Desontologizacao_do_sujeito_generificado
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RESUMO:
O artigo discute como a teoria de gênero de Judith Butler, principalmente a partir do que a autora denominou de
metafísica da substância, opera uma desontologização das experiências de sexo-gênero. Para isso, expõe-se como
Butler opera a desontologização do sujeito generificado, através de sua crítica feminista acerca da ideia de sujeito
concebida a partir do marco da diferença sexual. Posteriormente, dedica-se ao que Butler denominou de “metafísica
da substância”, vista como o que sustenta, no marco do sistema de sexo-gênero binário, a ideia de diferença natural
dos corpos, momento no qual a autora recorre à genealogia da moral realizada por Nietzsche para justificar sua
genealogia do gênero e dos corpos, vislumbrando esses como indissociáveis, razão pela qual conclui que, à maneira do
gênero, a produção dos corpos ocorre de forma performativa através de recitações contextualizadas que estabelecem
os marcos de inteligibilidade humana, os quais são, por isso, passíveis de transformação.
1Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal – RN, Brasil. Bolsista do(a):
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil, de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação
em Educação Contemporânea (PPGEduc) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Caruaru – PE, Brasil.
PAIVA, André Luiz dos Santos. Desontologização do sujeito generificado e a metafísica da substância: diálogos de Butler com
Nietzsche. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.130-143, fevereiro, 2022.
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Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.130-143, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036
[...] feminism ought to be careful not to idealize certain expressions of gender that, in
turn, produce new forms of hierarchy and exclusion. In particular, I opposed those
regimes of truth that stipulated that certain kinds of gendered expressions were found to
be false or derivative, and others, true and original. (BUTLER, 1999, p. VIII).
Cette philosophe croit donc qu’une certaine utilisation de la catégorie femmes engendre
les effets contraires d’une libération. Elle soutient que les femmes sont les effets d’énoncés
performatifs élaborés dans le cadre héterosexiste. Ainsi, le recours à de telles catégories
identitaires est paradoxal puisqu’il a pour objet, d’une part, de libérer le groupe visé et,
d’autre part, de l’enfermer, par le fait même, dans un cadre normatif rigide et qu’il passe
ainsi sous silence le caractère factice et construit de cette catégorie (p. 69).
É essa interpretação crítica que permite a Butler articular de forma precisa o campo dos
gêneros com a constituição, consolidação e manutenção de uma determinada organização política
e cultural, de forma que “it becomes impossible to separate out ‘gender’ from the political and
cultural intersections in which it is invariably produced and maintained” (BUTLER, 1999, p. 06).
Nesse sentido, antes de qualquer possibilidade de naturalização do sistema de gênero binário, é
defendido pela filósofa a artificialidade dos construtos de gênero que acabam, devido ao seu
caráter repetitivo, naturalizando a relação entre uma determinada anatomia, ou sexo, e
expressões de gênero e sexualidade específicas.
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Para Butler (1999), a ideia de um sistema de gênero que reflete diferenças sexuais naturais
não se sustenta, uma vez ser o próprio processo de naturalização que impõe essa relação de
mimetismo. Apesar de suas críticas em relação às perspectivas feministas que adotam para si esse
pressuposto, não é possível definir o pensamento de Judith Butler como pós-feminista, dado sua
crítica não ter a intenção de suplantar as teorias e políticas feministas, mas radicalizá-las através
de uma crítica interna (BUTLER; TOHIDI, 2017). Esse aspecto permite também destacar o não
abandono da própria categoria mulheres, mas apenas uma postura de uso estratégico dessa
identidade para a ação política, mantendo o conceito aberto a ressignificações para que esse não
opere processos de exclusão inviabilizadores da agência de sujeitos determinados (BARIL, 2007).
