Texto 09. graves violações.... Angelo Priori

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ESTE TEXTO FOI PUBLICADO NO LIVRO:

PRIORI, Angelo. Repressão e graves violações dos direitos contra camponeses e indígenas no
Brasil. In: GONÇALVES, Marcos; BOSCHILIA, Roseli; NETTO, David A. Castro. (Orgs.).
Direitos Humanos em tempos de opressão: narrativas sobre vulnerabilidades e resistências.
Curitiba: Editora da UFPR, 2023, pp. 163-176.

Repressão e graves violações dos direitos contra camponeses e indígenas no Brasil

Angelo Priori (*)

Introdução

O objetivo deste capítulo é analisar as memórias obliteradas pelas políticas


autoritárias e repressivas praticadas ao longo do século XX no Brasil, com ênfase na
conjuntura da ditadura militar (1964-1985). Inspira-me para esta análise, os casos de
graves violações dos direitos humanos revelados pelos relatórios da Comissão Nacional
da Verdade (CNV), das Comissões Estaduais da Verdade (CEVs) e da Comissão
Camponesa da Verdade (CCV) que foram produzidos no Brasil durante os anos 2012 a
2017. Durante a ditadura houve intensa e continuada violação de direitos perpetrada por
agentes do Estado Brasileiro e/ou a seu comando, contra a população civil, com o uso
permanente da força, suprimindo os direitos individuais e coletivos, a liberdade de
expressão e a imposição de um conjunto normativo autoritário para institucionalizar e
legalizar atos e práticas típicas de regimes de exceção. Tomarei como referência, as
graves violações dos direitos contra camponeses, trabalhadores rurais e indígenas, para
exemplificar as práticas cometidas pelo Estado autoritário brasileiro, durante a ditadura
militar, bem como os esforços para a reconstrução de uma política de memória sobre essas
populações, que é fundamental para quebrar a invisibilidade política produzida sobre
esses atores sociais, bem como para fortalecer a inserção dos camponeses, dos

(*)
Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá/PR, do
ProfHistória e do Programa de Pós-Graduação em História Pública da Unespar/CM. Membro do
DIHPOM/UFPR.
1
trabalhadores rurais e dos indígenas no debate público sobre a ditadura militar, inclusive
como sujeitos de resistência.

Um caso emblemático

2
[Fotografia de Hilário Gonçalves Pinha em sua casa, em Porto Alegre/RS. Ano 2000]

Hilário Gonçalves Pinha foi um dos principais líderes da chamada Guerra de


Porecatu, ocorrida no Norte do Paraná, entre os anos 1948 e 1951.1
Os posseiros de Porecatu tinham uma longa história de luta em defesa de suas
posses de terras, desde pelo menos o início dos anos 1940. Foram eles que organizaram
as primeiras Ligas Camponesas que se tem notícia no Estado, ainda no ano de 1944, nas
localidades de Ribeirão Tenente, Guaraci, Centenário e Jaguapitã. Mais tarde, criaram a
Associação dos Trabalhadores Rurais e, por fim, aderiram à luta armada, com o apoio e
a logística do Partido Comunista Brasileiro (PCB) com o objetivo de resistir em suas
posses e se defender da violência dos grileiros e dos jagunços contratados por
latifundiários.
Hilário Gonçalves Pinha tinha vinte e um anos de idade quando assumiu o
comando de um batalhão da luta armada. Um ano antes tinha se filiado ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB). Não demorou muito, tornou-se uma das principais
lideranças na área conflagrada, por designação do Partido.
Em 1951, quando o movimento foi debelado pela ação das forças policiais e da
repressão, os posseiros foram transferidos para outras regiões do Estado. Com o
desmantelamento da resistência armada, a Delegacia de Ordem Política e Social do
Paraná (DOPS) passou a realizar o que os agentes policiais chamaram da “última parte
de nossa tarefa” (DEAP, Fundo DOPS, Pasta 544c.61, p. 9) que era o de apresentar os
responsáveis do movimento de posseiros de Porecatu para o julgamento dos tribunais.
Assim sendo, no dia 09 de agosto de 1951 concluíram e remeteram para a Vara Criminal
do Fórum da Comarca de Porecatu o inquérito policial relativo aos movimentos armados
dos posseiros de toda a região (FÓRUM, 1951). Neste inquérito foram apontados como
responsáveis pelos conflitos 15 pessoas, entre eles, Hilário Gonçalves Pinha. O processo
judicial foi concluído em maio de 1953. Após o julgamento, Pinha foi condenado a nove

