadas a um Direito Constitucional Europeu, ao constitucionalismo
multilevel, ao interconstitucionalismo e ao transconstitucionalismo, que fazem,
novamente, importantes os debates a respeito do significado da soberania
nacional, da democracia e da representatividade. Além disso, o multiculturalismo,
os motes levantados pelo constitucionalismo latino-americano e o surgir de novas
dinâmicas e estruturas, expõem o Estado de Direito, o Direito Constitucional e a
Teoria da Constituição a novos desafios.

De todo modo, nenhum desses pontos faz das questões fundamentais da


Teoria da Constituição, levantadas ainda em Weimar, dispensáveis ou
ultrapassadas. Pelo contrário, a discussão de fundo sobre “o que é o Direito”, “o
que é a constituição”, “qual o sentido e quais as possibilidades da constituição”
colocam-se, mais do que nunca, em voga diante das transformações e dinâmicas
culturais.

Com isso, não se quer dizer que a Teoria da Constituição não tenha
caminhado para além das formulações da luta pelo método weimariana, longe
disso. Tampouco que o trágico dilúvio que derrubou a República de Weimar, não
tenha deixado marcas e influências profundas nos desdobramentos teóricos e
práticos, jurídicos e políticos, do constitucionalismo. Afinal, não haveria como ser
diferente.

Entretanto, parece correto afirmar que as escolas e formulações


contemporâneas encontram suas raízes mediatas e imediatas nas discussões e nos
discursos que estiveram na origem da própria Teoria da Constituição, uma vez que
as respostas à questão “o que é Constituição”, de algum modo, ainda se
relacionam às questões da legitimidade, validade e eficácia, e aos temas delas
decorrentes, como a soberania, a positividade e a força normativa.

140
Nesse sentido, não será demais afirmar que é próprio do locus
constitucional ser, por excelência, o ponto privilegiado de contato e de interação
entre Política e Direito, entre conteúdo e forma, liberdade e poder, o que faz com
que, neste âmbito, a questão sobre o método seja mais aflorada e recorrente.

Essa característica faz com que na contemporaneidade os domínios de


reflexão da Teoria e da Filosofia do Direito, tout court, comuniquem-se e se
desenvolvam em íntima conexão com a Teoria e a Filosofia da Constituição.
Nesse sentido, GARCÍA FIGUEROA, debruçando-se sobre a Teoria do Direito em
tempos de constitucionalismo, assinala como característica marcante do presente a
preocupação por procurar por “algún vínculo del ser del Derecho com su deber
ser”387. Nesse desenvolvimento, aponta haver grande heterogeneidade de correntes
acerca do conceito de Direito, destacando, entretanto, que o traço que lhes dá
alguma unidade é o de que todas elas buscam articular esses dois polos – o ser e o
dever ser – da experiência jurídica388.

De fato, sob essa perspectiva é possível acomodar diversos autores


contemporâneos, dos mais variados, quer do cenário jurídico romano-germânico –
como são os casos de ALEXY, BONAVIDES, FERRAJOLI, HÄBERLE, LUCAS VERDÚ,
PECES-BARBAS e ZAGREBELSKY –, quer do cenário anglo-americano – a exemplo
de RONALD DWORKIN, LON L. FULLER, MICHEL ROSENFELD, WALUCHOW,
dentre outros. É interessante destacar o fato de que, em tempos de

387
GARCIA FIGUEROA, Alfonso. La teoría del derecho en tempos de constitucionalismo. In:
CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). 4 ed. Madri: Trotta, 2009, pp. 159-186,
p. 159: “Decía Jeremy Bentham que «el ser del Derecho es, en los diferentes países, enteramente
distinto, mientras que lo que debe ser es, en todos los países, muy semejante». Que el «ser del
Derecho» pueda ser tan diferente, que su contenido pueda ser cualquiera, explica que la teoría
del Derecho de la tradición positivista haya tratado de construir un concepto de Derecho basado
fundamentalmente en sus propiedades formales. Que el «deber ser del Derecho» sea tan
semejante presupone un Derecho ideal frente al que cualquier sistema jurídico real puede ser
evaluado moralmente. Así pues, dado que la construcción del concepto de Derecho aspira a
reflejar propiedades verificables en todos los sistemas jurídicos por muy distintos que sean sus
contenidos, sólo las propiedades formales serían relevantes para una construcción positivista del
Derecho. Uno de los medios para conseguir que las propiedades sustantivas comunes sean
también relevantes consiste en hallar un vínculo conceptual necesario del derecho real con su
dimensión (pues el deber ser del Derecho es en todos los países muy semejante). Deberá hallarse
algún vínculo del ser del Derecho con su deber ser. Como es sabido, éste es el objetivo que ha
perseguido el iusnaturalismo a lo largo de la historia”.
388
Com essa dicotomia o autor quer articular o Direito que pode ser observado, descrito (ser do
Direito) e a ideia de Direito (dever ser).

141
Constitucionalismo Democrático e de força normativa da Constituição, a estes
grupos autores é comum a clara preponderância de juristas que podem ser
identificados, das duas uma, ou como filósofos do Direito com vocação de
constitucionalistas, ou, ainda, como constitucionalistas com vocação de filósofos
do Direito389.

Diante dessa articulação, é preciso ter-se em conta que essa abordagem


dialética reporta a uma questão jusfilosófica – e de Filosofia do Estad, e de
Filosofia Política, e de Filosofia Moral – ainda anterior à demanda por um
conceito de Direito. Ela se situa no buscar pelos fundamentos da liberdade e da
subjetividade que subjazem o homem moderno, quer em explicações positivistas,
quer em compreensões não positivistas, de maneira geral. De um lado,
perspectivas individualistas e atomistas de sujeito, que tendem a se vincular com
uma visão de liberdade desparametrizada, universalista em sua transcendência. De
outro, a perspectiva contextualizada por uma cultura, em que o bom, o justo e a
liberdade do sujeito só podem ser compreendidos, eles mesmos, como
necessariamente relacionados a uma identidade e vinculados aos padrões
compartilhados pelos indivíduos de uma comunidade em que a própria
subjetividade se constrói de modo dialético.

Assim sendo, para este capítulo, primeiro trataremos de distinguir respostas


positivistas e não positivistas ao conceito de Direito, para, em seguida, abordar a
questão de fundo que se coloca relacionada. Procurar-se-á, portanto, uma
aproximação da questão da legitimidade, do fundamento de justificação e
legitimidade (prescritiva) do próprio conceito de Direito, especialmente, de
Direito Constitucional.

4.1. ALGO DE TEORIA DO DIREITO

389
GARCIA FIGUEROA, Alfonso. La teoría del derecho em tempos de constitucionalismo, op.
cit., p. 161.

142
Com o objetivo de estabelecer um conceito de Direito, ROBERT ALEXY
identifica três elementos importantes para essa definição: a legalidade conforme o
ordenamento, a eficácia social e a correção material390. A referência a três
dimensões do fenômeno jurídico não é exclusividade, tampouco inovação de
ALEXY. MIGUEL REALE, por exemplo, é reconhecido por seus trabalhos a
respeito da Teoria Tridimensional do Direito, entendendo o fenômeno jurídico
desde uma visão dialética que articula três polos – norma, fato e valor – dos quais
se desdobram três dimensões da experiência jurídica: vigência, eficácia e
fundamento391. Também BOBBIO fala de três critérios de valoração da norma
jurídica – justiça, validade e eficácia – ainda que trate das relações de interação
entre elas de forma significativamente diversa da que faz REALE, enaltecendo a
independência desses critérios392.

De todo modo, o que faz ALEXY em seu Conceito e Validade do Direito393


é classificar as possíveis respostas à pergunta sobre o conceito de Direito desde a
preponderância que elas particularmente dão a um desses três elementos.

ALEXY formula sua construção partindo da classificação das teorias do


Direito em dois grandes grupos: positivistas e não positivistas. Ainda que esses
grupos abarquem, cada qual, correntes bastante heterogêneas entre si, elas, de

390
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit.
391
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito, cit., REALE mesmo não se coloca como
criador dessa divisão tripartite, destinando o segundo capítulo do “Teoria tridimensional do
Direito” para tratar da tridimensionalidade na Alemanha, na Itália, na França, na área do
Common Law, na Cultura Ibérica e “em outras áreas culturais”. Ainda em REALE, em outras
obras, vê-se também essa tríade em outros termos: validade (vigência), eficácia (efetividade) e
fundamento (motivação axiológica), REALE, Miguel. Fontes de Modelos do Direito. São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 33. E, utilizando em momentos diferentes todas essas definições: REALE,
Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
392
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica, cit., pp. 45 e ss. Apesar de, como apontamos,
ser corrente a organização do raciocínio sobre o Direito em uma estrutura tríplice, ela não chega
a ser unânime ou necessária. Como se verá, os positivistas tendem a não identificar importância à
dimensão do fundamento (correção material, justiça) para a definição do conceito de Direito, por
vezes, nem mesmo enumerando qualquer organização em dimensões.
393
O título em português decorre de tradução literal do original em Alemão: “Begriff um Geltung
des Rechts”. Curiosamente, o título da tradução em língua inglesa é um tanto diferente: “The
Argument from Injustice: a Reply to Legal Positivism”. Segundo explicação feita no prefácio dos
tradutores BONNIE LITSCHEWSKI PAULSON e STANLEY L. PAULSON, essa opção para além da
tradução literal se dá não apenas para demarcar a diferença com a obra de H. L. A. HART, mas
também porque entendem que o título escolhido para a versão em inglês define melhor o foco da
obra.

143
modo geral, dividem-se entre: aquelas que reconhecem como necessárias à
definição do conceito de Direito apenas duas das dimensões tratadas – a da
legalidade conforme e a da eficácia social – o que caracteriza as perspectivas
positivistas394; e as linhas que identificam como necessária ao conceito de Direito –
classificatória ou qualitativamente – a articulação entre as três dimensões: a
legalidade conforme, a eficácia social e, também, a correção material395.
Curiosamente, o entendimento que parece subjazer a essa diferenciação é aquele
que compartilha MATA MACHADO quando acaba por definir positivistas como
aqueles que especializaram suas abordagens na aplicação de normas, tendo em
conta sua vigência e eficácia em uma determinada fração qualquer de tempo e
espaço396.

Diante dessa divisão, as diferenças entre os vários positivismos possíveis são


encontradas nas distintas formas de articulação entre as dimensões que lhe são
caras – validade e eficácia – e/ou na primazia que é a dada a uma delas sobre a
outra.

394
REALE, Miguel. Fontes de Modelos do Direito, cit., p. 4: “Parece-me necessário realçar a
correlação que faço supra entre fonte de direito e validade jurídica, de um lado, e modelo
jurídico e eficácia jurídica, de outro, devendo-se ter presente que toda relação jurídica envolve
sempre uma correlação entre validade e eficácia, sem a qual não se pode falar em positividade do
direito. É claro que validade e eficácia nunca existem em estado puro, isto é, sem um mínimo,
respectivamente de eficácia ou de validade, porquanto, quando dizemos que uma norma jurídica
é válida, tal afirmação implica admitir que ela importa necessariamente efeitos no plano factual,
pois, de outro modo, seria um enunciado inútil e vazio. Da mesma forma, quando declaramos
que uma norma jurídica tem eficácia, esta só é jurídica na medida em que pressupõe a validez da
norma que a insere no mundo jurídico, por não estar em contradição com outras normas do
sistema, sob pena de tornar-se inconsistente".
395
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit., p. 15.
396
MATA MACHADO, Edgar da. Elementos de Teoria Geral do Direito. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 1995, p. 143: “‘Positivistas’ foram e têm sido todos os que, onde haja
sociedade humana e organização política, se especializaram no estudo e aplicação de normas, cuja
vigência e eficácia limitada a uma fração qualquer de tempo e de espaço. E, no tocante às
tentativas de, à custa ou não do direito natural, construir-se uma ciência do Direito Positivo, cabe
o nome de ‘positivistas’ aos sofistas da geração imediatamente anterior a Sócrates, aos epicuristas,
aos glosadores, a Hobbes e Thomasius, assim como Savigny, Von Jhering e Austin e ainda aos
‘exegetas’ franceses, autores que precederam o positivismo às vezes de séculos ou, quanto aos
últimos citados, contemporâneos do positivismo filosófico”.

144
ALEXY primeiramente identifica os positivismos cujo conceito de Direito
são primordialmente orientados pela observância à eficácia397. Dentre estes, pode-
se, ainda, apontar a existência de duas posições de abordagem: as concepções que
observam o aspecto externo da eficácia e as que dão destaque a seu aspecto
interno. Além dos positivismos que dão maior peso à dimensão da eficácia, é
possível também notar aqueles que conceituam o Direito, primordialmente,
orientando-se para a normatização formal, logo, priorizando o elemento da
legalidade conforme (validade) para a definição do Direito.

Diante dessa classificação, dentre os autores que concentram seu foco no


aspecto externo da eficácia estão aqueles que entendem, como MAX WEBER, por
uma definição sociológica do Direito e concentram sua análise desde o ponto de
vista da regularidade da observância da norma e da existência de sanção quando
da sua não observância. Ou seja, para esse grupo de visões, o que importa para a
definição do Direito é o comportamento que pode ser observável na sociedade,
independentemente de quaisquer interpretações dos indivíduos sobre a validade
ou legitimidade daquela ordem. Portanto, é marcante dessas linhas o destaque que
dão à força que uma ordem tem de impor-se como jurídica. Em outras palavras: o
Direito é aquele que factual e efetivamente impõe-se como tal. Assim, para

397
Essa dimensão que aqui se trata por eficácia diz respeito ao sentido mais correntemente
relacionado a eficácia social, ou, efetividade material, na nomenclatura de EROS GRAU. Mais a
frente tratar-se-á da dimensão da eficácia, abordando a questão da eficácia jurídica e eficácia
social, mas, também, atentando ao desenvolvimento de EROS GRAU que, na esteira de
JEAMMAUD e OSCAR CORREAS, diferenciará não apenas duas, mas três dimensões, diferentes,
mas correlatas a esse tema. Tratará efetividade jurídica/efetividade formal (que se relaciona ao
que classicamente, no Brasil, é tido como eficácia jurídica), efetividade material (sinônimo desse
sentido de eficácia social) e eficácia (realização dos fins da norma). HABERMAS, por sua vez,
tratará essa dimensão sob a chave da validade social: “A validade social diz respeito à capacidade
de imposição das normas entre os destinatários, isto é, a sua aceitação fáctica e que na teoria do
Direito se chama de eficácia. Já a validade, no sentido utilizado na teoria do Direito sob o nome
de legitimidade”, SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. Habermas e a desobediência civil.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 71; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre
facticidade de validade I. 2 ed. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 2012, pp. 48-55. Ele, por sua
vez, segue a esteira de outro autor da Escola de Frankfurt, FRANZ NEUMANN, que lhe antecede e
que, em sentido similar, já tratara da validade sociológica da norma jurídica: NEUMANN, Franz.
O Império do Direito, cit., p. 48.

145
WEBER, por exemplo, não será um problema a sobreposição e identificação do
conceito de legitimidade no de legalidade398.

De forma diferente entendem os positivismos que, também dando primazia


à eficácia, priorizam seu aspecto interno. Este grupo de posições, fixa suas
definições de Direito, especialmente, no cumprimento, observância e/ou aplicação
do Direito, a partir de uma motivação específica, independentemente da natureza
de seu fundamento e, em alguns casos, inclusive, desprezando a validade dessa
motivação. Neste grupo, aponta ALEXY, encaixa-se a posição de NIKLAS
LUHMANN, que entende o Direito como aquilo que é reconhecido, aplicado e
observado como tal em uma comunidade. Enquadrar-se-iam também dentre essas
visões aquelas menos ligadas à validade, como as defendidas pelos diversos
pluralismos jurídicos399. Também estariam entre essas, aquelas vinculadas mais

398
WEBER, Max. Economia e Sociedade. 4 ed. Brasília: Editora UnB, 2014, vol. 1, p. 22: “A
forma de legitimidade hoje mais corrente é a crença na legalidade: a submissão a estatutos
estabelecidos pelo procedimento habitual e formalmente correto. Nestas condições, a oposição
entre ordens pactuadas e ordens impostas é apenas relativa, pois, quando a vigência de uma
ordem pactuada não reside num acordo unânime – o que, nos tempos passados, freqüentemente
foi considerado indispensável para alcançar a verdadeira legitimidade – mas na submissão efetiva,
dentro de determinado círculo de pessoas, dos discordantes à vontade da maioria – caso muito
freqüente –, temos, na realidade, a imposição desta vontade à minoria. O caso contrário, em que
minorias violentas ou, pelo menos, mais enérgicas e inescrupulosas impõem ordens, que afinal
são consideradas legítimas também pelos que no começo a elas se opuseram, é extremamente
freqüente. Quando o meio legal para a criação ou a modificação de ordens é a ‘votação’,
observamos freqüentemente que a vontade minoritária alcança a maioria formal e que a maioria a
ela se submete, quer dizer: que o caráter majoritário é apenas aparência. A crença na legalidade
de ordens pactuadas remonta a tempos muito remotos e também se encontra, às vezes, entre os
chamados povos primitivos: neste caso, porém, quase sempre completada pela autoridade dos
oráculos”.
399
SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica
jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1988; WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo
jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3 ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001.
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Direito como Liberdade: o Direito achado na rua experiências
emancipatórias de criação do Direito. UnB, 2008. 338 f. Tese (Doutorado em Direito) –
Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília,
Brasília, 2008. Quanto a esses casos vale uma ressalva importante. A abordagem dessas leituras,
via de regra, encaram que a eficácia social acaba por se operar mais em termos de aceitação e,
mesmo, sentimento de correção, desde uma motivação e/ou justificação própria a um
determinado grupo social em particular. Portanto, o que se verifica, não é exatamente uma
inobservância de qualquer preocupação com a questão do “sentimento de legitimidade”, quando,
muito, pelo contrário, o que tende a ser marca dessas linhas é uma exacerbação da importância
de um sentimento imediato de legitimidade de uma ordem normativa em termos fragmentários e
não de universalidade (para a comunidade), de objetividade. Assim, é visto um esvaziamento da
estatalidade e oficialidade do Direito e da identificação de um padrão de juridicidade, logo, da
dimensão da validade.

146
estritamente à jurisprudência e ao direito dos tribunais, como o faz OLIVER
HOLMES (especialmente no ambiente anglófono), e ainda, de algum modo, a
perspectiva decisionista de SCHMITT, desde uma específica leitura hobbesiana400.

Portanto, tais visões (positivistas) pautadas na eficácia não reforçam sua


observância (positiva) desde a estrutura interna ao ordenamento, das normas em
si, mas, desde uma resposta (análise) – posta, positiva, positivista – externa a ele.
De forma simplificada, essas correntes poderiam responder à pergunta sobre qual
é o Direito identificando-o como: aquele que é aceito e conduzido como tal por
uma comunidade.

De outra parte, há os positivismos que dão ênfase à normatização – sendo


possível identifica-los como o positivismo jurídico stricto sensu401 – dentre os quais

400
Como tratado no segundo capítulo, não é, efetivamente, comum a definição peremptória de
SCHMITT enquanto positivista, especialmente, por ser ele a voz que mais aberta e ferozmente se
pôs contra o positivismo normativista kelseniano. Essa dificuldade é combinada às várias
mudanças que ocorrem no pensamento de SCHMITT, já mencionadas, sendo interessante
apontar, especialmente, para as considerações que este faz a esse respeito partir de seu texto:
Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, de 1934. De todo modo, identificando um
positivismo schmittiano: HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 1991, p.12; LUCAS VERDÚ, Pablo. Carl Schmitt Interprete Singular Y
Maximo Debelador De La Política-Constitucional Demoliberal. Revista de Estudios Políticos,
Madri, n. 64, pp. 25-92, abr./jun. 1989, p. 76; VEGA GARCÍA, Pedro de. Apuntes para una
historia de las doctrinas constitucionales del siglo XX, op. cit., pp. 3-44; GARGANO, Antonio. Il
pensiero politico nella Repubblica di Weimar. Nápoles: Istituto Italiano per gli Studi Filosofici,
2011, pp. 70 e ss.; DYZENHAUS, David. Hermann Heller, op. cit., p. 253; LINDHAL, Hans.
Constituent Power and Reflexive Identity, op. cit., p. 22; BERKMANA, Tomas. Schmitt v. (?)
Kelsen: The Total State of Exception Posited for the Total Regulation of Life. Baltic Journal of
Law & Politics, v. 3, n. 2, pp. 98-118, 2010. Inclusive, aproximando HOLMES e SCHMITT,
relacionando-os, especialmente, por suas versões do “positivismo hobbesiano”: DYZENHAUS,
David. Holmes and Carl Schmitt: An Unlikely Pair. Brooklyn Law Review, v. 63, pp. 165-188,
1997. Relacionando a posição de LUHMANN à de SCHMITT acerca da legitimidade:
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Edições
Tempo Brasileiro, 1980, pp. 125-129. BONAVIDES, por sua vez, também aponta para o relegar da
legitimidade em SCHMITT, relacionando-o a KELSEN e LUHMANN: “Depois de Weber, com o
formalismo de Kelsen, o decisionismo de Schmitt e o funcionalismo de Luhmann, a legitimidade
já não se define como uma crença na legalidade, senão como uma legalidade sem crença”.
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade. In: BONAVIDES, Paulo. A
Constituição aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade. 3 ed. São Paulo: Malheiros,
2004, pp. 33-51, p. 51.
401
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 77 e 85-165, ao que não deixa de
destacar que: “a diferenciação terminológica entre positivismo jurídico lato sensu e o positivismo
jurídico stricto sensu não se encontra na bibliografia nacional ou internacional. Mesmo assim,
consideramos que sua adoção é oportuna porque permite evitar confusão bastante comum nas
referências ao positivismo jurídico”.

147
estão os clássicos Gesetzespositivismus oitocentistas, o normativismo jurídico de
KELSEN402 e a jurisprudência analítica de AUSTIN e J. H. HART. Marcam essas
correntes, uma perspectiva e um método de abordagem analítico do Direito,
ligado à análise lógica e conceitual da prática jurídica.

Nessa linha, é interessante a colocação de ANDITYAS COSTA MATOS –


apoiando-se em ELZA MIRANDA AFONSO – que destaca o positivismo jurídico
como uma expressão complexa, ligada a, pelo menos, dois sentidos diferentes,
embora conexos. Um primeiro relacionado ao método de estudo do Direito que
se desenvolve a partir de uma abordagem analítica do texto e um segundo que diz
respeito à “teoria ou doutrina sistematizada do direito”. Enquanto o primeiro
sentido coloca-se desde a oposição entre direito positivo e direito natural, que
remonta a uma tradição antiquíssima, anterior, mesmo, ao positivismo filosófico403,
o segundo estaria especialmente associado à elaboração de um conceito de Direito
destacado de seus fundamentos e razões últimas, portanto, com pretensões de
cientificidade em bases positivistas404. Neste segundo sentido, SCHMITT, ao criticar
o positivismo jurídico (stricto sensu), já descrevia que “o positivismo é considerado
um método ‘puramente jurídico’, cuja pureza consiste em eliminar todas as
ponderações metafísicas, bem como as ‘metajurídicas’”405.

Desse modo, ao invés da posição de um observador externo, comum à


sociologia jurídica e, de um modo geral, aos positivismos que priorizam o
elemento da eficácia, os positivistas que dão maior peso à normatização partem da

402
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
403
MATA MACHADO, Edgar da. Elementos de Teoria Geral do Direito, cit., p. 141-146.
404
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça, cit., pp. 21 e 22. São
interessantes as colocações do autor que, na continuidade do capítulo, acaba por definir o
positivismo jurídico, acompanhando BOBBIO, como, ao mesmo tempo, metodologia, teoria e
ideologia.
405
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico, op. cit., p. 150, e segue:
“‘Metajurídicos’ são, no entanto, todos os outros pontos de vista atinentes à visão do mundo
[weltanschaulich], moral economia, política ou qualquer outras esferas, precisamente os pontos
de vista não puramente jurídicos”.

148
perspectiva do participante da estrutura de aplicação do Direito, especialmente, do
juiz406.

De outra parte, ALEXY identifica em oposição às respostas positivistas que


minoram a importância da dimensão da correção material (fundamento), as
posições que trata, genericamente, como não positivistas e que articulam, ainda
que de maneiras bastante diferentes, essas três dimensões. Nesse sentido, ALEXY
se afirma como um não positivista, em sua construção que articula Direito e
moral407. Nesse sentido, o que marcaria as posições não positivistas seria a
preocupação com algum vínculo entre o direito posto (válido e/ou eficaz) e a
legitimidade da ordem.

Diante dessa dicotomia – positivistas e não positivistas – ALEXY avança no


sentido de identificar duas teses possíveis: a da separação entre Direito e moral,
relacionada aos arranjos positivistas, e a da vinculação entre Direito e moral, que
corresponde à posição das perspectivas não positivistas408. Independente de utilizar-
se ou não a chave “Direito e moral”, o que parece novamente revelarem essas
teses é a questão de fundo que diferencia autores que, ao trabalhar o conceito de
Direito, o fazem vinculando o direito posto (e eficaz) a uma necessária
preocupação com sua correção material (em alguma objetividade) e aqueles que

406
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit., p. 20. Nesse sentido é bastante
interessante a construção realizada por DIMOULIS ao tentar identificar e diferenciar entre si
algumas respostas ligadas a correntes do positivismo jurídico stricto sensu: DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo Jurídico, cit., passim.
407
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito, cit., p. 24. O autor utiliza o termo moral,
colocando-se dentro de uma posição por vezes tida como moralismo jurídico, à qual
compartilhamos algumas posições e fundamentos, mas não nos filiamos no todo.
408
Essa classificação de ALEXY entre positivistas – ligados à tese da separação – e não positivistas –
relacionados, por sua vez, à tese da vinculação – não passa ao largo de críticas. Nesse sentido é
interessante o debate travado entre o importante positivista (hartiano) JOSEPH RAZ e o próprio
ALEXY : RAZ, Joseph, The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism.
Oxford Legal Studies Research Paper Series, Oxford, n. 15, 2007, pp. 17-36; e a resposta:
ALEXY, Robert. An answer to Joseph Raz. In: PAVLAKOS, George (ed.). Law , right and
discourses: the legal philosophy of Robert Alexy. Oxford: Hart Publishing, 2007 (o texto de RAZ
é também reproduzido nesta mesma obra editada por PAVLAKOS). Ou ainda, o debate entre
ALEXY e BULYGIN, realizado na 1st Conference on Philosophy and Law Neutrality and Theory
of Law, Girona, 2010, publicados em: FERRER BELTRÁN, Jordi et al (ed.). Neutrality and
Theory of Law. Dordrecht: Springer, 2013, nos textos: BULYGIN, Eugenio. Alexy Between
Positivism and Non-positivism, pp. 49-59; e ALEXY, Robert. Between Positivism and Non-
positivism? A Third Reply to Eugenio Bulygin, pp. 225-238.

149
de algum modo não relacionam o conceito de Direito à sua legitimidade material,
seu fundamento.

Em meio a essa discussão, no Brasil é recorrente a utilização da chave pós-


positivismo. De fato, como acusa DIMOULIS, o termo é bastante mais utilizado no
ambiente brasileiro que no resto do mundo, todavia, ele é também encontrado,
ainda que em menor ocorrência, nos países língua de hispânica409, mas não apenas
nestes410. O pós-positivismo representaria, na esteira do neoconstitucionalismo, a
corrente teórico-jurídica e jurídico-filosófica que definiria a perspectiva dominante
sobre o conceito de Direito desde a segunda metade do século XX, marcada pela
reconciliação entre: forma e matéria, entre direito posto e vinculações substantivas,
entre Direito e moral, mesmo, entre Direito e Política e entre Direito e Justiça.

Particularmente, parecem serem pós-positivismo e neoconstitucionalismo


definições pouco compreensivas para designar, por simples oposição, movimentos
bastante heterogêneos do tempo presente. É verdade que a dificuldade de
configuração e compreensão da autoimagem é típica da contemporânea sociedade
de alta-velocidade. Amiúde ouvimos falar em modernidade líquida,
hipermodernidade, cibermodernidade, pós-modernidade, sem, nem mesmo,
serem muito claras suas características definidoras. Portanto, não rara é a tentativa
de se distinguir e nomear os momentos atuais por simples oposição àquilo que,
supostamente, “já foi” ou, mesmo, àquilo que “já se foi”. Por conseguinte, não será
demais afirmar que essa é uma fuga própria do tempo presente.

No caso do pós-positivismo, esse quadro coloca-se com um pouco mais de


gravidade, pois, em que pese trabalhos sérios sobre o tema, que efetivamente
acabam por utilizar essa terminologia411, por vezes, essa definição é feita sem
maiores reflexões, paradoxalmente, com a aparente (e positivista) certeza da
descrição de meros fatos contemporâneos. Nesse debate, não raro trata-se como
409
CALSAMIGLIA, Albert. Pospositivismo. Doxa, Alicante, n. 21, pp. 209-220, 1998.
410
Como é o caso da autoidentifcação de MACCORMICK com o termo, o que, nem mesmo, esteve
fora de discussão como se vê em: PETROSKI, Karen. Is post-positivism possible? German Law
Journal, v. l2, n. 02, 663-692, 2011; e BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Comment on Petroski
- On MacCormick’s Post-Positivism. German Law Journal, v. 12, n 02, pp. 693-728, 2011.
411
Por exemplo, BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Uma defesa do pós-positivismo. Virtù,
Salvador, n. 2, pp. 1-40, 2008.

150
se algum pós-positivismo pudesse ser realmente definido e definitivo,
simplesmente, por vir após (algum) positivismo (jurídico)412, que tampouco deixou
de existir, permanecendo ainda no tempo presente em variadas e sólidas
correntes, algumas bastante influentes413. Ou, ainda, como se algum novo
constitucionalismo pudesse ser identificado por superação a algum velho, como se
por oposição ao neoconstitucionalismo fosse possível falar em algum
geroconstitucionalismo.

De toda sorte, essa restrição não se dá, necessariamente, quanto aos


fundamentos dos autores tidos como pós-positivistas, mas quanto à definição por
oposição e, pior, por sucessão ao positivismo. Aliás, como visto, a própria Teoria
da Constituição surge em Weimar no contexto de um debate de “enfrentamento”
do positivismo. Assim, a crítica que se entende possível a essas terminologias não
significa o negar das contribuições das correntes agrupadas sob esse marco,
tampouco das concordâncias que se pode ter com autores e linhas de raciocínio
que se identificam com essas duas chaves – pós-positivismo(s) e
neoconstitucionalismo(s). Apenas acredita-se ser importante o apontar para a
dificuldade de compreensão dessas correntes através dessas duas definições. Nesse
momento, não se propõe nenhuma classificação para esse grande grupo, até pela
sua imensa heterogeneidade, variedade e pontos de diferenças. Dentre esses “não-
positivismos-pós-positivistas” poderíamos, por exemplo, identificar moralistas,
(neo)institucionalistas, comunitaristas, culturalistas, dentre outros. O que parece
uni-los é, nos termos de ALEXY, a importância que dão à dimensão da correção
material para o conceito de Direito.

Nesse sentido, ao tratar da autoidentificação de NEIL MACCORMICK com o


pós-positivismo, BUSTAMANTE acaba por delinear essa corrente por oposição ao
positivismo jurídico – particularmente o trabalhado por RAZ – como sendo “uma
forma não-metafísica de não-positivismo, que é claramente diferenciada, por
412
O prefixo pós- tem, necessariamente, o sentido de posterioridade, temporal ou espacial.
413
Dentre elas, basta que remetamos ao já citado JOSEPH RAZ, em nível global, e DIMITRI
DIMOULIS no cenário brasileiro. Algumas interessantes e duras críticas ao termo pós-positivismo
– no que concordamos em parte, mas não no todo, e, em definitivo, não em sua defesa do
Positivismo – podem ser encontradas em: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico, cit., p. 45 e
ss.

151
exemplo, do jusnaturalismo”, mas que mantém forte conexão com o próprio
positivismo jurídico414. Nesta ordem, DIMOULIS chega a mencionar que “autores
que consideram que o direito está vinculado à moral, a interesses de determinados
grupos sociais, à evolução da sociedade, a finalidades políticas atuais etc. deverão
ser classificados no positivismo jurídico, pois seguramente não são
jusnaturalistas”415.

De todo modo, a identificação de um vínculo e, mesmo, de alguma


imanência, entre ser do Direito e dever ser do Direito, não se coloca, exatamente,
após algum positivismo e, por exemplo, já podia ser observado, mesmo, no
contexto alemão do século XIX, em respostas que se opunham ao positivismo
labandiano, por sua vez, que tinha forte enraizamento e aceitação, sendo tratado
como doutrina quase-oficial do Direito Público. Mesmo naquelas circunstâncias
sempre houve perspectivas dissonantes, inclusive de características não metafísicas,
bastando que se lembre das várias e diferentes formulações que posteriormente
foram (didaticamente) agrupadas sob o rótulo do Movimento do Direito Livre, de
fins do século XIX, início do século XX. Essa marca pode ainda ser identificada –
também em formatos diferentes – nas formulações de HELLER e SMEND, apenas
para ficar no exemplo dos autores dialéticos do debate weimariano.

HELLER, inclusive, dizia, explicitamente, da positividade e da estatalidade


do Direito. Apontava, todavia, para a não redução de sua formulação sobre o
Direito a essa perspectiva, trazendo para seu conceito a dialética entre
normalidade e a normatividade416. Além deles, outros autores vinculados à

414
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Sobre o caráter argumentativo do direito: uma defesa do
pós-positivismo de MacCormick. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 106,
pp. 263-313, jan./jun. 2013, p. 299.
415
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico, cit., pp. 77-78.
416
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 41 e ss.; pp. 350-351. Tratando
expressamente da relação entre Direito e moral, p. 252: “si la amoralización del derecho conduce
a la glorificación religiosa de la situación real del poder, su moralización nos lleva a la anarquía.
Siempre que se declare que un precepto jurídico no es obligatorio porque le falta legitimación
ética, lo único que impide caer en el anarquismo es la ficción jusnaturalista de una comunidad
jurídica absolutamente uniforme. (…) Lo mismo la moralización que la amoralización del derecho
pasan por alto el condicionamiento recíproco de la formación de derecho por el poder y de la
formación de poder por el derecho; ambas se esfuerzan por una irrealizable y falsa amoralización
de la justicia y el derecho, de la legitimidad y la legalidad, de la normatividad y la positividad. La
152
formulação da ideia de Direito, como STAMMLER, RADBRUCH, HAURIOU,
LARENZ ou CASTANHEIRA NEVES417, também foram bastante importantes, tendo,
inclusive, forte influência sobre as ideias não positivistas da segunda metade do
século XX418.

De todo modo, parece que o argumento de fundo que dá unidade a esses


pensamentos é o reconhecer da existência de uma relação entre o ser do Direito e
o dever ser do Direito; ou, dito de outro modo, o conteúdo do dever ser
(normativo) e o do ser valorativo (axiológico); entre forma e conteúdo; entre
norma e valor; entre validade e legitimidade, enquanto inerente à própria
compreensão do Direito, especialmente, do Direito Constitucional.

Talvez a dificuldade de qualquer definição da autocompreensão da Teoria


do Direito do tempo presente, venha, ela mesma, da tentativa – curiosamente,
bastante positivista419 – de estabelecer uma dicotomia muito clara entre duas
posições opostas: positivistas e não positivistas. Esta mesma, ela também, feita
desde a oposição de dois polos divergentes – como conteúdo e forma, ser e dever
ser – e não da tentativa de compreensão dialética entre esses polos, da
identificação da relação de mútua implicação existente entre o ser do Direito e o
dever ser do Direito, dos preceitos jurídicos positivos e dos princípios jurídicos
fundamentais, para usar os termos de HELLER.

Nesse sentido, não seria demais afirmar que forma e conteúdo nem mesmo
podem ser compreendidos de maneira destacada. A própria construção de um
sistema de normas racionais, seguras, que são emanadas através de procedimentos

sociedad más homogénea precisa del derecho positivo y, con ello, de un poder de voluntad que
lo cree y asegure”.
417
COELHO, Nuno M. M. S. Pessoa, igualdade (isogoria) e controvérsia. Notas sobre o sentido
da idéia do direito, (co)fundadora da experiência civilizacional ocidental. Revista da Faculdade de
Direito do Sul de Minas, a. 23, n. 25, pp. 183-192, jul./dez. 2007: “Resta, sempre, a ideia do
direito como o princípio normativo da pessoa a fundar a juridicidade, ao impor a reflexão sobre
cada problema concreto da coexistência o direito como um problema, como a pergunta pela
pessoa cujo reconhecimento e respeito coincide com a reafirmação do direito como modo de
convivência”.
418
GARCIA FIGUEROA, Alfonso. La teoría del derecho em tempos de constitucionalismo, op.
cit., p. 180. Particularmente a influencia de RADBRUCH é absolutamente determinante no
trabalho e concepção de Direito de ALEXY, por exemplo.
419
KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend, op. cit., p. 208 e 209.

153
tidos como democráticos e que, por isso, podem validamente vincular e obrigar
todos os cidadãos, é, ela própria, fruto de um parâmetro normativo anterior e
conformador desse sistema420. Nesse sentido, MIGUEL REALE, por exemplo,
diferencia poder e arbítrio em razão da dialeticidade daquele, postulando que é
ilegítimo o poder que se põe como fundamento do Direito e não como seu
momento decisivo421.

Seguindo essa linha, entende-se que um sistema normativo não pode ser
concebido ex nihilo, desde alguma razão desterrada (como se isto, de algum
modo, fosse possível) ou da mera observância e descrição – pretensamente neutral
– de condições sociológicas e fáticas, de uma ordem concreta pura e simples422.
Tampouco pode ser esse sistema compreendido adequadamente, se destacada e
isolada sua forma de seu conteúdo, simplesmente desde a observação (positivista)
de suas estruturas.

Isso, porque forma e conteúdo conectam-se de modo inerente, enquanto


expressão de uma mundividência, de uma cultura própria que, ao mesmo tempo,
os molda e, também, é por eles moldada. Uma cultura em que forma e conteúdo
420
SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1985. Sobre a relação entre substância e forma inerente à democracia já
trabalhamos nossa posição em: BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia Constitucional.
São Paulo: Saraiva, 2013.
421
REALE, Miguel. Fontes de Modelos do Direito.., p. 61, “o poder não se confunde mesmo
com o arbítrio em razão de sua dialeticidade, de ordem factual e valorativa, a começar por sua
ubiquação no concernente ao problema das fontes. Em verdade, o poder não decide onde e
como quer, mas no âmbito processual da fonte do direito. Essa é a primeira razão de sua
legitimidade. Ilegítimo é o poder – e, por via de conseqüência, o direito que dele dimana –
quando ele se põe como fonte do direito, e não apenas como momento decisivo, sim, mas
momento do processar-se de uma das fontes do direito admitidas pelo macromodelo do
ordenamento jurídico”.
422
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição: da fundamentação da
validade do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 132 e 133: “E o que
cumpre confirmar hoje. Com efeito, e desde logo, mesmo que fosse possível extrais sem mais
(isto é, independentemente de qualquer pressuposta assunção axiológica) premissas valorativas de
premissas fácticas (e não é), o valor da igualdade fundamental entre os homens nunca poderia
meramente sustentar-se num qualquer ‘esclarecimento antropológico’, sendo dele independente,
já que ultrapassa a ideia de ‘igualdade entre os homens como seres racionais’ (no seu âmbito, a
imprescritível dignidade não depende de uma ‘racionalidade honorificante’ ou de uma qualquer
outra qualidade distintiva). Mais: essa verdade constitui um substantivo quê que um qualquer
processualizado como (seja rudimentar ‘regra de ouro’, seja uma qualquer racionalidade
iluminista ou pós-iluminista) é incapaz de gerar. E mais ainda: uma qualquer naturalística ‘voz da
natureza’ que se sobreponha à ‘voz de Deus’ é incapaz de a fazer ouvir”. Em sentido similar:
COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa, cit., pp. 30-32.

154
da organização jurídico-política são parte e, por conseguinte, fazem parte da
identidade dessa própria cultura.

4.2. ONDE MORA A LEGITIMIDADE

Parte-se da perspectiva de que ordem jurídica é, por antonomásia, a ordem


normativa estatal. É a ordem normativa do poder organizado que, por isso, atua
como a única habilitada a utilizar legitimamente a força para fazer-se cumprir.
Assim se arroga, justamente, porque se pretende e se justifica como a ordem
oficialmente justa423. A par da ordem jurídica, sem dúvida, haverá uma série de
outras ordens normativas que se articulam em maior ou menor intensidade com a
ordem normativa típica do Estado. Elas a influenciam e são por ela influenciadas,
todavia, a estatalidade é um traço qualificador da ordem jurídica objetiva, do
Direito424.

Diante disso, como afirma CANOTILHO:

o problema central de uma constituição reconduz-se à questão


nuclear da teoria do Estado e da filosofia do direito: «legitimação-
legitimidade» de uma ordem constitucional no duplo sentido de
justificação-explicação de uma ordem de domínio (estrutura de
domínio) e de fundamentação última da ordem normativa 425.

423
COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa, cit., p. 30: “O
Direito não é ‘uma qualquer institucionalização, mas uma institucionalização de certa índole’, cuja
configuração não resulta simplesmente de sua natureza. A condição decisiva da emergência do
Direito como Direito é a condição ética, que surpreende o humano como pessoa, possibilidade
axiológica, não necessidade ontológica (nem antropológica). Trata-se do homem como sujeito
ético, marcado pela liberdade, pela pessoalidade de que decorrem as inferências axiológico-
normativas de sua igualdade e responsabilidade”.
424
Essa perspectiva não é uníssona. Como mencionado, há várias teorias do Direito que dão
menor importância à dimensão da validade, falando, maximamente em um pluralismo jurídico,
em que a estatalidade não cumpre papel caracterizador ao Direito. Sobre o pluralismo jurídico:
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico, cit.
425
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador.
Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. 2 ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2001, pp. 14-15.

155
Afirma, também, que a legitimação refere-se à inserção da Constituição de
um Estado de Direito nas próprias estratégias de justiça política, isto é, à
institucionalização jurídico-constitucional dos critérios fundamentais do justo
comum e da política justa426.

Mesmo considerando essa pretensão e justiça, a forma como se justifica a


justiça (ou a justeza) de um determinado poder e de uma determinada ordem
importará em diferentes perspectivas sobre a questão, sendo esse ponto, objeto de
diversas disputas teóricas e políticas, especialmente, quanto à discussão a respeito
da relação entre legitimidade e da legalidade.

Assim, a questão sobre a maior ou menor importância da dimensão da


legitimidade, em boa medida, dá-se na forma como se compreende essa
justificação enquanto justa, isto é, em referência a que parâmetro ela se estabelece.

Há uma série de construções que aproximam e, mesmo, confundem a


questão da legitimidade (ou da legitimação) com a da legalidade, por conseguinte,
com a dimensão da validade. Essa posição está relacionada aos mais diversos
autores, das mais variadas formas, por vezes de maneiras opostas, como, por
exemplo, não raro é apontado em WEBER, KELSEN e LUHMANN. Além disso,
como mencionado, esse foi um ponto importante em disputa na luta pelo método,
especialmente, na crítica que se seguiu a KELSEN, também dirigida ao
Staatsrechtslehre oitocentista, quer por SCHMITT, quer por SMEND ou HELLER.

Outros como RAWLS, HABERMAS e demais representantes do pensamento


liberal contemporâneo, remetem a questão da justificação a argumentos também
universalistas, revelando, cada um a seu modo, formulações também tendentes a
uma lógica neoiluminista427 e, portanto, sempre tributária a KANT.

Com posição bastante diversa, autores como LUÍS PEREIRA COUTINHO


caminham em sentido totalmente oposto, quando, ao falar da “ordem normativa

426
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., p.
459.
427
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 378, nota 1300.

156
do Direito” aborda validade, legitimidade e autoridade moral em sinonímia428.
PEREIRA COUTINHO, em sua formulação, de uma forma geral, retira o peso da
decisão e do poder, especialmente, quando trata da questão da validade e
argumenta que o Direito injusto, em última instância, não pode, nem mesmo, ser
considerado Direito.

A posição que aqui se defende não é, exatamente, a de confusão entre essas


duas dimensões, mas de implicação, especialmente, quando observado
detidamente o âmbito constitucional. Se para a norma jurídica
“infraconstitucional” o parâmetro de validade coloca-se, objetivamente, na
integridade do ordenamento, vinculado, positiva e interpretativamente, ao texto e
ao contexto jurídico-constitucional, para a norma constitucional essa referência
não poderá ser igualmente identificada.

A estrutura típica de justificação da norma jurídica é “interna” ao quadro do


ordenamento, colocando-se no âmbito da validade, em referência aos padrões
institucionalizados. O questionamento a respeito da validade ou não validade de
uma norma, portanto, da sua adequação e coerência com a unidade do
ordenamento, se dá em referência aos textos e contextos, programas e âmbitos
normativos, competências, possibilidades e molduras, institucionalmente
estabelecidos pelo poder. Assim, no processo de concretização da norma jurídica
– da mais ampla à mais restrita, realizada pelo poder legislativo, pelo poder
executivo, pelos cidadãos ou, de maneira última, na norma de decisão pelo poder
judiciário – a fórmula argumentativa e o referencial utilizado são tipicamente
jurídicos, relacionados à coerência e à integridade da ordem já institucionalizada
pelo poder. Ou seja, ao Direito válido (juridicamente).

Dito de outra maneira, o Direito, enquanto ordem jurídica do Estado de


Direito, não pode se confundir a todo instante com a política. O Direito é ratio,
ainda que não apenas ratio. Essa racionalidade coloca-se, efetivamente, nas

428
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 548-556.

157
formas, que a partir do argumento de validade, colocam-se como obstáculos à
absorção absoluta da ratio pela voluntas429.

Com isso não se pretende afirmar a preexistência da norma jurídica, já no


momento da formulação do texto, ignorando todo impacto gerado pela tópica na
questão da interpretação jurídica. Tampouco se pretende negar a politicidade do
próprio processo de concretização das normas jurídicas. Longe disso, apenas se
quer atentar para o fato de que os padrões de argumentação e, especialmente, o
plexo referencial de justificação se colocam de forma imediatamente vinculados à
ordem já institucionalizada pelo poder como juridicamente válida, à qual o
próprio poder está amarrado.

Assim, o questionamento recorrente quando da interpretação/construção


de uma norma jurídica “infraconstitucional” não se dá no plano da legitimidade do
ordenamento jurídico em si, mas no da validade da norma, quanto à integridade e
coerência do ordenamento, naquele segmento determinado. Isto é, da
coordenação de sentidos dos diversos textos e contextos normativos juridicamente
institucionalizados por uma decisão do poder. E é nessa acepção que o poder cria
Direito válido.

Como ressalta LÊNIO STRECK, “numa palavra: a Constituição é o


fundamento de validade do sistema jurídico. A Constituição constitui. Um texto
jurídico (leis, regulamentos, etc.) somente é válido se estiver em conformidade
com a Constituição que deve ser entendida em seu conjunto de valores
principiológicos”430. Assim, a validade coloca-se como anteparo ao questionamento
amiúde da legitimidade da norma jurídica, de modo que no processo de
concreção e realização regular da norma, não se buscará sempre justificação

429
Nesse aspecto é interessante a caracterização que NEUMANN faz do Direito fascista como não
Direito: “If general law is the basic form of right, if law is not only voluntas but also ratio, then we
must deny the existence of law in the fascist state. Law, as distinct from the political command of
the sovereign, is conceivable only if it is manifest in general law, but true generality is not possible
in a society that cannot dispense with power”, NEUMANN, Franz. Behemoth, cit., p. 451. Sobre
essa fuga do direito, a partir de NEUMANN: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, cit.
430
STRECK, Lênio Luiz. Os meios e acesso do cidadão à jurisdição constitucional, a arguição de
descumprimento de preceito fundamental e a crise de efetividade da Constituição brasileira. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.). Hermenêutica e
jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, pp. 249-294, p. 251.

158
política última – isto é, questionar-se a respeito da legitimidade da ordem instituída
– mas, apenas, a coordenação e integração da norma em particular, com a rede
normativa geral da ordem institucionalizada pelo poder. Portanto, se o poder gera
Direito, ele o faz sobre bases de um argumento de validade, no sentido de que a
norma que é posta pelo poder é direito válido431.

Contudo, quando se está no âmbito da própria legitimidade desse poder, é


inevitável compreender a ligação relacional que há entre validade e legitimidade.
Ainda que se possa falar na possibilidade de um Direito eficaz e, em certo sentido,
válido, mesmo que decorrente de um poder ilegítimo, o Direito criado por um
poder ilegítimo é, ele mesmo, tendencialmente ilegítimo.

Isso porque o poder, em sentido amplo, pode ser eficaz quer pela força,
quer espontaneamente. No primeiro caso ele é tão somente fático. É imposto
amiúde com a pretensão de normalizar-se (criar uma normalidade) apenas pela
imposição e obediência, não, necessariamente, pela incorporação/aceitação dos
parâmetros de “dominação” pela comunidade e pelos cidadãos.

Em oposição a esse modelo, é possível falar de um poder legítimo no


sentido tratado por LUCIO LEVI, que define legitimidade como o atributo do
Estado que se deita sobre um grau de consenso de significativa parcela da
população, capaz de garantir a obediência – à exceção de casos esporádicos – sem
a necessidade de recorrer ao uso da força432. Desse modo, a própria ideia de
legitimidade como consenso foge da mera factualidade da aceitação de uma
ordem como válida e coloca-se em referência a uma imagem própria do
humano433.

431
Essa, por exemplo, é a noção política de Direito para FRANZ NEUMANN: NEUMANN, Franz.
O Império do Direito, cit., pp. 97-98.
432
LEVI, Lucio. Legitimidade. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política: v. 2. 13 ed.
Brasília: Editora UnB, 2010, pp. 675-679. E conclui: “É por esta razão que todo poder busca
alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência
em adesão. A crença na Legitimidade é, pois, o elemento integrador na relação de poder que se
verifica no âmbito do Estado”.
433
De algum modo, é nesse sentido que MONTESQUIEU apontara que “Os costumes de um povo
escravo são parte de sua servidão: os de um povo livre são parte de sua liberdade”,
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. São Paulo: Martin Fontes, 2007, p.
331.

159
Nesses termos, o Direito que, enquanto Direito, pretende-se legítimo,
coloca-se em relação a sua justificação434. Todo ato de poder, para não se
confundir com um ato de arbítrio, tem de justificar-se em um contexto fático e
valorativo específico. Tem de pautar-se em um fundo objetivo (ainda que apenas
relativamente objetivo) de valores, sentidos e símbolos, que é referencial para essa
justificação que se pretende racional. Portanto, a legitimidade coloca-se em
referência aos termos de um conteúdo, de um espectro de possibilidades
culturalmente informado, de um ethos que, como destaca LIMA VAZ, “não é dado
ao homem, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído”435.

Como expõe REALE, as tentativas que se colocam à luz de um “modelo


ideal” de legitimidade na verdade colocam-se como intimamente vinculadas ao
tipo de Estado de Direito que se pretende realizar. E, com isso, mesmo na
tentativa de tratar do tema de forma abstrata, ela sempre se coloca em referência a
um “fundo histórico” que condiciona os elementos e pressupostos que são
essencialmente considerados para a legitimidade do Direito436.

Mesmo as tentativas de substituir-se alguma razão prática, por alguma outra


racionalidade, como a racionalidade comunicativa, não podem deixar de atentar a
algum telos (no caso, ao entendimento), de indicar que os participantes devem
perseguir “sem reservas seus fins ilocucionários e [que] ligam seu consenso ao
reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis”437. Nesse
sentido, essa própria racionalidade comunicativa (procedimental) de “tendências
434
MUREINIK, Etienne. A bridge to where? Introducing the interim Bill of Rights. South African
Journal On Human Rights, Johannesburg, n. 10, pp. 31-48, 1994; DYZENHAUS, David. Law as
justification: Etienne Mureinik’s conception of legal culture. South African Journal On Human
Rights, Johannesburg, n. 14, pp. 11-37, 1998; DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy:
Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar. Oxford: Oxford University Press,
1997, pp. 244-258. A justificação também é chave de autores com fundamentações, via de regra,
tidas como liberais, como serão os casos de RAWLS e HABERMAS, este, inclusive, relacionado
também por DYZENHAUS. Os termos tratados por esses são interessantes e decisivos para a
discussão a respeito dessa postura no debate da teoria política contemporânea, em que pese não
dividirmos com eles suas razões. Na verdade, a preocupação com a justificação já está presente,
inclusive, em autores oitocentistas da Teoria Geral do Estado, especialmente, em JELLINEK:
JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado, cit., pp. 197-233.
435
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2004,
p. 13.
436
REALE, Miguel. Direito e legitimidade, op. cit., p. 65.
437
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia I, cit., p. 20.

160
universalistas” só encontra razão de ser quando assentada em uma premissa
comum aos indivíduos envolvidos438.

Veja-se que, HELLER, ao mencionar a necessidade de articulação dialética


entre preceitos jurídicos positivos (Rechtssätze) (que possuem validade empírica
desde uma vontade estatal soberana) e princípios jurídicos fundamentais
(Rechtsgrundsätze) (de pretensão de validade ética) não o faz desejando a estes
qualquer universalidade ahistórica. Pelo contrário, baseia toda sua construção da
Teoria do Estado como ciência da realidade e da constituição como realidade
social, desde uma necessária perspectiva cultural. Trata-se, assim, de uma busca
por conteúdos de relativa objetividade, que se colocam na forma da cultura.

MIGUEL REALE, de sua parte, e a seu modo, também trata dos valores que
dão conteúdo ao Direito em termos de objetividade relativa. Entende que os
valores não possuem existência ontológica em si, mas se revelam na História, na
experiência humana. Portanto, são algo que o homem realiza em sua própria
experiência, não em uma realidade ideal a ser contemplada em formato definitivo.
Assim, os valores vão assumindo expressões diversas, exemplares e paradigmáticas
no curso do tempo.

No plano da História, os valores possuem objetividade, porque,


por mais que o homem atinja resultados e realize obras de ciência
ou de arte, de bem e de beleza, jamais tais obras chegarão a
exaurir a possibilidade dos valores, que representam sempre uma
abertura para novas determinações do gênio inventivo e criador.
Trata-se, porém, de uma objetividade relativa, sob o prisma
ontológico, pois os valores não existem em si e de per si, mas em
relação aos homens, com referência a um sujeito439.

438
MICHELMAN, Frank I. Morality, Identity and ‘Constitutional Patriotism’. Ratio Juris,
Bolonha, v. 14, n. 3, pp. 253-271, set. 2001, especialmente na irônica provocação que faz ao
texto: HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado Democrático Constitucional.
In: TAYLOR, Charles et al. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento.
Lisboa: Instituto Piaget, 1998, pp. 125-164, quando comparado as posições apresentadas em
alguns dos textos publicados em: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria
política. São Paulo: Loyola, 2002 (nesta edição também há uma versão do texto originalmente
publicado na obra coletiva organizada por TAYLOR).
439
REALE, Miguel. Filosofia do Direito, cit., pp. 208-209: “Não se entenda, porém, que os
valores só valham por se referirem a dado sujeito empírico, posto como sua medida e razão de
ser. Os valores não podem deixar de ser referidos ao homem como sujeito universal de
estimativa, mas não se reduzem às vivências preferenciais deste ou daquele indivíduo da espécie:
— referem-se ao homem que se realiza na História, ao processus da experiência humana de que
161
Desse modo, em que pesem as importantes diferenças entre os autores,
parece comum a HELLER e REALE a preocupação com encontrar alguma
objetividade ao conteúdo do Direito, uma vez ser a normatividade objetiva e
coercitiva do Direito expressão de uma dada normatividade anterior em que
reside a dimensão da legitimidade. A ambos, também, é comum o identificar
nesses parâmetros – quer dos princípios jurídicos fundamentais de HELLER, quer
em termos de valores como trata REALE – figuras não claramente definidas, mas
normas que apresentam possibilidades de concreção diversas, que se realizam,
quer como possibilidades (princípios jurídicos fundamentais), quer como
concreção (preceitos jurídicos positivos), na História, na forma de normas culturais
ou postas.

Também nessa linha, NEUMANN anota que o Direito Material caracteriza-


se quando:

as normas do Estado são compatíveis com os postulados éticos


definidos, sejam postulados da justiça, liberdade ou igualdade, ou
qualquer outro. Essa noção de direito ‘corresponde’ à concepção
do direito como normas, a partir do momento em que a essência
das normas é o princípio racional (logos) que as engloba440.
A legitimidade não caminha só e isolada quanto à justificação das normas
postas pelo Estado, pois, mesmo o Estado vive de sua justificação. Nas palavras de
HELLER: “La función de sentido del Estado, como la de todo fenómeno histórico,
siempre está, ciertamente, referida a valores”441. A estrutura do poder que assume
sua forma organizacional de unidade de decisão e o monopólio da coerção no
Estado, dialeticamente, cria Direito e é por ele criada. Dito de outra forma, o
Estado não se confunde com o Direito, mas dele também não se cinde de maneira
absoluta. Essa forma, própria, de organização também se justifica nos termos

participamos todos, conscientes ou inconscientes de sua significação universal. Por serem


referidos, por estarem sempre em relação com o homem, com o sujeito humano em sua
universalidade, é que dizemos que a objetividade dos valores é relativa, que é uma objetividade in
fieri na tela da História, mas não lhes falta imperatividade ética, desde que se considere a
totalidade do processo estimativo que se confunde com o espírito humano, revelando-se em si
mesmo e em suas obras, pois, como observa Brightman, não há valores que possam ser
apreciados plenamente sem se levar em conta todos os demais, a experiência pessoal e a
coletiva”.
440
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., p. 98
441
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 276-277.

162
prescritivo-normativos de uma cultura e identidade específica, de mundividência
própria, perspectivas de humano e de comunidade particulares, no tempo e no
espaço.

Essa perspectiva acaba por alinhar-se a uma tradição que reconhece a


historicidade às próprias possibilidades de compreensão do humano e do mundo
a que ele dá sentido. Ela se opõe a outra tradição que pretende a experiência
humana e o sujeito desde uma razão desprendida, de uma sociedade composta,
simples e volitivamente, por indivíduos atomizados, desde uma liberdade prima
facie que pode ser simplesmente constatada e descrita.

Por conseguinte, desde esse ponto de vista, é possível falar em duas grandes
posições que caminham paralelamente. Uma delas que tenta explicar o humano,
especialmente, a partir de uma razão universal(ista) e desprendida, e outra que, ao
invés disso, pretende compreender a experiência humana a partir de seus
sentimentos de pertença, compartilhados e construídos amiúde.

Essa dicotomia reproduz-se em vários episódios e correntes teóricas e


políticas (não necessariamente homogêneas) que, recorrentemente, têm se oposto
no curso da história das ideias e, também, do debate político, estando ainda mais
acentuados a partir da Modernidade. De algum modo, ela pode ser vista já na
disputa política da Revolução Francesa entre jacobinos e girondinos442; nas críticas
de HEGEL a KANT e nos subsequentes neokantismos e neohegelianismos; ou,
ainda, na mais contemporânea tensão entre liberalismo e comunitarismo443.

442
CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo, cit., pp. 53-54.
443
Originalmente colocada no debate da Filosofia Moral e Política do mundo anglófono,
especialmente desde Uma teoria da Justiça de JOHN RAWLS, de 1971, há muito já extrapolou
essas fronteiras, sendo hoje bastante reproduzida, quer no cenário continental europeu, quer na
América Latina e, especificamente, em: TAYLOR, Charles. Propósitos entrelaçados: o debate
liberal-comunitário. In: TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo, Edições Loyola,
2000, pp. 197-220; TAYLOR, Charles et al. Multiculturalismo: examinando a política de
reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1998; SANDEL, Michael. Liberalism and the limits of
Justice. 2 ed. Cambridge, Cambridge University Press, 1998; BRUGGER, Winfried.
Commuinitarianism as the social and legal theory behind the German Constitution. I-CON,
Oxford/Nova York, v. 2, n. 3, jul. 2004, pp. 431-460; HONNETH, Axel. The limits of liberalism:
on the political-ethical discussion concerning communitarianism. In: HONNETH, Axel;
WRIGHT, Charles W. (ed.). The fragmented world of the social: essays in social and political
philosophy. Nova York: State University of New York Press, 1995, pp. 231-346; GALUPPO,
Marcelo Campos. Comunitarismo e liberalismo na fundamentação do Estado e o problema da
163
Parece possível identificar cada uma dessas tradições com uma pergunta a
respeito dos projetos de vida dos sujeitos. Enquanto uma das tradições procura
explicar sua identidade buscando resposta a “quem queremos ser?”, outra
pretende compreendê-la desde o perquirir pela identidade, por “de onde
viemos?”.

A identidade que se procura perguntando-se por “quem queremos ser?”


revela a preocupação daqueles que pretendem explicar a experiência humana
desde uma razão desprendida, de um indivíduo atomizado e de uma liberdade
prima facie. Ela, por exemplo, está relacionada a uma específica visão de
modernidade que CHARLES TAYLOR trata por acultural, que atribui aos indivíduos
plena autonomia racional e transcendental, que, por exemplo, é fortemente
encampada pelos diversos liberalismos (jurídico, político e econômico), mas
também pelos positivismos, utilitarismos e pragmatismos.

Desde essa visão acultural, o próprio processo de modernização é


entendido como uma série de transformações que se operaram de forma neutra,
não definida nos termos de uma cultura específica, tampouco desde um passado
comum ou em referência a algum projeto cultural. Nessa ordem, seria possível, até
mesmo, que a modernidade fosse realizada indefinidamente por qualquer

tolerância. SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Crise e Desafios da Constituição. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 337-346. Articulando em sentido similar, ainda que não idêntico, a
chave Republicanismo e Liberalismo, tratando, aparentemente, o Republicanismo como gênero e
o Comunitarismo como espécie: CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. Devido
Processo Legislativo, cit.; Relacionando a dicotomia liberais e comunitaristas à tensão entre KANT
e HEGEL: GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de
filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, pp. 137: “Essa disputa entre
comunitaristas e liberais pode ser vista como um novo capítulo de um enfrentamento de longa
data, como o que opunha as posições ‘kantianas’ e ‘hegelianas’. De fato, e em boa parte, o
comunitarismo retoma as críticas que HEGEL fazia a KANT: enquanto KANT mencionava a
existência de certas obrigações universais que deveriam prevalecer sobre aquelas mais
contingentes, derivadas do fato de pertencermos a uma comunidade particular, HEGEL invertia
essa formulação para dar prioridade a nossos laços comunitários. Assim, em vez de valorizar –
junto com KANT – o ideal de um sujeito ‘autônomo’, HEGEL defendia que a plena realização do
ser humano derivava da mais completa integração dos indivíduos em comunidade”. Já tivemos
oportunidade de abordar a temática do Liberalismo Vs. Comunitarismo em trabalho anterior,
especialmente, quanto à questão da Democracia, relacionando essa dicotomia a outra entre
Positivistas Vs. Não positivistas, em BIELSCHOWSKY, Raoni. Democracia Constitucional, cit.,
pp. 51-80.

164
comunidade, independentemente de sua rede de significados, de seus valores
compartilhados, enfim, de sua cultura444.

A formulação paradigmática dessa perspectiva de modernidade é a


realizada pela Ilustração e por KANT. Seu impacto é ainda muito presente nas
várias correntes da contemporaneidade, como o é, claramente, no positivismo
normativista kelseniano ou, ainda, no liberalismo procedimental de JOHN
RAWLS445.

Ela, de modo geral, desenvolve-se sob um ponto de vista deontológico-


universalista, formal, de modo que o justo político esteja mais relacionado à ideia
de justeza que, propriamente, à ideia de justiça, porque não exatamente vinculado
a um bem substancialmente colocado (ainda que relativo), mas a formas e meios
tidos como adequados446.

444
TAYLOR, Charles. Two Theories of Modernity, Public Culture, Durham, v. 11, n. 1, pp. 153–
174, 1999 p. 154: “an acultural theory describes these transformations in terms of some culture-
neutral operation. By this I mean an operation that is not defined in terms of the specific cultures
it carries us from and to, but is rather seen as of a type that any traditional culture could undergo.
An example of an acultural type of theory, indeed a paradigm case, would be one that conceives
of modernity as the growth of reason, defined in various ways: for example, as the growth of
scientific consciousness, or the development of a secular outlook, or the rise of instrumental
rationality, or an ever-clearer distinction between fact-finding and evaluation. Or else modernity
might be accounted for in terms of social, as well as intellectual changes: Transformations,
including intellectual ones, are seen as coming about as a result of increased mobility,
concentration of populations, industrialization, or the like. In all these cases, modernity is
conceived as a set of transformations which any and every culture can go through—and which all
will probably be forced to undergo. These changes are not defined by their position in a specific
constellation of understandings of, say, person, society, or good; rather, they are described as a
type of transformation to which any culture could in principle serve as ‘input.’ For instance, any
culture could suffer the impact of growing scientific consciousness, any religion could undergo
secularization, any set of ultimate ends could be challenged by a growth of instrumental thinking,
any metaphysic could be dislocated by the split between fact and value”.
445
RAWLS, John. Kantian Constructivism in Moral Theory. The Journal of Philosophy, v. 77, n.
9, pp. 515-572, set. 1980; TAMPIO, Nicholas. Rawls and the Kantian Ethos. Polity, v. 39, n. 1,
pp. 79-102, jan. 2007; SANDEL, Michael. Liberalism and the limits of Justice, cit. É verdade que
do Uma Teoria de Justiça para o Liberalismo Político RAWLS, mantendo a postura
procedimental, caminhou no sentido de propor alguns limites substanciais. Relacionando,
criticamente, as posições de RAWLS e KELSEN: DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy,
cit., p. 234.
446
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit.,
pp. 17-18: “Como a história do Estado de Direito e do Estado Constitucional demonstra, à
«racionalidade processual» pode não corresponder a uma garantia de ordem constitucional
material”.

165
No entanto, do ponto de vista “ontológico” – aqui utilizando o sentido dado
à questão por CHARLES TAYLOR447 – parece possível perguntar-se sobre o quanto
esse argumento é passível de compreender a experiência humana. Se, por acaso, é
aceitável uma descrição universal do sentido do humano, ou se, como dito, o
sentido é algo sempre suposto.

Refletindo sobre isso, ALAIN SUPIOT atenta ser a própria razão humana
apenas uma frágil conquista de um sentido cuja crença é compartilhada por cada
um daqueles que nela acredita. E, assim, que a própria razão se assenta em
certezas indemonstráveis, “em recursos dogmáticos, que são tantas outras pontes
lançadas entre o universo do sentido e o universo dos sentidos”. Tais certezas
podem variar de uma sociedade a outra, e, inclusive, dentro de uma mesma
sociedade de uma época a outra. Contudo, a necessidade de tais certezas é
invariável, uma vez que, mesmo no mundo natural, “não há um sentido que se
possa descobrir, pois o sentido é, necessariamente, suposto”448. Ou, de certo
modo, como afirma JOAQUIM CARLOS SALGADO:

o homem, como no mito de Midas, atribui sentido a tudo o que


toca, constituindo a sua obra, a cultura, e observa que ele não se
contenta em atribuir sentido ao que lhe rodeia. No mundo da
cultura, o homem nega a sua realidade natural e julga o que ele
deve ser, transformando-se pela educação. O homem é obra de si
mesmo449.
Portanto, a suposição de racionalidade de alguma ciência (inclusive, do
Direito) que pretenda compreender a experiência sem realizar essa imanência do
conteúdo na forma, apresenta-se como dúbia. Ela está fadada a variar entre:
alguma ingenuidade que pretenda por uma razão universal(ista) – esta,
curiosamente, parece simplesmente substituir o lugar do sentimento da fé pelo
sentimento da razão – e o risco da subversão do próprio conteúdo racional,
simultaneamente, suposto pela forma e desta originário, colocando em risco a

447
TAYLOR, Charles. Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário, op. cit., passim.
448
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Lisboa:
Instituto Piaget, 2005, p. 31. Em sentido bastante similar quanto a essa perspectiva: KAHN, Paul
W. The cultural study of Law: reconstructing legal scholarship. Chicago: University of Chicago
Press, 1999, pp. 96-90.
449
SALGADO, Karine. História e Estado de Direito. Revista do TCEMG, Belo Horizonte, v. 71,
n. 2, pp. 102-113, abril-junho, 2009, pp. 102-103.

166
própria continuidade entre a estrutura normativa e sua razão de ser: no despregar
de valor e norma.

Nesse sentido, a razão (ocidental) é, ela mesma, expoente de uma


concepção determinada do humano e, por isso, dá, ela, sentido à vida humana450.
Desse modo, postula-se, novamente com SUPIOT: “que o homem é um sujeito
capaz de razão para que a ciência seja possível. E esta definição do ser humano
não resulta de uma demonstração científica, mas de uma afirmação dogmática; é
um produto da história do Direito e não da história das ciências”451.

Caminhando por esse curso, NELSON SALDANHA identifica que a


universalização é também um processo histórico, culturalmente definido. Ela teve
como marca importante, desde a ascensão do racionalismo, a secularização da
cultura que veio a promover, em maiores dimensões, o processo de
universalização de determinados conceitos basilares452. É nesse sentido que
também entende MACINTYRE ao destacar que “as filosofias morais, (...) embora
possam ter aspirações mais pretenciosas, sempre expressam a moralidade a partir
de algum ponto de vista social e cultural”453.