Essa compreensão e apropriação do feminismo, bem como do conceito de mulheres,
relaciona-se com a própria concepção de identidade na teorização de Butler. Nesse sentido, o
gênero seria um aspecto indissociável da constituição subjetiva em nossa cultura, sendo
impossível pensar o gênero enquanto categoria pré ou pós-identitária, uma vez que os moldes de
inteligibilidade possibilitadores do reconhecimento do sujeito enquanto humano passa,
necessariamente, pela sua inclusão nas categorias de gênero disponíveis (BUTLER, 1999). Dessa
forma, como defende Baril (2007), “pour Butler, la notion d’identité indépendante, non genrée,
est absurde. L’identité est, selon elle, toujours déjà ‘sexuée’ sur le plan social, en ce sens qu’il n’est
pas posible, dans le cadre dominant, de definir l’identité d’une personne sans que celle-ci soit
genrée” (p. 73).
Essa relação intrínseca entre gênero e constituição identitária dos sujeitos é possível devido
a não conexão entre produção de gênero e a pré-existência de um sujeito intencionado e consciente
que elegeria seu gênero. Ou seja, o gênero, ainda que se tratando de um construto social específico
fabricante das identidades, não pressupõe um agente prévio que o engendre, o que levaria a
conclusão da existência de um sujeito anterior às categorias de gênero. Nesse sentido,
Essa matriz de gênero é uma das responsáveis pela delimitação do campo do humanamente
inteligível, mantendo assim relações de coerência que culminam com a determinação linear e
excludente entre sexo, gênero e sexualidade, numa dinâmica na qual o pertencimento a uma das
categorias binárias pré-estabelecidas impossibilita a identificação com seu par, bem como
determina os demais caracteres de sexo-gênero dos sujeitos (BUTLER, 1999).
É a partir da crítica a esse aspecto restritivo e excludente das identidades de sexo-gênero
que Butler opera o questionamento do aspecto identitário como marco principal viabilizador da
agência política dos indivíduos e coletivos. Essa crítica, no entanto, não advoga pelo abandono
das identidades ou recusa de seu potencial para a transformação dos marcos sociais de
inteligibilidade que regem as experiências humanas, uma vez que a unificação possibilitada pelo
marco identitário potencializa a ação política. A filósofa propõe, a partir da subversão do próprio
conceito de identidade, uma utilização aberta dos marcos identitários, com a finalidade de evitar
uma imposição rígida excludente das experiências e grupos que não se adequem aos marcos
normativos estabelecidos pelos movimentos de minorias, o que ocasionaria a produção de
exclusões que imporiam uma postura antagônica à defendida pelos próprios movimentos.
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Butler insiste aussi sur le fait que le ‘sexe’, le genre, la sexualité, l’orientation sexualle et
l’identité sexuelle ne partagent aucun lien structurel, nécessaire ou même métaphysique.
Elle rappelle que ces divers éléments ont été juxtaposés culturellement afin de s’insérer
dans une matrice de pouvoir hétéronormative et hétérosexiste (BARIL, 2007, p. 63).
ideia da natureza como algo passivo que serviria de ponto de partida para a cultura contribui e
adensa as demarcações excludentes nos campos dos gêneros e sexualidades, consolidando a
metafísica da substância criticada pela autora (BUTLER, 1993).
Ao pensar a metafísica da substância, Butler desenvolve um aprofundamento acerca do
tema da materialidade dos corpos, uma vez que a metafísica da substância é estabelecida quando
se toma a corporeidade como ponto de partida inevitável para a justificação da diferença sexual.
Nesse sentido, a filósofa busca compreender como a materialidade dos corpos, a qual ela não
recusa, passou a ser imposta como algo irredutível ao invés de também construída do ponto de
vista metafísico através de discursos e práticas específicas (BUTLER, 1993).
Ao se tomar o corpo como momento fundante da diferença sexual, ocorre a normatização
das experiências num sentido dos momentos gênero e sexualidade que apareceriam como distintos,
na verdade consolidam-se como meras continuidades dos marcadores corporais da diferença
sexual, o que permite a Butler afirmar que
The unproblematic claim to “be” a woman and “be” heterosexual would be symptomatic
of that metaphysics of gender substances. In the case of both “men” and “women,” this
claim tends to subordinate the notion of gender under that of identity and to lead to the
conclusion that a person is a gender and is one in virtue of his or her sex, psychic sense of
self, and various expressions of that psychic self, the most salient being that of sexual
desire (BUTLER, 1999, p. 29).