1
A guerra de Porecatu, ou como é mais bem definida pela historiografia, a revolta camponesa de Porecatu
foi um movimento de resistência dos posseiros da região norte do Paraná contra latifundiários, jagunços,
forças policiais e judiciárias, para a manutenção do direito ao trabalho e o cultivo das terras ocupadas por
camponeses pobres e trabalhadores rurais. A resistência pela terra começou no início dos anos 1940,
progredindo para ações extremamente violentas no final daquela década. Entre os anos os anos de 1948-
1951, ocorreu na região uma das primeiras experiências armadas de camponeses em defesa de suas terras
e de seus locais de trabalho. Para isto ver o meu livro O levante dos posseiros... (PRIORI, 2011).
3
anos de prisão (CNV, 2014, p. 101, vol. II). Antes de ser preso, no entanto, fugiu da região
e caiu na clandestinidade. A partir daí sua vida não foi mais a mesma.
Na clandestinidade, Hilário Gonçalves Pinha perambulou por vários estados, mas
o trabalho mais árduo foi no interior do Estado de São Paulo, atuando na organização de
Sindicato de Trabalhadores Rurais. Em entrevista a este pesquisador, Pinha se refere a
este trabalho: “em São Paulo, por exemplo, eu ajudei a organizar 83 sindicatos rurais e
algumas dezenas de sindicatos urbanos. E eu, não consto em nenhuma dessas Atas porque
eu tinha nome clandestino, então meu nome não aparecia” (PINHA, 2000).
Pinha viveu na clandestinidade por mais de vinte anos. Na década de 1970, por
segurança, o PCB orientou que ele deixasse o Brasil rumo ao exílio. Pinha não aceitou,
mas acatou a decisão de deixar o Estado de São Paulo, já que os órgãos de segurança
estavam no seu encalce. Mudou-se para Porto Alegre, onde vivia com o nome falso de
Francisco Penha Rodrigues. Em Porto Alegre se casou e teve dois filhos. Ocupava o seu
tempo participando da direção estadual e nacional do PCB.
No entanto, foi em Porto Alegre, no ano de 1975, em uma operação conjunta do
DOPS e do DOI-CODI para prender os dirigentes do PCB, que Pinha [então Francisco
Penha Rodrigues] foi capturado. “Eles me agarraram, não foi bem uma prisão, foi um
sequestro”. Era o dia 18 de março de 1975 (FOLHA DE LONDRINA, 23 jul. 1985, p.
17). No DOPS, em Porto Alegre, foi barbaramente torturado. “Submetido a contínuas
sessões de torturas, caracterizadas por extrema violência, resultaram em fraturas de quatro
arcos intercostais, das quais decorreram rompimento dos intestinos, fígado e outras
vísceras”, como apontou o relatório final da Comissão Estadual da Verdade do Rio
Grande do Sul (ASSEMBLEIA..., 2014, p. 68).
Uma semana após ser preso, Pinha foi transferido para a sede da Polícia Federal
de Porto Alegre, onde se encontravam outros companheiros de partido. Naquela
repartição policial, no dia 07 de abril de 1975, com a presença de um irmão, que era
militar da Força Aérea, Francisco Penha Rodrigues foi identificado como o verdadeiro
Hilário Gonçalves Pinha. Acabava naquele momento os seus longos anos de
clandestinidade e identidades falsas.
Como Hilário Gonçalves Pinha tinha sido condenado à revelia, em processo
instaurado no Estado de São Paulo, por crimes contra a segurança nacional, ao ser
identificado, o comandante do II Exército solicitou a sua transferência para a capital
paulista. Ao chegar àquela capital, dado a gravidade do seu estado de saúde, após as
4
longas sessões de torturas por agentes do DOPS/RS e do DOI-CODI, o comandante do II
Exército determinou a sua internação no Hospital de Clínicas, onde foi submetido a
diversas cirurgias para recomposição do sistema digestivo. Mesmo assim, todo o sistema
digestivo ficou 70% comprometido, o que lhe impôs severas restrições alimentares para
o resto da sua vida. Entre São Paulo e Porto Alegre, Pinha ficou preso até o ano de 1978.
Libertado, reassumiu suas atividades no Partido Comunista na capital gaúcha. Em 1985,
foi enviado pelo PCB para a União Soviética, onde permaneceu 80 dias internado em um
Hospital Militar na capital daquele país, para tratamento das persistentes sequelas das
torturas.2
Em 1979, Hilário Gonçalves Pinha ingressou com uma ação declaratória contra a
União Federal, visando a obter a declaração de responsabilidade civil do Estado pelos
danos, físicos e morais, que lhe foram causados em virtude do martírio sofrido de parte
dos agentes do sistema repressivo político da Ditadura Militar.
A sentença proferida naquele momento foi a primeira do gênero a transitar em
julgado na Justiça brasileira, reconhecendo ainda em plena ditadura, a relação jurídica de
responsabilidade da União pelos prejuízos acarretados às vítimas da ação dos membros
da chamada comunidade de segurança e informações. Muito embora a demanda movida
pela viúva e o filho de Wladimir Herzog – ele também, militante do Partido Comunista
Brasileiro, preso, torturado e morto na mesma época – tenha sido ajuizada antes e,
inclusive, inspirado a ação judicial proposta por Hilário Gonçalves Pinha, a decisão
proferida nesta última tornou-se definitiva antes daquela. Por sua prisão e pelas sequelas
das sevícias que sofreu, Pinha recebeu uma indenização do Estado brasileiro
(ASSEMBLEIA..., 2014).

