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Capítulo I - A Justiça e o Direito Superpositivo A Justiça: A Justiça Como Condição Da Sociedade - A Justiça Universal

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Capítulo I - A Justiça e o Direito Superpositivo A Justiça: A Justiça Como Condição Da Sociedade - A Justiça Universal

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Capítulo I – A Justiça e o Direito Superpositivo

A Justiça
A justiça como condição da sociedade – a justiça universal

A Idade Média não teorizou o direito como um complexo autónomo, mas sim enquanto função da justiça.

A justiça foi, para os homens dessa época, o fundamento da vida social. Sem ela, seria impossível uma
convivência organizada, a manutenção da comunidade política, e a conceção do povo como grupo
humano. A sociedade não traduzia uma consequência automática e inevitável de uma ordem pré-
estabelecida pela suprema vontade de Deus ou por leis da natureza, mas sim o resultado do múltiplo e
diversificado trabalho humano tendente à realização da perfeição individual.

A ordem social representava uma projeção comunitária da condição dos seus membros, logo, sendo os
homens justos, justa seria a sociedade. Os estoicos e Platão queriam um governo político nas mãos dos
filósofos, perguntando-se como poderia ser a sociedade imperfeita, sendo injusta, se os homens forem
perfeitos; a perfeição identifica-se, pois, e necessariamente, com a justiça.

A plenitude individual mutuamente dependente à configuração justa da vida coletiva pressupõe a adoção
da lei divina e natural pelo homem.

Quem só tivesse vontade de respeitar a justiça de forma casual não seria justo, era necessária uma
habitualidade. A justiça traduzia-se numa virtude, definida como: habitus operativus bonus, o hábito bom
orientado para a ação. Aperfeiçoando e fortalecendo as potencialidades do homem, praticar uma ação
virtuosa desenvolve-lhe naturalmente a capacidade de agir virtuosamente ao promover as capacidades de
governar os sentidos e as paixões. A ideia de que “A justiça é o hábito de ânimo que, guardando o bem
comum, atribui a cada um aquilo de que é digno” foi consolidada por diversos autores.

A virtude forma-se pela repetição de atos livres praticados a partir de propensões nobres, ou pela correção
de características psíquicas de cada homem realizada mediante reflexões. Assim como o hábito de
praticar atos maus acaba por comandar o homem, constituindo vícios que lhe deformam ou anulam a
vontade, a prática de atos virtuosos fortalece-lhe a possibilidade de se tornar virtuoso, podendo até dizer-
se que se torna perfeito.

Este conceito de justiça foi particularmente importante como elemento determinante da observação do
direito, e foi igualmente saliente como base suscetível de apresentar à ciência do direito pontos de
contacto entre este e a moral, sendo o maior fator comum entre ambos.

Pode dizer-se que, mesmo no que toca ao direito, a ideia de justiça assim concebida funcionou sobretudo
como um elemento crítico, evidenciando o seu papel social. A partir dela, teorizaram-se mesmo as regras
de diferente natureza disciplinadores da vida em sociedade.

A justiça particular – conceito

A ideia de justiça, como conjunto de todas as virtudes, coexistiu com a conceção de justiça como virtude
específica, denominada de justiça particular. A justiça particular separa-se da justiça universal, pois
enquanto esta considera sobretudo o mundo intra-subjetivo (dentro da pessoa), a justiça particular
considera o campo das relações inter-subjetivas (entre pessoas). Nisso distingue-se também das virtudes
específicas que regulam a conduta do próprio agente para consigo, como a paciência e a temperança,
mas não fica suficientemente caracterizado. Outras virtudes, como a caridade e a gratidão, regulam
igualmente a nossa conduta em relação aos demais. Só, pois, a separação da justiça face a elas
consentirá circunscrevê-la.

Para Aristóteles, consideravam a justiça segundo a sua especificidade do respetivo objeto imediato: a
atribuição do seu a cada qual. Santo Agostinho proclamou que “a justiça é a virtude que dá a cada um o
seu”, enquanto para Ulpiano “a justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o seu direito”.
Esta ideia de justiça como vontade permanente de dar a cada um o seu é encontrada nas mais diferentes
fontes e em pensadores de todos os quadrantes, sendo múltiplos os juristas que a acolheram e
comentaram.

A justiça particular – a determinação do seu

A definição de justiça precisa, para não ficar circunscrita a um parâmetro meramente formal, de ser
reportada à determinação do seu. A ideia de que a justiça representa mera noção abstrata e, como tal,
inúteis para fundamentar o direito ou mesmo determinar conteúdos concretos de uma ordem jurídica deve
ser esquecida.

Como é que se determina o seu a respeitar pela justiça? Primeiro, Cícero e Séneca ligaram a justiça à
natureza, como sendo um princípio ordenador e fundida à racionalidade do homem; depois, com a
cristianização do pensamento de Cícero por alguns autores, os mesmos ensinam que o seu é determinado
pelo direito natural. Há ainda quem defenda que a ideia medieval de justiça tem uma natureza derivada,
visto que deriva do direito natural.

A determinação desse seu traduzia-se num trabalho cognitivo, feito através da prudência, que os
intelectuais da época definiram como virtude suscetível de permitir distinguir entre o bem e o mal, o devido
do indevido. A jurisprudência era, então, a prudência específica da ação jurídica.

A este propositivo convém acentuar que o trabalho deliberativo consubstancial à determinação da justiça
não pode ser configurado como operação de lógica formal, devida à circunstância de ela se apresentar
como instrumento da receção da ordem natural. Assentava, antes, na consideração do seu como algo
ordenado aos fins de alguém. Segundo S. Tomás, o seu deve ser pensado em função da adaptação não
só de cada pessoa a um fim específico, mas também considerando o facto de existirem múltiplas pessoas
com diversos interesses. Como consequência, ninguém pode ser privado do que for necessário à
realização do seu fim ditado pela natureza respetiva, e de tudo o que lhe é útil apenas lhe ser devido
enquanto não prejudicar os demais considerados. Por isso, entendeu-se não ser contra a justiça a
expropriação feita para a vantagem da comunidade de um bem legitimo de alguém, embora tal ação não
correspondesse à ideia de atribuição do seu.

Com a natureza da justiça e o propósito desta determinados, impunha-se ainda uma determinação
quantitativa do trabalho humano, sob pena de não haver consideração casuística da ação a desenvolver
conforme as circunstâncias. Ela processou-se pela ponderação das diferentes modalidades da justiça.