Nessa linha, a questão sobre “de onde venho?” não nega a preocupação
com o “quem queremos ser?”. Pelo contrário. Coloca-a desde uma perspectiva em
que passado, futuro e presente não podem ser compreendidos de forma
450
TAYLOR, Charles. Fontes do Self: a construção da identidade moderna. 2 ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2005.
451
SUPIOT, Alain. Homo juridicus, cit., p. 35, no contexto: “Como qualquer outra sociedade a
nossa assenta numa determinada concepção do homem, que dá sentido à vida humana. (...) É,
com efeito, necessário postular que o homem é um sujeito capaz de razão para que a ciência seja
possível. E esta definição do ser humano não resulta de uma demonstração científica, mas de
uma afirmação dogmática; é um produto da história do Direito e não da história das ciências.
(Num sistema de pensamento que ignorasse estas dicotomias, as querelas escolásticas que opõem,
por exemplo hoje, um neurólogo «materialista» e um filósofo «espiritualista» seriam muito
simplesmente despidas de sentido. Um sistema cultural como o da China imperial, que ignorava a
ideia de sujeito, não podia, evidentemente, ao contrário da Roma imperial, qualificar como
objectos determinados homens e, logo, não podia senão ignorar a escravatura no próprio sentido
do termo. Era preciso pensar o homem como objecto material para conceber a medicina como
uma ciência e o trabalho como um bem negociável. A ciência e a economia modernas não teriam
visto a luz do dia sem esta configuração jurídica própria do Ocidente, que é a pessoa humana”.
452
SALDANHA, Nelson. Historicismo e Culturalismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Recife:
FUNDARPE, 1986, p. 18.
453
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude: um estudo de teoria moral. Bauru, SP: EDUSC,
2001, pp. 450.

167
desprendida, mas em implicação dialética. Assim, a identidade é encontrada nos
sentimentos (culturais) de pertença, nas relações e compromissos e,
principalmente, no projeto da comunidade que o indivíduo identifica como seu e
que, também, se sente parte integrante e integrada, portanto, que o reconhece e
em que é reconhecido.

Deste modo, entende-se que a liberdade deve ser compreendida como


parametrizada por esses valores “inegáveis”, não porque naturais, mas porque
constitutivos da identidade do Eu no Ocidente. Uma liberdade apolínea, não
desmedida454. E, como dito, tendo-se em mente que a própria pergunta e resposta
à questão “quem queremos ser?” já estão contidas na outra indagação: “de onde
venho?”455.

É nesses termos que se compreende que “um como nunca explicará um


quê” e é nesse sentido que se pretende que uma ordem enquanto legítima justifica-
se em referência a uma objetividade relativa construída e recebida do mundo da

454
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., passim.
455
TAYLOR complexifica um pouco a questão, cindindo aquilo que chama questões ontológicas e
questões de defesa. As primeiras delas diriam respeito aos termos últimos que explicariam a vida
social, termos em que poderiam ser identificados atomistas (individualistas metodológicos) e
holistas; enquanto as questões de defesa, diriam respeito à posição moral e política que se adota,
que variam amplamente entre a suprema primazia dos direitos individuais à máxima prioridade
da vida comunitária e dos bens da coletividade. Nesse contexto, identifica ainda, que, em que
pese, via de regra, trabalhar-se autores individualistas como atomistas (exemplo máximo seria
NOZICK) e coletivistas como holistas (nesse caso o paradigma seria MARX), é possível identificar
individualistas holistas (usa HUMBOLDT, como exemplo) e, até mesmo, coletivistas atomistas.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos, cit., pp. 197-220. É bastante interessante a
observação que faz JESSÉ SOUZA sobre a construção de TAYLOR: “Taylor pretende encontrar a
autocompreensão dos atores na topografia moral da época e cultura nas quais esses atores se
inserem. É essa senda crítica que lhe permiti defender a preeminência do ‘holismo
metodológico’. Indivíduos só podem ser tidos como última ‘ratio’ da explicação sociológica na
medida em que o pano de fundo social e cultural que os condiciona permanece não tematizado.
Esses sentidos culturais, por sua vez, são quase sempre implícitos se expressando antes em
práticas sociais, mores e instituições do que em doutrinas explícitas. É esse pressuposto
metodológico que permite a Taylor tomar o partido do comunitarismo como ‘ontologia’, e não
como partidarismo normativo, no sentido de uma opção pelo coletivo contra o individual. Este
princípio implica apenas assumir a posição do holismo metodológico contra o atomismo, ou até
mesmo contra posições mais sofisticadas como a habermasiana, que propõe uma incerta
‘simultaneidade’ entre intersubjetivo e subjetivo. Este esclarecimento é importante para afastar a
acusação algo simplista de conservadorismo para qualquer postura comunitarista, como se todas
defendessem, da mesma forma, a subordinação normativa, e não antes de tudo metodológica
como é o caso de Taylor, do indivíduo em relação à cultura”, SOUZA, Jessé. A dimensão política
do reconhecimento social. In: AVRITZER, Leonardo; DOMINGUES, José Maurício (org.).
Teoria social e modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, pp. 159-184.

168
cultura. Ela é identidade reflexiva, imediatamente informativa e formativa, e
mediatamente formada pelo cidadão e pela comunidade.

Na modernidade (redundantemente) ocidental, do ponto de vista político,


deitam-se os parâmetros de justiça na vinculação material com os valores
fundadores e justificadores do constitucionalismo. Estes são relacionados, por sua
vez, a sua premissa de humano, isto é, à igualdade fundamental de todos nessa
humanidade comum, fruto do desenvolvimento da própria ideia de humano de
raízes greco-romanas e judaico-cristãs, portanto, ocidental por excelência.

É dessa concepção, de humano enquanto igualmente livre, que decorrem


ou, ao menos, justificam-se – ainda que semanticamente – todas as formas de
legitimação “racional” do poder. É nesse sentido que PEREIRA COUTINHO
considera que: “impõe-se pensar o referente último de uma ordem não como um
poder, mas como um lugar de legitimação, ou seja, como um lugar normativo”456.
Normativo não no sentido da norma jurídica, mas de uma premissa cultural, de
mundividência inevitável, que, simultaneamente, nos conforma e é por nós
conformada. Também será nesse sentido que PETER HÄBERLE tratará da
dignidade da pessoa humana como premissa antropológico-cultural do Estado
Constitucional457. E CANOTILHO afirmará que “no âmbito da teoria de
constituição, a necessidade de uma fundamentação antropológica é reiteradamente
afirmada”458.

Essas mundividências encontram seu referencial último de objetividade na


cultura e sua identidade. Ao seguimento próprio dessa rede no quadrante

456
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Do que é a República? Uma República baseada na
dignidade humana. Lisboa: ICJP. p. 7.
457
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. México: UNAM, 2003, pp. 169 e ss.;
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional Europeo, op. cit., pp. 92 e ss.; HÄBERLE, Peter.
Os problemas da verdade no Estado Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
2008, pp. 105 e ss.
458
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., p.
31, e segue citando SMEND, no original: “eine demokratische Staat- und Verfassungslehre kann
nicht am formalen Staatswillen einstezen, sodern nur am Menschen in seiner geselschftliche,
politishcen Lage, an der Frage”, was von ihm zu erwarten, was ihm zu bieten und zuzumuten sein
möge”, SMEND, Rudolf. Deutsche Staatsrechtwissenschaft vor hundert Jahren – und heute. In:
SMEND, Rudolf. Staatsrechliche Abhandlungen und anderen Aufsätze. 4 ed. Berlim: Duncker &
Humblot, 2010, pp. 609-619.

169
ocidental, essa cultura apresenta uma configuração muito claramente explicita no
Estado de Direito e no constitucionalismo, por tanto, na cultura do
constitucionalismo, em suas sedimentações, processos e transformações,
instituições, formas e normas, ou seja: na sua identidade. Nas amarras do
constitucionalismo que, em certo sentido, articulam-se todas em torno da dinâmica
do reconhecimento do eu e do outro459.

É assim, em referência a essa rede de símbolos, signos e valores, portanto,


em referência a essa identidade decorrente dessa cultura do constitucionalismo,
que se justifica e se arroga legítimo um Estado enquanto Estado Constitucional e
um Direito Constitucional como legítimo e, por isso, válido.

459
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 44. SALGADO, Joaquim
Carlos. Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, pp. 252-253: “Somente como
consciência de si para outra consciência de si, na medida em que é eu e objeto ao mesmo tempo,
ela é Espírito cuja dialética começa pela cisão da luta de morte e da desigualdade do senhor e o
escravo, cisão decorrente do fato de reivindicar a consciência de si, isoladamente, a absoluta
universalidade e reconhecimento, até o advento do nós ou do momento em que a consciência é
um eu e um nós. Esse momento luminoso só será realizado quando a consciência de si
reconhecer a outra consciência de si, conheça a outra como também livre e para si, como igual. O
processo de reconhecimento é exatamente essa conquista da igualdade das consciência de si,
como para si, em que o eu se conhece em primeiro lugar nele mesmo e, em segundo lugar, se
conhece no outro, ou se vê também no outro (um duplo conhecimento), porque seu igual”

170
CAPÍTULO 5
DA CONSTITUIÇÃO COMO PRODUTO
PRODUTO DE UMA CULTURA:
LEGITIMIDADE À VALIDADE

A ideia de Constituição nasce com o constitucionalismo no século XVIII.


No curso da história, desenvolve-se no âmbito político, no mundo jurídico, no
campo das ideias, mas, especialmente, no diálogo dessas três dimensões. Mesmo
depois de quase dois séculos e meio de constitucionalismo e de quase um século
de Teoria da Constituição, a verdade é que, o conceito de constituição, até hoje,
não é, exatamente, algo uníssono; pelo contrário460.
A pluralidade de sentidos e significados, em parte, decorre do fato de a
Constituição, ela mesma, ser complexa, composta por várias dimensões, faces e
projeções. Além da própria pluridimensionalidade do fenômeno constitucional,
suas politicidade e abrangência possibilitaram o desenvolvimento de diferentes
correntes, cada qual com seus conceitos e sentidos, partindo desde perspectivas
(filosóficas, epistemológicas, ideológicas, jurídico-políticas) bastante diversas.

460
Para um inventário das definições do conceito de Constituição: CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., pp. 81-130; SAMPAIO, José
Adércio Leite. Teorias constitucionais em perspectiva: em busca de uma Constituição
pluridimensional. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.) Crise e Desafio da Constituição. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 3-54.

171
Além disso, mais que um fundamento legitimador comum, as várias
constituições colocam-se em articulação com as várias identidades e forças
culturais de cada comunidade, na formação de identidades constitucionais, o que
importa em formas, conceitos, definições e medidas diferentes para um conceito
de constituição em cada cultura constitucional em particular, isto é, na expressão
de sua identidade461.
De todo modo, no século XX, as questões colocadas pela Teoria da
Constituição, florescem como fruto e, ao mesmo passo, fundamento da
complexificação do fenômeno constitucional e estatal. O Estado Social que
“concilia” Estado e sociedade, marcadamente cindidos nos oitocentos, traz para o
âmbito institucional as disputas e preocupações sociais e políticas da sociedade.
Particularmente com o segundo pós-guerra, a constituição passa a ocupar
um posto de centralidade cada vez mais destacado na dinâmica do Estado de
Direito. Se o fenômeno jurídico do século XIX é bastante marcado pelo espírito
jusprivatístico462, decorrente dos valores liberal-burgueses e da expansão do
capitalismo nos moldes próprios do período oitocentista, no século XX o caráter
público do Direito destaca-se e sobressai-se.
De fato, especialmente a partir do entreguerras, há um movimento geral de
publicização do Direito. Ele atinge seu ápice na segunda metade do século XX,
461
Nesse sentido, LÊNIO STRECK, ratificando posição de BERCOVICI, por exemplo, em um dado
contexto chega a afirmar que não seria “mais possível, hoje, falar em uma teoria geral da
Constituição. A Constituição (e cada Constituição) depende de sua identidade nacional, das
especificidades de cada Estado Nacional e de sua inserção no cenário internacional. Do mesmo
modo, não há ‘um constitucionalismo’, e, sim, vários constitucionalismos. É necessário, assim,
que se entenda a teoria da Constituição enquanto uma teoria que resguarde as especificidades
histórico-factuais de cada Estado nacional. Desse modo, a teoria da Constituição deve conter um
núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias próprias do Estado Democrático (e
Social) de Direito, assentado, como especificado na tradição, no binômio ‘democracia e direitos
humanos-fundamentais’. Dito de outro modo, afora o número mínimo universal que conforma
uma teoria geral da Constituição, que pode ser considerado comum a todos os países que
adotaram formas democrático-constitucionais de governo, há um núcleo específico de cada
Constituição, que inexoravelmente, será diferenciado de Estado-Nação para Estado-Nação.
Refiro-me ao que se pode denominar de núcleo de direitos sociais-fundamentais plasmados em
cada texto que atendam ao cumprimento das promessas (incumpridas) da modernidade”,
STRECK, Lênio. Intervenção. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e
a Constituição Dirigente. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 79-85, pp. 81-82.
462
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of German constitutional Law, cit.,
especialmente capítulo 1, intitulado: “The will of State and the redemption of the German
Nation: legal positivism and Constitutional Monarchism in the German Empire”; também em,
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 242 e ss.

172
com uma efetiva constitucionalização do Direito, da qual são marcantes: o
fortalecimento e crescimento do Estado desde o Constitucionalismo Social; as
gerações de direitos (fundamentais) prestacionais do Estado; a
(re)substancialização da Constituição e, consequentemente, do Direito463; a
reconciliação entre Estado e sociedade; a discussão sobre a Constituição dirigente
e sua relação com a atuação do legislador e, mesmo, da morte dela464. Todos esses
temas, de certa forma, ainda estão em disputa. Por exemplo, desde a década de
1980, ouvem-se os brados por uma redução do Estado em moldes neoliberais,
tema que demonstra a necessidade de uma nova abordagem da Teoria do Estado
para a defesa do Estado Democrático de Direito contra essas tentativas de
enfraquecê-lo.
Além disso, ocorre, também, a dita revolução copernicana do Direito
Público, caracterizada pela supremacia da constituição no ordenamento jurídico,
com vozes indicando uma verdadeira constitucionalização do Direito,
constitucionalização do Direito Privado e, mesmo, constitucionalização do Direito
Civil465.
Esse próprio movimento de (re)substancialização do Direito Constitucional
e, por consequência, de todo o Direito e da experiência jurídico-política, faz
revolver o sentido original de constituição, que parece imprescindível para a

463
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política, op. cit., p. 9.
464
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:
Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. 2 ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2001. Esse tema esteve bastante presente no debate brasileiro desde 1988. Em
2001, com a publicação de nova edição, CANOTILHO publica um novo prefácio em que fala,
inclusive, da morte da Constituição Dirigente. Esse prefácio acabou sendo discutido em um
evento que reuniu alguns dos principais constitucionalistas brasileiros, cujas intervenções foram
reunidas em: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a Constituição
Dirigente. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
465
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito; o triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 02, n. 01, pp. 1-48,
2006. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. Apontando no sentido da interpretação
do Direito para uma constitucionalização da hermenêutica jurídica, PEREIRA, Rodolfo Viana.
Hermenêutica Filosófica e Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, especialmente, pp.
119 e ss.; FACHIN, Luiz Edson. Los derechos fundamentales en la construcción del derecho
privado contemporáneo brasileño a partir del derecho civil-constitucional. Revista de Derecho
Comparado, Santa Fé v.15, p. 243-272, 2009; SARMENTO, Daniel. A normatividade da
Constituição e a Constitucionalização do Direito privado. Revista EMERJ, v. 6, n. 23, pp. 273-
297, jul./set. 2003.

173
compreensão do que significa a experiência constitucional. Ela se desenvolve,
especialmente, a partir da centralidade da dignidade da pessoa humana, que passa
a ser reconhecida nos mais variados textos constitucionais e, também, na
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Desde seu nascimento, o constitucionalismo teve como projeto justificar o
Estado submetido ao Direito, assim, estruturando-o como um Estado com
qualidades que fazem dele Estado Constitucional466. Portanto, o conceito de
constituição que aqui pretendemos parte daquilo que GRIMM aponta como
fundamento primeiro da experiência do constitucionalismo: a legitimidade do
poder. E, em sendo referente à legitimidade, o conceito de constituição se erige
como um conceito normativo, como um dever ser da organização e exercício do
poder estatal que lhe serve de justificação467.
Nesse sentido, CANOTILHO entende a Teoria da Constituição, a um só
tempo, como teoria política do direito constitucional e como teoria científica do
direito constitucional. Política porque busca compreender a ordenação
constitucional do político e científica porque pretende descrever, explicar e refutar
os fundamentos, as ideias, postulados, construções, estruturas e métodos do
Direito Constitucional. No entanto, CANOTILHO também entende que ela
ultrapassa essas duas dimensões e se configura como teoria crítica e normativa da
constituição. Ela é assim, uma teoria normativa da política, orientada para a
realidade social do seu tempo, como bem quis HELLER468.
Nessa esteira, a questão da legitimidade está intimamente relacionada ao
fato da ordem e do poder justificarem-se enquanto reflexo da própria imagem do

466
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ed. Coimbra:
Almedina, 2000, p. 93.
467
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 277-278: “el Estado vive de su justificación
(…). Toda explicación se refiere al pasado, toda justificación al futuro (…). Las pretensiones
realmente extraordinarias del Estado no se justifican por el hecho de que éste asegure ‘cualquier’
ordenación social-territorial, sino tan sólo, en cuanto aspire a una ordenación justa. La
consagración del Estado únicamente se hace posible relacionando la función estatal con la
función jurídica”.
468
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1334-
1335.

174
sujeito constitucional469. Mais que isso, nos parece possível afirmar que a própria
preocupação com a legitimidade é, ela mesma, uma demanda (prescritivo-
normativa) própria de uma cultura. Outrossim, os supostos (valores) ontológicos
(prescritivo-normativos) de humano, sobre os quais se fundamenta essa
legitimidade – de indivíduos dignos, fundamentalmente iguais e livres – são reflexo
e decorrência de uma específica mundividência, frutos de uma cultura470. Uma
cultura que na modernidade desenvolveu o constitucionalismo como sua forma
própria de organização do poder, em uma rede de símbolos, significados, valores e
estruturas, que, dialeticamente, informa e é informada pelas experiências políticas,
sociais e humanas dessa cultura.
Destarte, dizer de um Estado Constitucional é dizer de um Estado que se
pretende legítimo sob vistas dos padrões de bem e vida boa de uma determinada
cultura (de liberdade), construídos nos termos daquilo que poderíamos dizer de
uma cultura constitucional471. Portanto, de um Estado em que o poder não se
coloca como, simplesmente, autoritário, mas como legítimo uma vez que
justificado e assentado diante de uma cultura de justificação472.
Essa perspectiva não implica, de forma alguma, uma homogeneidade
absoluta das experiências, valores, textos e normas constitucionais, quando se

469
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 17 e ss. Nesta obra
ROSENFELD joga com o duplo sentido que a palavra subject tem em língua inglesa, podendo ter o
significado de sujeito, mas também, de assunto, tema: “The very notion of the constitutional
subject is ambiguous. It is not clear whether the notion refers to the makers of the constitution,
those subjected to it, or its subject-matter”. Aqui, naturalmente, quando se fala de sujeito
constitucional trata-se da dimensão que este termo possui em sua transliteração para o português.
470
COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa. Curitiba: Juruá,
2012, p. 28: “A pergunta que institui um caso como um caso jurídico, e que está na base de todo
pensamento jurídico, é a pergunta acerca do humano, é a pergunta por uma certa forma de vida
em que o humano se afirma como pessoa – é a pergunta pela pessoa como igualdade, liberdade e
responsabilidade”.
471
HELLER, Hermann. Political democracy and social homogeneity, op. cit., p. 260.
472
MUREINIK, Etienne. A bridge to where?. MUREINIK trata detidamente da transição
constitucional sul-africana, ou, mais precisamente, da Constituição Provisória da África do Sul de
1993 (particularmente, de seu capítulo 3, que se referia ao Bill of Rights), como uma ponte entre
uma cultura autoritária em superação e uma cultura de justificação, em construção: “If the new
Constitution is a bridge away from a culture of authority, it is clear what it must be a bridge to. It
must lead to a culture of justification - a culture in which every exercise of power is expected to be
justified; in which the leadership given by government rests on the cogency of the case offered in
defence of its decisions, not the fear inspired by the force at its command. The new order must be
a community built on persuasion, not coercion”, p. 32.

175
comparam as diversas ordens e Estados constitucionais. Portanto, dentro daquilo
que aqui tratamos por cultura constitucional (em sentido amplo) – ou, em termos
mais estritos, atinentes à relação entre validade e legitimidade, por cultura do
constitucionalismo – é possível identificar várias culturas constitucionais473, várias
identidades constitucionais particulares que se pronunciam desde a articulação
entre a cultura do constitucionalismo e as heranças e construções socioculturais
próprias e particulares474.
Para a aproximação a um conceito de Constituição como produto de uma
cultura, serão resgatadas aquelas posturas dialéticas encontradas ainda no berço da
Teoria da Constituição, articulando-as com os desenvolvimentos mais conexos da
Teoria e da Filosofia da Constituição. Para tanto, avançar-se-á sobre uma questão
que é elementar desde o surgimento do Estado Moderno, especialmente, desde o
início do constitucionalismo. Questão que é, particularmente, importante à Teoria
da Constituição: a soberania. Tratar-se-á mais propriamente da soberania popular
como elemento indispensável do próprio constitucionalismo, ou, pelo menos, do
constitucionalismo dito democrático.

473
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”?, op. cit., pp. 21-22; MÜLLER, Jan-
Werner. Constitutional Patriotism. Princeton: Princeton University Press, 2007, p. 56.
474
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 45: “Constitutional
discourse must articulate a self-identity by means of counterfactual narrative that takes into
account both the applicable constitutional text and the normative constraints flowing form
constitutionalism. Such narrative, moreover, must strive to bridge the gap the splits the
constitutional subject into self and other, while, at the same time, furnishing sustenance to the
constitutional subject by endowing it with a distinct identity. From the standpoint of those who
seek to vindicate the constitutional status quo, constitutional discourse must bridge the gap
between the actual constitution and the precepts of constitutionalism, and forge sufficient
common grounds between self and other to lend the requisite support for the constitutional
subject to maintain a distinct identity. From the standpoint of those who appeal to the
counterfactual imagination to launch a critique of existing constitutional arrangements, on the
other hand, constitutional discourse must expose mere semblances of harmony between the
constitution and constitutionalism, and pierce through constitutional identities that oppress or
unduly constrain self or other”. Ainda, também, utilizando a chave identidade constitucional
(constitutional identity): FLETCHER, George P. Constitutional Identity. In: ROSENFELD,
Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: Theoretical Perspectives.
Durham: Duke University Press, 1994, pp. 223-232. Aproximando-se desse sentido: SALCEDO
REPOLÊS, María Fernanda. Identidade do sujeito constitucional e controle de
constitucionalidade: raízes históricas da atuação do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Edições Casa de Rui Barbosa, 2010.

176
5.1. CONSTITUIÇÃO COMO PRODUTO
PRODUTO DE UMA CULTURA

A constituição é uma construção cultural. É o produto de uma cultura


específica: da cultura do Ocidente. Ou, pelo menos, de um grupo de culturas
muito próximas e conexas que passaram por um processo que se coloca como
moderno475. Ela traz marcas e heranças não unívocas, mas que se comunicam e se
constroem desde processos histórico-culturais. Esses têm início ainda na fundação
do Ocidente, raiz remota desse modo de ser tão próprio e dessa cosmovisão
particular, mas que se delineiam e sedimentam, especialmente, na modernidade,
apontando em um sentido de uma identidade, ela mesma, plural, que se alicerça
ou, ao menos, arroga-se como a cultura de liberdade.
De fato, esse caminhar não é absolutamente unidimensional, plano, chato,
ininterrupto, tampouco, precisamente lógico ou mecanicista. Pelo contrário, é
cheio de percalços, descontinuidades, fragmentações e, particularmente, de
possibilidades. Dessa maneira, é, possivelmente, mais bem compreendido desde
uma percepção de movimento não linear, mas dialeticamente, pendular476.
Além disso, ainda que, de algum modo, autores cheguem a falar em
constitucionalismo dos antigos e constitucionalismo medieval477, a constituição no

475
Falando, não propriamente, em cultura constitucional, mas da cultura da modernidade mais
amplamente: TAYLOR, Charles. Two Theories of Modernity. Public Culture, Durham, v. 11, n.
1, pp. 153-174, inverno 1999, p. 153: “The contemporary Atlantic world is seen as a culture (or a
group of closely related cultures) with its own specific understandings of, for example, person,
nature, and the good”. Mais que isso, para TAYLOR, a cultura da modernidade possui autonomia
em relação à cultura ocidental que a antecede, sendo-lhe tributária, entretanto, diferenciada.
476
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., pp. 21 e ss.: “Identificamos na
história ocidental uma tensão permanente entre a matéria em dionisíaca ebulição e a forma
apolineamente forjada. O mudo grego, assim legou-nos o olhar sobre o poder, pólis, a
democracia; já Roma, com o poderoso racionalismo estoico (apolítico), descobre a pessoa e o
direito. O medievo, alienação do Espírito, é todo ele dionisíaco, soturno, imerso em trevas das
quais emerge o poder absoluto da Igreja, e a seguir o absolutismo do Estado Moderno. O Estado
liberal de Direito é reação do apolíneo, com a formalização das liberdades e o cerceamento do
poder; o Estado social é o retorno dionisíaco, e por vezes barrocamente contraditório, do poder,
ora mais, ora menos embriagado de si. Para onde oscilará o pêndulo da história? Será o Estado
democrático de Direito a síntese, já em Nietzsche ansiada, das forças e desejos que movem o
homem e seu mundo?”, pp. 22 e 23.
477
Falando em constitucionalismo antigo e constitucionalismo moderno: CANOTILHO, J. J.
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 51 e ss.; FIORAVANTI, por sua
vez, fala não exatamente em constitucionalismo antigo, medieval e moderno, mas sim, em
Constituição dos antigos, Constituição medieval e Constituição dos modernos: FIORAVANTI,
177
sentido em que a compreendemos e a pretendemos, é uma construção
notadamente ligada ao Estado moderno e, mais propriamente, filha das
transformações e revoluções político-sociais dos séculos XVII e XVIII, deste em
especial478.
É inevitável reconhecer a modernidade como filha da(s) cultura(s) pré-
moderna(s) do Ocidente e que mesmo no processo de negação dessa(s) cultura(s)
pré-moderna(s), ela(s) está(ão) suprassumida(s) como parte própria e inevitável da
cultura que as nega479.

Maurizio. Constitucionalismo: experiencias históricas y tendências actuales. Madri: Editorial


Trotta, 2014, p. 17; ao passo que BARACHO faz um levantamento do significado de constituição
desde a Politeia grega até o Constitucionalismo contemporâneo: BARACHO, José Alfredo de
Oliveira. Teoria geral do Constitucionalismo, op. cit. Em que pese esses autores fazerem, de
formas diferentes, menção ao termo constitucionalismo e/ou constituição em momentos
anteriores à modernidade, o fazem, em todos os casos acima, em referência comparativa e por
oposição expressa ao conceito de constitucionalismo enquanto moderno, este entendido como
constitucionalismo por excelência. DALMO DALLARI, entretanto, trata mais detidamente do
constitucionalismo medieval, inclusive alegando que “o constitucionalismo nasceu durante as
disputas medievais pelo predomínio sobre terras e populações, com a afirmação de lideranças e
costumes próprios de cada região” e destacando a relação entre o absolutismo e o
constitucionalismo, DALLARI, Dalmo. A constituição na via dos povos, cit., pp. 51 e ss.
Também tratando de constitucionalismo antigo e constitucionalismo moderno vê-se MANOEL
GONÇALVES FERREIRA FILHO, na linha de MCILWAIN, entendendo que: “o constitucionalismo
não se reduz ao projeto de implantação, e toda parte, de Constituições escritas, que a história
mostra haver nascido no século XVIII. Significa a busca da limitação do poder. Deste modo,
como Mc Ilwain ensina, teria havido um constitucionalismo ‘antigo’ que o século das luzes
substitui por um constitucionalismo ‘moderno’”, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.
Princípios Fundamentais do direito constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 3; além do
próprio MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: Ancient and Modern. 2ed. Ithaca:
Cornwell University Press, 1947. Aprofundando as chaves iurisdictio e gubernaculum levantadas
por MCILWAIN, é interessante o desenvolvimento de LA TORRE, Massimo. Constitutionalism
and legal reasoning. Dordrecht: Springer, 2007.
478
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., p. 44: “O ponto culminante de
viragem é a Revolução Francesa (1789 – 1799), mas não pouca importância assumem nessa
mudança a Inglaterra (onde a evolução se desencadeia um século antes e onde se inicia a
‘Revolução industrial’), e os Estados Unidos (com a primeira ou, olhando às colónias de que se
formou, com as primeiras Constituições escritas em sentido moderno). A expressão ‘Estado
constitucional’ parece ser de origem francesa, a expressão ‘governo representativo’ de origem
anglo-saxónica e a expressão ‘Estado de Direito’ de origem alemã. A variedade de qualificativos
inculca de per si, a diversidade de contribuições, bem como de acentos tónicos”.
479
Tratando do conceito de humano como autoconstrução, desde uma perspectiva filosófica no
mundo grego: COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa, cit.,
especialmente, pp. 93-189. Fazendo uma reconstrução da dignidade da pessoa humana desde a
antiguidade: OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais I, cit. Falando mais
detidamente da contribuição do medievo: SALGADO, Karine. A filosofia da dignidade humana:
a contribuição do alto medievo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009; SALGADO, Karine. A
filosofia da dignidade humana: por que a essência não chegou ao conceito? Belo Horizonte:
Mandamentos, 2011. Abordando a questão de forma mais ampla e global: COMPARATO,
178
De fato, a modernidade é um período de significativa mudança de curso
histórico-cultural das relações jurídico-políticas: quanto à forma, quanto ao
conteúdo e organização do Estado, quanto à compreensão da legitimidade, bem
como, quanto à fundamentação do poder. É nessa esteira que o conceito de
constituição aqui é considerado como necessariamente vinculado ao
constitucionalismo (moderno) propriamente dito480, portanto, a uma tradição
específica que se desenvolve no seio da civilização ocidental481; forma de
organização política que se pretende legítima, porque vinculada a uma cultura e
identidade política específica e, nela, normativamente justificada.
Com isso, já é possível apontar a um primeiro aspecto de um conceito de
Constituição que parece adequado, qual seja, o de que não se pode desvincular
sua pretensão de legitimidade/validade, de sua forma e estrutura propriamente
ditas. Não nos parece possível entender a Constituição, simplesmente, desde uma
estrutura formalista, tão somente como uma norma hierarquicamente superior,
compreendida em razão de uma lógica pretensamente formal e neutra.
Pelo contrário, a Constituição é uma unidade cultural – jurídico-política por
excelência – em que forma e conteúdo necessariamente se implicam. Mais que
isso, não seria demais afirmar que a própria visão mecanicista, fabril, tecnicista,
geométrica de constituição que o positivismo formalista constrói particularmente
desde o século XIX, por exemplo, parte de pressupostos epistemológicos e de

Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
480
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do Constitucionalismo, op. cit.;
FIORAVANTI, Maurizio, Constitucionalismo, cit.
481
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição: da fundamentação da
validade do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 582: “não propomos um
qualquer ‘conceito neutro’ de Direito Constitucional. Antes o procuramos apreender enquanto
realidade normativa que nuclearmente identifica as experiências políticas vividas neste nosso
quadrante cultura, neste nosso momento histórico. De resto, um qualquer ‘conceito neutro’ de
Direito Constitucional (...) construído a pretexto de um não ‘eurocentrismo’ ou de uma maior
abrangência ‘científica’, deixará necessariamente por apreender o que o Direito Constitucional é
no contemporâneo quadrante ocidental”.

179
razões de pensamento, eles mesmos, bastante implicados e comprometidos com
uma perspectiva ideológica muito específica e, em alguma medida, datada482.
Como já dito, parece inevitável entender, com HERMANN HELLER, que
aquele que observa o Estado e o analisa não pode pretender-se, a si mesmo, fora
desta realidade, mas nela imerso. Afinal, todo o conhecimento sobre o Estado e,
consequentemente, sobre a Constituição, tem como pressuposto o fato de a vida
estatal sempre incluir quem a investiga, portanto, que o investigador sempre está
nela inserido de modo existencial e, até por isso, não tem o poder de abandoná-
la483.
Por conseguinte, a constituição – assim como o próprio Direito
Constitucional e a Teoria da Constituição – nunca poderá ser entendida de forma
estritamente técnica ou neutra, justamente porque essencialmente política
(jurídico-política, para ser mais preciso). Não parece haver sentido compreendê-la
de modo apartado da realidade ou da normalidade em que se coloca e se faz viva,
uma vez que a Constituição está situada, por excelência, no próprio processo
político484. Tampouco poderá ser compreendida desde uma mera situação fática de
poder relativamente permanente, sem considerar que o Direito cria poder tanto
quanto o poder cria Direito485.
Existe, portanto, uma relação dinâmica, dialógica e dialética, entre jurídico
e político, entre Direito e poder, mas também, entre constituição posta e o corpo
de prescrições normativas da cultura do constitucionalismo486. É próprio dessa
cultura constitucional não ser estática ou estagnada, mera ordem concreta, mas
viva em uma relação na qual se embatem e, simultaneamente, se articulam,
realidade e norma, político e jurídico, ser e dever ser.

482
LUCAS VERDÚ, Pablo. La teoría escalonada del ordenamiento jurídico de Hans Kelsen como
hipótesis cultural, comparada con la tesis de Paul Schrecker sobre «la estructura de la
civilización». Revista de Estudios Políticos, Madri, n. 66, pp. 7-65, out./dez. 1989.
483
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 48.
484
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 14 e 15. Nesse sentido, também,
OTERO, Paulo Instituições políticas e Constitucionais, cit., p. 16.
485
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 350-351: “toda teoría que prescinda da
alternativa derecho o poder, norma o voluntad, objetividad o subjetividad, desconoce la realidad
estatal y es, por eso, falsa ya en su punto de partida”.
486
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 41-45.

180
Por conseguinte, do mesmo modo que HELLER não aceitava a formulação
de KELSEN que afirmava ser todo Estado um Estado de Direito487, nos parece
menos ainda possível dizer que todo Estado é um Estado Constitucional, portanto,
que todo Estado possui uma constituição488.
Um Estado Constitucional é, por definição, um Estado que se pretende
legitimado em bases materiais produzidas, informadas e dialogadas, em uma
determinada cultura, por conseguinte, justificado em um projeto político-cultural.
É assim que coloca MÜLLER, quando diz que se “não importassem os conteúdos
da ação estatal considerada ‘legítima’, ‘Constituição’ não seria um conceito
jurídico, mas apenas um suporte fático existencial, apenas ‘vontade’ e ‘decisão’”489.
De modo similar, DIETER GRIMM aponta como um dos aspectos imprescindíveis
da constituição normativa o fato de que aquilo que configura uma constituição não
é propriamente seu objeto, mas as premissas das decisões políticas490.

487
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura?, op. cit., pp. 124. Parece, também, ser
possível dizer, nesse sentido, com MÜLLER: “A questão aqui examinada é de teoria constitucional.
Esta não precisa – por assim dizer como Teoria Especial do Estado Constitucional moderno –
restringir-se incondicionalmente a um ordenamento constitucional individual. Com as fontes
materiais da história do direito e do Direito Comparado, ela pode chegar também a uma teoria
estrutural tipológica, cujo cerne, que pode ser circunscrito tem termos de conteúdo,
necessariamente não seria mais normativo no âmbito interno das constituições individuais
vigentes do grupo de países”, MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do
Povo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 120.
488
Assim, HÄBERLE define peremptoriamente: “entendemos por Estado constitucional la
comunidad política que encuentra su fundamento antropológico-cultural en la dignidad del
hombre, como decía E. Kant, y que, en la democracia pluralista, encuentra su estructura
organizativa”, HÄBERLE, Peter. La constitución como cultura. Anuario Iberoamericano de
Justicia Constitucional, cit., p. 178. E ainda: HÄBERLE, Peter. Constituição – Cultura –
Previsões Relativas a Deus. In: TORRES, Ricardo Lobo; BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula
(org.). Estudos de Direito Público e Filosofia do Direito: um diálogo entre Brasil e Alemanha.
Rio de Janeiro: Renovar, 2011, pp. 249-262: “O ‘tipo Estado Constitucional’, uma realização
cultural de muitos séculos e reunião de textos clássicos de Aristóteles que passa por Montesquieu
e Rousseau, Federalist Papers (1787) e ‘Princípio da Responsabilidade’ de H. Jonas do Direito
Ambiental, é encontrado em muitas variações (nacionais), mas é apresentado também como
‘tipicamente ideal’: como os direitos humanos que, em seus fundamentos e elementos, cada vez
mais se diferenciaram quanto aos temas e às suas dimensões (p. ex: direitos dos deficientes);
como uma realização da democracia de partidos (pluralistas); da divisão dos poderes; da
identidade (nesse sentido, artigos acerca dos símbolos do Estado, como bandeiras); dos objetivos
do Estado, como o Estado de Direito, Estado Social, Estado Cultural e nos últimos tempos,
Estado Ambiental; também frequentemente Estado como classificação de poderes (federalismo e
regionalismo)”.
489
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 114.
490
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales, cit., p. 32, e segue:
“Ciertamente, el resultado depende de la medida en que las diferentes posiciones sean incluidas
181
É nessa esteira que insistimos que um conceito de constituição só pode ser
construído percebendo-se que a questão base de sua razão de ser é, justamente, a
preocupação com a legitimidade do poder, que se erige sobre bases (culturais)
originaria e eminentemente modernas. Estas, notadamente, a partir da segunda
metade do século XX, em seus textos normativos, reconhecem-se legítimas,
explicitamente, sobre uma igualdade fundamental de todos os homens em uma
humanidade comum, portanto, em indivíduos igualmente livres, ou seja: na
dignidade da pessoa humana. Por isso afirmar-se que o poder e o Direito, em seu
formato constitucional, legitimam-se em referência a um conceito normativo491.
No curso do primeiro século e meio do constitucionalismo, essa aspiração
foi sendo minada, deixada de lado e esquecida. O movimento de
dessubstancialização do conceito de constituição em escalada no caminho do
século XIX culminou em um desprendimento do conceito de constituição, da
original preocupação com essa legitimidade específica. Isso, de algum modo,
possibilitou ou, ao menos, contribui em grande parte para a instituição dos
regimes totalitários e ditatoriais que o século XX viveu.
É possível dizer que, na disputa do contexto weimariano, a fé vazia numa
nomocracia colaborou para que a confusão entre arbítrio e poder se
aprofundasse492. Weimar foi uma república sem republicanos, uma democracia
sem democratas, em que, curiosa e tragicamente, a norma pela norma e a forma
pela forma foram incapazes de dialogar com a realidade e com a legitimidade,

en el consenso: los sistemas políticos que reconocen la legitimidad de la pluralidad de opiniones e


intereses y, por tanto, pueden limitarse a la formulación de un consenso básico, parecen más
aptos para tener éxito que aquellos que pretenden legitimarse sobre la verdad y por ello buscan
un consenso total. Al poner en peligro el efecto legitimador, pacificador y estabilizador de la
constitución estos últimos se ven obligados a compensar el exiguo compromiso por medio de un
elevado grado de coacción”.
491
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade. In: BONAVIDES, Paulo. A
Constituição aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade. 3 ed. São Paulo: Malheiros,
2004, pp. 33-51, p. 50: “A legitimidade considerada pura legalidade ou pura aplicação
procedimental, conforme deflui, respectivamente, do decisionismo de Schmitt ou do formalismo
processualista de Luhmann, seria incompatível com a concretização de uma ordem jurídica
democrática, aberta, pluralista, atada a uma tábua consensual de valores com variações alternativas
ao exercício do poder por formações dispostas ao compromisso, ao respeito mútuo, à
preservação da identidade do regime”.
492
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p 115-117.

182
possibilitando a institucionalização do Terror que eliminou a própria forma
jurídica.
O Estado tornou-se um Behemoth, que, como no mito judaico, trabalhado
por HOBBES e relembrado por NEUMANN493, apresentava-se como um gigante
caótico, um monstro amorfo, cheio de normas e regulamentos, mas sem Direito,
sem ratio, só voluntas. Verdade que seria uma injustiça para com o normativismo
imputar-lhe a culpa por tal dilúvio. Aliás, como dito, o próprio KELSEN, era, ele
mesmo, um democrata e um liberal convicto, maximamente preocupado com a
tolerância. De mesmo modo, seria demais indicar que o frustrar da República de
Weimar e sua perversão foram decorrentes, apenas, do fracasso de suas estruturas
jurídico-constitucionais. Afinal, o Direito é cultura, mas não é toda ela. De toda
sorte, foi sobre o paradigmático e progressivo desprendimento entre a legitimação
do Estado e do Direito e a validade do Direito que, de certo modo, se alicerçaram
a maior parte das “justificações” dos regimes autocráticos dos novecentos494.
E foi sobre as cinzas, escombros e vidas desumanizadas que se iniciou
mais um fluxo da história do constitucionalismo e do Estado de Direito: o Estado
Democrático de Direito495. Ele não simplesmente refuta os paradigmas do Estado
Liberal de Direito ou do Estado Social de Direito, mas os suprassume, trazendo
consigo os direitos fundamentais individuais e políticos (de primeira geração), os
direitos fundamentais sociais (de segunda geração), agregando os direitos

493
NEUMANN, Franz. Behemoth, cit.
494
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade, op. cit., pp. 44-45: “Era o princípio da
legalidade radicalizado, servindo, como serviu, de veículo de destruição do próprio ordenamento
democrático-representativo, a saber, decretando o fim da República de Weimar, conforme
patenteou Schmitt. Tal destruição, segundo o mesmo autor, se fez por um partido que entrou
pela porta aberta da legalidade, mas logo fechou essa porta aos seus adversários e levou a cabo o
excêntrico modelo da ‘revolução legal’, cujos resultados catastróficos foram, como se sabe, o
advento do nacional-socialismo”.
495
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit. Há basicamente duas posições a
respeito do significado da expressão Estado Constitucional. Autores como JOSÉ LUIZ BORGES
HORTA e JORGE MIRANDA defendem que as expressões Estado de Direito e Estado
Constitucional são sinônimas. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição, cit., p. 33.
De forma diferente, outros, como CANOTILHO e ZAGREBELSKY, entendem o Estado
Constitucional como um Estado de Direito qualificado, relacionando-o ao Estado Democrático
de Direito, como suprassunção do Estado legal de Direito. Nesse contexto, destacam a íntima
relação entre Estado de Direito, democracia e supremacia da constituição. CANOTILHO, J. J.
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., passim. ZAGREBELSKY, Gustav.
El derecho dúctil: Ley, derechos y justicia. 10 ed. Madri: Trotta, 2011, pp. 21-45.

183
fundamentais difusos (de terceira geração)496, combinados a um movimento
tendente a, mais uma vez, ressubstancializar o conceito de constituição497. Agora,
explicitamente, em volta da ideia/parâmetro de dignidade humana.
Esse ponto de chegada – naturalmente, não definitivo, mas conceitual –
não estará distante dos fundamentos primeiros do constitucionalismo, muito pelo
contrário. É possível dizer que, ao menos no plano positivo-constitucional, os
ideais da revolução francesa, provavelmente, nunca estiveram tão em voga quanto
neste último momento do constitucionalismo498. É marca deste modelo o
reconhecimento da relação de complementariedade entre “liberdade, igualdade e
fraternidade” na experiência constitucional-democrática, implicando-se as três,
mútua e dialeticamente na construção de uma comunidade jurídico-política justa e
livre.
Uma liberdade parametrizada pela igualdade fundamental de todos em
uma humanidade comum499, uma igualdade comprometida com a liberdade de
cada um e de todos, logo, um sentimento de fraternidade constitucional existente
entre os cidadãos500. Esse é, ainda, o projeto político-cultural do constitucionalismo,
daquilo que FRIEDRICH MÜLLER vem a chamar de família constitucional501.
Dialético, inclusive, porque cultural; ou, pelo menos, justamente, por ser o projeto
de uma cultura de liberdade que, por isso mesmo, tem como característica básica a
dialeticidade e, também porque cultural, normativo.

496
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., pp. 217-233; HORTA, José
Luiz Borges. Hegel e o Estado de Direito. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz
Borges (coord.). Hegel, Liberdade e Estado. Belo Horizonte: Forum, 2010, pp. 247-264, p. 254.
497
LUCAS VERDÚ, Pablo. Reflexiones en torno y dentro del concepto de constitución, cit.,
passim.
498
Nesse sentido, não deixa de ser curioso a prescrição do art. 3º, I, da Constituição da República
Federativa do Brasil, que, ao mencionar os objetivos fundamentais da República, os inicia por:
“construir uma sociedade livre, justa e solidária”, reproduzindo, em outras palavras, mas não em
outra ordem, nem em outro sentido, a antiga tríade francesa: “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade”.
499
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 129-163.
500
HORTA, José Luiz Borges. La Era de la Justicia Derecho, Estado y límites a la emancipación
humana, a partir del contexto brasileño, op. cit., pp. 76-77.
501
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., em várias
passagens, como, por exemplo, nas pp. 54 e 118; MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?, cit., p.
41: “países pertencentes à ‘família constitucional’, i.e., aos países em conformidade ao Estado
democrático de Direito”.

184
Essa ressubstancialização, de algum modo, reputa-se ao conceito original
de constituição que, como dito, vincula-se basicamente à preocupação com a
legitimidade do poder. Ela ocorreu de forma clara e evidente no plano do direito
constitucional positivo desde a Lei Fundamental alemã de 1949502, bastante
influenciada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pensada como
resposta às atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Foi seguida pelos vários
países que passaram por processos de reconstitucionalização e redemocratização
na segunda metade do século XX, como foram os casos dos países ibéricos
(Portugal, em 1976503 e Espanha, em 1978504), do Leste europeu (incluindo aqui a
unificação alemã) e da América Latina, desde fins da década de 1980, no Brasil
em 1988505.
Nesse momento ocorreu uma virada na estrutura de gravitação jurídico-
política estatal, aquilo que JORGE MIRANDA vem a chamar de revolução
copernicana do Direito Público, quando se passa a identificar de forma patente e
decorrente da estrutura constitucional, a centralidade que tem a constituição na

502
Lei Fundamental da República Federal Alemã: “Art 1(1) Die Würde des Menschen ist
unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt”. A discussão
sobre a Lei Fundamental Alemã, seu valor simbólico e a relação que revela entre o trágico
passado nazista e o novo Estado Constitucional que se instala (recupera) é riquíssima e promoveu
muitos dos maiores debates sobre a forma política na segunda metade do século XX. A esse
respeito é importante o episódio conhecido como a disputa dos historiadores (Historikerstreit) da
segunda metade da década de 1980 na Alemanha, que tratava, especialmente sobre a forma como
a Alemanha e os alemães deveriam encarar o passado e o regime nazista. Antes mesmo disso,
JASPERS já trabalhava os conceitos de culpa coletiva e responsabilidade coletiva tratados em:
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt. 2 ed. Nova York: Fordham University Press,
2000. Encaminhando-se nesse sentido, também, ACKERMAN, por exemplo, destaca um caráter
muito particular ao novo começo alemão, que se formulou a partir de uma catastrophic defeat, ao
contrário do que mais corriqueiramente acontece, quando uma nova constituição geralmente se
ergue em um triumphalist scenario. ACKERMAN, Bruce, The Rise of World Constitutionalism,
op. cit.
503
Constituição da República Portuguesa: “Artigo 1º. Portugal é uma República soberana, baseada
na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária”.
504
Constituição Espanhola: “Preámbulo. La Nación española, deseando establecer la justicia, la
libertad y la seguridad y promover el bien de cuantos la integran, en uso de su soberanía,
proclama su voluntad de:(…) Promover el progreso de la cultura y de la economía para asegurar a
todos una digna calidad de vida”.
505
Constituição da República Federativa do Brasil: “Art. 1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa
humana”.

185
dinâmica normativa e estatal506. Foi também nesse sentido que CANOTILHO
desenvolveu seu conceito de Constituição dirigente como teoria social, vinculativa,
inclusive e especialmente, da atividade do legislador507.
Nessa ordem, a grande maioria dos textos constitucionais do entre nós
chamado Estado Democrático de Direito traz, expressamente, a dependência do
projeto constitucional ao valor da dignidade da pessoa humana, verdadeira
premissa antropológico-cultural do Estado Constitucional, nos termos de
HÄBERLE508. Premissa na qual se depositam as expectativas de legitimidade do
poder, que apontam para sua justificação, constituindo assim o traço definidor de
um Estado enquanto Estado Democrático de Direito, por conseguinte, de um
Estado que se pretende constitucional. Portanto, o próprio conceito de
constituição é um conceito normativo, cuja normatividade decorre da premissa em
que deposita suas expectativas de legitimidade e justificação. É, assim, um conceito
sem sentido se compreendido desde perspectivas formalistas, porque
substantivamente comprometido com esse fundamento de legitimidade, que é, ele
mesmo cultural.
Desse marco inicial típico do Estado constitucional, do homem com
dignidade, derivam-se: sua forma organizativa na democracia pluralista; uma série
de direitos fundamentais de liberdade e igualdade; os princípios de solidariedade e
de igualdade material que direcionam e apontam os fins do Estado social de
Direito; uma estrutura de limitação dos poderes509.

506
MIRANDA, Jorge. Controle da Constitucionalidade e Direitos Fundamentais. Revista da
EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 21, pp. 61-84, 2003, p. 65.
507
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit.
508
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., pp. 169 e ss.; HÄBERLE, Peter. El Estado
Constitucional Europeo. Cuestiones Constitucionales, México, n. 2, pp. 87-104, jan. 2000, pp. 92
e ss.; HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado Constitucional, cit., pp. 105 e ss.
509
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., p. 3: “El Estado constitucional de cuño
común europeo y atlántico se caracteriza por la dignidad humana como premisa antropológico-
cultural por la soberanía popular y la división de poderes, por los derechos fundamentales y la
tolerancia, por la pluralidad de los partidos y la independencia de los tribunales; hay buenas
razones entonces para caracterizarlo elogiosamente como democracia pluralista o como sociedad
abierta”. BARACHO sintetizará dizendo que: “entre os caracteres do constitucionalismo coloca-se
em primeiro lugar, como finalidade essencial, a preservação da dignidade da pessoa humana.
Com princípios, estão dois pressupostos fundamentais: o império da lei e a soberania do povo”,
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do Constitucionalismo, op. cit., p. 27.

186
Se, por um lado, o modelo social burguês não cumpriu suas promessas,
feitas ainda pelas revoluções setecentistas, mostrando-se incapaz de promover o
justo equilíbrio social esperado, embaraçando-se nas paradoxais amarras de um
liberalismo e nas limitações de uma igualdade puramente formal, por outro, o
discurso e o ideal revolucionário da modernidade (especialmente francês)
seguiram alicerçando o substrato de legitimidade e apontando à justificação e ao
projeto de Estado e de comunidade entendidos como justos.
Assim entende JOAQUIM CARLOS SALGADO, relacionando a unidade entre
o poder e a liberdade com a experiência da Revolução (francesa) e a ideia da
autonomia privada e pública no Estado Democrático de Direito510. Também
PETER HÄBERLE faz alusão explícita à relação entre o projeto do Estado
constitucional e a Revolução, intitulando uma de suas obras: “1789 como parte da
história, do presente e do futuro do Estado Constitucional”511. Vê-se também em
HELLER, cujo projeto buscava conciliar socialismo e democracia, que “la
reivindicación por el proletariado de una democracia social no significa otra cosa
que la extensión al orden del trabajo y de las mercancías de la idea del Estado
material de Derecho”512. Mesmo, dentro do marxismo, leituras como a de ERNST
BLOCH tendem a apontar a perenidade do ideal revolucionário513. E, ainda dentro
do campo da esquerda, FRANZ NEUMANN, jurista da Escola de Frankfurt,
identifica no próprio Estado de Direito a semente do projeto para a emancipação
do homem, apontando ser ele, não um impeditivo, mas um possível caminho,

510
SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético. Revista do Tribunal de
Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n.2, p. 03-34, 1998.
511
Essa é a tradução literal do título original em alemão: “1789 als Teil der Geschichte, Gegenwart
und Zukunft des Verfassungsstaates”. No entanto, a edição que tivemos acesso foi a tradução
castelhana, em que o título é um pouco diferente do original: HÄBERLE, Peter. Libertad,
igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madri:
Trotta, 1998.
512
HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura?, op. cit., p. 124, e segue,
imediatamente, na sequência: “dentro de la burguesía se ha perdido el nervio para dar nuevo
cumplimiento a su mandato histórico. La burguesía reniega de su propia esencia espiritual y se
entrega en brazos de un nuevo feudalismo irracionalista”.
513
BLOCH, Ernst. Upright Carriage, Concrete Utopia. In: BLOCH, Ernst. On Marx. Nova York:
Herder and Herder, 1971, pp. 159-173, pp. 168-170.
187
uma etapa possível, para a construção de uma sociedade livre para o ideal
socialista514.
De certa forma, debruçando-se mais detidamente sobre a experiência de
Constituição, GRIMM também constata que a situação especial que marcou o
constitucionalismo em fins do século XVIII, de algum modo, sobrevive ainda
como regra geral, o que significa que: não se pode reconhecer a nenhum sujeito o
poder em razão de uma qualquer origem divina ou, ainda, baseado em si mesmo.
Sobre isso, sustenta ser duvidoso verificar qualquer decadência iminente do
sentido da constituição normativa515. E é assim que a constituição, com sua forma
democrática, ainda hoje revela a dialética entre “poder e liberdade”516.
Há, portanto, uma identidade do constitucionalismo, que é (re)lida mais
amplamente a cada momento fundacional, quando se forma uma nova ordem
válida, mas, também, na amiúde vivência, leitura e releitura, concretização e
construção dessa identidade. Esse caminhar é a própria essência da cultura
constitucional, que com um sentido normativo, coloca-se sob as amarras do
constitucionalismo, sem, no entanto, sufocar os caminhos jurídico-políticos das
comunidades que as leem. Pelo contrário, tais amarras têm o condão de abrirem
possibilidades para o Político em termos democráticos, pois são, em última
instância, fórmulas de uma cultura que compreende a todos como igualmente
livres e que, por isso, assimilam e expõem uma lógica que pretende uma
514
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit.
515
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales, cit., p. 41: “Preguntarse por el
futuro de la constitución a la luz de esos datos significa, ante todo, deja constancia de que un
fenómeno nacido bajo determinadas condiciones históricas no puede sobrevivir a la supresión de
tales condiciones; si lo logra, es tan sólo al precio de quedar vacío de sentido. Con todo, es
dudoso que esta decadencia sea inminente para la constitución normativa: de hecho, en algún
aspecto la especial situación de las primeras constituciones se ha convertido hoy en regla. En
general, ya no se reconoce a sujeto alguno un derecho a ocupar el poder de origen divino o
basado en sí mismo”.
516
SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético. Revista do Tribunal de
Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n.2, p. 03-34, 1998: “O embate ‘poder
e liberdade’ tem dimensões bem diferentes na cultura ocidental, que é por excelência, ou pelo
menos assim se mostrou, uma cultura da liberdade ou que revela e realiza a liberdade, pois esses
dois termos aparecem no mundo ocidental não como oposições abstratas, mas dialéticas, isto é,
não cristalizadas e afastadas uma da outra, como incompatíveis, de modo a sujeitar o poder à
liberdade, mas como momentos que apontam um momento posterior e superior à sua oposição,
pela sua superação. O poder e a liberdade, após cumprirem uma trajetória de lutas na história do
ocidente surgem como faces de uma mesma realidade, o poder político na sua forma democrática
ou do Estado de Direito contemporâneo”.

188
comunidade baseada no pluralismo e, especialmente, no reconhecimento do eu e
do outro.

5.2. UMA APROXIMAÇÃO À QUESTÃO


QUESTÃO DA SOBERANIA
SOBERANIA

Em que pese ser o conceito de Constituição, como aqui tratado, um


conceito normativo em si, ele não pode ser colocado como desprendido de uma
necessária institucionalização. Uma ordem, enquanto jurídica, pretende-se objetiva
e válida, ou como afirma NELSON SALDANHA: “a ordem jurídica se estabiliza
dentro de uma sociedade ao assumir caráter ‘oficial’, ou institucional, isto é, ao ser
aceita como ordem, com suas sanções e sua legitimidade”517. Já HELLER e, antes
dele, ROUSSEAU, apontavam para a necessidade de se transformar normalidade
em normatividade, ou seja, para a necessidade de colocar-se o poder como poder
jurídico518.

517
SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 82.
518
De algum modo, no sentido de ROUSSEAU: “O mais forte nunca é bastante forte para ser
sempre o senhor, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever. Daí o direito
do mais forte, direito tomado aparentemente com ironia e na realidade estabelecido como
princípio. Mas será que um dia nos explicarão essa palavra? A força é um poder físico; não vejo
que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, e não de
vontade; é, quando muito, um ato de prudência. Em que sentido poderá constituir dever?
Suponhamos por um momento esse pretenso direito. Digo que dele só resulta um galimatias
inexplicável. Pois, tão logo seja a força que gera o direito, o efeito muda com a causa; toda força
que sobrepuja a primeira há de sucedê-la nesse direito. Tão logo se possa obedecer
impunemente, torna-se legítimo fazê-lo, e, como o mais forte sempre tem razão basta agir de
modo a ser o mais forte. Ora, o que é um direito que perece quando cessa a força? Se é preciso
obedecer pela força, não necessidade de obedecer por dever, e se, se já não se é forçado a
obedecer, também não já é obrigado a fazê-lo. Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescente à
força, não significa, aqui, absolutamente nada. Obedecei aos poderosos. Se isso quer dizer: ‘cedei
à força’, o preceito é bom, mas supérfluo; afirmo que jamais será violado. Todo poder vem de
Deus, reconheço-o, mas também todas as doenças. Significa isso que não se deva chamar o
médico? Quando um bandido me ataca num canto do bosque, não só preciso forçosamente
entregar-lhe a bolsa, mas também, caso pudesse salvá-la, estaria obrigado, em são consciência, a
entrega-la? Afinal, a pistola que ele empunha é também um poder. Convenhamos, pois, que a
forção não faz direito, e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos”, ROUSSEAU,
Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 4 ed., São Paulo: Martins Fontes,
2006, pp. 12 e 13. Também em: “Todo poder estatal, por necesidad existencial, tiene que aspirar
a ser poder jurídico; pero esto significa no solamente actuar como poder en sentido técnico-
jurídico, sino valer como autoridad legítima que obliga moralmente a lá voluntad”, HELLER,
Herman. Teoría del Estado, cit., p. 277

189
Não sendo a Constituição mera norma de hierarquia superior na pirâmide
do ordenamento jurídico, nem, de outro modo, simples decisão ex nihilo, é
importante constatar em que termos se dá essa passagem do discurso cultural-
constitucional ao poder estatal, e desse ao poder jurídico. Em que termos se
fundamentam a soberania e a construção dessa ordem que se pretende legítima e
que, sobre essa legitimidade, se justifica como válida.
Nesse contexto, uma constituição não deixa de ser um símbolo, colocando-
se como veículo de criação de sentido, que dá propósito e integração interpretativa
às ações da comunidade. Nessa esteira, VORLÄNDER aponta que as formas
simbólicas são responsáveis por transformar ideias fundamentais do político em
algo com finalidade e validade. E, nesses termos, o significado de uma constituição
como uma ordem simbólica coloca-se, menos em relação às funções normativas e
reguladoras do texto e mais vinculadas às ideias fundamentais da ordem e do
projeto político da comunidade, do fato deles estarem nela reconhecidos de modo
que se espera da Constituição uma função instrumental de guia519.
Vários são os arranjos institucionais e, mesmo, normativos, possíveis para
atender as exigências culturais de governo limitado, de Estado de Direito (em
sentido formal), de legalidade, de proteção aos direitos fundamentais, de
pluralismo e de democracia, característicos do constitucionalismo520. A leitura

519
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”?, op. cit., pp. 27-29. Vale a advertência
feita por GRIMM: “Constitution of this type are frequently called ‘symbolic constitutions.’
Symbolic constitution in this sense, however, should not be confused with symbolic effects of
normative constitutions”, GRIMM, Dieter. Integration by Constitution. International Journal of
Constitutional Law, Nova York, v. 3, ns. 2-3, pp. 193-208, mai. 2005, p. 199, nota 13. Apontando
a esse segundo sentido de constituição simbólica (melhor colocado seria constitucionalização
simbólica) o autor menciona trabalhos de MARCELO NEVES, particularmente, a versão em
alemão de: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3 ed. São Paulo: Marins Fontes,
2013. O próprio MARCELO NEVES faz menção à função simbólica inerente à constituição
normativa: “a função simbólica das ‘Constituições normativas’ está vinculada à sua relevância
jurídico-instrumental, isto é, a um amplo grau de concretização normativa generalizada das
disposições constitucionais. Além de servir de expressão simbólica da ‘consistência’, ‘liberdade’,
‘igualdade’, ‘participação’ etc. como elementos caracterizadores da ordem política fundada na
Constituição, é inegável que as ‘Constituições normativas’ implicam juridicamente um grau
elevado de direção da conduta em interferência intersubjetiva e de orientação das expectativas de
comportamento”, NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização
fática: mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder. Revista
de Informação Legislativa, Brasília, a. 33 n. 132 , pp. 321-330, out./dez. 1996, p. 325.
520
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 39-40: “There are, of
course, many different ways in which constitution makers may seek to fulfill the conditions for
190
dessas estruturas tem como marco inicial em uma ordem a fundação de sua
validade a partir de um momento constituinte.
Da questão cultural importa compreender que a ordem jurídico-política
típica do constitucionalismo implica em uma forma muito específica de Estado: o
Estado de Direito. Estado de Direito em sentido amplo, como o trabalhado por
JOSÉ LUIZ BORGES HORTA, já é presente também em HELLER, entendido não
apenas desde perspectiva formalista, típica do Rechtsstaat oitocentista, mas como
uma formulação cultural do Ocidente, correspondente ao modelo típico de
organização do poder e ordenação da liberdade521.
É marca desse modelo, próprio da cultura ocidental, a preocupação não
apenas com a validade e com a eficácia do ordenamento jurídico e da atuação
estatal, mas também, com sua legitimidade, seu fundamento. É nesse ponto que se
vê a relação íntima entre Estado de Direito, constituição e constitucionalismo522. E
é nesse contexto, também que subjaz a questão da soberania523.

emergence of a legitimate constitutional subject, but they all involve alienation of power and a
construction of self-identity dependent on the will and self-image of the other”.
521
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit.
522
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales, op. cit., p. 49: “la constitución
moderna fijaba en un documento con forma jurídica, con pretensión sistemática y exhaustiva, la
exigencia de cómo debía organizarse y ejercerse el poder estatal; de este modo la constitución se
hizo una con la ley que regulaba la organización y el ejercicio del poder del Estado. Ya no se
refería a la situación jurídicamente creada, sino a la norma creadora de aquélla: la constitución se
erigió así en concepto normativo. En este nuevo sentido, en modo alguno podía decirse que
todos los Estados tuvieran una. La existencia de un documento constitucional, que contuviera los
derechos fundamentales y la representación popular, se convirtió en la característica distintiva
para clasificar el poder estatal y la pregunta sobre si sólo podría pretender legitimidad un Estado
constitucional entendido en este sentido dominó a lo largo de todo siglo XIX”.
523
KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado: os fundamentos históricos da legitimidade
do Estado Constitucional Democrático. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Ed., 2009, p. 29:
“Dois conceitos formam a chave para a compreensão de quase todos os problemas da Teoria do
Estado relacionados com o Estado da Idade Moderna: o conceito de soberania e o conceito da
legitimidade. Numa primeira e provisória caracterização, a soberania está direcionada ao poder
de imposição do poder público, enquanto a legitimidade à questão da sua justificação. As duas
questões estão estreitamente interligadas e formam, de certa forma, a parte externa e a parte
interna do mesmo problema. Porque o poder de imposição do poder público só existe enquanto
vale como justificado – no mínimo pelos detentores do aparato estatal. Se o fundamento da
legitimidade do poder público está abalado, então surge a resistência passiva e ativa, a
desobediência jurídica, a sabotagem e, finalmente, a polarização total e a guerra civil, a qual
desemboca na sujeição de um partido ao outro e, portanto, no terror da guerra civil com forças
policiais. A soberania de um Estado depende de sua legitimidade e a legitimidade fundamenta a
sua soberania. Neste sentido, a questão da legitimidade é a parte interna da questão da
soberania”.

191
A discussão sobre a soberania é corrente na história jurídico-política
ocidental, especialmente, desde a fundação do Estado moderno, mas mesmo antes
dele. Essa preocupação se aprofunda e torna-se ainda mais intensa desde o
surgimento do constitucionalismo e, particularmente, dos fluxos e
desenvolvimentos do conceito moderno de democracia. Nesse sentido, KAHN
aponta que os dois principais movimentos para a acepção moderna do rule of law
são duas transformações culturais: a passagem de uma compreensão religiosa da
ordem política, para uma secular; e transformação de uma concepção monárquica
para uma popular de soberania524. Essa mesma afirmação faz sentido para o Estado
de Direito de tipo continental.
As posições existentes e as respostas dadas à questão são das mais variadas.
Elas não apenas alternam-se no tempo e nos diferentes momentos do Estado de
Direito, mas, inclusive, colocam-se enquanto muito dispares, mesmo dentre
aquelas apresentadas por autores que encararam e encaram as mesmas situações e
conjunturas. Veja-se, por exemplo, as discussões travadas em WEIMAR525.
Além disso, trata-se a soberania de questão complexa, assim como o
próprio Estado. Ela é pluridimensional e, por isso, BONAVIDES, por exemplo, vai
diferenciar a soberania do Estado da soberania no Estado. Enquanto a primeira
refere-se aos elementos característicos do poder estatal que permitem distingui-lo
dos outros poderes e instituições sociais, a segunda é referente à “determinação da
autoridade suprema no interior do Estado, na verificação hierárquica dos órgãos
da comunidade política e sobretudo na justificação da autoridade conferida ao
sujeito ou titular do poder supremo”526.
De algum modo, é também nesse sentido que KRIELE, ao mesmo tempo,
reconhece que há soberania jurídico-estatal no Estado constitucional e defende
que não há um soberano no Estado constitucional. Entende que, se por um lado,

524
KAHN, Paul W. The cultural study of Law, cit., p. 41. Rule of law para o autor tem um sentido
mais amplo, relacionando-o, mesmo como uma experiência cultural, aproximando-se da
construção do Estado de Direito. Nessa passagem, é curioso o fato dele expressar que uma das
falhas do pensamento de CARL SCHMITT foi a de perceber, apenas, uma dessas transformações
culturais.
525
CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law, cit.
526
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 137.

192
neste Estado os órgãos e o direito estatal apresentam-no como soberano face à
sociedade, por outro, afirma que nesse modelo não há qualquer sujeito que,
constitucionalmente, tenha poder ou palavra finais ilimitados. Para KRIELE, a
existência de um sujeito com essas características coloca em risco a própria
existência do Estado Constitucional527.
Assim, parece razoável tratar de pelo menos duas dimensões da soberania:
enquanto poder objetivo da organização estatal e como poder subjetivo sobre e/ou
na organização estatal528.
A dimensão relacionada ao poder objetivo da organização estatal, se coloca
na capacidade do Estado fazer-se soberano do ponto de vista social e fático
(objetivamente), logo, de atuar de modo eficaz impondo sua vontade. Trata-se,
portanto, da soberania do Estado em sua totalidade como unidade de ação e
decisão que resulta da própria natureza do poder social atuante interna e
externamente. Assim sendo, essa face corresponde à soberania como poder de
domínio (Herrschergewalt), qualidade que diferencia o poder do Estado de
qualquer outro poder na sociedade, no que, por vezes, é entendido como um dos
elementos (caracterizadores) do Estado529.

