A JUSTIÇA DO HOMEM E A JUSTIÇA DIVINA - A Nunes
A JUSTIÇA DO HOMEM E A JUSTIÇA DIVINA - A Nunes
A JUSTIÇA DO HOMEM E A JUSTIÇA DIVINA - A Nunes
Todo o ser humano, com plena consciência, tem uma noção de justiça. Esta está
relacionada com a visão que cada indivíduo tem do mundo e a relação de causa e
consequência que consegue estabelecer. A Justiça é uma característica humana
básica e não é plausível que qualquer pessoa não tenha acesso a este foro.
Em Génesis 18:25, quando Abraão pede a Deus que não deixe fenecer em Sodoma os
bons juntamente com os maus, Deus responde: “Não irá o próprio juiz de toda a
terra agir com Justiça?”. Depreende- se daqui que um dos primeiros conceitos de
Justiça é permitir que os maus pereçam, em decorrência dos seus pecados, e os
bons, como fruto da sua retidão, sejam salvos da morte. Trata-se aqui da Justiça
Divina.
Por outro lado, representando a Justiça Humana, o Apóstolo São Mateus relata o
momento em que Pôncio Pilatos condenou Jesus a morrer na cruz, não obstante não
ter alcançado nele culpa alguma. “Então Pilatos, vendo que nada aproveitava,
antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão,
dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso.” (Mateus 27:24).
Lavando as mãos, Pilatos julgou e selou a justiça tão reclamada pelos hebreus.
A justiça, na Grécia pré-socrática, era vista como ordem natural a que o homem
deveria submeter-se. A injustiça seria a inversão da ordem pela subjetividade ou
particularidade do indivíduo que se pretende, como em Protágoras, “a medida de
todas as coisas”.
Sócrates rompeu a ordem da polis, dando lugar a uma nova ordem que seria
proposta por Platão. O pensamento platónico introduziu a ideia de justiça como
igualdade, levando-a a uma dupla conceção. A justiça como ideia (metafísica) e a
justiça como virtude (ética), a praticada individualmente.
Desde Sócrates, viver com justiça já não é viver de acordo com as leis da polis,
é procurar o justo além da lei e do costume, justiça não é agir de acordo com a
legislação ela deve ser a base da legislação. As leis são justas porque foram
estabelecidas por pessoas que praticam a virtude da justiça e, por isso,
contemplam a própria ideia de justiça.
Para Santo Agostinho a justiça é dar a cada um o que é seu, de acordo com a
hierarquia da ordem natural criada por Deus. O corpo deve submeter-se à alma, a
alma a Deus e as paixões à razão. Na ordem sobrenatural, a justiça consiste na
observância da lei eterna que liga o homem a Deus e prescreve a sua submissão a
Ele. Na ordem natural, a lei natural prescreve a harmonia do homem consigo
mesmo, com o natural e com o sobrenatural.
A lei dos homens deve seguir a lei natural, razão de Deus por Ele ordenada. Todo
o ser racional tem inscrita na sua alma a lei natural. O princípio de justiça
natural é um princípio de equilíbrio entre o que se dá e o que é devido. A lei
natural pretende que o homem alcance esse equilíbrio.
Embora o direito, objeto da justiça, seja objetivo, ele não é o mesmo que a lei.
A razão humana determina o que é o justo, antes que exista a lei. Esta regra vem
da prudência que preexiste na razão da arte de legislar e se for escrita, será
transformada em lei. Quando a lei escrita estiver de acordo com a lei natural,
que é a lei do ser racional que vem da lei eterna (vontade de Deus nas suas
criaturas), ela determinará o que é o justo. Justo é o que é igual ou adequado
ao outro. Os elementos essenciais da justiça são, então, o igual e o outro, ou
seja, do devido ao outro.
Para Kant, o papel da nossa razão é o de formar uma boa vontade, porque nela
está contida o desejo. O arbítrio, na medida em que determina em si mesmo os
princípios puros, é designado livre-arbítrio e implica essa boa vontade. Uma
vontade livre constituída por um arbítrio autónomo e pela liberdade da vontade,
pois vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa.
“age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa
de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como
meio”.
Kant afirma que deve haver uma identificação dos objetivos de outrem com os meus
próprios, visto que o fim natural de todos os homens é a felicidade. Não
contribuir para a realização desses fins significa ignorar a humanidade como fim
em si mesma.
João Paulo II denunciou, com frequência, que presentemente não existe paridade
entre a exigência de justiça e a prática da mesma. Professa-se o amor à justiça,
mas ela não é praticada. Prova disso é o ingente número de injustiças que se
acumularam ao longo do século XX.
Bento XVI reforça a fundamental ligação que deve haver entre ética da vida e
ética social, denunciando a contradição de uma sociedade que afirma os valores
da dignidade humana, justiça e paz, mas tolera e protagoniza as mais diversas
formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo a que se encontra débil
e marginalizada.
Referências Bibliográficas
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