[...] de que modo inventou o homem estas apreciações de valor: o bem e o mal? E que
valor têm em si mesmas? Foram ou não favoráveis ao desenvolvimento da humanidade?
São um sintoma funesto do empobrecimento vital, de degeneração? Ou indicam, pelo
contrário, plenitude, força e vontade de viver, coragem, confiança no futuro da vida?
(NIETZSCHE, 2013, p. 25)
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Em seu percurso para responder tais perguntas, o filósofo parte de uma postura de
desconfiança em relação à pretensa verdade dos conceitos por ele analisados. É dessa forma que
Nietzsche (2013) defende a necessidade do estabelecimento da crítica frente aos valores morais a
partir do conhecimento das condições e contextos nos quais esses surgiram e desenvolveram-se
enquanto postulados. A partir de sua genealogia, Nietzsche denuncia a arbitrariedade do
estabelecimento dos valores morais, de forma que não haveria uma verdade por trás dos conceitos,
mas um ato, sendo esse o ato de inventar, fabricar as bases para uma moralidade. É nesse sentido
que ele afirma que há uma oficina de fabricação de ideias, e essa, para ele, cheira “a mentira e a
embuste” (NIETZSCHE, 2013, p. 50).
O caráter mentiroso dessa criação, em Nietzsche (2013), explica-se pela moralidade
hegemônica de origem cristã ter como pressuposto a reificação da valorização do sofrimento e do
castigo, característica por ele denominada de moral escrava, na qual os servos em suas
insatisfações com os atos dos senhores criam uma moral de valorização do oposto ao que esses
praticavam. No entanto, esse momento de invenção é ocultado, levando os humanos a acreditar
que os valores por eles seguidos são os únicos ou, ao menos, os melhores possíveis.
Para Nietzsche (2013), “com a ajuda de tais invenções, conseguiu a vida justificar seu
próprio ‘mal’; talvez hoje precisássemos de outras invenções, por exemplo, considerar a vida como
enigma, como um problema do conhecimento” (p. 67), o que explicita a intenção do autor de não
apenas identificar o funcionamento de uma determinada moral, mas também questioná-la. Sendo
o humano um ser que mede, aprecia e avalia valores, seria necessário, assim, reinventá-los com a
finalidade de produção de uma experiência de vida não pautada na moralidade escrava
valorizadora da crueldade e do castigo.
Evidentemente que essa alteração dos valores não é afirmada como sendo uma tarefa fácil,
uma vez que o questionamento dos padrões morais baseados no binarismo entre bem e mal como
categorias antagônicas e excludentes é um ataque à própria crença humana em relação a
existência de uma verdade. Nesse sentido, todos que não se adequam a essa moralidade são vistos
como devedores em relação aos imperativos morais e, assim, culpados:
O culpado é um devedor que não só não paga as vantagens obtidas, as suas dívidas, como
também ataca ao credor: a partir desse momento não só se priva de todos estes bens e
vantagens, como também será lembrada a importância desses bens. A cólera do credor,
isto é, da comunidade ofendida, constitui-o outra vez ao estado selvagem, põe-no fora da
lei, recusa-lhe a proteção e contra ele pode já cometer-se qualquer ato de hostilidade
(NIETZSCHE, 2013, p. 70).
Esse ataque que desperta cólera é, em Nietzsche, intencional. Assim, antes de questionar
a validade dos valores morais, o filósofo realiza o questionamento da própria ideia de verdade que
subjaz à defesa da moral. Em outro momento de sua obra (NIETZSCHE, 2011) ele já havia feito
referência ao que denomina de pathos da verdade. Nele, a partir da capacidade humana do
esquecimento, imagina-se ser a verdade algo que se possui como categoria irrefutável, e isso
inviabiliza o vislumbre da verdade enquanto “cascas vazias” (NIETZSCHE, 2011, p. 10) e
possibilita a defesa da verdade como categoria estável e independente da criação humana.