Os dilemas do nosso tempo: um passado que não passa

Relatei esta breve biografia de Hilário Gonçalves Pinha para demonstrar algumas
possibilidades de pesquisas sobre a questão das memórias obliteradas pelas políticas
autoritárias e repressivas praticadas ao longo da ditadura militar brasileira (1964-1985).

2
Esta não foi a primeira viagem de Pinha à União Soviética. Na década de 1950, logo após o término da
revolta camponesa de Porecatu e sua decisão de ir para a clandestinidade, o PCB lhe enviou à Moscou,
onde permaneceu por aproximadamente dois anos, em treinamento militar e capacitação política e
ideológica (PINHA, 2000).
5
Para efeito deste texto, vou focar em quatro pontos, que são fundamentais para a
nossa história do tempo presente. A questão da tortura, da invisibilidade, da justiça de
transição e da memória.
As memórias de Hilário Gonçalves Pinha vão se silenciando e se apagando
lentamente, ou por decurso do tempo, ou pela tentativa de negar um passado que não
passa. Mas não se trata apenas de uma memória individual. A memória de Hilário
Gonçalves Pinha está ancorada em uma memória social, coletiva. Hilário Gonçalves
Pinha, em sua trajetória, foi posseiro, trabalhador rural, líder camponês, sindicalista,
militante e dirigente político e, por isso, sofreu graves violações dos direitos humanos,
inclusive, um dos mais abomináveis, a tortura, que lhe deixou cicatrizes e sequelas físicas
e emocionais para o resto da vida.
Infelizmente, a tortura é uma instituição da sociedade brasileira. Como uma hidra,
se ramifica na vida privada e na pública. Um dos primeiros líderes da revolta camponesa
de Porecatu e membro da Liga Camponesa de Jaguapitã, Francisco Bernardo dos Santos,
foi violentamente torturado por jagunços contratados por latifundiários, antes de ser
assassinado (PRIORI, 2011, p. 121-123)3. Esta prática – tortura seguida de assassinato –
é uma realidade longeva e corriqueira no mundo rural, patrocinada pelo latifúndio, pelo
coronelismo e pelo clientelismo com a benevolência do Estado e das instituições judiciais.
Realidade que se repete nas periferias das grandes cidades, patrocinada por organizações
criminosas e por milícias muito bem estruturadas e espraiadas nos corredores das
instituições brasileiras.
A tortura também está arraigada nos órgãos públicos. Foi e tem sido práticas
comuns em manicômios, asilos e instituições policiais. E durante a Ditadura Militar, a
tortura se institucionalizou e se aperfeiçoou, ancorada em um forte sistema repressivo.
Foi usada para obter informações, mas também como um meio de dissuasão, de
intimidação e de disseminação do terror entre as forças de oposição ao regime. Como cita
o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV): “A repressão atingia, sobretudo,
grupos ou instituições que procuravam organizar as classes populares: sindicatos de