As modalidades da justiça

Há tentativas diferentes de ordenar as várias modalidades de justiça. Álvaro Pais enumera a justiça para
com Deus (latria), para com as criaturas merecedoras de honra e consideração (latria), para com os
superiores (obediência), para com os inferiores (disciplina), para os iguais (equidade). Já a filosofia
escolástica, seguindo Aristóteles, distinguia entre dois tipos de justiça particular: a justiça comutativa e a
justiça distributiva. A primeira dizia respeito às relações entre iguais (pessoas privadas); a segunda às
relações da comunidade com os seus membros, já que a relação destes com aquela parece ter sido
integrada na justiça geral e não na particular.

O objetivo típico da justiça comutativa é a troca ou comutação. Nela, requer-se absoluta igualdade entre o
que se dá e o que é recebido, havendo dever de restituir quando assim não ocorre. Por isso, a justiça
significa igualdade e tem uma base quantitativa.

O campo de aplicação da justiça distributiva é o das relações do conjunto político com as pessoas
individualmente consideradas. Ela impõe que os representantes da comunidade repartam os deveres
segundo a capacidade de resistência de cada membro e os bens públicos e prémios de acordo com a
respetiva dignidade e mérito. Esta não exige, portanto, uma igualdade absoluta, e acaba mesmo por
rejeitá-la, pois tratar igualmente tudo o que é desigual traduzir-se-ia numa desigualdade. Requer, contudo,
que a relação entre o mérito e a recompensa, a capacidade e o dever, seja a mesma e igual para todos. A
quem pode trabalhar mais que os outros, deve-se exigir-lhes mais, na exata proporção da capacidade de
trabalho.

A justiça objetiva

Ao lado das conceções anteriores vamos encontrar nos juristas da época a ideia de uma justiça objetiva,
formada pela justiça plena e normativa.

Tal ideia tem origem na patrística clássica. Ligada a justiça à vontade, a consideração da justiça divina a
isso havia de conduzir. Pois, em Deus, a vontade constituía, em si mesma, um cânone, pela confusão do
subjetivo com o objetivo, pela coincidência do aspeto voluntário com o deliberativo, por causa da
omnisciência e perfeição divina. Por isso, a justiça na sua forma pura, identificava-se com o próprio Deus,
assim como com Ele se identificava o direito natural. Ora, sendo Deus o modelo dos homens, feito à Sua
imagem e semelhança, seguia-se, naturalmente, a consequência de uma justiça humana também objetiva,
embora não perfeita, e apenas reflexo da justiça divina. A própria natureza racional, que tendia para o
Criador, a isso conduzia.

Enquanto justiça subjetiva tem variações, justiça objetiva deve permanecer inalterada. A justiça é subjetiva,
na medida que é necessário avaliar cada caso concreto. A justiça objetiva é paradigma de conduta justa
que se possa impor objetivamente na vida em sociedade; conteúdo da justiça humana objetiva é
determinado com recurso à ideia do homem médio (bonus pater familias).

Justiça e direito

O pensamento medieval concebeu a justiça como causa do direito. Entre a justiça e o direito, a diferença
residia no facto de este traduzir aquela mediante preceitos autoritariamente fixados. O direito era, assim,
apenas um instrumento de revelação da justiça. Também, só tendo presente as conceções de justiça antes
referidas se compreenderão a disciplina medieval dos contratos, a teoria da pena como sanção
equivalente do crime, a ordenação social estipulante de direitos e deveres não uniformes para todos os
homens.

Aqui a fundamentação, última e teórica, encontrava-se na doutrina da justiça distributiva, casando-se a


conceção subjetiva com a objetiva. É que o homem médio requerido por esta se contruía com referência a
deveres e direitos decorrentes de estados diversos, conforme se vê nos manuais de exemplos e nas
apologéticas da época.

O Direito Suprapositivo e o Direito Humano


O direito divino

Para o homem medieval, existe uma pluralidade normativa, com uma normatividade complexa.

O direito situa-se não apenas no plano humano, decorre também de uma realidade que ultrapassa o
homem – Deus, daí que se possa falar de direito divino. Este conceito deve ser entendido com precisão
terminológica, pois na Idade Média aludia-se indiferentemente, por vezes, a direito divino e direito natural.
São Tomás de Aquino vem, então, distinguir os dois: o direito divino provém de Deus, e é-nos revelado
através das Sagradas Escrituras; já o direito natural é o que está inscrito nos corações dos Homens e que
lhes permite distinguir o bem do mal, sendo isto um reflexo da razão e vontade de Deus (lei eterna).

Da lei eterna ao direito natural

Para Santo Agostinho, a lei eterna é a razão e vontade de Deus, que manda conservar a ordem natural e
proíbe que ela seja perturbada, e a lei natural foi inscrita por Deus no coração do homem.

De acordo com o ensinamento do Doutor Angélico, existem quatro espécies de leis – a lei eterna, a lei
natural, a lei divina e a lei humana. A lei eterna é a própria razão de Deus, governadora e ordenadora de
todas as coisas, e dela procedem a lei natural e a lei divina. A primeira foi definida por S. Tomás como uma
participação da lei eterna na criatura racional que lhe permite distinguir o bom e o mau. Também a lei
divina é uma participação da lei eterna. Simplesmente, a lei divina foi revelada expressamente por Deus
para que o homem pudesse, sem dúvidas, ordenar-se em relação ao seu fim sobrenatural.

Pluralidade de entendimentos quanto ao direito natural

O direito natural não se apresenta como conceito unívoco. Na Idade Média assiste-se, em volta do direito
natural, a uma pluralidade de noções e fundamentações, por vezes, dificilmente conciliáveis, ou até
mesmo contraditórias entre si.

Na base do ensinamento de Gaio, houve quem concebesse o direito natural como eminentemente
racional; Ulpiano, por outro lado, relata que o direito natural teria como base o instinto, comum a seres
racionais e irracionais.

Esta problemática em torno do carácter racional ou não do direito natural não deve ser confundida com
uma outra centrada nos debates entre racionais e voluntaristas, debates estes que se situam em um nível
completamente distinto. Relata-se o direito natural como derivação da lei eterna e à conceção desta como
ratio ou voluntas. Enquanto um setor importante do pensamento medieval se orienta no primeiro sentido,
outro alinha-se pelo segundo. Entre nós foi, sobretudo, a corrente racionalista que, por influência de S.
Tomás, teve maior implantação.

