Letramentos no ensino de Língua Portuguesa_ LIVRO COMPLETO

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Oliveira, Marcia Lisbôa Costa de. (Org.)

Letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica


Marcia Lisbôa Costa de Oliveira (Org.) - Campinas, SP : Pontes Editores, 2019

Bibliografia.
ISBN 978-85-

Índices para catálogo sistemático:


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Coordenação Editorial: Pontes Editores
Editoraçã: Eckel Wayne

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2017 - Impresso no Brasil


A boniteza do processo é exatamente esta possibilidade
de reaprender, de trocar. Esta é a essência da educação
democrática.
Paulo Freire1

1 FREIRE, P. Pedagogia da solidariedade. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016. p.30.
SUMÁRIO

PREFÁCIO
O DEBATE “ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTOS”.............................................9
Walkyria Monte Mór

INTRODUÇÃO
ELABORAÇÃO DIDÁTICA COLABORATIVA: UMA PROPOSTA FUNDADA
NA TRÍADE EXPERIÊNCIA, AGÊNCIA E CRÍTICA .............................................17
Marcia Lisbôa Costa de Oliveira

LETRAMENTOS NAS SÉRIES INICIAIS

REINVENTANDO A ALFABETIZAÇÃO NA PERIFERIA: ESPAÇOS,


TEMPOS E PROJETOS ..................................................................................43
Gabriela Medela da Silva

COCONSTRUÇÃO DE SENTIDOS EM PRÁTICAS MEDIADAS DE LEITURA:


UMA ANÁLISE SOCIOINTERACIONAL..............................................................67
Aline Salucci Nunes

LEITURAS COTIDIANAS DE ALFABETIZANDOS: EXPLORANDO CONCEPÇÕES


SOBRE LETRAMENTOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS....................99
Vanessa Teixeira Ribeiro

O PLANEJAMENTO EDUCACIONAL INDIVIDUALIZADO (PEI) NOS


PROCESSOS DE LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO DO ALUNO
COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL...................................................................123
Marlene Maria de Oliveira de Andrade
LETRAMENTOS NOS ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

O POTENCIAL DAS TIRAS CÔMICAS COMO ESTÍMULO À AGENTIVIDADE


E À EMPATIA NUMA PERSPECTIVA CRÍTICA...................................................151
Carlos Eduardo Ferreira da Silva

O LUGAR ONDE VIVO: SÓ MATO, BARRO E TIRO?!: UMA EXPERIÊNCIA DE


LETRAMENTO CRÍTICO NO NONO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL............179
Izabelle Cristina Siqueira Vieira Abboud

MEMÓRIA E IDENTIDADE NA ESCRITA DE ESTUDANTES DA EJA...................203


Cristiane Melo Alves

O GÊNERO CONTO E O ENSINO DE GRAMÁTICA:


UMA ABORDAGEM CRÍTICA...........................................................................231
Marcela Martins de Melo Fraguas

SOBRE OS AUTORES.......................................................................................257
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

PREFÁCIO

O DEBATE “ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTOS”

Walkyria Monte Mór

Em capítulo de livro publicado em 2015 em língua inglesa,


abordei a minha visão sobre um tema que recentemente vem
gerando debate, o da disputa pela eficácia entre os projetos de
letramentos e os de alfabetização pelo método fônico. Sem ter a
pretensão de detalhar a história de ambos os projetos, proponho
falar um pouco mais sobre cada um deles e, assim, me posicionar,
agora em português.
A alfabetização pelo método fônico, em explicação resumida,
se caracteriza pelo aprendizado da leitura e da escrita a partir do
conhecimento dos sons das letras e das junções que formam dois
ou mais fonemas (o conhecido beabá; vovô viu a uva, etc). Nele, o
aluno aprende a associar grafemas (letras) a fonemas (sons) (SOA-
RES, 2005). Esse aprendizado conta com o princípio epistemoló-
gico da linearidade e da gradação (MORIN, 2000), ou seja, segue
a sequência linear e gradativa – do mais simples ao mais comple-
xo – das partes para o todo, sendo esses sons, sílabas, palavras,
frases, textos (simples e, então, complexos). Durante mais de um
século foi/tem sido o método predominante, com suas variantes,
seguindo as premissas de que: por esse processo de aprendizagem,
a alfabetização ocorria/ocorre em menor tempo e maior qualidade;
formavam-se/ formam-se leitores com maior fluidez e entendimento
do que leem; os alunos escreviam/escrevem também com maior

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

fluidez, criatividade, além disso, com as esperadas coerência e


coesão, enfaticamente trabalhadas na escola; o desenvolvimento
da escrita se dava/dá com menor índice de erros ortográficos.
Passa-se o tempo e o construtivismo emerge: na pedagogia,
principalmente, mas também na filosofia, psicologia, matemática,
cibernética, biologia, sociologia e arte (século XX, aproximadamen-
te) e contesta a fragmentação, a artificialidade e a neutralidade do
método fônico (YOUNG, 2008). O construtivismo defende que a
habilidade de leitura deveria se desenvolver de forma contextuali-
zada e ‘natural’ [ou, menos artificial], por meio de textos originais
e não com obras artificialmente construídas, como cartilhas.
O construtivismo é muito mais que um método. Tem natureza
ontológica e epistemológica, ou seja, volta-se para o conhecimento
como uma construção social, por meio da qual sustenta os métodos
que dele advêm. Nessa premissa, o sujeito tem papel ativo: por
conta de sua subjetividade, tem agência sobre o conhecimento
que constrói, é capaz de modificar representações cristalizadas de
conhecimento e de sociedade. Sendo assim, rejeita o objetivismo
que caracteriza a ‘alfabetização clássica’, por não concordar com
a ideia de que o objeto com/em suas representações se imponha
sobre um sujeito supostamente passivo. Diferentemente, entende
que os modos de ver a realidade com/em suas representações são
condicionados pelo meio social/habitat em que o sujeito se integra.
Logo, nessa perspectiva, as representações não são verdades fixas,
são construções sociais e as visões sobre essas são suscetíveis a
mudanças/revisões.
Em vários países ocidentais ‘desenvolvidos’, a polêmica
iniciou-se nos anos 1950 e fortaleceu-se mais ao final dos 1990. A
partir de 2000, com base em vários estudos comparativos, alguns
países mantiveram o método fônico no processo de alfabetização,
outros decidiram trabalhar num novo projeto que previa a revisão
educacional, levando em conta as teorias do construtivismo e
também do sócio-construtivismo. No Brasil, esse debate parecia

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ganhar destaque em 2006 (quando foi proposta a revisão dos PCN’s


pelo MEC, que favorecia o projeto de letramentos), porém, não foi
adiante naquele momento. Recentemente, o debate volta à baila,
havendo, dessa vez, defesa do MEC pelo método fônico em con-
traponto à proposta construtivista. Esta última é vista pela nova
equipe ministerial como uma proposta ideologizante em que há
excessiva preocupação com a promoção da socialização e da visão
crítica dos alunos e pouco investimento no aprendizado básico da
leitura e da escrita propriamente ditas. Segundo a referida equipe,
o baixo investimento no aprendizado básico teria resultado no alto
nível de analfabetismo funcional no Brasil, um conceito que des-
creve a incapacidade de uma pessoa compreender textos simples,
não estando apta a desempenhar boa parte das funções no mer-
cado de trabalho. Há divergência quanto a essa avaliação. Outros
especialistas analisam que o resultado insatisfatório do aprender
a ler e escrever não se deve à aplicação de métodos, mas a outras
questões de políticas públicas (a formação adequada e atualizada
de professores seria uma delas).
Na referida publicação que mencionei no início do texto (MONTE
MÓR, 2015), contextualizo esse debate/embate ao descrevê-lo em
suas três gerações, explanando que a alfabetização pelo método
fônico ganhou oposição na década de 60, com as propostas de Freire
(FREIRE, 1967; 1987; 1996). Por que oposição? Esperava-se que a
prática daquele tipo de alfabetização na maior parte da sociedade
– pobre, “analfabeta”, que vivia em aldeias, ou, por exemplo, para
jovens urbanos desprivilegiados – tivesse o efeito de melhorar suas
habilidades cognitivas, melhorando suas perspectivas econômicas,
tornando-os melhores cidadãos, independentemente das condições
sociais e econômicas, conforme previsto no ideário do modelo de
alfabetização pelo método fônico. Verificou-se, no entanto, que
aquele modelo praticado – mais adiante denominado de autônomo
por Street (2003, p. 77) – velava os pressupostos culturais e ideo-
lógicos que o sustentavam para que pudessem ser apresentados
como neutros e universais. A respeito desse processo convencional

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

de alfabetização, Soares (1998) destaca a sua limitação ao dizer que


a pessoa alfabetizada seria aquela “que vive na condição de quem
sabe ler e escrever”, sem que sua agência como sujeito tenha o
protagonismo previsto pela educação postulada pela proposta de
letramentos. Logo, a mencionada oposição se devia à percepção de
que o ensino padronizado e objetivista, com aparência de neutro
sem o ser, não alcançava seu objetivo proposto para a maior parte da
sociedade, não promovendo os efeitos favoráveis esperados sobre as
práticas sociais e cognitivas da maioria. Por isso, a primeira geração
do projeto brasileiro de letramentos, a que se opunha ao método
fônico e se pautava numa visão construtivista de aprendizagem
ganhou fôlego nos anos 60, embora tenha sido interrompida pelo
golpe militar nos anos iniciais daquela década. Pouco a pouco, volta
à cena com o final da ditadura, lá pelos idos de 80.
Essa é a época em que vejo a segunda geração de letramentos
se despontando no Brasil. A revitalização do programa político-
educacional de Freire em suas próprias raízes e os pressupostos
acerca de um modelo ideológico de ensino de leitura são, a meu
ver, representantes da segunda geração de letramentos. Ao dis-
cutir a inadequação do modelo de leitura autônoma – dominante
no aprendizado pelo método fônico, considerado fragmentado,
deslocado da realidade dos estudantes e desconectado do valor da
consciência social que foi tão enfatizado por Freire em sua resposta
à forte presença da colonialidade no país – e propor o modelo ide-
ológico, Street (1984) corrobora as teorias de Freire. Com a busca
por uma proposta adequada aos tempos e sujeitos desses tempos,
reafirma-se uma nova geração do projeto de letramentos no Brasil.
No meio acadêmico e escolar, observou-se a adequação dessa
proposta, uma vez que oferecia “uma visão mais culturalmente sen-
sível das práticas de letramento, por variarem de um contexto para
outro”. Também porque postulava que a alfabetização era “uma
prática social, não simplesmente uma habilidade técnica e neutra”,
além de estar “sempre embutida em princípios epistemológicos
socialmente construídos” (STREET, 1984, p. 77-78).

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Outro fator de forte influência nos estudos sobre letramen-


tos nessa segunda geração foi a integração do Brasil ao Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) em 2000. Um grande
número de estudantes brasileiros avaliados demonstrava possuir
habilidades insuficientes para ler e escrever, sendo descrito como
‘jovens funcionalmente analfabetos’. Isto é, eram alfabetizados,
tinham aprendido a ler e a escrever na visão convencional da
alfabetização, com baixo ou nenhum desenvolvimento acerca
das habilidades que envolvem interpretações (ou construção de
sentido), inferências, percepções de sutilezas na comunicação,
como ironia e sarcasmo. Isso explicava o descompasso entre os
propósitos da alfabetização convencional longamente praticada e
os dos letramentos [em sua segunda geração] que se voltava para
o desenvolvimento de habilidades necessárias para o trabalho na
atualidade, trabalho esse que reconhece outras construções epis-
temológicas e outras formações ontológicas.
A terceira geração de letramentos (que inclui os multiletra-
mentos, os novos letramentos, os letramentos críticos e os digitais)
emerge com a premissa de expansão da proposta da segunda ge-
ração. A terceira geração se reafirmou diante da percepção de que
os modelos educacionais convencionais adotados em vários países
ocidentais não respondiam/respondem mais às necessidades da
sociedade brasileira, nem das ocidentais. Reconhece as transforma-
ções resultantes de vários fatores, mas principalmente dos fenôme-
nos da globalização e da tecnologia digital, ressaltando o impacto
do neoliberalismo na sociedade. Em menor ou maior escala, essas
transformações alteraram/alteram gradualmente as bases sociais,
culturais e políticas de vários campos nas sociedades, visivelmente
a escola e a universidade. Essa visão de letramentos é reconhecida
como aquela que pode promover a transdisciplinaridade entre as
diversas disciplinas ou projetos escolares. Assim, distingue-se dos
letramentos da segunda geração na qual o ‘processo de letrar’ era
assumido pela área de língua portuguesa, a língua mãe, tida, na
prática, como a principal responsável pela formação crítica, moral,

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

intelectual, cultural, política, um princípio que liberava/libera as


demais disciplinas curriculares da responsabilidade dessa forma-
ção. De acordo com os propósitos da terceira geração, o conjunto
das matérias e projetos curriculares passa a ter a responsabilidade
pela formação [crítica, moral, intelectual, cultural, política] da cida-
dania. Essa proposta mais recente também estimula um repensar
sobre o desenho curricular/ as políticas curriculares, a relação
escola-sociedade, a relação professor-aluno, a linguagem em suas
modalidades e a linguagem em suas comunidades de prática. Con-
forme Soares (1998, p. 38), de maneira diferente da alfabetização
convencional, o letramento conta com a hipótese de que “aprender
a ler e escrever e, além disso, fazer uso da leitura e da escrita trans-
formam o sujeito, levam o sujeito a um outro estado ou condição
sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo, linguístico, entre
outros”. Assim, esta proposta vem ganhando espaço crescente no
debate nacional sobre educação. Talvez, por essa razão, tem sido
assombrada pelo debate que diz respeito ao retorno do método
fônico de alfabetização. O retorno desse método contribuiria para
combater a ideologização que, segundo a equipe ministerial da
educação, parece ter tomado conta das escolas brasileiras.
Ainda com respeito às três gerações de letramentos aqui
apresentadas, vale muito a pena salientar que essas visões de
educação não são estanques. Embora identificadas como “gerações
diferentes”, dando a impressão de que um ponto de vista substitui
o outro, ou que o terceiro é predominante na educação brasileira,
constata-se que as três visões coexistem, refletindo a complexidade
dessa questão.
Por que esse debate está sendo retomado? Por que agora se
propõe a volta da alfabetização por meio do método fônico? Será
que a educação do sujeito, agente, crítico, com potencial transfor-
mador já não interessa (ou nunca interessou) ao projeto brasileiro
de formação de cidadania?

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Em meio a essa discussão, vejo muito vigor e interesse no


trabalho de professores, em formação inicial ou continuada, no de
formadores de professores, de pesquisadores e atores dos setores
públicos, em ampliar suas visões em torno dessa terceira geração
de letramentos. Voltam-se para multimodalidades em linguagem e
comunicação, construção do conhecimento, epistemologias digi-
tais, agência para a criação de significado, permitindo o repensar
da educação frente aos desafios sociais novos ou renovados. Neste
livro, os trabalhos com essas perspectivas se fazem conhecer, por
meio de instigantes capítulos sobre as experiências vividas e os
estudos realizados nesse campo. O livro traz, sem dúvida, uma
leitura instigante. É, com isso, um presente de sua organizadora,
professora Marcia Lisboa Costa de Oliveira (UERJ), e dos autores
dos capítulos dessa obra aos interessados nessa temática. Enjoy!

Walkyria Monte Mór


Professora Livre-Docente
Universidade de São Paulo
Co-Coordenadora do Projeto Nacional de Letramentos:
Linguagem, Cultura, Educação e Tecnologia
Diretório dos Grupos de Pesquisa-CNPq

REFERÊNCIAS

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Brasil: Editora


Paz e Terra, 1967.
______. Pedagogia do oprimido. 28. ed. Rio de Janeiro, Brasil: Paz e Terra,
1987.
______. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro, Brasil: Paz e Terra, 1996.
MONTE MÓR, W. Learning by Design: reconstructing knowledge
processes in teaching and learning practices, in B. Cope; M. Kalantzis
(Eds) A Pedagogy of Multiliteracies: Learning by Design. Nova York: Palgrave
Macmillan, 2015, pp 186-209.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

MORIN, E. A Cabeça Bem-Feita. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2000.


SOARES, M. Letramento, Um Tema em Três Gêneros. Belo Horizonte: Ed.
Autêntica, 1998 [2005].
STREET, B. “What’s “new” in New Literacy Studies? Critical approaches
to literacy in theory and practice”. Current issues in comparative education.
2003, 5 (2): 77–91.
______. Literacy in Theory and Practice. Cambridge: Cambridge University
Press, 1984.
YOUNG, M. From Constructivism to Realism in the Sociology of the
Curriculum. In Kelly, G.; Luke, A.; Green, J. (Eds) Review of Research in
Education. What Counts as Knowledge in Educartional Settings: Disciplinary
Knowledge, Assessment, and Curriculum, Volume 32. Thousand Oaks,
California: 2008, pp 1- 28.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

INTRODUÇÃO

ELABORAÇÃO DIDÁTICA COLABORATIVA


UMA PROPOSTA FUNDADA NA TRÍADE
EXPERIÊNCIA, AGÊNCIA E CRÍTICA

Marcia Lisbôa Costa de Oliveira

“Se a formação de professores é tão importante quanto


se diz para melhorar o ensino, essa é mais uma razão
para não nos contentarmos com palavras vazias.”
Philippe Perrenoud (1994, p. 89. Trad. nossa.)1

INTRODUÇÃO

Os trabalhos reunidos nesse livro foram escritos por docentes


da educação básica, e são, portanto, plenos de significação. Estão
recolhidas aqui experiências autorais de ensino, com forte viés
crítico, que foram desenvolvidas por um professor e sete profes-
soras ligadas aos dois mestrados oferecidos pelo Departamento de
Letras da Faculdade de Formação de Professores da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.
Podemos afirmar que esses docentes estão na fase de diver-
sificação, de acordo com o estudo da carreira pedagógica apre-
sentado por Antonio Nóvoa (1992, pp. 36-51). Tendo ultrapassado
o primeiro momento da carreira, que inclui os dois ou três anos

1 No original: Si la formation des maîtres est aussi importante qu’on le dit pour améliorer
l’enseignement, raison de plus pour ne pas se payer des mots /.../

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

primeiros anos, marcados pela sobrevivência e pela descoberta,


o professor chega à fase de estabilização. Essa segunda fase, em
termos pedagógicos, corresponde à consolidação profissional,
quando emerge o “sentimento confortável de ter encontrado um
estilo próprio de ensino” (NÓVOA, 1992, p. 39). A diversificação é
marcada pela motivação e pelo dinamismo,

Durante esta fase, o professor busca novos estímulos,


novas ideias,novos compromissos. Sente a necessidade
de se comprometer com projectos de algum significado
e envergadura; procura mobilizar esse sentimento,
acabado de adquirir, de eficiência e competência.
(COOPER, apud NÓVOA, 1992, p.42)

Ao buscarem a formação continuada em nível de mestrado,


comprometeram-se com um projeto amplo em que a pesquisa
contribuiu para o adensamento de suas percepções e reflexões
acerca da própria identidade profissional.
Sete artigos são oriundos de pesquisas desenvolvidas no
âmbito do Mestrado Profissional em Letras - PROFLETRAS - e um
foi desenvolvido no contexto do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística - PPLIN. Os artigos têm em comum o fato de
constituírem pesquisas realizadas em salas de aula, num esforço
de construção de uma teoria-na-prática que tem em seu horizonte
a educação para a justiça social e que, portanto, assume-se como
uma ação inequivocamente política.
As pesquisas apresentam como eixos teóricos as proposições
dos Novos Estudos do Letramento (GEE, 2008; STREET, 2003 e
2014); a perspectiva dos letramentos críticos, que pode ser lida
como uma retomada da pedagogia crítica Freireana (FREIRE, 1983;
JANKS, 2016 e MORGAN, 1997) e as propostas da Pedagogia dos
Multiletramentos, construída pelo New London Group (COPE & KA-
LANTZIS, 2000).