527
KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado, cit., p. 169-176. Como se verá, não se
concorda com KRIELE quando este entende que a democracia pressupõe o Estado constitucional,
no sentido de que, pressuponha suas amarras jurídicas, a separação dos poderes, os Direitos
Humanos, sendo juridicamente vinculada. Isso porque tal perspectiva que chega a uma resposta
estática e demiúrgica – tudo se inicia com o Estado constitucional – o que nos parece pouco
adequado para a compreensão dessa dinâmica.
528
HELLER dirá de três dimensões: a) à que diz respeito ao poder objetivo da organização estatal;
b) à que se refere ao poder subjetivo sobre a organização estatal; c) e a relacionada ao poder
subjetivo na organização estatal. Portanto, cindindo a questão do poder subjetivo no Estado da
questão do poder subjetivo sobre o Estado. HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 311.
529
GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1968, pp. 127 e ss.;
DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
72; BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Soberania. In: BARACHO, José
Alfredo de Oliveira; HORTA, José Luiz Borges (org.). Direito e Política: ensaios selecionados.
Florianópolis: Conpedi, 2015, pp. 72-207, pp. 108-109. Vale destacar a posição de JELLINEK,
autor original da teoria dos elementos do Estado. JELLINEK diferencia o poder de dominação
(Herrschergewalt) – auto-organização do poder de mando – da soberania. O faz entendendo o
primeiro como nota essencial de um Estado, sendo, portanto, constituído da capacidade de
organizar-se a si mesmo e de ter autonomia. Por sua parte, a soberania de um Estado seria
caracterizada pelo fato de não haver qualquer poder que se colocasse sobre si. Nesses termos, o
poder de dominação seria elemento necessário a um Estado, mas não a soberania: JELLINEK,
Georg. Teoria General del Estado. México: FCE, 2000, pp. 397 e ss. Essa construção se dá muito
em razão da conjuntura alemã da segunda metade do século XIX. A questão que se coloca diante
dessa formulação tem muito que ver com as preocupações com a unidade alemã em tensão com
193
Destarte, não parece compreensível um Estado que do ponto de vista
jurídico-político não possa colocar-se ou, ao menos, não pretenda colocar-se,
como unidade de ação e decisão capaz de fazer valer sua vontade perante a
sociedade e perante os demais Estados.
Um Estado tem de ser soberano, por definição. As normas de Direito
Internacional – ou, mesmo, as amarras do constitucionalismo que aqui tratamos –
fazem-se direito positivo, institucionalizadas e exigíveis coercitivamente, apenas
quando reconhecidas e cumpridas pelo Estado, a partir de uma decisão soberana
por ele emanada. Por um lado, essa decisão demanda justificação e fundamento
para que seja legítima, mas, por outro, faz-se válida apenas porque
institucionalizada de forma soberana e, com isso, portadora de pretensão de
eficácia. Portanto, em sua dimensão objetiva, a soberania estará relacionada,
especialmente, à capacidade de imposição (ação) da vontade (decisão) do Estado
(unidade) frente às forças sociais (internamente) e, mesmo, perante outros Estados
no plano internacional, nos limites de suas fronteiras (externamente).
Enquanto a primeira dimensão da soberania – como poder objetivo da
organização estatal – é elemento do Estado moderno sua face relacionada ao
poder subjetivo sobre e/ou no Estado revela-se ambígua. As diversas posições
tomadas sobre essa questão trabalham de forma diferente a temática, sem,

a pretensão de soberania dos Estados componentes da federação. A questão do federalismo


alemão sempre foi um tema muito delicado, até mesmo durante a República de Weimar, estando
presente nas preocupações de vários dos autores do Direito Público alemão desde fins do século
XIX, como LABAND, JELLINEK, ANSCHÜTZ, SMEND, dentre outros. Isso porque a unificação
capitaneada e fortemente centralizada pelo Reino da Prússia gerava grande tensão política e
jurídico-política, desafiando a própria unidade alemã, com especial cuidado à delicada e
simbólica questão da soberania. Nesse sentido, A. J. P. TAYLOR destaca que a Constituição de
Bismarck deveria ser federal, mas na verdade não passava de um federalismo fraudulento,
fazendo parecer a ditadura prussiana mais respeitável, TAYLOR, A. J. P. The Course of German
History: A survey of the development of German history since 1815. Taylor and Francis, e-
Library, 2005 (eBook), pp. 130 e ss. Para as tensões jurídico-políticas do constitucionalismo e da
soberania na Alemanha pré-weimariana: CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis
of german constitutional law:.., capítulo 1. Sob a influência de JELLINEK, CARRÉ DE MALBERG
faz distinção similar entre soberania e poder do Estado (puissance de l’État), sendo a primeira
entendida como a negação da subordinação e o segundo como o poder de dominação. Nesse
sentido, acompanhamos BERCOVICI que destaca, especialmente quanto à CARRÉ DE MALBERG,
que a distinção que este faz entre soberania e poder do Estado é vazia de qualquer conteúdo
concreto, restando estas duas figuras idênticas, BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição,
cit., p. 264, nota 147.

194
necessariamente, atentar a uma demanda anterior que parece fundamental: qual a
pergunta a se fazer a respeito da soberania?
Em outras palavras, parece acertado identificar que as diversas definições
que são apresentadas à temática muitas vezes podem ser mais bem diferenciadas,
não exatamente, pelas respostas oferecidas, mas pelas perguntas que são feitas a
respeito do tema: “quem é o soberano?” ou “quem deve ser o soberano?”.
Essas duas perguntas são subjacentes à vida jurídico-política do Estado de
Direito, entretanto, não coincidem e, apesar de relacionadas, caminham, quando
muito, em constante tensão e diálogo. A conexão entre elas e o próprio conceito a
que fazem referência poderia ser colocada em outra questão: a soberania é mais
bem compreendida como uma norma ou como um fato?
A pergunta sobre “quem é o soberano” é ligada à facticidade do poder.
Diz respeito a quem efetivamente é capaz ou tem maior probabilidade de impor
sua vontade em uma relação social, ainda que contra resistências, independente de
qual seja o fundamento dessa capacidade/probabilidade. Assim sendo, entende-la
como pergunta de partida da soberania significa, em boa medida, procurar
responder sobre este ponto desde uma perspectiva positivista e/ou sociológica.
Neste sentido, também, essa é uma questão que pode ser colocada, quer no plano
supra/meta-estatal, quer no âmbito intra-estatal.
“Quem é o soberano?” é a pergunta que responde SCHMITT com a frase
que inicia seu Teologia Política: “Soberano é quem decide sobre o estado de
exceção”530. Esta não deixa de ser uma resposta positivista, uma vez que o próprio
SCHMITT descreve a soberania não como “la expresión adecuada de una realidad,
sino una fórmula, un signo, una señal”, logo, como algo que é simplesmente
constatado, caracterizado pela lei da causalidade531.

530
SCHMITT, Carl. Teologia Política: cuatro capítulos sobre lá doctrina de lá soberania. Madri:
Trotta, 2009, p. 13. Como já mencionado, é habitual do autor iniciar a obra com uma frase de
efeito, como que com um aforismo. O faz assim peremptoriamente, entretanto, mais a frente, na
mesma obra, quando reconhece: “La unión del poder supremo fáctico y jurídico es el problema
cardinal del concepto de lá soberanía. He ahí toda su dificultad, y la cuestión estriba en formular
una definición que aprehenda este concepto fundamental de la jurisprudencia sin valerse de
predicados tautológicos generales y precise sus líneas esenciales desde el punto de vista jurídico”,
p. 22.
531
SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p. 22.

195
Ao recorrer ao estado de exceção, também põe suas bases de definição da
soberania sobre uma indeterminação, pois, para ele, o que caracteriza o soberano
é sua possibilidade de suspender a vigência regular da própria norma e instaurar
um estado de exceção532 ao mesmo tempo em que “a competência do soberano
depende da sua capacidade de se impor no estado de exceção e instaurar um
quadro de normalidade”533. Logo, a norma válida é aquela que é decidida pelo
soberano e soberano é o poder de decisão que subjaz à própria validade da
norma, dando-lhe sustentação.
Essa perspectiva não está preocupada, ao menos a princípio, com o projeto
que se pretende justificado e legitimado nos termos da cultura do
constitucionalismo, com sua concepção específica de humano e, de algum modo,
com o soberano que lhe é próprio.
SCHMITT, especialmente em seu Teologia Política, sustenta que o soberano
é alguém que pode ser identificado, não normativamente, mas faticamente a partir
da marca “decidir sobre o Estado de exceção”, portanto, independentemente de
justificativa ou justificação em respeito à “legitimidade” dessa decisão. Quando
muito, sua visão estará comprometida com a “fundamentação” do poder/soberania
em uma, qualquer, ordem concreta534, mas não exatamente em um parâmetro
normativo relacionado ao pluralismo, ao reconhecimento e à igual liberdade dos
indivíduos.

532
SÁ, Alexandre Franco de. O Ficcionalismo na emergência do decisionismo schmittiano. In:
MORAIS, Carlos Blanco de; COUTINHO, Luís Pedro Pereira (org.). Carl Schmitt Revisitado.
Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Político, 2014, p. 14.
533
ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Carl Schmitt, op. cit.,
p. 240.
534
A esse respeito são interessantes as observações de RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR a
respeito do decisionismo mitigado que SCHMITT adota na década de 1930 em oposição ao
ocasionalismo de seu pensamento em anos anteriores. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto.
Constituição, soberania e ditadura em Carl Schmitt. Lua Nova, São Paulo, n. 42, pp. 119-144,
1997. Também não deixa de ser interessante a já mencionada observação de HELLER a respeito
da contradição do pensamento de SCHMITT em seu Teoría da Constituição: “Contradiciendo sus
propios supuestos, dice C. Schmitt que a toda Constitución existente hay que atribuirle la
legitimidad, pero que una Constitución, sin embargo, sólo es legítima, ‘es decir, reconocida no
sólo como situación de hecho sino también como ordenación jurídica, cuando se reconoce el
poder y (!) la autoridad del poder constituyente en cuya decisión ella se apoya’”, HELLER,
Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 352-353.

196
Outra resposta possível à pergunta sobre “quem é o soberano?” pode ser
respondida não exatamente por quem fática e eficazmente é o soberano, mas por
quem validamente é reconhecido como soberano na ordem jurídico-política. Esse
parece ser um salto importante da cultura constitucional, isso porque o soberano
que necessária e validamente deve ser reconhecido em um Estado que se pretende
constitucional tem de coincidir com o mesmo que responde à questão da
legitimidade da soberania. Quanto a isso, a identidade do constitucionalismo traz
como uma de suas faces inarredáveis a soberania popular, expressão de uma
cosmovisão que reconhece a todo e qualquer cidadão igual dignidade.
É elemento essencialmente caracterizador de um Estado Democrático de
Direito o reconhecimento do povo enquanto soberano. E é nessa medida que a
questão sobre “quem é o soberano?” toca outra que diz respeito a “quem deve ser
o soberano?”. Esta, relacionada à legitimidade que, como dito, em um Estado
Democrático de Direito, é respondida pela adjetivação da soberania enquanto
popular. Dizer dela é tratar de um conceito que se divide entre as dimensões da
validade (soberania) e da legitimidade (popular).
Fundamentar o poder em alusão ao povo é uma afirmação cultural –
política, inclusive, porque cultural (Cultural is Political)535 – que, assim, se coloca
enquanto prescritivo-normativa. Isso porque o poder do povo não se faz de modo
necessário, fática e eficazmente, irresistível em um Estado constitucional, mas, se
coloca, de forma inexorável, como dever ser de uma ordem que se pretende
legítima porque fundamentada em referência aos parâmetros da cultura do
constitucionalismo.
Dito de outro modo, o poder do povo não é um dado a ser descrito, mas
algo que efetivamente é produto de uma cultura, portanto, normativo, produzido e
posto por uma cultura específica: a cultura do constitucionalismo. É um dever ser
que, em maior ou menor medida, sempre está em constante risco de não vir a ser,
isto é, de não se tornar um ser na realidade social apresentando-se como

535
MAYOS SOLSONA, Gonçal. 'Cultural is Political'. Libertad y reconocimiento culturales. In:
Actas de las Jornadas de Filosofía sobre la Libertad. Disponível em: http://www.ub.edu/filosofia-
estetica-cultura/sobrelalibertad/goncalmayos.html

197
“prescrição ineficaz”. A luta quanto a isso é política e não deixa de ser nesse
sentido que BONAVIDES clama por uma repolitização da legitimidade536.
O alicerce dessa fundamentação decorre, enquanto dever ser, de um valor
específico dessa cultura do Ocidente, da visão de que há uma igualdade
fundamental de todos em uma humanidade comum – não uma igualdade
substantiva ou excludente, mas uma igualdade em liberdade, ética – portanto, de
uma premissa cultural-identitária que ao mesmo tempo “descreve” e “conforma” o
humano nos moldes como ele é entendido por essa cultura537. Assim sendo, aos
olhos de uma mundividência específica, de uma premissa antropológico-cultural
de igual dignidade538. Nesses termos, trata-se de um valor que se pretende no plano
do ser, enquanto descrição da “natureza humana”, mas que, como valor, importa
em uma proposição deontológica de que se reconheça a todos, e que todos os
indivíduos reconheçam-se entre si, nessa igualdade fundamental. Assim, que sejam
tidos em igual medida para a constituição da comunidade política que, ao mesmo
tempo, constituem e lhes constituem, integram e são integrados.
Nessa ordem, a soberania popular é expressão da concepção, originalmente
rousseauniana, de que, sendo todos igualmente livres, ninguém deve obedecer a
ninguém além de si mesmo. Essa ideia foi relida e retomada por muitos autores
como KANT, KELSEN e tantos outros, contudo, em ROUSSEAU ela guarda uma
peculiaridade que parece fundamental, que muitas vezes passa ao largo. Para ele,
se por um lado, o cidadão é livre na medida em que obedece a ninguém mais que
a si mesmo – portanto, à vontade geral – por outro, a vontade geral não se
confunde com a vontade de todos. Ela não corresponde à soma aritmética das
vontades individuais, mas coloca-se no parâmetro de bem compartilhado pelos
536
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade, op. cit.
537
Efetivamente, não descreve um dado natural, mas, na verdade, uma percepção, ela mesma
cultural, em boa medida, “naturalizada”. Nessa linha já se vê em MIGUEL REALE: “Por outras
palavras, se assiste razão a Ortega y Gasset quando diz que ‘eu sou eu e a minha circunstância’, a
começar pela circunstancialidade estrutural do sujeito que conhece, não há como não reconhecer
que o ‘paradigma cultural’ – dado seu caráter universal – também se põe como valor
transcendental no ato de conhecer, acrescentando algo de novo aos elementos até agora
estudados. Por outras liberdades, a questão do conhecimento não pode se reduzir a uma relação
puramente lógica entre ser cognoscente e realidade cognoscível, porquanto um e outra se situam
ab initio em um contexto cultural, alargando-se, desse modo, o espectro da transcendentalidade”,
REALE, Miguel. Cinco temas do Culturalismo. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000, p. 28.
538
HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado Constitucional, cit., p. 106.

198
cidadãos, latente no corpo social539. Como afirma PEREIRA COUTINHO: “o que está
fundamentalmente em causa, em Rousseau, é ‘encontrar uma forma de associação
que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada
associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, contudo, senão a
si mesmo’”540.
Nesse contexto, já está em ROUSSEAU – em que pesem leituras totalizantes
que lhes foram feitas – a questão da individualidade frente à coletividade. Ela não
se apresenta, exatamente, no sentido da individualidade colocar-se em oposição à
própria vontade geral, mas, inclusive, como elemento próprio e necessário dela541.
A vontade geral rousseauniana revela que a soberania está no povo, expressa na
vontade geral, que, por sua vez, está na comunhão dos cidadãos enquanto
coletividade, mas também em cada um enquanto igual.
Nesses termos, já em ROUSSEAU, a soberania não está abaixo, nem acima
do povo. Entender a soberania enquanto soberania popular significa compreender
que o poder da comunidade jurídico-política deve ser reportado ao povo e
percebido como pertencente a ele, em sua totalidade e em cada um de seus
integrantes. Só assim esse poder será legítimo542.

539
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social, cit., p. 48: “Como uma multidão cega que
muitas vezes não sabe o que quer, porque raramente sabe o que lhe convém, levará a bom termo
uma empresa tão grande e difícil como o é um sistema de legislação? O povo, por si, quer
sempre o bem, mas nem sempre o reconhece por si só. A vontade geral é sempre reta, mas o
julgamento que a guia nem sempre é esclarecido. É necessário que veja os objetos tais como são,
às vezes tais como lhe devem parecer, mostra-lhe o bom caminho que procura preservá-la da
sedução das vontades particulares”.
540
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade moral da Constituição, cit., pp. 351-352, e
segue: “Não obedeça, contudo, ‘senão a si mesmo’ porque terá interiorizado, reconhecido, a sua
condição não escrava de igual, reconhecendo a todos os outros correspondente condição –
consequentemente, reconhecendo como válidas as normas que reflictam a igualdade fundamental
de todos, que assim traduzam a defesa comum da ‘pessoa’ e dos ‘bens de cada associado’”.
541
N’O contrato social essa questão coloca-se exemplarmente quando o autor trata da tolerância
religiosa. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social, cit., pp. 165 e ss.
542
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade moral da Constituição, cit., p. 359: “ROUSSEAU
plenamente compreende na sua dinâmica realidade vivida, será, pois, num ‘acto fundacional
renovado a cada momento’ ou ‘vontade geral’ (uma ‘vontade geral’ que o seja ‘verdadeiramente’
porque integrada por homens que auto e mutuamente se reconhecem na sua condição não
escrava de iguais, continuamente se projectando na normatividade a que se subordinam e que
reflecte o seu compromisso) que se encontrará verdadeiramente o fundamento último de
validade de uma ordem de Direito, desde logo de Direito Constitucional”.

199
Trata-se de uma justificação – ainda que normativa – imanente, não
transcendente543. Isso porque a cultura constitucional, em seu parâmetro normativo
realizado na premissa de igual dignidade, não é externa ao indivíduo, sendo-lhe, na
verdade, própria. Como cultural, ela, a um só passo, nos é mediata, porque
normativo-prescritiva (onde mora sua objetividade) e imediata porque dinâmica e
dialética (no que se relativiza essa objetividade). Assim, não chega a ser uma fonte
de fundamentação heterônoma à própria ordem ou a seus indivíduos, mas
autônoma na medida em que é algo que lhes é próprio enquanto componente
constitutivo de sua particular identidade e mundividência.
Nesse sentido, HELLER aponta que apenas uma profunda incompreensão
do conceito de soberania em JEAN BODIN explica a ideia de conceber a soberania
do Estado como pura questão de fato, como muitas vezes lhe é imputado. Para
HELLER, BODIN reconhecera que o problema da soberania é o problema
normativo fundamental, uma vez que expressa a relação entre norma e
individualidade, não sendo o soberano, de forma alguma, ilimitado544. Ele é
limitado por uma normatividade que lhe é acessível imediatamente na cultura,
portanto, mediatamente conformada e construída no processo histórico-cultural,
em termos de uma objetividade relativa.
Será também nesse sentido que FRANZ NEUMANN diferencia o sentido
jurídico e o sentido sociológico de soberania. Juridicamente, considera que uma
instituição pode ser considerada soberana quando possui o poder não delegado ou
ilimitado para emitir normas gerais e comandos individuais. Já em sentido
sociológico, soberana é a instituição que, para além desses direitos jurídicos, tem
também a habilidade de sustentar as normas e os comandos individuais emitidos
543
Nesse ponto, discordamos de PEREIRA COUTINHO, que encontra no argumento de
ROUSSEAU, sim, um argumento de transcendência: COUTINHO, Luís Pedro Pereira.
Autoridade moral da Constituição, cit., pp. 369-375.
544
HELLER, Hermann. La Soberanía: contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del
Derecho Internacional. México: UNAM, 1965, p. 82. Afirma isso, não sem antes, ironicamente,
mencionar à página 79: “Conviene, antes de intentar justificarnos o confesar nuestro pecado,
entendernos acerca del contenido de la doctrina de la soberanía de Bodino, pues me parece que
muchos de los que hablan de él, en verdad no saben con certeza qué es lo que Bodino enseñó;
quién alguna vez haya comprado los juicios emitidos sobre Bodino y las citas tomadas de su obra,
tendrá que convenir que este ilustre teórico del estado pertenece al grupo de autores más
frecuentemente citados, pero menos leídos”; COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade
Moral da Constituição, cit., p. 369.

200
através desses direitos. Sendo assim, a soberania em sentido sociológico abrange
um elemento jurídico e um elemento de poder. Em decorrência dessa
diferenciação, NEUMANN também acaba por apresentar duas noções de Direito,
uma política e outra material. A primeira é maximamente realizada na percepção
hobbesiana, satisfeita pelo fato de qualquer norma geral ou comando individual
imputável ao Estado, justo ou injusto, ser considerado Direito. Afirma que, nesses
termos, se poderia considerar que: “toda decisão do órgão soberano do Estado é
lei. A lei, portanto, é apenas voluntas e não ratio. Destituída de todas as qualidades
materiais”, dessa maneira, “o direito nada mais é senão a vontade do Estado em
forma jurídica”, e é só nesse domínio que a soberania pode ser tida como
absoluta545.
Destaca, no entanto, que o “postulado da soberania absoluta” é antagônico
à perspectiva do “império dos direitos materiais”, na medida em que define o
direito material na situação em que as normas do Estado são compatíveis com os
postulados éticos definidos, “a partir do momento em que a essência das normas é
o princípio racional (logos) que as engloba. Elas devem sua autoridade apenas a
isto”. No que conclui que “o direito material e a soberania absoluta são, de uma
forma clara, mutuamente excludentes”546.
Há, portanto, algo de especial na questão da soberania, pois é justamente
no momento em que seu aspecto normativo-prescritivo (cultural) justificador
coincide com seu aspecto fático (fazer-se soberano) que se tocam legitimidade e
validade. O Estado e o Direito vivem de sua justificação, mas fazem-se vivos na sua
eficácia que só é possível no comando do Direito válido. O Direito válido
depende, necessariamente, da racionalização e institucionalização de uma norma
que se pretende legítima por uma vontade (faticamente) soberana.
Em um Estado que se quer constitucional, a facticidade dessa vontade
(institucional) soberana tem de estar aliada a sua própria justificação (ética) na

545
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., pp. 97-98: “O império da noção política de
direito e a existência da soberania absoluta do Estado são na realidade duas diferentes expressões
para uma e mesma coisa”.
546
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., pp. 69-71; 97-100.

201
liberdade da cada cidadão. E é nessa dupla dimensão da soberania – justificada e
de fato – que repousa o diálogo, necessário, entre legitimidade e validade.
De tal modo, o fundamento da validade, no locus limite que é o da
soberania, é político sem deixar de ser jurídico: é constitucional e, assim, jurídico-
político por excelência.

202
CAPÍTULO 6
DO CONSTITUCIONALISMO À IDENTIDADE CONSTITUCIONAL
CONSTITUCIONAL: O QUE
CONSTITUI O PODER CONSTITUINTE

A cultura do constitucionalismo ao mesmo tempo em que informa, é


informada pelas várias leituras que lhe são feitas a partir da articulação dessa
identidade mais ampla com as culturas específicas sobre a qual ela opera. A
passagem da identidade do constitucionalismo à identidade constitucional
(particular) se dá por um ato soberano que, considerando as estruturas e
fundamentos de uma ordem que se pretende definida como constitucional, funda
uma nova ordem de validade, uma nova legalidade.

A passagem das amarras mais gerais e culturais do constitucionalismo,


legitimantes do poder, para a ordem de validade se dá no momento fundador, no
exercício do poder constituinte. Ele, portanto, não é apenas a passagem do poder
ao Direito, mas é o momento em que o poder articula-se com e nos fundamentos
culturais do próprio constitucionalismo para então (re)criar um Direito válido.

Enquanto momento fundador de exercício primeiro de poder por um povo


normativamente soberano, o poder constituinte cria uma nova ordem que se
apresenta como válida porque legítima. Nesse contexto, coloca-se a questão do
conceito do poder constituinte enquanto criador de uma constituição, de seus
contornos e daquilo que um poder constituinte pretenda constituir. Por isso,

203
tratando do conceito de constituição em bases culturais, ele se relaciona com a
própria ordem do constitucionalismo democrático, com a democracia
constitucional e com o Estado Democrático de Direito, momento da cultura
jurídico-política ocidental em andamento desde o segundo pós-guerra.

Esse momento fundacional representa o marco primeiro de uma nova


leitura que se desenrola na cultura constitucional de uma comunidade, a partir da
construção, desconstrução e reconstrução de sua identidade constitucional.
Portanto, para além de ser momento de passagem do poder ao Direito, também o
é da identidade do constitucionalismo à identidade constitucional, particular, fruto
da relação entre as amarras gerais do constitucionalismo e a cultura específica
sobre a qual ela opera e se desenvolve.

6.1. A QUESTÃO DO PODER CONSTITUINTE

A essência da cultura constitucional é o próprio movimento de construção,


desconstrução e reconstrução de uma identidade constitucional enquanto leitura
própria e especial do constitucionalismo. Ela se coloca na articulação entre as
amarras mais amplas deste e a própria cultura e identidades particulares de cada
comunidade jurídico-política.

Se, por um lado, esse movimento de formação e reformulação da


identidade constitucional não se encerra de modo único e último no momento
inicial de constituição da ordem válida, por outro, o momento constituinte é um
episódio importante da leitura das amarras do constitucionalismo em articulação
com os aspectos culturais particulares de cada comunidade na continuidade e
desenvolvimento da cultura constitucional.

Nos modelos jurídico-políticos que adotam constituição escrita, é nele que


se cria esse símbolo central de identidade constitucional, que ganha vida e é vivida
a partir da articulação entre as várias leituras que lhe vão sendo feitas, que, por sua

204
vez, afirmam e negam certas características dessa identidade, em seu caminhar.
Portanto, o momento constituinte, enquanto fundador de uma nova ordem
jurídica e instituidor de uma nova constituição, é crucial para a marcha da cultura
constitucional em uma comunidade.

Por tudo isso, do ponto de vista da justificação do Estado Democrático de


Direito, a questão da soberania relaciona-se intimamente com o tema do poder
constituinte. Nesse sentido, em oposição a NEGRI, BERCOVICI define que: “o
poder constituinte não é oposto à soberania, pelo contrário é a sua manifestação
máxima”547. Afirma, ainda, que:

O poder constituinte é manifestação da soberania. É um poder


histórico, de fato, não limitado pelo direito. Como tem caráter
originário e imediato, o poder constituinte não pode ser reduzido
juridicamente. Não pode ser limitado, embora não seja arbitrário,
pois tem ‘vontade de constituição’. A titularidade do poder
constituinte deve corresponder ao titular da soberania548.
É especialmente no “momento fundador” que a legitimação, via soberania
popular, cria ordem válida nos termos de uma Constituição. Dito de outra forma,
no momento constituinte as várias possibilidades normativas potencialmente
identificadas no parâmetros normativos da cultura constitucional e nas amarras do
constitucionalismo tornam-se mais restritas – ainda que não unívocas – através de
decisão de vontade (soberana) que se pretende válida, porque legítima. Com isso,
em termos hellerianos, os princípios jurídicos gerais são racionalizados,
institucionalizados e tornados oficiais na forma de preceitos de direito positivo. É,
portanto, o poder constituinte, um conceito limite do Direito Constitucional549.

Nesse contexto, as perguntas que se colocam são: de que se constitui e o


que é constituído pelo poder constituinte?

547
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p. 34. E segue, imediatamente: “Sem
soberania, o conceito de poder constituinte de Negri perde a base material de sustentação e se
torna algo etéreo, metafísico”.
548
BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do Povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre
a crise constituinte. Lua Nova, São Paulo, n. 88, pp. 305-325, 2013, p. 306.
549
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo. Un concepto límite
del derecho constitucional. In: BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios sobre el Estado de
Derecho y la democracia. Madrid: Editorial Trotta, 2000, pp. 159-180. Nesse texto (p. 179),
BÖCKENFÖRDE, inclusive, endossa explicitamente essa posição helleriana.

205
Se por poder constituinte entende-se aquele que pela força funda qualquer
ordem, inclusive aquele que constitui uma ordem arbitrária, não há muito o que se
discutir sobre o tema. Trata-se, apenas, de mais um poder social, sem qualquer
pretensão de justificação típica, pois nem mesmo é possível falar em uma ordem
que, enquanto constitucional, se coloque em contraposição à exceção e ao
arbítrio550.

Todavia, se por poder constituinte entende-se – como histórica e


logicamente parece ter sido formulado o conceito no curso do constitucionalismo
– aquele que constitui uma ordem constitucional – um Estado constitucional –, tal
poder não é desterrado, porque tem vontade de Constituição.

O meio constitucional é o ambiente jurídico-político por excelência e,


desde essa perspectiva, são inseparáveis o conceito de constituição e o conceito de
poder constituinte551. Até por isso, as próprias noções de soberania popular e,
especialmente, de legitimidade, integram ambos os conceitos.

Essa é a questão que, a princípio, subjaz ao tema da vinculação ou da não


vinculação do poder constituinte originário a quaisquer amarras. E aqui se fala de
vinculação, justamente, por não se tratar, propriamente, de uma limitação jurídica,
mas cultural, justificadora e legitimadora. Por isso, NELSON SALDANHA leciona
que, desde uma perspectiva sociológica, a ideia de poder constituinte se dá a partir
da noção de poder social, significando um momento de concentração da passagem
do poder ao direito, pretendida como legítima e não arbitrária552.

550
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 39: “Not only the past, but
also the present and the future, are bound to constrain revolutionary constitution makers. This
belies the notion that a genuine constitutional self may impose its will by eliminating or
disregarding the other. Unrestrained imposition of revolutionary will leads the experience of the
French Revolution, untampered revolutionary zeal merely succeeds in replacing a repressive
tradition, which disregards the other, with an equally rigid and repressive order predicated on
exclusion rather than inclusion”.
551
BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do Povo no Brasil, op. cit.
552
SALDANHA, Nelson. Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 65: “Em
torno do conceito do poder constituinte. Ocorre uma espécie de refração quando o poder, fato
social primário, assume sentido jurídico. A noção de poder constituinte, que se entende
sociologicamente a partir da noção de poder social, apresenta um momento bastante nítido se a
interpretamos como concentração de um tipo de passagem do poder ao direito”; MAGALHÃES,
José Luiz Quadros. Democracia e Poder Constituinte. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.).
Quinze anos de constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp.115-128.
206
No mesmo sentido, BÖCKENFÖRDE afirma haver duas razões pelas quais o
poder constituinte não pode ser compreendido como uma magnitude ou força
arbitrária e caprichosa. A primeira consiste no fato de o pouvoir constituant, como
já se afirma na própria expressão, ser determinado por uma vontade de
Constituição, entendida como a ordenação e organização jurídica do poder do
Estado e, já por isso, um poder absoluto não cabe em uma constituição. A
segunda razão reside no fato de que a formulação inicial do poder constituinte não
se assentar sobre uma vontade natural de uma população empírica, mas sobre a
consciência conjunta de um povo, consciente de si mesmo como sujeito político.
É, assim, vontade geral, não mera vontade de todos no sentido que trata
ROUSSEAU553.

Com NELSON SALDANHA e BÖCKENFÖRDE, entende-se que o poder


constituinte é aquele que tem por fundamento e objetivo instalar um regime
constitucional. Isto é, um projeto jurídico-político que busca sua legitimidade nos
valores, princípios e instituições da cultura do constitucionalismo, bem como, na
sua própria premissa de humano e na lógica do reconhecimento. Nesse sentido, o
“momento fundador” é um momento de renovação da identidade cultural de uma
comunidade em relação à mundividência e à rede de símbolos, signos e valores
mais ampla do constitucionalismo, a partir da reconstrução de sua própria
identidade constitucional particular, que tem início no momento de decisão
institucionalizadora dessa identidade em uma nova Constituição.

Desse modo, “o poder constituinte, embora se afirme como originário, não


se exerce num vácuo histórico-cultural”554. E, por isso, pode-se dizer que num
regime não-constitucional (num Estado não-constitucional) não existe
propriamente um poder constituinte, mas um outro poder fundador qualquer, que
prega sua legitimidade não exatamente na mundividência e no parâmetro
normativo culturalmente construído e identificado no constitucionalismo.

553
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., pp. 176-177.
554
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 66.

207
Dito de outra forma, um Estado não-constitucional não funda, fundamenta
ou justifica seu poder no argumento de legitimidade próprio e típico da identidade
do constitucionalismo, ou seja, no povo plural, mas em outra hipótese de
normatividade qualquer, ou mesmo, na mera facticidade do poder social555. Logo,
é possível dizer que “o sistema jurídico de uma ditadura não é, por conseguinte,
‘Constituição’”556, pois é do “cerne normativo” da identidade do constitucionalismo
que o poder do Estado parta do povo e que o titular do poder constituinte seja o
povo557.

Não é em outro sentido que CANOTILHO afirmará:

que hoje, o titular do Poder Constituinte só pode ser o povo, e


que o povo, na actualidade, se entende com uma grandeza
pluralística formada por indivíduos, associações, grupos, igrejas,
comunidades personalidades, instituições, veiculadores de
interesses, ideias, crenças e valores, plurais, convergentes ou
conflitantes558.

555
SALDANHA, Nelson. Poder Constituinte, cit., pp. 65 e 66: “É para observar-se que, enquanto
num regime não-constitucional não existe poder constituinte, num regime constitucional é ele o
pressuposto fundamental. Portanto, mesmo como força colocadora de ordenamento básico
(passível de ser concebido como poder supralegal e pré-jurídico), existe em função da natureza
jurídica do regime. Pode-se dizer então que no regime constitucional o direito coloca antes de si
um poder que o vai basear, ou por outra: que o direito se estabelece a si mesmo através de um
poder (um poder amoldado a esta conveniência jurídica mesma, a qual o esculpe e inspira ao
atraí-lo como objetivo)”. Em sentido similar: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade;
GOMES, David Francisco Lopes. A Constituição entre o direito e a política: novas contribuições
para a teoria do poder constituinte e o problema da fundação moderna da legitimidade. In:
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Initia
Via, 2012, pp. 87-132, p. 125: “Começa-se a alcançar a compreensão, talvez, já presente na
primeira das constituições modernas, a americana de 1787, de que aquilo que o poder
constituinte elabora não é apenas um texto dotado de uma dificuldade maior para ser alterado.
Ele é responsável, na verdade, pela construção de um projeto constituinte. Como todo projeto,
também este se lança ao futuro carregado de expectativas, em partes presentes na constituição,
que serão ou não realizadas, de acordo com a configuração que vier a alcançar, no cotidiano das
práticas sociais, e a relação sempre tensa entre facticidade e validade”.
556
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 110.
557
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., pp. 92-93: “O
poder do Estado, que deve partir ‘do povo’, e o poder constituinte, que deve ser ‘do povo’, dizem
respeito ao cerne normativo da família constitucional, historicamente desenvolvido durante a
realização da idéia de um Estado que em sentido especificamente moderno compete ‘ao povo’,
emana ‘do povo’, é responsável perante o povo, atua por causa ‘do povo’. Só que esse cerne não
é ‘aplicável’ de modo transfronteiriçamente normativo, em virtude da restrição das Constituições
às suas respectivas áreas de soberania (Estado Constitucional na forma do Estado-nação)”.
558
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 65-66.

208
Isso porque, se a mundividência da cultura constitucional é aquela que
importa em uma comunidade que tem por projeto a construção de uma liberdade
concreta, apenas o povo, em sua totalidade plural, poderá fundamentar o poder
legítimo559.

Como mencionado, essa passagem, legítima e não arbitrária, do poder ao


Direito representa, sim, uma decisão soberana, que, no entanto, não é
desprendida, mas, justificada e vinculada a alguns parâmetros. Estes são
decorrentes da própria tensão que é inerente à necessária afirmação,
antropológico-cultural, de que, enquanto fundamentalmente iguais, somos todos
igualmente livres.

Essas tensões (paradoxais ou não) entre igualdade e liberdade, mas,


também, entre poder e liberdade, são expostas, especialmente, quando observadas
as relações entre democracia e constitucionalismo, entre soberania popular e
Estado de Direito e, de algum modo, entre limitação/vinculação e originalidade do
poder constituinte 560.

Se a “a história do pensamento ocidental é um embate entre a liberdade e o


poder”561, como aponta SALGADO, a “alma” da Democracia, ela mesma, contém
em si essas duas faces. Ela é expressão da liberdade, mas também do poder,
trazendo, assim, de algum modo, as mesmas duas faces da alma humana –
apolínea e dionisíaca – como compreende JOSÉ LUIZ BORGES HORTA562.

Reconhecer a tensão, ainda que aparente, entre democracia e Estado de


Direito (formal), não é tarefa difícil. Identificá-la, porém, não significa negar serem

559
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Democracia e Poder Constituinte, op. cit., p. 126:
“Portanto, podemos concluir que este poder de fato será também de Direito, se efetivamente
democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o
debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional”.
560
CHUERI, Vera Karam; GODOY, Miguel G. Constitucionalismo e Democracia – soberania e
poder constituinte. Revista Direito GV, São Paulo, v. 6, n. 1, pp. 159-174, jan./jun. 2010.
561
SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético, op. cit.
562
HORTA, José Luiz Borges. Ratio juris, ratio potestatis; breve abordagem da missão e das
perspectivas acadêmicas da filosofia do Direito e do Estado. Revista da Faculdade de Direito da
UFMG, Belo Horizonte, n. 49, pp. 121-132, jul./dez. 2006. Com essa alegoria de origem
nietzschiana o autor quer aponta o caráter ponderado da Liberdade – medida, razão, ordem,
equilíbrio – e o do poder como força viva, inebriante, excessiva e vertiginosa.

209
essas duas dimensões, faces de uma mesma cultura, pois o fundamento último da
democracia é também um fundamento, ele mesmo, cultural. Isso porque trata-se
de um regime que só tem sentido enquanto reconhecido numa mundividência
culturalmente construída e compartilhada, num common ground563, que entende a
igual liberdade de cada um e que, a esse passo, considera em mesma medida a
opinião de cada cidadão para a tomada de decisão da comunidade564.

A democracia, assim, apresenta-se como modo de justificar o poder através


da liberdade. Desse modo, a tensão entre essas duas medidas não é estranha, mas
própria da experiência democrática, por ser ela mesma complexa, uma vez que
comprometida com a liberdade concreta565.

De outra parte, o Estado de Direito em sentido formal (Rechtsstaat, em seu


sentido original como utilizado nos oitocentos) é, classicamente, tido como forma
de se garantir a Liberdade frente ao abuso do poder. Este, para ser legítimo
precisa também, a um só tempo, respeitar as liberdades individuais, mas também,
precisa ser posto democraticamente. No entanto, a própria democracia, pautada
na atuação de um povo ativo, no sentido dado por MÜLLER, só é possível e,

563
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here?: principles for a new political debate.
Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 6 e ss. “I shall argue, first, that in spite of the
popular opinion I just described, we actually can find shared principles of sufficient substance to
make a national political debate possible and profitable (…) there is enough substance in the deep
principles about human value that I describe as common ground to sustain an argument about
what follows, by way of social, foreign, or economic political policy, from these principles”.
564
Essa ideia está presente em vários trabalhos do autor, dentre eles: DWORKIN, Ronald.
Constitutionalism and Democracy. European Journal of Philosophy, v. 3, n. 1, pp. 2-11, 1995;
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: WFM
Martins Fontes, 2005, pp. 255 e ss.; DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? cit.
Também em HELLER, Herman. Political democracy and social homogeneity, cit., p. 260: “The
significance of social homogeneity for democracy is also comprehended in the problem just
outlined. Democracy is supposed to be a conscious process of the formation of political unity
from bottom to top; all representation is supposed to remain legally dependent on the
community's will. The people as a plurality is supposed consciously to form itself into the people
as a unity. For the formation of political unity to be possible at all, there must exist a certain
degree of social homogeneity. So long as there is belief in such homogeneity and the assumption
that the possibility of arriving through discussion at political agreement with one's opponent exists
and so long as can one debate with one's opponent and renounce suppression by physical force”.
565
BIELSCHOWSKY, Raoni. Democracia Constitucional, cit., pp. 129-164.

210
efetivamente, democrática, na medida em que vigorem, sejam praticados e
respeitados os direitos fundamentais individuais e políticos566.

Desse modo, a tensão entre essas duas formas de legitimação do poder,


coloca-se como atributo da própria liberdade no Ocidente, em suas dimensões
individual (no Eu) e democrática (no Nós), que dialogam para colocar-se como
liberdade concreta.

Nesse sentido, a tensão da democracia constitucional não nos parece


identificada em alguma contradição existente entre democracia e
constitucionalismo567, mas na própria tensão característica da identidade ocidental
de pretender todos os indivíduos como igualmente livres, considerada, para tanto,
uma liberdade concreta, só possível na dinâmica e no diálogo desses dois pólos.
Como afirma MÜLLER, “não somente as liberdades civis, mas também os direitos
humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia
legítima”568. É nesses termos, também, que KONDER COMPARATO vai propor que
os dois polos de legitimidade das constituições são, justamente: a proteção dos
direitos humanos e o reconhecimento da soberania popular 569.

Não será em sentido significativamente diferente que caminhará a


compreensão hegeliana sobre a Liberdade. Como aponta MAYOS, para HEGEL, a
566
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?, cit., pp. 51-52: “Direitos fundamentais não são
‘valores’, privilégios, ‘exceções do poder de Estado ou ‘lacunas’ nesse mesmo poder, como o
pensamento que se submete alegremente à autoridade governamental [obrigkeitsfreudiges
Denken] ainda teima em afirmar. Eles são normas, direitos iguais, habilitação dos homens, i.e.,
dos cidadãos, a uma participação ativa [aktive Ermächtigung]. No que lhes diz respeito,
fundamentam juridicamente uma sociedade libertária, um estado democrático. Sem a prática dos
direitos do homem e do cidadão, ‘o povo’ permanece uma metáfora ideologicamente abstrata de
má qualidade. Por meio da prática dos human rights ele se torna, em função normativa, ‘povo de
um país’ [‘Staatsvolk’] de uma democracia capaz de justificação – e torna-se ao mesmo tempo
‘povo’ enquanto instância de atribuição global de legitimidade, povo legitimante”.
567
DWORKIN, Ronald. Constitutionalism and Democracy, op. cit., p. 10; CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David Francisco Lopes. A Constituição entre o direito
e a política, op. cit., p.125: “Nos últimos anos, fica cada vez mais clara a exigência, própria à
tradição do Constitucionalismo, de que um poder constituinte só seria legítimo se exercido
democraticamente”; SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético, op. cit.: “É
na constituição que se dá o encontro do político (poder) e do jurídico (norma) e é na constituição
democrática contemporânea que se dá a superação da oposição entre poder e liberdade. E isso
na forma de uma organização do poder e de uma ordenação da liberdade, qual se mostra como
ordem jurídica ou liberdade objetivada”.
568
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?, cit., p. 61.
569
COMPARATO, Fábio Konder. Ética, cit., p. 608.

211
liberdade nunca será tarefa particular e isolada de cada indivíduo, mas, sempre, de
todos juntos em comunidade. É nela que, efetivamente, se garante a Liberdade
através de uma institucionalização efetiva, em última instância, no Estado. Ao
contrário do conceito liberal, a liberdade, entendida de forma concreta, mais que
colocar os indivíduos em conflito e em distanciamento, porque fechados em si
mesmos, lança pontes entre eles570.

Assim sendo, a própria ideia de soberania popular, tomada enquanto poder


(soberania) legitimado pela igual liberdade de todos (popular), coloca lado a lado
essas duas faces necessárias da identidade do constitucionalismo, duas partes da
“alma” da liberdade571.

Caminhando nessa direção, ao menos quando trata sobre a democracia,


DWORKIN entende como necessária a implicação entre liberdade individual e
liberdade democrática, entre liberdade e igualdade. O faz identificando sua
perspectiva de ação coletiva com uma democracia comunitária (comunal), em
oposição àquilo que chama de democracia (simplesmente) estatística. Desse
modo, entende, como já fizera ROUSSEAU572, que a democracia não pode ser bem

570
MAYOS SOLSONA, Gonçal. G. W. F. Hegel. Vida, pensamento e obra. Barcelona, Planeta
De Agostini, 2008, p. 112: “Hegel, tal como Rousseau, Herder e Hörderlin – apesar de estes três,
cada um à sua maneira, também denunciarem o despotismo das instituições sobre os indivíduos –
, pensa que o reconhecimento mútuo da própria liberdade deve também implicar o
reconhecimento do partilhado. Rousseau, Herder e Hölderlin dão igualmente muita importância
ao reconhecimento emotivo da amizade, do amor e do sentimento que leva os homens a
sentirem-se como irmãos e não só como participantes de frias e distantes instituições – o pior
sentido de concidadãos”.
571
Tanto é poder, que GRIMM não nos deixa esquecer: “Outrossim, parece difícil adotar um
conceito de democracia que seja puramente formal. Primeiro, um conceito de democracia
baseado somente no princípio majoritário é incapaz de assegurar eficazmente um governo
democrático. Ele não previne a maioria de abolir a regra da maioria. Foi isso que ocorreu na
Alemanha em 1933 – uma experiência que teve grande impacto na história legislativa da Lei
Básica”, GRIMM, Dieter Jurisdição constitucional e democracia. Revista de Direito do Estado,
Rio de Janeiro, n. 4, pp. 3–22, out./dez. 2006, pp. 7 e 8.
572
MATOS, Manuel João. Rousseau e a lógica democrática. Lisboa, Edições Colibri, 2008, p.
232: “A regra da maioria dá a forma do funcionamento possível do Estado democrático; não
porém, o seu conceito, pois essa regra trata do processo de decisão e não do princípio de decisão,
ou seja, é a condição necessária, mas não suficiente para a existência do regime democrático. É
imprescindível, mas isoladamente não conduz, por sua mera utilização, a uma forma democrática
do exercício do poder em sociedade. Tendo a democracia como condição de possibilidade os
princípios da liberdade e da igualdade, a viabilizam. Daí a determinação da intangibilidade desses
princípios, e dos direitos fundamentais, para a perpetuidade da ideia da democracia. Em
conclusão, a regra da maioria é uma prática de legitimação eventual, finita no espaço e no tempo,
212
compreendida como mera soma de interesses, vontades e opiniões, mas como
ação “coletiva em seu sentido mais profundo”, que demanda que cada indivíduo
reconheça a existência da comunidade jurídico-política a que pertence e, em
última instância, identifique-se com ela573.

O poder constituinte também parece se colocar de maneira a ratificar essa


dupla face da identidade do constitucionalismo. Enquanto poder, ele se pretende
criador e, enquanto constituinte, se pretende justificado por um argumento
normativo legitimador e justificador de uma ordem válida. No entanto,
parafraseando BRECHT, o poder que emana do povo, não pode dele sair574. Para
que seja legítimo, tem de nele permanecer, portanto, não pode seguir qualquer
direção, indiscriminadamente, mas, apenas, os caminhos, normativa e
objetivamente, determinados pelos parâmetros da identidade do
constitucionalismo. Trata-se, pois, de identificar sua legitimidade em uma rede de
amarras e sentidos que possuem objetividade (ainda que relativa) concretizada na
historia como cultura.

É também, um poder constituinte que por essência não se esvai de forma


finita no momento fundacional; pelo contrário, é poder que subjaz, ora latente, ora

cujas decisões são portanto, sujeitas a contínua revisão, e não pode a decisão ser obtida por uma
maioria conjuntural para anular o direito das futuras maiorias decidir diferentemente, tolhendo a
liberdade das gerações posteriores e a igualdade formal da maioria de hoje e a de amanhã”.
573
DWORKIN, Ronald. Constitutionalism and Democracy, op. cit., p. 4: “The distinction
between statistical and communal action allows us two conceptions of democracy as collective
action. The first is a statistical conception: that in a democracy political decisions are made in
accordance with some function - a majority or plurality - of the votes or decisions or wishes of
individual citizens. The second is a communal conception: that in a democracy political decisions
are taken by a distinct entity - the people as such - rather than any set of individuals one by one.
Rousseau’s idea of government by general will is an example of a communal rather than a
statistical conception of democracy”. Justamente aproximando as “Teorias jurídicas” de HEGEL e
de DWORKIN, particularmente tratando da questão da democracia na quarta parte: BROOK,
Thom. Between Natural Law and Legal Positivism. Georgia State University Law Review, Atlanta,
n. 23, n.3, pp. 513-560, 2007.
574
No original: “Die Staatsgewalt geht vom Volke aus. - Aber wo geht sie hin?”, essa passagem
inaugura o Parágrafo 1 do Drei Paraphen der Weimaraner Verfassung, de BRECHT. HÄBERLE
faz uma interessante observação quanto à ambiguidade da frase de BRECHT, apontando à
duplicidade do verbo ausgehen que tanto significa emanar, quanto sair. HÄBERLE, Peter. La
constitución como cultura. Anuario iberoamericano de justicia constitucional, Madri, n. 6, pp.
177-198, 2002, p. 194

213
patente à própria ordem posta575. Nessa linha, BÖCKENFÖRDE define o poder
constituinte como a força e autoridade política capaz, não apenas de criar, mas
também de sustentar e cancelar a constituição em sua pretensão de validade
normativa. E destaca que essa concepção se diferencia da de SCHMITT, justamente
por que não se limita ao aspecto de tomada de decisões políticas, mas, também, à
proteção, manutenção e superação da pretensão normativa de validade: “el poder
constituyente se recibe así como um concepto referido a la legitimación”576.

Não deixará de ser nesse sentido que MÜLLER, ainda que analisando o
texto da Lei Fundamental Alemã, menciona o poder constituinte do povo não
apenas em alusão a uma legitimidade histórica, restrita ao momento fundacional,
mas, inclusive, como parte essencial da legitimação amiúde do poder do Estado577.
Desse modo, afirma que os conceitos de poder constituinte, de legitimidade, de
direito revolucionário e de direito de resistência são conceitos jurídicos, o que
significa tê-los como conceitos normativos. Também por essa qualificação, os

575
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., pp. 34-35: “O poder constituinte atua de
forma permanente. Ele se refere ao povo concreto, com autoridade e força para estabelecer a
constituição e manter sua pretensão normativa e revoga-la”.
576
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 163.
577
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., É verdade que é
traço da perspectiva de MÜLLER uma aproximação analítica, baseada, especialmente, na
abordagem sobre o texto de norma. Nessa linha, de fato, no Preâmbulo da Lei Fundamental
Alemã há referência expressa ao verfassunggebende Gewalt (poder constituinte) do povo alemão,
em virtude do qual “outorgou-se” a Lei Fundamental. Na Constituição brasileira, por exemplo,
não há referência expressa a um poder constituinte, propriamente dito, nesses termos, apenas no
artigo 11, a respeito “dos poderes constituintes” das Assembleias Legislativas para elaboração das
constituições estaduais. Contudo, é possível identificar na formulação preambular da CRFB a
alusão ao poder constituinte do povo, ainda que ela tenha um formato, significativamente,
diferente daquele da Grundgesetz alemã. Além disso, enquanto o texto alemão fala como o “povo
alemão” em primeira pessoa, no preâmbulo da CRFB também é colocado na primeira pessoa,
mas sua “narrativa” é feita pelos próprios representantes do povo brasileiro reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte. Além disso, MÜLLER, até por sua perspectiva analítica
própria, refletida ao longo não apenas desta, mas de várias outras obras, prende sua análise de
suas conclusões ao texto de norma presente na Lei Fundamental e, por extensão, a textos de
norma similares do Direito Comparado. Assim, reduz suas observações e conclusões a essa
condição de textificação, não sendo, para ele, possível afirmar, como pretendemos aqui, que o
“poder constituinte” seja o teor central consuetudinário da família constitucional (a esse respeito
ver pp. 130-132). Por tudo que vem sendo exposto até aqui e que vem adiante, não concordamos
exatamente com esses termos, nem com essa ressalva, no que não importa rejeitar várias das
conclusões do autor, que são, na medida do possível, incorporadas e coordenadas com nosso
ponto de vista. De todo modo, a maior parte das conclusões do autor a respeito do poder
constituinte do povo são bastante coerentes e pertinentes a toda cultura constitucional, ou, em
seus termos, a toda a família constitucional.

214
entende como conceitos materialmente vinculados, que oferecem critérios de
aferição, revelando o caráter vinculante do Direito e da constituição a normas em
parte escritas, em parte, mesmo, não escritas. Dessa maneira, MÜLLER pretende
que esses conceitos libertem-se de voluntarismos, decisionismos, normologismos e
sociologismos, uma vez que lhes são marcantes o âmbito material, logo:

um conjunto de instituições nucleares, de garantias de direitos


nucleares, de formas de organização nuclear, que se alimenta da
tradição histórica nessa medida consistente dessa família
constitucional e deve ser elaborado em seus pormenores pela
História Constitucional e pelo Direito Constitucional
Comparado578.
Também não será em sentido diferente que se encontrará em HELLER,
quanto à fundação de uma ordem, a negação da pretensão de
legitimidade/validade de uma constituição em referência a qualquer direito
positivo que a anteceda. O nega, sem, contudo, deixar de reconhecer que “uma
Constituição para ser Constituição” precisa de algo além da relação fática e instável
de dominação do poder social. Para ela valer como ordenação jurídica, é
inexorável sua justificação segundo princípios éticos de Direito.

Na sua perspectiva dialética, em que o Direito é criador de poder e o poder


é criador de Direito, HELLER percebe que a existencialidade e normalidade do
poder constituinte não se opõem, mas se condicionam reciprocamente, uma vez
que: “un poder constituyente que no esté vinculado a los sectores que son de
decisivo influjo para la estructura de poder, por medio de principios jurídicos
comunes, no tiene poder ni autoridad y, por consiguiente, tampoco existencia”579.

578
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 32. Também é
interessante a passagem: “‘Legitimidade’, ‘poder constituinte do povo’, revolução ‘legítima’ não
são entidades absolutas, mas foram obtidas a partir de, mediadas por uma determinada tradição
constitucional, decerto não unilinear. O quadro é demarcado pelo espaço histórico e não está
sujeito à decisão gratuita; isso significa que essa cultura jurídica somente pode caracterizar como
ilegítimas, em termos político-morais, práticas de Estado do seu âmbito que não correspondam a
uma atualização do poder constituinte do povo”, MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o
Poder Constituinte do Povo, cit., p. 118.
579
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., pp. 352-353. Essa perspectiva será tratada por
LOUGHLIN, em oposição ao normativismo e ao decisionismo, como relacionalismo
(relationalism), apontando-a como adequada para compreender a complexidade do poder
constituinte. Embora aponte para a importância da formulação helleriana no caminho de
compreender o poder constituinte ele, no entanto, entende a que ela ainda se colocou de forma
215
Destarte, os “limites à decisão” do poder constituinte decorrem exatamente
de sua legitimação normativa, de sua coerência com seus fundamentos e de suas
próprias condições de existência. Portanto, provém de uma implicação da cultura
a que pertence, das amarras do constitucionalismo.

Não se quer com isso afirmar que não há decisão no momento constituinte
fundador. Naturalmente há, pois, ainda que se pretenda um momento de
fundação jurídica, antes de tudo, ele é um momento político de fundação jurídica
que, assim, se coloca como justificado e não desmedido. Desse modo, a decisão
tomada não é desterrada ou tomada ex nihilo, pois, é fundadora de uma ordem
que se pretende medida pelo parâmetros históricos e lógicos de uma cultura com
a qual se identifica, que pretende ser uma leitura fundamentada e coerente,
portanto, que se expressa na formação de uma nova identidade: uma identidade
constitucional.

E assim, o povo, soberano, não pode violar-se a si mesmo. Nessa medida, o


poder constituinte é a expressão de uma vontade soberana que, enquanto tal, deve
manter coerência com seus fundamentos e sua própria razão de ser. Esse poder é
criado por um ato simbólico, quando a soma de indivíduos (multidão) se
reconhece em unidade/coletividade singular (Nós) e se realiza como: “nós o
Povo”. Nessa ordem, é um poder político que se institucionaliza580. Como dito, o
faz a partir de uma dada leitura identitária, cristalizando581 alguns dos caminhos
possíveis de seu próprio projeto cultural que, por sua vez, lhe lega sua força
simbólica. Desse modo, torna válidas pela positivação normas em sentido amplo
(pretensões normativas) que se justificam no parâmetro cultural e na
mundividência do constitucionalismo, em última análise, em sua premissa
cultural582.

um tanto abstrata: LOUGHLIN, Martin. The concept of constituent power. European Journal of
Political Theory, v. 13, n. 2, pp. 218–237, 2014.
580
LOUGHLIN, Martin. The concept of constituent power, op. cit., p. 231: “Political power is
maintained and augmented only through institutionalization”.
581
HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, cit., pp. 39 e ss.
582
HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado Constitucional, cit., p. 106. É verdade
que LOUGHLIN, com sua perspectiva relacionista por vezes refuta os normativismo que aponta a
DYZENHAUS, DWORKIN, ALEXY, dentre outros. Com isso, tampouco deixa de negar o nada
216
Nessa busca por legitimação, haverá de se falar em pelo menos duas
dimensões do poder constituinte, no que MÜLLER chamará de questão de direito
processual e questão de direito material583.

A primeira está, naturalmente, relacionada ao processo justificador de


exercício do poder constituinte, que “deve estar ordenado (a) um processo
concreto, que também (b) deve ser observado efetivamente”. Nesses termos, o
autor dirá que “o direito processual é tipicamente ius strictum”, portanto,
particularmente, relacionado aos procedimentos de realização de uma
constituição, relacionados à eleição da assembleia constituinte e à realização de
consultas, plebiscitos e/ou referendos sobre o texto proposto584.

A questão de direito material, por sua vez, coloca-se mais expressamente


nos valores construídos e informados na dinâmica da cultura constitucional,
naquilo que vai caracterizar um Estado enquanto Estado Democrático de Direito,
em termos históricos e concretos, no que no quadro contemporâneo, não foge da
proteção aos direitos fundamentais, do pluralismo, da separação dos poderes, em
suas diversas variantes, com o escopo de limitação do poder e do regime
democrático.

Em que pese essa divisão “didática”, as exigências processuais se


diferenciam das materiais apenas em perspectiva imediata e aparente, pois, no
limite, elas também são expressão dos mesmos valores mais explicitamente
encontrados na dimensão material do poder constituinte. Afinal, os próprios
“universais processuais” da democracia, nas diversas formas em que aparecem
colocados585, no fundo, justificam-se, também, por seu ponto de partida.
Fundamentam-se de forma, mais ou menos, explícita em um valor culturalmente

normativo decisionista. Assim, o desenvolvimento que aqui fazemos, que se coloca, com
HELLER, nos termos de que o “Estado vive de sua justificação” e que o poder constituinte
também se justifica em termos normativos, sem deixar de ser poder, não estão, ao menos
explicitamente, em LOUGHLIN.
583
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit.
584
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 37, quando
entende adequado a um Estado Democrático de Direito a combinação dessas duas combinações.
585
BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo (org.). Teoria geral da política: a Filosofia
Política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 416-454; DAHL, Robert.
Sobre a democracia. Brasília: Editora da UnB, 2001, pp. 49-50.

217
partilhado, ou, como dito acima, em uma premissa antropológico-cultural que
entende a todos os cidadãos como fundamentalmente iguais em dignidade, o que
implica a igual consideração de cada indivíduo para a ação coletiva, ou seja, para a
democracia.

Como momento fundador, a dificuldade de estabelecer e/ou reconhecer


tais parâmetros (formais e materiais) se coloca especialmente no vácuo de normas
válidas. Desse modo, no momento constituinte, a soberania preocupa-se em
tornar válidas normas que se têm e se pretendem como legítimas. Assim, se, por
um lado, a legitimidade se coloca na narrativa passada, anterior, historicamente
construída pela cultura constitucional, em articulação com a identidade do
constitucionalismo; a eficácia se propõe como projeto que aponta ao cumprimento
futuro da normatividade como normalidade. Já no momento constituinte, funda-se
a validade por meio da vontade soberana.

Historicamente e, até, paradoxalmente, a observância do cumprimento da


dimensão processual no exercício do poder constituinte originário não tem sido
uma constante nos momentos fundacionais das ordens constitucionais. Não raro,
por exemplo, é relatado ou, pelo menos, discutido, o déficit de legitimação
procedimental do processo constituinte das duas normas constitucionais mais
influentes e marcantes do constitucionalismo, ainda em vigor: a Constituição dos
Estados Unidos da América586 e a Lei Fundamental da Alemanha587.

586
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 282-308. No
caso americano, havia várias questões em aberto geraram debates políticos e ainda geram debates
teóricos e históricos na análise dos procedimentos adotados para aprovação e, especialmente,
para ratificação da Constituição da Federação. O fato de ser a primeira Constituição escrita, de
criar o federalismo a partir de uma confederação, o presidencialismo e, particularmente, por,
efetivamente, ser o momento fundador de um novo Estado, pois fruto de um imediato processo
de independência. Apresentando posições diferentes, mas igualmente importantes: KAY, Richard
S. The illegality of the Constitution. Constitutional Commentary. Minneapolis, v. 4, pp. 57-80,
1987; KAY, Richard S. The Creation of Constitutions in Canada and the United States. Canada-
United States Law Journal, Cleveland, v. 7, pp. 111-163, 1984; AMAR, Akhil Reed. Philadelphia
Revisited: Amending the Constitution Outside Article V. The University of Chicago Law Review,
Chicago, v. 55, n. 4, pp. 1043-1104, 1988.
587
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., pp. 37-52, para o
autor, “a Lei Fundamental 1949 não satisfaz essas exigências” relacionadas ao direito processual
do poder constituinte. A posição de MÜLLER é uma posição significativa e corrente no Direito
Constitucional alemão, que de algum modo será partilhada por GRIMM, que inclusive, retira o
218
De mesmo modo, também esse déficit muitas vezes é apontado aos
processos constituintes das constituições brasileiras, por exemplo na Assembleia
Nacional Constituinte Brasileira de 1988, convocada por emenda à Carta de 1969,
(E.C. n. 26, de 27.11.85), e que na verdade, funcionava em um formato de
Congresso Constituinte, ora que composta por parlamentares ordinários que
também exerciam a função constituinte e não por constituintes eleitos
exclusivamente para o feito. Consequentemente, aqueles parlamentares que
desempenhavam o poder constituinte originário em um dos turnos de trabalho
eram os mesmos que desempenhavam o poder legislativo constituído pela Carta
Constitucional de 1969, no outro588.

De todo modo, “uma constituição democrática não pode alcançar a


legitimidade de uma vez para sempre, mas apenas em processo que se renova de
maneira permanente”589. Isto é, até porque a formação da identidade constitucional
não se esgota no momento fundacional e se desenrola na própria vivência da
cultura constitucional, há algo de essencial à dimensão material do poder
constituinte. Especialmente no que concerne ao reconhecimento e ao consenso
em volta da premissa que justifica seu argumento de legitimação, de modo geral, e
das formas tomadas por uma Constituição, em termos específicos. Isto é, da
leitura que é feita da identidade do constitucionalismo, a partir da articulação com
a cultura sobre a qual ela opera e em relação às demais identidades existentes na
comunidade, portanto: à identidade constitucional propriamente dita.

A força e capilaridade que a identidade constitucional consegue manter e


formar com a comunidade, está relacionada à dimensão vital da cultura
constitucional. É nela que se tocam eficácia e legitimidade, na medida em que essa
identidade é feita viva e é vivida no fluxo da cultura constitucional, sendo
cotidianamente reiterada, vivida e reinventada.

peso da dimensão processual do momento fundador em detrimento de seu conteúdo: GRIMM,


Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 23-64.
588
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30 ed. São Paulo: Malheiros,
2008, pp. 88 e ss.
589
CHRISTENSEN, Ralph. In: MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental
da democracia. 5 ed. São Paulo: RT, 2010, pp. 27-37, p. 34.

219
6.2. DA IDENTIDADE DO CONSTITUCIONALISMO À IDENTIDADE
CONSTITUCIONAL

Como mencionado, o próprio constitucionalismo é expressão de uma


cultura comum, compartilhada pelas diversas constituições, que construiu e segue
construindo uma identidade que, por sua vez, demanda que tais constituições
apresentem aspectos essenciais, particularmente, relacionados: a uma definição e
limitação do poder, ao compromisso com o Estado de Direito, à legalidade, à
democracia e à proteção dos direitos fundamentais.

Todavia, como afirma MICHEL ROSENFELD: “essa identidade, no entanto,


não dá conta de explicar o fato de como disposições similares, encontradas em
diversas constituições, podem levar a interpretações e aplicações tão amplamente
diversas”590. Nesse contexto, é interessante uma aproximação ao conceito de
identidade constitucional que tem como marco inicial o momento constituinte.
Nele se cria uma nova ordem válida, porque legítima, a partir da articulação
primeira entre as amarras do constitucionalismo e as identidades pré e extra-
constitucionais, que seguem a se redefinir no curso da cultura constitucional
subjacente na comunidade.

Grosso modo, o conceito de identidade constitucional relaciona-se com as


leituras particulares que cada comunidade jurídico-política faz dos preceitos e
arranjos do constitucionalismo, articulando-os com suas identidades próprias –
locais, nacionais, religiosa etc. –, em relação à cultura sobre a qual a Constituição
opera, produzindo, assim, uma dada leitura do fenômeno constitucional591. Logo, é

590
ROSENFELD, Michel. Constitutional identity, op. cit., p. 757: “To the extent that the ideal of
constitutionalism requires constitutions to provide a definition and limitation of the powers of
government, commitment to adherence to the rule of law and protection of fundamental rights, all
constitutions that comply with those prescriptions can be said to share a common identity. That
identity, however, cannot account for the fact that similar provisions found in a number of
constitutions can lead to widely divergent interpretations and applications”.
591
ROSENFELD, Michel. Modern Constitutionalism as interplay between identity and diversity.
In: ROSENFELD, Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy:
Theoretical Perspectives. Durham: Duke University Press, 1994, pp. 03-35. ROSENFELD,
220
uma identidade sempre “aberta, fragmentada, parcial e permanentemente
incompleta”, que no movimento de diferenciação e diálogo com outras
identidades desdobra-se em um incessante processo de desconstrução, construção
e reconstrução de seu conteúdo592.

É basicamente da elaboração de uma identidade constitucional comumente


compartilhada que se faz possível a integração dos múltiplos indivíduos que
tomam parte do processo em andamento de construção da unidade do que
ROSENFELD chama sujeito constitucional. Este, entendido em suas três dimensões:
o sujeito como aquele que faz a Constituição (constitution-maker) ou como
pouvoir constituant; o sujeito como a coletividade que é unida pela constituição; e,
ainda, o sujeito constitucional como intérprete, elaborador e suporte da
Constituição593.

A identidade constitucional é construída a partir de um discurso que a


articula através de uma narrativa contrafactual, quando no dinamismo
constitucional devem ser levadas em conta tanto a aplicação do texto fundamental,
quanto as amarras normativas próprias do constitucionalismo. Com isso esse
discurso deve buscar construir pontes entre os abismos que internamente separam
o sujeito constitucional em eu e outro, bem como, entre aqueles que separam a
constituição de fato e os preceitos do constitucionalismo, para, assim, forjar uma
base comum (common ground) entre os indivíduos, que dê suporte para uma
identidade constitucional relativamente autônoma594. A partir dela, o sujeito
constitucional pode, sem perder sua identidade, transcendê-la, tornando-a mais
inclusiva e plural595.

Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 06-14; FLETCHER, George P.
Constitutional Identity, op. cit.
592
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David Francisco Lopes. A justiça e a
democracia como hipérbole: o PNDH-3 e o projeto constituinte do Estado Democrático de
Direito entre nós. Rechtd, v. 3, n. 1, pp. 95-101, jan./jun. 2011, p. 97.
593
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 26.
594
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 45. HELLER, Hermann.
Political democracy and social homogeneity, op. cit., p. 260.
595
SCHLINK, Bernhard. The constitutional subject and its identity, op. cit., p. 1873,
especificamente sobre o livro de ROSENFELD o professor de Berlim registra: “Michel's book also
221
As ideias de identidade constitucional e cultura constitucional aproximam-
se e, em certa media, intersectam-se. JAN-WERNER MÜLLER, por exemplo, trata
como se ambas fossem duas formas de se nomear a mesma ideia, preferindo a
segunda expressão à primeira por entender que o conceito de identidade guarda
denotação mais estática, enquanto o de cultura transmite mais claramente a
percepção dinâmica de movimento e transformação596.

Mais do que dois nomes possíveis para a mesma ideia, no entanto, talvez
seja melhor tratar identidade e cultura constitucionais como duas faces
complementares da mesma dinâmica, uma vez que uma identidade faz-se viva
enquanto constitucional, justamente, no fluxo de uma cultura que se constrói e se
atualiza de acordo com e na vivência dos padrões constitucionais, portanto, em
referência à realização da rede de valores, símbolos e significados do
constitucionalismo597.

Nesse sentido, a identidade constitucional pode ser tratada como uma


dimensão da cultura constitucional, que, como dito, também apresenta uma
dimensão normativa definidora do conceito de constituição, que é identificada
com a identidade e as amarras do constitucionalismo, e sua dimensão vital,
relacionada à difusão de uma cultura de constituição.

Há basicamente duas questões em jogo quanto à identidade constitucional:


uma primeira que diz respeito à existência de atributos que permitem qualificar
uma dada identidade enquanto constitucional; e uma segunda referente à

shows how constitutional subjects, striving for the ideal of constitutionalism, can transcend the
limitations of their identity”.
596
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional patriotism, cit., pp. 56-58.
597
SCHLINK, Bernhard. German constitutional culture in transition. In: ROSENFELD, Michel
(ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: Theoretical Perspectives. Durham:
Duke University Press, 1994, pp. 197-222: “A country's constitutional culture lives through its
constitution. It will be free if the constitution is free, democratic if it is democratic, authoritarian if
it is authoritarian. Where a constitutional culture does not exist, a constitution that functions as
the basis and standard for state and political life is also lacking. There may be a constitutional
facade, but behind it, and in reality, the decisive factors are the program and organization of a
state party, the familiar intertwining of a governing clan or the alliances and rivalries of a military
junta. These party, family, or military structures are not the actual constitution behind the
constitutional facade. A constitution, at least in the modern sense, is a legal ordering of state and
political life independent of such structures; its independence is the result of the process of social
differentiation, the external and internal differentiation of law”.

222
compreensão de que há um processo dialético de formação da identidade que
permite que se identifique a identidade própria de uma dada Constituição598.

Nesse contexto, MICHEL ROSENFELD pontua que as constituições


apresentam-se sobre um paradoxo. Isso porque elas devem, ao mesmo tempo,
desprender-se e serem congruentes com as várias identidades que as fazem viáveis
e coerentes. Nessa ordem, toda constituição demanda a elaboração de uma
identidade constitucional que, distinta das demais identidades – pré-constitucionais
ou extra-constitucionais –, emerge exatamente dessa tensão de negação e
incorporação sobre o qual se coloca599.

Nesses termos, as identidades constitucionais, tanto quanto as identidades


nacionais, devem ser entendidas como “coletividades imaginadas”, que têm por
objetivo “unir uma coletividade de estranhos”. Ambas são formas de identidade
coletiva (collective Self) e o que as diferencia é o fato de uma identidade
constitucional estar, por definição, ligagada às vinculações do constitucionalismo –
a um conceito normativo de constituição – e, portanto, ser baseada no
reconhecimento mútuo dos indivíduos enquanto iguais600. Assim sendo, o conceito
de identidade constitucional é pertinente à relação entre uma constituição e a
cultura na qual ela opera, bem como, entre a identidade de uma Constituição e
outras identidades relevantes, tais quais a nacional, a religiosa, a ideológica, dentre
outras.