Por outro lado, frente a uma conceção sacral, em que a lei natural se subsume, condensa ou confunde
com o Evangelho e até com a lei mosaica, contida no Antiga Testamento, surge outra, “mais profana, mais
filosófica”, em que “a um universo sacral regido por Deus a seu bel-prazer, sucede um cosmos ordenado,
feito de seres submetidos às leis naturais”. E se é certo que Deus, fonte e origem de tudo e da natureza,
não foi banido do processo, desde então “o direito natural, muito inspirado que seja por Deus, situa-se ao
lado do direito positivo divino”.

Enquanto para Santo Agostinho, o direito natural foi dado por Deus desde a criação do homem, para Alain
de Lille deriva-se da natureza, conceito vago e fluido, que acaba ligado a Deus. Um caso, porém, o direito
natural vem de Deus para o homem; noutro caso, provém da realidade das coisas, do mundo físico, para
adquirir, depois, conotação moral, na medida em que a natureza é força agente de Deus. Ou seja, além do
direito natural ter força agente e causa eficiente Deus, a natureza é o agente primário e deus apenas
causa remota.

Identificado com a lei evangélica, com o direito divino positivo, torna-se fácil admitir um poder
dispensatório do Papa, representante do Senhor, idêntico ao que detém frente à lei positiva, à lei humana.
Já o mesmo não sucederá para quantos o reconduzem em primeira linha às leis da natureza, imutáveis e
validas em quaisquer circunstâncias.

Importância da lei divina e da lei natural no quadro normativo medieval

A lei divina e a lei natural assumem, no pensamento medieval, um valor que condiciona todo o setor
jurídico e político.

No período que nos inserimos agora, pode-se discutir o que fosse o direito ou a lei divina, mas não a
existência dessa ordem jurídica. A necessidade de ela ser respeitada pelos governantes representava um
dado indiscutível. Os governantes não estavam, aliás, apenas subordinados à lei divina, mas também à lei
natural. No Decretum de Graciano afirma-se expressamente o seu primado temporal e hierárquico sobre o
costume e as constituições terrenas.

Através dos debates acerca ad fonte e especificidade do direito natural, ele configura-se como algo de
transcendente em relação aos titulares do poder e como verdadeira ordem normativa, obrigatória ou
vinculatória. Tratava-se de um setor jurídico que se sobrepunha à vontade dos governantes e dos
súbditos, de todo e qualquer membro da comunidade, por anterior ao próprio poder político e à
coletividade. A justiça e o direito natural e divino são critérios da própria legislação dos governantes.

Valor jurídico dos atos contra a lei divina e natural


Qual é a consequência, porém, de a norma de direito humano não respeito o preceito divino ou natural?
Tal norma não possui, consequentemente, qualquer valor. O ordenamento positivo, incluindo não apenas
as leis humanas, mas também o costume, só pode mesmo subsistir e obter o nome de direito desde que
articulado segundo a regra divina e natural. Os próprios textos legais e os monarcas o afirmam.

Justificando a sua lei contra a vindicta privada, D. Afonso IV declara que a vindicta não era verdadeiro
costume, por contrário à lei de Deus e à lei natural. A partir daqui coloca-se, inevitavelmente, um problema
de obediência ou não obediência, e entra-se já no campo das relações entre o dever de obediência e o
direito de resistência. Sem grandes oscilações, os teóricos medievais entendiam que não se estava
obrigado a observar, nem se devia observar, quanto fosse determinado em desconformidade com as
normas últimas.

O princípio da imutabilidade e inderrogabilidade do direito divino e do direito natural

A imobilidade e eternidade do direito divino e do direito natural conduziria a uma petrificação ou


estagnamento. Por isso, os interpretes foram obrigados a procurar vias de flexibilidade e acomodação.
Enquanto os teólogos estabeleciam, a respeito do direito divino, uma destrinça entre preceitos móveis e
imóveis (aqueles com diversa possibilidade de modificação, consoante a sua natureza), os canonistas
distinguiam, relativamente às normas jusnaturalísticas, entre as preceituam ou ditam, as que proíbem ou
interdizem e as que demonstram, aconselham ou permitem. Apenas a norma imperativa que ordena ou
impede seria intocável.

Outa separação tinha lugar, quanto ao direito natural, em preceitos primários e secundários, os últimos
reconhecidos em geral como suscetíveis de certa variação. Discute-se atualmente se a lei natural é
apenas constituída por princípios gerais ou inclui também princípios mais especificamente formulados,
sendo alguns dos seguidores desta opinião os últimos suscetíveis de certa variação.

S. Tomás distinguia entre os princípios gerais ou primários, uns auto-evidentes para todos e outros auto-
evidentes, mas ano imediatamente para todos. Para além destes, existem outros mais particulares, que S.
Tomás designa preceitos secundários. Quanto a estes, admite uma certa possibilidade de variação,
parecendo, contudo, ser de fazer entendimento bastante restritivo do seu pensar.

Seja como for, interessa é considerar que historicamente se admitiu a variabilidade de uma parte do direito
natural, embora meramente aparente ou superficial, o que permite compreender e justifica a possibilidade
de determinada ação ser considerada num momento conforme e noutro contrário àquele direito. O espírito
dele devia, porém, permanecer intacto.

Não se processou a tarefa exegética apenas mediante as distinções acabadas de referir, mas também
com auxílio ao instituto da dispensa. Ainda neste campo com uma posição doutrinal e logica que não
admitia a dispensa do direito divino e nem sequer a do direito natural, veio enfrentar-se uma outra que em
nome de critérios de equidade admitia a exceção à regra, desde que houvesse causa. Esta era entendida
mais ou menos rigoristicamente.

Facilitaram as contadas linhas de flexibilidade, a partir da relação entre o direito divino e o direito natural
com o Sumo Pontífice, por um lado, a ideia de que sendo este representante de Deus lhe estava conferido
o próprio poder do Senhor; por outro, a confusão entre o direito natural e o direito divino.

Direito suprapositivo e supralegal – O “ius gentium”

O estudo histórico do direito implica, assim, a consideração de uma ordem jurídica que ultrapassa os
governantes, de uma ordem suprapositiva que se estende a todos. Por isso mesmo, não faltou quem, a
propósito do direito natural, o qualificasse como lei ou direito comum.