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

As elaborações didáticas apresentadas se inscrevem no mo-


delo ideológico de letramento (STREET, 2014) e, dessa forma,
reconhecem o fato de que as práticas de letramento são sempre
encharcadas de significados culturais, bem como de concepções
ideológicas.
Considerando que as formas de letramento são legitimadas
num dado contexto social, e estão, portanto, marcadas por relações
de poder, em lugar de estabelecer a priori o que conta como letramento
ou uma cultura letrada padrão, tentam entender como os educandos
concebem o letramento, pela investigação das práticas sociais de
letramento que incorporam. Essa postura articula-se à abordagem
dos letramentos críticos, que encara o leitor como um sujeito ativo
e focaliza relações de poder implicadas na linguagem, promove
reflexão, transformação e ação (FREIRE, 1983), direcionando-se à
proposta de educação para a justiça social.
Alinhando-se e expandindo essas ideias, a Pedagogia dos
Multiletramentos tem como propósito fundamental garantir que
todos os alunos se beneficiem da aprendizagem de maneira que
lhes permita participar plenamente da vida pública, comunitária
e econômica. Para as diferenças de cultura, língua e gênero não
sejam barreiras ao sucesso educacional, ampliam a compreensão
de letramento para incluir a negociação de uma multiplicidade de
discursos sociais e de modos de construção de sentidos. Nesse
sentido, consideram que habilidade mais importante que os alunos
precisam aprender é negociar os sentidos, justapondo diferentes
linguagens, discursos, estilos e abordagens. Os autores assumem
uma versão emancipacionista da educação multicultural e propug-
nam que a incorporação autêntica da diversidade criará um domínio
público novo, vigoroso e equitativo, baseado na diversidade produtiva
e no pluralismo cívico.
Nesse texto introdutório, não aprofundarei a reflexão sobre
os letramentos, que estão desenvolvidas nos capítulos seguintes,
meu objetivo aqui é, a partir da reflexão sobre os trabalhos apre-

19
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

sentados discutir uma proposta de elaboração didática participativa,


ancorada na tríade experiência, agência e crítica. Nessa proposta,
professores e estudantes se envolvem em uma ação pedagógica
coparticipativa e contextualizada, articulada à pesquisa-ação de
perfil socialmente crítico.
Tomo por base para a reflexão e a proposição teórica desenvol-
vidas a minha experiência na orientação/coorientação de pesquisas
na área do ensino de linguagem desenvolvidas por professores de
língua portuguesa e literatura, entre os quais os trabalhos aqui
apresentados.
Organizei este texto em duas seções principais. Na primeira,
teço considerações sobre o cenário educacional brasileiro e as
constrições que as políticas públicas e os discursos conservadores
emergentes lançam sobre o trabalho docente, para situar a pro-
posta que apresento e sua importância como forma de resistência
e ação contra-hegemônica. Na segunda, reflito sobre o conceito
de transposição didática, indicando alguns problemas implicados
nessa ideia, e apresento uma proposta de elaboração didática parti-
cipativa, articulando-a à formação de professores na/pela pesquisa
a partir das categorias experiência, agência e crítica, cada qual
correspondendo a uma subseção do texto. Nas considerações finais,
sintetizo a proposta apresentada.

REFORMA EDUCACIONAL E DESQUALIFICAÇÃO DA PROFISSÃO


DOCENTE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

No contexto brasileiro contemporâneo, nós, professores,


temos sido alvo de diferentes formas de violência - física e simbó-
lica - decorrentes não só da ascensão de discursos conservadores
e totalitários no campo político e social, mas também da desqua-
lificação da profissão docente.
Esse processo, embora tenha se intensificado recentemente,
vem se construindo há algumas décadas e está muito vinculado

20
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

às perspectivas neoliberais que vêm se tornando hegemônicas e


influenciam o Movimento Global de Reformas Educacionais (Glo-
bal Education Reform Movement - GERM). Esse movimento emergiu
nos anos 80 e foi adotado por muitos países desenvolvidos como
Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, mas também por países em
desenvolvimento. O GERM representa interesses de agências de
desenvolvimento internacional e empresas privadas, através de
intervenções na formulação de políticas e reformas educacionais
das nações. (SAHLBERG, S/D, N/P)
Sahlberg aponta as seguintes características globais do GERM:
padronização; foco em conhecimentos básicos; busca de métodos
de baixo risco para atingir objetivos de aprendizagem; responsabili-
zação baseada em testes e modelos empresariais de gerenciamento
(SAHLBERG, S/D, N/P).
No Brasil, o discurso sobre a educação influenciado pelo GERM
adotou um modelo gerencial baseado na padronização de currí-
culos, no controle de programas e em avaliações de larga escala.
Nesse modelo, a autoria docente é constrita, tendendo-se ao uso
de materiais didáticos que preenchem as funções de planejamento,
preparação e avaliação e, assim, constituem, na prática, programas
de ensino estandardizados.
Nas redes públicas, a padronização e a meritocracia avançam
em diferentes ritmos, conforme as características de cada sistema
(federal, estadual ou municipal), enquanto em muitas escolas e
redes educacionais privadas ela já é uma realidade. Para Arnove,

No modelo atual o Estado fixa os objetivos educacio-


nais e prioridades, e avalia os resultados, cabendo aos
distritos educacionais e às escolas adequarem-se. Uma
vez que esses objetivos e padrões de avaliação são es-
tabelecidos, no entanto, a margem para os professores
é altamente restrita. Os padrões confundiram-se com a
padronização. Isto é, testes padronizados largamente

21
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

em papel-e-lápis cobrem um estreito leque de conhe-


cimentos e talentos. A autonomia das escolas e dos
professores é bastante circunscrita e a qualidade do
currículo sofre quando os professores são forçados a
ensinar para os testes padronizados. Essa abordagem
“um tamanho serve para todos” é uma receita para o
fracasso. (ARNOVE, 2005, p.6. Tradução nossa.)2

A reforma educacional inspirada pelo GERM iniciou-se com


a criação de sistemas de avaliação de larga escala e de índices de
qualidade, como o IDEB, e tem como ações-chave a implantação
de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação
básica e de uma Base Nacional de Formação de Professores para a
Educação Básica (BNFPEB, primeira versão apresentada em dezem-
bro de 2018). Ambas estabelecem conteúdos mínimos obrigatórios,
organizados em termos de competências e atendem ao princípio
de padronização. Por isso mesmo, não contemplam nem a diversi-
dade sociocultural, nem as desigualdades econômicas que marcam
a sociedade brasileira.
Paralelamente à implantação dessa reforma, diferentes arti-
fícios econômicos e ideológicos são usados no processo de des-
qualificação da profissão docente, dentre as quais destaco: baixa
remuneração, precarização das condições de trabalho, limitação
dos programas de formação inicial e continuada e censura ao tra-
balho docente.
A censura não é novidade na história educacional brasileira,
mas sua faceta mais recente ganhou força a partir de 2004 com
a criação do Movimento Escola sem Partido, que prega o ensino de

2 No original: “The current model is for the state to set educational goals and priorities and
evaluate outcomes, leaving it to individual educational districts and schools to comply. Once
these goals and examination standards are set, however, the leeway for teachers is greatly
restricted. Standards have become confused with standardization. That is, standardized and
largely paper-and-pencil tests cover a narrow range of knowledge and talent. The autonomy of
schools and teachers is greatly circumscribed and the quality of the curriculum suffers when
teachers are forced to teach to standardized tests. This ‘one size fits all’ approach is a recipe
for failure.”

22
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

conteúdos ideologicamente “neutros” e busca desautorizar a parti-


cipação de professores e professoras na formação dos valores e das
atitudes dos estudantes, afirmando que “Professor não é educador”.
Assim, com base em duas falsas premissas - (1) o entendimento
da educação à transmissão de conteúdos; (2) a atribuição de uma
pretensa neutralidade à linguagem - um dos objetivos do MESP é
enfraquecer o papel das professoras e professores que trabalham
por uma sociedade mais justa, equitativa e democrática.
Somado ao processo de implantação do modelo gerencial à
gestão educacional, através de ações burocrático-administrativas
de matiz neoliberal, um conjunto de artifícios de silenciamento
identitário é acionado, entre os quais se destacam ataques à ima-
gem do professor.
Trata-se um projeto político de elites interessadas na ma-
nutenção do status quo que lhes garante privilégios. A elas não
interessa um sistema educacional em que os educadores atuem
com autonomia, sobretudo se esses profissionais trabalharem pela
transformação da sociedade, já que, como Paulo Freire afirmou
há algumas décadas, “Seria uma atitude ingênua esperar que as
classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que
proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais
de maneira crítica” (1984, p. 89).
Procuro sintetizar na figura a seguir os dois processos para-
lelos que configuram essa tentativa de esvaziamento ideológico
da profissão docente no contexto brasileiro no fim da segunda
década do século XXI:

23
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Figura 1 - Esvaziamento ideológico da profissão docente

Considerando a gravidade do cenário retratado, é de suma


importância a ação contra-hegemônica no campo da formação de
professores. Como proposta de resistência, destaco nesse texto
as três categorias enunciadas no título, buscando elaborar uma
proposta de formação de docentes na/pela pesquisa fundada na
elaboração didática participativa.

A ELABORAÇÃO DIDÁTICA COLABORATIVA - EXPERIÊNCIA,


AGÊNCIA E CRÍTICA

A organização de um projeto de ensino constitui um traba-


lho complexo, quase sempre solitário e individual, mesmo que se
relacione ao contexto em que se insere. O planejamento é, via de
regra, uma criação do professor, marcada por seu estilo profissional
e pelo entorno de sua prática, que inclui, entre outros fatores, os
conhecimentos, capacidades e subjetividades dos estudantes, as
políticas públicas, os documentos curriculares, o projeto político-
pedagógico da escola e o contexto comunitário. Essa visão cen-
tralizada no docente reforça a ideia de que o professor é o único

24
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

agente no processo de planejamento das aulas e a posição dos


estudantes como pacientes.
Nessa concepção, a prática docente está relacionada à ela-
boração de estratégias para o ensino dos conteúdos previstos no
currículo escolar, os quais passam por um processo de transposição
didática que transforma conhecimentos científicos em objetos de
ensino. Assim, observa-se no planejamento de uma aula, sequência
didática ou projeto de ensino um trajeto de transformação discur-
siva dos saberes, que é assim sintetizado por Jean-Paul Bronckart:
invenção → exposição científica →exposição didática → colocação
em prática (2010, p.105).
A exposição didática, que consiste na metodização do Saber
Sábio, depende da complexidade desse saber, das características
dos educandos em termos de idade, desenvolvimento cognitivo e
conhecimentos prévios, das competências e atitudes dos docentes
e da organização progressiva e contínua dos programas. De acordo
com os teóricos da transposição didática, a reorganização dos sa-
beres a ensinar deve manter, simultaneamente, proximidade com
o discurso do cientista, que precisa validar esse conhecimento,
bem como deve distanciar-se do senso comum, do saber familiar,
para garantir sua legitimidade (BRONCKART, 2010, pp. 106-107).
Entendo que esse distanciamento do senso comum, do saber
familiar e, por extensão, do saber local hierarquiza os saberes é uma
forma de subalternização. Além disso, partindo de uma perspectiva
sociocultural, parece-me que a produção do conhecimento escolar
poderia ser apenas parcialmente explicada por essa concepção, uma
vez que a sala de aula é atravessada por conhecimentos advindos
de múltiplos campos, trazidos pelos professores, pelos estudantes
e pelos demais participantes da ampla comunidade escolar. Nesse
espaço, saberes escolares, saberes docentes, saberes locais, saberes
familiares, saberes religiosos, entre outros, cruzam-se e compõem,
inelutavelmente, em cada escola, em cada sala de aula, um contexto
muito peculiar.

25
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

É por isso que, em lugar da ideia de transposição de saberes


de um campo a outro, que não é suficiente para compreendermos
as construções didáticas apresentadas nesse livro, proponho a
concepção de elaboração didática participativa, entendida como
um projeto pedagógico coparticipativo que envolve professores e
estudantes em um contexto-para-a-ação e imbrica prática, reflexão
e produção de conhecimentos.
As práticas reflexivo-investigativas discutidas nos capítulos
desse livro são exemplos de elaborações didáticas participativas de-
senvolvidas por professores críticos que não podem ser explicadas
pela ideia de transposição. Isso porque, ao hierarquizar os saberes,
essa concepção coloca o Saber Sábio em uma posição dominante
e, além disso, desconsidera a subjetividade e a afetividade dos
docentes e dos estudantes, de sua agência (BIESTA e TEDDER,
2007) e de seu potencial criador. Assim, invisibiliza o movimento
da vida em sala de aula.
A elaboração didática participativa tem dois desdobramentos
político-pedagógicos: (1) funciona como forma de resistência ao
controle e ao silenciamento exercido sobre os docentes e (2) cons-
titui uma forma de transformação democrática das relações que
estabelecem na sala de aula, uma vez que todos os envolvidos nas
cenas de ensino-aprendizagem tornam-se sujeitos cuja experiência
é incorporada, cuja agência é exercida na ação situada e cuja par-
ticipação crítica colabora para a (auto)conscientização de todos
acerca das injustiças e desigualdades e para seu fortalecimento na
luta pela justiça social, como explicitarei a seguir.

EXPERIÊNCIA

A categoria experiência, na filosofia do conhecimento desen-


volvida por Paulo Freire, está associada à leitura do mundo e à
práxis. Nesse sentido, muitos professores têm longa vivência em
sala de aula, mas nem todos têm experiência.

26
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Isso porque, para Freire, a experiência apenas vivida gera o


pensar ingênuo, “um saber de experiência feito a que falta a rigo-
rosidade metodológica que caracteriza a curiosidade epistemoló-
gica do sujeito” (1996, p. 18). Portanto, ter lecionado por muitos
anos não significa necessariamente ter construído um conjunto de
reflexões sobre a prática, mas um acúmulo acrítico de vivências,
que tende à repetição. Por isso, para ele,

Na formação permanente dos professores, o momento


fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É
pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem
que se pode melhorar a próxima prática. O próprio
discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de
ser tal modo concreto que quase se confunda com
a prática. O seu ‘distanciamento’ epistemológico da
prática enquanto objeto de sua análise, deve dela
‘aproximá-lo’ ao máximo. Quanto melhor faça esta
operação tanto mais inteligência ganha da prática em
análise e maior comunicabilidade exerce em torno da
superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por ou-
tro lado, quanto mais me assumo como estou sendo
e percebo a ou as razões de mudar, de promover-me,
no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de
curiosidade epistemológica. Não é possível a assunção
que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo
sem a disponibilidade para mudar. (FREIRE, 1996, p. 18)

Os coautores desse livro mostraram-se dispostos a realizar a


mudança de que fala Freire, não como um abandono de si mesmos,
mas como um aprofundamento em suas experiências, portanto,
com a necessária rigorosidade metódica, criando condições para a
aprendizagem crítica, em que “os educandos vão se transformando
em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinan-
do, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” (FREIRE,

27
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

1986, p. 13). Ao longo do curso, todos puderam refletir sobre suas


práticas, mas foi nas pesquisas que o fluxo da vida em sala de aula
emergiu mais fortemente, a experiência vibrou e aconteceram as
transformações, impelidas muitas vezes pelo imprevisível.
Nessas pesquisas, ficou muito claro o que Freire afirma: “A
experiência não pode ser exportada, ela só pode ser reinventada.
Essa é a natureza histórica da educação” (FREIRE, 2016, p. 27). A
reinvenção da própria prática docente está configurada nos per-
cursos diversos que cada um e cada uma realizou e que os leitores
poderão testemunhar nos artigos.
Certamente foi preciso que se organizassem de forma sistemá-
tica na elaboração de uma dissertação de mestrado, já que, desde
a fase exploratória da pesquisa, a construção do projeto envolve
diferentes ações, a começar pela identificação de um problema
de pesquisa. Isso foi feito a partir da discussão coletiva, já que as
metodologias de pesquisa escolhidas enfatizam a coparticipação de
todos os sujeitos nessa construção. No curso das pesquisas, houve
vários momentos em que o inesperado aconteceu e transformou
a sequência prevista.
O acontecimento imprevisto é mais comum quando a sala
de aula é dialógica, mas é claro que nenhuma interação pode ser
totalmente controlada. Seja uma imagem ou um texto trazido por
um estudante que provoca reações e debates, um clima tenso que
emerge na turma, uma ajuda externa, um impasse ou uma pergunta
que faz (re)pensar - uma ocorrência imprevista pode fazer emergir
uma transformação mais profunda do que aquela projetada.
Penso, por exemplo, em diferentes situações cujos desdobra-
mentos teóricos e práticos influenciaram as pesquisas apresentadas
nesse livro, tais como: o sonho de conhecer o Museu da Pessoa
despertado em/por Cristiane; a leitura “maliciosa” do título do
conto pelos alunos de Marcela; o espanto de D. Teresinha ao des-
cobrir que Vanessa não sabe ler hebraico; a contradição entre os
relatórios de avaliação e o que Marlene constatou no caderno do

28
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

estudante; o alfabetizando que explicou a Gabriela que “q com o


faz co”; o comportamento da turma de Izabelle na discussão sobre
o bullying; a tira sobre suicídio trazida pelo aluno de Carlos Eduar-
do e a cena em que o aluno de Aline sai do enquadre e associa a
data em que ocorreu a primeira viagem à lua à idade de sua avó. A
inquietação diante desses pequenos momentos gerou mudanças
de foco, buscas de entendimento e, com frequência, a ampliação
do escopo teórico.
Perrenoud atribui grande importância ao imprevisto, ao in-
quietante, pois considera que esse tipo de acontecimento desen-
cadeia a releitura da experiência, que é um fator de mudança e
reorganização dos sistemas. Isso ocorre, especialmente quando um
acontecimento provoca um conflito cognitivo, ou quando o sujeito
percebe uma contradição entre as decisões tomadas e uma norma
por eles internalizada, ou ainda nos casos em que uma teoria ou
uma experiência desafia antigos esquemas de ação (PERRENOUD,
1994, p. 32).
Relendo reflexivamente a experiência, o docente potencializa
sua ação transformadora, à medida que, agindo, diz sua palavra
sobre o mundo. É por isso que “A educação toma um sentido pleno
quando estabelece uma relação entre a vida, a voz e o pensamento
do educador. Gera, portanto, uma prática que resulta de uma for-
ma de ver e atuar sobre a vida” (ROSSATO, apud STRECK, REDIN e
ZITKOSKI, 2017, p. 326). Na proposta de elaboração didática parti-
cipativa, que estou apresentando, os estudantes, suas vidas, vozes
e pensamentos incorporam-se inteiramente à prática e, junto com
os professores, exercem sua agência.