Nesse contexto, ROSENFELD propõe que existem, basicamente, três


sentidos gerais que brotam da ideia de identidade constitucional. Um primeiro
ligado ao fato de uma comunidade jurídico-política ter ou não ter uma
constituição, na medida em que, como afirma, a política de uma comunidade que

598
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity. The Review of Politics, Notre Dame, v.
68, n. 3, pp. 361-397, verão, 2006.
599
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 10.
600
Não falando exatamente da identidade constitucional, mas do conceito de Direito em si:
COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa, cit., p. 31: “Para além
da liberdade, a pessoa afirma-se no reconhecimento, pelo outro, do ser-pessoa do humano, a
denunciar o caráter histórico e a coexistencialidade de todo valor: o valor humano não é dado,
mas constrói-se enquanto o humano afirma-se e mantém-se, em sua relação de coexistência
histórica, como dignidade, no recíproco reconhecimento do seu valor”.

223
tem constituição é significativamente diferente das daquelas que não têm. Um
segundo relacionado ao conteúdo específico de uma constituição que, por sua vez,
fornece diferentes elementos de identidade. E, ainda, um terceiro sentido relativo
à questão do contexto em que uma constituição opera que, inevitavelmente, acaba
por exercer um importante e decisivo papel na construção da identidade
constitucional601.

Desse modo, não raro se busca compreender essa dinâmica a partir de sua
comparação com a formação da própria identidade do indivíduo. ROSENFELD,
por exemplo, partindo de pressupostos hegelianos e utilizando chaves da
psicanálise602, propõe que a identidade constitucional, assim como a identidade
pessoal, é elaborada através de um processo dinâmico e complexo que se opera
visando integrar sucessivas instâncias de negação e identificação em narrativas
coerentes e mutuamente consistentes de mesmidade (sameness) e ipseidade
(selfhood)603. Sobre a identidade pessoal, afirma que os parâmetros para o
autoreconhecimento apresentam-se de duas maneiras: reconheço-me porque
pareço o mesmo indivíduo de ontem e de todos os dias; ou reconheço-me porque
apesar de algumas mudanças que eu experimentei desde a infância (já não tenho a
mesma aparência, não penso da mesma forma, não sinto a mesma coisa)
permaneço como um único indivíduo (self) que é distinto dos demais indivíduos
(selves)604.

601
ROSENFELD, Michel. Constitutional identity, op. cit., p. 757.
602
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 73-74. Nesse processo há
três chaves caras à explanação de ROSENFELD sobre as ferramentas de construção do discurso
constitucional: a negação, a metáfora (condensação) e a metonímia (deslocamento).
603
Essas chaves são, explicitamente, emprestadas de PAUL RICOEUR: mêmeté e ipseité. É o
próprio RICOEUR que faz a tradução do francês para o inglês: “Let me recall the terms of the
confrontation: on one side, identity as sameness (Latin idem, German Gleichheit, French
memete); on the other, identity as selfhood (Latin ipse, German Selbstheit, French ipseit)”.
RICOEUR, Paul. Oneself as another. Tradução Kathleen Blarney. Chicago: The University of
Chicago Press, 1995, p. 116. Dê um modo geral, a tradução usualmente encontrada para o
português dessa expressão de RICOEUR é: mêmeté por mesmidade (ou mesmice) e ipseité por
ipseidade. RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. Tradução de Lucy Moreira Cesar.
Campinas: Papirus, 1991.
604
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 27: “I can recognize
myself either because I look the same as I did yesterday or because in spite of all the changes
which I have experienced since childhood – I no longer look the same, think the same, feel the
same, etc. – I have endured as a sigle self that is distinct from all other selves”.

224
Nesses termos, ROSENFELD propõe que o mesmo vale, analogamente, para
a identidade constitucional. Ela se constrói, especialmente, na dinâmica entre a
projeção daquilo que permanece igual (sameness) e a imagem da individualidade
daquela identidade em referência a outras identidades (selfhood)605.

Assim, a construção e diferenciação da identidade constitucional


desenvolvem-se em um contínuo processo dialético que envolve negação e
incorporação – desconstrução, construção e reconstrução – importando na mais
próxima ou mais distante relação entre ela e outras identidades. Nesse sentido,
não apenas a identidade constitucional recorre a outras identidades, como estas
também acabam por redesenhar materiais encontrados naquela. Desse modo,
ROSENFELD afirma que quer a identidade nacional, quer a constitucional
(“national and constitutional self”) são, na verdade, dimensões complementares da
identidade global que pretende fornecer unidade e coerência à política vivida pela
comunidade jurídico-política.

GARY JACOBSOHN segue linha similar, ainda que a partir de referências


bastante distintas. Ele propõe que a identidade é a manutenção da unidade interior
(inner sameness)606 e da continuidade, que se desenrola de forma mais segura
quando fundamentada na própria atividade. Particularmente no caso da identidade
constitucional, para o autor isso se dá, especialmente, na correspondência entre o
texto de um documento e o comportamento daqueles que estão sob seu âmbito de
validade607. Isto é, quando há cultura constitucional em termos normativos.

Assim, ainda que em gramática diferente da utilizada por ROSENFELD,


JACOBSOHN caminha em sentido similar, apontando que a lógica da identidade
constitucional converge para os polos da continuidade e da descoberta/invenção.

A continuidade está especialmente relacionada ao caráter prescritivo de


uma Constituição e não se confunde com o status quo da comunidade. Ela é a

605
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., pp. 27-36.
606
Aqui utilizamos outra tradução porque o autor não articula sameness em qualquer referência à
chave de RICOEUR.
607
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity, op. cit., p. 365.

225
continuidade no que ainda permanece através das mudanças que ocorrem na
dinâmica da sociedade. São:

as memórias coletivas que persistem enquanto parte da


personalidade cultural de uma nação que formam o núcleo da
identidade constitucional, o que não significa que seja
estabelecido por atos de razão abstrata, mas desenvolvido ao
longo do tempo, evoluindo com os hábitos e experiências do
corpo político608.
Além de continuidade, para JACOBSOHN a lógica da identidade
constitucional demanda descoberta e invenção. Essas dimensões, antes de serem
duas formas opostas de compreendê-la, devem ser entendidas como
complementares. Assim, a identidade constitucional é descoberta na medida em
que reconhece aquilo que existe de fato, o que o povo construiu historicamente na
interação da comunidade, na descoberta e expressão da política que já existe, mas
é, também, invenção em duas dimensões: é combinação do que é tido como geral
com aquilo que é particular (dos laços do constitucionalismo com as identidades
locais), em uma nova e própria leitura que uma dada cultura faz do
constitucionalismo; e, também, na medida em que é prescrição, não apenas
descrição, segue em constante processo de modificação609. MARK TUSHNET
resume esses dois polos argumentando que: “os que fazem a Constituição devem
tomar o povo como ele é e, ao mesmo tempo, procurar torna-lo outra coisa”610.

De algum modo, essa dualidade já está contida, também, na compreensão


helleriana de que existe uma tensão constante entre dever ser e ser sociais611 e, não
se esgotando no momento constituinte, é dualidade dinâmica que segue na própria
essência do projeto constitucional do Estado Democrático de Direito e nos pontos

608
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity, op. cit., pp. 373: “The collective
memories that persist as part of the cultural personality of a nation form the core of constitutional
identity, which is not established by acts of abstract reason, but is developed over time, evolving in
tandem with the habits and experiences of the body politic”.
609
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity, op. cit., pp. 373-375.
610
“Constitution makers must take the people as they are and, at the same moment, seek to make
them something else”, TUSHNET, Mark. How do constitutions constitute constitutional
identity?, op. cit., p. 672.
611
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 238.

226
fundamentais levantados por CANOTILHO: “1 – A constituição é garantia do
existente. 2 – A constituição é um programa ou linha de direção para o futuro”612.

Nessa ordem, as três faces do sujeito constitucional sugeridas por


ROSENFELD – aquele que exerce o poder constituinte e faz a constituição, a
coletividade que é unida pela constituição e o sujeito que é intérprete, elaborador
e suporte da constituição – confirmam-se como dimensões de uma mesma pedra
de toque que se encontra e se reafirma na contínua identificação e configuração
dessa unidade pela construção, desconstrução e reconstrução da identidade
constitucional.

Nesses termos, se as identidades constitucionais são leituras particulares do


constitucionalismo, a partir de sua interação com a cultura sobre a qual ele opera e
com outras identidades, são elas interpretações dessas estruturas. Logo, sendo a
cultura constitucional, em certo sentido, fluxo de formação das identidades, trata-
se de um processo interpretativo que se realiza, contínua e cotidianamente, não
apenas nas instâncias oficiais de interpretação da Constituição – poder judiciário,
legislativo e governamental –, mas pela sociedade como um todo613.

Um momento importante, portanto, para a cultura constitucional é o


momento constituinte, que inaugura uma nova ordem válida. O faz sem limitações
jurídicas prévias ou anteriores, mas, no entanto, pretende criar validade e ter
reconhecida a força legítima do ordenamento, porque justificado em referência à
própria identidade do constitucionalismo e ao seu soberano típico: o povo plural.

Essa nova ordem, válida, possui funções jurídicas e políticas típicas, que
variam de acordo com as identidades constitucionais particulares, mas que
612
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., p.
151.
613
SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. A identidade do sujeito constitucional no Brasil: uma
visita aos seus pressupostos histórico-teoréticos na passagem do Império para a República, da
perspectiva da forma de atuação do guardião máximo da constituição. In: XVI Encontro
Preparatório do Conpedi, 2007, Campos dos Goytacazes - RJ. Anais Conpedi / Campos dos
Goytacazes, 2007: “Buscamos reforçar a idéia de que a construção dessa identidade do sujeito
constitucional é um processo de aprendizado social do qual o guardião máximo da Constituição é
apenas um dos atores, cuja função precípua é a de manter abertos os processos de definição de
identidade constitucional que permitem que esse aprendizado institucional se afirme em longo
prazo, como um processo político democrático, em que as diferenças sejam incorporadas por via
da realização de direitos fundamentais apoiados em uma soberania popular difusa”.

227
mantém certa similaridade em razão do momento histórico do constitucionalismo
no qual opera, especialmente, em tempos de intensa interação global, como são os
atuais, e de fortalecimento e preocupação pela proteção internacional dos direitos
humanos, o que instiga o crescimento de um Direito Constitucional Comparado.

228
Parte III
Futuro
Nunca haverá uma boa e sólida Constituição
além daquela em que a lei reinará sobre os
corações dos cidadãos. Enquanto a força
legislativa não foi até lá, as leis serão sempre
eludidas
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
CAPÍTULO 7
A CONSTITUIÇÃO ENTRE A UNIDADE POLITICA E O ORDENAMENTO
JURÍDICO

A tentativa de criar um Direito válido porque legítimo (justificado) a partir da


representação e progressiva concretização de valores culturais em normas jurídicas, na
medida em que articulados com as identidades e realidades específicas de cada
comunidade, toca a própria ideia do Estado de Direito de criar-se uma força que mate a
própria força. Nesse sentido, o Direito, e particularmente o Direito Constitucional, é
modelo de controle social que impõe exigências, quer positivas, quer negativas,
decorrentes de um projeto que arroga a si a qualidade de ser legitimo por justificar-se
em parâmetros culturais que correspondem à própria identidade (individual e coletiva)
dos sujeitos que se reconhecem como cidadãos. É um argumento de legitimidade que se
justifica materialmente em relação a uma dada mundividência que é própria do
quadrante ocidental, ainda que com peculiaridades e características que lhe importam
uma postura universalista e globalizante.

A essa estrutura é indispensável que, em contrapartida, o poder seja limitado pela


própria ordem que propõe democraticamente, pois não sendo a força, mas a
justificação e a identidade seu fundamento último, a coerência do próprio exercício da
força pelo poder coloca-se como imprescindível. Portanto, como já alegava HELLER – e
antes mesmo dele, JELLINEK – no Estado de Direito o preço pago para a estabilidade da

229
ordem é o de que o próprio poder também esteja adstrito às amarras da ordem legal
que coloca.

Com isso, retira-se da discussão jurídica ordinária da comunidade jurídico-


política o amiúde processo de justificação última de legitimidade, afastando-a, em tese,
do processo cotidiano de interpretação/construção da norma jurídica, especialmente, na
interpretação/aplicação da norma de decisão. Dito de outro modo, quando se
“cristaliza” em norma válida (reproduzível) o argumento último de justificação, retira-se
da pauta de discussão comum o questionamento sobre a legitimidade da norma
individualmente, bem como, do ordenamento como um todo614.

Assim, a norma constitucional reproduzida como válida coloca-se como


argumento fundamentador ordinário de validade de todas as demais decisões jurídico-
políticas (em sentido amplo) daquela comunidade política. Logo, é possível dizer que
no dia a dia da política e do Direito, ao invés de questionar-se em todas as vezes sobre
as bases últimas de legitimidade de atuação do poder político, recorre-se, a meio termo,
a uma norma válida (em última instância de validade, à norma constitucional) que
corresponde, a princípio, a um anterior consenso de integridade. Este, de algum modo,
remete às bases jurídico-políticas comuns sobre as quais se desenvolve a dinâmica do
Estado.

Dessa maneira, a validade importa na (pretensa) estabilidade das ordens jurídicas,


que ao fixar as bases da discussão normal, coloca-se como ponto zero de discussão
“jurídica”. Essa estabilidade já era almejada no berço do constitucionalismo, como
condição própria da experiência constitucional, na figura da segurança jurídica, fruto
614
Uma observação há de ser destacada. Naturalmente, ao se falar de “cristalização” – figura utilizada por
HÄBERLE – não se está a identificar norma com texto normativo. HÄBERLE, assim como HESSE e
MÜLLER, cada um a seu modo, sofreram forte influência da Tópica de VIEWEG. Nesse contexto, é de
se registrar a enorme diversidade de posições sobre a interpretação jurídica, hoje sendo comum grande
maioria delas, o reconhecer que a norma só se constitui no próprio processo de interpretação/aplicação
do Direito. Com isso, como atenta EROS GRAU, não se pretende que o momento de
interpretação/aplicação da norma ocorra apenas quando da norma de decisão, pelo interprete autêntico,
no sentido kelseniano (maximamente: o juiz), mas de toda operação de construção da norma pela
interpretação/aplicação. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do
Direito. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. Esse, também, parece ser o caminho de HÄBERLE,
especialmente falando de texto e contexto e da sociedade aberta dos intérpretes constitucionais.
HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura, cit., pp. 39-65; HÄBERLE,
Peter. Métodos y principios de interpretación Constitucional, op. cit.; HÄBERLE, Peter. Hermenêutica
Constitucional, cit.
230
não apenas das pretensões de garantias de direitos individuais, como, também, das
demandas do capitalismo crescente615.

Nesse sentido, GARCÍA-PELAYO aponta que são próprias à ideia de constituição


as imagens de permanência e firmeza – sem as quais uma ordem constitucional seria
incapaz de cumprir sua função fundamentadora – mas que, ao mesmo tempo, a
constituição, até porque política, tem de ser, também, dinâmica, não estática616.

Ainda que aparentemente paradoxais e contraditórias, essas características de


estabilidade e dinamicidade são complementares. A dinamicidade das bases normativas
e sua capacidade de sustentar, articular e incorporar, demandas diversas influenciam
significativamente na perenidade de um projeto constitucional. Desse modo, é possível
afirmar que dinamicidade e estabilidade são faces da relação entre essência e estrutura
da realidade constitucional617.

Isso transparece no caso paradigmático da constituição norteamericana que, em


mais de dois séculos, apesar de permanecer com praticamente o mesmo texto, já
admitiu diversas estruturas políticas e sentidos diferentes à norma (normas diferentes),
que se revelam, por exemplo, nos marcos mais significativos da Foundation,
Reconstruction, do New Deal e dos Civil Rights (por vezes dito, mesmo, Second
Reconstruction). De algum modo, isso também pode ser observado quanto à Lei

615
Ainda que, em grande medida, o constitucionalismo e a Cconstituição tenham, em parte, se
desprendido dessas precisas bases originárias, avançando no sentido da inclusão de outras demandas
sociais – como foram aquelas incorporadas, a posteriori, sob do signo de 1848, por exemplo – ainda
assim, a normalidade constitucional deixa de se colocar, propriamente, a partir do imediato interesse
capitalista, quando, muitas vezes, em sua oposição. Nessa tensão, especialmente a partir do século XX,
não raro jogam-se luzes sobre o estado de exceção como forma de manter o regime e o status quo e não
mais a ordem constitucional que, em si, muitas vezes coloca-se como socialmente transformadora. É
nesse sentido que desenvolve e aprofunda BERCOVICI em: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e
Constituição, cit. De todo modo, há quem entenda que, ao mesmo tempo em que o Estado
intervencionista é uma concessão do capitalismo, em boa medida, ele é, também, a única maneira de a
própria sociedade capitalista preservar-se ao promover a diminuição das desigualdades: STRECK,
Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.
11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 24.
616
GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado. Madrid: Alianza, 1999,pp. 128-
133. REALE vai além identificando ao Direito tout court: “O Direito, como força cultural que é, e, mais
precisamente, como elemento de ordem e garantia dos valores culturais de uma comunidade, não pode
ser só estabilidade – que é a estagnação e a morte – nem só movimento e mudança, que é a falta de
continuidade, o estilhaçamento, o desperdício da vida”, REALE, Miguel. Direito e Cultura, op. cit., pp.
292-296.
617
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 327.
231
Fundamental Alemã, que, inclusive, imaginada para possivelmente ser substituída por
uma constituição618, vige e vigora desde 1949, passando pelas experiências de uma
Alemanha dividida (inclusive fisicamente por um muro), pela reunificação pós-1989 e,
mesmo, por algumas transformações de seu texto. Apesar de tudo isso, a Lei de Bonn
permanece efetiva até hoje, com patente força normativa e, principalmente,
conservando sua identidade constitucional619.

Essas constituições, por um lado, conseguem expressar identidades e projetos


culturais marcadamente constitucionais – além de marcantes do constitucionalismo –
sobre os quais os cursos políticos de suas comunidades puderam desenvolver-se, e
articular sua própria história. Por outro, conseguiram e ainda conseguem apresentar-se
com força jurídico-política suficiente, de modo que os próprios projetos políticos dos
quais são produto e símbolo, ainda que transformados e, por vezes, profundamente
ressignificados, seguem representando a identidade constitucional daquelas
comunidades jurídico-políticas. Em ambos os casos, as diversas crises constitucionais e,
por que não dizer, as diversas crises culturais vividas não apresentaram como resposta às
tensões sobre sua identidade política um rompimento completo com o projeto
cristalizado pelos e nos textos constitucionais. Pelo contrário, importaram em uma
releitura e em um revolver aos fundamentos de seus projetos jurídico-políticos nos
termos do fluxo de sua cultura constitucional, específica, e do próprio
constitucionalismo. De fato, o que essas identidades constitucionais conseguiram em seu
dinamismo, foram ser, elas mesmas, vividas, inclusive para que fossem transformadas
sem a quebra com seus fundamentos últimos e sua identidade. Na verdade, é possível
dizer que as transformações observadas nas culturas e identidades constitucionais
estadunidenses e alemãs são, mesmo, frutos de seus fundamentos últimos. Destarte, o
que conseguiram essas constituições, foi instalar uma estrutura, um ambiente, uma
cultura constitucional que se reafirma na sua própria plasticidade.

618
“Artigo 146. [Prazo de vigência da Lei Fundamental]. Esta Lei Fundamental que, após a consumação
da unidade e da liberdade da Alemanha, é válida para todo o povo alemão, deixará de vigorar no dia em
que entrar em vigor uma Constituição, que tenha sido adotada em livre arbítrio por todo o povo
alemão”, Lei Fundamental Alemã.
619
GRIMM, Dieter. Identidad y transformación: la Ley Fundamental en 1949 y hoy. Teoría y Realidad
Constitucional, Madri, n. 25, pp. 263-277, jan./jun. 2010.
232
Assim, ainda que abertas, as constituições sempre se pretendem estáveis em suas
raízes e fundamentos, em sua identidade constitucional que caminha no fluxo da cultura
constitucional. Essa ambiguidade, necessária, é possível, inclusive, porque são elas
dinâmicas em seus desdobramentos e possibilidades620.

Nessa ordem, como já mencionado, o Estado Democrático de Direito é


identificado com uma fase do constitucionalismo que vive o processo de
ressubstancialização da constituição, no que é acompanhado do amplo reconhecimento
das normas constitucionais enquanto normas jurídicas propriamente ditas, exigíveis e
aplicáveis. Nesse processo de reconhecimento e consolidação da força normativa da
constituição, tais normas apresentam-se não apenas com pretensões de normatividade
simbólica e/ou políticas nas bandeiras da liberdade, igualdade e fraternidade, mas,
claramente, com aspirações jurídico-normativas de efetivação desses valores, uma vez
que cristalizados em textos normativos cujos programas normativos acabam por serem
concretizados e densificados na dinâmica da comunidade.

Desde a Lei Fundamental Alemã, seguida dos diversos fluxos de


constitucionalização e reconstitucionalização ocorridos no mundo, exige-se cada vez
mais da eficácia jurídica das normas constitucionais, sua aplicabilidade e efetividade. Ao
mesmo tempo, ocorre um significativo crescimento do campo constitucional, com a
ampliação das questões que são incorporadas ao leque de temas constitucionalizados e
presentes no debate constitucional. Logo, a Teoria Material da Constituição que se
consolida desde então e que possui importantes afluências nos dois lados do Atlântico,
mas, especialmente, no constitucionalismo de matriz romano-germânica, passa a colocar

620
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 199; HÄBERLE, Peter. El Estado
Constitucional, cit., p. 3: “La constitución es creadora del momento de la estabilidad y de la
permanencia; el ejemplo más impresionante lo ofrece la Constitución de los Estados Unidos con sus
más de dos siglos de vigencia. No obstante, en virtud de esta duración – la Ley Fundamental alemana
(en adelante LF) incluso plantea una ‘pretensión de eternidad’ a favor de los principios fundamentales
de su artículo 70, inciso 3, en forma análoga a algunas Constituciones anteriores y a otras que le han
seguido – se requieren instrumentos y procedimientos gracias a los cuales la Constitución se adapte en
forma flexible, como ‘proceso público’, a los acontecimientos de la época, sin detrimento de su sentido:
a saber, como ‘estímulo y límite’, en los términos de R Smend, a también como ‘norma y tarea’ (U.
Scheuner), lo mismo que como ‘limitación y racionalización’ del poder del Estado (H. Ehmke), pero
también del poder de la sociedad. Precisamente la Constitución de los Estados Unidos, además de las
muy escasas enmiendas (actualmente 28) que ha sufrido en doscientos años, conoce el procedimiento
del cambio, especialmente a través de la jurisprudencia constitucional".
233
a constituição como constituição total, no que se avança no sentido de uma concepção
estrutural de constituição, sendo considerado o aspecto normativo para além da norma
pura, em sua conexão com a realidade social, em seu conteúdo fático e sentido
axiológico621. Nessa linha, CANOTILHO, com sua Constituição Dirigente, vai tratar que “a
interdependência da teorético-jurídica e teorético-social surge no campo da
«reconstrução» da teoria da constituição, através de uma teoria material da constituição
concebida como teoria social”622.

Assim, GARCÍA-PELAYO vai apontar a constituição como, simultaneamente,


integrante da ordem jurídica, da ordem estatal e da estrutura política de uma
comunidade. Da primeira, porque expressão da ordem de competência (normas
organizadoras) segundo a qual se cria todo o Direito; da segunda, porque organiza os
poderes públicos, propriamente ditos; e da terceira porque todo povo tem uma maneira
concreta de existir politicamente623.

Não de modo diferente, HANS-PETER SCHNEIDER identifica que a constituição é


Direito Político (de, sobre e para o Político) e sintetiza as funções da constituição em
três dimensões que se apresentam como implicadas e inseparáveis: a dimensão
democrática (formação da unidade política), a dimensão liberal (coordenação e
limitação do poder estatal) e a dimensão social (configuração social das condições de
vida)624.

621
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 39. SCHNEIDER, Hans-Peter. La Constitución: función y estructura. In: SCHNEIDER, Hans-Peter.
Democracia y Constitución. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 35-52, p. 42: “el
concepto moderno de constitución se debe orientar atendiendo a las funciones cambiantes de ésta y a su
modo especifico de funcionamiento en la comunidad pluralista y antagónica de la sociedad industrial. Se
debe rechazar tanto una concepción únicamente «decisionista de la Constitución, entendida como
decisión global sobre el tipo y a forma de la unidad política» (C. Schmitt), cuanto una transcripción
puramente formalista de la misma, como una «ley de difícil modificabilidad» (Kelsen). En conexión con
Smend, Heller y Hesse, la Constitución se debe entender más bien en su sentido funcional: es orden
jurídico fundamental para la formación de la unidad política, la asignación del poder estatal y la
configuración de la vida; por consiguiente y ante todo, un instrumento de control social del proceso de
consociación”.
622
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., pp. 13-
14.
623
GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado, cit., p. 99-103.
624
SCHNEIDER, Hans-Peter. La Constitución – Función y Estructura, op. cit.; citando-o: BERCOVICI,
Gilberto. Constituição e Política, op. cit.; STRECK, Lênio. La jurisdicción constitucional y las
234
HESSE, nessa mesma linha, trata de duas tarefas fundamentais da Constituição,
estreitamente relacionadas entre si: a de formação e manutenção da unidade política e a
da criação e manutenção do ordenamento jurídico625. Tratando delas, desenvolve-as em
três funções: a de integração, a de organização e a de direção jurídica626.

Nesses termos, todos esses autores colocam-se em uma mesma tradição que,
partindo de SMEND e HELLER, não aparta as características de estabilidade (jurídica) e
dinamicidade (política), mas coloca-as em necessária relação dialética.

De todo modo, ambas as faces da constituição – a de norma jurídica e a de


projeto político – pretendem moldar o vir a ser da comunidade, chegando, em alguns
momentos, inclusive, a confundirem-se. Isso, porque, todas essas dimensões
(democrática, liberal e social), ou tarefas (integração, organização e direção jurídica), ou
ainda funções (formação e manutenção da unidade política e criação e manutenção do
ordenamento jurídico), apresentam-se na forma de normas, em sentido amplo. Assim, a
constituição coloca-se como norma jurídica de maior grau hierárquico que aspira
vincular todas as demais normas situadas abaixo de si na pirâmide do ordenamento
jurídico, de modo a nortear sua interpretação, implicando-lhe coerência e integridade627.
Essa vinculação se faz patente a todos os poderes constituídos (judiciário, legislativo e
executivo) e seus agentes, a todos os particulares e cidadãos (eficácia imediata), portanto,
à sociedade de forma geral. Ela se coloca em termos de validade jurídica (pretensão de
eficácia), ou seja, desde uma estrutura lógica que implica na adequação de todas as
normas enquanto ordenamento.

No entanto, há peculiaridades nesse formato de vinculação. Enquanto o formato


comum (ainda que não necessário) das demais normas jurídicas coloca-se sobre
instrumentos de coercitividade, isto é, em instrumentos próprios e imediatos de coerção

posibilidades de concreción de los derechos fundamentales sociales. Anuario Iberoamericano de


Justicia Constitucional, Madri, n. 11, pp. 369-405, 2007.
625
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 49-37.
626
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional. In: BENDA, Ernst et. al. Manual de
derecho constitucional. 2 ed. Madrid: Marcial Pons, 2001, pp. 1-15, pp. 2-6.
627
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 213;
CHUEIRI, Vera Karam; SAMPAIO, Joanna Maria de Araújo. Coerência, integridade e decisões
judiciais. Nomos, Fortaleza, v. 32, n. 1, p. 177-200, jan./jun. 2012.
235
e sanção, o mesmo não acontece, via de regra, com as normas constitucionais. De um
modo geral, elas possuem poucos mecanismos de garantia externa, especialmente, no
que diz respeito a formatos próprios e particulares de coerção e/ou sanção. Isso não
impede reconhecer sua coercitividade, uma vez que o próprio ordenamento lhes
empresta essa característica. O próprio fato de não se interpretar o direito em tiras628
também implica que, ainda que se afaste a coercitividade como característica essencial
da norma jurídica, dificilmente pode-se afastá-la como elemento necessário do
ordenamento enquanto jurídico. Além disso, no quadro atual do constitucionalismo, há
um significativo número de mecanismos jurídicos, remédios processuais e ações
constitucionais pensados para robustecer a garantia externa da constituição. Neste
âmbito, inclusive, desenvolveu-se um dos mais importantes debates no âmbito do
Direito Constitucional brasileiro pós-1988, em que se questionava a respeito “do papel
do Direito (portanto, da Constituição) e da jurisdição constitucional no Estado
Democrático de Direito, bem como das condições de possibilidade para a
implementação/concretização dos direitos fundamentais-sociais a partir desse novo
paradigma de Direito e de Estado”629. Ele foi articulado, basicamente, no diálogo/disputa
entre duas correntes amplas de propostas e respostas, uma delas ligadas ao
procedimentalismo e outra ao substancialismo630.

O debate acerca do papel da jurisdição constitucional é inafastável da dinâmica


do Estado Democrático de Direito, especialmente, em uma realidade como a brasileira,
em que, como aponta STRECK, “as promessas da modernidade, contempladas no texto
constitucional de 1988, longe estão de ser efetivadas”631 e que, até por isso, a ideia de

628
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, cit., p. 44.
629
STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de
Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2, pp.257-
301, mai./ago. 2003, p. 260.
630
Para uma formulação bastante representativa da linha procedimentalista: CATTONI DE
OLIVERIA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo, cit. Para uma construção significativa da
corrente substancialista: STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, cit.
631
STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de
Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil, op. cit., pp. 259-260.
236
constituição dirigente-compromissária, talvez, tampouco possa mesmo ser afastada
definitivamente632.

Entretanto, GRIMM não deixa de lembrar que “não existe oficial de justiça em
matéria constitucional”, o que significa que, em última análise, em situação limite, o
descumprimento de um mandamento constitucional não possui meios de impor-se pela
força633. Ele é dependente da própria estrutura de legitimação da democracia para fazer-
se impor.

Por essa razão, as tarefas de formação e manutenção da unidade política, bem


como, as funções delas desdobradas, também influenciam na própria força normativa e
eficácia da constituição de forma peculiar. Isso porque, de algum modo, a própria
constituição não pode se pretender como panaceia a todas as questões sociais,
tampouco pode acreditar-se desgarrada do Estado ou da política. A constituição, mesmo
em seus programas e pretensões, depende, influencia e é influenciada por essas duas
outras figuras determinantes na comunidade.

7.1. CRIAÇÃO E MANUTENÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO


JURÍDICO

“Como um corpo de normas jurídicas de máximo grau hierárquico, a


constituição pretende, precipuamente, produzir efeitos normativos”634. No Estado
Democrático de Direito, antes de tudo, a constituição é norma e como norma, tem
pretensão de eficácia. Nesse sentido, CANOTILHO afirma: “a força normativa da

632
STRECK, Lênio. Intervenção, op. cit.
633
Naturalmente, entendida interpretação como um processo de concretização de textos normativos e
programas normativos em normas jurídicas, e de normas jurídicas em normas de decisão, em muitos
casos, a norma jurídica constitucional é concretizada em e por normas jurídicas que, por sua vez,
possuem tais mecanismos coercitivos.
634
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 194: “As the embodiment of the highest-
ranking legal norms, the constitution is primarily intended to produce normative effects”.
237
constituição visa exprimir, muito simplesmente, que a constituição sendo uma lei como
lei deve ser aplicada”635.

A constituição cria o ordenamento, uma vez que, ao institucionalizar um projeto


jurídico-político de Estado e de comunidade, funda uma nova ordem jurídica, uma nova
legalidade. Em tese, nenhum Direito anterior terá mais validade (vigência), a menos que
ela mesma o reconheça como válido. De mesmo modo, organiza juridicamente o
político, designando competências e procedimentos de como criar o Direito válido, em
maior ou menor nível de concreção. Assim, quer em sua função de diretriz jurídica,
conferindo unidade e integridade ao ordenamento, quer na tarefa de organização do
político, a Constituição existe e atua, eminentemente, como norma jurídica.

Falar em força normativa é tratar de um conceito bastante amplo,


pluridimensional, que anda lado a lado com a própria ideia de eficácia. Uma primeira
dimensão possível à força normativa da constituição – a mais comumente trabalhada,
inclusive – é, justamente, aquela que diz respeito à capacidade das normas
constitucionais fazerem-se valer enquanto vinculativas das demais normas do
ordenamento. Com esta identifica-se a força normativa em sentido estritamente jurídico,
ou seja, da constituição enquanto norma jurídica hierarquicamente superior, portanto,
em uma análise desde o estrito ponto de vista da validade, para se responder sobre qual
o direito no momento da intepretação.

Particularmente sobre a eficácia, INGO SARLET aponta que o próprio “termo”


engloba inúmeros aspectos para análise e problematização636. É um conceito que se
aproxima e, muitas vezes, confunde-se com vários outros da Teoria do Direito (e,
mesmo, com outros para além dela) importantes para a compreensão da dinâmica
jurídica e constitucional.

635
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1150.
Tratando em um sentido um pouco mais amplo MARCELO NEVES dirá que a força normativa deve ser
“entendida como a orientação das expectativas e o direcionamento das condutas na esfera pública de
acordo com o modelo normativo constitucional”. NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e
desconstitucionalização fática, op. cit., p. 323.
636
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p.
235.
238
JOSÉ AFONSO DA SILVA, tratando da Aplicabilidade das normas constitucionais,
vai relacionar positividade, vigência, eficácia, observância, facticidade e efetividade,
desenvolvendo mais detidamente os três primeiros termos. Por positividade do Direito
identifica a característica que tem o Direito que rege a conduta humana por normas
bilaterais e atributivas, socialmente postas, in concreto, quer histórica, quer atualmente.
Para caracterizar o Direito vigente JOSÉ AFONSO aproxima-se da definição kelseniana de
vigência; entende-o como aquele que rege hic et nunc as relações sociais, portanto, o
Direito presente637. Por eficácia do Direito o autor tratará de, pelo menos, duas
dimensões: a da eficácia jurídica e a da eficácia social638.

Acerca da eficácia jurídica da norma, JOSÉ AFONSO DA SILVA descreve-a como:

a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao


regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que
cogita; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade,
exigibilidade ou executoriedade da norma, como possiblidade de
aplicação jurídica639.
Com isso, o autor parece colocar a eficácia jurídica como qualidade intrínseca da
norma jurídica em si e, ao tratar particularmente da eficácia jurídica das normas
constitucionais, menciona que “não há norma constitucional alguma destituída de
eficácia”640. Com essa definição JOSÉ AFONSO DA SILVA converge a eficácia jurídica à
própria dimensão da validade do Direito641, relacionando-a ao plano normativo, à
potencialidade de produzir efeitos e de ser aplicada no momento da
interpretação/aplicação do Direito. Este sentido aproxima-se daquele que autores
portugueses tratarão por imperatividade do Direito, particularmente, tomando como
posição, a imperatividade como característica constitutiva e necessária do Direito642.

637
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 11-16.
638
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
pp. 63-66.
639
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 66.
640
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 81.
641
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do Direito. 4 ed. São Paulo: RT, 2011: “a
validade da norma (...) é denominada, às vezes, de ‘eficácia jurídica’”. 283
642
ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
pp. 35-37; OTERO, Paulo. Lições de Introdução ao Estudo do Direito. Lisboa: Pedro Ferreira, 1999,
v. I, t. 2, pp. 143-208. No mesmo sentido, ANA PAULA DE BARCELLOS vai identificar que: “o elemento
essencial do direito, e da norma jurídica em particular, consiste na imperatividade dos efeitos
239
A imperatividade, como trata OLIVEIRA ASCENSÃO, não se coloca no fato de as
normas jurídicas (em geral) ou das normas constitucionais (particularmente) serem de
fato cumpridas ou não, mas que elas devem ser cumpridas no plano normativo. Isto é,
nos casos em que ocorrem as hipóteses para aplicação da norma, é imperativo que seu
comando seja, efetivamente, tido em conta e respeitado na operação de interpretação
do Direito.

A imperatividade, ou a eficácia jurídica, é decorrência da própria juridicidade de


uma norma. O que diferencia uma norma constitucional de uma norma jurídica regular
não é a existência ou inexistência da eficácia jurídica, mas as peculiaridades no processo
de interpretação/aplicação dadas as particularidades da primeira.

Destarte, à primeira vista, perguntar sobre a aplicabilidade das normas


constitucionais ou, mesmo, sobre sua eficácia jurídica, não ultrapassa os limites da
própria dimensão da validade do Direito. Essa é uma questão que, a princípio, coloca-se
eminentemente no plano normativo do ordenamento e o que transparece com ela é a
preocupação (real e legítima) com a sistematicidade, unidade e coesão do Direito
enquanto ordenamento.

Assim sendo, essa dimensão, sem dúvida, coloca-se como indispensável à


vivência do Direito, à normatividade do ordenamento e à concretização da norma no
processo de interpretação/aplicação. Vários são os pontos que demonstram a
importância e complexidade desse processo, tais como: a não identidade entre texto e
norma; a abrangência do texto normativo constitucional; a complexidade do processo
de interpretação/aplicação do Direito; as exigências de unidade, coerência e completude
do ordenamento; o fato do direito não ser interpretado em tiras, como menciona EROS
GRAU643; a questão da integridade levantada por DWORKIN, dentre outras.

No debate brasileiro, essa tem sido a acepção mais correntemente utilizada


quando se fala em eficácia das normas constitucionais644. Entretanto, é de se destacar que

propostos”, BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio
da dignidade da pessoa humana. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 38
643
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, cit., p. 44.
644
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, cit.; BARCELLOS, Ana Paula
de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, cit.; BARROSO, Luís Roberto. Intepretação e
240
a eficácia jurídica, tomada neste sentido, na verdade coloca-se como uma pretensão de
eficácia (Geltungsanspruch) e, como aponta HESSE, particularmente quanto à força
normativa da constituição, “não pode ser separada das condições históricas de sua
realização”645.

Assim, no plano da compreensão do fenômeno jurídico, restringir a preocupação


da força normativa da constituição, ou mesmo, da eficácia das normas constitucionais à
sua dimensão estritamente jurídica, expõe problema que, por analogia, é comparável
àquele que HELLER já apresentava ao criticar o positivismo kelseniano: o de ser incapaz
de explicar a própria positividade.

A pretensão de toda norma é fazer-se cumprida; por conseguinte, é tornar-se


socialmente eficaz. Todo dever ser pretende-se um vir a ser; deste modo, restringir a
abordagem do Direito ao plano jurídico-normativo, estreitando a questão da eficácia à
eficácia jurídica (imperatividade), é válido e importante para a discussão a respeito da
interpretação/aplicação do Direito, contudo é um corte que reduz a própria dinâmica
do Direito, em particular, no que diz respeito a sua compreensão e vivência. Esse
aspecto destaca-se de maneira especial para as normas constitucionais, em que se
intersectam, comunicam e influenciam Direito e Política. Nesse contexto, em sendo a
constituição não só jurídica, mas também política, sua eficácia coloca-se em termos
excepcionais. Suas normas apresentam diferentes formatos de vinculação e
aplicabilidade e, especialmente, possuem relações diferentes quanto à sanção.

Naturalmente, não é de se exigir que em toda operação de


interpretação/aplicação do Direito sempre se volte à questão jurídico-política de fundo
que aqui se desenvolve a partir da dinâmica entre legitimidade, validade e eficácia.
Como dito, as próprias pretensões de estabilidade e integridade da ordem demandam a
existência de uma base comum de discussão e decisão. Em que pese o fato de uma
posição quanto à Teoria da Constituição e do Estado refletir nas posturas para
interpretação do Direito, especialmente, do Direito Constitucional, neste,

aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. São


Paulo: Saraiva, 2008; SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 210-212.
645
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, cit. p. 14.
241
particularmente, haverá mais claramente uma relação intrínseca entre a primeira e mais
comum dimensão identificada à força normativa da constituição, eminentemente
jurídica, e uma segunda que é exposta mais claramente na face jurídico-política da força
normativa da constituição.

Assim, a preocupação em destaque com a questão da eficácia jurídica, embora


útil e importante para o dia a dia do Direito, acaba por não avançar no sentido da
dialeticidade da experiência jurídica, restringindo-se à própria dimensão do Direito
válido em sua adequada interpretação/aplicação646.

Quanto à eficácia social, JOSÉ AFONSO DA SILVA define-a como a efetiva conduta
presente na norma, portanto, realiza-a no fato de uma norma ser obedecida e aplicada.
Como aponta o próprio autor, esse é, também, o sentido dado à eficácia, de modo
geral, por BOBBIO647, mas, também, nas tríades de REALE e ALEXY. Nesse sentido, JOSÉ
AFONSO trata os conceitos de eficácia social e de efetividade como sinônimos, posição
corrente na Teoria do Direito brasileira648 sendo possível, inclusive falar em uma

646
Não será em sentido diferente que JOSÉ AFONSO DA SILVA afirma: “Uma norma só é aplicável na
medida em que é eficaz. Por conseguinte, eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais
constituem fenômenos conexos, aspectos talvez do mesmo fenômeno, encarados por prismas
diferentes: aquela como potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade. Se a norma não dispõe
de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de
aplicabilidade. Esta se revela, assim como possibilidade de aplicação. Para que haja essa possibilidade, a
norma há que ser capaz de produzir efeitos jurídicos”, SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das
normas constitucionais, cit., p. 60. VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA relata que muitos autores apontam para
a falta de clareza nessa diferenciação feita por JOSÉ AFONSO DA SILVA. O próprio VIRGÍLIO AFONSO
DA SILVA propõe uma diferenciação que, coerente com sua postura sobre interpretação jurídica (que,
particularmente, não compartilhamos), identifica a eficácia jurídica com a aptidão de uma norma
produzir efeitos e a aplicabilidade com a conexão entre fatos e normas em um caso concreto,
envolvendo, portanto, uma dimensão fática. SILVA, Virgílio Afonso. A Constitucionalização do Direito,
cit., pp. 54-57; SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais, cit., pp. 210-212.
647
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica, cit., p. 47: “o problema da eficácia de uma norma é
o problema de ser ou não segunda pelas pessoas a quem é dirigida (os chamados destinatários da norma
jurídica) e, no caso de violação, ser imposta através de meios coercitivos pela autoridade que a evocou.
Que uma norma exista como norma jurídica não implica que seja também constante seguida”.
648
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, cit., pp. 112-115; FERRAZ JÚNIOR, Tércio
Sampaio. Introdução ao estudo do Direito, cit., pp. 165-171; BARROSO, Luís Roberto. O Direito
Constitucional e a Efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 84-89; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos
Fundamentais, cit., pp. 235-241.
242
doutrina brasileira da efetividade649, que tende a se aproximar do que CANOTILHO trata
por realização constitucional650.

EROS GRAU, no entanto, diferencia os conceitos de efetividade e eficácia,


propriamente dita651. Para tanto, aborda como iguais os conceitos de efetividade
jurídica652, efetividade formal653 e eficácia jurídica reportando-se, explicitamente, ao
conceito de JOSÉ AFONSO DA SILVA. Nesse sentido, destaca-o como possibilidade de
geração de efeitos pela norma jurídica, aproximando-o, assim, da própria ideia de
pretensão de eficácia. Ou seja, efetividade formal/efetividade jurídica/eficácia jurídica,

649
Por todos: BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas, cit.
Tratando da própria “doutrina brasileira da efetividade”: BARROSO, Luís Roberto. A doutrina
brasileira da efetividade. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques Lima, BEDÊ,
Faya Silveira (Org.). Constituição e Democracia: estudos em Homenagem ao professor J.J. Gomes
Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 435-447. LÊNIO STRECK apresenta, ainda que ligeiramente,
em nota de rodapé, uma crítica interessante a essa doutrina, especialmente, alegando que seus
partidários, recorrentemente, não observariam a diferença entre texto normativo e norma: STRECK,
Lênio. A interpretação da constituição no Brasil: breve balanço crítico. Revista Paradigma, Ribeirão
Preto, a. 17, n. 21, pp. 2-35, jan./dez. 2012. A crítica parece válida, apesar de, possivelmente, um pouco
generalista e taxativa. STRECK destaca como se BARROSO classificasse dentro de uma “doutrina
brasileira da efetividade” diversos autores, particularmente, JOSÉ AFONSO DA SILVA, CELSO ANTÔNIO
BANDEIRA DE MELLO, CELSO RIBEIRO BASTOS, CARLOS AYRES DE BRITTO, MARIA HELENA DINIZ,
além do próprio LUÍS ROBERTO BARROSO. Esse “agrupamento” não nos parece efetivamente feito por
BARROSO, que, sem generalizar esses autores, apenas destaca suas contribuições para o “tema da
eficácia e do próprio papel das normas constitucionais”. Assim, é difícil tratar a todos de forma
uníssona. Nesse sentido, ainda que os termos utilizados por JOSÉ AFONSO DA SILVA em seu
Aplicabilidade das normas constitucionais (tese originariamente escrita entre 1967 e 1968 e defendida
como tese de livre-docência na Universidade Federal de Minas Gerais) por vezes possam dar a entender
essa não diferenciação, não nos parece que essa seja, necessariamente, sua posição, especialmente se
levadas em conta as observações mais específicas que desenvolve em: SILVA, José Afonso. Teoria do
conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 717-1000.
650
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1200:
“Realizar
Realizar a constituição significa tornar juridicamente eficazes as normas constitucionais. Qualquer
constituição só é juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através da sua realização. Esta realização é
uma tarefa de todos os órgãos constitucionais que, na actividade legiferante, administrativa e judicial,
aplicam as normas da constituição. Nesta «tarefa realizadora» participam ainda todos os cidadãos
‘pluralismo de interpretes’ que fundamentam na constituição, de forma directa e imediata, os seus
direitos e deveres”. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha, cit., p. 47-52.
651
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 17 ed. São Paulo:
Malheiros, 2015, pp. 315 e ss.
652
JEAMMAUD, Antoine. En torno al problema de la efectividad del derecho. Crítica Jurídica: Revista
Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, n. 1, pp. 5-15, 1984, pp. 11-12.
653
CORREAS, Oscar. Teoría sociológica del Derecho y Sociología Jurídica: parte II. Crítica Jurídica:
Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, n. 8, pp. 73-108, jan./jun. 1988, pp. 92-95. Na
verdade, CORREAS divide dois grandes grupos de efetividade: a) no cumprimento, ao que identifica por
consenso e por temor; b) na aplicação, que dividirá em formal e material. Além disso, identifica dois
tipos de efetividade: a) subjetiva; b) objetiva.
243
para EROS GRAU, seria aquela qualidade que se manifesta quando há a “conformidade
de uma situação jurídica concreta ao modelo que constitui a norma”654.

De outra parte, GRAU trata da efetividade material655 (ou simplesmente


efetividade) como sinônimo da expressão eficácia social. Para ele, percebe-se efetividade
quando há a conformidade entre a situação fática e a situação jurídica determinada ao
sujeito, logo, ela se manifesta quando a conduta determinada pela norma individual é
produzida. Esse sentido guarda alguma conexão com aquilo que FRANZ NEUMANN trata
por validade sociológica da norma jurídica656.

No entanto, para além dessas duas dimensões, que se aproximam em muito das
duas dimensões correntemente trabalhadas no debate brasileiro como eficácia jurídica e
eficácia social, EROS GRAU identifica uma terceira dimensão a que chama,
simplesmente, eficácia (sem adjetivação). Para o autor, ela consiste na “realização efetiva
dos resultados (fins) buscados pela norma”657.

Em que pese a construção de EROS GRAU despertar certa confusão658, além de


possíveis críticas659, ela atenta para uma questão jurídico-política importante: em boa

654
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 317.
655
“Efectividad material” é o termo encontrado, tanto em JEAMMAUD, quanto em CORREAS.
656
NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., p. 48 : “para poder decidir se uma certa norma
jurídica é sociologicamente válida, temos de investigar se o Estado, enquanto aparelho coercitivo, provê
de acordo com aquelas normas jurídicas tal garantia apoiada pela coerção sobre o comportamento, ou
se ele tem tal poder em razão de um comportamento médio, o qual se supõe que as normas vão se
realizar. Trata-se, então, de uma questão sobre o comportamento típico”.
657
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 316.
658
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 318: “Estou inteiramente
consciente da inconveniência do uso de um vocábulo ou expressão que costumeiramente seja destinado
a conotar determinado conceito para, ele ou ela mesma, conotar diverso conceito. Eficácia é o vocábulo
que tem sido usado, pela doutrina que referi, para conotar a realização efetiva dos resultados (fins)
buscados pela norma; efetividade material é a expressão que tem sido usada, pela mesma doutrina, para
conotar a ideia, corrente entre nós, de eficácia social. Permito-me, em respeito ao leitor, insistir em que
não estou a distorcer o significado do vocábulo eficácia, porém tão somente trabalhando com um novo
conceito. Penso merecer também eu respeito, no sentido de que se me torne possível expô-lo tal como
conotado pela doutrina que o acolhe”.
659
A primeira delas diz respeito, não exatamente à construção em si, mas à sua compatibilidade à
metódica estruturante que EROS GRAU coloca e desenvolve com perspectivas próprias, ainda que sob
forte influência das formulações MÜLLER. Isso porque, desde essa perspectiva, via de regra, é difícil
identificar fins da norma, uma vez que, para ele, a rigor, a norma só é constituída na
interpretação/aplicação. Por outro lado, essa dimensão destacada por GRAU não parece incompatível
com outras perspectivas relacionadas à interpretação jurídica e constitucional, como os métodos
concretizadores e concretistas de HESSE e HÄBERLE.
244
parte dos casos, a eficácia social (efetividade material) de uma norma, não importará no
completo atingir de seus objetivos últimos. GRAU faz esses reparos justamente ao tratar
das normas constitucionais, particularmente, à previsão de aplicação imediata dos
direitos e garantias individuais, prevista no art. 5º, §1º da Constituição Federativa do
Brasil.

Em sentido similar e atentando a essa questão, ainda que com outra


terminologia, MARCELO NEVES disporá que, quer o conceito de eficácia, quer o de
efetividade, são conceitos relativos e graduais. Trata da eficácia como a observância,
execução e uso, como “conformidade dos comportamentos ao conteúdo (alternativo) da
norma” e como “realização do ‘programa condicional’”, portanto, em sentido inverso ao
de EROS GRAU. E aborda a efetividade em alusão ao fim do legislador ou da lei,
referente “à implementação do ‘programa finalístico’ que orientou a atividade legislativa,
isto é, à concretização do vínculo ‘meio-fim’ que decorre abstratamente do texto legal”660.

Fato é que todas essas três dimensões da eficácia, em sentido amplo, relacionam-
se à ideia original de força normativa da Constituição de KONRAD HESSE, mas, mesmo
antes disso, na própria dicotomia que historicamente se apresentou na discussão entre o
caráter (exclusivamente) político ou, eminentemente, jurídico de uma constituição.

Uma constituição não se propõe como mera norma capaz de conduzir todo o
ordenamento jurídico, apenas (projeto jurídico), mas pretende ver esse ordenamento
implementado pela e na comunidade de modo a transformá-la e conduzir suas
dinâmicas de acordo com a identidade da qual ela é símbolo (projeto político). É nessa
esteira que também se relaciona à dimensão dinâmica da cultura constitucional e,
especialmente, a seu elemento vital. Esta extrapola a relação dialética entre validade e
legitimidade, uma vez que não se esgota no diálogo entre o ser e o dever ser de uma
Constituição, mas, de algum modo, também não deixa de estar contida na relação entre
normalidade e normatividade. Por isso, consequentemente, também é abrangida pelo
conceito dinâmico de cultura, colocando-se na relação entre legitimidade e eficácia661.

660
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica, cit., pp. 47-48.
661
Lembra-se que a relação entre validade e eficácia é mais patente que essa que se traça entre
legitimidade e eficácia. O próprio KELSEN discorre a seu respeito: KELSEN, Hans. Teoria Pura do
Direito, cit., pp. 235-238.
245
7.2. FORMAÇÃO DA UNIDADE POLÍTICA
POLÍTICA: INTEGRAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO

A tarefa da constituição de formação e manutenção da unidade política ganha


maiores dimensões, especialmente, com a Teoria Material da Constituição, que, como
dito, desenvolve-se com o Estado Social e Democrático de Direito e pretende a
constituição como parte integrante da ordem jurídica, da ordem estatal e da estrutura
política, simultaneamente.

A princípio ela é bastante relacionada àquela que HESSE identificará como sua
função integradora, que, por sua vez, bebe no conceito de integração pretendido por
SMEND. Desta, inclusive, desenvolvem-se várias chaves muito caras ao
constitucionalismo democrático, como são a vontade de Constituição, o patriotismo
constitucional e o sentimento constitucional, que ainda serão mais detidamente tratadas.

Como já citado, na formulação smendiana a essência do conceito de integração


encontra-se no: “processo de participação ininterrupta das consciências individuais à
realidade total do Estado, ou seja, adesão sempre renovada dos membros da
comunidade às ideias e aos valores que constituem a razão de ser da própria existência
da comunidade”662.

Nesse contexto, a ideia de integração de SMEND coloca-se ao lado da visão de


HELLER, dentre as perspectivas dialéticas da Teoria do Estado e da Constituição que se
formulam em referência a RENAN. Este, por sua vez, define: “la existencia de una
nación es (perdonen esta metáfora) un plebiscito cotidiano, como la existencia del
individuo és una afirmación incesante de vida”663. Assim, todos estes buscavam
compreender a dinamicidade da realidade e da vida estatal, bem como, a dinamicidade
e dialeticidade da própria cultura constitucional.

662
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 46.
663
RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?, cit., p. 66. Também lembrado em: HABERMAS, Jürgen.
Cidadania e identidade nacional. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e
validade, v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, pp. 279-305, pp. 282-283.
246
Nessa esteira, a chave da integração pela constituição (ou integração através da
constituição) é colocada em diversos momentos e debates, sempre no sentido de
processo de consolidação de unidade política em alternativa a outros processos de
formação de unidade, alicerçados sobre outros parâmetros de unidade, como nação,
religião, etnia etc. Coloca-se, também, frente à própria ausência ou tenuidade dos
parâmetros de unidade da comunidade jurídico-política que se pretende664, portanto, ela
se articula com a dimensão da identidade constitucional que se forma e é formada no
fluxo da cultura constitucional.

Dito de outra forma, a integração pela Constituição tem por escopo, justamente,
criar uma unidade a partir da Constituição, colocando-a como vértice e centro comum
de uma unidade cultural em sentido político, mas não apenas. Isso porque, a
Constituição entendida em seu sentido total, se converte em ordenamento jurídico
fundamental não apenas do Estado, mas, também, de toda a vida dentro do território de
um Estado, apresentando-se, efetivamente, como “ordenamento jurídico fundamental
do Estado e da comunidade”665. Trata-se, portanto, de uma integração em liberdade666,
do indivíduo crítico na comunidade.

Nesse contexto, GRIMM vai se referir à função integradora das constituições


como um efeito extrajurídico de um objeto jurídico, definindo-o como um processo
efetivo em que os membros de uma comunidade acabam por desenvolver uma
identidade coletiva e um espírito comum que os faz diferenciar-se de outras

664
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 204. Quanto a esses casos, como tantos
outros, GRIMM destaca os casos da unidade política dos Estados Unidos da América do norte, que se
funda e se constrói, basicamente, como um país de imigrantes e de grande diversidade, o caso da
Alemanha dividida da segunda metade do século XX, e, contemporaneamente, da situação europeia,
iminente. Tratando do caso europeu contemporâneo: BOGDANDY, Armin von. The European
Constitution and the European Identity: text and subtext of the treaty establishing a Constitution for
Europe. I-CON, Oxford/Nova York, v. 3, n. 2 & 3 (edição especial), mai. 2005, pp. 295-315; HESSE,
Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., pp. 3 e ss.; DWORKIN, Ronald. A virtude
soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2005, pp. 324 e ss.;
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política, op. cit., passim.
665
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., p. 5. BÖCKENFÖRDE, Ernst-
Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 161. HÄBERLE dirá “ordenamento jurídico
fundamental do Estado e da sociedade”: HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., p. 3;
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit., pp. 150-
154.
666
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 50.
247
comunidades. Nesse contexto, aponta que, em que pese a integração ser vista como
condição de unidade e ação coletiva, ela não implica na eliminação forçada da
pluralidade de opiniões e interesses dentro da unidade do sujeito constitucional667.

PAULO FERREIRA DA CUNHA, por sua vez, identifica essa função como própria
de todo Direito, sendo ela destacada quanto à constituição, especialmente, em razão de
sua abrangência e preponderância. Assim, define a função integradora como a
solidificação da “sociedade política” estatal, com a consolidação das instituições, com o
estabelecimento de ordem, hierarquia e paz sociais, e ainda, resgatando ENGISH,
destaca que a constituição também contribui para dar sentido ao mundo, o que é uma
das mais relevantes funções sociais do Direito668.

DWORKIN também dá destaque para a questão da integração sob uma


perspectiva liberal, afirmando que cidadãos que dão valor à própria vida e confiam no
sucesso da comunidade ao tratar a todos com igual consideração, vivem em uma
integração que se torna fonte importante de estabilidade e legitimidade, uma vez que
mesmo que os membros discordem significativamente sobre as interpretações da
constituição e, mesmo, sobre o que é justiça, eles compartilham “o entendimento de
que a política é um consórcio em sentido especialmente estrito”669.

Portanto, é possível identificar que a constituição participa de duas das três


formas de integração pretendidas por SMEND, uma vez que, como símbolo de unidade,
atua no processo de integração funcional, mas, também, coloca-se como processo de
integração material em seus valores. Particularmente esta segunda configuração implica
consequências que se relacionam à própria normatividade das normas constitucionais,
na medida em que, para além de um símbolo estático em torno do qual a comunidade
forma e consolida sua unidade política, a constituição é, ela mesma, dever ser enquanto
norma jurídica e como projeto político que se pretende concretizar em sua própria
vivência. Assim, o processo de integração adquire a configuração de tarefa comum, em

667
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 193. GRIMM não chega a utilizar a expressão
sujeito constitucional.
668
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Princípios-tópicos de hermenêutica constitucional. Disponível em:
http://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1031&context=pfc, p.14.
669
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: WFM Martins
Fontes, 2005, pp. 324-325.
248
movimento, que tem como impacto, de algum modo, o consolidar de uma mundivisão
e de valores a serem remontados e reconstruídos coerentemente com a identidade
constitucional pluralista.

7.3. CONFIGURAÇÃO SOCIAL DAS


DAS CONDIÇÕES DE VIDA: ORDENAMENTO
ORDENAMENTO JURÍDICO

FUNDAMENTAL DO ESTADO E DA COMUNIDADE


COMUNIDADE

Após século e meio de cisão entre Estado e sociedade, não raro aponta-se a
Weimar, ao Estado Social de Direito e, por conseguinte, ao Constitucionalismo Social,
o papel e o momento de (re)conciliação entre esses dois polos.

Como já mencionado, o Estado de Direito surge, em boa medida, em resposta


ao momento absolutista em que o poder, dionisiacamente, absorvia os cidadãos e a
sociedade como um todo. As revoluções liberais, significativamente influenciadas pelo
pensamento moderno e pelo surgimento do capitalismo, apresentavam projetos que
pretendiam, a princípio, libertar o individuo das amarras do poder, o que fica claro nas
declarações de direitos, no perfil liberal dos sistemas jurídicos filhos daquele período,
na liberdade como não intervenção do Estado, na igualdade formal perante a lei, no
livre agir e na segurança jurídica.

A escalada do capitalismo, suas contradições e insuficiências, inclusive para


atingir suas próprias demandas, apresentam desafios incomparáveis ao Estado de
Direito do início do século XX. Nesse momento, o próprio sistema capitalista sofria
crises agudas, maximamente representadas pelo Crash de 1929 e a Grande Depressão
que lhe seguiu, com suas consequências e desdobramento em todo o mundo. A partir
de 1917, o comunismo passa a crescer como modelo de Estado, economia e sociedade
rival, gerando uma tensão que se alongará por quase todo o século XX. Tudo isso,
combinado ao acirramento e aos desdobramentos das questões político-sociais que
eclodiram na Primavera dos Povos em 1848 e ao desmoronamento das bases políticas
da Europa Central (especialmente, com os fins dos impérios Alemão e Austro-

249
Húngaro), fez surgir o Estado Social de Direito em alternativa ao formato liberal até
então dominante, ainda que decadente.

É verdade que, desde então, já avançamos na direção de outro modelo de


constitucionalismo, que marca o Estado Democrático de Direito. No entanto, desde
Weimar, não se pode mais cindir completamente Estado e sociedade, tampouco,
prescindir do diálogo de um com o outro. Embora não se confundam, articulam-se e
colocam-se em relação de interdependência. Consequentemente, o Estado de Direito só
pode ser entendido e realizado no Estado de Direito material, ou no Estado Social de
Direito, como previa HELLER. Isso porque, a própria liberdade, entendida como
leitmotiv dessa máxima construção cultural, não pode ser compreendida como
construção estática, individual ou atomista, mas, apenas, enquanto liberdade concreta,
dinâmica e viva.

Assim, como mencionado, já com o Estado Social de Direito, mas,


especialmente, com o Estado Democrático de Direito, a constituição não se pretende
apenas organizadora do político e diretriz do jurídico, mas, também, ordenadora da
própria comunidade e do social.

Mais que isso, a constituição do Estado Democrático de Direito pretende


colocar-se em identidade material com a própria comunidade, influenciando-a,
moldando-a, direcionando-a e sendo por ela influenciada, moldada e direcionada, em
uma relação de mútua conformação dinâmica e dialogal. Portanto, para além da
organização do político ou de ordenação do jurídico, pretende-se, também, como
identidade (pluralista) da comunidade jurídico-política. E, assim, não se coloca como
simples norma de organização de competências ou modelo de exercício do poder.
Tampouco, como norma jurídica que impõe limites ao próprio exercício de uma
liberdade selvagem e desprendida. Ela, a um só tempo, pretende ser norma e
identidade de uma comunidade que se fundamenta e justifica em uma premissa que se
faz parâmetro normativo de validade, do qual importa o igual respeito a todos, em
virtude do reconhecimento de uma igualdade fundamental comum. Assim, uma
dinâmica que se desenvolve a partir de uma liberdade parametrizada por essa igualdade,
bem como, de uma igualdade compromissada com a liberdade, logo, numa

250
comunidade livre, igual e fraterna. Nesse sentido, é possível afirmar, novamente com
ROSENFELD, que é da identidade do constitucionalismo e, consequentemente, das
amarras que lhe são próprias e decorrentes, a promoção do reconhecimento mútuo
entre os indivíduos entre o eu e o outro, em pé de igual dignidade.

Como coloca STRECK, “é razoável afirmar que o Direito, enquanto legado da


modernidade – até porque temos uma Constituição democrática – deve ser visto, hoje,
como um campo necessário de luta para implantação das promessas modernas”670.
Desse modo, a constituição não tem pretensão de eficácia (e validade) apenas sobre o
poder (estatal), para, limitando-o, evitar que ele tolha a liberdade (concreta) dos
cidadãos e, dirigindo-o, vincular a atividade do Estado a um programa de justiça social671.

Ela também aspira que os poderes sociais, eles mesmos, não gerem situações de
opressão e exploração que importem na perda de identidade constitucional daquela
própria comunidade, portanto, que maculem sua premissa cultural que é a igual
liberdade de todos672. Isso se reflete nos mais diversos âmbitos, econômicos, sociais ou
culturais, e, muitas das vezes, é encontrado de maneira bastante expressa nos textos
constitucionais673.

670
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, cit., p. 48.
671
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, cit.
672
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: derrubada da Constituição e a
recolonização pelo golpe de Estado institucional. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 19-31, p. 21: “À
púnica dos globalizadores neoliberais opõe-se o humanismo do Estado social e sua filosofia do bem
comum e o poder legítimo do Estado social que, gerado no constitucionalismo de origem weimariana e
aperfeiçoado nas Constituições subseqüentes à Segunda Grande Guerra Mundial, até ser atropelado,
ultimamente, pela onda de expansionismo da reação capitalista, nem por isso se desfez de seu potencial
de luta ou perdeu por inteiro a capacidade de resistência eficaz ao novo status quo do capitalismo”. Em
sentido similar, JOSÉ LUIZ BORGES HORTA vai identificar como adversários do Estado de Direito tanto
os neoliberais, como os neoconservadores, que com suas pautas e métodos “tecnicistas”, atropelam os
fundamentos do próprio Estado de Direito, em nome de uma dita nova ordem mundial. O fazem,
especialmente, utilizando-se de um discurso de tecnicização e racionalização que pretende a
despolitização do debate, esvaziando o próprio Estado de Direito. HORTA, José Luiz Borges et al.
História do Estado de Direito, cit., pp. 199-203; HORTA, José Luiz Borges. A era pós-ideologias e suas
ameaças à política e ao Estado de Direito. Confluências, Niterói, v. 14, n. 2., pp. 120-133, dez. 2012.
673
Exemplo patente disso está no fato de os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
elencados na CRFB, estarem, basicamente, todos eles relacionados à construção e ao desenvolvimento
da própria sociedade: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I -
construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
251
Essa característica fica ainda mais clara quando do reconhecimento da
aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, amplamente prevista nos textos
constitucionais como, também, aos efeitos dela decorrentes, maximamente, na
vinculação dos particulares e na eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Além disso, não raro se vê, nos diversos textos normativos da família
constitucional, disposições que vão definir (pluralisticamente) valores e conceitos
próprios da sociedade. Em que pesem suas implicações jurídicas, essas disposições, na
verdade, são particularmente relacionados à vida da comunidade e de seus membros,
independente do Estado, como são os casos das definições constitucionais sobre a
família (quer diretamente pelo texto normativo, quer pela norma formulada em
jurisdição constitucional), sobre políticas de inclusão social e redução das desigualdades,
na vedação ao preconceito de toda espécie, inclusive nas relações particulares, dentre
outros674. Portanto, a constituição pretende guiar, para além da atuação ou abstenção
obrigatória do Estado, as próprias relações sociais intra-particulares.

Também como já dito, quer como projeto, quer como norma, a Constituição
coloca-se como um dever ser a essa comunidade autorreferenciada. Assim, ela
apresenta-se com o intento de modular o ser, presente e futuro, ainda que de forma
nunca acabada, como aponta SCHLINK, transcendendo as próprias limitações da sua
identidade, fazendo-a mais plural e inclusiva. Destarte, é norma em sentido amplo,
enquanto dever ser pretendido. Desse modo, os objetivos de igual tratamento,
erradicação das desigualdades e de igual liberdade, seguem em construção como pautas
de um projeto (também compromissário) que é renovado amiúde em sua identidade,
representatividade e autorreferência na comunidade.

Há, contudo, especialmente quanto a esse aspecto, algumas dificuldades


relacionadas à força normativa da constituição. A primeira delas diz respeito ao já
mencionado peculiar caráter das normas constitucionais. O Direito realiza-se no seu
cumprimento espontâneo, entretanto, na sua não observância ou na incerteza sobre qual

Isso se coloca de forma inexorável na medida em que a Constituição, ela mesma, é projeto político,
portanto, que se presta a normatizar para além das estruturas e instituições estatais.
674
Esses foram casos de grande repercussão, quer no Brasil: ADPF 132/ADI 4277 (STF); quer nos
EUA: Obergefell v. Hodges (Supreme Court).
252
a norma válida a ser reproduzida, recorre-se ao aparato do Estado para que este diga
qual a norma oficialmente válida para que, então, ela seja imposta pelo exercício
legítimo e regular da força. Assim, quer a ideia de eficácia jurídica, quer a de eficácia
social, via de regra, apoiam-se, particularmente, sobre a coercitividade da norma
jurídica.

Esse é o parâmetro clássico, já exaustivamente trabalhado desde, pelo menos, o


surgimento do Estado de Direito e, mesmo, antes dele. Os métodos de interpretação,
clássicos ou não, são dos mais variados e a tomada de posição sobre uma das várias
correntes possíveis, em boa medida, é necessariamente relacionada às própria
perspectiva sobre a Teoria do Direito, a Teoria do Estado e a Teoria da Constituição
adotadas, devendo-lhe guardar coerência e identidade675.

Contudo, a normatividade constitucional, inclusive quanto à sua eficácia jurídica,


não deixa de ser influenciada pelas características peculiares ao espectro jurídico-político
da constituição. Tal normatividade tem como ponto crítico, características muito
próprias das normas constitucionais. Tratando a esse respeito, LUÍS ROBERTO
BARROSO as elenca como sua superioridade hierárquica, a natureza da linguagem
utilizada, o conteúdo específico que possuem e em seu caráter político676. HESSE, por
seu turno, dirá de sua primazia sobre todo o Direito interno, de seu caráter aberto e
vinculante e sua garantia imanente677.

Nessa esteira, é característica da normatividade constitucional sua supremacia


normativa no ordenamento, a que confere unidade e integridade. Também é comum à
maioria das normas constitucionais o elevado grau de abstração, no que, não raramente,
são colocadas em conceitos indeterminados e em programas normativos relativamente
amplos que demandam, muitas vezes, um complexo processo de densificação e
concretização. Ainda caracteriza as normas constitucionais a inexistência e/ou, ao
menos, o déficit de instrumentos coercitivos próprios e imediatos que se relacionem a

675
Apontando para problemas recorrentes nas construções das teorias e correntes de interpretação
constitucional no Brasil: SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação constitucional e sincretismo
metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros,
2005, pp. 115-143.
676
BARROSO, Luís Roberto. Intepretação e aplicação da Constituição, cit., p. 107.
677
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., pp. 6-9.
253
seu descumprimento e não observância. Quanto a este traço, mesmo nas hipóteses em
que eles existem de forma institucional ou simbólica, raras vezes se colocam a partir de
um aparato de coerção oficial classicamente vinculado às formas de sanção estatal.

Como já dito anteriormente, o âmbito constitucional é, por excelência, o locus


privilegiado de interação dialética entre o jurídico e o político, em que se apresentam de
forma mais aguda programas, compromissos, vontades, sentimentos políticos e
ideológicos, que, especialmente, a partir da experiência de conciliação entre constituição
e democracia, foram trazidos para dentro do campo de discussão constitucional. Será
nesse sentido, por exemplo, que ZAGREBELSKY tratará do Direito Constitucional como
um direito dúctil, doce e maleável, aberto à argumentação, ao discurso, à justificação e
ao diálogo civil, por um lado, e, por outro, com o uso da força e da coerção
drasticamente reduzido, inclusive, de modo a possibilitar a ideia de autonomia
coletiva678.