Haverá que ter em consideração, pelo que já atrás largamente ficou escrito, preceitos que, sendo de
origem humana, situam-se, contudo, para lá do espaço nacional ou do espaço político concreto – o que se
designará por direito supra regna.
Impõe-se, contudo, ainda uma referência ao direito das gentes (ius gentium). Este situa-se entre dois
planos, na medida em que, por extensão ou consequência do direito natural, é já direito humano, mas
universal ou para-universal.

Do ordenamento jusnaturalístico provêm o direito das gentes e o direito civil. Quanto ao primeiro, deriva-se
a modo de conclusões; o segundo, como determinações. O ius gentium constitui norma comum a todos os
povos, havendo também quanto a ele que distinguir entre preceitos primários e preceitos secundários; os
primeiros são apenas passíveis de nuda interpretatio, os últimos são suscetíveis de abrogação ex causa.

O ius gentium era concebido como direito costumeiro, posterior ao direito natural e anterior a qualquer lei
escrita. Se o direito natural existe desde os primórdios do género humano, o ius gentium aparece depois
do pecado original e das consequências dele.

Capítulo II – Direito Positivo “Supra Regna”. O Direito Canónico e o Direito Romano


Noção introdutória

Entre os ordenamentos jurídicos, o direito canónico tem grande relevância. Trata-se de um direito que
podemos designar por supra-estatal, no sentido de algo que se encontra num plano superior ao dos reinos
ou áreas políticas diferenciadas existentes naquela época. Na verdade, no primeiro período da história do
direito em Portugal, encontramo-nos ainda longa da figura jurídico-política do Estado. Aparecem-nos, sim,
figuras antecedentes e alternativas como “regnum”, “respublica”, “satus rei publicae”, coroa…

O direito canónico pode ser genericamente definido como o conjunto de normas jurídicas relativas à Igreja.
Mais exatamente é o complexo de cânones ou leis estabelecidas, propugnadas ou aprovadas pela
autoridade eclesiástica. Por cânone, entendemos como norma ou regra. Particularmente opõem-se as
normas que são os cânones, às normas que são as leis civis ou seculares.

Na Idade Média, todavia, por cânones entendiam-se, consoante a lição fundamental de Graciano, os
decretos do Sumo Pontífice e as estatuições dos concílios.

Fontes do direito canónico

As fontes de direito são os modos de formação e revelação do direito. Quanto aos modos de formação, o
problema reconduz-se à origem ou autoria das normas; quanto à revelação, situamo-nos no capítulo do
conhecimento dos monumentos ou coleções de monumentos de que consta o direito. No primeiro caso,
reportamo-nos às fontes essendi, existendi ou materiales; no segundo, às fontes cognoscendi, notitiae ou
formales.

Sagrada escritura, tradição e costume

Entre as fontes de direito canónico, têm especial importância as Sagradas Escrituras, a tradição e o
costume.

As Escrituras Sagradas abrangem o Antigo e o Novo Testamento. O Antigo contém preceitos cerimoniais,
respeitantes ao culto, preceitos judiciais, que diz respeito ao povo de Israel enquanto sociedade qua talli, e
preceitos morais. No Novo Testamento há preceitos de direito divino, isto é, estatuições obrigatórias dos
Evangelhos, de direito divino-apostólico, que é o desenvolvimento dos preceitos de direito divino levados a
cabo pelos apóstolos, e de direito apostólico, ditado pelos apóstolos na sua atividade evangelizadora.

A tradição, conhecimento translatício escrito ou oral, de um ato de autoridade, classifica-se de várias


formas. Nomeadamente, fala-se em tradição inhesiva, declarativa e constitutiva, consoante se reporta a
matérias explicitas, implícitas, ou nem implícitas nem explicitas versadas pelas Sagradas Escrituras.

O direito do Novo Testamento, revelado pelas Sagradas Escrituras e pela tradição, constitui a fonte
principal de direito da Igreja Católica.

Quanto ao costume, norma resultante dos usos da própria comunidade e acompanhada da convicção de
obrigatoriedade, ocupou lugar importante desde os tempos da Igreja primitiva, em que assumiu o papel de
modo de suprimento de lacunas da legislação. Segundo alguns pontífices, o costume estava subordinado
à razão, à fé e à verdade, pois não prevalecia contra elas.

Os problemas com o costume aparecem depois do renascimento do direito romano nos séculos XII e
seguintes. Coloca-se a questão da articulação do costume com a lei, especialmente nos casos do costume
contra legem. Graciano rejeita costume contrário à lei, mas os decretistas posteriores admitem-no, desde
que consentido pelo Papa. De qualquer modo, não só a antiguidade e a racionalidade eram consideradas
geralmente requisitos do costume, mas também a consensualidade, isto é, a aceitação da comunidade,
consoante se especificará ao tratarmos particularmente do costume no quadro das fontes do nosso direito.

Cânones e decretais

Com a qualificação de fontes canónicas de direito humano são de hábito apontados pelos canonistas além
do costume, os cânones, as decretais, a doutrina e as concórdias ou concordatas.

De acordo com a sua origem, classificam-se estas fontes em eclesiásticas e místicas. Há quem fale
também de fontes civis (de direito humano canónico), a propósito das disposições sobre matéria
eclesiástica contidas nas grandes compilações jurídicas seculares, como por exemplo o Código de
Justiniano, etc.

Por cânones entendem-se aqui as determinações conciliares, ou seja, a palavra cânone é utilizada agora
num sentido restrito.

A autoridade conciliar foi enorme, a ponto de os seus partidários, por vezes terem declarado o poder do
Concilio superior ao do Papa. Contra esta tendência ergueram-se os curialistas, que sustentaram a tese
inversa da supremacia da Cúria ou do Papa sobre o Concílio.

De qualquer forma, o Papa exerceu o seu poder legislativo, o poder de fazer leis em prol da Igreja
Universal, quer sozinho, quer em concílio ecuménico.

Celebram-se os seguintes oito concílios ecuménicos no Oriente e no Ocidente: Lateranense I, II, III, IV
(1123, 1139, 1179, 1215), Lugdunense I e II (1245 e 1274), Vienense (1311-1312) e Constantiense (1414-
1418).

Pelo que diz respeito à Península Ibérica, assinalaram-se os concílios nacionais de Toledo, sob a
dominação visigótica, e os concílios de Braga, nos séculos V e VII, no tempo dos Suevos.