AGÊNCIA

O termo agência tem uma longa história em diferentes tradi-


ções do pensamento desde o Iluminismo kantiano até as aborda-
gens crítico-emancipatórias, a qual foge ao objetivo desse capítulo.
Sendo assim focalizaremos a concepção de Emirbayer e Mische e

29
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

sua incorporação à abordagem ecológica proposta por Biesta e


colaboradores. Emirbayer e Mische compreendem a agência numa
perspectiva performática, como um acontecimento que emerge do
engajamento dos atores com contextos-para-a-ação que são, a um
só tempo temporais e relacionais.
Mustafa Emirbayer e Ann Mische (2008) entendem a agência
como:

O engajamento temporalmente construído de atores


de diferentes ambientes estruturais - contextos de
ação temporais-relacionais que, através da interação
de hábitos, imaginação, e julgamento, tanto reprodu-
zem como transformam essas estruturas em resposta
interativa aos problemas colocados pela mudança da
situação histórica.

Para eles, esse engajamento se dá em três dimensões - ite-


racional, projetiva e prático-avaliativa, às quais correspondem
temporalidades - passado, futuro e presente. Ao pensarem a agência
como uma resposta situada temporal e relacionalmente, eles a
concebem como uma performance que se vincula à história pessoal e
profissional dos professores, bem como à contextualização cultural,
estrutural e material de suas atuações, ou seja, ao tempo presente,
ao espaço e às pessoas com quem eles e elas se relacionam.
A dimensão iterativa da agência, ligada ao passado, tem relação
com a ativação seletiva de padrões de pensamento e ação que
estabilizam e organizam universos sociais. Esses padrões, a um só
tempo, dão consistência e se repetem nas ações, mas são também
reconfigurados pela situação temporal-relacional que constitui o
contexto-para-a-ação. Nessa concepção performática da agência,
a dimensão projetiva tem grande importância, pois liga-se à re-
configuração criativa das estruturas para a ação através da qual os
sujeitos projetam futuras trajetórias de ação.

30
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

As ações desenvolvidas projetam-se para o futuro, na medida


em que desenham novas possibilidades de atuação, conforme a
figura a seguir:

Figura 2 - Um modelo para entender a conquista da agência. (A model for understanding


the achievement of agency)

Fonte: BIESTA et al., 2015. p. 627. Tradução nossa.

No movimento pendular entre conservação e transformação,


entre iteração e projeção, destaca-se a importância da tempora-
lidade da dimensão prático-avaliativa nas tomadas de decisões,
pois os professores escolhem entre trajetórias possíveis de ação
para responderem às demandas e às questões que surgem em
seus contextos-para-a-ação (EMIRBAYER e MISCHE, apud BIESTA,
PRIESTLEY e ROBINSON, 2015, pp. 626 - 627).
Os coautores desse livro, no processo de planejamento co-
laborativo, ao pensar o espaço e o tempo da sala de aula junto
com seus alunos. Assim, desconstruíram o papel central que lhes
é atribuído tradicionalmente se engajaram em um contexto de ação
temporal-relacional (EMIRBAYER e MISCHE, apud BIESTA e TEDDER,
2007, p. 4). O elemento relacional esteve, nesse caso, bem pre-
sente, pois o planejamento integrou os sujeitos, que responde-
ram coletivamente a questões colocadas por uma dada situação

31
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

histórico-cultural que vivenciavam (EMIRBAYER e MISCHE, apud


BIESTA e TEDDER, 2007, p. 4).
Isso não significa o enfraquecimento do papel docente, mas
sua ressignificação, já que a elaboração didática colaborativa de um
projeto de ensino é um trabalho complexo em que o docente tem
papel fundamental. Ele precisa considerar não só os conhecimen-
tos, capacidades e subjetividades dos estudantes, mas também as
políticas públicas, os documentos curriculares, o projeto político-
pedagógico da escola e o contexto comunitário. No papel de
mediador, o professor aciona sua agência, tanto ao organizar as
discussões em sala de aula, quanto ao utilizar materiais disponíveis
- textos, imagens, músicas, filmes, objetos - transformando a sua
função primária para fabricar projetos de atividades que respondam
às necessidades e aos desejos de seus alunos e ao seu próprio estilo.
Ele age integrando “/…/ esforço pessoal, recursos disponíveis
e fatores contextuais e estruturais à medida que eles se juntam em
situações particulares e, em certo sentido, sempre únicas” (BIESTA
& TEDDER, 2007, p. 137. Tradução nossa)3. A diferença é que ele
não faz isso sozinho, mas compartilha todo o processo com os
estudantes, que se tornam também agentes da elaboração didática
colaborativa.
Não se trata simplesmente de convocar os alunos para apre-
sentarem opiniões e sugestões, mas de uma abertura de espaços
para que todos os participantes se fortaleçam e exerçam sua agência
produzindo conhecimentos e pensando sobre as relações de poder
imbrincadas na sociedade. Para isso, é fundamental a assunção de
uma perspectiva crítica, como abordarei na próxima seção.

CRÍTICA

No contexto das teorias críticas, a dominação é entendida


como condição na qual algumas pessoas não têm liberdade e são
3 No original: /.../ individual efforts, available resources and contextual and structural factors as
they come together in particular and, in a sense, always unique situations.

32
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

impedidas de realizar integralmente sua dignidade humana e de ter


acesso justo aos bens materiais e sociais básicos de uma sociedade.
A dominação estrutural, modelada e duradoura, não momentânea,
é construída dentro das instituições de uma sociedade e está pro-
fundamente incorporada às práticas cotidianas.
O projeto crítico resiste à dominação e investe na transforma-
ção pela via da democracia participativa e da autodeterminação e
da justiça social, baseada na equidade e no respeito pela dignidade
humana, para além das diferenças culturais, tais como classe, na-
ção, raça, gênero, orientação sexual, idade e outras. A colaboração
entre crítica e educação permite-nos exercitar o entendimento de
como esta atua na distribuição desigual de poder, conhecimento
e oportunidades – do micronível da sala de aula ao macronível das
políticas e sistemas educacionais globais. A pesquisa educacional
de viés crítico tem como meta a resistência aos discursos que
obscurecem e ratificam as injustiças, inclusive na escola. Segundo
Levinson,

“Pesquisadores educacionais críticos trabalham para


construir conhecimento a serviço da liberdade humana
e da justiça social. Esse conhecimento pode informar
não somente a transformação das práticas e políticas
educacionais (ou seja, dos sistemas escolares), mas
pode também informar o desenvolvimento da consci-
ência popular.” (p. 11)

A pesquisa-ação de perfil socialmente crítico, metodologia


adotada na maioria das pesquisas apresentadas neste livro, busca a
transformação apontada por Levinson, trazendo para a investigação
científica uma abordagem emancipatória.
Situada no paradigma qualitativo, a pesquisa-ação pode ser
técnica, quando apenas aplica um modelo de ação previamente
desenvolvido para solucionar o problema levantado, ou prática,

33
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

quando o pesquisador seleciona o problema a ser solucionado e


projeta sua ação. Porém, quando o pesquisador busca a transforma-
ção da cultura institucional ou busca desconstruir suas limitações,
a pesquisa-ação assume um viés necessariamente político (TRIPP,
1990).
Nesse sentido, a Pesquisa-Ação Socialmente Crítica (PASC) se
distingue das versões mais técnicas dessa metodologia científica,
na medida em que

/… / uma dupla crítica é central para a pesquisa-ação


socialmente crítica: em primeiro lugar, há uma visão
da sociedade como essencialmente injusta, mas capaz,
pela ação humana intencional, de se tornar menos
injusta, se não realmente justa; em Segundo lugar, as
noções de justiça e igualdade são, elas mesmas, sub-
metidas a um exame ideológico. Na visão pedagógica
crítica, as formas dominantes de prática profissional
são vistas como geradas por uma visão de mundo
particular, por um conjunto de valores e restrições
que foram construídas por certos grupos de interesse
principalmente para o benefício desses grupos. (TRIPP,
1990, p. 4)�

A PASC, baseada na prática, desenvolvida em pequena escala


e situada num contexto particular, apresenta cinco características:

• Participação - a PASC tende a ser desenvolvida por grupos de pro-


fessores que compartilham os ideais de justiça social e que podem
unir forças para mudar a situação;

• Direção - as pessoas que desenvolvem PASC são autorreguladas,


pois se orientam por seus interesses e ideais, tendo em vista a justiça
social para todos os envolvidos;

34
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

• Conscientização - a problematização em torno da conscienti-


zação é a ancoragem central da PASC. Os pesquisadores críticos
comportam-se como seres sociais pensantes (thinking social beings)
modelados por sua própria consciência, compreendida como visão
de mundo, que inclui “os valores implicados em seu modo de vida,
suas aspirações, ideologia e hábitos”.

• Limitações - A PASC parte do reconhecimento dos obstáculos


ao desenvolvimento de novas práticas educacionais, os quais são
incorporados à pesquisa, que buscará modificá-los para alcançar a
transformação social almejada.

• Resultados - a PASC tende a desenvolver novas práticas de ensino


para combater as desigualdades educacionais, sendo revolucionária,
mas ela também pode aprimorar práticas já existentes e ser evolu-
cionária. (TRIPP, 2009, pp. 162-163. Tradução livre)

Nessa concepção, a natureza da pesquisa-ação não se limita ao


modelo esquemático “clássico”, que segue o percurso identificação
do problema → planejamento da intervenção → ação → geração de
dados → análise. Isso porque a perspectiva crítico-emancipatória
ressignifica esse percurso, que apresentaria o risco de reduzir a
investigação que se processa na ação à busca de soluções pontu-
ais e à observação de cenas isoladas, na medida em que requer o
rompimento com a dicotomia sujeito-objeto e requer a copartici-
pação de todos na construção da pesquisa, buscando entender os
processos vividos coletivamente.
Tendo em vista essa perspectiva processual, no movimento em
espiral proposto por Tripp, os ciclos de investigação se sucedem
continuamente e a pesquisa incorpora-se à prática. A investigação
se faz no interior da sala de aula, partindo das questões e das in-
terações que nela têm lugar. Ao movimento inicial de identificação
da questão ou das questões de pesquisa apontadas pelos sujeitos
participantes, seguem-se a fase prospectiva do planejamento, a
ação e etapa retrospectiva, que inclui a análise e avaliação da ação
e dos dados.

35
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Por esse prisma, de fato, não se pode falar propriamente de


um caráter interventivo, já que, para além de um movimento plani-
ficação/implementação de um evento didático isolado – quer seja
uma aula ou uma sequência de aulas – a investigação envolve os
participantes, almejando aprofundar o entendimento de questões
significativas para todos.
Todos os envolvidos são sujeitos da/na PASC, por isso essa
metodologia de pesquisa contribui para a construção de um olhar
culturalmente sensível em relação aos sentidos negociados em
salas de aula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O papel da pesquisa na formação de professores tem sido


problematizado exaustivamente nos últimos decênios, gerando
diferentes perspectivas e ações. No horizonte da formação con-
tinuada desenvolvida em nível de pós-graduação stricto sensu,
parece-nos produtiva a compreensão do processo de formação de
professores como um continuum, em que a prática ocupa espaço
privilegiado (NÓVOA, 2001, p.2).
Nesse sentido, os projetos de formação de professores na/
pela pesquisa podem se beneficiar com a incorporação de três
movimentos fundamentais:

• Envolvimento - considerando a educação como busca da justiça


social, é urgente aprofundar o envolvimento político e ideológico
dos professores com os estudantes, tendo em vista o combate às
desigualdades educacionais. Propondo a coparticipação, que hori-
zontaliza relações e oportuniza a emergência das vozes de todos,
a elaboração didática coparticipativa pode criar alternativas de
resistência no cenário educacional brasileiro contemporâneo, na
medida em que todos os sujeitos envolvidos exercitam a agência
no contexto-para-a-ação.

36
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

• Reconhecimento - em uma abordagem ética que respeite a diver-


sidade dos professores e estudantes, seus contextos sócio-culturais,
suas vivências concretas e seus saberes é importante reconhecer a
importância da experiência, da práxis fundada na compreensão que
os sujeitos elaboram sobre o mundo e projetada para a sua trans-
formação. Esse olhar leva também ao reconhecimento de que os
conhecimentos práticos gerados na sala de aula estão articulados a
saberes locais, a saberes docentes, a saberes estudantis e a outros
saberes situados, portanto nem sempre se fundam em pressupostos
teóricos.

• Ressignificação - a Pesquisa-Ação Socialmente Crítica ressignifica os


papéis assumidos pelos participantes das interações em sala de aula,
na medida em que tanto docentes, quanto estudantes, incorporam
a ação reflexivo-crítica ao seu fazer cotidiano, de forma consciente
e engajada, em uma prática coparticipativa.

Ao promovermos pesquisas voltadas para a elaboração didática


colaborativa e ancoradas nas três categorias que discuti nesse texto
- experiência, agência e crítica - podemos propiciar a emergência
de saberes construídos na ação (SCHÖN, 2000), como aconteceu
no percurso de construção das práticas de ensino de linguagem
que apresentamos a seguir, as quais se situam na realidade das
escolas públicas e a reinventam.

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LETRAMENTOS NAS SÉRIES INICIAIS
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

REINVENTANDO A ALFABETIZAÇÃO NA PERIFERIA:


ESPAÇOS, TEMPOS E PROJETOS

Gabriela Medela da Silva

INTRODUÇÃO

Diante do quadro de crise no qual se encontra a educação


brasileira, especialmente no que compete ao ensino da escrita alfa-
bética e à promoção do letramento, desenvolvi um aprofundamento
teórico, a fim de verificar a validade de minha hipótese inicial, ou
seja, a de que as dificuldades de nossos alunos no processo de
alfabetização se devem, em parte, ao processo de “desinvenção
da alfabetização”. A partir da validação dessa hipótese, desenvolvi
uma proposta didática1 pautada na reflexão do que vem sendo e do
que já foi instituído no campo da alfabetização, para promover a
apropriação da escrita alfabética por crianças, da Escola Municipal
Dom José Pereira Alves, da rede pública de ensino de Niterói por
meio de uma visão dialógica do processo de alfabetização.
Esse estudo levou em consideração os caminhos já percorridos,
analisando-os e propondo alternativas que levem aos professores
alfabetizadores não certezas, mas desconfianças. Levem-nos a
desconfiar de falsas certezas assentadas tão solidamente e que,
no entanto, não promovem a consolidação dos objetivos a que se
propõem, neste caso a alfabetização e o letramento.

1 A expressão proposta didática é entendida neste trabalho como definida por Esther Pillar Grossi
(1990, p.31) como um conjunto de atividades cuja validade se mede por sua eficácia em produzir
conhecimentos por parte da população a que se destina.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Buscaremos destacar nesse artigo a organização dos tempos


e espações escolares, bem como as articulações entre atividades
voltadas para o ensino do sistema de notação alfabética e estraté-
gias que promovem a participação em eventos situados de letra-
mento, organizados como projetos didáticos. O cerne do trabalho
consiste, portanto, na reflexão teoricamente fundamentada acerca
de um conjunto de atividades interventivas desenvolvidas com os
alunos de uma turma de 1º ano, articulando a prática pedagógica
à investigação teórica, num movimento cíclico: diagnóstico →
planejamento → ação → descrição/reflexão → avaliação.
A Proposta Didática Interventiva que apresentaremos teve
o objetivo de estimular os discentes a se apropriarem do siste-
ma de escrita alfabética e adentrarem de forma contextualizada
nas práticas de letramento. Todas as atividades desenvolvidas
fundamentam-se na leitura de textos reais, literários ou não, que,
escritos para um determinado fim, não nos serviram com o mero
propósito de ensinar crianças a ler.
Assim, as atividades que foram desenvolvidas com o propósito
de auxiliar os alunos em momentos de conflito cognitivo serão
explicitadas nesse trabalho, não para que sirvam como receitas,
mas para sinalizar aos professores que atuam nos anos iniciais que
nada é mais importante que o protagonismo do docente no espaço
da sala de aula. Entendemos protagonismo como a capacidade de
agir de forma autônoma, segura e fundamentada. Isto significa
saber desenvolver seu próprio material, quando percebe que ape-
nas o livro não é suficiente para dar conta das questões que vão
surgindo na aula e, além disso, ter sabedoria para fazer de todos
os momentos, até mesmo daqueles que para o olhar de um leigo
são irrelevantes, momentos de aprendizagem.
E, assim como Magda Soares (2003, p.5) propõe uma “Reinven-
ção da alfabetização”, que consiste na revalorização do processo
sistemático de ensino e não só de aprendizagem “espontânea” da
escrita alfabética, pretendo registrar o caminho que venho trilhan-

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

do ao “reinventar” a alfabetização em minha sala de aula através


de um ensino, que além de proporcionar o letramento, enfoque
também à aquisição do sistema de escrita alfabética por meio de
instrução sistemática.
Portanto, meu trabalho será pautado não em uma única me-
todologia de ensino, mas em várias abordagens que venham ao
encontro das reais necessidades apresentadas pelos meus alunos,
que foram identificadas através de uma avaliação diagnóstica apli-
cada nas primeiras semanas de aulas.
Apresentarei a seguir a proposta didática que desenvolvi, bus-
cando articular as teorias e reflexões anteriormente apresentadas,
ao longo do ano letivo de 2016, no período de fevereiro a outubro.
O grupo começou com 9 alunos e em outubro estava com 23 - 7
meninas e 16 meninos. Esse aumento foi consequência da junção
das turmas de alfabetização do 1º e do 2º turno devido ao baixo
quantitativo de alunos, ocorrida no mês de maio.
A proposta consiste na apresentação de algumas das ativida-
des, projetos e ações que foram desenvolvidos com os alunos da
turma GR1-B a fim de levá-los a compreenderem o princípio alfa-
bético do nosso sistema de escrita, aprendendo a ler e a escrever.
A proposta parte da percepção vigotskiana do aluno como sujeito
sócio-histórico que traz consigo inúmeros conhecimentos e valores,
que servirão de fonte de referência no processo de aprendizagem.
Inicio destacando a importância da valorização dos sujeitos,
da dinamicidade do espaço escolar, da organização temporal, da
brincadeira e, sobretudo, das relações estabelecidas como pilares
fundamentais na construção do conhecimento. Em seguida, abordo
a organização das atividades e, através de uma breve exposição,
apresento alguns dos projetos e das atividades realizadas.
Para finalizar, exponho e analiso a progressão de alguns alunos
do grupo, na parte em que relato alguns dos resultados obtidos.
Acredito, como afirma Goulart (2010, p. 62), que as histórias e os
casos infantis mostram que as crianças estão incessantemente

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

pensando e tentando compreender a realidade de modos variados,


os quais envolvem conhecimentos de origens variadas, inclusive
linguística.