Essas características importam em alguns desdobramentos, particularmente dois.


O primeiro deles está relacionado ao limiar da interpretação Constitucional. O processo
de densificação e concretização de normas com programas normativos tão abertos,
importa uma maior margem ao intérprete. Assim sendo, a jurisdição constitucional
coloca-se na fronteira entre a decisão jurídico-política e a decisão eminentemente
política, limite que não deve ser transpassado sob pena de macular sua própria razão de
ser. Essa característica já fora reconhecida no clássico debate entre KELSEN e SCHMITT,
sobre quem deve ser o guardião da Constituição, inclusive, curiosamente, por ambos os
autores679.

678
ZAGREBELSKY, Gustav. El derecho dúctil, cit., pp. 9-20. O título original em italiano é “Il Diritto
Mite. Legge, diritti, giustizia”. Mite, que é traduzido por dúctil nessa edição castelhana, pode ser
traduzido por: moderado, suave, módico, manso, tranquilo, aplicável. A explicação para a escolha de
dúctil está na nota 11, p. 19 da tradução utilizada. Por ser um cognato, aproveitamos a tradução
castelhana, dúctil, já consagrada. Apresentando o termo, LA TORRE, Massimo. Constitutionalism and
Legal Reasoning. Dordrecht: Springer, 2007, p. 36: “A constitutional law is a ‘mild law’ first in the sense
that it is open to justification and refers to argumentation and discourse, to a ‘civil conversation’. But it
also mild in the sense that within its province – which is essentially discursive – the use of force and
coercion is reduced as drastically as possible, in order to make it possible for collective autonomy”.
679
KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da Constituição? In: KELSEN, Hans. Jurisdição
Constitucional. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 237-298, em que concorda com SCHMITT
acerca do caráter político (em sentido amplo) da atividade jurisdicional. É de se destacar que a crítica a
suas perspectivas quanto à teoria interpretativa é ampla. Para uma crítica da postura kelseniana:
254
Nessa ordem, há ainda uma antiga questão que acompanha o constitucionalismo:
quanto ao destinatário de uma constituição680. Esta, porque considerada o ordenamento
jurídico do Estado e da comunidade, tem como destinatários todos os poderes
constituídos (legislativo, executivo e judiciário) e seus agentes, assim como todos os
cidadãos681. Disso decorre, também, o fato de a Constituição, enquanto unidade cultural,
ser interpretada por todos esses destinatários, não apenas pelos agentes dos poderes
constituídos, mas por todo cidadão, na concretização das normas constitucionais, em
sua vivência e realização. Como expõe HÄBERLE:

quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-
interpretá-la (Wer die Norm ‘lebt’, interpretiert sie auch (mit). Toda
atualização da Constituição por meio da atuação de qualquer indivíduo,
constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional
antecipada682.
Considerada essa dimensão, é possível identificar que a eficácia e, mesmo,
efetividade e realização de uma constituição, por muitas vezes, apoiam-se em um lastro

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Validade versus correção: a tese kelseniana da


interpretação autêntica. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 2
ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2016, pp. 133-163. Tratando de uma abordagem comparada das teorias
de ambos: MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; MILÃO, Diego. Decisionismo e Hermenêutica
Negativa: Carl Schmitt, Hans Kelsen e a afirmação do poder no ato interpretativo do direito. Sequência,
Florianópolis, n. 67, p. 111-137, dez. 2013.
680
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 239-
241.
681
HABERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., p.5: “la Constitución no es sólo un ordenamiento
jurídico para los juristas, los que tienen que interpretarla conforme las antiguas y las nuevas reglas de la
profesión, sino actúa esencialmente también como guía para los no juristas: para el ciudadano la
Constitución no es sólo un texto jurídico o un ‘mecanismo normativo’, sino también expresión de un
estadio de desarrollo cultural, medio para la representación cultural del pueblo ante sí mismo, espejo de
su patrimonio cultural y fundamento de sus esperanzas”.
682
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional, cit., pp. 14-15: “Originalmente, indica-se como
interpretação apenas a atividade que, de forma consciente e intencional, dirige-se à compreensão e à
explicitação de sentido de uma norma (de um texto). A utilização de um conceito de interpretação
delimitado também faz sentido: a pergunta sobre o método, por exemplo, apenas se pode fazer quando
se tem uma interpretação intencional ou consciente. Para uma pesquisa ou investigação realista do
desenvolvimento da interpretação constitucional, pode ser exigível um conceito mais amplo de
hermenêutica: cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública (...) representam
forças produtivas de interpretação (interpretatorische Produktivkräfte); eles são intérpretes
constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes
(Vorinterpreten). Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral,
a última palavra sobre interpretação (com a ressalva da força normatizadora do voto minoritário). Se se
quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional. Isso significa que a teoria da
interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática. Portanto, é impensável uma
interpretação da constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas”.
255
um tanto mais etéreo que o do monopólio da violência pelo Estado. Isso porque, em
um primeiro plano, a própria eficácia jurídica e social de uma constituição, mesmo
quanto a sua vivência na dinâmica dos poderes constituídos, depende de amarras
significativamente voláteis, na medida em que os enlaces dessa dinâmica colocam-se
sobre estruturas muito pouco concretas.

Nesse sentido, HESSE vê como característica diferenciadora do Direito


Constitucional, em relação aos demais ramos do Direito, a ausência de instância última
que possa impor sua observância, definitivamente. Também DIETER GRIMM aponta
que “não há ‘oficial de justiça’ em matéria constitucional. Isso mostra que não só o
constitucionalismo, mas também o controle judicial de constitucionalidade depende de
bases culturais”683. Por isso, o Direito Constitucional tem de assegurar-se por si mesmo,
sobre as condições culturais que permitam sua garantia internamente. Portanto, é de se
destacar que mesmo uma jurisdição constitucional eficaz “requer uma cultura política
efetiva em que, em geral, as decisões da corte sejam aceitas mesmo por aqueles que
estão no poder e o sentimento constitucional seja tão grande que o desrespeito implique
um custo muito alto para os políticos” 684.

No limite, essa é a questão que se coloca quando sempre se relembra da sátira de


Juvenal: quis custodiet custodes?685.

683
GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Revista de Direito do Estado, Rio de
Janeiro, a. 01, n. 4, pp. 03-22, out/dez, 2006, p. 10.
684
GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia, op. cit., p. 10; GRIMM, Dieter.
Constitucionalismo y derechos fundamentales, op. cit., p. 31. HESSE, Konrad. Constitución y Derecho
Constitucional, op. cit., pp. 7-8: “El Derecho Constitucional se diferencia del Derecho de otras ramas
jurídicas en que, en definitiva, no existe instancia que pueda imponer su observancia; el Derecho
Constitucional tiene que garantizarse por sí mismo, lo cual supone la existencia previa de una
configuración que esté en condiciones de asegurar en lo posible tal garantía inmanente. Las funciones
ordenadora y pacificadora del Derecho ordinario dependen en gran medida de que si resulta necesario,
se impongan por vía ejecutiva, mediante la coerción estatal. Su observancia, pues, siempre resulta
garantizada desde fuera. Todo lo contrario ocurre con las normas de la Constitución. Su observancia no
se garantiza ni por un ordenamiento jurídico existente por encima de ella ni por una coactividad
superstatal; la Constitución no depende sino de su propia fuerza y de las propias garantías”.
685
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., pp. 215-217; LOEWENSTEIN, Karl.
Teoría de la Constitución. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1976, p. 325; HELLER, Herman. Teoría del Estado,
cit., p. 329.
256
E é nessa ordem que se vincula a força normativa da Constituição aos conceitos e
ideias de lealdade institucional, leal colaboração e cooperação institucional, por sua vez,
bastante conexos ao elemento vital da cultura constitucional.

Se, como dito, a vivência da Constituição se dá tanto no Estado, quanto na e pela


própria comunidade, a própria ideia de realização constitucional e, mesmo, de eficácia
no sentido proposto por EROS GRAU, concretiza-se não apenas através do cumprimento
dos preceitos constitucionais pelo próprio Estado, mas, mesmo, por cada cidadão e por
toda a sociedade. Em todo caso, em que pese o papel interpretativo daquele que vive a
constituição, seu exercício só será possível quando essa vivência se der através de um
processo espontâneo, isto é, na medida em que se estabeleça na cultura política da
comunidade uma cultura de constituição. Por conseguinte, realizar a constituição, em
boa medida, significa gerar identidade entre a cultura política da comunidade e a cultura
constitucional (pluralista) que se coloca nela fundamentada e, sobre ela, normativa.

Com isso, não se quer dizer, de forma alguma, que a coerção não seja essencial e
típica a uma ordem constitucional. Menos ainda, que a ordem constitucional possa
pretender-se a par ou sobre o Estado686. Pelo contrário. Considerando a advertência de
BÖCKENFÖRDE – de que a política é o destino de todos nós, especialmente em uma
época democrática687 –, o que se quer apontar é que: também é papel e função da
constituição atuar como figura integradora da ordem, apontando para uma unidade (em
pluralidade) necessária para uma comunidade jurídico-política, que acaba por tocar,
inclusive, as condições de eficácia jurídica e social da norma constitucional.

E é nesse ponto que se aproximam legitimidade e eficácia. Isso porque, não só a


legitimidade constitucional é política, no sentido de ser uma questão de justificação da
ordem, mas a própria eficácia constitucional, no limite, também o é, especialmente
quando se tem em vista o fato de que não apenas a interiorização dinâmica da
identidade constitucional (pluralista) pelo sujeito constitucional é imprescindível para a

686
Tratando dessas posições de maneira crítica: BERCOVICI, Gilberto. Soberanía e Constituição, cit.,
pp. 319-343.
687
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 169. E, com
NUNO COELHO: “o sentido que dá à política o seu significado particular, e no qual o homem pode
experimentar-se como livre”, COELHO, Nuno M. M. S. Ensaio sobre o sentido grego do político – e o
nosso tempo. Revista Crítica do Direito, v. 53, n. 3, out./nov. 2013.
257
realização e para a vida constitucional amiúde na sociedade, mas, também, quando se
considera que para a realização da Constituição, mesmo, pelos próprios órgãos
constituídos nas situações limites, o fiador dessa normatividade, em última análise, é o
próprio povo, normativa e faticamente, isto é: politicamente688.

Não será em sentido diverso que MÜLLER, NELSON SALDANHA e BERCOVICI


trabalham o poder constituinte689. Ou, ainda, ROSENFELD articulará a identidade do
sujeito constitucional690. É do fomento e robustecimento dessa cultura e dessa
consciência pelo povo, que se pode, efetivamente, pleitear por uma ordem
constitucional legítima que, realmente, se pretende autorreferenciada, dona de seu
destino – na qual o povo, democraticamente, autogoverne.

O fato de a validade colocar-se como ponto zero da discussão jurídica, não


impede que sua confirmação – a confirmação de uma ordem válida porque legítima – se
perca e seja extirpada das preocupações jurídico-políticas da comunidade. Essa questão
se vê sempre ativa no reconhecimento do “ciclo de atos de legitimação, que em nenhum
lugar pode ser interrompido (de modo não-democrático)”. Esse é o lado democrático
do que pode ser denominado estrutura de legitimação691.

Isso se mostra necessário, quer no compromisso renovado e praticado amiúde na


comunidade, mas, também, de forma muito especial, no caso do exercício do poder por
via representativa. Em se faltando “oficial de justiça” em matéria constitucional, será,
maximamente, a responsabilidade difusa capaz de impor a normatividade constitucional
no exercício dos poderes constituídos. Para tanto, é importante um povo que

688
BERCOVICI, Gilberto. Ainda faz sentido a Constituição dirigente? Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, v. 1, n. 6, pp. 149-162, 2008, p.158: “O risco do afastamento da
constituição em relação ao Estado e à política, com a hegemonia dos tribunais constitucionais e de uma
teoria da constituição sem preocupação com o Estado é o do abandono, pela política democrática e
partidária, da esfera da constituição. Afinal, a constituição se liberta da política, mas a política também
acaba se desvinculando dos fins e tarefas previstos no texto constitucional”.
689
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., p. 118; SALDANHA,
Nelson. O Poder Constituinte, cit., pp. 83-83; BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do povo
no Brasil, op. cit., pp. 305-325, jan./abr. 2013; BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, cit., p.
35: “A manutenção ou erosão da normatividade constitucional está ligada à permanência do poder
constituinte, fonte de sua força normativa”.
690
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit.
691
MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo?, cit., p. 49.
258
compreenda o processo do qual faz parte, do qual é sujeito, de uma comunidade em
que esteja maximamente difundida uma cultura de constituição.

É articulando-se em torno dessa ideia que alguns autores apresentam chaves


relacionadas ao elemento vital da cultura constitucional, que contribuem para essa sua
dimensão proativa.

259
CAPÍTULO 8
GARANTIA INTERNA DA CONSTITUIÇÃO:
A CULTURA DA CULTURA CONSTITUCIONAL

Partindo-se de uma concepção ampla de cultura constitucional, como a que vem


sendo trabalhada, é possível identificar-lhe três dimensões. Uma primeira relacionada
ao próprio conceito substantivo e normativo de constituição que se faz em referência à
identidade e às amarras do constitucionalismo, à família constitucional.

Uma segunda, que se vincula à própria leitura específica que cada comunidade
faz dessas amarras em articulação com as culturas particulares sobre as quais ela opera,
bem como, com as outras identidades (pré- e extra-constitucionais) de uma
comunidade, dimensão que diz respeito à ideia de identidade constitucional. Essa
leitura não se põe de forma definitiva apenas no momento constituinte fundador, na
interpretação primeira com pretensão de validade pelo poder constituinte, pelo
contrário, ela se faz, inclusive, no viver cotidiano da própria cultura constitucional, em
suas interpretações, concretizações e transformações.

Embora o momento constituinte tenha um papel importante nessa passagem


entre a identidade do constitucionalismo e a identidade constitucional, esta não se
coloca apenas em referência a esse ponto inicial, mas, também, à própria vivência desse
projeto, o que a liga à terceira dimensão da cultura constitucional, à força capital motriz
da normatividade: a uma cultura de constituição.
260
Até aqui, procurou-se, especialmente, traçar a relação entre legitimidade e
validade da constituição, destacando-se o diálogo entre essas duas dimensões. Para
tanto, buscou-se articular a demanda por uma ordem válida, porque legítima, como
elemento da cultura do constitucionalismo. Colocado isso, pretendeu-se avançar no
sentido de relacionar a dimensão da legitimidade e, por conseguinte, da validade, com
essa dimensão cultural inerente. Como dito, “cultural is political” e, assim, a própria
questão da legitimidade não deixa de ser uma questão política, isto é, a questão da
legitimidade/validade é uma questão eminentemente jurídico-política.

Essa característica ambivalente da constituição, jurídica e política, faz com que


essas faces do fenômeno constitucional sejam indissociáveis. Como tratado, a
constituição é o locus em que, mais claramente, Direito e Política articulam-se
dialeticamente na dinâmica da vida da comunidade. Na estrutura do Estado, ela é o
topos em que normalidade e normatividade, permanência e transformação, estaticidade
e dinamicidade, mais marcadamente apresentam sua tensão e complementariedade. A
constituição é o eixo jurídico-político por excelência.

Essas duas dimensões tampouco são cindíveis na realidade constitucional. Exceto


para fins de exposição e/ou classificação, dificilmente poder-se-á falar de uma dimensão
estritamente jurídica ou estritamente política da constituição. Sua normatividade
decorre, em parte, de certa normalidade e pretende prescrever uma outra normalidade
ainda por vir a ser. A constituição jurídica é politicamente projetada, politicamente
legitimada e, consequentemente, politicamente válida.

No entanto, não apenas a legitimidade/validade de uma constituição coloca-se de


forma (jurídico-)política, mas a própria dimensão da eficácia também se faz possível, em
boa medida, politicamente. Essa dimensão política da eficácia está bastante relacionada
àquilo que por vezes é tratado como o elemento vital de toda Constituição, isto é, sua
“capacidade de mobilizar as emoções e energias sociais com vistas à sua realização”692.
Este é identificado por PEREIRA COUTINHO como uma das dimensões do dinamismo

692
SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição e o pluralismo na encruzilhada: justiça constitucional
como guardiã das minorias políticas. Revista latino-americana de estudos constitucionais, Belo
Horizonte, n. 2, p. 79-131, jul./dez. 2003, p. 81.
261
constitucional693, relacionada à garantia interna da Constituição, logo, à “adesão à
normatividade constitucional por parte daqueles que se lhe subordinam”694.

Há uma série de chaves que são correntemente vinculadas a esse “elemento


vital”. Todas elas são relativas, de uma forma ou de outra, à relação dos cidadãos com a
própria constituição. Cada uma das construções acaba por dar maior ênfase a uma
forma de associação ou de vinculação entre os membros da comunidade jurídico-
política e o projeto jurídico-político. Esse elemento vital é algo presente naquilo que
propomos como cultura de constituição que, assim, se relaciona com várias dessas
construções. Para tanto, aqui desenvolveremos três das chaves mais importantes sobre
essa questão – vontade de constituição, sentimento constitucional e patriotismo
constitucional – para, no capítulo seguinte, articularmos a ideia de cultura de
constituição e alguns de seus desenvolvimentos.

8.1. VONTADE DE CONSTITUIÇÃO

Já em 1945, WERNER KÄGI, um dos principais expoentes da Escola de Zurique,


deitando os olhos sobre a “decadência do normativo”, tendo em conta os últimos
acontecimentos terríveis então vivenciados na Europa, comenta que a “vontade de
norma” (Wille zur Norm) estava sendo, cada vez mais, substituída pela “vontade de

693
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição: da fundamentação da validade
do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 377: “À expressão dinamismo
constitucional são imputáveis dois sentidos distintos, ambos relevantes caso se pretenda compreender
uma qualquer experiência política assente numa Constituição normativa, assim efetivamente
condicionadora de um processo político. Num primeiro sentido, refere-se tal expressão à necessária
renovação em cada geração do compromisso ético que subjaz à Constituição, sob pena de esta não
subsistir no tempo. Num segundo sentido, refere-se a mesma expressão à necessária actualização da
normatividade constitucional escrita e não escrita – necessária, desde logo, para que a mesma
permaneça reflectora daquele compromisso no âmbito de renovados circunstancialismos históricos”.
694
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 377. E mais a frente:
“Isto é, que na ausência de uma adesão à normatividade constitucional por parte daqueles que se lhe
subordinam – e a que subordinam o poder a que obedecem, constituindo uma ‘garantia interna’ da
Constituição que nenhuma ‘garantia externa’ substitui –, a mesma se encontra condenada, bastando para
o demonstrar o paradigmático exemplo de Weimar”, pp. 379-80.
262
poder” (Wille zur Macht)695. Com isso assinalou que muitas constituições foram
destruídas ou, até mesmo, eliminadas, porque alguma vontade de poder assim quisera696.

O termo vontade de constituição, por sua vez, aparece e ganha projeção no


famoso opúsculo A força normativa da Constituição, base de discurso proferido por
KONRAD HESSE na Universidade de Freiburg em 1959, por ocasião da aula inaugural
daquele ano697. HESSE, de modo geral, é autor de grande impacto e influência no
constitucionalismo do pós-guerra, não apenas na Alemanha, mas também no Brasil e no
mundo constitucional como um todo. Sua projeção é tanta, que LA TORRE chega a
indica-lo como o mais influente constitucionalista alemão pós-1945698.

Em A força normativa da Constituição, HESSE articula suas ideias, basicamente, a


partir das formulações de outro famoso discurso: O que é uma Constituição?699, de
FERDINAND LASSALE700, originalmente publicado em 1862. Neste, LASSALE define a

695
KÄGI, Werner. La Constitución como ordenamiento jurídico fundamental del Estado:
investigaciones sobre las tendencias desarrolladas en el moderno Derecho Constitucional. Madrid:
Dykinson, 2005, pp. 55-56. O texto é, originalmente, de 1945.
696
KÄGI, Werner. La Constitución como ordenamiento jurídico fundamental del Estado, cit., p. 54.
Não deixando de advertir na sequência: “Sin embargo, no debe olvidarse que ese ocaso de las
Constituciones europeas tiene también sus causas más profundas y objetivas. Para un análisis completo
aún estamos demasiado cerca de lo acontecido; no obstante, algunas líneas de desarrollo ya se han
destacado tan claramente que puede arriesgarse un intento de síntesis. Especialmente hoy debe
imponerse una diferenciación que – buscando una apreciación con objetividad – sirva para aclarar la
situación del Derecho del Estado y de la Teoría del Derecho del Estado, puesto que en la lucha entre
los espíritus y los poderes, la propaganda busca influir sobre las opiniones”.
697
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, cit.
698
LA TORRE, Massimo. Constitutionalism and Legal Reasoning, cit., p. 33.
699
O título original é Über Verfassungwesen. Ele poderia ser traduzido de forma literal por: Sobre a
natureza da Constituição ou ainda Sobre a essência da Constituição. Esta última, inclusive, sendo a
opção de tradução de algumas edições, como, por exemplo: LASSALLE, Ferdinand. A essência da
Constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001. As edições brasileiras são confusas quanto aos
dados relativos aos eventuais tradutores, não sendo muito claro, quer nas edições físicas, quer nas
digitais, a referência precisa e segura quanto a eles. De todo modo, o título do ensaio não raramente
recebeu a tradução livre que, aparentemente, decorre da tradução castelhana mais corrente, em diversas
edições: Qué es una Constitución? (por exemplo em:
http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/libro.htm?l=2284); em português: O que é uma Constituição?
(disponível em: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Ferdinand%20Lassalle-
1.pdf) .
700
FERDINAND LASSALE (1825-1864) é uma figura importante no desenrolar jurídico-político europeu.
Nascido em uma rica família de origem judia de Breslau, e tendo estudado filosofia em Berlim, escreveu
alguns textos importantes, mas ficou mais conhecido por sua participação, liderança e atividade política.
Em 1863 fundou a Associação Geral dos Trabalhadores da Alemanha (Allgemeiner Deutscher
Arbeiterverein) – ADAV, que anos mais tarde em 1875, já após sua morte, uniu-se e passou a compor o
Partido Social Democrata da Alemanha (Sozialdemokratische Arbeiterpartei Deutschlands) – SPD. É
263
essência da Constituição como “a soma dos fatores reais de poder que regem um
país”701. Assim, afirma que os problemas constitucionais são, primariamente, problemas
de poder e não de Direito. Nesse sentido, assinala que as constituições escritas só têm
valor e são duradouras na medida em que deem fiel expressão aos fatores de poder
imperantes na realidade social702. É de se apontar que a análise lassaliana coloca-se não
como prescritiva ou normativa do que deve ser uma constituição, mas sociológica e, de
modo especial, criticamente frente àquela realidade política e jurídico-política vivida no
mundo alemão de meados do século XIX.

HESSE, de sua parte, busca articular a força normativa da constituição,


desenvolvendo-a em oposição àquilo apresentara LASSALE, assinalando de modo um
tanto prescritivo que, no choque entre os fatores reais de poder e a Constituição, não
há, necessariamente, prevalência absoluta daqueles sobre esta. Assim contrapõe-se à
clássica definição do líder socialista “da Constituição como mera folha de papel” e é
nessa construção que formula como vontade de constituição (Wille zur Verfassung) em
espelho ao controvertido conceito nietzscheano de vontade de poder (Wille zur Macht),
via de regra, identificado com perspectivas decisionistas e antidemocráticas.

Para HESSE, embora a constituição não possa, ela mesma, realizar nada, pode,
no entanto, impor tarefas e torna-se força ativa na medida em que tais tarefas sejam
efetivamente realizadas e que exista disposição dos cidadãos – particularmente dos
principais responsáveis pela ordem constitucional – de orientar a própria conduta de
acordo com a ordem por ela estabelecida. Ou, nas palavras de HESSE: “se a despeito de
todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder
identificar a vontade de concretizar essa ordem”703. Assim, o autor apela para um
espírito, uma consciência geral de todos, que desenvolve na chave da vontade de
Constituição. Com ela, HESSE acaba por apontar para uma atitude voluntária de opor-se

comumente citado nos debates jurídico-políticos sobre o conceito de Constituição, por exemplo em dois
dos autores trabalhados nessa seção, como HESSE e, também, em STERNBERGER, Dolf. La Amistad
hacia al Estado. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional. Bogotá: Universidad Externado
de Colombia, 2001, pp. 121-163.
701
LASSALE, Ferdinand. Qué es una Constitución?. Madri: Cenit, 1931, p. 65.
702
LASSALE, Ferdinand. Qué es una Constitución?, cit., p. 90.
703
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, cit., p. 19.
264
àquelas tendências constitucionais (decisionistas e antidemocráticas) que mais
comumente pleiteiam e instrumentalizam a ideia de vontade.

Nessa esteira, LA TORRE entende que com o desenvolvimento da vontade de


constituição, HESSE afirma ser preciso tomar-se uma decisão fundamental. Tal decisão
não pode ser concebida de forma incompatível com a democracia ou tomada de
maneira individual por um ator pré-constitucional, no caso, o Estado. Trata-se, na
verdade, da amiúde decisão de se viver na esfera pública de entendimento partilhado,
sendo esta a base essencial do Estado. Um Estado que, a um só tempo, é indispensável
à ordem constitucional, mas que, ao mesmo tempo, precisa ser diferenciado da
sociedade civil704. Com isso, HESSE parece apontar para o fato de:

que a força vital e eficacial da Constituição assenta-se na sua vinculação


às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, mas
sua força normativa não deriva dessa adaptação a uma dada realidade,
antes se devendo a um fator de natureza espiritual e cultural, que ele
sugestivamente denomina vontade de Constituição705.
Nessa construção, se vê claro o espírito da ideia de plebiscito diário, já exposto
por RENAN, mais imediatamente herdado das construções dos autores de Weimar que
apresentavam uma compreensão constitucional dialética, neste caso, particularmente, de
RUDOLF SMEND706, mas também de HELLER707.

HESSE assinala que a vontade de constituição origina-se desde três vertentes


diversas: “na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa
inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme”; também,
e em igual medida, “na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma
ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo
de legitimação)”; mas que se coloca também sobre a “consciência de que, ao contrário
do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o

704
LA TORRE, Massimo. Constitutionalism and Legal Reasoning, pp. 33-34.
705
COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse: uma nova crença na constituição. Direito Público,
Porto Alegre, a. 1, n.3, p. 05-23, jan./mar. 2004.
706
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho político de la
República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp. 259-295, 2008, p. 269.
707
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, cit., p. 28.
265
concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de
atos de vontade”708.

Portanto, de algum modo, ainda que não explicitamente, reconhece uma relação
necessária entre o processo de legitimação e o sentimento de legitimidade de uma
ordem democrática com sua eficácia (enquanto realização e concreção), na medida em
que, no plano constitucional, ela necessariamente demanda vontade de Constituição.

HESSE, assim, já aponta para uma relação necessária entre eficácia e reafirmação
política da comunidade com o projeto constitucional, de modo volitivo, em alguma
medida, político.

É uma vontade que pode ser concebida como especialmente decorrente de um


fator racional, mas, também, de um sentimento em relação à Constituição, no mais das
vezes, na conjunção de ambos.

8.2. SENTIMENTO CONSTITUCIONAL

Se por um lado a compreensão da dimensão vital da cultura constitucional, na


forma de uma cultura de constituição, depende da vontade dos cidadãos, de outro leva
em si uma boa parte de sentimento construído e observado em relação à Constituição.

Desse modo, RAÚL MACHADO HORTA define que:

o acatamento à Constituição, para assegurar sua permanência, não se


resolve exclusivamente no mundo das normas jurídicas, que modela e
conduz à supremacia da Constituição. O acatamento à Constituição
ultrapassa a imperatividade jurídica de seu comando supremo.
Decorre, também, da adesão à Constituição, que se espraia na alma
coletiva da Nação, gerando formas difusas de obediência constitucional.
É o domínio do sentimento constitucional709.

708
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, cit., pp. 19-20. Nesse ponto, fazendo referência,
em rodapé à obra de HELLER.
709
HORTA, Raúl Machado. Permanência e mudança na Constituição. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, a. 29, n. 115, pp. 5-26, jul./set. 1992, p. 8.
266
O conceito de sentimento constitucional desenvolve-se, basicamente, da
articulação entre o dinamismo constitucional e o sentir jurídico, tendo por base a chave
mais antiga do sentimento jurídico (Rechtsgefühl). Esta foi amplamente utilizada por
importantes juristas do século XIX e da primeira metade do XX, como RUDOLF
STAMMLER, RUDOLF VON JHERING, GUSTAV RADBRUCH e, especialmente, ERWIN
RIEZLER, responsável pela principal monografia sobre o tema: Das Rechtsgefühl,
publicada em 1923. Com o sentimento jurídico, todos eles buscavam chamar a atenção
à importância da dimensão emotiva à experiência jurídica.

Diante dessa construção, LUCAS VERDÚ destaca serem indispensáveis ao Direito


a racionalização, a formalização e a sistematização, mas ressalta que a conceptualização
não suprime a necessidade e operabilidade do sentir jurídico, assinalando, inclusive, ser
contraproducente a tentativa de desconsidera-lo710.

Em linhas gerais, aponta-se que o sentimento jurídico floresce da convicção de


que determinadas normas, escritas ou não, são convenientes e justas para a convivência
em comunidade. A partir dessa convicção é possível que surja uma adesão tão
profundamente interiorizada que permita que aqueles que a sentem acabem por
obedecer às normas colocadas sem qualquer vinculação a seu aparelho coercitivo, na
medida em que tomem como seu o projeto comum do grupo social, integrando-se livre
e espontaneamente a ele711.

Destarte, para essa construção, graças ao sentimento jurídico a normatividade


jurídica pode enraizar-se tão profundamente na sociedade de modo que a torne mais
plenamente eficaz, tendo em vista que não apenas a racionalidade normativa impõe-se a

710
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional (aproximación al estudio del sentir
constitucional como modo de integración política). Madri: Reus, 1985, pp. 04-05. Em sentido similar:
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 158: “O
sentimento jurídico une em si dois momentos aparentemente contraditórios: a sensibilidade, que
costuma ser aplicada apenas ao intuitivo-concreto, com a generalidade abstrata do preceito jurídico. Para
quem luta pelo direito, é característica a mistura singular de frieza e ardor, de intelectualismo
generalizador que do caso concreto leva ao seu princípio, e da paixão individualizadora que fulmina o
ilícito a que combate como se fosse uma monstruosidade única”.
711
JHERING, Rudolf von. A evolução do Direito. Lisboa: Antiga Casa Bertrand – José Bastos & C.a. –
Editores, s.d.: p. 241: “A essência do sentimento jurídico não está só em saber que o direito existe, mas
em querel-o: é a acção enérgica da personalidade, que sabe que ella própria constitue um fim, que visa a
afirmar-se por si mesma, sentindo que essa afirmação se converteu para ella em uma necessidade
impreterível, como que em uma lei da sua existência”.
267
partir de suas virtualidades conceituais e formais, mas, também, é intensamente
incorporada pelos cidadãos que passam a tê-la e senti-la como sua.

De toda sorte, mesmo a adesão que comporta o sentimento jurídico, propõe


LUCAS VERDÚ, não é totalmente emocional, sendo, também, em certo grau, um cálculo
racional. Tal normatividade é aceita porque conveniente e boa para a integração social,
assim sendo, em todo sentimento jurídico encontra-se tanto o elemento emocional,
quanto o elemento intelectual. Nesses termos, a efetividade de toda normatividade
jurídica depende da coincidência entre o grau de empatia e o implícito grau de
racionalidade ínsito a todo sentimento jurídico712.

Remetendo à formulação de RIEZLER, LUCAS VERDÚ identifica três maneiras


diferentes de manifestação do sentimento jurídico, que se apresentam de forma não
isolada, mas entrelaçada: a) no sentir sobre o que é o Direito, dimensão relacionada à
capacidade de captar intuitivamente e aplicar de forma justa o direito vigente, com o tato
jurídico, com o sensus juridicus; b) no sentir sobre o que deve ser o Direito existente,
em referência ao “ideal jurídico”; c) e, ainda, no sentir acerca da atitude a respeito do
Direito vigente, ou seja, no sentimento a respeito do ordenamento jurídico vigente713.
Diante dessas constatações, sintetiza o conceito definindo-o como a convicção
emocional intimamente vivida por um grupo social quanto à justiça e à equidade do
ordenamento jurídico vigente, que, por sua vez, motiva sua adesão pelo corpo social e
conduz ao rechaço àqueles que venham a transgredi-lo714. Nesses termos, entende que o

712
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 04-05. É também nesse sentido que,
ao transladar o conceito para a tradição anglófona, DUBBER faz a seguinte observação: “Recent work in
moral psychology will help us correct a common misconception about the sense of justice as a sense.
Occasionally the sense of justice is still associated with emotionality, and therefore with irrationality. The
sense of justice, however, is a moral sentiment, an emotional response triggered by an identification
based on characteristics relevant from the standpoint of justice. Note that the sense of justice is a sense
(or sentiment) and not a sensation (or feeling)—in German, a Rechtsgefühl and not a Rechtsempfindung.
The point here is not to distinguish the psychological phenomenon from its physical manifestation, but
to distinguish a rational psychological phenomenon from an arational one. The sense of justice is neither
necessarily irrational nor necessarily rational. The sense of justice is a sense of the appropriateness
regarding a given resolution of a legal conflict based upon the application of principles of justice, rather
than a psychological (or physiological) sensation unattributable to principles and their satisfaction, but
instead to a bad breakfast or, for that matter, the racial characteristics of the parties to the conflict”,
DUBBER, Markus Dirk. The sense of justice: empathy in Law and punishment. Nova York: New
York University Press, 2006, p. 8.
713
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 50-51.
714
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 64.
268
conteúdo do sentimento jurídico, enquanto representação emocional de um ideal
jurídico, coloca-se em relação à história, “cambiante de la mediación entre la idea de la
igualdad y la idea de la liberdad y por las energias para aquella mediación”715.

É partir dessa construção que se desenvolve a ideia de sentimento constitucional,


sendo particularmente destacadas as formulações de KARL LOEWENSTEIN716 e PABLO
LUCAS VERDÚ.

KARL LOEWENSTEIN, exilado nos EUA desde 1933, trabalhou a ideia de


democracia militante em textos de 1935 e 1937717, antes mesmo de publicar seu clássico
Political power and the governamental process, quando aborda a questão do sentimento
constitucional718. A chave da democracia militante foi importante para a cultura
constitucional alemã a partir de 1949 e veio a influenciar a construção do patriotismo
constitucional por STERNBERGER719. Além disso, ela contribui para a compreensão do
próprio conceito de constituição de LOEWENSTEIN como situado na relação entre o
ideal e o real.

715
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 57-58.
716
Ao trabalhar essa questão e esses termos em LOEWENSTEIN, alguns autores acabam dando mais
destaque ao mencionar seu desenvolvimento sobre a “consciência constitucional”, como, por exemplo,
o faz: COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., pp. 378-81; enquanto
outros acabam enfatizando sua articulação em torno do “sentimento constitucional”, como, por
exemplo, o fazem: HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito, cit., p. 148, e SAMPAIO,
José Adércio Leite. A Constituição e o pluralismo na encruzilhada, op. cit., na linha da escola mineira
que tem como fonte RAÚL MACHADO HORTA. De fato, o tema da consciência constitucional aparece
em LOEWENSTEIN apenas colateralmente, sem maiores desenvolvimentos, quando, na verdade, trata da
erosão da consciência constitucional.
717
LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus Democracy in Contemporary Europe, I. The American
Political Science Review. v. 29, n. 4, pp. 571-593, ago. 1935; LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus
Democracy in Contemporary Europe, II. The American Political Science Review. v. 29, n. 5, pp. 755-
784, out. 1935; LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The
American Political Science Review, Washington, v. 31, n. 3, pp. 417-432, jun. 1937; LOEWENSTEIN,
Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The American Political Science Review,
Washington, v. 31, n. 4, pp. 638-658, ago. 1937.
718
LOEWENSTEIN, Karl. Political power and the governmental process. 2 ed. Chicago: Chicago
University Press, 1965. A primeira edição é de 1957. Para este trabalho, fora consultada a, já
mencionada, segunda edição de 1965 que conta com um post scriptum adicional à primeira edição.
Essa obra original em Inglês, corresponde substancialmente ao conteúdo de seu ulterior
Verfassungslehre (Teoria de lá Constitución), ainda que esta possua novos post scripti não encontrados
na edição americana que tivemos acesso. Além da edição americana, para esta pesquisa foi utilizada,
basicamente, a segunda edição em castelhano: LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2 ed.
Barcelona: Ariel, 1976.
719
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism. Princeton: Princeton University Press, 2007, 23 e
ss.
269
A ideia de democracia militante é desenvolvida em meio ao auge das
experiências autoritárias da primeira metade do século XX. Nesse espírito,
LOEWENSTEIN inicia um de seus artigos de 1937 afirmando que o fascismo não se
tratava de mais um simples incidente isolado na história particular de alguns países, mas
que, àquele tempo, desenvolvia-se em um movimento universal, em um “impulso
aparentemente irresistível” comparável, inclusive, à própria insurreição do liberalismo
europeu contra o absolutismo na sequência da Revolução Francesa720. Em resposta a
essa ascensão, LOEWENSTEIN protestava alegando que uma democracia não poderia se
contentar em responder ao desafio de enfrentar e resistir contra esse fascismo apenas
através de uma postura passiva, com um “legalismo cego” ou com o “formalismo
exagerado do Estado de Direito” (liberal). Alegava que, juntos, em um discurso de
“fundamentalismo democrático”, essas duas formas poderiam servir, ambas, como
cavalo de Tróia contra o próprio regime democrático721. Assim, seria necessária uma
democracia militante que se colocasse ativamente, impondo medidas que a aportassem
substantivamente de modo a enfrentar e impedir o avanço do autoritarismo.

As posições de LOEWENSTEIN quanto à democracia e quanto à constituição são,


similarmente, axiológicas. Ele as compreende desde uma construção ideal, ligadas à
democracia constitucional ocidental. É também nessa esteira que formula sua
classificação ontológica da constituição, colocada a partir da análise do processo de
constitucionalização que sucedeu a segunda guerra e das novas constituições que
surgiram naquele momento. Estas, por sua vez, simbolizavam uma de três experiências:
ou marcavam a estatalidade e a independência recém-adquirida de alguns países, ou
representavam a reconstitucionalização de países que sofreram experiências autoritárias,
ou, ainda, eram marcos para Estados que haviam passado por revoluções e
demandavam uma nova organização dos poderes722.

720
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I, op. cit., p. 417.
721
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I, op. cit., p. 424.
722
LOEWENSTEIN, Karl. Reflections on the Value of Constitutions in Our Revolutionary Age. In:
ZURCHER, Arnold J. Constitutions And Constitutional Trends Since World War II: An examination
of significant aspects of postwar public law with particular reference to the new constitutions of western
Europe. 2 ed. Nova York: New York University Press, 1955, pp. 191-224; LOEWENSTEIN, Karl.
Teoria de lá Constitución, cit., pp. 216-222.
270
Para sua classificação ontológica, LOEWENSTEIN considera a relação de
concordância das normas constitucionais com a realidade do processo do poder, tendo
como ponto de partida “a tese de que uma Constituição é o que os detentores do poder
dela fazem na prática – o que, por seu termo, depende, em larga medida, do meio social
e político em que a Constituição deve ser aplicada”723.

Tendo isso em conta, LOEWENSTEIN divide as constituições em normativas,


nominais e semânticas. A lógica dessa categorização é bem explicada a partir de uma
chave formulada por PABLO LUCAS VERDÚ que, ao defender uma Teoria da
Constituição motivada por sua fundamentação axiológica, aponta que uma comunidade
pode ter constituição e pode estar em constituição.

Ter constituição significa possuir um “Código fundamental sistemático”, formal e


materialmente constituído, isto é, uma lei fundamental hierarquicamente superior,
comprometida com determinada fundamentação axiológica, particularmente, com os
valores da liberdade, da justiça, da igualdade, do pluralismo político e, sobretudo, com a
premissa antropológica do Estado Democrático de Direito: a dignidade humana724. Estar
em constituição, por seu turno, significa, justamente, viver-se em um ambiente
constitucional, em que essa ordem de valores culturalmente compartilhados seja
presente, viva e eficaz. Isto é, nas palavras de VERDÚ: “Estar en Constitución significa la
aplicación de derechos y deberes socioeconómicos mediante la anulación de los
privilegios de los beati possidentis”725.

Nesses termos, uma constituição é normativa quando, ao mesmo tempo, é


formal e materialmente – portanto, axiologicamente – constitucional, além de viva,
vivida e defendida pela comunidade. É, portanto, quando há uma relação dialética entre
a constituição ideal, limitadora do poder e promotora de uma ampla participação
democrática nele e na realidade social. Em outras palavras, quando a constituição
jurídica possui força normativa, logo, quando uma comunidade tem constituição e, ao
mesmo tempo, está em constituição.

723
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., p. 330.
724
LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constitución como ciencia cultural. Madrid, Dykinson, 1998,
p. 40.
725
LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constitución como ciencia cultural, cit., p. 44.
271
Uma constituição nominal, por seu turno, é aquela que é formal e materialmente
constitucional, porém, não vivida na prática. Ela é legítima e válida, mas não eficaz. Ou
seja, quando uma comunidade tem constituição, mas não está em constituição.

Por fim, uma constituição semântica verifica-se quando em uma comunidade


existe um texto que se pretende constitucional, portanto, uma constituição instrumental
que, inclusive, é formalmente (positivamente) constitucional, mas que, no entanto, não o
é materialmente (axiologicamente) e, a esse passo e ao mesmo tempo, não é vivida num
ambiente constitucional. Por conseguinte, uma comunidade tem uma constituição
semântica quando nem se tem constituição, nem se está em constituição. Nessa situação,
a constituição escrita passa a ser utilizada para perpetuação de um poder ilegítimo, ao
invés de ser meio de limitação do poder, como pretende LOEWENSTEIN726.

Nesses termos, defende que para que uma constituição seja viva, ela tem de ser
vivida por todos os membros da comunidade, quer pelos destinatários, quer pelos
detentores do poder, sendo necessário que comunidade e constituição estejam em
simbiose, sendo esta, por sua vez, integrada e integrante da sociedade estatal.
Consequentemente, para que a constituição seja efetiva, é indispensável que ela seja
observada lealmente por todos os cidadãos, sendo possível, somente neste caso, falar
em constituição normativa, isto é, quando: “sus normas dominan el proceso político o, a
inversa, el proceso del poder se adapta a las normas de la constitución y se somete a
ellas”727. Nesse sentido, para LOEWENSTEIN, a constituição normativa só será alcançável
a partir de um enorme esforço político728.

726
Se, por uma perspectiva positivista, um texto axiologicamente descompromissado pode também ser
chamado constituição. Entretanto, a nosso ver uma constituição, sobretudo a partir das formulações
feitas no segundo pós-guerra em resposta às atrocidades do Terror, necessariamente tem de ser
comprometida com a ordem democrática, com a liberdade, igualdade, enfim, com a dignidade da
pessoa humana.
727
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 217.
728
GONZALEZ CASANOVA, J. A. La idea de Constitución en Karl Loewenstein. Revista de Estudios
Políticos, Madri, n. 139, pp. 73-98, jan./fev. 1965, p. 85: “La solución obligada es el acercamiento del
pueblo al espíritu constitucional mediante una educación de la «conciencia o sentimiento constitucional
» y un acercamiento de la Constitución al pueblo mediante reformas que la modernicen radicalmente y
que la permitan subsumir normativizándola, la realidad del proceso del Poder políticosocial. La
Constitución ideal, limitadora del Poder y promotora de una total participación democrática en el
mismo, relacionada dialécticamente con la realidad social, tan sólo sería alcanzable por un enorme
esfuerzo político que rebasa las posibilidades de un estudioso de ciencia política, pero éste tiene la
obligación de recordar que en el origen de muchos errores políticos de las democracias constitucionales
272
Tal esforço se destaca, na medida em que se constata que, como toda obra
humana, a constituição escrita não apenas é incompleta, mas especialmente “deficiente”,
no sentido de que cada constituição, na verdade, não é mais que um compromisso entre
as forças sociais e grupos pluralistas que participam em sua conformação729. É a esse
compromisso, ou, mais precisamente, à força que possibilita seu cumprimento que
LOEWENSTEIN chamará sentimento constitucional (Verfassungsgefühl).

O autor dirá que a expressão sentimento constitucional acaba por tocar um dos
fenômenos psicológico-sociais e sociológicos da vida política de mais difícil
compreensão. Ele se coloca como a consciência da comunidade que integra os
detentores e os destinatários do poder no marco de uma ordem comunitária obrigatória,
a constituição, de modo a submeter o processo político aos interesses da comunidade,
alocando-o acima de todos os antagonismos e tensões nela existentes. Para
LOEWENSTEIN, esse fenômeno pode ser fomentado através da educação e, em
aproximação a SMEND, pela utilização consciente, mas não insistente, do simbolismo
nacional. Registra, no entanto, que ele pertence ao imponderável e que é impossível de
ser produzido racionalmente. Para o autor, seria algo relacionado a fatores irracionais, à
mentalidade e à vivência histórica de um povo, não se confundindo, entretanto, com a
consciência nacional. Além disso, reconhece que o sentimento constitucional não pode
ser explicado tão somente a partir da constatação da longevidade de uma constituição,
contudo, afirma que a ampla e amiúde reforma constitucional colabora para o
enfraquecimento desse sentimento.

Curiosamente, LOEWENSTEIN relata que, passada pouco mais de uma década de


sua entrada em vigor, a Lei Fundamental de Bonn – tão cantada pelos pensadores do
patriotismo constitucional anos depois – não fora, ainda, capaz de criar essa
identificação, nem com os destinatários do poder, tampouco, com seus detentores. Em
que pese a crítica, LOEWENSTEIN reconhece ser injusta qualquer resposta mais
peremptória acerca da Lei Fundamental alemã, tendo em vista seu ainda curto período

se instala una incorrecta comprensión de lo que es realmente una Constitución, de lo que debe ser en
las cambiantes circunstancias de una época de transición o de revolución, una Constitución”.
729
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 199.
273
de vigência até aquele momento730. De todo modo, relata que o povo (alemão) deixou
de ter contato pessoal com sua constituição, apontando para certa “desconfiança” e,
mesmo, alguma inimizade entre aquela constituição e o povo, no que destaca, ainda,
novamente em aproximação a SMEND, que a participação política do povo
(particularmente, no caso da reforma constitucional) é uma “contribuición viva a la
educación política e un elemento de integración política. Una nación vivirá tan sólo
democráticamente cuando le esté permitido comportarse democráticamente”731.

Nessa esteira, LOEWENSTEIN ainda fala, ligeiramente, de consciência


constitucional, sem definir o conceito exatamente. Afirma que seu fortalecimento em
todos os destinatários do poder é essencial para que a comunidade constitucional e
democrática se consolide e sobreviva. Isso porque – ao contrário do que assinala a
crítica que recorrentemente se faz a sua concepção de constituição – LOEWENSTEIN
afirma peremptoriamente que uma simples constituição escrita “dada” ao povo, é
incapaz de possibilitar seu “bom uso”. E, analisando seu tempo, aponta para um abismo
entre o mecanismo constitucional e a realidade da vida diária dos destinatários do
poder, no que assevera que é preciso ter-se em conta que a constituição escrita, como
instrumento primário para o controle do poder político, não é capaz de oferecer a
garantia absoluta para sua adequada distribuição e limitação.

Mais que isso, LOEWENSTEIN entende que a constituição escrita historicamente


tampouco conseguiu se mostrar como uma proteção contra a autocracia. Para ele, esta,
com habilidade diabólica, foi capaz de perverter a constituição a ponto de torna-la um
verdadeiro instrumento para assentar o poder ilimitado. É nesse sentido que identifica
que a “revitalização” da consciência constitucional nos destinatários do poder tem
importância crucial para a sobrevivência da “sociedade democrático-social”. Tal
revitalização, passa pela aproximação das constituições com o povo, através de medidas
educativas e da eventual reforma dos textos732.

730
A primeira edição do Political Power and the governamental process é de 1957 e a segunda de 1965.
731
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 205.
732
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, cit., p. 231. É curiosa a sinceridade do autor ao
apontar não poder dizer ao certo quais os caminhos desse processo: “la revitalización de la conciencia
constitucional en los destinatarios del poder tiene una importancia crucial si la sociedad democrático-
constitucional quiere sobrevivir. Cómo tendrá que ser llevada a cabo esta – bien acercando al pueblo las
274
Ainda que LOEWENSTEIN não tenha ido além nesse conceito, ele acabou sendo
mais desenvolvido por alguns autores. MIGUEL ANGEL FERNÁNDEZ GONZÁLEZ,
utilizando a definição de consciência como um saber comum sobre um mesmo fato733,
diferencia a consciência sobre a Constituição da consciência constitucional. A primeira
diz respeito ao saber comum acerca do texto constitucional vigente, relacionada ao
conhecimento constitucional. A segunda, para o autor chileno, está mais relacionada a
uma consciência sobre o constitucionalismo, sobre os valores e princípios
constitucionais que são historicamente construídos. Nesses termos sintetiza:

en suma, conciencia sobre la Constitución es lo que hay; conciencia


sobre el constitucionalismo es lo que queda. Conciencia sobre la
Constitución es lo que puede o no acabarse; conciencia sobre el
constitucionalismo es lo que debemos luchar porque perdure734.
Com isso, FERNÁNDEZ GONZÁLEZ define a consciência constitucional como o
saber comum de uma comunidade a respeito da validade, da eficácia e da
representatividade da constituição que lhe rege. E conclui que isso significa que: a

constituciones a través de medidas educativas, o acercando las constituciones al pueblo, reformándolas y


modernizándolas –, es algo que se escapa a la visión del autor”. É verdade que o termo consciência
constitucional já aparece em trabalhos ainda anteriores à Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo,
em: LOEWENSTEIN, Karl. Legislative Control of Political Extremism in European Democracies II.
Columbia Law Review, Nova York, v. 38, n. 5, pp. 725-774, mai. 1938: “Thus infringements of
fundamental rights by ordinary statutes are counteracted only by the ‘constitutional conscience’ of public
opinion which, under the tension of the post-war period, has largely acquiesced”.
733
FERNÁNDEZ GONZÁLEZ, Miguel Angel. La conciencia constitucional y su aplicación al caso
chileno. Revista Chilena de Derecho, v. 19 n. 3, pp. 461-479, 1992: “Conciencia significa, en general, el
saber en común de un mismo hecho. La con-scientia es, por tanto, una consapiencia que puede tener
lugar entre dos personas o bien, dentro de una sola persona, con referencia a los diversos hechos o actos
de su vida. Este sentido de la conciencia es el más aproximado a la acepción vulgar, del cual hay que
separar los sentidos gnoseológicos, psicológico y aun metafísico”. A definição utilizada por FERNÁNDEZ
GONZÁLEZ baseada no verbete do dicionário: José Ferrater Mora. Diccionario de Filosofía México: Ed.
Atlante, México, 1944, pp. 127-131.
734
FERNÁNDEZ GONZÁLEZ, Miguel Angel. La conciencia constitucional y su aplicación al caso
chileno, op. cit., p. 462. O autor utiliza os três termos no seguinte sentido: “La validez, primer elemento
esencial del hecho constitucional, se refiere a la legitimidad y juridicidad de la Constitución. A su turno,
la eficacia se refiere a que sea, en la clasificación de Loewenstein, una Constitución normativa, esto es,
que ‘sea como un traje que sienta bien y que se lleva realmente’. Por último, la representatividad ha de
ser entendida en orden a que la comunidad se sienta interpretada por la Constitución, lo cual se
concreta en que aquello que los tribunales resuelvan, en base a la Carta Fundamental, sea lo que el
hombre medio, razonable y común habría querido que se resolviese. Que se sienta interpretado por la
aplicación de la norma constitucional”.
275
consciência constitucional é o saber comum de uma sociedade a respeito da efetividade
de sua constituição735.

Voltando ao sentimento constitucional, PABLO LUCAS VERDÚ, de sua parte,


destina uma monografia específica ao tema, que como toda sua obra é muito
influenciada pelo trabalho e pela postura metodológica de RUDOLF SMEND736, além da
sempre presença de referências à obra do próprio KARL LOEWENSTEIN737.

LUCAS VERDÚ inicia sua abordagem recuperando o conceito de sentimento


jurídico (Rechtsgefühl), mencionando autores como JHERING, RIEZLER, ISAY e COING,
não sem fazer uma pequena digressão sobre as origens teórico-filosóficas mais remotas,
quando menciona ARISTÓTELES, CÍCERO, HUGO GROCIO, SPINOZA, HUME,
ROUSSEAU, e outros738.

A partir do sentimento jurídico, avança para tratar mais propriamente do


sentimento constitucional. Para tanto, revela que a Verfassungslehre surge em um
momento de crise do conceito normativo de constituição, marcado por várias respostas
antiformalistas que invocavam dimensões extranormativas para a compreensão do
próprio conceito de constituição. Nesse contexto, elenca como marcos importantes
dessa virada: a resposta schmittiana ao conceito de constituição, quando propõe a
constituição como decisão conjunta de um povo sobre sua existência política; a resposta
helleriana, da constituição como estrutura e realidade social; a de SMEND, da
constituição como técnica dos processos vitais de integração do Estado; e, também, a do
suíço DIETER SCHINDLER, que propõe uma abordagem “mediante a consideração

735
FERNÁNDEZ GONZÁLEZ, Miguel Ángel. La conciencia constitucional y su aplicación al caso
chileno, op. cit., p. 462: “Efectividad es ‘la calidad de efectivo’, es decir, de ‘real y verdadero en
oposición a lo quimérico, dudoso o nominal’. Aplicado a nuestro tema, se refiere a si efectivamente la
Constitución, respecto de la cual existiría un saber en común o conciencia, es o no válida, eficaz y
representativa para la sociedad a la cual rige”. No capítulo seguinte, quando formos falar da relação
entre educação e cultura constitucional, abordaremos dois temas correlatos que são os da consciência
moral e o da consciência jurídica.
736
LUCAS VERDÚ, Pablo. La lucha contra el positivismo jurídico en la República de Weimar, cit.
737
Como mencionado, provavelmente, a mais importante delas se vê na dicotomia que formula entre ter
e estar em constituição, que utiliza para argumentar a respeito da classificação ontológica originalmente
de LOEWENSTEIN: LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constitución como ciencia cultural, cit., pp.
40 e ss.; LUCAS VERDÚ, Pablo. Tener y estar en Constitución. Revista de Derecho Político, Madrid,
n. 75-76, pp. 275-285, mai./dez. 2009.
738
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., pp. 14-40.
276
compensatória do ambiance”. Para LUCAS VERDÚ, o que todas essas propostas têm
como marca comum é a dissolução da racionalidade normativa ou, pelo menos, sua
relativização a outras dimensões. Segundo a leitura do catedrático de Madri, SMEND o
fez em relação aos valores culturais e à simbologia política, SCHMITT deu destaque ao
acento voluntarista, HELLER e SCHINDLER, cada um a seu modo, deram ênfase às de
objetivações sociais, a uma comunidade em que se vive em uma estrutura (HELLER) ou
que disfruta de um meio ambiente adequado para o desenvolvimento da pessoa
(SCHINDLER). Em todas essas construções, LUCAS VERDÚ identifica importância e
espaço para a compreensão do sentimento constitucional739.

Nesses termos, o maestro espanhol aponta que a moderna Teoria da


Constituição, particularmente desenvolvida desde Weimar, é mais doutrina (lehre) que
teoria (Verfassungstheorie), uma vez que não se coloca unidimensionalmente apenas em
argumentações lógico-jurídicas, mas, também, considera – “sin yuxtaposiciones” – os
elementos da realidade social em relação de complementariedade com a normatividade
constitucional. Nesse sentido essa “Doutrina Constitucional”, como prefere, não pode
ser compreendida como fruto exclusivo da intelecção constitucional, mas, também – e
por vezes de forma muito marcante – como resultado da sensibilidade constitucional.

Desse modo, destaca que a compreensão das conexões normativas do estar em


constituição sempre têm de ter em vista as motivações emocionais do ter constituição e
de conviver conforme a constituição. Nessa esteira afirma que “toda política
constitucional estriba no sólo en tener y estar en Constitución, sino también, en sentirla
como algo propio estimado por su forma originaria y en sus desarrollos expresos y
tácitos”740.

Para tanto, retoma a ideia de PELEGRINO ROSSI da existência de um vínculo


moral entre as instituições e os homens, e, a partir disso, define que:

“el sentimiento constitucional consiste en la adhesión interna a las


normas e instituciones fundamentales de un país, experimentada con
intensidad, más o menos consiente, porque se estiman (sin que sea
necesario un conocimiento exacto de sus peculiaridades y

739
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 69.
740
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 131.
277
funcionamiento) que son buenas y convenientes para la integración,
741
mantenimiento y desarrollo de una justa convivencia” .
Como atenta NELSON CAMATTA MOREIRA, sentir, em LUCAS VERDÚ, significa
“estar implicado em algo”742, portanto, o sentimento constitucional, para ele, identifica-se
como a conexão subjetiva entre o cidadão, de um lado, e o ordenamento jurídico e
instituições constitucionais da comunidade, de outro. Essa implicação se alicerça,
justamente, na identificação especialmente emotiva – ainda que não apenas emotiva –
de que as normas e instituições de sua constituição são boas, justas e aptas para o
desenvolvimento e perpetuação da comunidade. Assim: “el sentimiento constitucional
tiende a persistir a pesar de su labilidad, es espontáneo – aunque estimulado por el
contexto, por el ambiente ideológico y la situación sociopolítica –, es público y
representativo y muestra, además, cierta expansividad”743.

Desse modo, LUCAS VERDÚ, ao relacionar Rechtsgefühl não apenas com


emotividade (emocionalidade), mas, também, com a dimensão intelectiva, o vê como
comprometido com valores tidos como “superiores”, inspirando e servindo o
sentimento constitucional para a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo. Nesse
sentido, afirma que o caráter material do Estado de Direito coloca-se quando o Estado
só intervém na esfera individual na medida em que é conformado por normas jurídicas
que não apenas expressam a vontade estatal, mas que, também, são determinadas por
um Rechtsgefühl regulador da Rechtsgemeinschaft (comunidade jurídica). E, até por
isso os direitos fundamentais são uma manifestação típica do Estado de Direito
material744.

Sendo assim, as construções quanto ao sentimento constitucional atentam para o


fato de que a força motriz vital de uma cultura constitucional depende, por um lado, de
uma fundamentação racional, mas também é algo que precisa ser sentido, em boa

741
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit. p. 71 (itálico no original).
742
MOREIRA, Nelson Camatta. A filosofia política de Charles Taylor e a política constitucional de
Pablo Lucas Verdú: pressupostos para a construção do sujeito constitucional. Revista de Direitos e
Garantias Fundamentais, n 8, Vitória, pp. 15-54, jul./dez. 2010, p. 37.
743
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 72.
744
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 155.
278
medida, como algo identitário, constituinte (integrante e integrador) da própria
comunidade e de cada cidadão.

Além da vontade de constituição, do sentimento constitucional e da consciência


constitucional, há uma quarta ideia força que surge no contexto da Alemanha dividida
em duas, mas que toma outra dimensão, especialmente, quando do discurso acerca do
multiculturalismo e da formação de uma identidade europeia: trata-se da chave do
Patriotismo Constitucional.

8.3. PATRIOTISMO CONSTITUCIONAL

Em 23 de maio de 1979, por ocasião da comemoração dos trinta anos da Lei


Fundamental alemã, DOLF STERNBERGER publicou texto no jornal Frankfurter
Allgemeine Zeitung em que pela primeira vez abordou o conceito de patriotismo
constitucional (Verfassungspatriotismus)745. Essa chave foi muito influente nos debates,
constitucional e de filosofia política, alemães, tendo ganhado ainda maior difusão e
notoriedade a partir de seu emprego por JÜRGEN HABERMAS, inicialmente, na disputa
dos historiadores (Historikerstreit) ocorrida na segunda metade da década de 1980 na
Alemanha.

Em linhas gerais, JAN-WERNER MÜLLER define o patriotismo constitucional


como uma ideia normativa de que o vínculo político não deve estar relacionado a uma
“cultura nacional” – como pretende o nacionalismo liberal – tampouco girar em torno
de uma “comunidade global de seres humanos” – como quer o cosmopolitismo. Ao
contrário dessas posições, ele deveria gravitar em volta de normas, valores e, de forma

745
Depois dessa primeira abordagem, voltou ao tema em trabalhos e discursos posteriores. Destaque-se,
especialmente, um proferido em 1982, por ocasião do jubileu da “Academia para formação política”, e
um de 1987, em colóquio sobre “Patriotismo” realizado pelo Instituto de Ciência Política e da
Faculdade Histórico-Filosófica da Universidade de Heidelberg, por ocasião de homenagem e
comemoração do aniversário de 80 anos de STERNBERGER. O prestígio do autor é revelado no fato de
Richard von Weizsächer, à oportunidade, Presidente da República Federal da Alemanha, ter
apresentado uma conferência no evento. STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional. Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 2001.
279
um tanto mais indireta, em torno dos procedimentos da constituição democrática e
liberal746.

Também nessa esteira, particularmente em menção ao sentido dado por


HABERMAS, INGRAM identificará no patriotismo constitucional a ideia de Estado como
a associação de cidadãos ligados não por fins comuns partilhados, mas, antes, por regras
e práticas comuns, separando, inicialmente, a questão da identidade de motivações
tribais, étnicas ou confessionais747. Nessa linha, entende que o conceito avança no
sentido de afastar Estado e nação e, por isso, afirma que não se trata de ideia
significativamente nova, estando ligada, desde sempre, à própria questão da cidadania.

Para INGRAM, já no republicanismo clássico, com a narrativa do mito fundador,


mas também no republicanismo liberal, com o contrato social, afirmava-se a criação da
comunidade política como um ato de transformação moral no qual os indivíduos
desenvolviam-se e relacionavam-se enquanto cidadãos, criando uma união que
independia de laços anteriores de qualquer natureza. Assim, para a autora, o que passou
a ser tratado por patriotismo constitucional converge para a própria ideia de que o
Estado em si é a fonte de sua própria união. Faz essa relação não sem destacar que, em
que pese a ideia não ser nova, o patriotismo constitucional diferencia-se das formas
anteriores assemelhadas pelo seu compromisso com a pluralidade e sua preocupação
em conciliar diversas identidades ético-culturais em uma unidade política748.

O surgimento do termo patriotismo constitucional propriamente dito se dá no


cenário alemão e está relacionado a duas questões particulares: à memória e à
militância749. Isto é, à memória do Holocausto e do regime nazista e à militância contra

746
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 01.
747
É curioso que a relação entre patriotismo constitucional e estatalismo se relaciona bastante mais ao
primeiro sentido dado à expressão por STERNBERGER que, exatamente, aos contornos que ele foi
tomando no curso dos debates de Teoria Política, especialmente, por HABERMAS.
748
INGRAM, Attracta. Constitutional patriotism. Philosophy & Social Criticism, v. 22, n. 6, pp. 1-18,
nov. 1996.
749
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., pp. 10-11.
280
grupos tidos como “inimigos da democracia” que atuaram na Alemanha Ocidental da
segunda metade do século XX750.

Particularmente quanto à dimensão da memória, JAN-WERNER MÜLLER remete


suas raízes a KARL JASPERS e a algumas de suas formulações posteriores à Segunda
Grande Guerra. Nelas, este pensador – aliás, orientador não apenas de STERNBERGER,
mas, também, de HANNAH ARENDT – desenha uma seminal distinção entre culpa
criminal, culpa moral, culpa política e culpa metafísica751. Com isso, apresentava a
especial preocupação com o modo como os alemães tratariam das atrocidades do
regime nazista e, consequentemente, com a própria identidade daquele “novo país” que
se formava articulada com as condições políticas que se apresentavam.

Historicamente, a Alemanha sempre tivera sua estabilidade política assegurada


por governos fortes e, muitas vezes, autoritários. A partir de 1945 um novo desafio
estava posto: a formação e manutenção de uma estabilidade política através de uma
identidade cívica particular, de uma identidade moral coletiva. Muitos eram os juristas e
politólogos que tentavam articular essa nova e dura tarefa de um país assombrado pelo
fracasso da República de Weimar.

Nesse contexto, muitos intelectuais sentiam ser imputada “ao povo alemão” certa
culpa coletiva pelas atrocidades do nazismo, o que para JASPERS não fazia sentido. Ele
considerava a ideia de culpa coletiva como inadequada, por entender não ser possível
fazer-se, de “um povo”, “um indivíduo”. Defendia que essa compreensão pressuporia
uma falsa e equivocada substancialização que resultaria na degradação da condição de
indivíduo das pessoas. Isso, porque um povo não poderia ser destruído heroicamente,
tampouco, poderia ser considerado criminoso, não poderia agir moral ou imoralmente,
e, por isso, seu julgamento categórico como um ente único e substantivado sempre seria

750
Esse combate implicou o banimento de partidos políticos pelo Tribunal Constitucional Federal
Alemão na década de 1950, quer de direita (do neonazista Socialist Reich Party, SRP, em 1952), quer
de esquerda (Kommunistische Partei Deutschlands, KPD), em 1956).
751
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt, cit., pp. 25-26. O livro foi originalmente publicado
em 1947. De forma resumida, JAN-WERNER MÜLLER esboça essa distinção: “Definitions of criminal
and moral guilt were relatively straightforward; political guilt, in Jaspers’s conception, attached to all
those living under cruel and unjust regimes; metaphysical guilt, finally, referred to a rupture in a deep
level of solidarity that Jaspers assumed existed among all human beings”, MÜLLER, Jan-Werner.
Constitutional Patriotism, cit., p. 16.
281
injusto. Para JASPERS, as ações seriam feitas apenas pelos indivíduos e, por essa razão,
somente estes poderiam ser considerados culpados ou inocentes, nunca um povo em
unidade752. É nesse contexto, em oposição à ideia de culpa coletiva, que apresenta seu
conceito de responsabilidade coletiva dos alemães que permitiram que o regime nazista
erguesse-se sobre eles753. Assim, apenas a partir do assumir dessa responsabilidade seria
possível construir a unidade alemã.

Para JASPERS, uma identidade política democrática e uma adequada integração


social só seriam possíveis na medida em que os alemães suportassem a responsabilidade
coletiva pelo que acontecera. Entendia que mesmo um passado negativo poderia se
tornar fonte de coesão social, portanto, para ele, no caso alemão, a postura de não
enfrentar o passado faria da coesão social realização difícil, ou, mesmo, impossível. Para
tanto, repudiou sua própria posição anterior de defesa do nacionalismo – que, a
princípio, herdara de seu professor MAX WEBER – e, nos termos de sua filosofia de
livre comunicação entre iguais – que veio a influenciar seu pupilo STERNBERGER e, anos
mais tarde, HABERMAS – explicitamente, ligou a ideia de “trabalhar com o passado”,
desde uma nova forma de cosmopolitismo, na qual “o projeto de contínua contestação
da memória e a ideia de ‘filiação universal’ tornavam-se inseparáveis – ainda que não
fosse exatamente claro o que implicava ‘filiação universal’” em JASPERS754.

752
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt, cit., pp. 35.
753
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt, cit., pp. 55-57: “Every German is made to share the
blame for the crimes committed in the name of the Reich. We are collectively liable, The question is in
what sense each of us must feel co-responsible. Certainly in the political sense of the joint liability of all
citizens for acts committed by their state – but for that reason not necessarily also in the moral sense of
actual or intellectual participation in crime. Are we Germans to be held liable for outrages which
Germans inflicted on us, or from which we were saved as by a miracle? Yes – inasmuch as we let such a
régime rise among us. No – insofar as many of us in our deepest hearts opposed all this evil and have no
morally guilty acts or inner motivations to admit. To hold liable does not mean to hold morally guilty.
Guilt, therefore, is necessarily collective as the political liability of nationals, but not in the same sense as
moral and metaphysical, and never as criminal guilt. True, the acceptance of political liability with its
fearful consequences is hard on every individual. What it means to us is political impotence and a
poverty which will compel us for long times to live in or on the fringes of hunger and cold and to struggle
vainly. Yet this liability as such leaves the soul untouched. Politically everyone acts in the modern state,
at least by voting, or failing to vote, in elections. The sense of political liability lets no man dodge”. 69-75.
754
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism. Princeton: Princeton University Press, 2007, pp.
16-17: “In fact, Jaspers linked the idea of ‘working through the past’ explicitly with a new kind of
cosmopolitanism: the project of continuously contested memory and the idea of ‘universal membership’
were to become inseparable – even if it remained unclear what precisely ‘universal membership’ was
supposed to entail”.
282
Foi sob essa influência que, anos mais tarde, em 1979, STERNBERGER
desenvolveu seu conceito de patriotismo constitucional, ainda que o tema do
patriotismo, em si, já lhe tivesse surgido anos antes.

STERNBERGER foi um colaborador muito próximo de JASPERS755, tornando-se um


dos decanos da teoria política democrática da Alemanha do pós-guerra. Já em 1947,
formulou seu Conceito de Pátria assegurando que este conceito se realiza,
primeiramente, na constituição política, com a participação ativa e livre de todos como
cidadãos emancipados na constituição real756. Nesse sentido, em seus textos,
STERNBERGER reiteradamente recorre à paradigmática passagem de LA BRUYÉRE: “não
há pátria alguma no despotismo”757. Em consideração a ela, colocava sua formulação
sobre o conceito em sentido diametralmente oposto a qualquer tipo de nacionalismo,
que no contexto alemão, passara a ser especialmente ligado à concepção nazista de
cunho etnocêntrico. Nessa ordem aponta, por exemplo, que no nazismo o próprio
termo patriotismo estivera prestes a ser extinto, sendo substituído, amiúde, pela lealdade
ao Führer e ao Reich758. É nesse distanciamento, inclusive, que inicialmente se firmará a
incorporação do termo patriotismo constitucional por HABERMAS na década de 1980759.