Os concílios da monarquia visigótica adquirem significado especial, pela influência no desenvolvimento do


direito publico deste povo, que em parte constituirá o fundamento das instituições políticas portuguesas
iniciais. As grandes assembleias conciliares visigóticas tentaram uma ordenação jurídico-política, definindo
e fixando o carácter da monarquia, as regras da sucessão, os poderes dos monarcas, os direitos e
deveres dos súbditos. O chamado Título primeiro do Código Visigótico serve de testemunho da maneira
pela qual os concílios legislaram nestas matérias.

É bom ainda ter em mente as várias Cúrias ou Concílios de Leão (1017-1020 a 1091), de Coiança (1055)
e de Oviedo (1115), cujos preceitos normativos obtiveram projeção no nosso país.

As determinações conciliares receberam outras designações, para lá da mais vulgar de cânones: de


constituição sinodal, de estatuto, edito e sanção. As leis disciplinares dos Concílios do século XV, em
especial do de Constança, surgem também com o nome de decreti.

Frente aos cânones, temos a legislação do Pontífice romano. Graciano chama decretos aos atos do papa,
por oposição aos estatutos conciliares. Na Glosa ao Decretum Gratiani separam-se decretum, ou seja, “o
que o papa estatui por conselho dos seus cardeais sem consulta de ninguém” e decretal “que o Papa
estatui sozinho ou com os cardeais a consulta de alguém”.

As normas pontifícias foram, por vezes, também denominadas por constitutiones, e os atos papais,
atendendo à forma externa, conhecem várias designações ou qualificações.
Desde cedo aparecem no Ocidente coleções de cânones e decretais. As mais importantes são a Coleção
de Dionísio, o Exíguo, do século VI, e a Coleção Hispana, do século VI ou VII. A primeira foi objeto de
revisão pelo Papa Adriano I (772-95) para corresponder a um pedido de Carlos Magno e essa revisão
tomou o nome de Hadriana. A segunda, de origem visigótica, deu origem a uma outra, a Hispana
Sistematica, assim chamada em virtude da particular disposição das matérias respetivas. Finalmente,
haverá que referir as Decretais Pseudo-Isidorianas, forjadas pela segunda metade do séc. IX na
arquidiocese de Reims e atribuídas a Isidoro Mercator, onde se contém à mistura de textos verdadeiros
com cânones falsos, mas que conheceram um imenso sucesso nos tempos medievais, só vindo a ser
demonstrado o carácter espúrio da coletânea já no século XVII (1628), por David Blondel.

Com o renascimento do direito romano, nos séculos XII e seguintes, desenvolve-se largamente a atividade
compilatória dos cânones e decretais.

A primeira grande coleção inserida neste movimento é o decreto, que constitui o direito novo. Trata-se de
uma obra doutrinária em que o autor, Graciano, procura harmonizar e concordar os textos ou regras
discordantes. Apesar da sua produção particular, passou brevemente a ter força de lei.

Começaram, igualmente, a organizar-se importantes coleções decretais. Estão, neste caso, as cinco
compilações antigas, que se encontram na origem de uma compilação posterior, em cinco livros, as
Decretais de Gregório IX.

Das Compilationes Antiquae, a primeira contém decretais de papas que regeram a Igreja durante a
segunda metade do séc. XII; a segunda contém decretais do início do séc. XII; a terceira tem decretais de
apenas 1210; a quarta contém cânones do Concílio de Latrão 1215; e, por fim, a quinta tem decretais cujo
objetivo era ser objeto do ensino.

Às Decretais de Gregório IX, repartidas em cinco livros, veio acrescentar-se um sexto livro no tempo de
Bonifácio VIII. Posteriormente, ainda, Clemente V mandou proceder a nova compilação, as Clementinas.
Por fim, existem recolhas decretais que andavam dispersas (vagantes extra). Ao conjunto de textos
referidos, o Decreto às Extravagantes, deu-se, mais tarde, o nome de Corpus Iuris Canonici. Este era
composto pelo Decreto de Graciano de 1140 (Concordia Discordantium Canonum); as Decretais (1234)
que eram o conjunto de decretos pontifícios dos séculos XII a XIII, reunidas sob o pontificado de Gregório
I; o Sexto Livro das Decretais, que são as coleções de decretais posteriores a 1234 e promulgadas por
Bonifácio VIII; as Clementinas, que são a recolha de decretais subsequentes, publicadas em 1313 por
Clemente V; e as Extravagantes.

Doutrina

A doutrina, ou seja, a opinião e obra científica dos juristas, assumiu um papel da mais alta importância,
principalmente depois da aliança entre a lei canónica e a lei secular, pela revivescência dos estudos de
direito romano, operada a partir dos séculos XII e seguintes. O Utrumque Ius constitui o produto do
supermercado da concorrência ou rivalidade das duas grandes ordens jurídicas medievais. Representa a
sua simbiose.

Os canonistas dividem-se em dois grupos: os decretistas e os decretalistas. Os decretistas escreveram


sobre o Decreto de Graciano, os decretalistas sobre as Decretais. Podem ainda separar-se os intérpretes
do direito canónico do Decreto de Graciano (1140) às Decretais de Gregório IX (1234), e destas ao
Concilio de Trento, no século XVI. Durante toda a Idade Média distinguem-se duas grandes escolas: a dos
glosadores, iniciada por Imério, e que terá o seu apogeu com a Glosa Ordinária ou Magna Glosa de
Acúrsio, uma obra de recolha e sistematização de milhares de glosas, que aparece designada,
frequentemente, apenas por Glosa; e, a partir do século XIV, a dos comentadores, iniciada por Cino de
Pistóia, também chamada de bartolista, do nome do seu maior representante, Bártolo de Sassoferrato.

A partir da aliança entre o direito canónico e o direito romano, que se vai traduzir no direito comum, os
grandes canonistas são também, em regra, grandes civilistas, dada a preparação simultânea em ambos os
direitos – o canónico e o romano (in utroque).
A influência do direito canónico e da ciência jurídica dos canonistas no direito em geral e para a formação
do direito moderno apresenta-se como fundamental. Certas zonas do sistema jurídico recebem
importantes contributos da Igreja no respetivo ordenamento, por exemplo o direito da família, as
obrigações, entre outros, tal como conceitos fundamentais como o da boa fé.

Franz Wiaecker chamou a atenção para o que designa princípio de mútua subsidiariedade, traduzido na
aplicação subsidiaria do direito romano pelos tribunais eclesiásticos e na aplicação pelos tribunais civis,
em idêntico plano, dos princípios gerais do direito canónico.