ALÉM DOS CAMINHOS TRAÇADOS: MÉTODO E AUTORIA

O exame da literatura e a revisão dos estudos relacionados


à alfabetização me levaram a concluir que não existe um método
superior capaz de alfabetizar todas as crianças, pois cada criança
é um ser único, com suas especificidades, gostos, preferências
e valores que também influenciam diretamente o processo de
ensino-aprendizagem. Além disso, para alfabetizar uma criança,
mais importante do que a escolha de um método ou metodologia
específica, é, primeiramente, a compreensão do valor atribuído
por ela à escrita.
Considerando o pouco contato de meus alunos com a escrita
fora da escola, desde o início do ano letivo transformei a sala de
aula e o espaço escolar, como um todo, com a ajuda dos colegas
e de EAP, num ambiente rico em experiências e atos envolvendo a
leitura e a escrita. Nesse espaço, procurei que os educandos, por
meio do acesso e da participação nesses diversos atos, pudessem
estabelecer relações significativas que servissem como motivação
e base para que se aproximassem e pudessem compreender as
complexidades do sistema de escrita, entendendo que “é no tra-
balho contínuo, cotidiano, com a leitura e a escrita, de variadas
maneiras, que as crianças vão ampliando o conhecimento que têm
sobre o sistema alfabético propriamente” (GOULART, 2015, p.58).
No decorrer dos meses, eles foram compreendendo o sistema alfa-
bético e as funções sociais da escrita, através do contato intenso e
da realização de inúmeras atividades de leitura e escrita, de jogos
pedagógicos e da efetuação de análises linguísticas específicas
para esse fim.
É nítido que os alunos que recebemos todos os anos nessas
comunidades periféricas não possuem um potencial cognitivo in-

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ferior aos das classes média e alta (GROSSI, 1990, p.31), contudo,
chegam à escola com uma bagagem de conhecimentos que não
os favorece no tocante à alfabetização. Portanto, acredito ser de
extrema importância, ao longo de todo o ano letivo, a efetivação
de atividades de descoberta, que proporcionam a esses alunos
ocasiões significativas para interagirem com materiais escritos
em diferentes suportes e atribuírem aos textos o valor simbólico
que possuem.
Sendo assim, busquei proporcionar aos alunos a participação
em diversos atos de leitura, que são momentos coletivos que con-
tam com o auxílio de diferentes atores do espaço escolar, como
alunos ou professores de outras turmas, e também com convidados,
como contadores de histórias, constituindo eventos de letramento
nos quais os estudantes tiveram acesso a diferentes textos. Consi-
dero também que a participação dos alunos das outras turmas na
apresentação dos textos e no desenvolvimento de atividades que
contribuem para a apropriação do sistema de escrita alfabética é
de fundamental importância, visto que afirmam o seu potencial,
ao passo que despertam o potencial daqueles que estão, nesses
momentos, como ouvintes. Os alunos dos anos escolares mais
avançados são modelos nos quais os alfabetizandos irão se apoiar
para construção das suas histórias de sucesso.
Embora realizássemos em sala de aula atividades pautadas
em textos de diferentes gêneros, neste trabalho daremos mais
destaque as atividades pautadas nos textos de caráter literário,
por acreditarmos, assim como Antônio Cândido, que a leitura de
tais textos é fundamental para a formação do ser humano (1972,
p. 82). A imaginação, a fantasia e ainda as relações com o mundo
real proporcionadas pela leitura do texto literário são fontes que
alimentam o imaginário da criança e, consequentemente, contri-
buem para sua formação. O mundo da ficção proporciona uma
visão de mundo que, muitas vezes, amplia e preenche as lacunas
resultantes de sua restrita experiência de vida. Acredito que para
essas crianças, em especial, a literatura pode ser uma grande alia-

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

da, munindo-as das mais diversas experiências e permitindo que,


ainda que seja através da imaginação, possam vivenciar momentos
de prazer.
Nesse sentido, retomo as ideias do sociólogo francês, Pierre
Bourdieu, para o qual as relações mantidas no espaço escolar,
muitas vezes, só servem para levar os estudantes a incorporarem
a estrutura social, ao mesmo tempo em que produzem, legitimam
e reproduzem. Bourdieu afirma que a estrutura social é vista como
um sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado tanto
pelas relações materiais e/ou econômicas (salário, renda) como
pelas relações simbólicas (status) e/ou culturais (escolarização)
entre os indivíduos. Para ele, “às diferentes posições que os grupos
ocupam no espaço social correspondem estilos de vida, sistemas
de diferenciação que são a retradução simbólica de diferenças
objetivamente inscritas nas condições de existência” (BOURDIEU,
1983, p. 82).
Portanto, além de desenvolver atividades sistemáticas para
promover a alfabetização/letramento dos alunos, investi nas rela-
ções que se estabeleceram no espaço da sala de aula.

O ESPAÇO DO FAZER PEDAGÓGICO

O fazer pedagógico ocorre nos diferentes espaços que inte-


gram o espaço escolar como: laboratório de informática - onde
pesquisamos, jogamos e produzimos textos; sala de leitura - espaço
de leitura, discussão, dramatizações; pátio - local no qual brinca-
mos e jogamos; sala de multimídias- espaço no qual assistimos a
documentários, vídeos informativos, filmes; refeitório - local onde
almoçamos e lanchamos. Mas, é a sala de aula o seu principal palco,
por ser o lugar reservado a cada grupo para o desenvolvimento
de ações e atos voltados à construção do conhecimento no qual
permanecem a maior parte do tempo que ficam no espaço escolar.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A sala de aula é para o aluno o espaço dele na escola, é nela


que ele encontra sua carteira, pode deixar seus pertences, inte-
rage de forma mais intensa com o professor, desenvolve grande
parte das atividades escolares, faz amigos e com eles estabelecem
riquíssimas relações de troca de conhecimento. Sendo assim, a
sala de aula deve ser um espaço no qual o aluno sinta prazer de
ficar e que tenha elementos que estimulem a aprendizagem. Como
afirma Goulart (2015, p.61), é preciso pensar dinamicamente no
espaço da sala de aula, de modo que as movimentações e as trocas
de lugares façam parte da rotina, por isso, tento transformá-la em
um espaço com inúmeras possibilidades, para que o aluno não se
sinta entediado e tenha a oportunidade de, através das interações e
trocas de conhecimentos com seus pares, aprender cada vez mais.
Na nossa sala de aula, observam-se as seguintes características:

• A disposição das carteiras não é em fileiras. Elas estão dispostas


no formato de um U para que todos os alunos e os professores
possam se olhar, num movimento de troca constante que favoreça
o intercâmbio de ideias, informações e conhecimentos;

• Os alunos não têm um lugar fixo, geralmente escolhem onde


querem se sentar, porém, para a realização de alguns trabalhos em
grupo, peço que se sentem em lugares previamente determinados
por mim. Algumas vezes são organizados por nível de dificuldade
e outras de modo que possam interagir com alunos de diferentes
níveis. No primeiro caso, para a organização de atividades mais
específicas com relação ao nível de dificuldade apresentada e, no
segundo, para que, na interação com os demais alunos, tenham a
possibilidade de desestabilizar as hipóteses até então construídas;

• A arrumação e organização da sala visam proporcionar aos alunos


um contato constante com materiais escritos, nos cartazes e murais,
como também lhes oferecer variadas possibilidades de interação
nos espaços, como cantinho de jogos, da leitura e o da novidade,
que favoreçam a realização das atividades, os quais foram assim
organizados:

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Cantinho da leitura - Espaço destinado ao acervo de livros da tur-


ma. Organizado em ordem alfabética, encontra-se nas prateleiras
mais baixas das estantes que ficam nos fundos da sala de aula, para
facilitar o acesso.

Cantinho das novidades - Espaço no qual eles encontram a xerox


das capas dos livros que ainda não foram lidos na rodinha para que,
caso queiram conhecer uma história nova, aproveitem as sugestões
de leitura.

Prateleiras dos jogos - Espaço no qual os alunos encontram os jo-


gos. Alguns destinados a grupos, como jogo da memória, e outros
individuais, como quebra- cabeças.

Prateleiras de gibis - espaço destinado ao nosso acervo de gibis.

Caixa de atividades extras - Nessa caixa, que fica sobre a mesa da


professora, os alunos encontram atividades lúdicas como desafios,
cruzadinhas, caça-palavras, enigmas, charadinhas, atividades de
recorte e colagem e também outros modelos de atividades como
autoditado de figuras.

Caixas de brinquedos - Temos duas caixas com brinquedos diversos


como bonecas, bolas, raquetes, miniaturas de móveis, que eles ge-
ralmente usam na casinha de madeira que ganhamos de presente
da professora da turma ao lado, carrinhos, bonecos... Das atividades
citadas a cima, essa é a única que é realizada em um único dia da
semana, na terça- feira, dia por eles identificado como o dia do
brinquedo.

Mural - O mural é sempre construído a partir de atividades rela-


cionadas aos projetos que estão sendo realizados com a turma. A
imagem abaixo é referente ao mural construído no início do ano,
quando estávamos vivenciando o projeto identidade. Nessa atividade
os alunos fizeram desenhos que os representassem.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A ORGANIZAÇÃO DO TEMPO ESCOLAR

Contamos com dois instrumentos importantíssimos para a


organização do tempo escolar: o planejamento, representado pelo
estabelecimento da rotina, que os alunos anotam em suas agendas,
e a marcação do calendário, que expressa a delimitação temporal
a que estamos sujeitos.
Todos os dias, desde o início do período letivo, os alunos
me ajudam no estabelecimento da rotina e anotam em suas
agendas. O estabelecimento de rotinas diariamente e a marcação
e observação do calendário ajudam na organização do tempo
escolar, além de levar os alunos a desenvolverem noções de
duração, ordem e de sucessão, que são fundamentais para o de-
senvolvimento da escrita, já que as crianças precisam aprender a
segmentar os sons da língua e perceber sua ordem. Serve também
como um modelo para o aluno, que, com o passar do tempo, vai
percebendo que também precisa se organizar temporalmente
para conseguir participar de todas as atividades na sala de aula,
assim como precisamos organizar o nosso dia. O conhecimento
do planejamento e da rotina também diminui a ansiedade e a
agitação, pois os alunos ficam mais tranquilos ao saberem o que
está programado para a aula.

A ROTINA SEMANAL

A rotina, necessariamente, deve ser pautada no planeja-


mento para que os objetivos traçados possam ser alcançados.
Nela as atividades são divididas em direcionadas e negociadas.
As atividades direcionadas visam à apresentação e sistematiza-
ção de novos conteúdos e/ou conceitos, por isso são planejadas
previamente pelo professor, o que não quer dizer que não pos-
sam ser alteradas devido a algum comportamento dos alunos
ou a algum acontecimento que motive a mudança de foco. Das
atividades direcionadas, algumas são fixas e caracterizam-se,

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

principalmente, por serem periódicas, pois ocorrem sempre nos


mesmos dias da semana, em horários determinados. Algumas
são diárias, repetem-se todos os dias (como a roda de leitura e
a marcação do calendário), e outras são semanais, apenas uma
vez na semana (como as aulas das disciplinas específicas: Inglês,
Artes e Educação física). Essas atividades, geralmente, exigem
a orientação e a mediação do professor (trabalhos em grupo,
confecção de cartazes, atividades que abordem conceitos ou
conteúdos novos para os alunos).
As atividades negociadas fundamentam-se no aproveitamento
das situações inesperadas. São atividades que os alunos conseguem
realizar com mais autonomia e liberdade, que abrem um maior
espaço para a expressão dos alunos, pois eles, pautados em suas
preferências, ajudam a decidir quais atividades ou jogos realizarão
(atividades extras, desafios, quebra-cabeças, jogos, leituras, brinca-
deiras). Enquanto alguns alunos realizam as atividades negociadas,
tenho a oportunidade de dar atenção individual às crianças que
apresentam mais dificuldade.
O quadro a seguir sintetiza a rotina semanal da turma

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Quadro 1 – Rotina semanal da turma

Fonte: quadro elaborado pela autora.

Gostaria de destacar que uma forte característica da comu-


nidade onde está situada a escola é a violência e que, por isso, é
elevado o número de faltas dos alunos, fato que exerce influência
direta nas questões de aprendizagem. Então, para que os objetivos
traçados sejam alcançados, é preciso organizar o tempo escolar
de modo que os momentos de interação com os alunos sejam
ricos em oportunidades de aprendizagem, afinal, o aluno não tem
culpa das questões sociais que o assolam e tem, como qualquer
outro estudante de outras regiões e classes sociais, o direito de
aprender. O tempo que temos a oportunidade de passar juntos é

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

muitíssimo precioso, portanto, não podemos desperdiçá-lo com


falta de organização e de planejamento.
Na organização da rotina, as atividades têm sentido e impor-
tância em sua relação com as outras tantas atividades que, com
elas, compõem nosso dia e nossa semana. Assim, a roda de leitura,
por exemplo, como um momento de contato com a literatura,
integra-se a momentos de leitura e compreensão de textos dentro
da escola, como a leitura de textos do livro didático, e, fora dela,
como a leitura de textos na biblioteca da comunidade. Relaciona-
se também com os momentos de produção, reescrita de textos e,
principalmente, aos momentos de interpretação de textos. Além
disso, fornece bases para a elaboração de comentários sobre
notícias lidas ou ouvidas e de realização de exercícios de escrita,
análise e reconhecimento de palavras, entre outros.
A participação e vivência nas atividades diversas proporcio-
na a ampliação do vocabulário, a identificação das informações
pertinentes, como o título de uma história lida, o assunto e suas
possíveis relações com as vidas dos alunos. As atividades diárias
e semanais não se complementam apenas pela diversidade que
garantem, mas também pelos saberes e processos comuns que elas
envolvem, possibilitando, no seu conjunto, a imersão do aluno no
mundo da escrita e a articulação entre os tempos investidos pelos
professores e pelos alunos para sua realização.

O CORPO/ MOVIMENTO E A BRINCADEIRA/ JOGO NA


ALFABETIZAÇÃO

Os alunos têm, semanalmente, com duração de uma hora e


meia, aulas de Educação Física com um professor especializado e,
diariamente, um intervalo de quinze minutos para que lanchem e
brinquem. Geralmente, nesse intervalo os alunos ficam divididos
entre o lanche e a brincadeira, visto que, no escasso intervalo de
tempo que possuem, precisam escolher entre uma coisa ou outra.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O período diário do aluno no espaço escolar é de quatro horas


e meia, com quinze minutos de intervalo para recreio, como já fora
explicitado. Dessa forma, o aluno fica quatro horas e quinze minu-
tos na sala de aula, porém os alunos que estão vindo da Educação
Infantil ou que nem mesmo passaram por ela, pois estão vindo de
casa, dificilmente conseguirão ficar sentados em uma sala de aula
por todo esse tempo, sem que fiquem entediados ou até mesmo
desmotivados. Crianças querem brincar e se divertir e, nessa faixa
etária, por volta dos seis aos dez anos, nada é mais sério e impor-
tante para elas do que a brincadeira.
Vygotsky (1999, P. 125), ao narrar a história do desenvolvi-
mento dos signos na criança, afirma ser a brincadeira do faz-de-
conta um dos grandes contribuidores para o desenvolvimento da
linguagem escrita, pois nela, assim como na escrita, os objetos
adquirem uma função de signo. Esther Pillar Grossi (1990, p. 28)
considera o corpo como um dos campos responsáveis pela aquisi-
ção do conhecimento, já que, para ela, o corpo é o lugar onde se
realizam as percepções, os movimentos e os afetos. Além disso,
a autora destaca a inclusão dos movimentos como matéria prima
para o funcionamento da inteligência e da ação motriz como grande
responsável na organização do pensamento, embora não deva ser
considerada como fonte única e exclusiva da construção do saber.
Abraçando, portanto, as ideias defendidas pelos autores acima
citados, busco realizar um trabalho que, sem deixar em segundo
plano as questões de ensino, valorize e realce o papel da brin-
cadeira/ jogo e do corpo/movimento como importantes aliados
do processo de aprendizagem. Assim sendo, realizamos muitas
atividades no pátio e até mesmo no chão da sala de aula, as quais
relacionam o movimento e a brincadeira à reflexão sobre a língua
escrita, como as que se seguem:

• Pique-letra: prendo uma letra na blusa de cada aluno. Feito isso,


vou falando o nome das letras, uma por vez, para que os alunos,
no pátio, tentem pegar os colegas que as têm. As letras coladas

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

nas blusas dos alunos não são aleatórias. Cada dia definimos um
critério para sua escolha. Um dia, por exemplo, pedi aos alunos que
dissessem o nome de uma das pessoas que moram com eles e então
colei na blusa deles a letra inicial do nome dessa pessoa. Num outro
dia, colamos as iniciais do nome dos melhores amigos das crianças
e assim vamos brincando e aprendendo o nome das letras.

• Caça-palavras: encho bexigas e nelas escrevo diferentes palavras.


Espalho as bexigas pelo pátio, presas a algum objeto para que não
voem ou estourem, divido os alunos em duplas e vou dizendo a pa-
lavra que deve ser caçada para ver que encontra em menor tempo.
Assim como na definição das letras, na atividade anterior, nessa, a
escolha das palavras também se dá baseada em algum critério pre-
viamente estabelecido. No início do ano realizamos essa atividade
com o nome dos alunos, na época das Olimpíadas fizemos com
nomes de países e já fizemos também com nomes de personagens
de histórias.

• Caça-objetos: os alunos recebem bolas com palavras dentro e


devem procurar o objeto correspondente à palavra, que pode es-
tar em diferentes partes do pátio ou até mesmo na sala de aula. O
principal objetivo dessa atividade é levar o aluno a perceber, que
assim como nós temos um nome, as coisas que estão ao nosso redor
também têm e que esses nomes, assim como tudo mais que falamos
e conhecemos, podem ser representados por meio da escrita.