755
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 18. Em outros textos JAN-WERNER
MÜLLER trata que STERNBERGER também fora pupilo de HANNAH ARENDT. A verdade é que
ARENDT, nascida em 1906, é apenas um ano mais velha que o cientista político, o que é seguro é que
desde que se conheceram em 1927, ao que consta, nas aulas do próprio JASPERS em Heidleberg,
travaram uma forte amizade que durou por toda a vida: MÜLLER, Jan-Werner; SCHEPPELE, Kim
Lane. Constitutional patriotism: an introduction. International Journal Constitutional Law, v. 6, n. 1, pp.
67-71, jan./mar. 2008; VOGEL, Bernhard. Dolf Sternberger, Vater des Verfassungspatriotismus. Die
Politische Meinung: Integrationsland Deutschland, n. 452, pp. 69-72, jul. 2007.
756
STERNBERGER, Dolf. Conceito de pátria. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 53-83.
757
“Il n’y a pas de Patrie dans le despotisme”, passagem da única obra conhecida do autor, Les
Caractères ou les Mœurs de ce siècle, uma coleção de textos curtos e crônicas sobre o cotidiano francês
do século XVII. A frase completa que é reproduzida em nota de rodapé por STERNBERGER, seria:
“Não há pátria para o despotismo; outras coisas suprem sua falta: a cobiça, a glória, o serviço do
príncipe”. A passagem é do capítulo intitulado Do soberano e da república. In: LA BRUYÈRE, Jean.
Caractéres. Tradução Luiz Fontoura. Disponível em:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/caracteres.html
758
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1982). In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo
Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 91-110, nas páginas 93 e 94: “El
Tercer Reich, el sistema dictatorial del partido nacional-socialista, en cambio, se caracterizó exactamente
por el extravagante sentimiento del doble simbolismo, las dos banderas y los dos himnos. Se cantaba
todavía ‘Alemania, Alemania sobre todo’, pero luego seguía el himno del partido, ‘La bandera en alto,
las filas bien cerradas’, y así aparecía la vieja bandera restauradora negra-blanca-roja acoplada al nuevo
emblema ideológico de la cruz gramada, en una oscura coalición. Todavía era nacionalismo, pero
283
Já na década de 1960, STERNBERGER desenvolve a ideia de amizade para o
Estado (Staatsfreundschaft)760, chamando-a de uma “razão passional”. Nesse
desenvolvimento, é marcante o traço da militância em seu pensamento, quando tem
uma clara tomada de posição no sentido de defender uma democracia não neutral, mas,
sim, ativa e bastante relacionada às ideias e estruturas da democracia militante761. Desse
modo, JAN-WERNER MÜLLER definirá a Staatsfreundschaft como: um tipo de razão
cívica que faria com que os cidadãos se identificassem com o Estado democrático e,
também, o defendessem de seus inimigos762.

Nesses termos, STERNBERGER coloca-se dentro da tradição do republicanismo763,


sendo influenciado por ARISTÓTELES, HANNAH ARENDT e, particularmente, fazendo

partidarista, y bajo e rugido de la rabiosa concepción del mundo perecieron ambos: tanto la
Constitución como el patriotismo. Pienso que aquellos que lo vieron, al recordarlo estarán de acuerdo
conmigo cuando digo que el patriotismo no era lo que alentaba a esas marchas colectivas, las pardas, las
negras y al final sombrías columnas; además la misma palabra casi había desaparecido del vocabulario
oficial. Las fórmulas, por ejemplo en los anuncios mortales de la guerra, decían algo distinto. Rara vez se
usaba la palabra ‘patria’. Se establecía en ese punto una distancia, un apartamiento frente a la formula
‘Führer und Reich’ (caudillo e imperio). Patriotas en un sentido genuino fueron los conspiradores del
20 de julio. Se puede ver que bajo Hitler el ethos del patriotismo ciertamente ha sufrido, pero mediante
su dominación no está desacreditado y no lo está por razón de que él mismo no lo no lo reclamó en
absoluto para sí y para sus fines. En la medida en que podemos consolarnos de este modo, al mismo
tiempo podemos retornar sin desmedro íntimo ni cargas de conciencia al concepto de patria y a la
conciencia de patria, al patriotismo”.
759
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional. Belo
Horizonte, 2006, p. 67.
760
STERNBERGER, Dolf. La Amistad hacia al Estado. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo
Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 121-163, discurso producido
por ocasição do centenario do SPD (Partido Social Democrata da Alemanha), com muitas referências a
MARX e, especialmente, a LASSALE.
761
Sobre os “inimigos da Constituição e da Democracia”, a partir dos quais se vê o conceito de
democracia militante posto em prática, na década de 1970 houve o emblemático caso da Fração do
Exército Vermelho - Rote Armee Fraktion (RAF), também conhecido como Grupo Baader-Mainhofer.
Nesse episódio, DOLF STERNBERGER posicionou-se publicamente contra o perdão de Ulrike Meinhof,
militante da RAF. Para uma abordagem geral sobre a democracia militante, desde LOEWENSTEIN,
passando pelo tratamento do tema na Alemanha da segunda metade do século XX, chegando ao
conceito de republicanismo negativo: MÜLLER, Jan-Wener. Militant Democracy. In: ROSENFELD,
Michel; SAJÓ, András. The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford
University Press, 2012, pp. 1253-1269.
762
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 21.
763
Falando da filiação de STERNBERGER a um republicanismo moderno: ROSALES, José Maria.
Estúdio preliminar: experiência constitucional e identidade cívica. In: STERNBERGER, Dolf.
Patriotismo Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 11-52. MARCELO
CATTONI também indica esse traço, mencionando o termo republicanismo cívico: CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional, cit., p. 66.
284
muitas referências a MONTESQUIEU, articulando-o, em mais de uma oportunidade,
com o pré-romântico THOMAS ABBT764.

É nesse contexto que STERNBERGER, já utilizando a chave do patriotismo


constitucional, une e articula os dois radicais da expressão, remetendo sua construção a
um certo espírito patriótico que teria por referência o sentido de patriotismo ainda pré-
nacional, de tradição antiga, aristotélica, romana e republicana, anterior à própria ideia
de nacionalismo765.

Nessa linha, em metáfora, o autor descreve a pátria como algo diferente do seio
materno ou de algum ser místico ou mítico qualquer, no qual se enterrasse toda
personalidade e liberdade individual. Ao contrário disso, STERNBERGER entende que é
um dever da Constituição conferir solidez e conteúdo ao patriotismo, afirmando que:

lo que caracteriza a la patria es precisamente que en ella podemos


respirar el aire de la libertad, o sea, con las palabras de Abbt, gracias a
sus saludables leyes. ‘Leyes’ es el término empleado por Montesquieu
en el Espíritu de las Leyes e es lo que en el lenguaje moderno se
domina Constitución766.
Nesse desenvolvimento, STERNBERGER vai além e deixa claro que por
constituição não entende o texto constitucional, mas a “ordem fundamental democrática
e livre”, capaz de esperar e despertar adesão e lealdade, valendo-se de uma expressão
cunhada pelo Tribunal Federal Constitucional Alemão: “un orden que, al excluir
cualquier clase de dominación violenta y arbitraria, ofrezca un régimen de Estado de
derecho, que se funda en la autodeterminación del Pueblo, conforme a la voluntad de la
mayoría, así como a la libertad y a la igualdad”767.

764
THOMAS ABBT (1738-1766) foi um filósofo e matemático alemão cuja obra mais famosa foi A morte
pela pátria (Vom Tode fürs Vaterland), de 1761.
765
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 21. PEREIRA COUTINHO tratara que: “O
‘patriotismo constitucional’ revela de uma leal identificação dos cidadãos com a sua Constituição ou,
mais rigorosamente, de uma geral comunhão identitária em torno da paideia (reportando-se
STERNBERGER expressamente a ARISTÓTELES) de que a Constituição constitui expressão normativa (...)
(aristotelicamente cunhada precisamente porque relevante da adesão interiorizada pelos cidadãos a uma
parametrizadora porque relevante da adesão interiorizada pelos cidadãos a uma parametrizadora paideia
de que a Constituição ou politeia constitui expressão normativa)”, COUTINHO, Luís Pedro Pereira.
Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 377, nota 1300.
766
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1982), op. cit., p. 100.
767
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1982), op. cit., p. 101. Segue com uma
interessante observação crítica sobre essa ordem fundamental e sobre a complexidade do Estado
285
Desse modo, STERNBERGER carrega algo que já está presente em HELLER e
também, ainda que de modo um pouco diferente, em SMEND, que é a compreensão da
constituição – e para STERNBERGER, por conseguinte, da pátria – como algo não
estático, mas que se faz viva a partir de sua própria vivência pela comunidade768.

No entanto, há algo de particularmente diferente em sua construção, pelo


menos, quanto a esse sentido original de patriotismo constitucional em relação aos
conceitos de vontade de Constituição e sentimento constitucional. Enquanto todos estes
tratam particularmente da integração ou da vinculação do indivíduo à constituição, o
patriotismo constitucional estará significativamente mais relacionado à integração pela
Constituição. Ou seja, STERNBERGER liga-se a uma determinada tradição alemã de
estatalismo (estatism), o que vincula seu conceito não exatamente a uma forma de
empoderamento cívico, mas, particularmente, a uma Staatsbewusstein, portanto, a uma
consciência de Estado – ou ainda, a uma consciência de pertencimento ao Estado – que,
ao invés de gravitar ao redor do sentimento nacional, nesse caso, orbitaria em torno da
Constituição769. Isso porque sua principal preocupação era garantir certa estabilidade

constitucional moderno: “todavía em esta caracterización de lá esencia general del orden fundamental se
colocan demasiadas abstracciones y conceptos jurídico-dogmáticos, como para pudieran en su conjunto
convocar algún sentimiento fuerte. Y este tampoco era el sentido de una formulación tan sofisticada. El
Estado constitucional moderno es en realidad una criatura muy compleja. No basta invocar los
respetables conceptos y lemas de la libertad y la igualdad, allí donde se han reflejado a lo largo de dos
siglos de entusiasmo, así como los impulsos y sacrificios sangrientos de Occidente. Pero tampoco
podemos darnos por satisfechos del todo con la magna palabra ‘democracia’ que durante tanto tiempo y
en forma tan amplia fue utilizada en Occidente como un símbolo general del Estado constitucional,
cuando de repente, hacia finales de los años de 1960, en las cabezas y las bocas de grupos rebeldes se
adoptó un tono combativo, radical, revolucionario, de tal manera que uno veía confuso y tenía que
preguntarse qué se había pasado por alto en la Constitución cuando se la denominó democrática”.
768
STERNBERGER, Dolf. Concepto de patria, op. cit., p. 83: “En palabras políticas más claras, el
concepto de patria se realiza en principo [sic] en su Constitución libre, no sólo en la escrita sino en la
Constitución viva, en la que os encontremos todos como ciudadanos de este país, en la que diariamente
participemos y continuemos construyendo. La patria llama cada día, pues cada día tenemos y queremos
nosotros vivir allí, vivir unos con otros. Este es el concepto vivo, y no el muerto, de patria”. Aqui o autor
utiliza a ideia de “um conceito vivo” em expressa oposição à formulação de ABBT que, segundo o
próprio STERNBERGER, defende a ideia de pátria, mesmo, sob uma monarquia absolutista.
769
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 22. Nesse sentido é bastante interessante a
observação de SCHLINK acerca da identidade constitutional alemã: I believe that, in addition to the
constitutional and the national identities about which Michel writes so profoundly, there exists an
identity as a people of a state, as a Staatsvolk. The roof of the Federal Republic, under which the East
Germans wanted to move as quickly as possible, was the state. The state had its constitution, of course,
but the constitution didn't constitute the state. Rather, the constitution was one of the state's attributes,
and not even the most important one”, SCHLINK, Bernhard. The constitutional subject and its identity,
op. cit., p. 1871.
286
política a partir do que, por vezes, foi chamado patriotismo constitucional protetivo. É
nessa dimensão que se destaca sua relação com os elementos controversos da
democracia militante770.

Em seu patriotismo protetivo, STERNBERGER tinha como fim último “estabelecer


paz”, sendo-lhe marcantes uma redução dos níveis de tolerância política e uma
importante dose de elementos pedagógicos. É nesses termos que JAN-WERNER
MÜLLER identifica que os laços afetivos típicos do patriotismo constitucional de
STERNBERGER são, marcadamente, muito mais verticais que horizontais. Ou seja, para
ele, o cidadão vincula-se e preocupa-se com instituições concretas e particulares na
medida em que as identifica com a proteção de sua liberdade e com a paz.

Nesse sentido, esse vínculo e essa lealdade colocam-se em relação a uma tradição
constitucional particular, a suas instituições jurídico-políticas específicas, construídas e
“historicamente obtidas”. Tal lealdade e vínculo se dariam a partir de uma vontade
continuamente renovada de dar suporte a essas instituições, particularmente, em
oposição a outras propostas políticas não correspondentes, tidas como
“antidemocráticas”771.

É por isso que, em que pese já estarem presentes em STERNBERGER as duas


dimensões do patriotismo constitucional destacadas por JAN-WERNER MÜLLER,
memória e militância, a segunda se faz mais forte em sua construção. Isso se constata até
mesmo em razão do contexto em que o autor formulou sua proposta, como
consequência da especial preocupação de sustentação, conservação e manutenção da
ordem constitucional alemã que lhe guiava.

HABERMAS, por sua vez, ao utilizar a chave do patriotismo constitucional tende a


dar maior ênfase à dimensão da memória, sobretudo, em uma primeira abordagem.

Como mencionado, o conceito lhe chega, especialmente, a partir do episódio


conhecido como a disputa dos historiadores (Historikerstreit) ocorrido na Alemanha

770
Controversos porque, apesar de muito influentes na cultura política alemã do segundo pós-guerra,
significavam posturas e medidas antiliberais, que, quando abusadas ou mal utilizadas, importavam no
risco de se cercear não apenas movimentos patentemente extremistas e anticonstitucionais, mas,
também demandas legítimas.
771
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., pp. 24-25.
287
dos anos 1980. Ele iniciou-se no verão de 1986 e foi marcado pela publicação de textos
e troca de acusações públicas em jornais de grande circulação. No episódio, o autor da
segunda geração da Escola de Frankfurt teve papel preponderante, sendo considerado,
inclusive, seu principal instigador.

Do ponto de vista “estritamente historiográfico”, a princípio a querela dava-se


acerca das singularidades do nacional-socialismo alemão e do Holocausto, além de sua
aproximação e/ou diferenciação em relação ao atalinismo e aos Gulags. Discutia-se,
também, uma determinada defesa que começava a ganhar corpo no debate
historiográfico alemão que compreendia que o nazismo teria ocorrido como reação
alemã à violência bolchevique e ao avanço do Exército Vermelho. Como pano de
fundo, no entanto, essa disputa tinha como desdobramento político o “problema da
identidade histórica alemã dentro da ideologia dominante na Alemanha Ocidental”.

HABERMAS, na esteira de STERNBERGER – e, de algum modo, também de


JASPERS – confrontou a posição conservadora de historiadores revisionistas como
ERNST NOLTE, ANDREAS HILLGRUBER e MICHAEL STÜRMER, que, segundo,
LEAMAN, “constrangedoramente” apresentavam a “embaraçosa” experiência nazista
como um mero acidente na história alemã, que, essencialmente, nunca se repetiria. De
um modo geral, o foco e o peso que esses historiadores davam a figuras políticas,
diplomatas e alguns militares, em particular, ajudava a concentrar as lentes e a
responsabilidade por todo o terror do regime nazista em Hitler e alguns líderes do
partido, de modo a escusar as elites econômicas, acadêmicas e, inclusive, militares, que
teriam simplesmente “tolerado” o regime772.

HILLGRUBER, por exemplo, defendia que as ações do Exército Alemão no front


oriental, especialmente, entre 1944/45 (período e local em que funcionavam os campos
de concentração e extermínio) deveriam ser entendidas como uma forma de proteção
ao Reich e sua população contra as “atrocidades” do Exército Vermelho. Defendia,
também, que a “solução final” seria uma posição pessoal e isolada do próprio Hitler,
não suportada, nem mesmo, por altos líderes do partido nazista, como Göring e

772
LEAMAN, Jeremy. The decontamination of German history: Jürgen Habermas and the
‘Historikerstreit’ in West Germany. Economy and Society, v. 17, n. 4, pp. 518-520, 1998, p. 520.
288
Himmler. NOLTE, por sua vez, justificava que Hitler tinha boas razões para acreditar
que os inimigos (judeus) também queriam sua aniquilação, o que fazia de sua postura,
meramente reativa. Sustentava esse ponto utilizando como prova uma “declaração de
guerra” que Chaim Wiezmann teria entregado no Congresso Judaico Mundial, em
setembro de 1939, o que, para NOLTE, permitia a Hitler tratar todos os judeus como
prisioneiros de guerra e o autorizava a deportá-los. Além disso, também defendia que o
horror de Auschwitz pouco tinha de único, uma vez que era uma reprodução de um
modelo “asiático”, aos Gulags, e que a “tão falada aniquilação dos Judeus durante o
terceiro Reich era uma reação ou uma cópia distorcida e não um primeiro ato, uma
versão original”773.

Com esse movimento, afirma MARCELO CATTONI, os:

historiadores neoconservadores pretendiam justificar, remetendo-se,


mais uma vez, a uma dada tradição cultural herdada, certa
normalização da história alemã que apelaria, quer seja à negação, quer
seja à ao esquecimento, do holocausto e da experiência totalitária do
nazismo774.
HABERMAS acusou esse “Novo Revisionismo” conservador de manipular a
história e, também, de articular-se institucionalmente para tanto, de modo a implantar
sua posição institucionalmente775. Nesse sentido, HABERMAS apontou que aqueles que
planejavam essa ideologia tinham basicamente dois objetivos: construir um consenso
sobre a revitalização da consciência nacional e, ao mesmo tempo, aproximar a ideia do
Estado-nação alemão ao anti-bolchevismo e à OTAN776. Portanto, todo esse movimento
conservador “apologético” apontava no sentido de reestabelecer um novo nacionalismo.

773
HABERMAS, Jürgen. A Kind of Settlement of Damages (Apologetic Tendencies). New German
Critique, n. 44, v. especial sobre o Historikerstreit, pp. 25-39, primavera/verão, 1988. Esse é um dos
artigos seminais do debate publicado no jornal Die Zeit, em 11 de julho de 1986, sob o título de Eine
Art Schadenabwicklung. Nele, HABERMAS faz um apanhado dos principais argumentos desses
historiadores conservadores revisionistas.
774
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional, cit.,
p. 67.
775
Um dos episódios mais importantes que ajudou a desencadear a discussão foi a construção de dois
museus/memoriais sobre a Alemanha nacional-socialista, um em Berlim Ocidental, outro em Bonn.
776
HABERMAS, Jürgen. A Kind of Settlement of Damages (Apologetic Tendencies), op. cit., p. 36:
“The ideology planners want to construct a consensus about the revitalization of national consciousness,
but at the same time, they have to banish the enemy images of the nation state from the sphere of
NATO. Nolte's theory offers a great advantage to this strategy of manipulation by killing two birds with
one stone: the Nazi crimes lose their singularity by being made at least comprehensible as an answer to
289
O autor de Frankfurt colocou-se, justamente, contra essa agenda, entendendo
que a ausência de um patriotismo exacerbado no pós-guerra permitia à Alemanha
desenvolver o comprometimento com valores liberais e, nesse contexto, passou a
utilizar a chave do patriotismo constitucional777. Essa postura vai ao encontro do que
HABERMAS pretende quando trata da racionalização das identidades coletivas, pós-
convencionais e reflexivas, nas sociedades pós-tradicionais, formadas no locus
privilegiado da esfera pública.

Passada a disputa dos historiadores, HABERMAS voltará a utilizar a chave em


outras publicações, com significativas diferenças em relação ao conceito ou, pelo menos,
ao foco original dado por STERNBERGER. O autor da Teoria Crítica estará mais
preocupado com questões relacionadas ao liberalismo, enquanto o cientista político de
Heidelberg sobrepesava os elementos republicanos da construção. Nessa esteira,
HABERMAS dá ao conceito um matiz fortemente universalista, ao ponto de ROSENFELD
trata-lo como transnacional, o que definitivamente não era uma marca da formulação
original778. Com isso, acabou, também, por mitigar e, mesmo, eliminar boa parte do
estatalismo presente na formulação de STERNBERGER779.

De algum modo, isso pode ser visto, por exemplo, quando, tratando do
multiculturalismo, o autor de Frankfurt indica haver duas esferas de assimilação
(integração) no processo de imigração de um indivíduo a um novo país. Uma delas
relativa à integração cultural (ético-cultural), propriamente dita, e outra relativa ao que
chama de integração ético-política.

Quanto à integração ético-cultural, HABERMAS trata da integração do indivíduo


na nova comunidade em que se insere. Ela estaria relacionada à “vontade de se tornar

Bolshevist threats of destruction which persist today. Auschwitz shrinks to the level of a technical
innovation and is explained by reference to the ‘Asiatic’ threat of an enemy who is still standing at our
gates”.
777
HABERMAS, Jürgen. A Kind of Settlement of Damages (Apologetic Tendencies), op. cit., p. 39:
“The only patriotism which does not alienate us from the West is a constitutional patriotism. A
commitment to universalistic constitutional principles which is anchored by conviction has unfortunately
only been able to develop in the German Kulturnation since - and because of – Auschwitz”.
HABERMAS, neste texto, não faz qualquer menção a STERNBERGER ao tratar do termo patriotismo
constitucional.
778
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 259.
779
MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism, cit., p. 31.
290
aculturado”, de incorporar práticas, costumes e modo de vida da cultura local. A outra
esfera, no entanto, é relacionada à “aceitação dos princípios da constituição dentro do
escopo de interpretação determinado pelo auto-entendimento ético-político dos
cidadãos e pela cultura política do país”780. Nessa ordem, defende que a “integração ética
de grupos e subculturas com as próprias identidades colectivas deve ser separada da
integração política abstracta que inclui todos os cidadãos igualmente”781.

Ao indicar essa separação, HABERMAS compreende que “a integração política


dos cidadãos assegura lealdade à cultura política comum”. Esta, segundo ele, “tem sua
origem numa interpretação dos princípios constitucionais a partir da perspectiva da
experiência histórica da nação”782 o que, por sua vez, admite não ser eticamente neutro.
Desde sua perspectiva, no entanto, tratará que tais debates sempre são travados acerca
dos mesmos direitos e princípios constitucionais e que é isso que caracteriza o “ponto
de referência fixo para qualquer patriotismo constitucional que situa o sistema de
direitos dentro do contexto histórico de uma comunidade legal”783.

780
HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado Democrático Constitucional, op. cit., p.
155: “Noutras palavras, assimilação do modo no qual a autonomia dos cidadãos é institucionalizada na
sociedade recipiente e o modo como o «uso público da razão» é aqui praticado”.
781
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo constitucional contra fraudes à
Constituição. Vitu, Salvador, n. 1, pp. 1-11, mar./mai. 2007, p. 5: “A noção de patriotismo constitucional
assenta a adesão autônoma aos fundamentos de um regime constitucional-democrático não em
substratos culturais pré-políticos de uma pretensa comunidade étnico-nacional, como numa visão
nacionalista ou excessivamente comunitarista, mas sim nas condições jurídico-constitucionais de um
processo deliberativo democrático capaz de estreitar a coesão entre os diversos grupos culturais e de
consolidar uma cultura política de tolerância entre eles. Isso somente é possível em razão da
diferenciação que se deve reconhecer entre dois níveis de integração social, o da integração ético-cultural
e o da integração político-constitucional, em que a construção de uma cultura política pluralista, através
da práxis e do exercício dos direitos políticos de cidadania, deve ser reflexivamente levada adiante. O
que, enfim, também significa que a defesa do patriotismo constitucional representa uma forma de
cultura política que permite ancorar o sistema de direitos e a sua pretensão de universalidade no
contexto histórico de uma comunidade política determinada”.
782
Essa “cultura política comum”, será tratada, ainda que não em termos idênticos, por FLETCHER e
ROSENFELD, por identidade constitucional e por JAN-WERNER MÜLLER como cultura constitucional.
Avançaremos sobre o tema no capítulo seguinte.
783
HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado Democrático Constitucional, op. cit., p.
151. A ideia de ponto fixo do constitucionalismo, sem que ele seja implicitamente ligado a alguma
substância é questionável. Não se pode negar que a ideia de pluralidade é absolutamente determinante a
HABERMAS, mas as bandeiras dos valores liberdade e igualdade, sempre estiveram presentes no
discurso da imensa maioria dos regimes que se pretenderam legítimos no Ocidente. Por exemplo,
GIOVANNI GENTILE, principal pensador do fascismo italiano, não hesitava em identificar o Estado
Fascista como o efetivo “Estado do povo”, portanto, como o Estado Democrático por excelência. O
mesmo pode se dizer da aproximação dos conceitos de democracia e ditadura em SCHMITT. Por outro
291
Essa posição expõe o pensamento de HABERMAS a, pelo menos, duas críticas
que não necessariamente se excluem784. A primeira consiste, basicamente, no
questionamento sobre se os “direitos e princípios constitucionais” e os valores,
premissas e parâmetros dos quais eles decorrem são efetivamente universais, ou se esses
direitos, princípios, valores, premissas, parâmetros, instituições, procedimentos e
direitos não são, em si, culturalmente localizados e particulares de uma dada cultura
política típica do Ocidente. Ou seja, quando HABERMAS identifica as vantagens do
patriotismo constitucional, apontando para o sentido universalista do coração desse tipo
de patriotismo785, pergunta-se se não seria possível questionar se ele, efetivamente, é
universalista ou se, na verdade, não trata de arranjos típicos de uma cultura específica, a
do constitucionalismo786. Dito de outra forma, ambas as formas de integração,
efetivamente se diferenciariam de algum modo?

Nessa mesma esteira desenvolve-se a segunda crítica, mais prontamente


apresentada por FRANK MICHELMAN. O professor de Harvard aponta que HABERMAS,

lado, em alguns momentos, há uma importante seletividade no que é ou não tolerável sob a capa desses
valores. Isto é, as elites, por diversas vezes, rearticulam esses “pontos fixos” de modo a eles adequarem-
se a seus interesses e aspirações. Utilizando documentos da política externa do governo George W.
Bush como exemplo: HAYWARD, Clarissa Rile. Democracy’s Identity Problem: Is “Constitutional
Patriotism” the Answer? Constellations, v. 14, n 2, pp. 182-196, abr./jun. 2007.
784
Dentre algumas outras. Pra um apanhado dessas críticas: HAYWARD, Clarissa Rile. Democracy’s
Identity Problem, op. cit. MÜLLER, com um tom, inclusive, algo irônico, também aponta para algumas
críticas existentes no artigo: MÜLLER, Jan-Werner. Seven ways to misunderstand constitutional
patriotism. Notize di POLITEIA, v. 25, n. 96, pp. 20-24, 2009.
785
HABERMAS, Jürgen. On Law and Disagreement; Some Comments on “Interpretative Pluralism”.
Ratio Juris, v. 16 n. 2, pp. 187-194, jun. 2003, p. 193: “The advantage of a recourse to ‘constitutional
patriotis’ lies in the universalist meaning of the core of this kind of patriotism, thus providing an implicit
overlap with the patriotism of other communities. On this basis we might even hope to develop further
interculturally acceptable interpretations of human rights”.
786
Aparentemente, nem o próprio HABERMAS nega a origem “localizada” dos direitos humanos, por
exemplo. Nesse sentido, aponta GISELE CITTADINO: “o patriotismo constitucional revela como os
direitos humanos não podem ser considerados apenas uma expressão valorativa de um sistema cultural
específico. Ainda que tenham surgido, como idéia normativa, em um mundo particular de cultura – a
Europa – isto não significa que os direitos humanos não possam ser vistos como o resultado de um
processo reflexivo a partir do qual os indivíduos podem tomar uma certa distância em relação às suas
próprias tradições e aprender a ‘entender o próximo a partir de sua própria perspectiva’. Portanto,
quando as Constituições configuram um conjunto de direitos fundamentais, elas contextualizam
princípios universalistas e, assim, transformam-se na única base comum a todos os cidadãos. Em
mundos pós-convencionais, onde os indivíduos não integram sólidas comunidades étnicas ou culturais,
são as Constituições que, incorporando um sistema de direitos, podem conformar uma nação de
cidadãos. Eis o patriotismo constitucional como modalidade pós-convencional de conformação de uma
identidade coletiva”, CITTADINO, Gisele. Patriotismo constitucional, cultura e história. Revista
Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 31, pp. 58-68, jul./dez. 2007, p. 67.
292
ao tratar do patriotismo constitucional, de algum modo, curiosamente, reporta-se a uma
ordem ética, concreta e substantiva de valores não universais. Assim, a justificação
política que lhe é tão cara, dependeria do partilhar consciente pelos cidadãos do
sentimento de pertença à comunidade concreta, na forma de uma constituição
integradora. Essa posição, aparentemente, colide com a tentativa de formulações de
“tendências universais” e dos pressupostos neoiluministas do autor de FRANKFURT.
Nesse aspecto, MICHELMAN chega a, ironicamente, apontar contradição entre o
conceito de patriotismo constitucional e os pressupostos da filosofia habermasiana787.

De todo modo, a ideia de patriotismo constitucional toma outras dimensões,


especialmente, a partir de algumas circunstâncias do fim do século XX e início do XXI,
especialmente: a queda do muro de Berlim e a reunificação da Alemanha; a
reconstrução de Estados nacionais recém-saídos da cortina de ferro e as consequentes
disputas pelas nacionalidades; as preocupações com a integração e construção de uma
“cidadania europeia”; e, ainda, com o grande fluxo migratório dos países periféricos aos
países centrais788. Nesses contextos, a partir desses fatos, tem sido reforçado o lado
integrativo, inclusivo e multicultural do patriotismo constitucional. Ele é visto como uma

787
MICHELMAN, Frank I. Morality, Identity and ‘Constitutional Patriotism’, op. cit., especialmente na
irônica provocação que faz ao texto: HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado
Democrático Constitucional, op. cit. Nesse texto, HABERMAS parece apontar a alguma preocupação de
cunho comunitário, quando afirma que: “os debates são sempre sobre a melhor interpretação dos
mesmos direitos e princípios constitucionais. Estes formam o ponto de referência fixo para qualquer
patriotismo constitucional que situa o sistema de direitos dentro do contexto histórico de uma
comunidade legal. Eles devem estar fortemente ligados às motivações e convicções dos cidadãos, pois,
sem semelhante apoio motivacional, não se poderiam tornar a força motriz por detrás do projecto
dinamicamente concebido para produzir uma associação de indivíduos livres e iguais. Por isso, a
partilhada cultura política na qual os cidadãos se reconhecem como membros de sua política também é
permitida pela ética”. Em linha similar, de certo modo, criticando a concepção abstrata e transnacional
de patriotismo constitucional em HABERMAS: ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional
subject, cit., pp. 258-269; ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado
Democrático de Direito. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v.7, n. 12, p. 11-63,
jan./jun.2004, p. 29. Em posição diferente à crítica de MICHELMAN, aportando continuidade e
coerência entre a “proposta filosófica pragmática universal ou formal” e o patriotismo constitucional:
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo constitucional, cit.,
pp. 65-74.
788
Não por acaso, ainda em 1990, HABERMAS aponta que, especificamente, esses movimentos mexem
com a relação entre cidadania e identidade nacional: HABERMAS, Jürgen. Cidadania e identidade
nacional, op. cit., Nesse texto o autor chega a falar de um “patriotismo constitucional europeu”.
HABERMAS, Jürgen. O Estado-Nação europeu frente aos desafios da globalização: o passado e o
futuro da Soberania e da cidadania. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 43, pp. 87-101, nov. 1995,
p. 96.
293
saída para agregar várias culturas nacionais em torno de uma cultura política comum,
plural e inclusiva.

É nesse sentido que avança, por exemplo, DIETER GRIMM que, tratando da
chave da integração pela Constituição789, aborda o patriotismo constitucional não
precisamente desde a Teoria e/ou a Filosofia Política, como o fazem STERNBERGER e
HABERMAS790, mas atento a preocupações mais típicas de um constitucionalista791.
GRIMM atenta para o fato de a Lei Fundamental alemã ter ocupado um “vácuo de
fatores de identificação”, especialmente, na medida em que ela se apresentou como
garantidora de prosperidade econômica e estabilidade política.

Nesse contexto, para o jurista, nada define melhor a situação alemã que a
expressão do patriotismo constitucional. Ela se tornou símbolo do papel integrador da
constituição alemã, que em uma sociedade desprovida de outras bases de identificação
nacional, se tornou o documento que representava e representa os valores alcançados e
estimados pela sociedade da Alemanha, antes Ocidental, hoje unida. Nesse sentido,
destaca que, diferentemente da Constituição de Weimar, as disputas a respeito das
normas constitucionais, apesar de por vezes muito acirradas, nunca se desenvolveram
em torno da validade e/ou legitimidade em si (sempre entendida como
fundamentalmente aceita), mas, apenas, em torno de diferentes interpretações
constitucionais. Assim, quando se argumenta a respeito de qual o “sentido adequado da
constituição”, de forma reflexa, está a se reafirmar a constituição através desses conflitos
básicos, isto é, da disputa pelo sentido da Constituição em alternativa a uma tentativa de
fuga dela, portanto, nessas disputas reafirma-se a própria força da Lei Fundamental792.

O patriotismo constitucional, portanto, coloca-se, nesses termos, como a força


em torno da qual os diferentes indivíduos, de diferentes culturas e mundividências,
integram-se na cultura política comum de modo a respeitar as instituições, parâmetros

789
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit.
790
Há um diálogo público entre HABERMAS e GRIMM: GRIMM, Dieter. Does Europe need a
Constitution? European Law Journal, v. 1, n. 3, pp. 282–302, nov. 1995; e HABERMAS, Jürgen.
Remarks on Dieter Grimm's ‘Does Europe Need a Constitution?’. European Law Journal, v. 1, n. 3, pp.
303–307, nov. 1995.
791
GRIMM, inclusive, foi juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão entre 1987-1999.
792
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution, op. cit., p. 203.
294
normativos e procedimentos democráticos e constitucionais. Assim, o patriotismo
constitucional de algum modo, encara a constituição como um símbolo através do qual
se dá o processo de integração dos indivíduos, sem que essa integração intervenha na
identidade ético-cultural de cada um, afirmando-a apenas no plano ético-político. Nesse
contexto, a “idéia de patriotismo constitucional baseado em uma lealdade à
Constituição”793, seria, de algum modo, um conceito normativo de “natureza
instrumental” a essa integração política.

Ele adquire esse sentido desde a formulação de STERNBERGER, mas,


especialmente, com HABERMAS e o desenvolvimento das questões da formação de uma
identidade política conciliável com a pluralidade de culturas diversas, quer na
reunificação da Alemanha, na recomposição dos Estados do leste europeu, das ondas
migratórias de sul e leste para a Europa e, mais tarde, na tentativa da
criação/consolidação de uma identidade europeia comum. Assim, estará relacionada à
integração pela constituição.

Há na articulação dessas chaves (vontade de constituição, sentimento


constitucional e patriotismo constitucional), no entanto, o fio condutor do elemento vital
da constituição. Ele importará, por um lado, na integração à constituição e pela
constituição, sem dúvida, mas, por outro, também estará presente na compreensão de
que a própria eficácia e efetividade do projeto constitucional dependem de outra ordem
de integração: a integração para a constituição, para a realização desse projeto
transformador da própria comunidade que tem o condão de torna-la aquilo que ela é, a
partir da efetivação, renovação e reafirmação desse projeto. Isto é, na configuração de
uma cultura de constituição.

793
BUNCHAFT, Maria Eugenia. A integração do conceito de patriotismo constitucional na cultura
política brasileira. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n.30, pp. 177-199, jan./jun. 2007.
295
CAPÍTULO 9
CULTURA DE CONSTITUIÇÃO
ONSTITUIÇÃO:
FORÇA NORMATIVA, LEGITIMIDADE E EFICÁCIA
EFICÁCIA

Recapitulando, a ideia de cultura constitucional relaciona-se a algumas acepções


diferentes, sendo, mesmo, utilizada em vários sentidos. Todavia, eles todos caminham e
articulam-se como dimensões de uma ideia, de que: a constituição é uma unidade
cultural, integrante e integradora, da e na comunidade jurídico-política.

Uma primeira dimensão é aquela relacionada ao constitucionalismo, na medida


em que se entende por constituição uma formulação jurídico-política de uma cultura
particular do Ocidente que, apesar de particular desse quadrante, é marcada por uma
inexorável identidade pluralista e inclusiva – além de pretensamente universal(ista). É
possível afirmar, inclusive, que essas características decorrem de seus próprios valores
típicos e seminais, especialmente, daqueles que se colocam em privilegiada conexão
com sua premissa de humano.

Nesse sentido, essa primeira face é reveladora de uma relação de implicação


entre as dimensões da legitimidade (fundamento) e da validade da constituição, que,
embora não coincidentes, apresentam-se como dialeticamente imbricadas. Nessa linha,
a própria originalidade da experiência do constitucionalismo se coloca, mais que na
busca pela legitimação do poder, na aspiração progressiva por um poder gradativamente
mais legítimo, nos termos dessa cultura específica. Portanto, coloca-se na própria
296
construção de um conceito normativo de constituição, não uníssono, mas relacionado às
amarras do constitucionalismo e sua própria identidade.

Uma segunda dimensão está contida na própria identidade constitucional, que se


coloca na construção, desconstrução e reconstrução de uma identidade que se forma na
articulação dessas amarras, especialmente vinculadas à dinâmica do reconhecimento do
eu e do outro, com as próprias culturas locais sobre as quais elas operam, bem como,
na articulação da identidade constitucional com outras identidades – pré-constitucionais
e extra-constitucionais – existentes, como a nacional, a religiosa, dentre outras. Essa
identidade não se põe estaticamente, mas está em constante transformação, de modo
normativo – enquanto constitucional – e de modo constitutivo e construtivo – enquanto
identitária – no fluxo da cultura constitucional.

Isso leva, portanto, ao caminhar dessa dinâmica, no que acaba por apresentar-se
a terceira dimensão da cultura constitucional, identificada com seu elemento vital que
podemos chamar de cultura de constituição. Ela extrapola a relação entre validade e
legitimidade e não se esgota no diálogo entre o ser e o dever ser de uma constituição.
No entanto, tampouco deixa de estar contida na relação entre normalidade e
normatividade da realidade constitucional e identifica-se com a relação necessária entre
legitimidade e eficácia, inerente ao dinamismo constitucional.

Se a constituição é um projeto político-cultural próprio e típico da cultura que


tem por premissa a dignidade da pessoa humana, como coloca HÄBERLE, esse é um
projeto que tampouco pode ser compreendido de forma unidimensional, monológica
ou estática. Ele está em marcha e em constante transformação. Não se trata de mera
descrição de uma realidade ou de uma normalidade, mas, também, é caracterizada por
uma normatividade que emana de sua premissa e parâmetro normativo basilar794.

Se o reconhecimento descritivo-normativo da dignidade humana como premissa


de humano da cultura do constitucionalismo é recorrentemente firmado, validamente,
nas constituições do Estado de Direito, especialmente, desde os textos constitucionais

794
Nesse sentido, é possível interpretar a afirmação de SALGADO: “o dever ser e não o devir é o que dá a
nota essencial do homem, pois como devir é determinado, como dever ser é autodeterminação que, no
caso, é autoformação”, SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p.
19.
297
do segundo pós-guerra, nesse mesmo período acompanhou-lhe uma reiterada afirmação
da normatividade jurídica da constituição.

Como mencionado, tal normatividade tem, como ponto crítico, características


muito próprias das normas constitucionais que se apresentam, quer no seu elevado grau
de indeterminabilidade e abstração795 – não raramente, colocadas sobre “conceitos
indeterminados” –, quer no fato de, na maior parte das vezes, as prescrições
constitucionais não preverem instrumentos coercitivos imediatos relacionados a seu
descumprimento e não observância. Estes, mesmo quando existem de forma
institucional ou simbólica, geralmente colocam-se a partir de um aparato de coerção
estatal classicamente vinculado às formas de sanção estatal796.

Nesses termos, é possível dizer que a eficácia jurídica, a eficácia social da norma
e, mesmo, a efetividade de uma constituição797, por muitas vezes, apoiam-se em um
lastro um tanto mais etéreo que o do monopólio da violência pelo Estado798. E, nesse

795
NEUMANN aponta que essas características nas normas constitucionais são marca especial do
constitucionalismo social do século XX: NEUMANN, Franz. O Império do Direito, cit., pp. 72-100.
796
Com isso não se está a afirmar a inexistência de aparelho coercitivo nas normas constitucionais.
Menos ainda, relativizando a dimensão da coercitividade como própria à definição de Direito. Não se
diverge de LUÍS ROBERTO BARROSO quando afirma que: “as normas constitucionais, tal como as
demais, articulam-se usualmente na dualidade típica preceito e sanção, quer esta resulte diretamente da
regra, quer deflua do sistema em seu conjunto”, BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e
a Efetividade de suas normas, cit., p. 87. Inclusive, este trabalho do autor, que vem a ser um dos
principais nomes da doutrina brasileira da efetividade, tem como principal objetivo chamar a atenção
aos mecanismos jurídicos e aos “meios para assegurar a efetividade das normas constitucionais”. O que
aqui se pontua é que, na maior parte das vezes, essa vinculação não se faz de modo imediato. Um
exemplo dessa peculiaridade se coloca nos limites a serem respeitados pelas cortes constitucionais
quanto a sua autocontenção. Ou ainda, à questão do suporte difuso e da lealdade institucional, que
ainda serão abordadas. O próprio BARROSO chama a atenção ao que trata como a “primeira faceta do
controle de efetividade do Direito, por via informal, não institucionalizada, de natureza essencialmente
política e social”.
797
LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional, cit., p. 118: “Cuando décimos que todas las
normas de la Constitución tienen alcance jurídico ha de entenderse que esa validez debe intentar su
coincidencia con su efectividad””.
798
HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional, op. cit., pp. 7-8: “El Derecho
Constitucional se diferencia del Derecho de otras ramas jurídicas en que, en definitiva, no existe
instancia que pueda imponer su observancia; el Derecho Constitucional tiene que garantizarse por sí
mismo, lo cual supone la existencia previa de una configuración que esté en condiciones de asegurar en
lo posible tal garantía inmanente. Las funciones ordenadora y pacificadora del Derecho ordinario
dependen en gran medida de que si resulta necesario, se impongan por vía ejecutiva, mediante la
coerción estatal. Su observancia, pues, siempre resulta garantizada desde fuera. Todo lo contrario
ocurre con las normas de la Constitución. Su observancia no se garantiza ni por un ordenamiento
jurídico existente por encima de ella ni por una coactividad superstatal; la Constitución no depende sino
298
sentido, renova-se o discurso de TOBIAS BARRETO: o Direito é a força que matou a
própria força.

Se de um lado a eficácia das normas constitucionais depende da vontade de


constituição – mais ou menos consciente, mais ou menos sentida – de algum modo, é
possível estabelecer que o principal projeto jurídico-político de uma constituição é o de,
justamente, incutir e firmar os valores daquela identidade pluralista ali exposta. Ele
consiste em possibilitar uma normalidade, um ambiente em que, em última instância, se
opere espontaneamente de acordo com aquela identidade, com aquela mundividência,
inclusive e, principalmente, na dinâmica política. De certo modo, fazer da constituição o
próprio ethos da comunidade, em seu contínuo processo de leitura e (re)construção. É,
portanto, o projeto de fortalecer uma cultura constitucional estabelecendo-se uma
cultura de constituição.

Tem razão MARCELO CATTONI quando bem coloca que é “muito complicado
achar que pelo simples fato do direito à moradia ter sido inserido expressamente na
Constituição, todas as pessoas do País já terão moradia, ou que a Constituição, por ela
mesma, vai sair construindo casas por aí. É necessária uma política habitacional
condizente. Ou, que considerar racismo crime, que as pessoas vão deixar de ser racistas.
É necessário fomentar uma cultura pluralista”799.

Coloca-se exatamente aí a questão da cultura de constituição. Trata-se, ao mesmo


tempo, de uma integração pela constituição, mas, também, de uma integração para a

de su propia fuerza u de las propias garantías.”. Corroborando essa compreensão: GRIMM, Dieter.
Constitucionalismo y derechos fundamentales, op. cit., p. 31.
799
CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. O projeto constituinte de um Estado Democrático
de Direito: por um exercício do Patriotismo Constitucional, no marco da Teoria Discursiva do Direito e
do Estado Democrático de Direito, de Jürgen Habermas. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.).
Quinze anos de constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 131-154, p. 147. Ou, na pagina
anterior, quando afirma: “Talvez um dos grandes equívocos, mais uma vez, ou dos piores ‘vírus’ do
Direito, para usar o termo que Dom Luciano utilizou, seja justamente a incapacidade de compreender
que realmente o Direito não é capaz por si só de transformar a realidade ou de transformar o mundo.
Que no máximo, no máximo, a Constituição pode promover mudanças na medida em que essa
Constituição constitua algo. Que ela seja o centro de mobilização ou de integração de uma sociedade,
no sentido do desenvolvimento de um patriotismo constitucional. Mas daí a achar que a Constituição,
por ela mesma é capaz de transformar a realidade, ou que mais uma emenda constitucional vai resolver
o problema da falta de efetividade da Constituição, isso é insistir num equívoco. No equívoco que
contribui para mais frustação e para o agravamento do sentimento de fracasso constitucional”.
299
constituição, para fazer com que esse projeto político-jurídico e social ganhe vida em sua
efetividade, mas, também, que seja vivido enquanto construído e reconstruído.

No fundo, se o projeto do Estado de Direito está intimamente relacionado à sua


preocupação com a legitimidade do poder, estará, de certo modo, identificado em
combater/controlar a força através da legitimidade – através do fundamento – limitando
o poder. Em último caso, em referência a valores que correspondam à justificação e à
razão de ser da comunidade jurídico-política organizada no Estado. Assim, a
normatividade constitucional (e, particularmente, sua efetivação como eficácia social)
estará especialmente vinculada ao cumprimento espontâneo das normas pela e na
comunidade, o que se coloca sobre uma plataforma de contínuo processo social. Nesse
sentido, HELLER já destacava:

las normas sociales mantienen necesaria relación con la esfera del ser
en cuanto sólo tienen validez, es decir, reciben existencia y se
mantienen, en virtud de una orden dictada por una voluntad de una
observancia voluntaria, o sea que su deber ser tiene siempre como
supuesto y como objetivo un querer real800.
Portanto, quanto à eficácia, especialmente no caso do Direito Constitucional, tão
importante, ou até mesmo, mais importante que a garantia externa da constituição é sua
garantia interna.

É nesse sentido que LUÍS PEREIRA COUTINHO afirma que a vigência de uma
constituição só é possível “por um longo termo, caso se lhe encontre subjacente uma
‘vontade geral’ continuamente actualizada”801. Nesse contexto, propõe uma “recuperação
da vontade geral” rousseauniana em leitura que a compreende dentro de uma
determinada “tradição contratualista ‘não desterrada’”, na qual se inserem, também,

800
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 238.
801
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 377. E mais a frente:
“Isto é, que na ausência de uma adesão à normatividade constitucional por parte daqueles que se lhe
subordinam – e a que subordinam o poder a que obedecem, constituindo uma ‘garantia interna’ da
Constituição que nenhuma ‘garantia externa’ substitui –, a mesma se encontra condenada, bastando para
o demonstrar o paradigmático exemplo de Weimar”, pp. 379-80. Em termos parecido, HÄBERLE
coloca a “Constitución entendida como contrato (social) dinâmico en el sentido de una ‘convivencia
constantemente resignificada’”, HÄBERLE, Peter. Tiempo y cultura constitucional. Contextos, Buenos
Aires, n. 2, pp. 36-81, 2011, p. 38.
300
ESPINOSA e LOCKE (este entendido como continuador daquele)802, que nega aos
contratantes o caráter de seres “absolutamente livres, sem amarras e sozinhos”803,
negando, também, a possibilidade de um contrato tomado ex nihilo. Ao contrário disso,
PEREIRA COUTINHO percebe, sob a influência de CHARLES TAYLOR, que os
“‘contraentes’ internalizam uma parametrização moral igualitária”804. Destarte, coloca a
autoridade da constituição em termos de uma autoridade moral805, no que propõe ser:
uma autoridade então relevante, não de a Constituição ter sido
aprovada por um Povo-com-P-maiúsculo, mas de a mesma ser
plasmadora de uma sabedoria – de uma identitária parametrização
normativa – com a qual, compulsivamente, “não estamos em posição
de entrar em conflito”806.
Não que tal sabedoria não se atualize na dinâmica política. Dito de outra forma,
em termos que não estão necessariamente em PEREIRA COUTINHO, trata-se de um
parâmetro objetivo culturalmente construído, que, enquanto cultural, é humano e está
em constante caminhar sobre a terra. Assim, trata-se de um parâmetro, apenas,
relativamente objetivo, pois não externo à própria dinâmica da cultura. Destarte, é
cultural, por excelência, conformado e conformador do indivíduo e de sua identidade807.

Nas palavras de BÖCKENFÖRDE:

las ideas de justicia y de lo recto, las ideas propias de un orden político,


solo cobran fuerza configuradora y legitimadora para la vida en común
de los hombres cuando son mantenidas por hombres o grupos de

802
Essa não é a leitura necessária, nem mesmo a usual, que se faz de LOCKE. Para tanto, PEREIRA
COUTINHO formula sua posição, especialmente, recorrendo às leituras que fazem LUÍS CABRAL DE
MONCADA (este relacionando LOCKE e ESPINOSA) e JEREMY WALDRON.
803
WALZER, Michael. The Communitarian Critique of Liberalism. Political Theory, v. 18, n. 1., pp. 6-
23, fev. 1990, 7-9.
804
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 350. E segue na mesma
página: “Na tradição em causa, o contrato é, pois, um compromisso ético relevante da interiorização,
pelos ‘contraentes’, de uma parametrização moral centrada na igualdade fundamental de todos. Uma
parametrização em cujo âmbito é reconhecida autoridade moral a uma normatividade constitucional
que a reflicta”.
805
Por autoridade moral o autor entende: “Falar em autoridade moral do Direito significa, claro está,
identificar a normatividade correspondente como boa, como sede de uma República bem regulada ou
como projecção de justiça”, COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit.,
p. 13.
806
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição, cit., p. 349. E aqui remete
explicitamente: ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa: Relógio D’Água, 2001, p. 236.
807
KAHN, Paul W. The cultural study of Law, cit., p. 6; 36-40.
301
hombres como una convicción viva, y se integran en una fuerza o en
una magnitud política que las sostiene808.
Nesse contexto, tocam-se legitimidade e eficácia. Uma legitimidade que não se dá
simplesmente em referência a um (mais ou menos) mitológico momento fundador, mas
na amiúde renovação, reafirmação e reinvenção da própria identidade político-cultural
na cultura constitucional. Uma identidade que tem na sua constituição um símbolo
dessa cultura, importante para a identificação de sua identidade, e na sua garantia
interna a força vital motriz da normatividade809.

Relacionado a isso, PAULO FERREIRA DA CUNHA aponta três sentidos para


cultura constitucional: a) o conhecimento e grau de informação a respeito da
Constituição; b) as opiniões correntes sobre a constituição; c) e a interiorização
constitucional popular por um determinado grupo da sociedade, sendo considerados
seus elementos positivos, preceitos e princípios de uma dada constituição810. Para tanto,
indica que há cultura constitucional em uma sociedade, quando nela os cidadãos têm
plena consciência do conteúdo de três princípios: a) estabilidade da constituição; b)
primado ou prevalência da constituição sobre os demais direitos; c) constitucionalidade
das leis. Para tanto, os cidadãos “não precisam de os nomear, de os identificar como
tais, mas devem ter interiorizado e aderido aos três, como coisas naturais próprias de
uma democracia avançada”811. Assim, propõe que, se por um lado, em termos teóricos, a
cultura constitucional situa-se na área da “sociologia constitucional”, por outro, ressalta
que, em se tratando de uma “sociologia axiologizada”, ela adentra no terreno próprio da
“filosofia constitucional, especificamente ao domínio da filosofia prática, e
especificamente ética”.

Também MAZZONE dará ênfase ao elemento vital para sua definição de cultura
constitucional. Para ele, esta abarca elementos como a disposição dos cidadãos de

808
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo, op. cit., p. 162.
809
VORLÄNDER, Hans. What is “Constitutional Culture”?, op. cit., p. 28: “Constitutions are not fixed
orders; they express statements of order and claims of validity, but cannot redeem these by themselves.
Constitutions have to rely on symbolic forms of representation that lend them validity, that is, acceptance
and recognition. Symbolic and functional features therefore cannot be separated; the function of a
constitution is based in its symbolic meaning”.
810
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política: poder constituinte, constituição material e
cultura constitucional. Lisboa: Quid Juris, 2012, pp. 30-32.
811
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política, cit., p. 33.
302
reconhecer e aceitar que eles estão vinculados por um documento escrito, que cria as
instituições do poder e estabelece limites sobre sua atuação. Inclui, também, a própria
aceitação e “crença” compartilhada na comunidade de que essa carta de poder é criada
pela cidadania e que, não sendo eterna, ela pode ser modificada sob certas
circunstâncias, mas, enquanto não for alterada, todos os cidadãos estão a ela vinculados,
devendo ir até as últimas consequências para cumpri-la e efetivá-la, ainda que sejam
livres para discordar de suas posições pontuais. Para MAZZONE, a cultura constitucional
encampa, ainda, a compreensão de que a constituição une a população em um sentido
mais amplo, para além daqueles vínculos mais imediatos de pertencimento (família,
congregação religiosa etc.), vinculando e sendo comum a todos os cidadãos da
comunidade jurídico-política812.

Nesse contexto é possível novamente afirmar que o principal objetivo normativo


de uma constituição, em última instância, é o de instituir em uma comunidade os
padrões do constitucionalismo, criando uma normalidade, um ambiance, uma cultura
constitucional. Portanto, que essa comunidade e os cidadãos que a integram, tenham
interiorizado que a dinâmica de construção de sua identidade política (e jurídico-
política) deve ser operada em relação a esses padrões, que se faz viva e vivida enquanto
norma, nesse próprio processo de construção.

Assim, em referência à própria dinâmica de reconhecimento e autoformação,


típica da cultura do constitucionalismo, ela se faz a partir da articulação entre as
identidades locais e os laços dessa identidade mais geral, a fim de criar uma nova leitura
deste modelo que seja capaz de fazer-se viva e vivida. O constitucionalismo demanda
isso. E é nessa dialética de construção de uma identidade constitucional própria, que já
se inicia o processo de realização dessa nova identidade e de efetivação de uma
Constituição.

Dito de outra forma, uma Constituição tem como principal projeto normativo
fazer com que uma cultura política específica torne-se suficientemente comprometida

812
MAZZONE, Jason. The creation of a constitutional culture. Tulsa Law Review, n. 40, n. 4, pp. 671-
698, 2004, p. 672.
303
com o parâmetro normativo do constitucionalismo para que possa, ela mesma, ser
considerada – e considerar-se – uma comunidade com/em cultura constitucional.

De certa forma, esse projeto realiza-se, continuamente, quando o padrão de bem


e o ethos da comunidade conseguem, a partir de um diálogo, fundir-se com os
parâmetros do constitucionalismo a ponto de que dada uma cultura política e jurídica
particular identifique-se e entenda-se, ela mesma, como uma leitura própria, única e
inovadora, da identidade do constitucionalismo, realizadora de sua identidade, do
reconhecimento e da dignidade humana.

Isso, no entanto, só se dará ao passo que os cidadãos assim também se


autocompreendam e se sintam nela e por ela refletidos. Isto é, na medida em que os
próprios cidadãos, individual e coletivamente, identifiquem-se no próprio parâmetro
fundador e motriz do constitucionalismo, interiorizando-o e pondo-o em prática. Um
parâmetro em torno do qual cidadãos livres e iguais, fraternamente, identifiquem-se
com uma unidade em pluralidade que deve promover a dignidade de todos.

No entanto, cada identidade constitucional coloca-se de modo a conformar as


estruturas sociais e a vida da comunidade, propondo a partir de uma normatividade
uma nova normalidade, social e estrutural, a ser almejada, estimulando transformações à
própria comunidade, sem que ela, com isso, perca sua própria autenticidade, sua marca
própria, logo, sua identidade. É uma tentativa de torna-la aquilo que ela é, em suas
potencialidades e projeções. Se, por um lado, a identidade constitucional tem de ser
trabalhada em um compromisso com os valores próprios do constitucionalismo, por
outro, também, a comunidade tem de dar vida à sua própria identidade, vivendo-a e
tornando-a viva na configuração do caminhar de sua cultura jurídico-política enquanto
constitucional. Destarte, é um compromisso que tem duas faces, com a identidade mais
ampla do constitucionalismo e com a mais particular expressão da identidade
constitucional, que tem como símbolo a própria constituição escrita.

Essa normatividade realiza-se e torna-se efetiva, basicamente, na diferenciação e


identificação de uma identidade constitucional, na difusão do conhecimento e
reconhecimento constitucional e no reafirmar do compromisso do Estado, de seus

304
agentes e de cada cidadão com esse projeto, na amiúde renovação e revitalização do
próprio argumento legitimador/justificador da ordem constitucional enquanto tal.

Todos esses três tópicos estarão relacionados à ideia de que a eficácia da


constituição depende de sua capacidade de gerar e/ou fortalecer uma cultura
constitucional na comunidade, a partir de sua identificação com ela. Isto é, que a
constituição justifique-se enquanto legítima, porque reconhecida e identificada com a
identidade político-cultural daquela comunidade. Para tanto, são importantes as
questões, novamente, da identidade constitucional, da pedagogia constitucional e, ainda,
da lealdade constitucional difusa, mas, especialmente, da relação que há entre essas três
dimensões.

9.1. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL E CULTURA DE CONSTITUIÇÃO

O próprio construir e reformular de uma constituição, conforme suas próprias


regras e razão de ser, é uma primeira forma do fazê-la efetiva. Nesse sentido é possível
dizer que a “cultura constitucional é mais bem construída pela aplicação de uma
constituição na vida diária”813. Essa dinâmica corresponde a fazer da própria constituição

813
Falando do processo de (re)constitucionalização da Polônia após queda do regime comunista:
“Which should be attended to first? Should we undertake a broad educational attempt to create a
constitutional culture and adopt a constitution only after such culture is formed? Or should we enact a
constitution first and then use it to form a constitutional culture? Poland tried to do both at the same
time, i.e., to use the process of constitution making for a broad educational effort about
constitutionalism. In fact, however, politicians used the referendum campaign for a constitution for win
support for their own parties rather than to solidify a constitutional compromise. The constitution
became divisive, did not teach any lesson to anybody, and did not work. We learned that constitutional
culture is best built by application of a constitution daily life. There also exists a very powerful practical
argument not to delay the adoption of a new constitution until social consciousness changes. There is
much evidence that once a short-lived ‘constitutional moment’ is missed, it becomes more difficult to
reach a constitutional agreement about rules and principles, particularly in conditions of a simultaneous
transition to constitutionalism and democracy”, OSIATYNSKI, Wiktor. Paradoxes of constitutional
borrowing. International Journal of Constitutional Law, Nova York, v. 1, n.2, pp. 244-268, abr. 2003,
pp. 266-267.
305
não apenas letra morta, tampouco, declaração estática, mas, ela mesma, viva e vivida
através das práticas cotidianas da cultura constitucional814.

Nesse contexto, a chave da identidade constitucional é importante, também,


quanto à relação que essa construção guarda com o fluxo vital de reafirmação do povo
com sua constituição e em sua constituição, tornando sua identidade viva e vivida.

As identidades constitucionais são, antes de tudo, leituras particulares, originais e


inovadoras da própria identidade do constitucionalismo. Portanto, a própria formação
de uma identidade que se pretende, normativamente, identidade constitucional
depende de uma vontade de constituição, quer daqueles que dão o primeiro passo
nessa construção – os que fazem a constituição no momento constituinte – como
daqueles que amiúde a desconstroem e reconstroem no seu processo de interpretação.

É verdade que o próprio sentido das amarras do constitucionalismo é


configurado e reconfigurado no próprio processo público de interpretação dessas
estruturas. Contudo, estas já se colocam sobre bases histórico-culturais mínimas que as
identificam: com uma razoável definição e limitação do poder, com o compromisso
com o Estado de Direito, com a legalidade, com a democracia e à proteção dos direitos
fundamentais.

O próprio construir, desconstruir e reconstruir de uma identidade constitucional


em fluxo vital, não estático, depende da incorporação pela comunidade da
compreensão de que sua própria identidade jurídico-política deve ser realizada e
construída na articulação entre as amarras do constitucionalismo e as demais
identidades pré- e extra-constitucionais. Isto é, no respeito ao argumento último de
legitimidade da ordem constitucional e à sua premissa de humano.

A cultura constitucional, como fluxo de formação das identidades, trata-se de um


processo interpretativo que se realiza continua e cotidianamente não apenas nas
instâncias oficiais de intepretação da Constituição, mas pela própria sociedade e por
cada cidadão como um todo, que dão suporte a essa estrutura, reconhecendo-a como

814
VORLÄNDER, Hans. What is “Constitutional Culture”?, op. cit., pp. 28-29: “We can therefore
identify as constitutional cultures those solidified, temporally extended collective imaginations,
interpretations and practices that normatively distinguish the meaning of a given political order”.
306
válida, respeitando-a, endossando-a e implementando-a na própria rotina da
comunidade jurídico-política. Destarte, se “quem vive a norma acaba por interpretá-la
ou pelo menos co-interpretá-la”, a interpretação da constituição de um Estado
Democrático de Direito não pode ser coisa de uma sociedade fechada e é realizada
amiúde por cada cidadão no espontâneo cumprir e dar suporte ao Direito e às
interpretações (oficiais) dadas à constituição815.

Sendo a identidade constitucional, por definição, normativamente, pluralista e


incorporadora da dinâmica de reconhecimento do eu e do outro em unidade no sujeito
constitucional; apresentada em uma identidade que se constrói, reconstrói e desconstrói
em um formato inclusivo; e sendo a Constituição ordem jurídica não apenas do Estado,
mas, também, da comunidade; ela é, na realidade, não é apenas elemento resultante,
mas, também, formador e constituinte da comunidade. Assim, todas as potências
públicas e todos os participantes morais e materiais do processo social devem ser
reconhecidos como partícipes desse processo de interpretação816.

No fundo, é também esse reconhecimento que serve de justificação legitimante


de uma ordem constitucional, que não se coloca em referência a uma qualquer
justificação fundamentada em qualquer ascendência divina, ordem natural ou herança
étnica. Do contrário é uma ordem que se justifica em relação ao um padrão de bem, à
premissa (cultural) de que todos são fundamentalmente iguais em dignidade e que, por
isso, concebe que normativamente deve haver o contínuo reconhecimento entre o eu e
o outro, de modo que todos sejam igualmente considerados no processo de construção

815
COELHO, Nuno M. M. S. Compreensão como arte: notas “hermenêuticas” sobre Constituição e
constitucionalismo. Prisma Jurídico, v. 8, n. 1, pp. 53-75, jan./jun., 2009, p. 72: “A interpretação é
verdadeira quando experimenta o texto no contexto da própria vida. Compreensão é vida, é viver o
texto, ou é reviver. Com respeito à interpretação da Constituição, é preciso chamar a atenção para o
titular (melhor seria dizer: o lugar) da interpretação do direito: o direito é lá onde é experimentado,
vivido, e onde efetivamente as intuições do constituinte são revividas. Ali é que se instaura (ou não) o
diálogo com o constituinte (assim, é ali que se o instaura como constituinte). Ali onde a Constituição é
interpretada: da sessão do STF à assembléia condominial. Da jurisprudência dos tribunais à opinião
pública, passando pelos órgãos de imprensa. É claro que não é um assunto apenas de juristas – a não ser
que se admita sermos todos juristas. Para além dos tribunais constitucionais, nos quais passa apenas uma
parte da vida da Constituição, a assunção do que o constituinte disse é obra quotidiana de todos os que
integram (compreendem) a Constituição como parte de sua própria língua”.
816
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional, cit., p. 13. SIEGEL, Reva. Constitutional Culture,
Social Movement Conflict and Constitutional Change: The Case of the de facto ERA – 2005-06
Brennan Center Symposium Lecture. California Law Review, v. 94, n. 5, pp. 1323-1420, set./out. 2006.
307
e reconstrução da identidade constitucional, em última instância, no processo de
contínua interpretação da constituição.

Desse modo, a vivência da cultura constitucional é a própria dinâmica do


caminhar da comunidade que se desenrola em um contínuo e sempre inacabado
processo de conhecimento e reconhecimento, descoberta e invenção da identidade
coletiva em referência aos padrões do constitucionalismo. Ele, em boa medida, consiste
em criar uma narrativa coerente que integre incessantes e sucessivos momentos de
rejeição e identificação817. Dessa formação da identidade constitucional, relacionada às
prescrições normativas do constitucionalismo, são absolutamente inescapáveis as duas
principais dimensões da liberdade do cidadão: a proteção dos direitos fundamentais e a
democracia como forma organizativa da comunidade jurídico-política.

Nisso, de certo modo, concorda-se com HABERMAS, quando entende, nas


palavras de MARCELO CATTONI, que:

o projeto constitucional-democrático, subjacente às Constituições dos


Estados Democráticos de Direito, a ser defendido e levado adiante
patrioticamente, remete-se à própria idéia de construção permanente
da legitimidade, por meio da realização, no tempo, enquanto processo
de aprendizado social, após dois séculos de constitucionalismo
moderno, daquela coesão interna entre as noções de autogoverno e
iguais direitos de liberdade subjetiva, concretizadores de uma complexa
noção jurídica de autonomia818.
Portanto, vive-se uma cultura constitucional quando uma comunidade
compromete-se de forma integrada em operar a formação de sua própria identidade em
referência à mais geral identidade, pluralista e inclusiva, do constitucionalismo,
interiorizando-a819. A essa interiorização, ou melhor, ao renovado processo de
interiorização desse comprometimento, ao coração dessa identidade, quer ao que ela
tem de geral (relacionado ao constitucionalismo), quer ao que tem de particular

817
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 29.
818
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo constitucional contra fraudes à
Constituição, op. cit., p. 4. E segue: “Para Habermas, num diálogo crítico com a tradição do
republicanismo cívico, os direitos fundamentais de liberdade e de igualdade seriam, pois, a própria
explicitação do sentido performativo da práxis de autolegislação democrática e da noção complexa de
autonomia jurídica que lhe é subjacente”.
819
MIRANDA, Jorge. Notas sobre cultura, Constituição e direitos culturais. O Direito, Lisboa, a. 138, n.
VI, 2006.
308
(relacionado à cultura própria da comunidade), é o que chamamos de consolidação de
uma cultura de constituição.

Destarte, as amarras do constitucionalismo, a um só passo, apontam no sentido


de promover o mútuo reconhecimento entre o eu e o outro, cultivando ambos em igual
dignidade, mantendo abertas as portas para a reconstrução da identidade constitucional
em um formato que possibilita a contínua verificação da legitimidade das normas
constitucionais vigentes, enquanto justificadas nessa própria mundividência820. É,
portanto, afirmação cultural dessa identidade e dessa premissa particular de humano
que pertence ao Ocidente, que pode dialogar com outras identidades, mas que,
demanda coerência com o coração dessa cultura.

Nesse sentido, reforçar e viver esse argumento último de justificação,


consolidando-o e vitalizando-o é, por excelência, tornar a constituição efetiva, é viver
uma cultura constitucional.

Um projeto que pretende vencer a força pela não força, que, em última instância,
pretende fazer-se eficaz porque válido e válido porque legítimo. Nesses termos, a
própria efetividade da ordem constitucional acaba por depender de sua amiúde
renovação e identificação com a identidade do constitucionalismo, igualitária e
pluralista. Dito de outra forma, no fundo, a condição última de possibilidade para a
perpetuação e efetividade de uma ordem constitucional é ela fazer-se sentida legítima,
na sempre renovada identificação de todos os cidadãos – do eu e do outro – com aquela
identidade constitucional, como parte e partícipe do sujeito constitucional. Ou, ainda,
nas palavras de BERCOVICI: “a Constituição só é real se significa algo para os
cidadãos”821.

É nesse sentido que parece caminhar ROSENFELD, quando afirma que a


expressão sentimento constitucional é uma fórmula muito melhor para compreender os
vínculos e ligações dos cidadãos com a constituição. Para ele, a melhor forma de se
colocar as pessoas envolvidas com ela “não é, necessariamente, por meio de aspectos da

820
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject, cit., p. 44.
821
BERCOVICI, Gilberto. Democracia, inclusão social e igualdade. In: XIV Congresso Nacional do
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI, 2006, Fortaleza - CE. Anais
do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.
309
Constituição que fornecerão um governo melhor, com o qual, talvez, o imaginário da
população não se identifique”. O que entende como importante, na verdade, é colocar
as pessoas envolvidas com “algum laço emocional entre o que o sentimento popular
possa ser e o governo, de fato, é”, mas, mais que isso, afirma que: “o que é importante é
que há, na consciência coletiva do país, uma certa ligação com a Constituição”822.

Assim, mais do que uma integração através Constituição – função importante


dessa dinâmica – a efetivação de uma Constituição, em boa medida, significa a própria
integração à Constituição, na Constituição e para a Constituição, forças que seguem em
contínuo processo de articulação823.