3
Francisco Bernardo dos Santos era um dos líderes dos camponeses de Porecatu. No retorno de uma das
viagens ao Rio de Janeiro, expediente que utilizava sempre que necessário para apresentar demandas aos
órgãos públicos federais, mas também para fazer denúncias aos órgãos de imprensa da capital da República,
foi preso pelo DEOPS de São Paulo, na cidade paulista de Ourinhos, e entregue para os jagunços dos irmãos
Lunardelli (então grandes latifundiários na região norte do Paraná), que os assassinaram. Para isto ver o
meu livro já citado (PRIORI, 2011), mas também o depoimento de João Saldanha (23 mar. 1985).
6
trabalhadores urbanos e rurais, associações de moradores em bairros pobres e ainda o
trabalho de padres e religiosos junto a esses mesmos grupos” (CNV, 2014, p. 104, vol. I).
É importante salientar o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), por
mais críticas que ela tenha recebido, pois a Comissão foi um mecanismo institucional
importante para o exame e o esclarecimento de casos de detenções ilegais e arbitrárias,
torturas, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, todos esses atos
compreendidos como graves violações dos direitos humanos. Este trabalho da CNV foi
desdobrado em várias comissões estaduais da verdade, municipais ou universitárias. Cito
como referência o trabalho da Comissão Estadual da Verdade do Paraná (CEV/PR), cujo
relatório final ressaltou as constantes ações de tortura, desde os primeiros dias do golpe
militar de 1964, exercidas por órgãos estaduais, como a Delegacia de Ordem Política e
Social (DOPS) ou pela Força Policial Pública (Polícia Militar) e diversos órgãos federais
com ação no Estado, como os batalhões do Exército brasileiro (com destaque para os
batalhões de Apucarana e de Foz do Iguaçu), da 5ª Região Militar, com sede em Curitiba
ou das diversas Delegacias da Polícia Federal, locais incontestes e bem documentados
utilizados para a tortura (CEV/PR, 2017). As vítimas são uma representação da sociedade,
já que nos porões de torturas, os algozes não distinguiam classe social, sexo, profissão ou
escolaridade. Mas as evidências reunidas pela CEV/PR, em documentos e depoimentos,
destacam que mulheres, estudantes, sindicalistas, camponeses, indígenas e militantes de
movimentos sociais e de partidos de esquerda eram as vítimas preferidas dos órgãos de
repressão e de tortura (CEV/PR, 2017, sobretudo o II volume).
Chamar uma especial atenção para estas graves violações, não relativiza,
obviamente, outros tipos de violações cometidas pela ditadura militar, como a cassação
de direitos políticos, a censura à imprensa e às artes, o exílio forçado ou mesmo a
perseguição a funcionários públicos. Abro um parêntese, para citar um exemplo. Nos
meses iniciais da ditadura, só a agência central do Banco do Brasil, em Curitiba, transferiu
32 bancários para outros estados, como Pará, Mato Grosso, Goiás e Ceará, todos
removidos por “interesse do serviço”, sendo que boa parte dos removidos tinham alguma
participação nas lutas sindicais bancárias da época ou eram estudantes universitários
(DEAP, Fundo DOPS, Pasta 781c.91, p. 240-241).

Camponeses e indígenas

7
Tenho que destacar, pois é o objetivo deste texto, a importância da apuração das
violações dos direitos humanos, cometidas contra trabalhadores rurais, camponeses e
indígenas, contemplados no segundo volume do relatório final da CNV e no primeiro
volume do relatório final da CEV/PR. Ressalto estes dois documentos, mas poderia citar
outros relatórios de comissões estaduais da verdade, que também foram importantes para
reafirmar a violação de direitos humanos contra camponeses, como são os casos das
CEVs dos estados da Paraíba, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Quando se trata de
trabalhadores rurais, camponeses e indígenas, o Estado Brasileiro tem sido muito tímido
na sua política de justiça de transição. O fato destas comissões incluírem em seus
relatórios finais essa preocupação com a violação dos direitos humanos das populações
do campo e da floresta, já é um alento.
Nas últimas décadas, algumas iniciativas foram importantes, como a criação da
Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP); posteriormente com a
criação da Comissão de Anistia; e com as ações da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (anterior a este governo atual, frise-se!). No âmbito da
Secretaria de Direitos Humanos foram produzidos alguns documentos com certa
centralidade, como o livro relatório Direito à Memória e à Verdade (2007), o livro
Retrato da repressão política no campo (2010, revisado em 2011) e o livro Camponeses
mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição (2013), que reconheceram que
camponeses sofreram graves violações dos direitos humanos entre 1961 e 1985.
Depois destes documentos nós tivemos a divulgação do Relatório final da
Comissão Nacional da Verdade, publicado no final de 2014 (que estendia a sua
temporalidade para o período de 1946-1985), que inseriu um capítulo sobre camponeses,
e paralelamente à CNV, o trabalho da Comissão Camponesa da Verdade (CCV, 2014),
realizada pelos movimentos sociais, que também produziu extenso relatório e que parte
dele foi integrada no relatório da CNV.
No livro citado, Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de
transição - foram listadas 1196 pessoas mortas e desaparecidas no campo entre 1961 e
1988. No entanto, apenas 51 apresentaram requerimentos à Comissão sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos (CEMDP), ficando os demais excluídos do direito à memória e
à verdade, do reconhecimento da responsabilidade do Estado e da reparação moral e
material aos seus familiares. Hilário Gonçalves Pinha, resumidamente biografado no