• Caça-iguais: o aluno recebe a figura de um determinado objeto,


fruta, animal ou pessoa e deve encontrar na sala o colega que tenha
uma figura cujo nome começa ou termina, depende da orientação do
dia, com o mesmo som. Ao encontrar o amigo, o aluno deve pegar
seu caderno e registrar o nome da sua figura e a do colega, o que
o levará a perceber que, quando apresentam um mesmo som, as
palavras tendem a apresentar também grafias iguais, salvo os casos
em que sons iguais são representados por diferentes grafias. Esses
casos não são contemplados nessa atividade, pois o objetivo aqui
é fazer com que o aluno perceba que uma mesma sílaba pode ser
usada em diferentes palavras e que ter o mesmo som na pronúncia
pode ser sinônimo de mesma grafia.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Nessas atividades os alunos têm a oportunidade de refletir


sobre a língua, à medida que brincam e interagem com os colegas
e, além disso, têm a oportunidade de vivenciar momentos que
os levam a desconstruir, caso já tenham construído, a imagem
de escola como um lugar de monotonia, onde os alunos sentam
em fileiras e realizam exercícios de cópia e repetição. Tento, por
meio do oferecimento dessas atividades, tornar o espaço escolar
mais dinâmico e próximo à realidade das crianças. Afinal, ricas ou
pobres, crianças querem brincar e se divertir.

A ORGANIZAÇÃO DAS ATIVIDADES: PROJETOS TEMÁTICOS DE


ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

Todas as atividades realizadas são planejadas para o grupo a


que se destinam e se relacionam entre si por servirem a um mesmo
objetivo: fazer com que as crianças se apropriem da leitura e da
escrita buscando articular as diversas áreas que compõem o ensino,
Português, Matemática, História e Geografia, sem fragmentá-las.
Por meio delas oferecemos ao discente uma variedade de recursos,
procedimentos e alternativas metodológicas de modo a atender aos
diversos níveis de aprendizagem e de dificuldades no interior da
turma. As atividades, que serão apresentadas a seguir, abrangem
os fenômenos da alfabetização e do letramento e levam em conta
três eixos: aquisição do sistema de escrita; leitura; produção de
textos, embora, como é possível observar nos projetos que descre-
veremos a seguir, não sejam apresentados em blocos separados.
O projeto que deu início ao trabalho desenvolvido esse ano
teve duração de aproximadamente um mês e meio e tinha como
principais objetivos a valorização dos alunos e a promoção da
interação com os colegas e com a comunidade local. Tínhamos a
pretensão de iniciá-lo no início de fevereiro, mas o trabalho so-
mente ganhou força a partir do final desse mês, visto que alguns
alunos só foram matriculados ou começaram a frequentar as aulas
depois do Carnaval, e outros apenas em março.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Ao longo desse projeto, foram realizadas diversas atividades


e ações, para que, a partir do nome dos alunos, por considerar,
assim como Grossi (1990. p,65) que são por excelência a palavra
geradora para cada aluno, palavra dotada de significância através
da qual ele começa a vivenciar e observar mais de perto o escrito,
pudéssemos começar a envolvê-los em situações que incluem a
leitura e a escrita.
Seguem a seguir algumas atividades e ações realizadas a
partir do nome dos alunos, a fim de levá-los à identificação, valo-
rização, reconhecimento e fixação das letras de seus nomes, ao
passo que iam se afirmando como sujeitos.

• Mural de nomes (atividade de sondagem) — Esse foi o nosso mural


de boas vindas no qual o nome dos alunos foi colocado dentro de
estrelas para que cada um identificasse o seu, pois dessa forma sa-
beríamos quais deles já eram capazes de identificar o próprio nome
além de tentar despertar neles um sentimento de pertencimento
ao grupo, já que no mural ele poderia encontrar seu nome junto ao
dos colegas. Dos treze alunos que até março passaram a constituir a
turma, quatro não conseguiram identificar o próprio nome, embora
um deles fosse repetente. Percebi que esses alunos não sabiam
identificar, muito menos escrever seus nomes. Três deles, não sabiam
sequer segurar o lápis, e apresentavam muita dificuldade para fazer
o traçado das letras, mesmo utilizando o formato bastão. Por isso,
para ensinar-lhes a escrita de seus nomes, não bastava apresentá-los
para que copiassem. Fazia-se necessária a demonstração, no quadro,
traço por traço de cada letra, a fim de que conseguissem completar
a atividade. Assim que percebi a grande dificuldade apresentada
por esses alunos na identificação do nome, no traçado das letras,
no manuseio do caderno e até mesmo na pintura de desenhos,
conversei com o professor de Educação Física e com a professora
de Artes e pensamos juntos em atividades para ajudá-los.

• Por que e para que temos um nome? (atividades de valorização do


nome) — Conversamos sobre a importância do nome próprio, por
ser um conjunto de letras que nos identificam e nos representam
socialmente. Além disso, planejei diferentes situações na sala de aula
nas quais eles necessitaram identificar e escrever o nome. Por meio

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

da minha mediação, os alunos confeccionaram seus crachás de mesa,


e personalizaram a contra capa de suas agendas e cadernos. Essas
atividades tinham como principal objetivo levá-los a apropriação
da escrita do próprio nome. Expliquei a importância de sabermos
escrever nosso próprio nome, falamos também da assinatura;

• Tirei foto dos alunos para confecção de jogos e atividades a fim de


levá-los a começar a refletir sobre os valores sonoros representados
pelos grafemas, bem como estruturas silábicas variadas;

• Montamos uma chamadinha, com as fotos dos alunos fixadas com


velcro, pois só prendíamos a foto dos alunos presentes (na primeira
semana, fiquei como responsável por fixar as fotos dos alunos na
direção do nome correspondente, mas nas semanas posteriores,
escolhia um aluno para fazer isso);

• Orientava os alunos a escreverem o nome em todos os trabalhos


realizados, pois “se a escola pede que o aluno escreva diariamente
seu nome (nas tarefas e produções artísticas que realiza), propicia
que ele espontaneamente e sem se dar conta, comece a refletir
sobre aquela palavra” (MORAIS, 2012, p. 136). Frequentemente os
trabalhos ficam expostos no varalzinho da sala ou no mural e faço
questão de enfatizar o quanto é importante que estejam nomeados,
pois, todas as pessoas que ali estiverem, saberão a quem pertencem
aqueles trabalhos;

• No início, por ter poucos alunos, algumas vezes na semana, escrevia


o nome deles no quadro, auxiliada por eles. Escrevíamos sílaba por
sílaba a fim de que os alunos começassem a perceber as relações
existentes entre a pauta sonora e a grafia das palavras, por ser um
sistema de escrita alfabético, embora não possamos nos esquecer
do sua base ortográfica. Quando nos deparávamos com alguma
sílaba que já havia aparecido no nome de algum outro colega, a
circulávamos no nome dos dois e destacávamos sua representação
gráfica para que os alunos começassem a perceber que a repre-
sentação gráfica, na maioria dos casos, na nossa língua, mantêm
relações diretas com a pauta sonora, além de serem levados a per-
ceber também que as sílabas não são exclusivas de um único nome.
Morais (2012, p.136) acredita que quando a escola põe a criança
para, continuamente, observar o interior de determinadas palavras

59
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

(seja o nome próprio ou outra), ajuda-a a transformar aquela palavra


num objeto estável em sua mente e, a partir disso, a compreender
melhor o sistema de escrita alfabética. Para Morais (2012, p.136),
algumas palavras se tornam estáveis para um aprendiz quando ele
as reconhece de memória e pode tentar reproduzi-las a partir do
que memorizou sobre as letras que as constituem e sobre a ordem
em que se encontram dispostas, sendo, portanto, tal estabilidade
consequência da exposição, frequente e, sobretudo, do ato de re-
gistrar repetidamente a mesma palavra. As atividades realizadas na
sala de aula transformaram não apenas o nome do aluno em uma
palavra estável para ele, como também o nome dos colegas.

• No fim da aula, eu ia apontando para os nomes no quadro e os


alunos tinham que olhar para o “dono” do nome e dar tchau; (Era
uma sensação! À medida que eles iam dando tchau à criança cujo
nome eu havia apontado, eu ia apagando os nomes. Geralmente
eu apontava e afirmava algo do tipo: de quem é esse nome que
começa com R e eles respondiam: — ­Da Ruth! E então eu dizia: —
Então vamos olhar pra Ruth e dizer: —Tchau, Ruth!!! E em seguida
apagava o nome. Essa atividade servia para evidenciar que nossos
nomes nos representam socialmente, e entender que a escrita é
uma representação é um passo importantíssimo para o aluno que
está sendo alfabetizado.

• Pedi aos alunos que conversassem com seus responsáveis sobre


a escolha de seus nomes e perguntassem quem os havia escolhido
e por que. No dia seguinte, fizemos uma roda de conversa na qual
cada aluno compartilhou um pouco da história da escolha do seu
nome. Tal atividade tinha como principal objetivo destacar o valor
afetivo dos nossos nomes e os levá-los a perceber que a escolha
de nosso nome está vinculada à afetividade de nossos responsáveis
para conosco, o que nos leva a nos sentirmos mais importantes.

• Realizei vários jogos e brincadeiras para que os alunos aprendessem


a identificar o seu nome e o dos colegas:

Caça-nomes: Enchi vários balões de aniversário, escrevi


neles o nome dos alunos e os espalhei pelo pátio. Os
alunos tinham que ir até o pátio e procurar o nome

60
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

do colega que fora solicitado pela professora. Caso


pegassem o nome errado, eu lhes dizia a letra inicial
do nome do colega e lhes dava mais uma chance. Se
ainda assim não conseguisse, um outro aluno ia com
ele até o pátio para ajudá-lo;
Jogo da memória com a letra inicial dos nomes: criei
um jogo da memória no qual os pares eram formados
pela foto de um colega, ou deles mesmos, e a letra
inicial de seus nomes;
Doutor rapidinho: Fiz umas fichas de cartolina nas quais
escrevia o nome dos alunos. Colocava todos no chão e
escolhia dois alunos que deveriam encontrar no menor
tempo o nome do colega que fora solicitado por mim.
O mais rápido era o Dr. Rapidinho);

• Montei várias atividades para sistematização da escrita e identifi-


cação do nome dos alunos: Atividade com a foto dos alunos para
que eles escrevessem, ao lado, o nome correspondente, atividade
para ligar a foto do colega ao nome, atividade para ligar a foto do
colega à letra inicial do seu nome, atividade para circular as vogais
que aparecem no nome dos colegas, atividade para completar o
nome dos colegas com as vogais faltosas, atividades para escrever
a letra inicial do nome dos colegas. No início da aula, sempre reco-
lho os cadernos de casa e, no final, escolho um aluno para entregar
os cadernos para mim. O aluno deve relacionar o nome escrito no
caderno ao seu dono, num movimento de identificação do nome
dos colegas.

• Projeto Meu nome, minha identidade: Ao longo desse projeto, fo-


ram realizados diversos momentos de conversa nos quais os alunos
tiveram a oportunidade de apresentar- se ao grupo, revelando-se
como os sujeitos sociais que são. Afinal, por trás dos nomes que
recebemos em nossos diários anualmente, existem sujeitos. E para
a implantação de uma proposta didática voltada a eles, faz-se ne-
cessário que os conheçamos.

61
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A realização de atividades com palavras estáveis, segundo


Arthur Gomes de Morais (2012, p. 137) permite que o educando
descubra as seguintes propriedades do sistema de escrita alfabética:

• Quando a criança reescreve de memória seu nome ou outra palavra,


para produzir a forma convencional, tem que observar as proprie-
dades que determinam que a ordem e o repertório de letras que
constituem uma palavra não podem ser mudados, porque a palavra
deixa de existir (podendo se transformar em algo que não é palavra
ou que é outra palavra);

• Quando a criança conta quantas sílabas e quantas letras algu-


mas palavras estáveis têm, vive a constatação de que o número
de letras tende sempre a ser maior que o número de sílabas que
pronunciamos;

• Quando compara nomes de pessoas conhecidas (dos colegas e


da professora, por exemplo) e conta as sílabas e letras, observa que
as quantidades daqueles “pedaços” nos nomes não têm a ver com
características físicas das pessoas (de modo que, por exemplo, RUI
pode ser o mais alto da sala e ter o nome com menos letras);

• Quando compara determinadas palavras estáveis, sejam nomes


próprios ou não, pode observar que as letras não “pertencem ex-
clusivamente” a fulano ou a beltrano, que dentro de um mesmo
nome algumas letras podem se repetir, que as mesmas letras podem
ocorrer em palavras diferentes, apresentando-se na posição ou em
posição diferentes;

• Quando analisa as letras que aparecem em cada nome ou em


outras palavras estáveis que estão sendo comparadas, pode desco-
brir que certas letras estão muito presentes nas palavras de nossa
língua, ao passo que outras são raras; pode ver que algumas letras
aparecem mais em nomes estrangeiros, e que certas letras (como
Q) não aparecem sem outras (como U);

• Quando vê uma mesma palavra estável (nome próprio ou outra)


escrita com diferentes fontes e com diferentes tipos de letra (cursiva,
imprensa, maiúscula, minúscula), é ajudada a construir a compre-

62
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ensão de que letras são “classes” de símbolos que podem não ser
fisicamente iguais, mas que se equivalem.

E por fim, começamos a ampliar as propostas, inicialmente


realizadas apenas com os nomes dos alunos, relacionando-as,
nesse segundo momento a outras palavras como nome de ani-
mais, brincadeiras, cores e frutas Nesse momento, levei-os para
a mesa-alfabeto, para que, assim como realizaram atividades de
identificação do som inicial e final de seus nomes, pudessem agora
fazer o mesmo, mas com palavras diversas.
As atividades listadas acima foram uma tentativa de levar os
discentes a elaborarem reflexões sobre os aspectos da escrita a
partir do seu nome e do nome dos colegas. Porém ao longo do
mês de março, a realização de leituras como a dos livros Como
Alfabetizar? Na roda com professoras dos anos iniciais, organizado por
Goulart e Souza (2015) e Enseñando a leer: Teoría, prática e intevención
de Liliana Borrero, Botero (2008), somadas às evidências presentes
no discurso dos próprios alunos, foram me levando a assumir que
o trabalho de alfabetização não pode ser reduzido ao trabalho de
sistematização calcado unicamente em palavras que acreditarmos
ser significativas para os alunos.
À vista disso, resolvi ampliar a proposta de alfabetização até
então implementada, de maneira que o trabalho desenvolvido,
devidamente contextualizado, voltasse-se de forma mais direta
as relações entre escola e comunidade, e pudesse possibilitar ao
aluno a compreensão da escrita como um instrumento de ação no
mundo. Esta decisão está ligada à compreensão de que o trabalho
do alfabetizador, e dos professores em geral, consiste também na
apresentação do novo, da ampliação dos horizontes. Sendo assim,
dando sequência à descrição dos projetos realizados, apresentare-
mos um pouco do projeto “Ler e aprender e Ler para conhecer o
mundo através das Olimpíadas”, cujo objetivo principal era esta-
belecer relações claras entre o conhecimento adquirido no espaço
escolar e a vida em sociedade.

63
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todas as atividades realizadas tinham como objetivo central


levar os alunos a se apropriarem da leitura e da escrita e se per-
ceberem como cidadãos, com direitos e deveres, que integram e
participam de uma sociedade. O trabalho desenvolvido foi pensado
e estruturado de modo que o fazer pedagógico não ocorresse de
forma isolada de contextos e situações reais, o que gerou um maior
envolvimento por parte dos alunos.
A metodologia adotada contemplou o estudo da língua viva,
como um instrumento de comunicação e ação social e, por isso,
a apresentação das letras e das sílabas se deu por meio de con-
textos amplos, como a realização de jogos, estudo de palavras
relacionadas a um mesmo tema, como as Olimpíadas, ou a mes-
ma origem, como no caso das palavras de origem francesa, nos
quais os alunos eram levados a refletir sobre os diferentes valores
sonoros representados pelos grafemas, inclusive dos grafemas E
e O que representam mais de um valor sonoro cada, e também
sobre as diferentes estruturas silábicas (V, VV, CV, CVV, CVC, CCV,
CCVCC) não privilegiando a exposição descontextualizada dessas
unidades menores e nem mesmo a definição de uma ordem espe-
cífica para sua apresentação, como primeiro as sílabas simples e
depois as complexas. O que propiciou às crianças, desde o início
do processo, o contato com todas as letras e qualquer palavra,
sem que tivessem que ficar esperando por meses a apresentação
das diversas famílias silábicas para que pudessem começar a ler
e escrever.
O contato intenso com a leitura e a escrita, por meio do
acesso aos textos na sala de aula, na biblioteca local e no trabalho
diário com textos na roda de leitura e nas atividades, foi funda-
mental ao processo de alfabetização, pois possibilitou aos alunos
a vivência de situações envolvendo a leitura e a escrita nas quais
essas práticas começaram a ter espaço e relevância em suas vidas.

64
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Contudo, defendo que estar em contato com diferentes textos


e compreendê-los por meio da leitura efetuada pelo professor não
é suficiente para que esses alunos percebam a base alfabética do
nosso sistema de escrita. Sendo necessário que se associe esse
contado a situações de sistematização do ensino que conduzam
a observação da escrita de palavras e a reflexão sobre as relações
entre os modos de falar e escrever de modo que se favoreça a am-
pliação do conhecimento do aluno sobre o caráter representacional
da escrita, por isso, retomo aqui minha hipótese inicial de que a
não sistematização do ensino pode ser um agravante ao processo
de alfabetização, principalmente, daqueles que vivem em comuni-
dades cujas famílias manifestam escasso contato com práticas que
envolvem a leitura e produção de textos escritos.
Todavia, acho importante esclarecer que quando falo em siste-
matizar não estou me referindo às atividades de cópia e repetição
massacrantes e sim aquelas nas quais, de forma explicita, dinâmica
e diversificada, o professor dá atenção aos aspectos específicos
da alfabetização para que os alunos aprendam a ler e a escrever
e, como afirmam Maciel e Lúcio (2008, p.16), tenham maiores
chances de inserção nas práticas sociais de consumo e produção
de conhecimento e em diferentes instâncias sociais e políticas.
Iniciei este trabalho expondo minha dificuldade quanto à arti-
culação entre teoria e prática e minha vontade de aprofundar meus
conhecimentos no que se refere à alfabetização e ao letramento
para ter condição de oferecer aos meus alunos um ensino com mais
qualidade e eficácia. Ao longo desses dois anos, dedicados a essa
pesquisa, foi o que fiz paralelo, no ano de 2016, a construção e
desenvolvimento de uma proposta pedagógica capaz de traduzir
os caminhos escolhidos, com base nos meus estudos iniciais e
nas questões que iam sendo suscitadas no contato com os alunos.
Constatei, pois, que a alfabetização é um processo mais com-
plexo do que eu supunha e que, portanto, o período de dois anos
foi insuficiente para compreensão de todas as facetas nele envol-

65
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

vidas. Levando-me, por isso, a concluir que, por ser um processo


que envolve os sujeitos e suas relações estabelecidas na sociedade,
não pode ser realizada por meio de receitas que imperativamente
determinam o que contribui ao aprendizado ou não. A alfabetização
é um processo que exige uma orientação por meio da realização
da sistematização aliadas a valorização dos sujeitos e dinamicidade
do projeto, relacionados a uma ou a diferentes metodologias de
trabalho que deverão ser escolhidas de acordo com as caracterís-
ticas e necessidades do grupo ao qual se destina.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. Tradução de Magali de


Castro. In: NOGUEIRA, M. A. et al. (Org.). Pierre Bordieu: Escritos de
educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1983.
BOTERO, L. B. Enseñando a leer: Teoria, prática e intevención. Bogotá:
Grupo Editorial Norma, 2008.
CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura, v.24,
n. 9, 1972.
MACIEL, F. I. P.; LÚCIO, I. S. Os conceitos de alfabetização e letramento e
os desafios da articulação entre teoria e prática. In: CASTANHEIRA, M. L.
et. Al. Belo Horizonte: Autêntica Editora: Ceale, 2008 [Alfabetização e
letramento na sala de aula].
GOULART, C. M. A. Com quantos paus se faz uma canoa? Conhecimentos
envolvidos na vasta cultura escrita e no processo de alfabetização. In:
GOULART; SOUZA. M. (Orgs.). Como alfabetizar? Na roda com professoras
dos anos iniciais. São Paulo: Papirus, 2015.
GROSSI, E. P. Didática da alfabetização-Didática do nível pré- silábico. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990.
MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos,
2012 [Como eu ensino]
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Minas Gerais,
2003.