Nas palavras de HELLER:

no pueden estimarse completamente separados lo dinámico y lo


estático, tampoco pueden serlo la normalidad y la normatividad,
el ser y el deber ser en el concepto de la Constitución. Una
Constitución política sólo puede concebirse como un ser al que
dan forma las normas. Como situación política existencial, como
forma y ordenación concretas, la Constitución sólo es posible
debido a que los partícipes consideran esa ordenación y esa
forma ya realizados o por realizarse en el futuro, como algo que
debe ser y lo actualizan; ya sea que la forma de actividad
acomodada a la Constitución se haya convertido para ellos, por
medio del hábito, en una segunda naturaleza, en conformación
habitual de su propio ser apenas estimada como exigencia
normativa consciente; ya sea que los miembros motiven su

822
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado Democrático de Direito,
op. cit., p. 29: “Eu acho que a expressão que você usou, do seu colega, de construção do sentimento
constitucional, é uma expressão muito melhor. Uma forma de colocar as pessoas envolvidas com a
Constituição não é, necessariamente, por meio de aspectos da Constituição que fornecerão um governo
melhor, com o qual, talvez, o imaginário da população não se identifique. Antes, porém o que é de
certo modo estranho, e é aqui que eu acho que a noção de identidade constitucional é importante, é
necessário que as preocupações, os sonhos, os pesadelos, os mitos, as lendas, os pontos de referência
comuns, históricos etc., estejam na base desse governo constitucional, de forma que possamos conseguir
algum laço emocional entre o que o sentimento popular possa ser e o governo, de fato, é: muito técnico
e reservado a advogados e legisladores. É nesse sentido que eu me refiro à imaginação constitucional do
povo nos Estados Unidos, e ela, de alguma forma, entrou na cultura popular. No entanto, isso não é
necessariamente importante. O que é importante é que há, na consciência coletiva do país, uma certa
ligação com a Constituição”. Também nesse sentido: MOREIRA, Nelson Camatta. A filosofia política
de Charles Taylor e a política constitucional de Pablo Lucas Verdú, op. cit., p. 37.
823
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana, cit., pp. 323-324: “Os cidadãos se identificam com a sua
comunidade política quando reconhecem que a comunidade tem uma vida comunitária, e que o êxito
ou fracasso de sua própria vida depende eticamente do êxito ou fracasso dessa vida”.
310
conducta, de modo más o menos consciente, por normas
autónomas o heterónomas824.
A identidade constitucional, portanto, faz-se viva quando consegue, ela mesma,
colocar-se em movimento e efetivação social por uma cultura de constituição. Esta é o
elemento vital de uma da cultura constitucional. Toca o patriotismo constitucional, que
pretende uma integração pela constituição, mas o transcende, na medida em que se
articula não apenas a partir de um momento fundador, mas, também, em relação a toda
uma identidade do constitucionalismo, relida na construção de uma identidade
constitucional. Essa força gravitacional, até porque cultural e identitária, tão pouco se
coloca de forma unidimensional, quer na razão, quer na vontade, mas, articula-se com o
próprio sentimento de pertença e identificação da comunidade e do sujeito
constitucional com aquela identidade constitucional particular, possível, inclusive, a
partir da dinâmica de reconhecimento que lhe é própria825.

Como adverte ROSENFELD, “o fato de que há uma identidade constitucional não


significa que há uma adoção constante dos valores da Constituição. Significa [entretanto]
que isso se torna um fator importante na consciência política e histórica do povo, da
nação”826. Portanto, a simples construção de uma identidade constitucional não se
mostra suficiente para a criação de uma cultura de constituição e a incapacidade de se
consolidá-la, de criar esse laço, pode significar a própria erosão da força normativa de
uma constituição.

Essa identificação/identidade, que possui elementos racionais e de pertença, tem


como ponto motriz a própria compreensão e vontade de fazer a constituição efetiva
porque representativa da própria identidade da comunidade jurídico-política. Isto é,

824
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 318.
825
Nesse sentido, sobre o caso brasileiro e articulando o pensamento de TAYLOR e de LUCAS VERDÚ:
MOREIRA, Nelson Camatta. A filosofia política de Charles Taylor e a política constitucional de Pablo
Lucas Verdú, op. cit., p. 39: “Por tudo isso, reforça-se que o problema eficacial do texto constitucional
brasileiro, no que tange ao alcance dos objetivos previstos no art. 3º e à efetivação dos direitos
fundamentais sociais, passa, fundamentalmente, pela necessidade de uma ética do reconhecimento
como uma dimensão ‘pré’ e ‘ultrajurídica’. O dirigismo assumido pelo discurso transformador da
realidade da Constituição de 1988, além da postura garantidora e efetivadora da Jurisdição
Constitucional, depende fundamentalmente do estímulo de um sentimento constitucional dos cidadãos
– e não de subcidadãos – brasileiros”.
826
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado Democrático de Direito,
op. cit., pp. 29-30.
311
difundir e consolidar uma cultura de constituição de modo que seja presente a vontade
de constituição, tanto nos agentes oficiais responsáveis por essa efetivação via Estado
quanto pelos próprios cidadãos identificados com esse projeto, é promover a própria
garantia interna da ordem constitucional. Trata-se, portanto, do fomento e reafirmação
de uma cultura pluralista, inclusiva, igualitária e de igual liberdade. De uma cultura de
tornar esse projeto constitucional, essa identidade constitucional, efetiva e viva. Projeto
vivo e vivido na dinâmica da cultura constitucional.

Essa é a força vital que possibilita a uma Constituição influenciar a cultura de


uma comunidade de modo que ela demande, politicamente, por políticas públicas e
ações sociais mais inclusivas garantidoras dos direitos sociais e por uma sociedade mais
plural, sem preconceitos, que respeite, inclusive nas relações pessoais, os direitos
individuais e a dignidade de todos.

9.2. PEDAGOGIA CONSTITUCIONAL

A questão da educação é um ponto comum de, praticamente, qualquer proposta


de desenvolvimento do humano, individual e coletivamente. De SÓCRATES a ADORNO,
da Paideia à Bildung, o tema da educação é recorrentemente tratado como pedra
fundamental para o desenvolvimento da vida coletiva, para a realização e construção da
liberdade e para o reconhecimento.

Como não poderia deixar de ser, a ideia de educação também está intimamente
vinculada a qualquer discurso referente ao processo de fortalecimento dos laços entre os
cidadãos na identidade constitucional e na comunidade, de formação e cultivo de uma
cultura de constituição.

O próprio termo cultura vem do verbo latino colere e está relacionado aos
significados de cultivar, criar, cuidar. Não distante desse significado, da expressão
cultura decorre também o sentido de culto (inicialmente dos deuses), bem como, do
cuidado com a educação e com a formação, do cultivo do espírito das crianças a fim de
312
torna-las membros virtuosos pelo aperfeiçoamento das qualidades naturais. Destarte,
em uma acepção primeira, a cultura foi entendida como a intervenção deliberada e
voluntária do homem sobre a natureza de alguém, para moldá-la aos valores de sua
comunidade. Por esse ponto de vista:

a cultura era moral (o sistema de mores ou costumes de uma


sociedade), ética (a forma correta da conduta de alguém graças à
modelagem de seu ethos natural pela educação) e política (o conjunto
de instituições humanas relativas ao poder e à arbitragem de conflites
pela lei)827.
Entendida a constituição como projeto jurídico-político, ela tem sua possibilidade
de realização vinculada ao reconhecimento desse projeto pela comunidade, como,
também, por sua interiorização pelos cidadãos. Não será demais afirmar que é nesse
sentido, inclusive, que, de certo modo, caminham as concepções ligadas ao patriotismo
constitucional quando apontam para uma integração ético-política dos cidadãos ou
quando DWORKIN trabalha a questão da integração sob a perspectiva liberal828.

Se a constituição não é apenas seu texto, mas seu contexto, se é ordenamento


jurídico não apenas do Estado, mas da comunidade, ela tem, também, um papel
educador primordial: “hay una parte de legítima «pedagogía constitucional» en el
sentido de hacer patentes los valores básicos del Estado constitucional para todos los
ciudadanos”829.

Tão antigas quanto o próprio Ocidente são as conexões feitas entre formação e
educação do indivíduo para o agir ético, para a democracia, para o Direito e para a

827
CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2006, p. 105; WILLIAMS, Raymond. Palavaras-Chave, op. cit., pp. 117-124.
828
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana, cit.
829
HÄBERLE, Peter. La Constitución «en el contexto». Anuario Iberoamericano de Justicia
Constitucional, Madri, n. 7, pp. 223-245, 2003, p. 234. Chegando a tratar da importancia da pedagogia
como disciplina não jurídica aliada da Teoría da Constituição: “En la comprensión de los requisitos
establecidos por varias constituciones de los Estados alemanes en 1945 y 1990, entre los objetivos
educativos ha de incluirse la ciencia de la pedagogía, por ejemplo, como la educación constitucional.
Recordemos el lema “Ciudadanía a través de la Educación” europea (principalmente en el sentido del
Clasicismo de Weimar) y los objetivos educativos como la tolerancia, el respeto a la dignidad humana, el
respeto por los derechos humanos y la protección del medio ambiente”, HÄBERLE, Peter. Palabras
clave para el constitucionalismo de hoy - Una perspectiva alemana. THĒMIS, Lima, n. 67, pp. 15-22,
2015, p. 21.
313
cidadania830. Afinal, qual não é o principal projeto socrático (e platônico, e aristotélico)
que não a paideia. A preocupação com educação segue com grande importância no
curso da história, sendo corrente e crucial para várias mundividências como aquelas
ligadas à ilustração, ao romantismo e ao idealismo, em pensadores como KANT,
ROUSSEAU e FICHTE, dentre outros. Essa reflexão adentra no universo jurídico por
inúmeras portas, por exemplo, na questão da educação para exercício de Direitos
Humanos.

A Escola Jusfilosófica Mineira831 aborda o tema, recorrentemente, sob as figuras


da educação ética832, da pedagogia para a consciência jurídica833 e da paideia jurídica834.
Elas se desdobram a partir das chaves da consciência moral e da consciência jurídica,
particularmente, como desenvolvidas por HENRIQUE LIMA VAZ e JOAQUIM CARLOS
SALGADO, respectivamente. Essas formulações, ainda que com gramáticas e
características próprias, apontam a um norte similar ao pretendido pela ideia de
pedagogia constitucional.

LIMA VAZ tem na categoria da consciência moral um dos pontos centrais de seu
pensamento. O filósofo trata da Ética como a ciência do ethos, que, por sua vez, é por
ele definido como a segunda natureza do humano, que na dimensão social se apresenta

830
A própria Constituição da República Federativa do Brasil faz essa relação: “Art. 205. A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho”. Analisando o Direito Constitucional da Educação, como um todo, e
este artigo, em especial: HORTA, José Luiz Borges. Direito Constitucional da Educação. Belo
Horizonte: Decálogo, 2007, pp. 125-127.
831
Sobre a Escola Jusfilosófica Mineira: HORTA, José Luiz Borges. La Era de la Justicia Derecho,
Estado y límites a la emancipación humana, a partir del contexto brasileño, op. cit., p. 79, nota 13.
832
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia V: introdução à ética filosófica 2. São Paulo: Loyola,
2000; LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça: filosofar do agir humano. Síntese Nova Fase, Belo
Horizonte, v. 23, n. 75, pp. 437-453, 1996.
833
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002.
834
BROCHADO FERREIRA, Mariá. Paideia jurídica: pressupostos e caracterização. Revista Brasileira
de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 101, p. 159-190, jul./dez. 2010: “Adjetivamos a palavra
‘paideia’ com o termo “jurídica” com o intuito de apontar a relevância do Direito nessa formação
integral dos sujeitos morais (perspectiva grega) que também são na atualidade sujeitos de direito(s).
Trata-se de um esforço de releitura da preocupação grega com a formação do indivíduo para a prática
das virtudes, mas, que na cultura ocidental contemporânea, estende-se também para o exercício de
(seus) direitos. Nestes termos, podemos concluir que a formação ética é integrada pela formação moral
e pela formação jurídica sobre a essência do Direito, em especial seu núcleo mais significativo: os
direitos humanos-fundamentais”.
314
como costume e na individual como hábito. É o ethos, portanto, a “dimensão do agir
humano social e individual na qual se faz presente uma normatividade ou um dever-ser,
ou que se supõe provir da natureza ou que é estatuído pela sociedade”835. Nesse sentido,
ele não é “senão a face da cultura que se volta para o horizonte do dever ser ou do
bem”836, é paradigma de tudo o que constitui o sistema humano de vida: a face
normativa da cultura837. E, nesse sentido, é possível definir a Ética como a ciência da
razão prática – forma de razão não voltada, simplesmente, para o conhecimento, mas
ordenada para a ação (práxis), que exprime as normas e os fins do próprio agir ético838.

No movimento dialético da razão prática, LIMA VAZ identifica a consciência


moral como o ato da razão prática por excelência:

como termo do movimento e como suprassunção, na singularidade de


seu ato, da universalidade dos princípios e da inclinação ao Bem como
normas do seu julgamento, e da aplicação dessas normas à
particularidade das condições que tornam possível o mesmo ato839.
Segundo LIMA VAZ, o agir ético se manifesta em três momentos: o momento
subjetivo, do indivíduo consigo mesmo; o momento intersubjetivo, quando se articula

835
LIMA VAZ, Henrique. Antropologia filosófica I. 4 ed. São Paulo: Loyola, 1998, p. 17, e segue:
“Enquanto social o ethos é costume, enquanto individual é hábito. Sendo coextensivo à cultura, o ethos
é objeto, desde os inícios da história da filosofia ocidental, de saberes específicos, a Ética tendo por
objeto o agir individual e o Direito, e a Política, o agir social. O problema da cultura tomou-se tema de
um ramo das ciências do homem que conheceu também um grande crescimento a partir do século
XIX, a Antropologia cultural. Investigando a grande variedade das culturas e, portanto, dos ethê, ela
situou em novas perspectivas os problemas clássicos da Ética e das ciências jurídico-políticas, renovando
a tradicional conceptualização filosófica a respeito. Mas a interrogação filosófica fundamental
permanece, nesse campo, voltada para essa prerrogativa essencial do homem que é a dimensão
conscientemente teleológica e axiológica do seu agir, à qual corresponde o paradoxo da livre
necessidade da aceitação de um universo de normas reguladoras desse agir. Trata-se, em suma, de
repensar filosoficamente, em face das ciências do ethos como forma de cultura, o problema já
reconhecido por Hegel quando definiu o Direito (entendido em sentido amplo cobrindo toda a esfera
do ethos) como “realização concreta da liberdade", a saber, o problema da realização histórica, social e
cultural da liberdade, que só subsiste como sendo manifestação da essência do homem ao se constituir
como liberdade consensual, enraizada no terreno da Ética e do Direito”.
836
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 19.
837
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica, cit., p. 37.
BROCHADO relaciona essa afirmação à passagem de Verdade e Método II, de GADAMER,
referenciando sua versão castelhana. Acreditamos que corresponda a: GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e Método II. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 369-380, no texto complementar: Problemas da
Razão Prática, de 1980.
838
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia V, cit., p. 25.
839
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia V, cit., p. 52.
315
um agir ético em relação a outro agir ético, em diálogo; e um momento objetivo,
quando o agir ético coloca-se frente à realidade objetiva que o cerca, expresso no ethos.

Esses três momentos, ainda que distintos, articulam-se dialeticamente, numa


necessária relação de recíproca implicação840. É nesse contexto que se coloca a educação
(ética) que, por sua vez, pode ser tratada como “a passagem do ethos da realidade social
para a realidade do indivíduo”, sendo “ela uma das tarefas básicas e mais complexas dos
grupos humanos, qual seja, formar paradigmas comportamentais, descobrir como
ensinar, aos que estão chegando, os valores daquela sociedade”841.

Nessa esteira, para LIMA VAZ, Ética, Política e Direito são, especialmente, as
fontes de auto-legitimação de uma sociedade e, nesse sentido, mais até que simples
“corpos teóricos na enciclopédia dos saberes reconhecidos e praticados na nossa cultura
superior” são eles verdadeiros programas pedagógicos, que existem de forma
teoricamente articulada e interdependente, voltados à educação do indivíduo e da
comunidade para a vida plenamente humana. A partir dessa percepção, LIMA VAZ
afirma que:

sem educação ética não há autêntica participação política, assim como é


essa participação que capacita o cidadão a assumir com plena
consciência a recíproca relação entre direitos e deveres na qual consiste
propriamente a existência na esfera do Direito842.
Desse modo, nem o mundo ético, nem o Estado Democrático de Direito são
dádivas da natureza. Ambos são árduas conquistas permanentes da civilização, sempre
recomeçadas e sempre ameaçadas, que travam suas mais importantes batalhas,
justamente, no campo da educação de cada geração. Assim, LIMA VAZ afirma que quer
do ponto de vista da consciência moral subjetiva ou individual, quer desde a perspectiva
da consciência moral intersubjetiva ou comunitária:

a passagem da consciência como norma subjetiva à norma objetiva


individual (a reta razão) ou à norma ético-jurídica inter-subjetiva
comunitária (os costumes e as leis) designa o movimento inteligível
essencial que percorre a estrutura do universo ético e político-jurídico.
Ora, essa passagem supõe justamente que estejam constituídos na plena

840
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica, cit., p.32.
841
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica, cit., p.142.
842
LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça, op. cit., pp. 450-451.
316
posse das suas prerrogativas os atores da vida moral concreta que deve
ser vivida pelos indivíduos e pelas comunidades. Por sua vez, a
conquista dessas prerogativas não é obra da natureza, é um processo
cultural que se define como paideia, como educação para uma forma
superior de vida843.
LIMA VAZ, portanto, dá destaque à educação ética como elemento de formação
do homem para o agir ético, logo, para o agir plenamente humano, em especial alusão à
paideia grega, definida por JOAQUIM CARLOS SALGADO como exemplo de consciência
cultural. SALGADO, por sua vez, parte da consciência moral de LIMA VAZ para
desenvolver sua perspectiva da consciência jurídica.

O jusfilósofo mineiro situa a consciência jurídica também no âmbito da razão


prática, como resultado da consciência ética e ao lado da consciência moral. Para ele,
trata-se de “um processo de superação da consciência moral subjetiva, por força da
objetividade positiva do direito, realizando nesse movimento a totalidade ética”844. Em
sentido formal, para SALGADO, ela é o resultado do processo da consciência ética que
tem como primeiro momento da processualidade da experiência jurídica a consciência
moral interna, que só alcança uma universalidade abstrata, não concreta, na forma da
consciência ou do eu transcendental de KANT. No entanto, de sua parte, a consciência
jurídica deve ser identificada como superadora da dicotomia direito-moral, uma vez que
ambos os polos não são concebidos paralelamente, mas como ponto de chegada do
processo ético iniciado com a consciência moral em sua interioridade imediata.

Assim sendo, a consciência moral se dá num processo que desemboca na


consciência ética total, na razão jurídica845, que não deixa de trazer em si o momento
imediato da consciência moral no plano da subjetividade, mas que, passando pela razão
teórica, torna-se consciência de um nós por força da universalidade que lhe é própria.
Desse modo, a cisão entre a interioridade moral e a exterioridade do Direito estrito, é
reconciliada na plena eticidade do Direito, ao passo que o valor do justo coloca-se como
conteúdo axiológico da consciência jurídica. Nesses termos, afirma SALGADO que a

843
LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça, op. cit., p. 450.
844
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 24.
845
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 25: “Razão jurídica é
desse modo o resultado dialético da consciência jurídica transcendental e dos valores da cultura que são
seu objeto, na processualidade histórica da experiência jurídica”.
317
consciência deixa de ser mera universalidade do eu abstratamente, sendo, agora,
universalização do eu concretamente: um nós846. E é assim que conceberá o Direito
como maximum ético.

Portanto, a consciência jurídica é consciência da juridicidade, concebida como


exigência de normatividade, que mostra em sua experiência que o Direito, enquanto
ordenação da vida, não se cria apenas com a razão, tampouco, apenas com a
espontaneidade da vida: “a experiência da consciência jurídica se forma na articulação
da razão e da vida, portanto, de uma experiência ordenada pela razão segundo um telos:
a liberdade do homem na sociedade”847.

Nessa ordem, SALGADO também reconhece papel fundamental à educação no


processo de realização do homem e de formação da consciência, destacando que:
educar-se é formar-se e, não, transformar-se. Isso porque, enquanto transformar-se
pertence ao mundo da natureza, formar-se está ligado ao mundo do Espírito, interior e
livre. “Formar-se é, assim, efetivar a liberdade”, logo, é formar-se dentro de si mesmo: é
cultural.

Como quer SALGADO, o tornar-se homem é um formar-se dentro de si, em uma


continuidade da identidade. Não é tornar-se outro, mas sim tornar-se algo que já está
nele mesmo848. Nesse contexto, tocam-se também consciência jurídica e educação, esta
como ponto viabilizador e essencial daquela, no movimento de:

revelação da ideia de justiça, que se realiza na processualidade histórica


e que culmina na consciência, declaração e efetização dos direitos
fundamentais que são valores jurisdicizados pela consciência da sua
tributividade, universalidade e exigibilidade, [que] é desenvolvido na
cultura ocidental pela sua experiência da consciência ética, cujo
momento de chegada é a consciência jurídica. Portanto, o processo de

846
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., pp. 35-36: “Somente a
consciência jurídica capta o universal imanente, porque consciência de um nós (que é um eu), cuja
objetividade é o seu ethos. A consciência jurídica envolve toda objetividade do ethos, já universalizada
na lei, e a subjetividade da consciência moral universalizada na consciência de um nós, que também é
um eu, cujo conteúdo é a universalidade objetiva do ethos”.
847
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 41.
848
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 21: “a invenção da
educação está, pois, ligada à inconformidade do homem de ser como é, e à necessidade de ser como
entende que deve ser, através de um projeto de formação, vale dizer, à estrutura eleutérica do seu ser,
cuja epifania se dá no drama da história, e se efetiva no sujeito universal de direitos pela experiência da
consciência jurídica” (grifos original).
318
reconhecimento, de declaração e de efetivação dos direitos
fundamentais considerados o núcleo da ordem justa se realiza segundo
uma estrutura transcendental da consciência e segundo a sua
experiência na elaboração dos valores da cultura ocidental. Trata-se da
experiência da consciência jurídica, que se projeta na história do
Ocidente como um processo de formação do homem livre, cujo
veículo é a educação849.
Ainda que com gramáticas e perspectivas diferentes, o destaque dado por LIMA
VAZ e SALGADO à educação e aquilo que aqui pretendemos com pedagogia
constitucional, aproximam-se no sentido de formação de uma consciência, por um lado,
mas, também, de uma identidade entre os indivíduos e o ethos que se pretende
perenizado – de forma não estática – na comunidade constitucional, entre o cidadão e a
identidade constitucional. Nesse sentido, a realização de uma constituição enquanto
projeto (dever ser) demanda um mínimo de conhecimento e reconhecimento da
comunidade e dos cidadãos.

Será nesse caminho, também, que BROCHADO tratará de educação jurídica


como elemento necessário para o desenvolvimento da consciência jurídica e do papel
formador do Direito, como construção e consolidação do ethos. A vida, inclusive a do
Direito, extrapola a judicialização. As questões levadas ao poder judiciário, como
lembra BROCHADO, citando SALGADO, são apenas o “momento patológico do Direito”
quando se procura a “cura” para os desvios no inafastável “hospital do Direito”850.

O indivíduo, enquanto cidadão – para usar a expressão de LIMA VAZ – é, o


vivificador das declarações de direitos e, para tanto, tem de reconhecê-las, ao mesmo
tempo, como ponto de chegada e de partida da realização de suas necessidades
eticamente postuladas. Nesses termos, o Direito exerce papel fundamental na passagem
de um nível de “formalismo abstrato e inoperante” dos direitos meramente declarados,
para outro, em que se realiza a:

efetivação concreta nas instituições e práticas socais. Nesse sentido, é


inexorável reconhecer ao Direito seu papel formador, “para que possa
deixar de ser formal e abstrato, é necessário que o apresentemos como

849
SALGADO, Joaquim Carlos. Ideia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 26.
850
BROCHADO FERREIRA, Mariá. Pedagogia jurídica para o cidadão: formação da consciência
jurídica a partir de uma compreensão ética do direito. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo
Horizonte, n. 48, pp. 159-188, jan./jun. 2006, p. 165
319
efetivo, real e necessário e não como paliativo para falhas morais
individuais851.
Nessa linha, conhecer do Direito, através da educação jurídica, é o primeiro
passo de um verdadeiro acesso ao Direito, nos termos dados por JORGE MIRANDA:
“como costuma se dizer, a primeira forma de defesa dos direitos é a que consiste no seu
conhecimento”852. Só a partir de então é possível exigi-los, quer frente ao poder público,
quer mesmo, frente a particulares, na dinâmica da comunidade, em um processo de
reinvindicação e reconhecimento que dá vida ao Direito, que dá vida à constituição. Um
processo que se coloca não apenas na luta pelo meu direito, mas inclusive, do “direito
do outro, porque igual a mim, numa sociedade consentida e politizada na forma de
Estado de Democrático de Direito”853.

PAULO FERREIRA DA CUNHA, por sua vez, apontará que um tal conhecimento
constitucional não se trata de um saber estatístico ou charadístico, mas de compreender
o próprio espírito da Constituição, “saber-se que a Constituição abre para grandes
avenidas de sonho, para grandes projectos, para os valores políticos fundamentais”854.
Relaciona-se, portanto, com a difusão das bases valorativas desse projeto político-
cultural, justamente, para a construção de uma comunidade que se paute por eles, nos
termos de uma ética republicana855.

Assim, a constituição é símbolo político, é documento jurídico, mas, também, é


uma carta pedagógica ético-política da comunidade. É um instrumento de formação, de
certo modo, no sentido dado por GADAMER, que vincula a formação do homem à
851
BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica, cit., pp. 275-276.
852
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais - Tomo IV. Coimbra:
Coimbra Editora, 2008, p. 317. Esse parece ser, inclusive, a direção do art. 64, dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias da CRFB. Sobre a evolução do Direito a Educação na história
constitucional brasileira: HORTA, José Luiz Borges. Perfil e dilema do Direito à Educação. Revista da
Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 56, pp. 215-242, jan./jun. 2010; HORTA, José
Luiz Borges. Direito Constitucional da Educação, cit.
853
BROCHADO FERREIRA, Mariá. Pedagogia jurídica para o cidadão, op. cit., p. 173. Mais a frente:
“O passo mais avançado que se pode dar na esfera ético-jurídica é justamente a autonomia dos sujeitos
de direitos quanto a instâncias de aplicação coerciva do direito, pois compete ao próprio cidadão
reconhecer o direito do outro; não por medo do aparato estatal, mas por compreensão da legitimidade
da reivindicação alheia, ou seja, do reconhecimento do outro como pessoa, sujeito de direito, posição
por todos igualmente compartilhada (consentida) no plano de uma consciência jurídica”, p. 175.
854
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Cultura constitucional & revisões constitucionais. International
Studies on Law and Education, n. 8, pp. 5-16, mai./ago. 2011, p. 9.
855
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política, cit., p. 32.
320
própria criação da cultura de um povo856. É assim, também, que HÄBERLE reconhece os
princípios constitucionais como fins da educação, compreendo-os menos como uma
obrigação jurídica e mais como um mandato educativo, afirmando:

la Constitución como ética social (‘pedagogía constitucional’). La


Constitución debe ser desentrañada en su significado para los
pedagogos y sus tareas, lo cual también beneficia a los juristas. Esta
concepción ‘pedagógica’ de la Constitución es una consecuencia de la
teoría de los intérpretes constitucionales en sentido amplio: una
característica de la sociedad abierta y de sus fundamentos de ética
social. La Constitución no es sólo un ordenamiento jurídico para los
juristas (y los políticos), sino que en lo esencial es también una ‘guía’
para los no juristas, los ciudadanos857.
Por isso mesmo, e nesses termos, trata-se, o projeto constitucional, de um projeto
que não se propõe impor pela força, fazendo-se efetivo pelo contínuo reconhecimento
de sua legitimidade. Vivo e vivido na própria identidade e identificação da comunidade
e dos cidadãos com aqueles e naqueles parâmetros, valores e estruturas, na mesma
medida em que a comunidade, como um todo, e o próprio Estado, particularmente, os
reconhece em cada e a cada cidadão. É, assim, realidade integrante e integradora da
constituição e dos cidadãos.

É, nesse sentido, projeto normativo contrafactual, uma vez que se afirma como
fundamentado em uma dada identidade, na cultura do constitucionalismo. Cultura esta
que, por um lado, quer-se preservada em seus fundamentos últimos de igual dignidade,
mas que, enquanto cultura de liberdade, por essência e coerência não se pretende
conservada de forma estática. É cultura que se faz viva e reafirmada em sua própria
dinâmica de transformação, no mútuo reconhecimento dos cidadãos entre si, do qual
decorre o igual valor da livre participação de cada um na formação da identidade
constitucional. Como afirma NUNO COELHO, o que nos marca enquanto cultura é o
fato de sermos “uma civilização em que as pessoas mantêm o direito de participar da

856
SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant. Belo
Horizonte: Decálogo, 2008, p. 42.
857
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., pp. 190-191.
321
luta pelo mundo”858. Nesses termos é possível afirmar, novamente com HÄBERLE, que a
democracia é a consequência organizativa da dignidade da pessoa humana859.

Ela é face indissociável da identidade e da cultura do constitucionalismo do


tempo presente, na forma da Democracia Constitucional, que não se confunde com a
mera maioria estatística, sendo comprometida com a liberdade concreta. Esta que, em
boa medida, é suprassunção das liberdades individuais e das liberdades democráticas
(autonomia), num projeto político-cultural que pretende nortear uma comunidade de
cidadãos comprometidos com um projeto comum de igual dignidade. Nele subjazem as
ideias de liberdade parametrizada pela igualdade e de igualdade comprometida com a
liberdade, só possíveis a partir de um sentimento de fraternidade constitucional entre os
indivíduos860.

De mesmo modo, a função da educação em um Estado Democrático de Direito


não está no simples depósito unilateral de conhecimento para a impensada reprodução
de padrões, pura e simplesmente. Ela está, inclusive, vinculada à própria percepção
crítica da integridade do projeto constitucional, bem como para a participação
democrática e para uma postura pluralista. É educação para democracia, para a
diferença e para o reconhecimento, enfim, educação para cidadania861.

Desse modo, a difusão do conhecimento constitucional, não charadístico, não


estatístico, mas do sentido, fundamento, lógica e, porque não, do espírito da cultura
constitucional, revela-se como determinante em, pelo menos, duas dimensões. No
858
COELHO, Nuno M. M. S. Ensaio sobre o sentido grego do político – e o nosso tempo, op. cit.
859
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, cit., pp. 193 e ss.
860
GARCÍA COSTA, Francisco M.; BENITO MARTÍNEZ, Juan. Educación constitucional y
ciudadanía plural. Revista Interuniversitaria de Formación del Profesorado, Zaragoza, v. 24, n. 3, pp. 87-
104, 2010: “Las Constituciones representan un proyecto de convivencia que entraña el triunfo de la
Libertad frente al Poder, pues suponen la sublimación y la apoteosis del desvelamiento progresivo de la
idea de Libertad en la historia y el cumplimiento del eterno motivo humano de que el poder de un
hombre sobre otros sea limitado y controlado. Estas ideas, como se deduce fácilmente, necesitan de un
grado de desarrollo mental y social que únicamente puede alcanzarse mediante la instrucción y la
educación; en suma, la idea misma de Constitución lleva aparejada la necesidad de creer en ella, y ello
sólo se puede conseguir mediante su difusión, divulgación y transmisión. Consecuentemente, la
Educación constitucional se convierte en el único instrumento para conseguir el éxito del plan
constitucional, pues la Constitución no se impone por la fuerza; la Constitución se impone única y
exclusivamente mediante una adecuada Educación constitucional”.
861
Caminhando nesse sentido, comentando o art. 205 e o art. 206 da CRFB, mencionando da igualdade
educacional, à universalidade do acesso à educação: HORTA, José Luiz Borges. Direito Constitucional
da Educação, cit., pp. 124-129.
322
cumprimento e realização desse projeto enquanto ordem válida de conhecimento da
comunidade, num sentido de Acesso ao Direito Constitucional. E, também, de forma
não menos importante, na possibilidade de formação, fortalecimento e recondução da
identidade da comunidade e de seus cidadãos com esse projeto.

Nesse sentido, trata-se, portanto, da pedagogia constitucional como forma de


integração dos indivíduos com e no projeto constitucional a partir do fortalecimento dos
laços de pertença do cidadão, não com amarras étnicas ou religiosas, mas com esse
ethos pluralista de liberdade e igualdade da identidade do constitucionalismo, de modo
mediato, e em torno da leitura particular que lhe é feita por uma dada constituição
específica, na formação e perpetuação de uma identidade constitucional que se faça viva
como cultura constitucional a partir de uma cultura de constituição. O reforço desse
ethos – pluralista, inclusivo e democrático – como próprio da comunidade e seus
cidadãos é essencial para que a identidade constitucional ganhe vida enquanto cultura
constitucional862.

9.3. CULTURA CONSTITUCIONAL, CULTURA DE CONSTITUIÇÃO E LEALDADE


LEALDADE

INSTITUCIONAL

Há, ainda, pelo menos uma questão importante quanto a esse elemento vital de
que aqui se trata e ele se coloca na própria formulação básica do Estado de Direito e do
constitucionalismo: o Direito deve ser limitado.

De um modo geral, quanto à atuação do poder do Estado, a estabilidade e a


legitimação da ordem jurídico-política são, especialmente, vinculadas ao fato de que o

862
A pedagogia constitucional é tarefa da própria comunidade, de modo a possibilitar a própria
comunidade constitucional. Ela pode ser levada a cabo através de diversos caminhos, através de
programas educacionais, ensino formal em escolas nos mais diversos níveis, dentre outros. Aqui nos
limitaremos, efetivamente, por apontar a essa tarefa e a seus fundamentos. O desenvolvimento mais
detalhado dessas possibilidades demandaria um trabalho autônomo, provavelmente, com uma
abordagem desde teorias de educação e da pedagogia, que por uma série de razões são impossíveis a
esta tese.
323
poder se encontre limitado pela ordem jurídica, sendo-lhe coerente, comprometido
com suas amarras e que a interprete com integridade.

Nesse sentido, DWORKIN, por exemplo, identifica dois princípios de integridade


política: um princípio legislativo, que importa aos legisladores tornar um conjunto de
“leis moralmente coerente” e um princípio jurisdicional, que implica que, para a
interpretação do Direito, o tanto quanto possível, este seja visto como coerente863.

Assim, sem falar propriamente em unidade política, mas no Direito como


integridade, DWORKIN recorre à concepção de autogoverno, relacionando-a ao fato de:

que muitas de nossas atitudes políticas, reunidas em nosso instinto de


responsabilidade coletiva, pressupõem que em certo sentido somos
todos autores das decisões políticas tomadas por nossos governantes,
ou, pelo menos, que temos boas razões para pensar assim864.
Se por um lado é essencial que cada cidadão sinta o projeto constitucional
enquanto seu, sinta-se sujeito constitucional, integrado na comunidade e identificado
com a identidade constitucional, é essencial que a comunidade veja reproduzido isso
também, de forma especial, pelos órgãos do Estado, seus titulares e detentores do poder
de forma geral. De algum modo, é o que MÜLLER vai chamar de estrutura de
legitimação.

Essa constatação pode soar como um fato elementar – ou, ao menos, deveria sê-
lo – contudo, ela complexifica-se na medida em que a observância dos limites de
atuação e de competência das máximas instâncias oficiais de interpretação constitucional
são, em última análise, bastante dependentes da observância da lealdade institucional.

Uma ordem que propõe vencer a força pela não força, como é o projeto do
Estado de Direito, como dito, tem seu equilíbrio viabilizado não por um poder (factual)
último, um soberano que se impõe, mas por um arranjo que lhe permite o progressivo
caminhar de construção, reconstrução e desconstrução de uma identidade, a partir das
amarras do constitucionalismo que, por sua vez, incorporam a dinâmica do
reconhecimento do eu e do outro. Se o soberano do Estado Democrático de Direito
não é definido por aquele que decide na exceção, por aquele que tem a palavra final,

863
DWORKIN, Ronald. O império do direito, cit., p. 213.
864
DWORKIN, Ronald. O império do direito, cit., 229.
324
mas, do contrário, é identificado com aquele que deve ser o soberano – o povo – a
velha questão já lembrada permanece latente, afinal, “por muchos controles que se
establezcan nunca pondrá resolverse el problema: Quis custodiet custodes?865.

As inúmeras e mais sofisticadas barreiras apresentadas pelo Estado de Direito


para controlar o poder, maximamente nos procedimentos e processos de decisão, têm
por objetivo, justamente, impedir que o poder de fato sobreponha-se ao poder legítimo,
isto é, ao poder que opera e justifica suas decisões e ações em referência aos padrões de
legitimidade do constitucionalismo866.

Entretanto, por mais sólidos e reafirmados que sejam esses padrões e


procedimentos, “em todo caso de controle de um órgão do Estado por meio de outro,
sempre surge a questão: quem controla os controladores? Quis custodiet ipsos
custodes?”867. Especialmente, nos momentos de acentuada disputa institucional e crise
constitucional, esses limites e esse balanço tornam-se ainda menos óbvios e ainda mais
vulneráveis, de modo que os riscos de fuga do Direito e perversão do Direito868 tendem
a aflorar de modo particularmente patente e mais corriqueiro.

Ainda que não seja possível dizer de um padrão ou formato único de limitação e
organização do poder do Estado de Direito – afinal, essa é uma amarra do
865
HELLER, Herman. Teoría del Estado, cit., p. 329, e segue: “No hay forma ninguna de inviolabilidad
de las normas constitucionales que pueda detener revoluciones y restauraciones; ninguna división de
poderes de derecho constitucional puede impedir que en un conflicto insoluble, por ejemplo entre el
gobierno y el parlamento, decida, a falta de una unidad superior de acción, el poder prácticamente más
fuerte, realizando así la necesaria unidad del poder del Estado”.
866
COELHO, Nuno M. M. S. Compreensão como arte, op. cit., p. 67: “A interpretação do direito é
uma constante revisão do ato fundador (ato Constituinte) que se caracteriza pelo permanente diálogo
acerca dos fundamentos da vida ético-político-jurídica. A compreensão da Constituição é a recriação
permanente das bases do viver político comum, a partir da retomada dos problemas a que o direito
responde, tal como é possível compreendê-los hoje, isto é, tal como fazem sentido tomando a nós
mesmos, hoje, como contexto”.
867
NEUMANN, Franz. O Império do direito, cit., p. 131.
868
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, cit.; RODRIGUEZ, José Rodrigo. As figuras de
perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica. Revista Prolegómenos – Derechos y
Valores, Bogotá, v. 19, n. 37, pp. 99-108 jan./jun. 2016. Tratando de deformação do direito: MÜLLER,
Friedrich. Quem é o povo?, cit., pp. 53-54. Falando em fraude à Constituição: CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo constitucional contra fraudes à Constituição, op. cit. Nesse
sentido, ainda que em uma âmbito mais restrito ao texto constitucional, MARCELO NEVES fala em
desconstitucionalização fática ou concretização desconstitucionalizante em cenários de “constituições
nominalistas”, afirmando que a “Desconstitucionalização fática apresenta-se, portanto, como forma
principal de desjuridicização no processo concretizador”: NEVES, Marcelo. Constitucionalização
simbólica e desconstitucionalização fática, op. cit. p. 324.
325
constitucionalismo que se apresenta de modo particular em cada uma das várias
identidades constitucionais – o mais importante é que na dinâmica da comunidade as
regras de decisão estabelecidas pela constituição sejam respeitadas.

E, em última análise, novamente o garante desse respeito é a própria solidez da


cultura constitucional na comunidade que tenha difundida uma cultura de constituição.
Ela transparece nas autoridades do Estado, marcadamente, como lealdade institucional
e, no povo, como consciência e participação ativa e pública, no sentido de sustentar e
endossar as decisões que se fazem em respeito aos procedimentos do Estado de Direito,
por mais árduas e contrárias a interesses pessoais que elas possam ser, e de contestar
aquelas que dele fogem. Ou seja, transparece na face do sujeito constitucional de quem
se submete à constituição.

É curioso, inclusive, que a chave da lealdade institucional apareça nesses dois


sentidos. O primeiro, relacionado à cooperação e lealdade que devem ser observadas
entre as instituições do Estado, órgãos de soberania e seus agentes, com o objetivo de
contribuírem para fazer eficaz a ordem constitucional869. E o segundo – também referido
como legitimidade institucional, suporte difuso ou suporte institucional – relativo ao
suporte dos cidadãos às decisões institucionais870. Esta acepção é particularmente
desenvolvida no contexto do cenário norteamericano, especialmente quanto ao suporte
às decisões da Suprema Corte, mas, de algum modo, pode ser pensada de forma mais
abrangente quanto à atuação do poder estatal como um todo, notadamente, quando
relacionado à figura da responsabilidade política difusa.
869
Essa acepção também é tratada, com algumas nuances, por lealdade constitucional, cooperação
constitucional ou leal colaboração: VALLE, Jaime. “O princípio da lealdade institucional nas relações
entre os poderes públicos: alguns aspectos gerais”. Revista Direito e Política, Loures, n. 1, pp. 62-72,
out./dez. 2012; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
cit., p. 645; CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Os poderes do Presidente da
República. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, pp. 71 ss. No contexto da lealdade institucional na
estrutura jurídico-política da União Europeia: KLAMERT, Markus. The Principle of Loyalty in EU
Law. Oxford: Oxford University Press, 2014, pp. 28-29.
870
GIBSON, James L.; CALDEIRA, Gregory; SPENCE, Lester. Measuring Attitudes toward the United
States Supreme Court. American Journal of Political Science, v. 47, n. 2, pp. 354–367, abr. 2003;
GIBSON, James L.; CALDEIRA, Gregory. Supreme Court Nominations, Legitimacy Theory, and the
American Public: A Dynamic Test of the Theory of Positivity Bias, jul. 2007; CALDEIRA, Gregory;
GIBSON, James. The Etiology of Public Support for the Supreme Court. American Journal of Political
Science, v. 36, n. 3, pp. 635-664, ago.1992; GIBSON, James L. Judicial Institutions. In: RHODES, R.
A. W.; BINDER, Sarah A.; ROCHMAN, Bert A. (eds.). The Oxford Handbook of Political
Institutions. Oxford: Oxford University Press, 2006, pp. 514-534.
326
Ambos os sentidos, embora não coincidentes e, mesmo, inconfundíveis,
guardam uma importante relação. Quando a normalidade de uma ordem desenvolve-se
sem muitos momentos de guerrilha institucional, com a observância recorrente do
princípio da lealdade institucional, havendo um campo livre de liberdades públicas e de
expressão, o poder se movimenta com poucas dúvidas e questionamentos sobre o
respeito aos limites de atuação e competência dos órgãos de decisão do Estado, o que
gera uma normalidade que tendencialmente fomenta os laços entre os cidadãos e a
comunidade e os órgãos de decisão, consequentemente, um maior suporte, espontâneo,
às decisões do poder.

A busca por um poder cada vez mais legítimo coloca-se diante da caminhada
rumo a práticas que sejam cada vez mais reflexivas do argumento último de legitimação
de uma ordem que se propõe como constitucional. Não que este possa ser tratado
como um direito natural imutável, mas, pelo menos, como um fundamento do modo
de caminhar da cultura constitucional, de desdobramento e desenvolvimento da
identidade em uma cultura constitucional que se coloca, a todo tempo, com a crítica e a
reflexão a respeito das próprias interpretações dessa premissa e identidade. É nesse
sentido que, como mencionado, os laços do constitucionalismo deixam abertas as portas
para a reconstrução da identidade constitucional em um formato que possibilita a
contínua verificação da legitimidade das normas constitucionais vigentes.

Para que a dimensão do sujeito constitucional referente ao suporte à ordem seja


possível em unidade, é necessário que as duas outras dimensões – aquela relacionada à
redação de uma constituição e aquela referente à sua interpretação oficial – atuem de
forma a reforçar a justificação de legitimidade. Afinal, é sobre essa mesma justificação (e
limitação) que se deita a força da validade da ordem e do poder legítimo, por
conseguinte, é nela que se fundamenta a competência dos agentes e órgãos do Estado
para a interpretação oficial da constituição, em seus limites e autoridade. Portanto, o
respeito aos limites e coerência da ordem significam, ao mesmo tempo, seu
fortalecimento quanto à sua unidade, integração e integridade.

Isto é, quanto mais alta a discricionariedade e os poderes, e quanto menores


forem as fórmulas oficiais de controle de um poder, mais necessária será sua auto-

327
restrição na atuação e seu ônus argumentativo no momento de decisão. Isso porque é
essencial que, particularmente, os poderes do Estado mantenham a coerência com o
projeto colocado. Afinal, como dito, é dele que deflui a própria validade de suas
competências, sendo, assim, impreterível o respeito a esses limites de atividade para
que, em última instância, o povo respeite, endosse, implemente e possibilite a eficácia
das decisões do Estado, porque as identifica com o próprio concretizar, coerente, da
identidade constitucional.

De fato, no balanço de controles desses poderes, o Estado Democrático de


Direito aprimorou e consolidou o controle jurisdicional de legalidade e
constitucionalidade dos atos do executivo e do parlamento. Contudo, especialmente
quanto ao controle do poder do judiciário ele, via de regra, não conta com a
legitimidade imediata do voto popular, tendo sua autoridade mais imediatamente
calcada nas disposições constitucionais válidas871. Para tanto, suas decisões têm de estar,
particularmente, atentas à racionalidade da argumentação, à coerência e integridade
com a ordem constitucional872.

Isso não faz dele menos democrático no contexto do arranjo constitucional.


Inclusive, há várias respostas sobre a legitimidade e o papel da jurisdição constitucional
no arranjo do Estado de Direito. Assim, alguns compreenderão que sua principal
função é a de “garantia das condições processuais para o exercício da autonomia pública
e da autonomia privada dos coassociados jurídicos”873, outros, o verão como efetivador e

871
Existe uma discussão importante sobre a tensão entre a supremacia dos parlamentos ou dos tribunais,
que se inicia, especialmente, no contexto anglófono, mas que chega a outros âmbitos de debate,
inclusive o brasileiro. Sobre o tema, partindo de JEREMY WALDRON, mas falando de forma interessante
e propondo um diálogo entre essas teorias e instituições: FERNANDES, Bernardo Gonçalves. A
Defence of a Broader Sense of Constitutional Dialogues Based on Jeremy Waldron’s Criticism on
Judicial Review. In: BUSTAMANTE, Thomas; GONÇALVES, Bernardo Ferreira (eds.).
Democratizing Constitutional Law: Perspectives on Legal Theory and the Legitimacy of
Constitutionalism. Suíça: Springer, 2016, pp. 147-164.
872
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O valor constitucional dos “direitos de defesa”: jurisdição e
Constituição. In: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos
contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2008, pp. 683-689, p. 689: “A legitimidade de origem, a
autoridade, a competência já não são suficientes para justificar atuação dos três poderes, particularmente
a judicatura. É imprescindível a legitimidade do exercício para dar razão a seus atos, não só razões
jurídicas, mas é necessário justificar-se ante os cidadãos que a jurisdição responde suas objeções e
reclamações através de atos objetivos e não arbitrários e caprichosos”.
873
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo, cit., p. 128
328
concretizador das promessas substantivas da ordem874. Contudo, o que parece
comumente imprescindível para qualquer dessas respostas, é que as decisões do poder
judiciário não se apresentem apenas como volutas, mas que ele atue de acordo com os
limites e previsões estabelecidas. Isto é, que o poder judiciário, por mais competências
que tenha, especialmente em um cenário de constituição dirigente e vinculação do
legislador, não ultrapasse as próprias barreiras do jurídico.

Nas comunidades jurídico-políticas em que o Estado Democrático de Direito


encontra-se mais enraizado, com uma cultura constitucional mais consolidada e viva, o
controle das razões de atuação dos tribunais tem sido feito, via de regra, pela opinião
pública e, especialmente, pelas universidades, pela produção e discussão acadêmica,
enfim, pela atividade do jurista875.

Nesse sentido, na democracia, há um espaço para pedagogia constitucional e


formulação da identidade constitucional em todas as instâncias oficiais de interpretação
– administração, parlamento e, especialmente, judiciário876 – como, também, na esfera
pública, especialmente, a partir da academia e da dogmática jurídica que têm como uma
de suas importantes funções, apreciar criticamente a coerência, integridade e, em última
análise, o exercício legítimo das competências, mais ou menos estritas, da atuação das
instâncias oficiais de interpretação. MICHELS já reconhece como contribuição da cultura
jurídica, dar unidade, uniformidade e coerência ao sistema jurídico. O mesmo se pode

874
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, cit., pp. 52 e ss.
875
BOGDANDY, Armin von. The past and promise of doctrinal constructivism: A strategy for
responding to the challenges facing constitutional scholarship in Europe. International Journal of
Constitutional Law, v. 7, n. 3, pp. 364-400, 2009; SCHLINK, Bernhard. German constitutional culture
in transition, op. cit., p. 197: “However, a country's constitutional culture does not emerge only from its
written or unwritten constitution. Hardly less important is the way in which the constitution is dealt with
by legislation and administration, judicial decision making and legal scholarship. How legislation and
administration deal with the constitution essentially depends upon the sort of supervision to which they
are subjected by judicial decision making. How this supervising adjudication in turn deals with the
constitution, how strictly or laxly it interprets its provisions, and in what spirit it applies them essentially
depends upon how legal scholarship deals with the constitution and with judicial decision making”.
876
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e
métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Método, 2012 (eBook), p. 309: “Há, na democracia, um
espaço legítimo para que o Tribunal pratique uma espécie de ‘pedagogia constitucional’, auxiliando a
disseminar pela sociedade, por meio da autoridade da sua argumentação, o discurso constitucional
voltado para os direitos fundamentais”.
329
dizer quanto à cultura constitucional, especialmente, por ela estar no limiar entre o
jurídico e o político.

Como aponta RODRIGUEZ:

a experiência dos regimes autoritários do século XX mostrou que o


controle sobre a ação do juiz e sobre a possibilidade de debater suas
decisões é essencial para a sobrevivência de tais regimes, que
transformam os organismos jurisdicionais em meras cadeias de
transmissão da vontade do poder e enfraquecem o debate dogmático
para torna-lo unilateral877.
Destarte, essa dimensão se agrava no caso da discussão acerca das decisões
jurisdicionais, que, a rigor, possuem competência para efetuar o controle de
constitucionalidade e legalidade dos atos dos demais poderes do Estado, mas que, em
última instância, não contam com a legitimação direta do voto.

É nessa linha, por exemplo, que TERCIO SAMPAIO FERRAS JÚNIOR trabalha a
função social da dogmática jurídica878, e LÊNIO STRECK, ao falar da função da pesquisa
em Direito, aponta para sua dimensão essencialmente crítica a respeito da correção das
decisões jurisdicionais, referindo-se ao constrangimento epistemológico às decisões
judiciais pela doutrina879. Também é nessa dimensão, ainda que com abordagem
bastante diversa, que JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ vai mencionar o papel da dogmática
jurídica no “controle do soberano”880.

877
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Dogmática jurídica é conflito: a racionalidade jurídica entre sistema e
problema. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL, Flavia Portella; MACHADO, Marta
Rodriguez de Assis (org.) Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2012, pp. 21-31, p. 27.
878
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito, cit. Na obra, o autor trata de
três tipos diferentes de dogmática e suas consequentes funções sociais: dogmática analítica (pp. 218-
219), dogmática hermenêutica (quando fala da função social da hermenêutica, p. 284) e dogmática da
decisão (pp. 321-323). Especialmente com essa última aflora a questão da justificação e do fundamento.
879
STRECK, Lênio Luiz. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio: dilemas da
crise do direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 49 n. 194, pp. 07-21, abr./jun. 2012: “O
que é ‘constrangimento epistemológico’? Trata-se de uma forma de, criticamente, colocarmos em xeque
decisões que se mostram equivocadas. No fundo, é um modo de dizermos que a ‘doutrina deve voltar a
doutrinar’ e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária das decisões tribunalícias”.
880
RODRIGUEZ, José Rodrigo. A dogmática jurídica como controle do poder soberano: pesquisa
empírica e Estado de Direito. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL, Flavia Portella;
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (org.) Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade
jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 75-87.
330
O controle do poder não se restringe apenas ao âmbito das esferas institucionais
e acaba por influenciar também a própria comunidade que, em estando comprometida
com sua identidade constitucional, convive e reage à (in)coerência e (não) integridade
das decisões do Estado em relação à sua própria justificação.

Desse modo, as várias discussões possíveis sobre métodos e formas de


intepretação jurídica, são, por excelência, o âmbito de controle argumentativo e (por
que não) político das decisões jurídicas, particularmente, das decisões em matéria
constitucional. Nesse contexto, revelam-se importantes, por um lado, a verificação da
relação entre as decisões tomadas e o fundamento da ordem válida/legítima e, de
maneira especial, dos limites de competência e dos âmbitos de decisão, especialmente,
do poder judiciário.

Com isso não se advoga no sentido de uma visão restritiva da atividade


jurisdicional, do juiz como mera boca da lei, ou algo que o valha. O próprio movimento
de ressubstancialização da constituição, de materialização do Direito, impede
perspectiva tão limitativa da atuação jurisdicional. Entretanto, ainda que não sejam
absolutamente cristalinos os limites entre a devida atividade do juiz para efetivação de
direitos e a judicialização da política (e a politização da justiça!), é o debate público que
possibilitará o controle dos excessos, no qual a discussão jurídica acadêmica ocupa
papel bastante importante.

Tampouco se quer apontar para a “vinculação” estrita das decisões judiciais à


opinião pública. O compromisso do jurídico, da decisão jurídica, é, especialmente, com
a referência última de validade da qual deflui a própria ordem e suas designações de
competência: a constituição. Contudo, a própria constituição jurídica, enquanto texto,
deve ser lida de acordo com os contextos, com a cultura constitucional na que ela se
desenrola. Para tanto, reafirma-se com ROSENFELD, que as amarras do
constitucionalismo, a um só tempo, apontam para a promoção do mútuo
reconhecimento entre o eu e o outro, mas, também, mantém abertas as portas para a
reconstrução da identidade constitucional em um formato que possibilita a contínua
verificação da legitimidade das normas constitucionais vigentes, enquanto justificadas
nessa própria mundividência.

331
Criar esse ambiente democrático, de modo que todo cidadão sinta-se partícipe
desse processo é estabelecer uma cultura constitucional que, de certo modo, importa na
própria efetivação de uma constituição. Até porque, se, por um lado, o que dá suporte
ao jurídico, à própria eficácia do Direito, é o Político, por outro, o Direito com o
Político não se confunde. É essencial que esses limites sejam mais firmemente
respeitados, especialmente, no que concerne ao limite do jurídico para que não se
abram os portões para a politização da justiça, o que faria dela apenas voluntas, não
mais ratio, perdendo, assim, sua razão de ser.

Ainda que seja grande a distância entre o déficit de representatividade dos órgãos
de decisão e uma situação de crise dessa representatividade que leve a uma ruptura com
a ordem, à desobediência civil ou, mesmo, a um momento revolucionário, o elidir
desses balanços retira em muito as condições de sustentação e efetivação mais adequada
de uma ordem constitucional. É nesse sentido que é válido relembrar a advertência de
GRIMM: “não há ‘oficial de justiça’ em matéria constitucional. Isso mostra que não só
constitucionalismo, mas também o controle judicial de constitucionalidade depende de
bases culturais”881.

Bases culturais essas que se conformam na figura de um suporte difuso, desde


que haja integridade na leitura da identidade constitucional, a partir da difusão de uma
cultura de constituição. Bases que sejam capazes de sustentar, inclusive, decisões
contramajoritárias e contra interesses particulares, sociais e econômicos, na medida em
que se veja nelas o reflexo do fundamento da ordem que, em última análise, é o
reconhecimento do eu e do outro, normativamente, da premissa da dignidade humana.
Portanto, em decisões e arranjos que se justifiquem, em último exame, nesse parâmetro
normativo.

A crença na legitimidade da ordem constitucional, bem como, na legitimidade da


interpretação que se faz dela pelas instâncias oficiais de interpretação, são parte essencial
de sua própria vivência882. Nesse sentido, se a princípio a eficácia está mais

881
GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Revista de Direito do Estado, Rio de
Janeiro, a. 01, n. 4, pp. 03-22, out/dez, 2006, p. 10.
882
POST, Robert. Foreword: Fashioning the Legal Constitution: Culture, Courts, and Law. Harvard Law
Review, v. 117, n. 4, pp. 4-112, 2003, pp. 8-9: “Of course culture comes in a myriad different guises. We
332
imediatamente vinculada à questão da validade, marco inicial e referencial do direito
positivo que lhe prevê o aparelho coercitivo, a relação e imposição do Direito como
força legítima, nunca estará totalmente dissociada da dimensão da legitimidade. O
reconhecimento da legitimidade da ordem como um todo – inclusive, do uso da força
por ela – é que permite a estabilidade mínima para sua existência, bem como, a
identificação daquela ordem normativa como projeção e projeto da própria
comunidade.

Sem a identidade entre a ordem constitucional e o sujeito constitucional,


portanto, sem que seja maximamente reconhecido que o Estado se justifica em
referência à premissa do constitucionalismo, por conseguinte, sem que seja difundido
um sentimento quanto à legitimidade da ordem, sempre renovada, não se poderá falar
em cultura de constituição, tampouco em vontade constitucional, quanto menos em
cultura constitucional. E, nesse caso, a força prevista pelo direito positivo tende a deixar
de ser Direito, tornando-se, quando muito, arbítrio, falsa legalidade e alienação
política883.

Nesse sentido, é preciso ter-se em conta que, se com BONAVIDES é necessário


repolitizar a questão da legitimidade, é inexorável reconhecer que, por consequência, as
próprias condições de possibilidade de eficácia da ordem constitucional também são,
em última análise, não meramente jurídicas, mas, essencialmente, jurídico-políticas.
Assim, a questão da própria eficácia precisa ser analisada sob os olhos de sua
politicidade.

Desse modo, novamente nos valendo de HERMANN HELLER:

can identify, for example, a specific subset of culture that encompasses extrajudicial beliefs about the
substance of the Constitution. I shall call this subset constitutional culture. The boundary between
culture and constitutional culture is quite indistinct, because lay persons typically do not frame their
beliefs in terms that admit of ready classification. They can fervently believe that the federal government
ought to have plenary power, or that abortion is murder, without ever connecting these views to a
conclusion about the nature of the Constitution. It is useful to retain the concept of constitutional
culture, however, because the legitimacy of constitutional law depends in part upon what extrajudicial
actors explicitly believe about the Constitution”.
883
NEUMANN, Franz. The concept of Political Freedom. In: NEUMANN, Franz; KICHHEIMER,
Otto; SCHEUERMAN, William E. (ed.). The rule of Law under Siege. Berkeley: University of
California Press, 1996, pp. 195-230.
333
En cuanto se pierde la fe en la legitimidad de la existencia del Estado
concreto o del Estado como institución, puede estimarse que ha llegado
su fin, ya sea para el pueblo del Estado, ya para el correspondiente
círculo de cultura, ya incluso para toda la humanidad. En este sentido
el Estado vive de su justificación. El problema de la consagración del
Estado hay que plantearlo de nuevo, con carácter de necesidad
psicológica, para cada generación. Por este motivo, cabalmente, no
puede pasarlo por alto una teoría del Estado que tenga carácter
científico real. No constituye el único objetivo del problema de la
justificación del Estado, como se dice corrientemente, o la cuestión de
por qué hay que suportar la coacción estatal sino, en primer lugar, la de
por qué hay que ofrecer al Estado los máximos sacrificios personales y
patrimoniales: pues el Estado nace y se mantiene, en primer término,
por este sacrificio espontáneo y sólo en segundo lugar, por la coacción
suportada pasivamente884.
Nesses termos, reforça-se a tese de que, sendo a constituição a ordem jurídica do
Estado e da comunidade, ela tem por principal função ser a unidade cultural, integrante
e integradora, dos cidadãos e da comunidade. Desse modo, seu principal objetivo
normativo é, especialmente, criar uma cultura de constituição que se desdobre na
construção, desconstrução e reconstrução de uma identidade que, por sua vez, conduza-
se em referência ao reconhecimento do eu e do outro. Nesses termos, ela se caracteriza
como identidade constitucional, democrática, capaz de integrar a todos os cidadãos de
modo que estes, identificando maximamente essa identidade e esse projeto enquanto
seu, sintam-no como legítimo e, por isso, façam-no vivo e vivido, na participação no jogo
democrático, na cobrança por um Estado de Direito e dando eficácia e efetividade às
normas constitucionais em conjunto. Esta será, mesmo, a última instância de realização
de uma constituição.

884
HELLER, Hermann. Teoría del Estado, cit., p. 277.
334
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qual o sentido de uma Constituição? Qual o conceito de Constituição? Quais as


possibilidades de realização de uma Constituição? Renovam-se essas que são três das
questões mais importantes postas pela nossa cultura, na nossa cultura e à nossa cultura
jurídico-política.

Não apenas a preocupação por respondê-las, mas, também, a própria


preocupação por concebê-las já se coloca de forma paradigmática no Ocidente. Elas se
ligam à questão que o acompanha desde sempre, desde a polis, mas que toma maior
força e amplitude com a modernidade e o Estado de Direito: a preocupação por um
poder legítimo.

Essa, possivelmente, é uma preocupação decisiva do próprio Ocidente, mas,


certamente, da modernidade, de seu projeto e fórmula política (normativa). É, por
definição e por compromisso, a questão colocada pelo Estado de Direito à experiência
constitucional, portanto, é o projeto e a ideia base que definem a identidade do
constitucionalismo.

Na dimensão constitucional, mais que em qualquer outra, Direito e Política


colocam-se em relação constante, a um só tempo, em tensão e em

335
complementariedade. O poder gera Direito, do mesmo modo que o Direito gera poder.
A percepção dessa dinâmica é o elemento crucial da cultura constitucional.

A partir de Weimar ela começa a ser abordada a partir de uma nova perspectiva,
quer em razão das características da fase do constitucionalismo que ali iniciava com o
Estado Social, quer pelas respostas que começaram a se apresentar naquele contexto.
Essa conjuntura fez com que, naquele momento, se estabelecesse uma nova gramática
para a abordagem dos temas relacionados à comunidade jurídico-política, a partir da
formulação da Teoria da Constituição.

Com seu surgimento, já desde a primeira abordagem kelseniana acerca da Teoria


do Estado e do Direito, buscou-se romper com determinada tradição herdada do século
XIX, a princípio, não a dispensando, mas almejando levá-la às últimas consequências.
Com a Escola de Viena e sua Teoria Normativa do Estado, o que se ambicionou foi
tratar da Teoria do Estado como ciência do Espírito, estritamente, e sob esse argumento
pretendeu-se isola-la, de forma pura, de quaisquer dimensões que pudessem ser
compreendidas como estranhas a esse domínio, nos termos kelsenianos. Portanto, a
crítica de HANS KELSEN ao Gesetzespositivismus de CARL FRIEDRICH VON GERBER e
GEORG JELLINEK não se direcionava à proposta e à postura de se isolar o Estado,
tratando-o como questão meramente normativa, mas à pouca radicalidade e
comprometimento de suas formulações com essa compreensão epistemológica. Assim
sendo, o que propunha KELSEN, ao fim, era refutar as demais dimensões do Estado,
abordando-o puramente como norma. Com isso, ele elaborou uma Teoria do Direito
sem Estado e, assim, uma constituição apenas desde sua dimensão jurídica.

Com essa abordagem e firme empenho metodológico, KELSEN acabou por


instigar uma série de respostas a sua formulação. Dessa postura crítica dá-se o passo
inicial para a formação da Teoria da Constituição como disciplina, que vai
progressivamente se delineando e se construindo no curso dos anos 1920 e início dos
anos 1930, naquela Alemanha de Weimar. Uns dirão que foi um momento de luta pelo
método, outros entenderão o período weimariano como um verdadeiro momento de
crise da ciência e da Teoria do Direito.

336
Ninguém incorporou melhor essa figura da crise que o principal antagonista de
KELSEN: CARL SCHMITT. Se o vienense levou ao extremo a tentativa de compreender a
experiência jurídico-política da comunidade apenas desde seu viés jurídico, construindo
uma Teoria puramente Normativa do Estado, SCHMITT fez o inverso. Partindo da
exceção e, especialmente, da decisão, formulou uma Teoria do Estado sem Direito. Da
experiência jurídico-política da comunidade, extremou a face política, no que, por vezes,
chega-se a se chamar Law as Politics, no cenário anglófono.

A unilateralidade dessas respostas, dando ênfase, quase que exclusiva, uma ao


jurídico, outra ao político, acaba por colocá-las em referência a algum positivismo. Em
resposta a elas, dá-se uma série de formulações que tentam tratar da experiência da
comunidade jurídico-política, do Estado e, cada vez mais, de sua constituição, a partir da
relação, necessária, entre as dimensões jurídica e política. Essas construções, em razão
de sua forma de abordagem, muitas vezes são identificadas como perspectivas dialéticas,
sendo representadas, em especial, por dois pensadores do período weimariano:
RUDOLF SMEND e HERMANN HELLER.

SMEND centra suas atenções no processo de integração da comunidade no


Estado e vê a própria constituição como ordenação jurídica da dinâmica vital na qual se
desenvolve sua vida. Ela é a cristalização legal-normativa de determinados aspectos
desse processo de integração que tem como finalidade a perpétua reimplantação da
realidade total do Estado. Assim sendo, como ponto de referência dessa realidade, o
autor coloca a constituição no lugar da tradicional Allgemeine Staatslehre. Com isso,
pretende uma Teoria material do Estado, por um lado, e, por outro, coloca em diálogo
o jurídico e o político, o que se coloca como um passo fundamental para compreender
a questão constitucional desde a perspectiva da cultura constitucional.

HELLER, por sua vez, reformula a própria concepção de uma Teoria Geral do
Estado, apontando para a necessidade de direcionar-se a lupa de análise sobre a
realidade social e sua transformação, isto é, para uma, não mais geral, Teoria do Estado.
Percebe, justamente, que o poder gera Direito e, que, ao mesmo tempo, o Direito gera
poder. Nesses termos, afirma que o Estado vive, ele mesmo, de sua justificação e
depende de alguma homogeneidade mínima para seu desenvolvimento político, sem

337
nunca abrir mão do pluralismo, pois a própria disputa democrática a respeito das
questões da comunidade é essencial para o Estado de Direito em sua vida dinâmica.

O que se coloca como marcante nessas concepções dialéticas é a compreensão


de que mesmo o conflito e o embate político democrático são próprios e necessários à
ordem constitucional, à construção e ao caminhar da cultura constitucional. Assim, elas
ligam-se, cada uma a sua maneira, ao pluralismo, por um lado, e à vinculação dessas
discussões com uma base mínima comum, por outro. É nesses termos que a identidade
do constitucionalismo se desenvolve como uma cultura que pretende ter dinâmicas,
políticas e formas jurídico-políticas que se desenrolem sempre em uma justificação que
lhes faça e afirme legítimas e, porque constantemente renovadas em sua legitimidade,
válidas.

Nesses termos, a constituição coloca-se como uma unidade cultural, integrante e


integradora, da comunidade jurídico-política e seus cidadãos. É em torno dela que se
articula e se desenvolve o caminhar de uma cultura, constitucional porque pluralista e
democrática. Ela é fruto da reinvenção das identidades particulares de uma comunidade
em reafirmação e nova leitura da própria identidade do constitucionalismo, que define
normativamente os parâmetros mínimos para o conceito de constituição.

Esse desdobrar coloca-se em pelo menos três dimensões. Uma primeira


relacionada a essa base mínima comum e legitimadora, e portanto à própria concepção
de humano típica do Ocidente. Essa exige uma comunidade na qual todos os indivíduos
sejam considerados em sua igual liberdade e, por conseguinte, dinâmicas e formas
jurídico-políticas próprias (a cultura do constitucionalismo).

Uma segunda relacionada à leitura que cada comunidade faz dessa identidade
mais ampla. Ela se dá a partir da interpretação inicial que se realiza na sua articulação
com as demais identidades locais, a partir do marco inicial de uma decisão soberana do
poder constituinte, criando uma nova ordem de validade, uma nova legalidade. Esta
segue se desenvolvendo e renovando cotidianamente, fazendo-se cultura constitucional
na própria reafirmação de seu fundamento (identidade constitucional).

E, ainda, uma terceira, relacionada ao compromisso que é renovado, quer com


essas amarras mais amplas do constitucionalismo, quer com o projeto específico de uma
338
identidade constitucional. Trata-se de um empenho de fazê-la viva e vivida, logo efetiva.
Por um lado, isso é feito com sua própria dinâmica de renovação, formação e
transformação e, por outro, na efetivação das previsões normativas típicas da
constituição que visam transformar as conformações sociais e estruturais da sociedade
(cultura de constituição).

Em sendo o Estado de Direito a experiência jurídico-política que se pretende


válida e eficaz, não pela força que simplesmente se/o impõe, mas pelo argumento
último que o justifica, parece inafastável reconhecer que as dimensões da legitimidade,
validade e eficácia de uma constituição se tocam.

Uma constituição se coloca como válida na medida em que é capaz de combinar


a força institucionalizadora da ordem jurídica coercitiva com o fundamento legitimador
dessa ordem de liberdade. A esse passo, é necessário que ela se renove como legítima
no próprio caminhar de sua cultura jurídico-política, identificando-se, normativamente,
como uma cultura constitucional.

Esse desenrolar articula-se em relação a duas identidades que não se excluem. A


mais ampla do constitucionalismo, representativa de uma cultura de igual liberdade de
todos os indivíduos – identidade que se coloca como definidora do conceito de
constituição – e a mais específica da comunidade que, a partir dos vínculos do
constitucionalismo, constrói-se na negação, incorporação e identificação com as demais
particularidades e identidades da cultura local.