Concórdias e concordatas

São acordos entre o rei e a Cúria Romana ou entre o rei e o clero, tentando definir os direitos e deveres
recíprocos das duas partes. Os primeiros acordos conhecidos são do tempo de Afonso II e apontam-se
como principais concórdias e concordatas atos dos reinados de D. Dinis, D. Afonso IV e de D. Pedro I. Por
exemplo, se o acordo celebrado entre representantes do Pontífice e de D. Dinis, em 1289, formado por
quarenta artigos constantes da bula Cum Olim, e ratificado pelo Papa e pelo monarca português, reveste a
forma de autêntico tratado, pelo que lhe enquadraria a designação de concordata; se os onze artigos
assentes entre os bispos portugueses e o mesmo príncipe no referido ano constitui acordo negociado que
mereceria a qualificação de concórdia.

Na hipótese da arbitragem, trata-se não de um acordo negociado, mas de decisão judicial e também na
reparação de agravamentos em cortes.

Penetração do direito canónico na Península – a ciência canonística portuguesa

p. 73

Aplicação do direito canónico nos tribunais – aplicação nos tribunais eclesiásticos, em razão da
matéria em razão da pessoa

O direito canónico foi aplicado em Portugal não apenas nos tribunais civis e seculares, mas também em
tribunais eclesiásticos.

Paralelamente com a organização judiciária civil, existiu uma organização judiciária eclesiástica, ou seja,
de tribunais da Igreja. Os tribunais eclesiásticos conheciam as causas em função da matéria ou em função
da pessoa. Certas matérias eram consideradas da competência especial da jurisdição eclesiástica; da
mesma forma, entendia-se que certas pessoas só podiam ser julgadas pelos tribunais da Igreja. O
costume gradualmente desenvolvido de que o clero não podia ser levado perante um tribunal civil foi
reconhecido oficialmente pelo imperador Justiniano, que o consagrou como privilégio. Mas não deixou de
ser motivo de hesitação e de dúvidas doutrinárias a contradição entre a lei canónica e a civil.

Aplicação nos tribunais civis; enquanto direito preferencial ou como direito subsidiário – o critério
do pecado

Nos tribunais civis, o direito canónico aplicou-se também, primeiramente, como direito preferencial. Seria o
próprio monarca que assim o determinaria. Com efeito, na Cúria de Coimbra de 1211, decidiu D. Afonso II
que as suas leis não valessem se feitas ou estabelecidas contra os direitos da Santa Igreja de Roma.

Este passo sofreu interpretação por parte de Braga Cruz, que escreve “Cremos que se tem exagerado o
significado da lei, quando se pretende ver nela uma total subordinação da vigência das leis pátrias ao
requisito da sua concordância com o direito canónico, embora seja fora de dúvida que os canonistas
pretenderam difundir e fazer valer a doutrina da subordinação total das leis civis às leis canónicas. Repare-
se, com efeito, que D. Afonso II não fala do direito da Santa Igreja, mas do “dereitos da santa Egreia de
Roma”, o que pode querer significar apenas, genericamente, as suas regalias e privilégios. A ser assim, as
leis pátrias só não valeriam contra os cânones que estabelecem especiais privilégios em favor da Igreja;
mas nada obstaria à sua aplicação, de preferência ao direito canónico, nos casos de mera diversidade de
regulamentações dada pelos dois direitos a problemas jurídicos idênticos.”
Mais tarde, o direito canónico foi relegado para a posição de direito subsidiário, isto é, apenas aplicável
quando faltasse o direito nacional. Aqui iria entrar em concorrência com o direito romano ou imperial. O
critério de ordenação relativa do ordenamento canónico e do cesáreo seria o critério do pecado. A
prevalência do primeiro sobre o segundo dependeria de se tratar ou não de matéria de pecado.

O “ius romanum”

Ainda no que respeita ao direito supra regna haveria que versar o direito romano. Remete-se, porém, o
assunto para quando se tratar do direito prudencial, na medida que a sua vigência foi devida não à
superioridade do Império sobre Portugal, mas à receção voluntaria pelo príncipe e à atividade dos
prudentes.

Capítulo III – “Ius Regni”


Direito Legislado
Os ordenamentos jurídicos anteriores à constituição da nacionalidade portuguesa

É importante aludir ao direito dos povos que se estabeleceram na Península Ibérica antes da fundação da
nacionalidade portuguesa no séc. XII. De um ponto de vista cronológico, a primeira referência deveria ir
para os chamados povos primitivos da Península, mas das suas instituições jurídicas pouco se sabe.
Destacam-se, pela importância que tiveram no nosso direito ou que têm para o seu estudo os direitos
germânicos.

Cabe uma menção especial às leis dos Visigodos, povo que dominou a Península durante séculos e cujo
Império apensa terminou com as invasões muçulmanas.

Aos Visigodos se ficaram devendo alguns famosos monumentos jurídicos. Os mais importantes,
considerados do prisma cronológico são: o Código de Eurico, redigido por volta de 476, atribuído ao rei
Eurico; o Breviário de Alarico, promulgado em 506, que teve por fontes constituições imperiais retiradas
dos Códigos Teodosiano, Hermogeniano e Gregoriano, e de novelas de vários imperadores, bem como
escritos de juristas romanos; o Código de Leovigildo, hoje desaparecido, devido ao rei Leovigildo, escrito
entre 572 e 586; e o Código Visigótico.

O primeiro grande monumento legislativo visigótico foi o Código de Eurico. Nele transparece já a influência
jurídica de Roma, pelo que as suas normas estão muito longe de representarem direito germânico puro,
antes pelo contrário. Certos autores qualificam-no como “direito romano vulgar”.

Uma tese antiga sustentava que este Código, assim como as restantes leis visigóticas, era de aplicação
territorial; quer dizer: que se aplicava a todas as populações senhoreadas por Eurico e sucessores.

Segundo a doutrina da dualidade legislativa ou da personalidade do direito, o Código de Eurico seria


aplicado apenas às populações visigodas, ao passo que as populações romanas se regeriam pelo
Breviário de Alarico.

No esquema clássico, ensinava-se, ainda que lentamente, que as diferenças entre o direito godo e o
romano se sobressaía e promulgado leis e nomocânones aplicáveis às duas raças.