66
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

COCONSTRUÇÃO DE SENTIDOS EM PRÁTICAS


MEDIADAS DE LEITURA:
UMA ANÁLISE SOCIOINTERACIONAL

Aline Salucci Nunes

INTRODUÇÃO

Este estudo que se propõe a analisar enquadres em uma aula,


cujo foco são práticas mediadas de leitura, se sustenta no paradig-
ma de que o conhecimento é um construto dos sujeitos na intera-
ção. Logo, a forma como os interagentes negociam os enquadres
pode revelar a maneira como os sentidos são coconstruídos durante
as atividades com diferentes modalidades de textos.
Desse modo, procuramos entender como os enquadres
negociados em sala de aula revelam o desenvolvimento da com-
petência leitora pelos alunos, no intuito de oferecer um mapa da
coconstrução de sentido/conhecimento sobre os objetos textuais
utilizados.
Este trabalho adotou para o tratamento dos dados gerados
uma metodologia qualitativa, dado seu interesse em entender o
evento analisado em profundidade, não se preocupando em quan-
tificar ou tecer generalizações, mas cuidando para compreender
de que forma o fenômeno se construiu ou se manifestou no caso
em questão.

67
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM E TRABALHO COM A LEITURA

O modo como concebemos a linguagem é essencial para de-


terminar a prática em sala de aula, como bem anuncia Travaglia
(2008). A esse respeito, assumimos com Wittgenstein (1999) o que
consideramos ser uma visão pragmática de linguagem, pois, como
esta pesquisa se propõe a analisar uma situação de interação face
a face, acreditamos que seu sucesso depende de um entendimento
sobre a linguagem que se fundamente em seu uso, pois, de ou-
tra forma, não há como sustentar a coconstrução da significação
atribuída à ação discursiva. Cremos, ainda, que a tentativa de se
entender qualquer fenômeno linguístico dissociado do uso pode
incorrer no erro representacionista de acreditar que as palavras
portam o sentido das coisas.
Wittgenstein denomina “jogos de linguagem” os processos
que envolvem o uso das palavras e aponta para “a multiplicidade de
jogos de linguagem” (p. 35) por meio dos quais as práticas sociais
acontecem: comandar, descrever, pedir, agradecer, cantar, inventar
história, ler, entre tantas outras possibilidades. E, em cada uma
delas, a palavra assumirá uma significação diferente. Assim sendo,
os sentidos das palavras “só podem ser conhecidos ou aprendidos
no contexto das atividades humanas em que essas palavras [...] se
inserem e das quais não se desassociam” (MARTINS, 2000, p. 31).
Em outras palavras, só podemos perceber se um conceito foi cons-
truído quando usado adequadamente nos contextos apropriados.
De acordo com Marcuschi (2007, p. 88), “a estabilidade lin-
guística seria produzida discursivamente” por meio da articulação
inferencial. Em suas palavras, “dizer que algo é isso ou aquilo é
dizer com base num raciocínio desenvolvido numa atividade infe-
rencial, ou seja, com base na inserção num contexto de uma ação
discursiva” (p. 88).
A assunção de uma perspectiva de linguagem tal qual a que
adotamos compreende, então, uma noção de construção do sig-

68
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

nificado que leva em conta a subjetividade de quem participa do


fenômeno linguístico em questão. Nas palavras de Harré e Gillett
(1999)

usamos o termo significação para indicar o papel ativo


do significado na estruturação da interação entre uma
pessoa e um contexto, de modo a definir a subjetivida-
de daquela pessoa na situação e seu posicionamento
em relação a certos discursos implícitos nesta subje-
tividade. (p. 27)

Diante disso, reiteramos que as palavras representam signifi-


cações possíveis que variam de acordo com contextos e objetivos
específicos, tendo em conta que “a maneira como nós dizemos
aos outros as coisas é decorrência de nossa atuação intersubjetiva
sobre o mundo e da inserção sociocognitiva no mundo em que
vivemos” (MARCUSCHI, 2007, p. 126).
Ancoramo-nos nessa perspectiva para justificar que, nesta
pesquisa, não tratamos a significação como interpretação ou com-
preensão, mas como coconstrução de sentidos.
Isto posto, baseadas na crença de que o funcionamento da
linguagem está no uso e ela é constituída nas múltiplas práticas
culturais e sociais, pensamos que, talvez, a dificuldade encontrada
na aprendizagem da leitura seja justamente uma visão limitada, ou
limitadora, da concepção de linguagem.
Em nosso entendimento, a leitura deve estar associada à
maneira como seus praticantes vivem, interagem e enxergam o
mundo, e, assim como os outros jogos de linguagem, precisa ser
vivenciada.
Neste trabalho, portanto, trataremos a leitura como prática
discursiva social, situada na perspectiva dos multiletramentos,
partindo de uma proposta desenvolvida em torno dos gêneros
textuais, a fim de que o aluno se aproprie dos jogos de linguagens,

69
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

desenvolvendo a capacidade de criar, ele próprio, novos sentidos,


conforme apresentamos a seguir.

LEITURA COMO PRÁTICA SOCIAL NA SALA DE AULA

Kleiman (2012) ao considerar que crianças já participam de prá-


ticas letradas antes de iniciarem sua vida escolar, torna o conceito
de letramento mais amplo, sendo definido pela autora como “um
conjunto de práticas sociais que usam a escrita como um sistema
simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para fins
específicos” (KLEIMAN, 2012, p. 18-19).
Tendo entendido que nossos alunos participam de múltiplas
práticas de letramento, valorizadas ou não, dentro e fora da escola,
assumimos com Kleiman (2007) a importância de se estabelecer os
“múltiplos letramentos da vida social, como o objetivo estruturante
do trabalho escolar em todos os ciclos” (p. 4).
Rojo (2012) denomina multiletramentos a diversidade de
modalidades de suportes textuais, diferentes interfaces e novas
maneiras de interação com e através da linguagem escrita que
precisam estar presentes nas aulas de língua portuguesa; por um
lado, porque tais práticas contribuem para a desconstrução do
conceito de letramento singular e dominante, normalmente as-
sociado à escolarização, transgredindo assim relações de poder;
e, por outro lado, porque cooperam para o desenvolvimento dos
alunos enquanto produtores de sentido.
No que diz respeito especificamente à prática de leitura, um
trabalho pautado nos multiletramentos visa à autonomia dos alu-
nos para que, uma vez fora da escola – ou mesmo dentro dela –,
“saibam guiar suas próprias aprendizagens na direção do possível,
do necessário e do desejável, que tenham autonomia e saibam bus-
car como e o que aprender, que tenham flexibilidade e consigam
colaborar com urbanidade” (ROJO, 2012, p. 27).

70
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Sob a ótica apresentada, este trabalho se desenvolveu tendo


como eixo condutor as estratégias de ensino propostas por Isabel
Solé (1998) que se baseia no modelo interativo, em que o leitor
constrói os sentidos sobre o que lê a partir da relação entre os
elementos que compõem o texto e sua bagagem de conhecimen-
tos prévios.
Corroborando as palavras de Solé e Marcuschi, Koch e Elias
(2014, p. 7) postulam que “a leitura de um texto exige muito mais
que o simples conhecimento linguístico compartilhado pelos
interlocutores” e complementam, assinalando o fato de que o
exercício da leitura demanda que o leitor participe ativamente da
construção dos sentidos, formulando e validando ou não hipóteses,
preenchendo “as lacunas que o texto apresenta” (p. 7).
Nessa perspectiva, o significado é construído por meio dos
conhecimentos já consolidados pelo leitor, aplicados às sinaliza-
ções fornecidas pelo texto. Nesse sentido, Koch e Elias (2014, p.11)
afirmam que “a leitura é, pois uma atividade altamente complexa
de produção de sentidos”, que, embora aconteça com base em
elementos linguísticos que o autor utilizou para compor o texto,
exige que o leitor acione outros tipos de conhecimentos, quais
sejam, o linguístico – que se refere ao uso da língua –; o textual
– que são as noções e conceitos sobre o texto: tipo, estrutura, for-
mas de discurso – e o enciclopédico ou de mundo – que abrange
todo o conhecimento formal ou informal adquirido durante a vida
(KLEIMAN, 2013).
Entendemos, então, que acionar conhecimentos prévios é
determinante para a construção de sentidos, visto que permite
ao leitor a elaboração e verificação de previsões, a elaboração e
confirmação ou refutação de hipótese, o preenchimento de lacu-
nas. Outro fator responsável pela produção de significação é um
consenso entre Kleiman (2013), Solé (1998) e Koch e Elias (2014):
o estabelecimento de propósitos e objetivos para a leitura. De
acordo com essas autoras, a intenção com a qual o leitor inicia sua

71
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

leitura direciona as estratégias que ele utilizará e a forma como irá


controlar sua produção de sentidos.
Kleiman defende a ideia de que o ensino de leitura e escrita
parta de textos significativos para os alunos, que representem uma
determinada prática social, e não de uma sequência de conteúdos
previamente organizados dos mais fáceis para os mais difíceis, já
que “a facilidade e a dificuldade de aprendizagem [...] dependem,
sobretudo, do grau de familiaridade do aluno com os textos per-
tencentes aos gêneros mobilizados para comunicar-se em eventos
que pressupõem essa prática” (KLEIMAN, 2007, p. 7).
A esse respeito, Antunes (2009) propõe, então, a admissão
dos gêneros como referência do trabalho em sala de aula, já que
uma de suas implicações seria justamente que “as atividades de
compreensão superariam o simples cuidado de entender o texto,
ou a semântica de seu conteúdo, para atingirem os propósitos co-
municativos com que foi posto em circulação” (ANTUNES, 2009, p.
59 – grifo da autora).
Para escolha dos textos, podem ser considerados tanto aque-
les que são comuns no dia a dia dos alunos, quanto aqueles aos
quais o acesso não lhes é oportunizado com frequência, porquanto
nos alinhamos a Kleiman, quando reitera que “o papel da escola
não é apenas o de ensinar o que o aluno precisa, mas também o
de criar novas necessidades que lhe permitam ter acesso a outras
instituições, particularmente aquelas de prestígio na sociedade”
(KLEIMAN, 2001, p. 235).
Assim, com o intuito de ativar conhecimentos prévios a res-
peito da temática abordada, levantar questionamentos e analisar
aspectos textuais durante as atividades de leitura, consolidar
novos aprendizados e servir como motivação para novas práticas
letradas, apostamos, assim com Solé (1998), nas atividades de lei-
tura compartilhada, através das quais o professor pode mediar a
coconstrução de conhecimento a partir de “andaimes” (p. 76), que
aos poucos podem ser retirados, à medida que o aluno se torna

72
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

um leitor autônomo. O que pretendemos mostrar, nesta pesquisa,


portanto, são atividades de coconstrução de conhecimento a partir
de práticas de leitura significativas, com o intuito de desenvolver
e ampliar a competência leitora dos alunos.

COCONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO EM PRÁTICAS


MEDIADAS DE LEITURA

Tanto na interação via texto quanto na interação face a face,


percebemos que um conhecimento é construído quando é posto
em prática nos jogos de linguagem. Desse modo, em uma conversa,
por exemplo, cada tomada de turno corresponde a um “lance no
jogo” (MARTINS, 2000, p. 37) que são embasados em um conjunto
de conhecimentos e experiências partilhado pelos falantes (KOCH
e CUNHA-LIMA, 2011, p. 281).
O conhecimento partilhado é definido por Koch e Cunha-Lima
como tudo o que é dito pelos participantes e todos os elemen-
tos que fazem parte do contexto de uma determinada interação,
estando portando em constante movimento e sendo atualizado a
cada troca linguística. Ao citarem Clark (1992), Koch e Cunha-Lima
(2011, p. 181) apresentam três origens principais dos conheci-
mentos: “a comunidade da qual os interactantes fazem parte”;
“os conhecimentos comuns a uma determinada comunidade”; “os
laços em comum construídos pelos membros da comunidade e as
experiências compartilhadas”.
Isso nos leva a refletir sobre a multiplicidade de jogos de
linguagem que se desenvolvem em uma aula, e sobre como
esses jogos afetam e são afetados pelas posições tomadas por
professores e alunos, enquanto manifestam sua habilidade de
jogar. No cenário social sala de aula, professores e alunos atuam
como protagonistas de situações de interação, representando
seus papéis “propondo ou mantendo enquadres, que organizam
o discurso e os orientam com relação à situação interacional”
(RIBEIRO e GARCEZ, 2013, p. 107).

73
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O conceito de enquadre introduzido por Bateson (2013)


representa um recorte numa situação social que delimita “uma
classe ou conjunto de mensagens (ou de ações significativas)” (p.
97) que são introduzidas e/ou sustentadas pelos participantes, a
fim de orientar sua conduta e atribuir significado à situação que se
desenvolve (RIBEIRO e GARCEZ, 2013, p. 7). Ao retomar o debate
sobre a natureza da comunicação, o mesmo autor propõe que
qualquer enunciado só pode ser compreendido quando há uma
referência à metamensagem do enquadre.
Na sala de aula, ambiente no qual este estudo se desenvolveu,
exemplos de enquadres seriam reconhecidos em expressões que
usamos rotineiramente como “aula”, “atividade”, “avaliação” etc.
Assim, “o enquadre formula a metamensagem a partir da qual situ-
amos o sentido implícito da mensagem enquanto ação” (RIBEIRO
e GARCEZ, 2013, p. 107).
Diante do exposto, entende-se que as ações mudam de sentido
de acordo com o enquadre que é proposto. Uma situação de brin-
cadeira, por exemplo, só será compreendida como tal por meio dos
sinais, que Bateson (2013) chama de indícios metacomunicativos
(p.89), evidenciados no momento da interação.
Gumperz (2013) classifica como pistas de contextualização
“todos os traços linguísticos que contribuem para a sinalização de
pressuposições contextuais” (p. 152). Essas pistas, que podem ser
de natureza linguística, paralinguística, prosódica ou não verbal,
são responsáveis por indicar que tipo de mensagem está aconte-
cendo e como a mensagem deve ser interpretada.
Harré e van Langenhove (1999, p.17) instituem o conceito
de posicionamento como sendo “uma construção discursiva de
histórias pessoais que fazem as ações de uma pessoa inteligíveis
ou relativamente determinadas como atos sociais e na qual os
membros da conversa têm localizações específicas”1 para explicar
1 Tradução livre do fragmento “[…] discursive construction of personal stories that make a
person’s actions intelligible and relatively determinate as social acts and within which the
members of the conversation have specific locations”.

74
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

que o repertório de ações de uma pessoa é limitado pela posição


que ocupa na situação discursiva. Isso significa que os interagentes
se posicionam e são posicionados de acordo com sua situação na
interação.
Inspiradas na Análise da Conversa Etnometodológica (ACE),
analisamos como os participantes desta pesquisa coconstruíram
conhecimento durante a prática de leitura com foco no contexto
sequencial da fala-em-interação.
A ACE tem se encarregado do estudo das interações discursivas
em seu contexto natural de produção, buscando o entendimento
de como os participantes dessas interações procedem, a fim de
projetar uma imagem ou produzir um comportamento e entender
e lidar com a projeção da imagem e a produção do comportamen-
to do outro (GARCEZ, 2008). Assim, entendemos que o objeto de
estudo da ACE é constituído pela fala-em-interação.
A fala-em-interação é organizada por um sistema de tomada
de turnos que tem na conversa cotidiana sua pedra fundamental
(SACKS, SCHEGLOFF e JEFFERSON, 2003). Essa organização se
estende a outros sistemas de troca de falas que costumam ter em
comum o fato de que

uma parte fala de cada vez, embora os falantes se


alternem, e embora a extensão dos turnos e a ordem
dos turnos variem; que as transições são finamente
coordenadas; que são usadas técnicas para a alocação
de turnos, cuja caracterização faria parte de qualquer
modelo de descrição de certos materiais de tomada
de turnos; e que há técnicas para a construção de elo-
cuções que são relevantes para o seu status de turno,
que dizem respeito à coordenação da transferência
e à alocação da vez de falar. (SACKS, SCHEGLOFF e
JEFFERSON, 2003, p. 13)

75
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

No caso da conversa institucional, “o que dá caráter institu-


cional à fala é a coconstrução das identidades dos participantes
como representante e cliente da instituição” (CORONA, 2009,
p.16). Desse modo, a interação institucional é orientada para que
se cumpra uma atividade relativa à instituição que representa, há
restrições quanto à tomada de turnos e ao que é permitido a cada
um dos interagentes e podem estar relacionadas a procedimentos
específicos de uma determinada instituição. Na sala de aula, por
exemplo, a interação acontecerá de modo que satisfaça ao objetivo
planejado para aula e a troca de turnos é, normalmente, organizada
pelo professor.
A partir desses fundamentos, pretendemos mostrar como se
dá o desenvolvimento da competência leitora pelos alunos em uma
atividade mediada de leitura. Antes, porém, informamos sobre o
contexto em que nossa pesquisa se desenvolveu.

CONTEXTO DA PESQUISA

Este trabalho é um pequeno recorte de uma pesquisa de


mestrado realizada no ano de 2015 em uma sala de aula de língua
portuguesa, em uma turma de quarto ano do ensino fundamental de
uma escola da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. A
unidade escolar que faz parte da rede pública municipal de ensino
está localizada a pouco mais de 1 quilômetro do centro da cidade
de Itaboraí e atende a uma comunidade carente que também é
afetada por questões de criminalidade e violência.
Na ocasião da realização da pesquisa, os alunos do 4º ano,
recém-saídos do ciclo de alfabetização – conforme prevê Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) – passavam a
ter aulas com professores diferentes, de acordo com a disciplina.
A sala de aula dessa escola ainda segue a configuração espa-
cial tradicional em que as carteiras são posicionadas em fileiras
de frente para o quadro branco, no entanto, durante as aulas de

76
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

língua portuguesa, a turma se organizava em um grande círculo


ou pequenos grupos.
Os alunos participantes tinham entre 8 e 11 anos de idade
e muitos eram oriundos de outros estados do país – visto que o
município de Itaboraí sediaria um complexo petroquímico cons-
truído pelo governo federal, o que contribuiu para um aumento
expressivo da população da cidade.
A professora de português dessa turma, e autora deste capí-
tulo, é natural de Itaboraí e reside em um bairro próximo à escola
onde trabalha desde 2008.
Como a proposta desta pesquisa surgiu a partir de uma refle-
xão sobre a prática docente e o objetivo era contribuir para uma
mudança do cenário que se apresentava, buscamos desenvolver
uma pesquisa-ação de caráter interpretativista, inspirada na et-
nografia, levando em conta o olhar do pesquisador sobre aquela
realidade da qual fazia parte.
Partindo do entendimento de que não há uma realidade pronta
no mundo, mas interpretações do que se chama de real, o que nos
propomos a apresentar aqui é nossa versão sobre os fenômenos
observados, visto que quando da geração e da análise dos dados,
consideramos nosso ponto de vista sobre a prática observada.