Essa opção pelo “esquecimento” do caráter construído da verdade dá-se devido a
necessidade humana de viver em sociedade, ou no rebanho, como denomina Nietzsche (2011,
2013). Para isso ocorrer, é necessário o estabelecimento de um acordo de paz que passa
necessariamente pelo estabelecimento das verdades como parâmetros estáveis e, por isso,
apresentados enquanto absolutos, pois
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[...] na medida em que o homem, ao mesmo tempo por necessidade e por tédio, quer viver
em sociedade e no rebanho, necessário lhe é concluir a paz e, de acordo com este tratado,
fazer de modo tal que pelo menos o aspecto mais brutal do bellum omnium contra omnes
desapareça do seu mundo. Ora, este tratado de paz fornece algo como um primeiro passo
em vista de tal enigmático instinto de verdade. De fato, aquilo que daqui em diante deve
ser a “verdade” é então fixado, quer dizer, é descoberta uma designação uniformemente
válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem vai agora fornecer também as
primeiras leis da verdade, pois, nesta ocasião e pela primeira vez, aparece uma oposição
entre verdade e mentira (NIETZSCHE, 2011, p. 09-10).
verdade das coisas e dos conceitos é a repetição compartilhada das metáforas. Nesse sentido,
Nietzsche (2011) afirma ocorrer uma produção de mentiras dentro de uma dinâmica de convenção,
denominada por ele de mentira de rebanho, que obriga os indivíduos a não apenas mentir, mas
esquecer a origem criada das verdades, essas passando a ser defendidas como realidades absolutas
e fechadas em si mesmas.
A mentira, devido ao esquecimento, ocorre então de forma inconsciente, a partir dos
costumes que se perdem no tempo. Isso permite a instalação do sentimento de verdade em relação
às criações humanas (NIETZSCHE, 2011). Esta fábula construída pelo filósofo acerca da verdade
nos leva à tese central de sua incursão: o conhecimento humano deve ser analisado a partir de
uma perspectiva relativa, o que pressupõe o abandono de qualquer recurso conceitual que parta
de uma ideia de absoluto, pois,
A partir dessas ideias de Nietzsche fica explícito que esse processo não ocorre apenas na
vida cotidiana e não refletida. A filosofia e as ciências operariam da mesma maneira, dizendo
verdades que são desde sempre metáforas, através de abstrações esquecidas enquanto tais.
Estando o filósofo e o cientista também imersos na vida de rebanho, acabam por replicar em suas
áreas os aspectos que contribuem para a manutenção da paz no rebanho, pautando a ideia de
verdade muito mais num aspecto moral. Nesse sentido, a verdade passa a ser a facilitadora da
vida em rebanho, e a mentira aquilo que a ameaça (SOBRINHO, 2011, p. 06).
Associam-se, assim, epistemologia e moral, numa dinâmica que replicará no âmbito da
construção dos saberes os conflitos encontrados entre o forte e o fraco no campo moral. Isso leva
à necessidade de pensar a questão da verdade como algo relacionado à política, uma vez que diz
respeito às lutas acerca do poder. Nesse sentido, a epistemologia não pode ser pensada como o
estudo objetivo da forma que conhecemos as coisas, mas como um campo relacionado a escolhas
também morais que operam, em muitos dos casos, divisões dicotômicas acerca da realidade,
baseadas, principalmente, na distinção entre o falso e o verdadeiro (GLENN, 2004).
A operação dessa dicotomia, esquecida como tal, ocorre devido ao desejo humano de
dominar o mundo, o que leva à criação dos conceitos. Assim, devido a sua utilidade na
manutenção da vida em rebanho, os conceitos humanos tornam-se uma espécie de segunda
natureza, num processo que impõe um marco epistemológico a partir da expressão da fraqueza
como a mais pura verdade. A principal expressão dessa dinâmica é notada na insistência do
estabelecimento de um pensamento binário acerca da realidade e das variadas experiências
humanas. Nesse contexto, a maior parte das pessoas entra em contato com o mundo a partir de
uma leitura bifurcada do mundo (GLENN, 2004), na qual verdade e moral entrelaçam-se, uma
vez que o considerado verdadeiro confunde-se com o que se considera bom. Isso leva ao
ocultamente da própria complexidade da experiência do mundo, pois tudo com o que se estabelece
contato deve enquadrar-se nas duas categorias prévias disponíveis, movimento possibilitado pela
postura de não questionamento acerca da fabricação das categorias.