8
início deste texto, faz parte de um pequeno número de camponeses que compõem as
exceções.
Esta quantidade de assassinatos e de graves violações aumentam
consideravelmente quando incluímos os números relativos aos indígenas exterminados
no processo de expansão e de ocupação do interior do Brasil, da construção de estradas e
de hidrelétricas, levadas a cabo durante a ditadura militar. São muitos os exemplos. Mas
vale destacar dois casos ocorridos no Estado do Paraná, como símbolos deste processo.
O primeiro foi o extermínio do Povo Xetá, que vivia na Serras dos Dourados, noroeste do
Estado do Paraná. Uma população inteira foi vítima do processo de colonização fundiária
e do avanço da expansão cafeeira, que varreram suas florestas, seus habitats e suas
culturas. Em menos de vinte anos, entre as décadas de 1940 e 1960, os Xetás foram
praticamente exterminados, por práticas de roubos de crianças, sequestros de mulheres e
de adultos e assassinatos, com o beneplácito do antigo Serviço de Proteção aos Índios
(SPI) (CEV/PR, 2017, p. 143 e ss.). O segundo caso é o processo de construção de Itaipu,
que inundou as terras dos Avá-Guarani.4 Os Avá-Guarani viviam em uma área conhecida
como Jacutinga ou Barra do Ocoí (ou Ocoy). Com a eminente inundação de suas terras,
que ocorreria no mês de outubro de 1982, em meados daquele ano uma parte dos Avá-
Guarani foram colocados em caminhões e deslocados para outra região do Estado,
conhecida como rio das Cobras. Uma outra parte, não aceitando a proposta, se dispersou
para várias localidades, inclusive para a Argentina e o Paraguai, mas não sem antes sofrer
todo tipo de violência, como serem despejados de suas casas, terem suas casas
incendiadas, suas plantações queimadas (BLANC, 2021, p. 165-197) bem como sofrer
uma desestruturação nos seus modos de vida, já que para os Avá-Guarani, trabalhar a
terra5 faz parte das suas tradições e costumes em relação às suas práticas culturais
(CONRADI, 2007).
Tanto os casos dos Xetás, como dos Avá-Guarani, desnudam a responsabilidade
do Estado, seja através do SPI, para o primeiro caso, sejam através da Funai ou de Itaipu

4
Deve-se enfatizar que aproximadamente 40 mil camponeses e trabalhadores rurais tiveram suas terras
inundadas para a formação do lago de Itaipu. Mas diferente dos Avá-Guarani, os camponeses,
principalmente os com terras, receberam indenizações das suas propriedades, embora em valores bastante
desfavoráveis para a época. Sobre este processo, remeto os leitores ao livro de Jacob Blanc (2021).
5
Os Avá-Guarani entendem a terra como um modo de vida. A usual expressão “sem Tekoha não há Tekó”
é um retrato fiel desta cultura. A palavra terra – Tekoha – vem da raiz Tekó, que significa um modo de ser
e um sistema de cultura, leis e tradições. Tekó e Tekoha, significam, segundo Bartomeu Meliá (1989, p.
336), “ao mesmo tempo, relações econômicas, relações sociais e organizações político-religiosas”, que
segundo ele são fundamentais para a vida Guarani.
9
para o segundo. Devo enfatizar que o Estado não pode ser isento desta responsabilidade
pública. A ponta do iceberg já poderia ser visto na produção do chamado Relatório
Figueiredo, produzido no final da década de 1960, um compêndio com mais de 7 mil
páginas e 30 volumes (RELATÓRIO FIGUEIREDO, 1968), descoberto e divulgado em
2012 pelo pesquisador do Museu do Índio, Marcelo Zelic. Este relatório reporta a
violência extrema contra indígenas, durante as décadas de 1940 a 1960, evidenciando os
crimes de graves violações dos direitos contra indígenas, como são os casos de tortura,
de confinamentos, de trabalho escravo e de assassinatos, cometidos por agentes do
Estado, mas também por latifundiários e capangas contratados por latifundiários e
empresas de colonização.