ANÁLISE DOS DADOS

O enquadre aula pressupõe possibilidades de posicionamen-


tos que variam conforme a dinâmica da situação interativa, sendo
essa, por sua vez, desenvolvida através de infinitas possibilidades
de jogos de linguagem. De acordo com a atividade que se propõe
e a forma como ela é conduzida, os interagentes podem assumir
diferentes posições e propor novos enquadres, enquanto atuam
no compartilhamento e na coconstrução de conhecimento.
Entende-se, então, que uma aula não configura um aconteci-
mento “engessado”, pronto e acabado desde sua concepção, mas

77
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

que, apesar de poder partir de um planejamento prévio, como


é o caso da aula analisada, desenvolve-se na interação e é nela
constituída por diferentes e variadas etapas, cujos enquadres pa-
recem ser os maestros definidores. As atividades analisadas neste
capítulo fizeram parte de uma sequência de atividades planejada
para acontecer em uma aula de 120 minutos, que visava à prática
de leitura através de diferentes modalidades textuais. Desse modo,
optamos por manter os três momentos rotineiros das aulas de
língua portuguesa denominados roda de conversa, roda de leitura e
momento do registro.
Desta feita, na roda de conversa, foi organizado um trabalho
com um texto imagético, a fim de motivar a participação das crian-
ças e ativar conhecimentos prévios. A roda de leitura se baseou
em uma reportagem a respeito do 50º aniversário da primeira
viagem do homem ao espaço e um trailer do filme Gagarin, o pri-
meiro no espaço. No momento do registro, os alunos apresentaram
um resumo oral dos sentidos que haviam construído a partir dos
textos lidos. Por fim, introduzimos um objeto de aprendizagem
em formato de jogo de computador. As sequências analisadas cor-
respondem a fragmentos do trabalho desenvolvido com os textos
imagético e escrito.
Partindo do entendimento de que “a leitura é uma atividade
na qual se leva em conta as experiências e os conhecimentos do
leitor” (KOCH e ELIAS, 2014, p. 11), uma aula que se desenvolve
em torno de um texto merece ter um tempo dedicado ao resgate
de saberes que os leitores já possuem sobre o tema a ser estudado.
O excerto a seguir mostra que o tema é introduzido como o
auxílio da tecnologia digital, e outra modalidade de texto – a ima-
gem – é utilizada como suporte para a retomada de conhecimentos
que antecede a leitura do texto escrito.

78
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

EXCERTO 1: “tranquilo então? podemos começar?”

29 Aline <tranquilo então? podemos começar?


30 Pedro po::de
31
32
33
34 Aline olha só tem uma imagem aqui (1,0) na tela (1,0) eu
queria que vocês olhassem para essa imagem e prestassem bastante
atenção porque é uma imagem conhecida (1,0) que a gente já tá
vendo[quem] =
35 Laís [ºso:lº]
36 Camila [ºtiaº]

A aula teve início com a projeção de uma imagem do planeta


Terra encobrindo o Sol. A figura que serviu como mote para a
conversa, que tinha como objetivo introduzir o assunto e trazer
à tona o conhecimento de mundo que os alunos possuem sobre
o tema que estará presente no texto a ser lido. Isso porque, se-
gundo Kleiman (2013, p. 24), “para haver compreensão durante
a leitura, aquela parte do nosso conhecimento de mundo que é
relevante para a leitura do texto deve estar ativada, isto é, deve
estar num nível ciente, e não perdida no fundo de nossa memória”.
Esse novo jogo de linguagem que introduz a primeira moda-
lidade textual – uma imagem – revela que o sentido de algumas
atividades realizadas em sala de aula já é dominado pelos alunos,
uma vez que as crianças se põem a participar antes que Aline,
a professora, termine a proposta. Ao explicar esse fenômeno,
Wittgenstein compara o aprendizado dos jogos de linguagem ao
aprendizado de jogos de tabuleiro: “pode-se também imaginar
que alguém aprendeu o jogo sem aprender todas as regras nem
sua formulação. Aprendeu primeiramente, talvez, por observar
jogos de tabuleiro mais simples e progrediu sempre para os mais
complicados” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 38). No contexto deste
fragmento da aula, isso acontece porque se trata de um exercício
ao qual os meninos e meninas já estão habituados, não sendo

79
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

necessário, portanto, dizer o que se espera deles em termos de


resposta.
Aline inicia o primeiro excerto analisado propondo o enquadre
da aula formal: “<tranquilo então? podemos começar”, em que
serão discutidos os conteúdos. É interessante observar que, nesse
caso, ao usar o verbo na primeira pessoa do plural, não só existe
um desejo de chamar a atenção dos alunos para o novo enquadre,
mas de envolvê-los nele e fazer com que participem. Propósito
esse que é compreendido pelos alunos que, antes mesmo do tér-
mino da proposta, tomam a iniciativa da palavra: “olha só tem uma
imagem aqui (1,0) na tela (1,0) eu queria que vocês olhassem para
essa imagem e prestassem bastante atenção porque é uma imagem
conhecida (1,0) que a gente já tá vendo[quem] =” (linhas 31 a 34).
Isso pode ser verificado pela fala sobreposta de Laís, na linha 35:
“[ºs:olº]”, em resposta à pergunta que sequer está concluída.
Ao apontar para a figura no quadro e solicitar a participação
das crianças, a fim de iniciar a conversa que servirá para ativação de
conhecimentos prévios a respeito do assunto que será trabalhado
mais adiante na roda de leitura, Aline propõe o enquadre jogo da
localização de informação, em que os alunos devem atentar para
a superfície do texto – nesse caso, imagético – para responder às
perguntas. Desse modo, oferece algumas pistas textuais que os con-
duzam a essa atividade: “olha só tem uma imagem aqui”; “eu queria
que vocês olhassem para essa imagem”; “que a gente já tá vendo”.
Essa atividade pré-textual que se desenvolve como uma con-
versa, antecedendo a atividade de leitura do texto escrito, busca
ajudar na tarefa de coconstrução de sentidos e pretende alcançar
alguns pontos apresentados por Solé (1998, p. 20) como estratégias
para compreender: motivação para a leitura, revisão e atualização
do conhecimento prévio, estabelecimento de previsões sobre o
texto e formulação de perguntas sobre ele.
O próximo excerto revela um enquadre que se fez fundamental
para a coconstrução de conhecimentos durante a aula analisada.

80
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

EXCERTO 2: “é a lua ou a terra.”


39 Aline =<o que que tá mostrando naquela fotografia?
40 Pedro [[o so:::l]
41 Milena [[a LU:::a]
42 Fabio [[ºo planeta terraº]
43 Aline a lua?
44 Camila a terra
45 Aline a terra?
46 Pedro e o [sol]
47 Fabio [sol] e a lua=
48 Camila =o planeta terra, tia
49 Aline é a lua ou a terra.=
50 Bruno =o, tia=
51 Camila =é o planeta terra
52
53
54 Aline é o planeta terra não é? =olha só dá pra ver aqui ó (0,5)
pelas cores pelas formas que tão aparecendo e o que tá aparecendo
lá atrás?
55 Crianças o sol

Verificamos no excerto 2 que, a princípio, Aline se posiciona


como leitora oficial da imagem, fazendo as perguntas, induzindo os
alunos, posicionados como leitores-descobridores, a responderem
de acordo com suas expectativas de respostas, propondo o enquadre
jogo de adivinhação – combinado ao enquadre jogo da localização
de informação, uma vez que os alunos se apoiam no que veem para
arriscar suas respostas. Percebemos esse novo enquadre através do
jogo de linguagem em que os alunos e a professora alternam turnos,
por vezes em falas sobrepostas, conforme analisamos abaixo.
A fotografia em questão contém a imagem do planeta Terra
em primeiro plano encobrindo o Sol. Vemos que as crianças se
posicionam como jogadores no novo enquadre proposto por Aline
e disputam o turno na tentativa de descobrir a resposta correta,
como nas falas sobrepostas de Pedro: “[[o so:::l]” (linha 40) , Milena:
“[[o so:::l]” (linha 41) e Fabio: “[[ºo planeta terraº]” (linha 42).

81
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Verificamos que o sentido da indagação “a lua?” (linha 43) não


é interpretado como uma pergunta direta, mas como a sugestão de
que essa não é a resposta esperada. Esse lance no jogo de linguagem
é percebido através da reação dos alunos face à palavra lançada, ou
seja, a partir das respostas das crianças ao questionamento de Aline.
Na medida em que os alunos ainda não respondem às pergun-
tas com segurança, faz-se necessária a intervenção da professora,
ora limitando as alternativas: “é a lua ou a terra.=” (linha 49), ora
fornecendo a resposta: “é o planeta terra não é? =olha só dá pra ver
aqui ó (0,5) pelas cores pelas formas que tão aparecendo” (linhas 52
a 54), reforçando o enquadre jogo da localização de informação: “dá
pra ver aqui ó”. À medida que a interação entre professora e alunos
acontece, as crianças confirmam suas ideias ou as reformulam. Essa
tarefa contribui para o desenvolvimento da habilidade de formula-
ção de hipóteses, que leva à compreensão e que deve ser utilizada
também no momento da leitura do texto (KLEIMAN, 2013, p. 46-47).

EXCERTO 3: “o que vocês já aprenderam sobre a terra.”


37
38 Aline outra pergunta (1,2) o que vocês sabem (0,5) sobre
esse planeta que tá aqui na foto? (1,4) que planeta que é?
39 Camila é o planeta terra tia=
40
41 Aline =é a terra e o que vocês já aprenderam sobre a terra.
(1,0)
42 João que::: que::: que:::
43 Bruno que o big bang estourou e fez ela ué
44 Aline o quê?
45 Carlos que o big bang explodiu e fez ela
46 Aline mas assim? [o big bang explodiu e aí apareceu a terra?]
47
48
49
50 João [não tia(.) não tia(.) não é:: os plan_] é::: foi
juntando isso(0,5) aí ela foi juntando umas paradas foi juntando
juntando juntando aí ele ficou desse tamanho (0,5) [aí ficou sólido]
51 Carlos [aí tem uma ca]mada ( )

82
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O jogo de linguagem utilizado no contexto desse excerto


aponta para a proposição de um novo enquadre: o de ativação de
conhecimentos prévios, conforme analisamos adiante. Trata-se, a
princípio, de uma situação em que a resposta para a pergunta de
Aline não é completamente conhecida por ela, pois constitui um
amplo campo de possibilidades, que podem variar de acordo com
a perspectiva dos alunos. E na sequência, há indicação de que a
resposta formulada deve ser mais desenvolvida.
Desse modo, observamos no excerto 3: “o que vocês já apren-
deram sobre a terra.”, que Aline em seu turno nas linhas 37 e 38:
“outra pergunta (1,2) o que vocês sabem (0,5) sobre esse planeta
que tá aqui na foto? (1,4) que planeta que é?”, propõe o enquadre
ativação de conhecimentos prévios, em que busca construir um
compartilhamento de esquemas de conhecimentos comuns. Assim,
conforme os alunos vão dando suas contribuições: “é o planeta
terra tia=” (Camila, linha 39), segue motivando as construções de
respostas mais elaboradas para a pergunta inicial, como na linha 40:
“é a terra e o que vocês já aprenderam sobre a terra.”, procurando
resgatar aquilo que os alunos já aprenderam sobre o assunto.
Percebemos que não se trata mais de levantamento de hipóte-
ses, mas a retomada de conhecimentos pressupostos fundamentais
para a tarefa de coconstrução de sentidos. A atividade de leitura
da imagem está encerrada e caminha-se para a leitura do texto es-
crito. Nesse novo enquadre de ativação de conhecimentos prévios
enciclopédicos ou de mundo, os alunos são posicionados como
portadores desse conhecimento dado, legitimados como seres
capazes de responder às questões.
A sequência de turnos, alternados entre Aline, Bruno, Carlos
e João, compreendida entre as linhas 42 e 51, é um exemplo da
atitude de cooperação entre os colegas, na tentativa de elabora-
ção de uma explicação sobre a formação do planeta. Ao perceber
que João tem dificuldade em elaborar uma sentença: “que::: que:::
que:::” (linha 42), pela repetição de palavras e prolongamento do

83
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

som indicando que ainda está pensando na resposta, Bruno toma


o turno e responde à pergunta da seguinte forma: “que o big bang
estourou e fez ela ué” (linha 43).
A interrogação de Aline na linha 44: “o quê?”, parece ter sido
interpretada como proposta de reelaboração da declaração inicial,
já que Carlos, na linha 45: “que o big bang explodiu e fez ela”,
reformula a resposta dada por Bruno, substituindo o termo “estou-
rou” por “explodiu”, que aparece no texto lido em aula anterior,
mostrando que se recorda do conteúdo estudado.
Além disso, em sua fala, Carlos omite a expressão “ué”, utili-
zada por Bruno – que sugere uma noção de obviedade na resposta
–, atribuindo maior importância ao conhecimento demonstrado.
Nesse jogo de linguagem, emerge uma questão que precisa ser
considerada para que a atividade de resgate de conhecimentos já
trabalhados não pareça menos importante ou se torne enfadonha
para as crianças, pois “se o aluno já conhece tudo o que estou
contando, ou se aborrece mortalmente, ou tem um grande espírito
de sacrifício” (SOLÉ, 1998, p. 103).
Portanto, na sequência, a pergunta de Aline: “mas assim?
[o big bang explodiu e aí apareceu a terra?]” (linha 46), também
refuta esse senso de obviedade e busca a problematização ou o
aprofundamento da resposta apresentada pelos alunos, sugerindo
pela expressão “mas assim?”, que a resposta pretendida é mais
complexa.
A proposição de Aline é compreendida por João, que antes
do término da pergunta, em fala sobreposta à sua, se esforça para
elaborar uma explicação: “[não tia(.) não tia(.) não é:: os plan_] é:::
foi juntando isso(0,5) aí ela foi juntando umas paradas foi juntando
juntando juntando aí ele ficou desse tamanho (0,5) [aí ficou sóli-
do]” (linhas 47 a 50). Essas linhas também evidenciam a mudança
de posição de João, que antes precisou ser ajudado, quando toma
o turno para si, na ânsia de mostrar que também possui conheci-
mento sobre o assunto, apresentando-se como um colaborador.

84
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A etapa textual, cuja denominação nesta pesquisa leva em con-


ta o texto escrito, é inspirada no modelo de ensino recíproco, “em
que o professor e alunos se revezam num diálogo sobre as seções de
um texto” (PALINCSAR & BROWN, 1984, p. 124, tradução minha)2,
no qual Aline interage com os alunos durante a leitura do texto,
com o intuito de mediar o processo de construção de sentidos.
Na parte da aula compreendida entre os excertos 4 e 5, a seguir
apresentados, a professora procura desenvolver o que Solé (1998)
chama de tarefas de leitura compartilhada, que têm como objetivo
“ensinar as crianças a compreender e a controlar sua compreensão”
(SOLÉ, 1998, p. 120).
Nesta etapa, com o texto escrito em mãos, os enquadres jogo
de adivinhação, jogo da localização de informação, jogo da memó-
ria e ativação de conhecimentos prévios não são abandonados, mas
aparecem combinados a novos enquadres que visam a cooperar
com a coconstrução de sentidos durante a atividade de leitura,
como demonstra o excerto a seguir.

EXCERTO 4: “olha só essa foto é a foto dele de verdade(0,5) que ta


aí (0,8) na reportagem”
13
14
15
16
17 Aline =olha só essa foto é a foto dele de verdade(0,5) que
ta aí (0,8) na reportagem (1,0) quem já tá com a reportagem (0,5)
dá uma lidinha rapidi::nho: (7,0) vocês sabem qual é o nome da
profissão de quem viaja pro espaço? (1,0)
[pra fazer pes]quisa?
18 Camila [ºastronautaº]
19 Aline como?=
20 Pedro =astronauta
21
22

2 O texto em língua estrangeira é: “Where teacher and students take turns leading a dialogue
concerning sections of a text”.