Nesses termos, recolocar a questão da legitimidade em parâmetros específicos e


não necessariamente universais – ainda que pretensamente universais e universalistas –
aproxima a questão da própria remodelação desses parâmetros identitários no seu viver.
Significa, como quer PAULO BONAVIDES, repolitizar a própria questão da legitimidade,
tirando-a do locus externo e inacessível, recolocando-a em posição política, em disputa
na própria comunidade. É colocá-la mais uma vez, e sempre, na própria dinâmica de
(re)afirmação da identidade política de uma comunidade enquanto identidade
constitucional.

Por um lado, o próprio construir de uma identidade constitucional particular é


parte importante de uma cultura constitucional, desde o marco inicial e simbólico da
339
constituição, no seu momento fundador, até a interpretação que os órgãos oficiais do
Estado e toda a comunidade dela fazem no dia a dia. É isso que lhe dá vida e lhe faz
vivida. Por outro, o implementar das demandas normativas, das decisões e ações do
poder, na e pela comunidade, também demandam uma força vital.

Isto é, se a construção de uma identidade constitucional, em referência à


identidade e aos laços mais amplas do constitucionalismo são parte importante para a
construção de uma cultura pluralista de reconhecimento do eu e do outro, sua
implementação na comunidade e ação na sociedade também demandam um
compromisso mais específico dos cidadãos e do poder com essa identidade mais
imediata.

Portanto, a cultura constitucional demanda duas formas de vínculo vital que, de


todo modo, intersectam-se: um compromisso com a mais ampla identidade pluralista do
constitucionalismo, legitimadora de uma ordem enquanto constitucional, portanto, em
alguma medida, o compromisso do poder com a própria comunidade a que ele se liga,
com sua justificação; mas, também, a própria eficácia da ordem constitucional,
identificada com sua força para transformar a dinâmica e status social, depende de um
outro laço a ser criado e reforçado, relacionado a um comprometimento com a ordem
constitucional (válida) mais próxima e imediata em si.

Dito de outra forma, a eficácia de uma constituição depende de uma cultura de


constituição, isto é, de uma força que se desenvolva na medida em que ela é sentida
como legítima, sendo capaz de gerar o impulso de protegê-la patrioticamente contra
forças “anticonstitucionais” e de suscitar vontade de constituição em todos os integrantes
da comunidade, construída na amiúde integração de todos os cidadãos na identidade
constitucional.

Para tanto, é necessário que se reafirme na própria comunidade essa identidade,


que se reforce a identificação dos cidadãos com esse projeto de comunidade, de
sociedade e, mesmo, em alguma medida, com esse projeto de humano.

O que aqui se trata por cultura de constituição coloca-se em referência a cada


identidade constitucional própria, seja ela a brasileira, a alemã ou a estadunidense, que
têm como símbolo sua respectiva constituição. Em cada uma delas, a própria
340
legitimidade da ordem, o próprio sentimento constitucional, dependerá das culturas e
identidades específicas que se articulam com a identidade mais abrangente do
constitucionalismo. As fórmulas de proteção da liberdade de expressão, de redução das
desigualdades, de promoção do pluralismo, apresentam-se de modo particular em cada
identidade. O importante, no entanto, é que todas elas sigam como projeto, que sigam
na busca sempre incessante e inacabada de se criar uma sociedade mais justa, igualitária,
que cada vez mais se mostre comprometida com o reconhecimento do eu e do outro e,
por conseguinte, com igual liberdade de cada um.

É sobre esse projeto, da legitimidade dessa identidade como própria da


comunidade e da busca por sua implementação, que se assenta a própria
legitimidade/validade do poder no Estado de Direito. Trata-se, portanto, de uma
relação que se retroalimenta na dinâmica de uma cultura constitucional.

Há, pelo menos, duas questões interessantes relacionadas à dinâmica que se


apresentou, mas que não serão aprofundadas e ficarão em aberto para reflexões futuros.

A primeira se relaciona ao crescimento e fortalecimento da disciplina do Direito


Constitucional Comparado, que apesar de ter origens mais remotas, já de anos vem
ganhando muita força, quer na Europa, quer nos EUA e, inclusive, de forma bastante
importante, no diálogo que se tem proposto entre essas duas (e, mesmo, mais de duas)
identidades constitucionais. É curioso o fato de, por um lado, o conceito mais preciso
de constituição, hoje ser relacionado às experiências específicas de cada comunidade
jurídico-política, de cada identidade constitucional, havendo quem fale, inclusive, de
muitos constitucionalismos, e, por outro, ser cada vez mais importantes para a própria
cultura do constitucionalismo as relações entre as diversas ordens constitucionais. Esse
tema se relaciona ao interconstitucionalismo, ao transconstitucionalismo, ao
constitutional borrowing e à construção de uma gramática constitucionalista comum.

A outra diz respeito à própria identidade constitucional brasileira, que se constrói


no complexo contexto de um país que convive com as questões do subdesenvolvimento,
de modernidade periférica, ibero-americana, em que a história jurídico-política
raramente apresenta longos períodos de continuidade sem ruptura institucional. Esse é
um tema que, pela sua complexidade e atualidade, merece atenção especial e uma
341
pesquisa específica. O que pode ser dito é que, embora seja inevitável compreender a
pertença da cultura brasileira ao campo mais amplo da cultura ocidental, com sua
premissa de humano e seu projeto moderno, há, ainda, muito que se atentar às
particularidades sociais, culturais, econômicas e, mesmo, jurídico-políticas de nossa
história. Por exemplo, temos uma identidade constitucional em que se vê, de forma até
paradoxal, a articulação de um sistema jurídico de matriz romano-germânica, com um
sistema de governo presidencialista; ou um modelo de fontes do direito que se baseia na
primazia da lei e um formato de jurisdição constitucional que se organiza com um órgão
de cúpula.

Além disso, é de se ter em conta que nossa cultura política é fortemente


estatalista, em semelhança ao que afirma BERNHARD SCHLINK sobre a identidade
constitucional alemã, isto é, a identidade constitucional brasileira não se liga a traços
étnicos, nem mesmo a fortes traços nacionalistas, sendo mais vinculada à própria
concepção de Estado brasileiro, desde a formação da unidade nacional no Império,
especialmente, com Dom Pedro II. Apesar disso, segue em aberto a importante
temática acerca de uma Teoria do Estado brasileiro, que se alia ao fato de tratar-se de
uma identidade que, apesar de todas as incertezas, se articula, hoje, a partir de uma
Constituição bastante analítica, vinculadora dos poderes executivo e legislativo, em que
se vê uma crescente e preocupante hipertrofia do judiciário. Mais que tudo, é uma
identidade que se coloca sobre uma sociedade muito desigual, que exige, inclusive
normativamente na Constituição, que o próprio Estado deva trabalhar para reduzir essas
desigualdades. É uma sociedade em que boa parte do povo tem pouco acesso à
instrução e que, na prática, por muitas vezes nem mesmo se reconhece, a si mesmo,
como sujeito de direitos, ou, pelo menos, não tem como pleiteá-los e exigi-los jurídica e
politicamente. De todo modo, esse é um tema interessantíssimo, que precisa ser
abordado mais a fundo, em pesquisas futuras.

Aqui se defendeu que uma constituição consiste em uma unidade cultural,


integrante e integradora da comunidade e dos cidadãos. Dessa dinâmica, depende a
própria legitimidade da ordem, na medida em que pretenda fazer-se viva como um
projeto de coletividade que encontra e faz sua legitimidade no próprio construir de sua

342
identidade, a partir da articulação entre constitucionalismo e a cultura a partir da qual
ele se coloca. De mesma forma, é vivida, é eficaz, em virtude da própria capacidade que
tenha de fazer essa identidade reconhecida como ordem normativa necessária pela
própria comunidade.

O Estado de Direito, mais que uma estrutura sólida e estática, mais que um
corpo monolítico que se impõe pela força, é um projeto. Para parafrasear ALAIN
SUPIOT, é uma frágil conquista de um sentido cuja crença é compartilhada por cada um
daqueles que nela acredita, uma bela e difícil construção cultural, que, para seguir viva,
tem de ser vivida através de um conjunto de vontades de todos esses que comungam
dessa mundivisão. Nesse contexto, a Constituição é um símbolo de uma identidade que
se constrói, desconstrói e reconstrói na e pela comunidade jurídico-política e que tem
como principal ambição normativa ser vivida e tornarda viva pela própria comunidade,
pela identidade renovada entre cada cidadão e essa ordem, em uma cultura
constitucional.

343
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACKERMAN, Bruce, The Rise of World Constitutionalism. Virginia Law Review, v.


83, n. 4, pp. 771-797.

ACKERMAN, Bruce. We the people: transformations. Cambridge: Belknap Press,


2000.

ADVERSE, Helton. Decisionismo. In: AVRITZER, Leonardo et al. (orgs.). Dimensões


políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 77-84.

ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução Gercélia Batista de Oliveira


Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

ALVES, Adamo Dias; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Carl Schmitt:


um teórico da exceção sob o estado de exceção. Revista Brasileira de Estudos Políticos,
Belo Horizonte, n. 105, pp. 225-276, jul./dez. 2012. Disponível em:
http://www.pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-
7191.2012v105p225/187

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A revisão da constituição francesa de 1958.a


permanente procura de uma constituição modelar. Cuestiones Constitucionales, Cidade
do México, n. 3, pp. 121-165, jul./dez. 2000.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O valor constitucional dos “direitos de defesa”:


jurisdição e Constituição. In: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual
constitucional: aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2008, pp. 683-689.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria da Constituição. Revista de Informação


Legislativa, Brasília, a. 15, n. 58, pp. 27-54, abr./jun. 1978, p. 29.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Constitucionalismo. Revista de


Informação Legislativa, Brasília, a. 23, n. 91, pp. 5-62, jul./set. 1986.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Soberania. In: BARACHO,


José Alfredo; HORTA, José Luiz Borges (org.). Direito e Política: ensaios selecionados.
Florianópolis: Conpedi, 2015, pp. 72-207.

344
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o
princípio da dignidade da pessoa humana. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

BARRETO DE MENEZES, Tobias. "Idéia do Direito" — Discurso proferido em


colação de grau na Faculdade de Recife. SOUSA, Carlos Aurélio Mota de (org.).
Antologia de famosos discursos brasileiros. São Paulo: Logos, 1957, pp. 88-96.

BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: BONAVIDES,


Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques Lima, BEDÊ, Faya Silveira (Org.).
Constituição e Democracia: estudos em Homenagem ao professor J.J. Gomes
Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 435-447.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de


uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade


Democrática. (Syn)Thesis Rio de Janeiro, v. 5, n. p. 23-32, 2012.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito


(O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v.
02, n. 01, Rio de Janeiro, pp. 1-48, 2006. Disponível em: http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/viewFile/11641/9106

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas:


limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BAVARESCO, Agemir; KONZEN, Paulo Roberto. Cenários da liberdade de imprensa


e opinião pública em Hegel. Kriterion, Belo Horizonte, v. 50, n.119, pp. 63-92, 2009.

BECK, Earl R. The Death of the Prussian Republic: A Study of Reich-Prussian


Relations, 1932-1934. Tallahassee: The Florida State University, 1959.

BERCOVICI, Gilberto. Ainda faz sentido a Constituição dirigente? Revista do Instituto


de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, v. 1, n. 6, pp. 149-162, 2008.

BERCOVICI, Gilberto. Carl Schmitt, o Estado Total e o Guardião da Constituição.


Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 1, pp. 195-206, jan./jun. 2003.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente: atualidade de


Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editoral, 2004.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política: uma relação difícil. Lua Nova, São
Paulo, n. 61, pp. 5-24, 2004.

BERCOVICI, Gilberto. Democracia, inclusão social e igualdade. In: XIV Congresso


Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI,

345
2006, Fortaleza - CE. Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. 2006.
Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/043.p
df

BERCOVICI, Gilberto. Entre institucionalismo e decisionismo. Revista Novos Estudos,


São Paulo, n. 62, pp. 191-193, dez./mar. 2002.

BERCOVICI, Gilberto. Intervenção. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda


(org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp.
77-79.

BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do Povo no Brasil: um roteiro de


pesquisa sobre a crise constituinte. Lua Nova, São Paulo, n. 88, pp. 305-325, 2013.

BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do


constitucionalismo. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

BERKMANA, Tomas, Schmitt v. (?) Kelsen: The Total State of Exception Posited for
the Total Regulation of Life. Baltic Journal of Law & Politics, v. 3, n. 2, pp. 98-118,
2010. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1776453

BESTER, Gisela Maria. A concepção de Constituição de Hermann Heller – integração


normativa e sociológica – e sua possível contribuição à Teoria da Interpretação
Constitucional. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 36, p.
231-50, 1999.

BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia Constitucional. São Paulo: Saraiva,


2013.

BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. Kriterion,


Belo Horizonte, 2008, vol. 49, n.118, pp. 401-415.

BLOCH, Ernst. Upright Carriage, Concrete Utopia. In: BLOCH, Ernst. On Marx.
Tradução John Maxwell. Nova York: Herder and Herder, 1971, pp. 159-173.

BOBBIO, Norberto. Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. Tradução


Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Tradução Fernando Pavan Batista e


Ariani Bueno Sudatti. 3 ed. Bauru: Edipro, 2005.

BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo (org.). Teoria geral da política: a


Filosofia Política e as lições dos clássicos. Tradução Daniela Beccaccia Versiani. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2000.

346
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. El poder constituyente del pueblo. Un concepto
limíte del derecho constitucional. In: BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios
sobre el Estado de Derecho y la democracia. Tradução Rafael de Agapito Serrano.
Madrid: Editorial Trotta, 2000, pp. 159-180.

BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. State, Society and Liberty. Tradução J. A.


Underwood. Oxford: Berg Publishers, 1991.

BOGDANDY, Armin von. The European Constitution and the European Identity: text
and subtext of the treaty establishing a Constitution for Europe. I-CON, Oxford/Nova
York, v. 3, n. 2 & 3 (edição especial), mai. 2005, pp. 295-315.

BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade. In: BONAVIDES, Paulo. A


Constituição aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade. 3 ed. São Paulo:
Malheiros, 2004, pp. 33-51.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Malheiros,


2007.

BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: derrubada da


Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 4 ed. São Paulo:
Malheiros, 2009.

BOSTAPH, Samuel. Methodenstreit. In: KALDIS, Byron (ed.). Encyclopedia of


Philosophy and Social Science. Thousand Oaks: SAGE Publications, 2013, pp. 603-
605.

BROCHADO FERREIRA, Mariá A. Consciência moral e consciência jurídica. Belo


Horizonte: Mandamentos, 2002.

BROCHADO FERREIRA, Mariá. Paideia jurídica: pressupostos e caracterização.


Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 101, p. 159-190, jul./dez.
2010. Disponível em:
http://www.pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/121/117

BROCHADO FERREIRA, Mariá. Pedagogia jurídica para o cidadão: formação da


consciência jurídica a partir de uma compreensão ética do direito. Revista da Faculdade
de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 48, pp. 159-188, jan./jun. 2006.

BROOK, Thom. Between Natural Law and Legal Positivism. Georgia State University
Law Review, Atlanta, n. 23, n.3, pp. 513-560, 2007.

BRUGGER, Winfried. Commuinitarianism as the social and legal theory behind the
German Constitution. I-CON, Oxford/Nova York, v. 2, n. 3, jul. 2004, pp. 431-460.
347
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Comment on Petroski—On MacCormick’s Post-
Positivism. German Law Journal, v. 12, n 02, pp. 693-728, 2011. Disponível em:
http://www.germanlawjournal.com/index.php?pageID=11&artID=1339

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Sobre o caráter argumentativo do direito: uma


defesa do pós-positivismo de MacCormick. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo
Horizonte, n. 106, pp. 263-313, jan./jun. 2013. Disponível em:
http://www.pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/viewFile/P.0034-
7191.2013v106p263/219

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Uma defesa do pós-positivismo. Virtù, Salvador, n.


2, pp. 1-40, 2008. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br/revistas/10132206/defesa_do_pos-
positivismo_thomas.pdf

CAENEGEM, Raoul C. van. Uma introdução histórica ao direito constitucional


ocidental. Tradução Alexandre Vaz Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2009.

CAENEGEM, Raoul C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. Tradução


Carlos Eduardo Lima Machado. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CALDEIRA, Gregory; GIBSON, James. The Etiology of Public Support for the
Supreme Court. American Journal of Political Science, v. 36, n. 3, pp. 635-664, agosto
1992.

CALDWELL, Peter. Popular sovereignty and the crisis of german constitutional Law:
the theory and practice of Weimar constitutionalism. Durham: Duke University Press,
1997 (eBook)

CALDWELL, Peter. National socialism and constitutional law: Carl Schmitt, Otto
Koellreutter and the debate over de nature of the Nazi State, 1933-1937. Nova York,
Cardozo Law Review, v. 16, pp. 399-427, 1994.

CALSAMIGLIA, Albert. Pospositivismo. Doxa, Alicante, n. 21, pp. 209-220, 1998.


Disponível em: http://rua.ua.es/dspace/bitstream/10045/10389/1/doxa21_11.pdf

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma


contribuição ao estudo do direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador.


Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. 2 ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

348
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
7ed. Coimbra: Almedina, 2000.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Os poderes do Presidente da


República. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.

CARVALHO, Orlando de. Caracterização da Teoria Geral do Estado. Belo Horizonte:


Kriterion, 1951.

CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo: uma


justificativa democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do
processo legislativo. 3 ed. Belo Horizonte: Forum, 2016.

CATTONI DE OLIVERIA, Marcelo Andrade. O projeto constituinte de um Estado


Democrático de Direito: por um exercício do Patriotismo Constitucional, no marco da
Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, de Jürgen
Habermas. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Quinze anos de constituição. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 131-154.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma


justificação democrática do controle de constitucionalidade das leis e do processo
legislativo. 3 ed. Belo Horizonte: Forum, 2016.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo constitucional contra


fraudes à Constituição. Virtú, Salvador, n. 1, pp. 1-11, mar./mai. 2007.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e patriotismo


constitucional. Belo Horizonte, 2006.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. Belo


Horizonte: Initia Via, 2012.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Validade versus correção: a tese


kelseniana da interpretação autêntica. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo
Andrade. Teoria da Constituição. 2 ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2016, pp. 133-163.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David Francisco Lopes. A


Constituição entre o direito e a política: novas contribuições para a teoria do poder
constituinte e o problema da fundação moderna da legitimidade. In: CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Initia Via,
2012, pp. 87-132.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David Francisco Lopes. A


justiça e a democracia como hipérbole: o PNDH-3 e o projeto constituinte do Estado
Democrático de Direito entre nós. Rechtd, v. 3, n. 1, pp. 95-101, jan./jun. 2011, p. 97.

349
CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2006.

CHRISTENSEN, Ralph. In: MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão


fundamental da democracia. 5 ed. São Paulo: RT, 2010, pp. 27-37.

CHUERI, Vera Karam; GODOY, Miguel G. Constitucionalismo e Democracia –


soberania e poder constituinte. Revista Direito GV, São Paulo, v. 6, n. 1, pp. 159-174,
jan./jun. 2010.

CHUEIRI, Vera Karam; SAMPAIO, Joanna Maria de Araújo. Coerência, integridade e


decisões judiciais. Nomos, Fortaleza, v. 32, n. 1, p. 177-200, jan./jun. 2012.

CITTADINO, Gisele. Patriotismo constitucional, cultura e história. Revista Direito,


Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 31, pp. 58-68, jul./dez. 2007.

COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse: uma nova crença na constituição.


Direito Público, Porto Alegre, a. 1, n.3, p. 05-23, jan./mar. 2004.

COELHO, Nuno M. M. S. Compreensão como arte: notas “hermenêuticas” sobre


Constituição e constitucionalismo. Prisma Jurídico, v. 8, n. 1, pp. 53-75, jan./jun., 2009.

COELHO, Nuno M. M. S. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa. Curitiba:


Juruá, 2012.

COELHO, Nuno M. M. S. Ensaio sobre o sentido grego do político – e o nosso tempo.


Revista Crítica do Direito, v. 53, n. 3, out./nov. 2013. Disponível em:
https://sites.google.com/a/criticadodireito.com.br/revista-critica-do-direito/todas-as-
edicoes/numero-3-volume-53/nuno

COELHO, Nuno M. M. S. Pessoa, igualdade (isogoria) e controvérsia. Notas sobre o


sentido da idéia do direito, (co)fundadora da experiência civilizacional ocidental. Revista
da Faculdade de Direito do Sul de Minas, a. 23, n. 25, pp. 183-192, jul./dez. 2007.

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno.


São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

CORREAS, Oscar. Teoria sociológica del Derecho y Sociologia Jurídica: parte II.
Crítica Jurídica: Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, n. 8, pp. 73-
108, jan.-jun. 1988, pp. 92-95. Disponível em:
http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/critica/cont/8/teo/teo6.pdf

COSTA, Piero. O Estado de Direito: uma introdução histórica. In: ZOLO, Danilo;
COSTA, Piero (org.)O Estado de Direito: história, teoria e crítica. Tradução Carlos
Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 95-198.

350
COTTERRELL, Roger. Comparative Law and Legal Culture. In: ZIMMERMANN,
Reinhard; REIMANN, Mathias (eds.). Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford:
Oxford University Press, 2006, pp. 709-37.

COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade Moral da Constituição: da


fundamentação da validade do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora,
2009.

COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Os Pressupostos do Conceito de Estado em Carl


Schmitt – Do Direito ao Político. In: MORAIS, Carlos Blanco de; PEREIRA
COUTINHO, Luís Pedro (org.)Carl Schmitt Revisitado. Lisboa: Instituto de Ciências
Jurídico-Político, 2014, pp. 121-132.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a Constituição Dirigente.


2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

DAHL, Robert. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília: Editora da


UnB, 2001.

DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos: da idade média ao


século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 29 ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.

DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do Direito. 4 ed. São Paulo:


RT, 2011.

DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa


do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.

DOMINGUES, Ivan. O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea. São


Paulo: Loyola, 2009.

DUBBER, Markus Dirk. The sense of justice: empathy in Law and punishment. Nova
York: New York University Press, 2006.

DWORKIN, Ronald. Constitutionalism and Democracy. European Journal of


Philosophy, v. 3, n. 1, pp. 2-11, 1995.

DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? principles for a new political debate.
Princeton: Princeton University Press, 2008.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luís Camargo. 2 ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2007.

351
DWORKIN, Ronald. Virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução
Jussara Simões. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2005.

DYZENHAUS, David. Hermann Heller. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK,


Bernhard (org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California
Press, 2002, pp. 249-256.

DYZENHAUS, David. Hermann Heller and the legitimacy of legality. Oxford Journal
of Legal Studies, Oxford, v. 16, n. 40, pp. 641-666, 1996.

DYZENHAUS, David. Holmes and Carl Schmitt: An Unlikely Pair. Brooklyn Law
Review, Nova York, v. 63, pp. 165-188, 1997.

DYZENHAUS, David. Law as justification: Etienne Mureinik’s conception of legal


culture. South African Journal On Human Rights, Johannesburg, n. 14, pp. 11-37, 1998.

DYZENHAUS, David. Legal Theory in the collapse of Weimar: Contemporary


Lessons? American Political Science Review, v. 91, n. 1, mar. 1997.

DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and
Hermann Heller in Weimar. Oxford: Oxford University Press, 1997.

EAGLETON, Terry. A ideia de Cultura. Tradução Sandra Castello Branco. 2 ed. São
Paulo: Editora UNESP, 2011.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: volume 2 - Formação do Estado e Civilização.


Rio de Janeiro; Zahar, 1993.

ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos
XIX e XX. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

EMERSON, Rupert. State and Sovereignty. New Haven Yale University Press, 1928.

FERNÁNDEZ GONZALEZ, Miguel Angel. La conciencia constitucional y su


aplicación al caso chileno. Revista Chilena de Derecho, v. 19 n. 3, pp. 461-479, 1992.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica,


decisão, dominação. 6ed. São Paulo: Atlas, 2011.

FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no


pensamento de Carl Schmitt. Belo Horizonte: Editora UFMG/Rio de Janeiro: IUPERJ,
2004.

FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição & Política: poder constituinte,


constituição material e cultura constitucional. Lisboa: Quid Juris, 2012.

352
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Cultura constitucional & revisões constitucionais.
International Studies on Law and Education, n. 8, pp. 5-16, maio/agosto 2011.
Disponível em: http://www.hottopos.com/isle8/05-16PFC.pdf

FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Princípios-tópicos de hermenêutica constitucional.


Disponível em: http://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1031&context=pfc

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do direito


constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la Antigüedad a nuestros días. Madrid:


Trotta, 2001.

FIORAVANTI, Maurizio. Constitucionalismo: experiencias históricas y tendencias


actuales. Tradução de Adela Mora Canada y Manuel Martinez Neira. Madri: Editorial
Trotta, 2014.

FLETCHER, George P. Constitutional Identity. In: ROSENFELD, Michel (ed.).


Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: Theoretical Perspectives.
Durham: Duke University Press, 1994, pp. 223-232.

GADAMER, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Lisboa: Edições 70, 2001.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Tradução Ênio Paulo Giachini.


Petrópolis: Vozes, 2002.

GALUPPO, Marcelo Campos. Comunitarismo e liberalismo na fundamentação do


Estado e o problema da tolerância. SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Crise e
Desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 337-346.

GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Alianza


Editorial, 1999.

GARCÍA COSTA, Francisco M.; BENITO MARTÍNEZ, Juan. Educación


constitucional y ciudadanía plural. Revista Interuniversitaria de Formación del
Profesorado, Zaragoza, v. 24, n. 3, pp. 87-104, 2010.

GARCIA FIGUEROA, Alfonso. La teoría del derecho en tempos de


constitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). 4 ed.
Madri: Trotta, 2009, pp. 159-186.

GARGANO, Antonio. Il pensiero politico nella Repubblica di Weimar. Nápoles:


Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, 2011.

GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de


filosofia política. Tradução Alonso Reis Freire. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

353
GEERTZ, Clifford. O crescimento da cultura e a evolução da mente. In: GEERTZ,
Clifford. A interpretação das culturas. Tradução Rio de Janeiro: LTC, 2008, pp. pp. 41-
61.

GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In:


GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Tradução Rio de Janeiro: LTC, 2008,
pp. pp. 25-39.

GIBSON, James L. Judicial Institutions. In: RHODES, R. A. W.; BINDER, Sarah A.;
ROCHMAN, Bert A. (eds.). The Oxford Handbook of Political Institutions. Oxford:
Oxford University Press, 2006, pp. 514-534.

GIBSON, James L.; CALDEIRA, Gregory. Supreme Court Nominations, Legitimacy


Theory, and the American Public: A Dynamic Test of the Theory of Positivity Bias, jul.
2007. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=998283

GIBSON, James; CALDEIRA, Gregory; SPENCE, Lester. Measuring Attitudes toward


the United States Supreme Court. American Journal of Political Science, v. 47, n. 2, pp.
354–367, abr. 2003.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. A Defence of a Broader Sense of Constitutional


Dialogues Based on Jeremy Waldron’s Criticism on Judicial Review. In:
BUSTAMANTE, Thomas; GONÇALVES, Bernardo Ferreira (ed.). Democratizing
Constitutional Law: Perspectives on Legal Theory and the Legitimacy of
Constitutionalism. Suíça: Springer, 2016, pp. 147-164.

GONZALEZ CASANOVA, J. A. La idea de Constitución en Karl Loewenstein.


Revista de Estudios Políticos, Madri, n. 139, pp. 73-98, jan./fev. 1965.

GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 17


ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 4


ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales. Tradução Raúl Sanz


Burgos e José Luis Muñoz de Baena Simón. Madri: Trotta, 2006.

GRIMM, Dieter. Constituição e política. Tradução Inocêncio Mártires Coelho. Belo


Horizonte: Del Rey, 2006.

GRIMM, Dieter. Identidad y transformación: la Ley Fundamental en 1949 y hoy.


Teoría y Realidad Constitucional, Madri, n. 25, pp. 263-277, jan./jun. 2010.

354
GRIMM, Dieter. Integration by Constitution. International Journal of Constitutional
Law, Nova York, v. 3, n. 2-3, pp. 193-208, mai. 2005.

GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Tradução Bianca Stamato


Fernandes. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 4, pp. 3–22, out./dez. 2006.

GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. Tradução Paulo Edmur de Souza


Queiroz. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1968.

HÄBERLE, Peter. Constituição – Cultura – Previsões Relativas a Deus. Tradução Ana


Paula Barbosa-Fohrmann. In: TORRES, Ricardo Lobo; BARBOSA-FOHRMANN,
Ana Paula (org.). Estudos de Direito Público e Filosofia do Direito: um diálogo entre
Brasil e Alemanha. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, pp. 249-262

HÄBERLE, Peter. Constituição e Cultura: o direito ao feriado como elemento de


identidade cultural do Estado Constitucional. Tradução Marcos Augusto Maliska e
Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Tradução Félix Fix-Fierro. México:


UNAM, 2003.

HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional Europeo. Tradução Francisco Balaguer


Callejón. Cuestiones Constitucionales, México, n. 2, pp. 87-104, jan. 2000.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intépretes da


Constituição; contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da
Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFE, 1997.

HÄBERLE, Peter. La constitución como cultura. Tradução Francisco Fernández


Senegado e Rafael Rúbio Núñez. Anuario iberoamericano de justicia constitucional,
Madri, n. 6, pp. 177-198, 2002.

HÄBERLE, Peter. La Constitución «en el contexto». Anuario Iberoamericano de


Justicia Constitucional, Madri, n. 7, pp. 223-245, 2003.

HÄBERLE, Peter. Liberdad, igualdad, fraternidade. 1789 como historia, actualidad y


futuro del Estado constitucional. Tradução Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madri: Trotta,
1998.

HÄBERLE, Peter. Métodos y principios de interpretación


Constitucional. Un catálogo de problemas. Revista de Derecho Constitucional Europeo,
Granada, a. 7, n. 13, pp. 379-411, jan./jun. 2010.

HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado Constitucional. Tradução


Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2008.

355
HÄBERLE, Peter. Palabras clave para el constitucionalismo de hoy - Una perspectiva
alemana. THĒMIS, Lima, n. 67, pp. 15-22, 2015.

HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura. Tradução


Emili Mikunda. Madri: Tecnos, 2000.

HÄBERLE, Peter. Tiempo y cultura constitucional. Contextos, Buenos Aires, n. 2, pp.


36-81, 2011.

HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Tradução Vamireh


Chacon. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1980.

HABERMAS, Jürgen A Kind of Settlement of Damages (Apologetic Tendencies).


Tradução Jeremy Leaman. New German Critique, n. 44, v. especial sobre o
Historikerstreit, pp. 25-39, primavera/verão, 1988.

HABERMAS, Jürgen. Cidadania e identidade nacional. In: HABERMAS, Jürgen.


Direito e Democracia: entre facticidade e validade, v. 2. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, pp. 279-305.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade de validade I. 2 ed.


Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 2012.

HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no Estado Democrático


Constitucional. In: TAYLOR, Charles et al. Multiculturalismo: examinando a política
de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, pp. 125-127.

HABERMAS, Jürgen. On Law and Disagreement; Some Comments on “Interpretative


Pluralism”. Ratio Juris, Bologna, v. 16 n. 2, pp. 187-194, jun. 2003.

HAYWARD, Clarissa Rile. Democracy’s Identity Problem: Is “Constitutional


Patriotism” the Answer? Constellations, v. 14, n 2, pp. 182-196, abr./jun. 2007.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. La constitución de Alemania. Tradução Dalmacio


Negro Pavon. Madri: Aguilar, 1972.

HELLER, Hermann. ¿Estado de Derecho o Dictadura? In: HELLER, Hermann.


Europa y el Fascismo. Tradução Francisco J. Conde. Granada: Comares, 2006, pp. 117-
135.

HELLER, Hermann. La Soberania: contribución a la Teoria del Derecho Estatal y del


Derecho Internacional. Tradução Mario de la Cueva. México: UNAM, 1965.

HELLER, Hermann. Las ideas políticas contemporáneas. Tradução Manuel Pedroso.


Granda: Comares, 2004.

356
HELLER, Herman. Libertad y forma en la constitución del imperio. In: HELLER,
Hermann. El sentido de la política y otros ensayos. Tradução Maximiliano Hernández
Marcos e Encarnación Vela Sánchez. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 61-67.

HELLER, Herman. Metas y límites de una reforma de la constitución alemana. In:


HELLER, Hermann. El sentido de la política y otros ensayos. Tradução Maximiliano
Hernández Marcos e Encarnación Vela Sánchez. Valencia: Pre-textos, 1996, pp. 69-74.

HELLER, Hermann. Political Democracy and Social Homogeneity. Tradução David


Dyzenhaus. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.). Weimar: a
jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002 pp. 256-265.

HELLER, Hermann. Rechtsstaat oder Diktatur?. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1930.


Disponível em: http://reader.digitale-
sammlungen.de/de/fs1/object/display/bsb11127783_00005.html

HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Tradução Luís Tobio. México: FCE, 1998.

HENIG, Ruth. The Weimar Republic 1919-1933. Londres: Taylor & Francis e-Library,
2002.

HERRERA, Carlos Miguel. Schmitt, Kelsen y liberalismo. Doxa, Alicante, n. 21. fasc.
II, pp. 201-218, 1998.

HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio.


Coimbra: Almedina, 2012.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Mendes. Porto


Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991.

HESSE, Konrad. Constitución y Derecho Constitucional. In: BENDA, Ernst et. al.
Manual de derecho constitucional. Tradução de Antonio López Pina 2 ed. Madrid:
Marcial Pons, 2001, pp. 1-15.

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da


Alemanha. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor,
1998.

HONNETH, Axel. The limits of liberalism: on the political-ethical discussion


concerning communitarianism. In: HONNETH, Axel; WRIGHT, Charles W. (ed.).
The fragmented world of the social: essays in social and political philosophy. Nova
York: State University of New York Press, 1995, pp. 231-346.

HORTA, José Luiz Borges et al. A era pós-ideologias e suas ameaças à política e ao
Estado de Direito. Confluências, Niterói, v. 14, n. 2., pp. 120-133, dez. 2012.

357
HORTA, José Luiz Borges. Direito Constitucional da Educação. Belo Horizonte:
Decálogo, 2007.

HORTA, José Luiz Borges. Hegel e o Estado de Direito. In: SALGADO, Joaquim
Carlos; HORTA, José Luiz Borges (coord.). Hegel, Liberdade e Estado. Belo
Horizonte: Forum, 2010, pp. 247-264.

HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2012.

HORTA, José Luiz Borges. La Era de la Justicia Derecho, Estado y límites a la


emancipación humana, a partir del contexto brasileño. Astrolabio, Barcelona, n. 11, pp.
75-85, 2011.

HORTA, José Luiz Borges. Perfil e dilema do Direito à Educação. Revista da


Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 56, pp. 215-242, jan./jun. 2010.

HORTA, José Luiz Borges. Ratio juris, ratio potestatis; breve abordagem da missão e
das perspectivas acadêmicas da filosofia do Direito e do Estado. Revista da Faculdade
de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 49, pp. 121-132, jul./dez. 2006.

HORTA, José Luiz Borges. Teoria da Constituição: contornos epistemológicos. Revista


Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 6, pp. 346-357, jul./dez. 2005.

HORTA, José Luiz Borges; RAMOS, Marcelo Maciel. Entre as veredas da cultura e da
civilização. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, a. 58, n. 233, pp. 248-279, jul./dez.
2009.

HORTA, Raúl Machado. Permanência e mudanças na Constituição. Revista de


Informação Legislativa, Brasília, a. 29, n. 115, pp. 5-26, jul./set. 1992.

INGRAM, Attracta. Constitutional patriotism. Philosophy & Social Criticism, v. 22, n. 6,


pp. 1-18, nov. 1996.

JABLONER, Clemens. Hans Kelsen. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard


(org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002,
pp. 67-76.
JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional identity. The Review of Politics, Notre
Dame, v. 68, n. 3, pp. 361-397, 2006.

JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (ed.). Weimar: a jurisprudence of crisis.


Tradução Berlinda Cooper. Berkley: University of California Press, 2002.

JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard. Constitutional crisis the German and the
American Experience. In: JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (ed.).
Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002, pp. 1-
39.
358
JASPERS, Karl. The Question of German Guilt. Tradução E. B. Ashton. 2 ed. Nova
York: Fordham University Press, 2000.

JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Tradução Fernado de los Rios. México:
FCE, 2000.

JEAMMAUD, Antoine. En torno al problema de la efectividad del derecho. Crítica


Jurídica: Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, n. 1, pp. 5-15, 1984.
Disponível em:
http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/critica/cont/1/teo/teo1.pdf

JHERING, Rudolf von. A evolução do Direito. Tradução Abel D’Azevedo. Lisboa:


Antiga Casa Bertrand – José Bastos & C.a. – Editores, Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bd000048.pdf

KÄGI, Werner. La Constitución como ordenamiento jurídico fundamental del Estado:


investigaciones sobre las tendencias desarrolladas en el moderno Derecho
Constitucional. Tradução Sérgio Díaz Ricci e Juan José Reyven. Madrid: Dykinson,
2005.

KAHN, Paul W. The cultural study of Law: reconstructing legal scholarship. Chicago:
University of Chicago Press, 1999

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Tradução António Ulisses Cortês. 3 ed.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução Marylene
Pinto Michael. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

KLAMERT, Markus. The Principle of Loyalty in EU Law. Oxford: Oxford University


Press, 2014.

KELSEN, Hans. A Democracia. Tradução Ivone Castilho Benedetti et al. 2ed. São
Paulo, Martins Fontes, 2000.

KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípios. Tradução


Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da Constituição? In: KELSEN, Hans.
Jurisdição Constitucional. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 237-298.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges. 3
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

359
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 7 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.

KLEIN, Claus. Weimar. Tradução Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva,
1995.

KOLB, Eberhard. The Weimar Republic. Tradução P. S. Falla and R. J. Park. 2 ed.
Londres: Routledge Taylor and Francis Goup, 2004.

KORIOTH, Stefan. Rudolph Smend. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard


(org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002,
pp. 207-213.

KORIOTH, Stephan. The Shattering of Methods in Late Wilhelmine Germany. In:


JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard (org.). Weimar: a jurisprudence of crisis.
Berkeley: University of California Press, 2002 pp. 41-50.

KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado: os fundamentos históricos da


legitimidade do Estado Constitucional Democrático. Tradução Urbano Carvelli. Porto
Alegre: Sergio Antônio Fabris Ed., 2009.

LA TORRE, Massimo. Constitutionalism and Legal Reasoning. Dordrecht: Springer,


2007.

LA TORRE, Massimo. La crisi del novecento: giuristi e filosofi nel crepuscolo di


Wiemar. Bari: Dedalo, 2006.

LA TORRE, Massimo. Law as institution. Dordrecht: Springer, 2010.

LABAND, Paulo. Le droit public de l'Empire allemand. Tomo I. Tradução C.


Gandilhon. Paris: V. Girard & E. Brière, 1900. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5837819s.r=Laband%2C+Paul.langPT

LABAND, Paul. Le droit public de l'Empire allemand. Tomo II. Tradução C.


Gandilhon. Paris: V. Girard & E. Brière, 1901. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5758768j.r=Laband%2C+Paul.langPT

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução José Lamego. 3 ed.


Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.

LASSALE, Ferdinand. Qué es una Constitución?. Tradução W. Roces. Madri: Cenit,


1931. Disponível em: http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/libro.htm?l=2284.

LEAMAN, Jeremy. The decontamination of German history: Jürgen Habermas and the
‘Historikerstreit’ in West Germany. Economy and Society, v. 17, n. 4, pp. 518-520,
1998.

360
LEPSIUS, Oliver. El redescubrimiento de Weimar por parte de la doctrina del derecho
político de la República Federal. Historia Constitucional, Madri, n. 9, pp. 259-295,
2008. Disponível em: http://hc.rediris.es/09/index.html

LEVI, Lucio. Legitimidade. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política: v. 2.


Tradução João Ferreira et al. 13 ed. Brasília: Editora UnB, 2010, pp. 675-679.

LIMA VAZ, Henrique. Antropologia filosófica I. 4 ed. São Paulo: Loyola, 1998.

LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. 4 ed. São Paulo: Loyola,
2004.

LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia V: introdução à ética filosófica 2. São


Paulo: Loyola, 2000.

LIMA VAZ, Henrique. Ética e justiça: filosofar do agir humano. Síntese Nova Fase,
Belo Horizonte, v. 23, n. 75, pp. 437-453, 1996.

LINDHAL, Hans. Constituent Power and Reflexive Identity: Towards an Ontology of


Collective Selfhood. In: LOUGHLIN, Martin; WALKER, Neil (ed.). Pradox of
constitutionalism: constituent power and constitutional form. Oxford: Oxford University
Press, 2007, pp. 9-24.

LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus Democracy in Contemporary Europe, I.


The American Political Science Review. v. 29, n. 4, pp. 571-593, ago. 1935.

LOEWENSTEIN, Karl. Autocracy Versus Democracy in Contemporary Europe, II.


The American Political Science Review. v. 29, n. 5, pp. 755-784, out. 1935.

LOEWENSTEIN, Karl. Legislative Control of Political Extremism in European


Democracies II. Columbia Law Review, Nova York, v. 38, n. 5, pp. 725-774, mai. 1938.

LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The


American Political Science Review, Washington, v. 31, n. 3, pp. 417-432, jun. 1937.

LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The


American Political Science Review, Washington, v. 31, n. 4, pp. 638-658, ago. 1937.

LOEWENSTEIN, Karl. Political power and the governamental process. 2 ed. Chicago:
Chicago University Press, 1965.

LOEWENSTEIN, Karl. Reflections on the Value of Constitutions in Our


Revolutionary Age In: ZURCHER, Arnold J. Constitutions and Constitutional Trends
Since World War II: an examination of significant aspects of postwar public law with

361
particular reference to the new constitutions of Western Europe. 2 ed. Nova York: New
York University Press, 1955, pp. 191-224.

LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução Alfredo Gallego


Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel, 1976.

LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford: Oxford University Press,


2010.

LOUGHLIN, Martin. The concept of constituent power. European Journal of Political


Theory, v. 13, n. 2, pp. 218–237, 2014.

LOUREIRO, Isabel. A revolução alemão [1918-1923]. São Paulo: Editora UNESP,


2005.

LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 7 ed.
São Paulo, 1991.

LUCAS VERDÚ, Pablo. Carl Schmitt, interprete singular y máximo debelador de la


cultura político-constitucional demoliberal. Revista de Estudios Políticos (Nueva Época),
Madri, n. 64, pp. 25-92, abr./jun. 1989.

LUCAS VERDÚ, Pablo. El sentimiento constitucional (aproximación al estudio del


sentir constitucional como modo de integración política). Madri: Reus, 1985.

LUCAS VERDÚ, Pablo. La teoría escalonada del ordenamiento jurídico de Hans


Kelsen como hipótesis cultural, comparada con la tesis de Paul Schrecker sobre «la
estructura de la civilización». Revista de Estudios Políticos, Madri, n. 66, pp. 7-65,
out./dez. 1989.

LUCAS VERDÚ, Pablo. La lucha contra el positivismo jurídico en la República de


Weimar: la teoría constitucional de Rudolf Smend. Madri: Tecnos, 1987.

LUCAS VERDÚ, Pablo. Lugar de la teoria de la constitución en el marco del derecho


político. Revista de Estudios Políticos, Madri, vol. 188, pp. 5-20, mar./abr. 1973.

LUCAS VERDÚ, Pablo. Reflexiones en torno y dentro del concepto de Constitución.


La Constitución como norma y como integración política. Revista de Estudios Políticos,
n. 83, jan./mar. 1994.

LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constitución como ciencia cultural. Madrid,


Dykinson, 1998.

MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Constituição, soberania e ditadura em Carl


Schmitt. Lua Nova, São Paulo, n. 42, pp. 119-144, 1997.

362
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito. 2 ed.
São Paulo: Saraiva, 2011.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude: um estudo de teoria moral. Tradução


Jussara Simões. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Democracia e Poder Constituinte. In: SAMPAIO,


José Adércio Leite (org.). Quinze anos de constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004,
pp.115-128.

MAIA, Paulo Sávio Nogueira Peixoto. Forma e unidade como condições de uma
ciência pura: a influência do neokantismo de Marburgo no ‘primeiro’ Kelsen. Sequência
(UFSC), Florianópolis, v. 60, p. 195-224, 2010.

MATA MACHADO, Edgar da. Elementos de Teoria Geral do Direito. Belo


Horizonte: Editora da UFMG, 1995.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A norma fundamental de Hans Kelsen


como postulado científico. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte,
n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça: na obra de


Hans Kelsen. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; MILÃO, Diego. Decisionismo e


Hermenêutica Negativa: Carl Schmitt, Hans Kelsen e a afirmação do poder no ato
interpretativo do direito. Sequência, Florianópolis, n. 67, p. 111-137, dez. 2013.

MATOS, Manuel João. Rousseau e a lógica democrática. Lisboa, Edições Colibri,


2008.

MAYOS SOLSONA, Gonçal. 'Cultural is Political'. Libertad y reconocimiento


culturales. In: Actas de las Jornadas de Filosofía sobre la Libertad. Disponível em:
http://www.ub.edu/filosofia-estetica-cultura/sobrelalibertad/goncalmayos.html

MAYOS SOLSONA, Gonçal. G. W. F. Hegel. Vida, pensamento e obra. Tradução


Catarina Mourão. Barcelona: Planeta De Agostini, 2008.

MAYOS SOLSONA, Gonçal. Macrofilosofia de la modernidad. Barcelona: dLibros,


2012.

MAYOS SOLSONA, Gonçal. Prologo - Cultura, Historia y Estado: pensadores en


clave macrofilosófica. In: MAYOS SOLSONA, Gonçal; COELHO, Saulo Pinto;
GARCÍA COLLADO, Francis (eds.). Cultura, historia y Estado: pensadores en clave
macrofilosófica. Barcelona: La Busca, 2013, pp. 7-24.

363
MAZZONE, Jason. The creation of a constitutional culture. Tulsa Law Review, n. 40,
n. 4, pp. 671-698, 2004.

MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: Ancient and Modern. 2 ed. Ithaca:


Cornwell University Press, 1947.

MEZEY, Naomi. Law as culture. The Yale Journal of Law & the Humanities, New
Haven, v. 13, p.35-67, 2001. Disponível em:
http://scholarship.law.georgetown.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1310&context=facpub

MICHELS, Ralf. Legal Culture. Disponível em:


http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3012&context=faculty_schola
rship

MICHELMAN, Frank I. Morality, Identity and ‘Constitutional Patriotism’. Ratio Juris,


v. 14, n. 3, pp. 2533-271, set. 2001.

MIRANDA, Jorge. Controle da Constitucionalidade e Direitos Fundamentais. Revista


da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 21, pp. 61-84, 2003.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais - Tomo


IV. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.

MIRANDA, Jorge. Notas sobre cultura, Constituição e direitos culturais. O Direito,


Lisboa, a. 138, n. VI, 2006. Disponível em: http://www.fd.ulisboa.pt/wp-
content/uploads/2014/12/Miranda-Jorge-Notas-sobre-cultura-Constituicao-e-direitos-
culturais.pdf.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

MONEREO PÉREZ, José Luiz. La defense del Estado Social de Derecho: la teoría
política de Hermann Heller. Barcelona: El Viejo Topo, 2009.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução Cristina


Murachco. São Paulo: Martin Fontes, 2007.

MORAIS, Carlos Blanco de. Decisão, Decisores e Decisionismo. In: MORAIS, Carlos
Blanco de; PEREIRA COUTINHO, Luís Pedro (org.)Carl Schmitt Revisitado. Lisboa:
Instituto de Ciências Jurídico-Político, 2014, pp. 28-39.

MOREIRA, Nelson Camatta. A filosofia política de Charles Taylor e a política


constitucional de Pablo Lucas Verdú: pressupostos para a construção do sujeito
constitucional. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 8, pp. 15-54,
jul./dez. 2010.

MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo. Tradução Peter


Naumann. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
364
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia.
Tradução Peter Naumann. 5 ed. São Paulo: RT, 2010.

MÜLLER, Jan-Werner. Constitutional Patriotism. Princeton: Princeton University


Press, 2007.

MÜLLER, Jan-Werner; SCHEPPELE, Kim Lane. Constitutional patriotism: an


introduction. International Journal Constitutional Law, v. 6, n. 1, pp. 67-71, jan./mar.
2008.

MÜLLER, Jan-Werner. Militant Democracy. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ,


András. The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford
University Press, 2012, pp. 1253-1269.

MÜLLER, Jan-Werner. Seven ways to misunderstand constitutional patriotism. Notize


di POLITEIA, v. 25, n. 96, pp. 20-24, 2009.

MUREINIK, Etienne. A bridge to where? Introducing the interim Bill of Righs. South
African Journal On Human Rights, Johannesburg, n. 10, pp. 31-48, 1994.

MURKENS, Jo Eric Khushal. From Empire to Union: conceptions of German


Constitutional Law since 1871. Oxford: Oxford Press University, 2013 (eBook).

NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of National Socialism, 1933-
1944. Chicago: Ivan R. Dee, 2009.

NEUMANN, Franz. O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na


sociedade moderna. Tradução Rórion Soares Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

NEUMANN, Franz. The concept of Political Freedom. In: NEUMANN, Franz;


KICHHEIMER, Otto; SCHEUERMAN, William E. (ed.). The rule of Law under
Siege. Berkeley: University of California Press, 1996, pp. 195-230.

NEUMANN, Franz L. The decay of German democracy. In: NEUMANN, Franz L.;
KIRCHHIMER, Otto; SCHEURMAN, William E. (ed.). The Rule of Law under siege.
University of California Press: Berkeley, 1996, pp. 29-43.

NEUMANN, Volker. Carl Schmitt. In: JACOBSON, Arthur; SCHLINK, Bernhard


(org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkley: University of California Press, 2002,
pp. 280-290.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3 ed. São Paulo: Marins Fontes,


2013.

365
NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática:
mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 33 n. 132 , pp. 321-330, out./dez. 1996.

NIEMEYER, Gerhart. Prólogo. In: HELLER, Herman. Teoría del Estado. Tradução
Luis Tobío. México: FCE, 1998.

OTERO, Paulo. Instituições políticas e Constitucionais I. Coimbra: Almedina, 2007.

OTERO, Paulo. Lições de Introdução ao Estudo do Direito. Lisboa: Pedro Ferreira,


1999, v. I, t. 2.

PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica Filosófica e Constitucional. Belo Horizonte:


Del Rey, 2001.

PETROSKI, Karen. Is post-positivism possible? German Law Journal, v. l2, n. 02, 663-
692, 2011, Disponível em:
http://www.germanlawjournal.com/index.php?pageID=11&artID=1338

PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos


fundamentais sociais: A preponderância da Constituição da República Alemã de 1919
na inauguração do constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917.
República de Informação Legislativa, Brasília, a. 43, n. 169, pp. 101-126, jan./mar.
2006.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução Marlene Holzhause. 2 ed. São


Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

RAWLS, John. Kantian Constructivism in Moral Theory. The Journal of Philosophy, v.


77, n. 9, pp. 515-572, set. 1980.

RAZ, Joseph, The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism.
Oxford Legal Studies Research Paper n. 15, 2007, pp. 17-36. Disponível em:
http://ssrn.com/abstract=999873.

REALE, Miguel. Cinco temas do Culturalismo. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000

REALE, Miguel. Direito e Cultura. In: REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da


História. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 292-296.

REALE, Miguel. Direito e legitimidade. In: REALE, Miguel. Nova fase do Direito
Moderno. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, pp. 65-69.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

REALE, Miguel. Fontes de Modelos do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994.


366
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

RENAN, Ernst. ¿Qué es una nación?. Tradução Ana Kuschnir e Rosáio González Sola.
Buenos Aires: Hidra, 2010.

RICHE, Flávio. Desafios Hermenêuticos para a Teoria da Constituição


Contemporânea. Direito Público, Brasília, v. 1, n. 33, p. 177-196, mai./jun. 2011.

RINGER, Frank K. O declínio dos mandarins alemães: a comunidade acadêmica


alemã, 1890-1933. Tradução Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2000.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. A dogmática jurídica como controle do poder soberano:


pesquisa empírica e Estado de Direito. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL,
Flavia Portella; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (org.) Dogmática é conflito:
uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 75-87.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. As figuras de perversão do direito: para um modelo


crítico de pesquisa jurídica. Revista Prolegómenos – Derechos y Valores, Bogotá, v. 19,
n. 37, pp. 99-108 jan./jun. 2016.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Dogmática jurídica é conflito: a racionalidade jurídica


entre sistema e problema. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL, Flavia Portella;
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (org.) Dogmática é conflito: uma visão crítica
da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 21-31.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito: um estudo sobre o direito


contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009.

ROSALES, José Maria. Estudio preliminar: experiência constitucional e identidade


cívica. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional. Tradução Luis Villar
Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 11-52.

ROSENFELD, Michel. Constitutional identity. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ,


András (ed.). The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford:
Oxford University Press, 2012, pp. 756-776.

ROSENFELD, Michael. Modern Constitutionalism as interplay between identity and


diversity. In: ROSENFELD, Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and
Legitimacy: Theoretical Perspectives. Durham: Duke University Press, 1994, pp. 03-35.

367
ROSENFELD, Michel. The identity of constitutional subject: selfhood, citizenship,
culture and community. Nova York: Routledge, 2010.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. Tradução


Antonio de Pádua Danesi. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SÁ, Alexandre Franco de. O Ficcionalismo na emergência do decisisonismo


schmittiano. In: MORAIS, Carlos Blanco de; COUTINHO, Luís Pedro Pereira (org.).
Carl Schmitt Revisitado. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Político, 2014, pp. 06-17.

SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. A identidade do sujeito constitucional no


Brasil: uma visita aos seus pressupostos histórico-teoréticos na passagem do império
para a república, da perspectiva da forma de atuação do guardião máximo da
constituição. In: XVI Encontro Preparatório do Conpedi, 2007, Campos dos
Goytacazes - RJ, Anais Conpedi, 2007. pp. 98-117. Disponível em:
https://s3.amazonaws.com/conpedi2/anteriores/XVI+Encontro+Preparat%C3%B3rio+p
ara+o+Congresso+Nacional+-
+Campos+dos+Goytacazes+(13%2C+14+e+17+de+junho+de+2007).pdf

SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. Habermas e a desobediência civil. Belo


Horizonte: Mandamentos, 2003.

SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. Identidade do sujeito constitucional e


controle de constitucionalidade: raízes históricas da atuação do Supremo Tribunal
Federal. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2010.

SALDANHA, Nelson. Historicismo e Culturalismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro;


Recife: FUNDARPE, 1986.

SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

SALDANHA, Nelson. Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.

SALGADO, Joaquim Carlos. Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996.

SALGADO, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo:


fundamentação e aplicação do Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey,
2007.

SALGADO, Joaquim Carlos. O Espírito do Ocidente, ou a razão como medida; I - A


Cultura Grega: A descoberta da Razão. Cadernos de Pós-Graduação em Direito:
estudos e documentos de trabalho/Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da USP, São Paulo, v. 9, p. 6-22, 2012.

368
SALGADO, Joaquim Carlos. O Espírito do Ocidente, ou a razão como medida - II- A
Razão Teorética como medida: ciência e verdade. Cadernos de Pós-Graduação em
Direito: estudos e documentos de trabalho/Comissão de Pós-Graduação da Faculdade
de Direito da USP, São Paulo, v. 9, p. 23-38, 2012.

SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado ético e o Estado poiético. Revista do Tribunal


de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n.2, p. 03-34, 1998.

SALGADO, Karine. A filosofia da dignidade humana: a contribuição do alto medievo.


Belo Horizonte: Mandamentos, 2009.

SALGADO, Karine. A filosofia da dignidade humana: por que a essência não chegou
ao conceito? Belo Horizonte: Mandamentos, 2011.

SALGADO, Karine. História e Estado de Direito. Revista do TCEMG, Belo


Horizonte, v. 71, n. 2, pp. 102-113, abril-junho, 2009.

SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica


em Kant. Belo Horizonte: Decálogo, 2008.

SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. Kant e Kelsen. Revista Brasileira de Estudos


Políticos, Belo Horizonte, v. 96, pp. 343-358, jul./dez. 2007.

SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição e o pluralismo na encruzilhada: justiça


constitucional como guardiã das minorias políticas. Revista latino-americana de estudos
constitucionais. Belo Horizonte, n. 2, p. 79-131, jul./dez. 2003.

SAMPAIO, José Adércio Leite. Teorias constitucionais em perspectiva: em busca de


uma Constituição pluridimensional. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Crise e
Desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 3-54.

SANDEL, Michael. Liberalism and the limits of Justice. 2 ed. Cambridge, Cambridge
University Press, 1998.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2009.

SARMENTO, Daniel. A normatividade da Constituição e a Constitucionalização do


Direito privado. Revista EMERJ, v. 6, n. 23, pp. 273-297, jul./set. 2003.

SAVIGNY, Friedrich Carl van. Metodologia jurídica. Tradução J. J. Santa-Pinter.


Buenos Aires: Depalma, 1994.

SCHEUERMAN, William E. Between the norm and the exception: the Frankfurt
School and the Rule of Law. Cambridge: The MIT Press, 1994.

369
SCHLINK, Bernhard. German constitutional culture in transition. In: ROSENFELD,
Michel (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: Theoretical
Perspectives. Durham: Duke University Press, 1994, pp. 197-222.

SCHLINK, Bernhard. The constitutional subject and its identity: my german


experience. Cardozo Law Review, Nova York, v. 33, n. 5, pp. 1869-1873, 2012.

SCHLINK, Bernhard. Why Carl Schmitt? Constellations, Oxford, v. 2, n. 3, pp. 429-


431, out. 1993.

SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Tradução: Tito Lívio Cruz Romão. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007.

SCHMITT, Carl. O conceito do Político. In: SCHMITT, Carl; MOREIRA, Luís


(coord.). O conceito do Político/Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2009,
pp. 1-141.

SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do Pensamento Jurídico. Tradução Peter


Naumann. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a Fundamentação
do Direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 131-176.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del
Rey, 2006.

SCHMITT, Carl. Teología Política: cuatro capítulos sobre la doctrina de la soberanía.


Tradução Francisco Javier Conde e Jorge Navarro Pérez. Madri: Trotta, 2009.

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Tradução Francisco Ayala. Madri: Alianza


Editorial, 2011.

SCHMITT, Carl; MOREIRA, Luís (coord.). O conceito do Político/Teoria do


Partisan. Tradução Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

SCHNEIDER, Hans-Peter. La Constitución: función y estructura. In: SCHNEIDER,


Hans-Peter. Democracia y Constitución. Madri: Centro de Estudios Constitucionales,
1991, pp. 35-52.

SIEGEL, Reva. Constitutional Culture, Social Movement Conflict and Constitutional


Change: The Case of the de facto ERA – 2005-06 Brennan Center Symposium Lecture.
California Law Review, v. 94, n. 5, pp. 1323-1420, set./out. 2006.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7 ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.

370
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30 ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.

SILVA, José Afonso. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros,


2014.

SILVA, Luís Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: os direitos


fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008.

SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e


eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009.

SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In:


SILVA, Virgílio Afonso (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros,
2005, pp. 115-143.

SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Tradução José Mª Beneyto


Pérez. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1985.

SMEND, Rudolf.Integrationslehre. In: SMEND, Rudolf. Staatsrechliche


Abhandlungen und anderen Aufsätze. 4 ed. Berlim: Duncker & Humblot, 2010, pp.
475-481.

SMEND, Rudolf. Die Vereinigung der Deutschen Staatsrechtlehrer um der


Richtungsstreit. In: SMEND, Rudolf. Staatsrechtliche Abhanlungen: und andere
Aufsätze, 4 ed., Berlim, Ducker & Humblot, 2010, pp. 620-635.

SOUSA, Felipe Oliveira de. Entre o não-positivismo e o Positivismo jurídico: notas


sobre o Conceito de direito em Robert Alexy. Direitos Fundamentais & Justiça, Porto
Alegre, n. 14, pp. 297-324, jan./mar. 2011.

SOUZA, Jessé. A dimensão política do reconhecimento social. In: AVRITZER,


Leonardo; DOMINGUES, José Maurício (org.). Teoria social e modernidade no
Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, pp. 159-184.

STERNBERGER, Dolf. Conceito de pátria. In: STERNBERGER, Dolf. Patriotismo


Constitucional. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad Externado de
Colombia, 2001, pp. 53-83.

STERNBERGER, Dolf. La Amistad hacia al Estado. In: STERNBERGER, Dolf.


Patriotismo Constitucional. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad
Externado de Colombia, 2001, pp. 121-163.

STERNBERGER, Dolf. Observaciones en el coloquio sobre “Patriotismo”. In:


STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional. Tradução Luis Villar Borda.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 111-120.

371
STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1979). In: STERNBERGER,
Dolf. Patriotismo Constitucional. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad
Externado de Colombia, 2001, pp. 85-89.

STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional (1982). In: STERNBERGER,


Dolf. Patriotismo Constitucional. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad
Externado de Colombia, 2001, pp. 91-110.

STOLLEIS, Michael. A history of public law in Germany 1914-1945. Tradução


Thomas Dunlap. Oxford: Oxford University Press, 2004.

STOLLEIS, Michael. Der Methodenstreit der Weimarer Staatsrechtslehre – ein


abgeschlossenes Kapitel der Wissenschaftsgeschichte? Steiner: Stuttgart 2001.

STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany, 1800-1914. Tradução Oxford: Berghahn


Books, 2001.

STRECK, Lênio. A interpretação da constituição no Brasil: breve balanço crítico.


Revista Paradigma, Ribeirão Preto, a. 17, n. 21, pp. 2-35, jan./dez. 2012.

STRECK, Lênio Luiz. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de


princípio: dilemas da crise do direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 49
n. 194, pp. 07-21, abr./jun. 2012.

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica
da construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

STRECK, Lênio. Intervenção. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.).


Canotilho e a Constituição Dirigente. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 79-85.

STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e


Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. Novos
Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2, pp.257-301, mai/ago. 2003.

STRECK, Lênio. La jurisdicción constitucional y las posibilidades de concreción de los


derechos fundamentales sociales. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional,
Madri, n. 11, pp. 369-405, 2007.

STRECK, Lênio Luiz. Os meios e acesso do cidadão à jurisdição constitucional, a


arguição de descumprimento de preceito fundamental e a crise de efetividade da
Constituição brasileira. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de
Souza (coord.). Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
2001, pp. 249-294.

372
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito.
Tradução Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

TAYLOR, A. J. P. The Course of German History: a survey of the development of


German history since 1815. Taylor and Francis e-Library, 2005 (eBook).

TAYLOR, Charles. Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Tradução


Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola,
2005.

TAYLOR, Charles. Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário. In:


TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São
Paulo, Edições Loyola, 2000, pp. 197-220.

TAYLOR, Charles. Two Theories of Modernity. Public Culture, Durham, v. 11, n. 1,


pp. 153-174, inverno, 1999.

TEUBNER, Günther. Juridification: concept, aspects, limits, solutions. In: TEUBNER,


Günther (ed.). Juridification of Social Spheres: a comparative analysis in the areas of
labor, corporate, antitrust and social welfare law. Berlim: Walter de Gruyter, 1987, pp.
3-48.

TUSHNET, Mark. How do constitutions constitute constitutional identity?


International Journal of Constitutional Law, Nova York, v. 8, n. 3, pp. 671-676, 2010.

TYLOR, Edward B. Primitive Culture: researches into the development of mythology,


philosophy, religion, language, art, and custom, v. I. 6 ed. Londres: Murray, 1920.
Disponível em:
https://archive.org/stream/primitiveculture01tylouoft#page/n17/mode/2up

VALLE, Jaime. O princípio da lealdade institucional nas relações entre os poderes


públicos: alguns aspectos gerais. Revista Direito e Política, Loures, n. 1, pp. 62-72,
out./dez. 2012.

VEGA GARCÍA, Pedro de. Apuntes para una historia de las doctrinas constitucionales
del siglo XX. In: VEGA GARCÍA, Pedro de et al. La ciencia del derecho durante el
siglo XX. México: UNAM, 1998, pp. 3-44.

VERDROSS, Alfred. La filosofía del derecho del mundo occidental: visión panorámica
de sus fundamentos y principales problemas. Tradução Mario de La Cueva. 2 ed.
México: UNAM, 1983.

VOGEL, Bernhard. Dolf Sternberger, Vater des Verfassungspatriotismus. Die


Politische Meinung: Integrationsland Deutschland, n. 452, pp. 69-72, jul. 2007,
Disponível em: http://www.kas.de/wf/de/33.11323/

373
VORLÄNDER, Hans. What is “constitutional culture”?. In: HENSEL, Silke et al.
Constitutional Cultures: On the Concept and Representation of Constitutions in the
Atlantic World. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012, pp. 21-
42.

VITA, Leticia. La legitimidad del Derecho y del Estado en el pensamiento jurídico de


Weimar: Hans Kelsen, Carl Schmitt y Hermann Heller. Buenos Aires: Eudeba, 2014.

WALZER, Michael. The Communitarian Critique of Liberalism. Political Theory, v.


18, n. 1., pp. 6-23, fev. 1990, 7-9

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe


Barbosa. 4 ed. Brasília: Editora UnB, 2014, vol. 1.

WIEACKER, Fraz. História do Direito Privado Moderno. Tradução António Manuel


Hespanha. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.

ZAGREBELSKY, Gustav. El derecho dúctil: Ley, derechos y justicia. Tradução Marina


Gascón. 10 ed. Madri: Trotta, 2011.

ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: ZOLO, Danilo; COSTA,
Piero (org.). O Estado de Direito: história, teoria e crítica. Tradução Carlos Alberto
Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 3-94.

374
RESUMO

A Teoria da Constituição surge no contexto da Constituição de Weimar, na


década de 1920 e primeiros anos da década de 1930, com os debates a respeito da
Teoria do Estado, do Direito do Estado e da própria Constituição alemã. Teve
como marco inicial a formulação kelseniana, que foi seguida por várias respostas.
Dentre estas, são muito importantes para a compreensão do Estado Democrático
de Direito as formulações que propuseram abordagens dialéticas do fenômeno
constitucional e que deram maior atenção às questões da legitimidade, da validade
e da eficácia da constituição, mas, especialmente, à relação que elas guardam entre
si. A abordagem da experiência constitucional desde a chave da cultura
constitucional almeja evidenciar essa relação a partir de basicamente três
dimensões, que também se articulam: a identidade do constitucionalismo, a
identidade constitucional e a cultura de constituição. Com elas, assume-se que
uma ordem que se pretende constitucional fundamenta sua legitimidade em uma
dada identidade do Ocidente bastante identificada com o próprio
constitucionalismo, que, por sua vez, demanda sua articulação com as culturas e
identidades locais formando uma nova e única leitura, uma nova identidade
constitucional. Esta nunca é pronta e terminada, mas se faz viva no mesmo
momento que é vivida, construída, desconstruída e reconstruída na e pela
comunidade jurídico-política. Uma identidade que é reflexo dessa coletividade, ao
mesmo tempo em que se coloca para ela como um projeto normativo,
demandando-lhe tarefas e transformações. Para tanto, a própria possibilidade de
se realizar tais tarefas tem como ponto fulcral a consolidação e o reafirmar de uma
cultura de constituição que se põe em referência a essas duas identidades, a mais
ampla do constitucionalismo e a mais específica da identidade constitucional,
representando a própria garantia interna de eficácia de uma constituição. A esse
passo, uma ordem constitucional tem sua eficácia bastante vinculada ao próprio
reforço e amiúde reconciliar de sua legitimidade na comunidade. E, por isso, é
possível afirmar que a constituição coloca-se como uma unidade cultural,
integrante e integradora, da comunidade e de seus cidadãos.

Palavras
Palavras Chave:
Chave Cultutra Constitucional – Constitucionalismo – Identidade
Constitucional – Cultura de Constituição – Legitimidade – Validade – Eficácia

375
ABSTRACT

The Theory of Constitution appears in the Weimar Constitution context, with the
debates of the 1920’s, and early 1930’s, about the Theory of the State, the Law of
the State and the German Constitution itself. The very start was the Kelsenian
formulation that was followed by different answers including those ones
characterized by a dialectical perspective of the constitutional phenomenon, which
are very important to the comprehension of the democratic Rechtsstaat. With
them, there were a special attention to the issues of legitimacy, validity and efficacy
of Constitution, especially, to the relation between them. The approach to the
constitutional experience since the key constitutional culture intents to evidence
these relations from three basic dimensions: the identity of the constitutionalism,
the constitutional identity and the culture of constitution. With them it is assumed
that an order intended as constitutional bases its own legitimacy on a particular
Western identity very identified with constitutionalism, which demands the
articulation between local identities and cultures, conforming and building a very
new and unique reading: a new constitutional identity. This one is never
completely ready or finished, it becomes alive at the very same time that it is lived,
constructed, deconstructed and reconstructed in and by the juridical-political
community. An identity that reflects this collectivity at the same time it proposes
itself as a normative project to it, demanding tasks and transformations to the
community. Therefore, the possibility of such tasks has as central topic the
consolidation and the reaffirmation of a culture of constitution, linked to these two
identities, the broader one of the constitutionalism and the narrower one of a
constitutional identity, which is the internal guarantee of efficacy and effectiveness
of a Constitution. Hence, a constitutional order has its effectiveness rather linked
to the strengthening and often reconciliation of its legitimacy in the community. In
these terms it is possible to affirm that the Constitution stands as a cultural unit,
integrant and integrated, of the community and its citizens.

Keywords:
Keywords: Constitutional Culture – Constitutionalism – Constitutional Identity –
Culture of Constitution – Legitimacy – Validity - Efficacy

376

Você também pode gostar