A construção tradicional foi abalada ao se sustentar o carácter territorial das diversas leis visigóticas,
incluindo o Código de Eurico, que teria sido revogado pelo Breviário. Esta tese sustenta-se no facto de não
haver qualquer afirmação expressa da vigência simultânea dos dois ordenamentos jurídicos, e no facto do
Breviário derrogar normas romanas.

Seja como foi, tenha começado ou não pela personalidade, na sua última fase, a legislação visigótica era
de aplicação territorial.

O Código Visigótico
O Código Visigótico foi publicado em 654 pelo rei Recesvindo, ao que se supõe de S. Bráulio, e com a
aprovação do VIII Concílio de Toledo (633). Este Código representa, de certo modo, o fim da evolução
legislativa do reino visigodo.

No Codex Visigothicus deparam-se leis com a menção de antiquae, as quais fariam parte do Codex
Revisus de Leovigildo ou do Breviário.

Depois de Recesvindo, Ervígio (680-687), no segundo ano do seu reinado, submeteu o Codex Visigothicus
a uma revisão oficial, de que foi encarregue o XIII Concílio de Toledo. O texto, assim fixado, é conhecido
por Forma ou Fórmula Ervigiana. Encontra-se distribuído por doze livros, que se repartem em títulos e
estes em leis.

A tais formas há que acrescentar outra, resultante da revisão não oficial, em que, além de uma nova lei
(novela) do próprio Ervígio, quinze ou dezasseis leis posteriores de Egica (687-702), e também leis de
Vitiza (700-710) se encontram adicionais um título introdutório, verdadeiro tratado de direito público, da
maior importância para os historiadores, e ainda outros textos, incluindo textos doutrinais: é a Forma
Vulgata, que apresenta certas flutuações, e que “representou a base fundamental do direito vulgar
espanhol e ainda no seculo XII e XIV (…) constitui a fonte do chamado Fuero Juzgo, depois de ter
exercido geral influência sobre a formação dos foros e costumes locais, antes e a seguir à Reconquista”. O
Código Visigótico surge como “uma transição entre as fórmulas e o rigorismo do direito romano e os
costumes próprios do povo godo”, consagrando, porém, em certos aspetos, “o triunfo legal do direito
romano e da cultura latina-eclesiástica”.

A aplicação do “Código Visigótico” – testemunho da sua vigência no território português

Temos testemunhos da vigência do Código Visigótico no início da monarquia portuguesa, mas que se vão
progressivamente esbatendo. Braga Cruz diz que “o Código Visigótico continua a ser citado em alguns
documentos portugueses do século XII, nos mesmos termos em que o vinha sendo anteriormente nos
documentos leoneses; mas no século XIII, essas citações desapareceram e o próprio fenómeno do
renascimento do Código Visigótico operado em Castela através da sua tradução para romance já não tem
repercussões visíveis em Portugal”.

… p.85

Leis gerais portuguesas – noção, nomenclatura, progressivo desenvolvimento da legislação régia

p.87

Fundamento da força vinculante da lei, sua natureza, finalidade e requisitos

p. 89

Aplicação e interpretação da lei

Importa ainda equacionar dois aspetos de maior relevância: o da aplicação da lei no espaço e no tempo e
o da sua interpretação.

Relativamente à aplicação da lei no espaço, devemos considerar que nem todas são de âmbito geral. Ao
lado das normas aplicáveis à escala do país e dimanadas do poder central, isto é, do rei ou em cortes,
outras existiam igualmente originais, mas de aplicação geográfica restrita. Para além delas, contudo,
existiam ainda preceitos cogentes estatuídos pelas comunidades inferiores, como os concelhos, e a tais
comunidades restritas. Sobrelevam as posturas, as regras jurídicas dos municípios, com natureza policial.
A palavra postura, aliás, não designou apenas semelhantes normas particulares, mas também se aplicou
para designar a lei geral emanada do rei.

A aplicação da lei no tempo desdobra-se em dois aspetos: o da sua entrada em vigor; o da aplicabilidade
retroativa. De facto, não basta saber qual a data da entrada em vigor de uma lei. É imprescindível
determinar se se aplica a factos em curso à data do início da vigência ou a situações ou consequências
jurídicas fixadas com base em factos produzidos à sombra do direito anterior. Trata-se da questão
essencial da retroatividade ou não retroatividade da normal legal.

D. Duarte, então infante, estabelecerá que a lei deve ser interpretada de acordo com a sua letra e reto
espírito, pois condena os que se afastam daquela alterando enganosamente o sentido.

A interpretação autêntica encontra-se expressamente afirmada no período em análise mais como


obrigações do que como faculdade do legislador.

Monumentos jurídicos castelhanos vertidos em português. Problemas relativos à sua vigência.


Aplicação das Partidas com direito subsidiário. Sua observância abusiva em prejuízo de outras
fontes

p. 93

Direito Outorgado e Pactuado


Cartas de privilégio – Características gerais

Por cartas de privilégio entendem-se, em sentido lato, documentos que atribuem prerrogativas, liberdades,
franquias e isenções de qualquer ordem, mas, em sentido estrito, com aquela nomenclatura, designam os
historiadores documentos que, embora de índole muito diversa, têm como denominador comum a
circunstância de traçarem um regime jurídico específico para certo território ou certa comunidade, isto é,
uma disciplina própria e diferenciada. Consubstanciando um regime particular, as cartas de privilégio
possuem âmbito delimitado que possibilita diferenciá-las da lei, a qual contém, ao menos em princípio e no
sentido moderno, uma regulamentação geral e abstrata.

A variedade das cartas de privilégio é enorme. Nelas se incorporam também, e habitualmente, as cartas
de povoação, os forais e os foros.

Cartas de povoação

A carta de povoação visava atrair habitantes para certas zonas – escassamente povoadas ou
despovoadas. O monarca, um senhor ou entidade que exercia a autoridade sobre um território fixava,
nessas condições, na carta de povoação o conjunto de normas definindo o estatuto dos futuros colonos,
especialmente quanto às condições de exploração da terra e tendo, pois, em primeira linha, uma
fisionomia essencialmente económica. Aí se estabeleciam quais as prestações patrimoniais (cânones) ou
pessoais a que os povoadores ficavam obrigados, e os modos de detenção e ligação à terra.

Tem de reconhecer-se que, em geral, a carta de povoação constitui um ato unilateral ou outorgado
unilateralmente, revestindo até forma imperativa e apenas raramente assume, à partida, caráter de pacto;
tem de reconhecer-se, igualmente, que a carta de povoação contém regras para o futuro; e é de
reconhecer, por último, que elas entram no domínio da disciplina senhorial. Tudo isso não obsta, porém, à
sua natureza contratual.