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PAIVA, André Luiz dos Santos. Desontologização do sujeito generificado e a metafísica da substância: diálogos de Butler com
Nietzsche. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.130-143, fevereiro, 2022.
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Nietzsche (2011) defende não haver nada mais distante da certeza que essa maneira de
operar acerca das coisas, que ignora o arbitrário de sua própria fabricação: “Classificamos as coisas
segundo os gêneros, designamos l’arbre como masculino e a planta como feminino: que
transposições arbitrárias! A que ponto estamos afastados do cânone da certeza” (p. 10). Essas
classificações devem ser superadas para o pensamento do filósofo, que a partir dos conceitos
existentes parte em direção ao seu questionamento e fabricação de outras possibilidades. É nesse
sentido que Nietzsche utiliza as ideias como armas, e estas, antes de descrever a realidade, a
constroem (GEMES, 1992), pois, para ele,
Esta armadura e este chão gigantesco dos conceitos, aos quais o homem necessitado se
agarra durante a vida para assim se salvar, não é para o intelecto liberado senão um
andaime e um joguete para suas obras de arte mais audaciosas; e quando ele o quebra, o
parte em pedaços e o reconstrói juntando ironicamente as peças mais disparatadas e
separando as peças que se encaixam melhor, isto revela que ele não precisa mais daquele
expediente da indigência e que não se encontra mais guiado pelos conceitos, mas pelas
intuições (NIETZSCHE, 2011, p. 20).
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ontologias como o que revela fundamentalmente a verdade das subjetividades e passar a vê-las
como contingenciais e produtoras de efeitos de verdade, num processo de recusa de seu caráter
neutro e objetivo, insistindo, assim, no caráter político de suas fabricações (LLOYD, 1999).
É a partir dessa perspectiva que Butler (1999, 1993) denuncia o caráter performativo da
construção não apenas dos gêneros, mas também dos corpos, no sentido de serem os atos e signos
que atravessam os corpos responsáveis pelas demarcações da inteligibilidade de gênero. Assim,
não seria possível pensar numa substância anterior à linguagem e à cultura sobre a qual os signos
seriam construídos, pois
É nessa altura de seu pensamento que Butler, assim como Nietzsche e o utilizando como
referência, interessa-se pelos aspectos epistemológicos envolvidos na construção da metafísica da
substância que impõe a diferença sexual como demarcador das diferenças de gênero. Nesse
sentido, a autora questiona os marcos através dos quais se percebe as subjetividades no que tange
aos aspectos dos gêneros e corpos, propondo que esses não podem ser acessados ou conhecidos
como entidades ontológicas fixas e prévias ao discurso que os engendram. Isso ocorre devido ao
fato de que “any attempt to think, talk or write about it, as she sees it, therefore, requires the use
of language. As a consequence, all knowledge and understanding of the body is linguistically
mediated” (LLOYD, 2007, p. 2162).
A mediação da linguagem permite a Butler analisar as enunciações de caráter ontológico
não a partir dos marcos da verdade ou falsidade, mas como um campo enunciativo que devido ao
seu caráter construído pode ser questionado e, consequentemente, reformulado numa direção
oposta à metafísica dominante (DIAZ, 2012). Assim, o pertencer ou não a um gênero não possuem
em Butler nenhum caráter ontológico ou metafísico absoluto, sendo necessário rever os
parâmetros instituídos que engendram violências sobre uma série de experiências divergentes dos
padrões normativos naturalizados. Essa concepção acaba pondo em xeque uma série de categorias
binárias sustentadas pelas epistemologias hegemônicas, bem como por perspectivas ontológicas
que, pretendendo-se detentoras dos parâmetros de verdade acerca dos corpos e dos gêneros,
acabam apenas por referendar uma estrutura normativa excludente.
A partir dessa dinâmica de ausência de uma ontologia fixa e imutável anterior à própria
cultura, Butler consolidará sua crítica às perspectivas políticas e epistemológicas identitárias
naturalizantes, que, via de regra, recorrem à metafísica da substância para legitimação de suas
categorizações excludentes e, no mais das vezes, binárias. Para a filósofa,
Em relação aos processos de naturalização, a questão dos corpos emerge como central, pois,
devido à sua inegável realidade material, acabam por ser estabelecidos como ponto de partida
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Nietzsche. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.130-143, fevereiro, 2022.