A questão da invisibilidade

E aqui apresenta-se um novo problema: a questão da invisibilidade. A


reconstrução dessa memória é fundamental para quebrar a invisibilidade política
produzida sobre esses atores sociais, como também para fortalecer a inserção dos
camponeses e dos indígenas no debate público sobre a ditadura militar, inclusive como
sujeitos de resistência. Deste modo, as Comissões da Verdade (nacional e estaduais)
reuniram trajetórias de camponeses, de trabalhadores rurais e de indígenas no percurso da
resistência em todas as regiões do país.6 É fundamental ter claro que, apesar dos processos
históricos de luta por direitos e de resistência à expropriação, há uma clara invisibilidade
histórica dos camponeses, tanto em relação ao seu protagonismo (na luta contra a
violência do latifúndio ou da ditadura) como nos processos de reparação. É um segmento
social “esquecido” (poucos casos investigados nas Comissões de Anistia e de Mortos e
Desaparecidos, como referenciamos acima), tanto por seu protagonismo e luta como pela
não reparação das violações sofridas.
A invisibilidade serve como um mecanismo político de não reconhecimento e,
consequentemente, não reparação (pequeno número de casos aprovados na CEMDP e na
Comissão de Anistia) e o que é mais grave, não justiça (raros casos de punição judicial

6
Para refletir sobre a história do Brasil recente, na perspectiva da memória dos camponeses e dos
trabalhadores rurais, destacando as suas conquistas, as suas derrotas e as suas dificuldades de acesso ou
permanência à terra, bem como destacar um olhar mais atento para as vítimas do passado que ficaram no
meio do caminho, presentificar as suas ausências e combater o seu esquecimento, sugiro as considerações
de Paul Ricouer (2008) e de Araújo & Santos (2007).
10
aos perpetradores das violações aos direitos humanos, no campo), sendo fundamental este
trabalho de reconstrução da memória e da verdade.7
Como se fazer valer da memória camponesa para justificar o acesso à justiça,
quando sabemos que a realidade da violência, da repressão, da retaliação, da perseguição
e dos massacres sofridos por homens e mulheres no campo não estão devidamente
registrados nos documentos oficiais? No caso aqui, os relatos de experiência podem ser
profícuos, como os depoimentos colhidos pelas diversas comissões da verdade. Como
enfatiza J. W. Scott: “histórias que documentam o mundo escondido (...) mostram o
impacto do silêncio e repressão nas vidas que foram afetadas e trazem à luz a história de
como foram suprimidos e explorados” (1998, p. 302). Como diz Cervantes no seu Dom
Quixote, temos que buscar as vozes que estão no subterrâneo, ou seja, resgatar essas
memórias subterrâneas, silenciadas, por que elas existem (CERVANTES, 1999, p. 104).

À guisa de conclusão: o direito à memória e à verdade

Ao tratar da memória camponesa e dos trabalhadores rurais, compreendemos que


a memória é parte da construção da verdade. Sem trazer à tona memórias daqueles que
foram duramente atingidos, em períodos repressivos, a verdade, o acesso à justiça e a
reparação seriam limitados. Temos clareza que ambas, memória e verdade, são elementos
fundamentais para a reparação dos direitos humanos de tantos camponeses e indígenas
atingidos. Se reconhecermos que as lutas camponesas foram parte da resistência à
repressão, antes ou durante a ditadura militar, será possível – além de reconhecer o
protagonismo pretérito desses sujeitos – iniciar um justo processo de reparação das
violações sofridas pelos mesmos, aproximando memória e justiça. Essa aproximação não
esvazia a relação entre memória e passado, mas a vincula a uma construção do porvir de
maneira concreta, dando respostas às situações de violação dos direitos humanos sofridas
por camponeses e trabalhadores rurais.8
Na luta camponesa por direitos e contra o latifúndio e a propriedade privada,
figuram ações de milícias privadas, jagunços, pistoleiros e outros, em violências

7
No livro O levante dos posseiros (2011) analisei a dificuldade que os camponeses e os trabalhadores rurais
tem de acessar a justiça brasileira.
8
Sobre a questão da reparação, tanto “moral como histórica”, um bom debate encontra-se em Glenda
Mezarobba (2007). Para uma leitura no campo do direito, ver Abrão & Torelly (2010).