É hoje corrente a inclusão na área dos contratos daqueles atos em que se oferece genericamente a todos,
presentes ou futuros, um modelo apresentando um conjunto determinado de cláusulas, que os
interessados têm liberdade de aceitar ou não, mas apenas na totalidade, através de uma manifestação
inequívoca de adesão. E nem interessa que não exista a liberdade de discussão e fixação do conteúdo,
pois a essência do contrato não reside tanto na liberdade de estipulação, como não autonomia da vontade,
à qual é dado regular os seus interesses como melhor entender e, por isso, ajustar-se ou não aos modelos
que lhe são propostos. Por outro lado, não há irredutibilidade necessária entre o aspeto negocial e o
aspeto normativo. O negócio jurídico e a norma colocam-se em planos diferentes e, portanto, são
suscetíveis de articulações diversas. Assim, do contrato podem resultar efeitos não meramente individuais,
mas também genéricos.

As cartas de população assumem o caracter simultâneo dos chamados contratos de adesão e dos
chamados contratos normativos.
Forais

Com as cartas de população se confundem, por vezes, as cartas de foral ou forais, pois a linha divisória
entre estes dois tipos de documentos não é, frequentemente, muito nítida e a terminologia aparece
também flutuante.

Em regra, os forais são mais extensos que as cartas de povoação e abarcam também maior número de
matérias. Aqui reside o elemento diferenciador básico, não procedendo a definição de foral apresentada
por Herculano, que via neste a carta constitutiva de um município. Enquanto o cerne das cartas de
povoação se restringe às condições de assentamento na terra, os forais contêm, para além disso,
preceitos ou disposições de direito processual, militar, fiscal, penal e administrativo (abrangendo a
organização local e a competência e atribuições dos respetivos magistrados). Não faltam, também,
embora quantitativa e qualitativamente menos importantes, regras de direito privado, com prevalência para
as instituições sucessórias e familiares.

As várias normas que integram os forais têm, ou podem ter, origens muito heterogéneas: nas cartas de
povoação e outras cartas de privilégio nos costumes e no direito judicial, incluindo as façanhas), nos foros
de outras localidades, no direito comum, no direito prudencial… No território a que respeita o goral rege
este, como direito especial ou particular, com prejuízo do direito geral, sendo, todavia, o direito geral
chamado a integrar as disposições foraleiras, sempre insuficientes e lacunares.

Esta é a regra. O problema da articulação entre as normas foraleiras e o regime geral surge, todavia, com
carácter problemático nos casos em que, dimanado o foral de um senhor ou outra entidade particular, nele
se inserem estatuições de âmbito do local.

Os forais eram outorgados quer pelo monarca, quer por um senhor eclesiástico.

Além do senhor, intervinham, igualmente, outras pessoas para dar maior força e validade ao ato.

Em certos casos, os forais senhoriais ou eclesiásticos, para maior firmeza, vêm confirmados pelo
monarca, a mulher e mesmo seus filhos.

Os forais de uma primeira fase encontram-se redigidos em latim vulgarizados, isto é, alheio a toda a
sintaxe clássica e com bastante corruptela, de alguns se tendo, porém, procedido, mais tarde, a tradução
em romance. Numa segunda fase, passaram a ser redigidos na nossa língua.

Os forais podem arrumar-se segundo certas categoriais. Por um lado, haveria que distinguir entre os forais
régios e os particulares; por outro lado, costumam eles classificar-se pelo respetivo molde ou matriz;
Herculano e Torquato de Sousa Soares separam-nos ainda olhando à maior ou menor complexidade da
instituição concelhia; é possível também alinhá-los tomando em contra o grau de originalidade.

Esta era entregue com natureza hereditária, mas nos forais das terras da Coroa as relações entre o
concedente e o concessionário aproximam-se do regime do censo reservativo, ao passo que nos demais
casos assumiam o modelo da enfiteuse. Quer dizer, ali na terra é cedida com a simples reserva de certa
pensão ou prestação periódica saída dos seus frutos ou rendimentos, aqui dá-se o desmembramento do
domínio direto e útil da terra.

Quanto ao segundo critério, toma em linha de conta a circunstâncias de existirem famílias de forais,
resultantes de alguns terem servido de padrão ou tipo. Os outorgantes, muitas vezes por simplicidade,
pela força de condicionalismos de vária ordem, por deliberada intenção unificativa, limitavam-se a dar a
uma terra o foral de outra.

Herculano, classificando os concelhos em rudimentares, imperfeitos ou perfeitos e Torquato de Sousa


Soares em rurais, urbanos e distritais, conforme a simplicidade ou complexidade das estruturas locais,
fornecem correlativa e implicitamente uma tipologia e uma classificação foraleira.

Quanto ao último ponto, os forais agrupam-se em três espécies: originários, ampliativos e confirmativos.

Foros, costumes ou estatutos municipais


Os foros municipais desde logo se separam dos forais pela extensão ou dimensão. Contêm um acervo de
normas muito superior em quantidade aos forais. Por vezes, alinham-se centenas de rubricas, não raro
distribuídas por capítulos, o que revela inquestionável intuito abrangente e de sistematização. Nos
estatutos insere-se muito maior número de disposições de direito privado e que cobrem uma gama mais
vasta de áreas.

De qualquer forma, importa vincar bem que, se não encontra compendiada a totalidade da disciplina
jurídica relativa ao território a que se aplica o estatuto municipal. Martínez Marina definiu os estatutos
municipais como cadernos de leis civis, criminais, políticas, administrativas e processuais outorgadas aos
municípios para sua constituição e governo.

Paulo Merêa observou, com razão, que ele não se adapta a todos os casos. “Há estatutos que não foram
propriamente outorgados, resultando na reunião de diferentes fontes de direito local empreendida pelo
próprio concelho. A par de normas consuetudinárias, encontram-se nos costumes ou foros regras
derivadas de origens menos incertas e mais recentes: tais são as que provieram de deliberações das
assembleias populares do concelho, as posturas dos magistrados, as que têm por base façanhas dos
juízes municipais, etc.”

Também para os foros municipais, por causa do parentesco entre alguns deles, se fala de famílias,
resultantes, em grande parte, da comunicação dos costumes ou levando a tal comunicação entre
territórios diversos.

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