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para pensar as diferenças de sexo-gênero. É por essa razão que Butler (1993) privilegia as
discussões em torno do corpo. Nesse sentido, a autora rejeita a dicotomia entre mente e corpo e
analisa do ponto de vista teórico e político a incidência dos discursos na constituição dos corpos
generificados, de forma a explicitar as relações entre sexo e gênero como constituintes das
subjetividades a partir de uma matriz binária que encontra nas diferenças entre as genitálias a
justificativa para a partição binária dos gêneros (CHAMBERS, 2007).
No entanto, longe de confundir a materialidade do corpo com os discursos que estabelecem
sua realidade, Butler propõe ser a própria condição material do corpo que ganha sentido dentro
de um marco discursivo específico. Assim, não haveria o corpo como categoria irredutível a partir
do qual seria possível afirmar a verdade dos sexos, mas desde sempre discursos acerca da realidade
material dos corpos que os dividem através de um esquema binário e, por isso, excludente, e a
partir dessa divisão se estabelece a ontologia dos gêneros atrelados sempre aos corpos e, mais
especificamente, às genitálias.
A questão da materialidade dos corpos deixa assim de ser, na filósofa, uma questão
estritamente natural para ser pensada no marco de uma materialização, dado até mesmo o
conceito do que se entende como matéria necessariamente passar pelo crivo da linguagem e da
cultura. “In this sense, to know the significance of something is to know how and why it matters,
where ‘to matter’ means at once ‘to materialize’ and ‘to mean’” (BUTLER, 1993, p. 32). A defesa
realizada por Butler diz respeito à impossibilidade de pensar a materialidade dos corpos fora da
linguagem, num processo que primaria pela realidade ontológica da diferença sexual como ponto
de partida para a consolidação das diferenças de gênero. Assim, para Butler (1993),
Nesse sentido, mais do que a busca por uma base irredutível para o estabelecimento da
diferença sexual, Butler propõe a problematização do próprio conceito de materialidade e,
consequentemente, da matriz de sexo-gênero binária. Isso ocorre devido a defesa realizada por ela
acerca da constituição histórico-cultural dessa matriz, num sentido no qual se torna impossível
conceituar a própria materialidade dos corpos fora dos discursos hegemônicos acerca do sexo e dos
gêneros (MARTÍNEZ, 2015).
Depreende-se disso a reiteração da ideia do caráter performativo da linguagem, inclusive
quando se trata de algo com inegável realidade material como o corpo. No entanto, essa
materialidade só ganha sentido dentro da cultura, não havendo, por isso, a possibilidade de se
pensar qualquer ontologia dos corpos baseada em dados que se pretendam prévios à linguagem.
No entanto, a partir disso não é possível afirmar haver em Butler a redução da materialidade dos
corpos à linguagem, mas apenas uma conexão necessária e insuperável entre esses dois aspectos.
Assim, falar em materialidade da linguagem ou de uma linguagem performativa que dá estatuto
de realidade à matéria não é estabelecer uma indistinção entre elas. Em não havendo oposição
entre materialidade e linguagem, como pretendem defender os discursos que impõem a diferença
sexual como uma realidade inegável por prévia a qualquer imersão na linguagem e na cultura,
não é tampouco possível afirmar, por oposição, que matéria e linguagem tratam-se da mesma
coisa. As dinâmicas estabelecidas entre esses fatores são constantes. Em Butler, eles estão sempre
se encontrando e colocando-se ao mesmo tempo além e aquém um do outro. Sendo isso que
permite à autora afirmar que
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PAIVA, André Luiz dos Santos. Desontologização do sujeito generificado e a metafísica da substância: diálogos de Butler com
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Language and materiality are fully embedded in each other, chiasmic in their
interdependence but never fully collapsed into one another, i.e., reduced to one another,
and yet neither fully ever exceeds the other. Always already implicated in each other,
always already exceeding one another, language and materiality are never fully identical
nor fully different (BUTLER, 1993, p. 69).
Considerações finais
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Referências
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