11
reiteradamente marcadas como crimes comuns. Entretanto, poucos são investigados os
agentes do Estado que participaram ativamente de ações repressoras, por conivência ou
omissão, dos crimes cometidos no campo. Tampouco é aprofundado o impacto das
políticas públicas que se abateram contra a população rural no século XX, sobretudo as
políticas de colonização e modernização conservadora do campo, que expulsaram
milhões de pessoas para as cidades, mudando todo o seu ambiente sócio-cultural. Falar
em memória e verdade no campo deve abrir a possibilidade de reescrever um capítulo da
história brasileira e reconhecer e responsabilizar agentes do Estado por violações de
direitos, cometidos no abuso de suas competências.
Entre os crimes cometidos contra camponeses e indígenas no período da ditadura,
as torturas, mortes/assassinatos, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres,
crimes sexuais, são mais facilmente identificados como graves violações dos direitos
humanos. Entretanto, é necessário abrir o escopo, incluindo a violência entendida como
ameaças, perseguições, expulsão da terra, prisões arbitrárias e outras ações contra pessoas
e grupos no campo.
É o direito de saber, como cravou a Comissão de Direitos Humanos da ONU, no
chamado relatório Joinet (CHN/ONU, 1997). Não se trata apenas de um direito individual
que as vítimas ou os seus parentes tem à verdade e reparação, mas é também um direito
coletivo que tem a sua origem na história para evitar que no futuro essas graves violações
se repitam. O uso frequente da expressão “para que nunca mais aconteça” em referência
ao nosso passado ditatorial é uma necessidade, visando fortalecer um futuro democrático.
E é o Estado que tem o dever de preservar a memória, afim de prevenir as deformações
da história, alavancadas pelo revisionismo e pelo negacionismo, tão em voga atualmente.
O conhecimento da história da opressão de um povo pertence ao seu patrimônio e como
tal deve ser preservado. Estas são as finalidades do direito de saber e do direito coletivo.
O próprio Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF), reconheceu em decisão proferida
em fevereiro de 2021, que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição
Federal de 1988 (RODAS, 11 fev. 2021), o que, mesmo sendo uma decisão polêmica,
joga luz para que crimes do passado não sejam esquecidos.
A memória não deve se limitar a cumprir um compromisso com as vítimas da
repressão, senão servir também para construir um futuro que, a partir do recordar, logre
sanar e superar a herança perversa do autoritarismo. Por isso, não é possível abrir mão de
instrumentos de justiça. Portanto, é fundamental que a responsabilidade do Estado e de
12
seus agentes sejam reconhecidas pelas violações e danos causados à vida de tantos
camponeses e indígenas e as injustiças sejam reparadas. O sentido da memória –
apreendida como perspectiva de futuro pautado em valores democráticos ampliados – está
ancorada na sua compreensão como uma recordação limpa, coesa e ampliadora da
verdade. Assim, a sociedade brasileira guarda os mesmos sentidos para o passado e o
mesmo encaminhamento para o futuro, como garantia da justiça.
Tanto na conjuntura que antecedeu ao golpe militar entre 1946 e 1964 - o regime
democrático não assegurava os direitos de cidadania aos camponeses e indígenas e
reprimia suas lutas e organizações -, como entre 1964 e 1985, a ditadura militar suprimiu
as liberdades democráticas de camponeses e indígenas que foram perseguidos, agredidos,
torturados e mortos.
Reconstruir a memória camponesa e indígena abre a possibilidade de dar
visibilidade pública às violações cometidas pelo Estado e seus agentes contra homens e
mulheres do campo, violentados por lutarem pelo direito à terra, resistir ao avanço de uma
modernização (excludente e dolorosa) e marcados pela usurpação de direitos. Ao mesmo
tempo que que é fundamental recorrer ao conceito de justiça de transição - um conjunto
de ações administrativas e judiciais que efetiva direitos tais como anistia, reparação moral
e material às vítimas. Portanto, memória, verdade e justiça são condição para superação
do passado ditatorial e o estabelecimento de um regime democrático pleno.

Referências

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