85
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

23
24 Aline <astronauta> (0,2) então nessa reportagem eles dão
outro nome pra ele pra essa::::: (1,5)pra essa profissão pro profissional
dessa área (1,0)quero saber quem é que vai achar aí o nome dessa
outra profissão que eles dão=
25 Laís =(é menino ou menina?)
26 Criança ( )
27 Carlos Astronauta
28
29 Aline então astronauta é o nome que a gente já conhece,
né, mas tem um nome diferente
30 ((pausa de 13 seg))
31 Carlos tia acho que é cos::mo:na:nura um negócio assim

No jogo de linguagem que inicia esse excerto, o lance inicial


dado por Aline é chamar a atenção dos meninos e meninas para
o texto, não só para as palavras, mas para todas as partes que o
compõem. Enquanto distribui as cópias do texto, Aline permanece
na posição de mediadora do processo de produção de sentidos,
orientando os alunos a olharem para a fotografia que acompanha
a reportagem: “olha só essa foto é a foto dele de verdade(0,5)
que ta aí (0,8) na reportagem” (linhas 13 e 14). Seu intuito é fazer
com que estabeleçam uma relação entre seus conhecimentos, a
imagem e o texto escrito, uma vez que, de acordo com Kleiman
(2013, p. 49), a intenção do autor se materializa no texto através de
elementos linguísticos e gráficos. Assim, em sua fala, Aline propõe
o enquadre jogo da localização de informação, através do uso da
expressão “olha só” e dos dêiticos “essa” e “aí”, em que procura
guiar o olhar das crianças para um elemento que os auxiliará na
coconstrução de sentidos.
A imagem em questão – uma fotografia de Yuri Gagarin, per-
sonalidade sobre a qual discutiam anteriormente – pode levar os
alunos a formularem hipóteses sobre qual seria o tema do texto,
pois, de acordo com Solé,

86
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

/.../ algumas características do texto escrito – a supe-


restrutura ou tipo de texto, sua organização, algumas,
marcas, etc. –, assim como os títulos, as ilustrações que
às vezes os acompanham e as informações abordadas
pelo professor, por outros alunos e pelo próprio leitor”.
(1998, p. 116)

Esses são elementos que possibilitam as antecipações ou hi-


póteses. Ao afirmar que se trata de uma “foto dele de verdade”, o
objetivo de Aline é direcionar as previsões dos alunos a assuntos
relacionados especificamente a essa personagem: sua vida, seu
trabalho, suas realizações, curiosidades a seu respeito.
Apenas após chamar atenção das crianças para a imagem, Aline
solicita que façam uma rápida leitura: “quem já tá com a reporta-
gem (0,5)dá uma lidinha rapidi::nho:” (linhas 14 e 15). Há nesse
momento a proposta de um enquadre mais amplo: a interação com
o texto escrito, para que os alunos possam, desse modo, confirmar
ou refutar suas primeiras hipóteses por si só.
O curto período de tempo oferecido – um intervalo de sete
segundos – permite que os alunos observem a estrutura do texto,
com cujo gênero eles já têm contato, e fomentem expectativas so-
bre ele. Ao retomar o turno, após a pausa, nas linhas 15 a 17, Aline
faz uma pergunta, a fim de acionar o conhecimento linguístico dos
alunos e fornecer pistas sobre o que poderão conhecer durante a
leitura: “vocês sabem qual é o nome da profissão de quem viaja
pro espaço? (1,0) [pra fazer pes]quisa?”
Notamos que aqui Aline recorre ao enquadre ativação de
conhecimentos prévios, com o objetivo de auxiliar os alunos a
construir conhecimento durante a leitura. Wittgenstein (1999)
afirma que o que as palavras designam só pode ser demonstrado
através do uso (p. 30), desse modo, a expectativa de Aline nesse
momento é que os alunos, após terem observado a figura e lido,
pelo menos, o título do texto, respondam à pergunta ou teçam al-

87
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

gum comentário sobre a profissão da personagem, um astronauta,


num processo de coconstrução de conhecimento.
Ao tentar tomar o turno, Camila (linha 18: “[ºastronautaº]”)
demonstra insegurança em sua resposta, percebida pelo volume
baixo de sua voz – assinalado na transcrição pelo sinal de grau
colocado antes e depois de sua fala. A afirmação de Camila é refor-
çada por Pedro, que tem uma atitude de colaboração com a colega,
repetindo – após a pergunta na linha 19: “como?=” – em tom mais
alto do que o de Camila, sua resposta: “=astronauta” (linha 20).
Os alunos hesitam ao participar, nas linhas 21 a 24: “<astro-
nauta> (0,2) então nessa reportagem eles dão outro nome pra ele
pra essa::::: (1,5)pra essa profissão pro profissional dessa área (1,0)
quero saber quem é que vai achar aí o nome dessa outra profissão
que eles dão=”. Percebendo isso, após a confirmação da resposta
de Camila e Pedro, Aline opta por retomar o enquadre jogo da
localização de informação: “quem é que vai achar aí”, em que as
crianças devem encontrar uma informação na “superfície estrelada
de letras”, citando Drummond3, promovendo a coconstrução de
sentidos através da estrutura linguística, durante a atividade de
leitura do texto escrito. O objetivo da proposta, nesse momento,
é apresentar aos alunos uma nova palavra que, a princípio, poderia
se tornar um obstáculo para a coconstrução de sentidos.
De acordo com Solé (1998), no ensino da leitura, “em algumas
ocasiões não se pode aventurar em uma interpretação, e é preciso
reler o contexto prévio – a frase, o fragmento – para encontrar
indicadores que permitam atribuir um significado” (p. 130). Aline
trata, nesse caso, de antecipar uma possível lacuna da compreen-
são, através de um movimento que mostra que também participa
do enquadre do jogo.
A hesitação em apresentar a resposta esperada persiste, mas
Aline segue buscando a descoberta pelos alunos, propondo mais
uma vez a combinação dos enquadres jogo da localização de infor-
3 Referência ao poema “Aula de Português”, de Carlos Drummond de Andrade.

88
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

mação e jogo de adivinhação, em que as crianças devem formular


hipóteses com base no conhecimento prévio ou no conhecimento
textual auferido com a leitura: “então astronauta é o nome que a
gente já conhece, né, mas tem um nome diferente” (linhas 29 e 30).
No momento em que propõe que os alunos interajam com o
texto, Aline pretende contribuir para a atividade de verificação de
hipóteses, a partir da predição e testagem4 dos conhecimentos
ativados. Kleiman (2013, p. 47) afirma que “uma atividade que pode
começar como um jogo de adivinhação dirigido por um adulto
pode ser, de fato, o ponto de partida para o desenvolvimento de
estratégias metacognitivas do leitor”. Ressaltamos que, conforme
demonstrado no curso dessa análise, durante a aula, Aline faz uso
desse recurso em outros momentos.
Após uma pausa de 13 segundos, a suposição de que o novo
termo poderia causar alguma estranheza é confirmada por Carlos,
quando demonstra dificuldade em dizê-lo em voz alta, como visto
na linha 31 “tia acho que é cos::mo:na:nura um negócio assim”.
Percebemos, pela fala de Carlos, em sua dificuldade em pronunciar a
palavra, que ele não está lendo no momento, mas que ele se recorda
de ter lido algo parecido. Desse modo, Aline solicita que o aluno
aponte a palavra - “cadê.” (linha 32) - e, para que todos participem
do processo e se engajem no jogo, lança o desafio também para a
turma: “(1,5)alguém achou o nome.” (linha 32). No entanto, a forma
verbal “achou”, indica que ao invés de simplesmente tentarem a
sorte, poderiam recorrer ao texto, reforçando o enquadre jogo da
localização de informação.
Na sequência, Aline ajuda os alunos a situarem a reportagem e
o acontecimento narrado no tempo em que ocorreram. O excerto
5, o último a ser analisado neste capítulo, revela como os alunos
operam para que haja a coconstrução de sentidos sobre a noção
de tempo

4 KLEIMAN (2013, p. 47)

89
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

EXCERTO 5: “ô tia cinquenta e quatr_ IH (0,2) quando ele foi pra lua
minha vó tinha acabado de nascer::=”

56
57
58 Aline ((alunos conversam por 3 segundos)) vocês
conseguiram identificar? quando foi que essa reportagem foi pu-
blicada?
59 João foi:::::= ((procurando no texto))
1 Laís =em mil:: novecentos e sessenta e um
2
3 Aline não: (1,0) não foi (2,0) mil novecentos e sessenta e
um(0,5) é a data de quando ele?
4 Bruno [[nasceu]
5
6
7 Aline [[viajou] só que essa reportagem (0,5) foi publicada
muito tempo depois (0,5) se vocês observarem direitinho perto do
título vai tá assim ó (0,5) publicado em:::
8 Crianças doze do quatro de dois mil e onze=
9
10
11
12 Aline
=em dois mil e onze (2,0) foi publicado em dois mil e on:ze (1,0)
e tá dizendo no título da reportagem assim (0,5)primeira viagem do
homem ao espaço
[faz cinquenta] anos
13
14
15 Laís [( )]
((Laís sinaliza para a professora que uma colega saiu de sala))
16
17
18
19
20
21 Aline ((para Laís)) ºmas ela vai ele voltar depois° ((de volta
para a turma)) ela faz cinquenta anos <mas se essa reportagem foi
publicada em dois mil e onze (0,5) fez cinquenta anos em::: dois mil

90
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

e onze (0,5) <quanto tempo será que já passou desde dois mil e
onze até agora? (1,0) ó dois mil e on:[:ze]
22 Carlos [qua_]
23 Aline dois mil e:: do:ze=
24 Carlos =>faz cinquenta e quatro anos<=
25 Aline =isso aí:: já tem cinquenta e quatro anos que ele fo::i
26
27 Carlos ô tia cinquenta e quatr_ IH (0,2) quando ele foi pra lua
minha vó tinha acabado de nascer::=
28 Aline =sua vó:?
29 Carlos ahã: minha vó tem cinquenta e quatro a:nos
30
31 Aline gen:te que vó nova (2,0) sério? cinquenta e quatro anos
então [sua vó:::::]
32 Carlos [minha mãe tem] trinta e quatro
33 Aline sua vó deve ter visto o Armstrong indo pra lua então=
34 Carlos =não ele nasceu ni:::: cinquenta e:::: quatro=
35
36 Aline =ela nasceu em:: sessenta e um (0,5) se ela tem
cinquenta e quatro anos
37 Bruno minha avó tem cinquenta anos
38
39 Aline cinquenta? (1,0) e ele tinha quantos anos quando foi
pro espa:ço?=
40 Camila =>vinte e sete<=
41 João =vinte e sete
42
43
44
45 Aline <vinte e se:te> (1,0) olha só que novinho (0,2) ele era
mais novo que eu quando foi pro espaço (0,5) eu tenho trinta e
ainda >não consegui sair de itaboraí ainda< que derro:ta ((risos))

Como já foi dito anteriormente, “a significação de uma pala-


vra é seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 43). Desse
modo, nesse excerto, a professora busca construir com os alunos
os sentidos das datas que aparecem no texto.

91
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A ênfase no trabalho com os gêneros discursivos é perceptível


na situação analisada, na medida em que parte de uma especifici-
dade estrutural da reportagem.
Assim sendo, a fim de que os alunos percebam quando a re-
portagem foi publicada, Aline lança, nas linhas 57 e 58, a pergunta
“vocês conseguiram identificar? quando foi que essa reportagem foi
publicada?”. Ao utilizar em seu questionamento o verbo “identifi-
car?”, indica que a informação está expressa no texto. O enquadre
que se apresenta aqui é o de jogo de localização de informação
na superfície do texto e a pista sinalizada por Aline é percebida
pelos alunos, como é possível observar pelas atitudes de João,
que inicia sua resposta prolongando o som, tentando manter o
turno enquanto procura sua reposta, no intuito de ser quem vai
encontrá-la primeiro: “foi:::::=” (linha 59); e de Laís, que toma o
turno de João dizendo a primeira data que consegue identificar em
sua leitura: “=em mil:: novecentos e sessenta e um” (linha 1) – já
que, no jogo, ganha quem falar primeiro, e a procura é por uma
data, ela responde com a primeira data que consegue localizar.
Após refutar a resposta de Laís, Aline tenta dar uma pista do
que aquela data significaria no texto: “não: (1,0) não foi (2,0) mil
novecentos e sessenta e um (0,5) é a data de quando ele?” (linhas
2 e 3). Entretanto, ao mesmo tempo em que Bruno toma o turno
para formular sua hipótese: “[[nasceu]” (linha 4), Aline, em fala
sobreposta na linha 5:“[[viajou]”, corrige a opção de Bruno, que
parece operar aqui com o enquadre jogo de adivinhação, e indica
em que parte do texto há pistas que lhes ajudarão a construir o
sentido: “[[viajou] só que essa reportagem (0,5) foi publicada muito
tempo depois (0,5) se vocês observarem direitinho perto do título
vai tá assim ó (0,5) publicado em:::” (linhas 5 a 7). Essa sequência de
falas demonstra a importância do trabalho com gêneros na escola,
uma vez que a estrutura dos textos varia conforme o gênero que
concretizam. Em uma carta, por exemplo, não haveria título, uma
receita não necessariamente apresentaria uma data.

92
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O jogo de linguagem iniciado por Aline tem por objetivo situar


a publicação da reportagem no tempo, mas os alunos ainda estão
no enquadre jogo de localização de informação, limitando-se a
procurar quaisquer datas presentes na superfície do texto. A ex-
pressão “só que”, após afirmar que a data apresentada pela aluna
se referia à viagem espacial, indica que os acontecimentos, viagem
e publicação da reportagem, aconteceram em tempos distintos. A
ênfase na palavra “muito”, que aparece sublinhada, tem a preten-
são de indicar para os alunos que houve um espaço considerável
de tempo entre o feito e a publicação da notícia. Ainda em sua
fala, Aline opera com enquadre jogo da localização de informação,
e convida as crianças a buscarem no texto as pistas linguísticas,
indicando onde devem procurar: “se vocês observarem direitinho
perto do título”, sugerindo que acompanhem a leitura: “vai tá assim
ó” e mostrando, pelo prolongamento do som da última palavra,
que devem completar a sentença: “publicado em:::”.
Sua expectativa é atendida pelos alunos, que respondem
em coro: “doze do quatro de dois mil e onze=” (linha 8). E, após
a confirmação da resposta, Aline segue convidando os alunos a
acompanharem a leitura através do uso do dêitico “assim” (linha
10: “(1,0) e tá dizendo no título da reportagem assim”).
Na sequência da atividade, após ler o título da reportagem,
Aline tenta construir com os alunos hipóteses acerca do tempo
decorrido desde sua publicação. O enquadre em operação não é
mais o jogo da localização de informação. Trata-se agora do en-
quadre jogo da dedução.
Nesse novo enquadre, primeiramente, Aline apresenta a infor-
mação trazida pelo título do texto: “ela faz cinquenta anos”, em
seguida, relembra a data da publicação: “<mas se essa reportagem
foi publicada em dois mil e onze (0,5)” e conclui: “fez cinquenta anos
em::: dois mil e onze (0,5)”. Após sua conclusão, lança o desafio para
a turma: “<quanto tempo será que já passou desde dois mil e onze
até agora? (1,0)”. Após uma breve pausa, inicia a contagem dos anos,

93
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

a fim de demonstrar um possível caminho para se chegar à resposta:


“ó dois mil e on:[:ze]”. No entanto, Carlos oferece primeiro a solução,
em fala sobreposta a de Aline, na linha 22 –“[qua_]” – ele inicia a
resposta à pergunta e, enquanto Aline ainda conta os anos: –“dois
mil e:: do:ze=” (linha 23) – para chegar ao resultado com as crian-
ças, ele calcula o tempo do fato narrado na notícia, apresentando
em tom de entusiasmo, marcado pela fala sublinhada, a descoberta:
“=>faz cinquenta e quatro anos<=” (linha 24).
Em seguida, o lance feito por Carlos modifica o jogo de lingua-
gem, quando faz uma constatação, relacionando o tempo decorrido
desde o acontecimento estudado com um fato de sua própria vida,
nas linhas 26 a 27: “ô tia cinquenta e quatr__ IH (0,2) quando ele
foi pra lua minha vó tinha acabado de nascer::=”. Assim, Aline pa-
rece aceitar um novo enquadre proposto por Carlos, o da conversa
cotidiana, quando demonstra sua surpresa: “=sua vó:?” (linha 28).
Em conversa cotidiana, conforme Corona (2009), repetir uma
resposta com entonação ascendente é um dos mecanismos utili-
zados para acusar o recebimento de uma informação que causou
uma modificação no status de conhecimento de quem formulou
a pergunta. A entonação ascendente na expressão destacada é
marcada na transcrição pelo ponto de interrogação.
No novo enquadre, há também a mudança de tópico, que passa
a ser a idade da avó de Carlos: “ahã: minha vó tem cinquenta e
quatro a:nos” (Carlos, linha 29); e Aline continua a conversar com
ele, demonstrando interesse por sua declaração “gen:te que vó
nova (2,0) sério? cinquenta e quatro anos então [sua vó:::::]” (linhas
30 e 31). Vemos que nessa fala há outra marca de surpresa, típica
da conversa cotidiana: “sério?”.
No entanto, quando percebe que a conversa pode se estender:
“[minha mãe tem] trinta e quatro” (Carlos, linha 32), pela tentativa
de Carlos de introduzir um novo tópico – a idade de sua mãe – Aline
tenta retomar o assunto da aula, voltando pelo mesmo caminho,
ou seja, trazendo a vida de Carlos, aos poucos, para o texto, numa

94
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

primeira tentativa de mudança de enquadre: “sua vó deve ter visto


o Armstrong indo pra lua então=” (linha 33).
Sua manobra, que volta a relacionar a idade da avó de Carlos
a um fato cujo assunto se assemelha ao do texto, é aceita por ele:
“=não ele nasceu ni:::: cinquenta e:::: quatro=” (linha 34), assim,
Aline se esforça para tentar concluir a conversa: “=ela nasceu em::
sessenta e um (0,5) se ela tem cinquenta e quatro anos” (linhas 35
e 36), apressando seu cálculo. No entanto, Bruno decide participar:
“minha avó tem cinquenta anos” (linha 37), insistindo na manutenção
enquadre conversa cotidiana. Bruno parece estar orientado pelo en-
quadre do jogo quando apresenta uma avó ainda mais jovem que a
de Carlos. Nesse “jogo de quem tem a avó mais nova”, ele ganharia.
Aline aproveita, então, a entrada de Bruno para introduzir uma
segunda tentativa de encerrar o enquadre conversa cotidiana, nas
linhas 38 e 39: “cinquenta? (1,0) e ele tinha quantos anos quando
foi pro espa:ço?=”, que é prontamente aceito, como se pode per-
ceber pela fala de Camila: “=vinte e sete” (linha 20).
Assim, as crianças seguem para a atividade seguinte cocons-
truindo conhecimento, enquanto Aline atua como mediadora desse
processo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do processo de coconstrução de sentidos revelou


que, apesar da professora – enquanto mediadora das atividades
com o texto – apoiar-se por diversas vezes na forma linguística,
não reduziu as atividades de leitura a exercícios de “copiar e co-
lar”, porquanto sua tarefa era auxiliar os alunos a coproduzirem
significação, orientando sua imaginação e conduzindo suas apren-
dizagens. Os textos imagético e escrito serviram apenas como
ponto de partida para outras descobertas. Indo muito além do
que preconizava a abordagem formalista de que os significados
eram representados pelas palavras, os conhecimentos que foram

95
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

coconstruídos durante essa aula corroboraram a ideia inicial de


que não se tratava apenas de compreender ou interpretar as pistas
textuais, uma vez que partimos da premissa de que nenhum sentido
estava dado previamente.
O que se pretendeu oferecer com esta abordagem foi um mapa
da coconstrução de sentidos sobre os objetos textuais, contribuin-
do significativamente para o processo de aprendizagem, conforme
visto na análise dos dados.

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97
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

LEITURAS COTIDIANAS DE ALFABETIZANDOS:


EXPLORANDO CONCEPÇÕES SOBRE LETRAMENTOS
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Vanessa Teixeira Ribeiro

INTRODUÇÃO

É notável o crescente interesse pela modalidade da Educação


de Jovens e Adultos no campo da Educação. Nosso desejo de apro-
fundamento no tema nasce da experiência de dez anos trabalhando
com esses sujeitos, que chegam à escola “empobrecidos, populares,
negros, das periferias e dos campos, pensados e inferiorizados
como sem direitos a ter direitos” (ARROYO, 2017, p. 105).
Assim, entendemos que a sala de aula deve ser um lugar de aco-
lhimento que perceba esses jovens e adultos como sujeitos sociais
de direitos, que, por isso, têm direito a uma educação que repense
essa modalidade, ressignificando as práticas escolares da EJA.
O desejo de desenvolver a pesquisa sobre as concepções de
letramentos na EJA foi desencadeado, de fato, pela afirmação de
uma estudante: —Tudo é leitura, professora!. Nessa ocasião, estáva-
mos diante de um debate sobre política, no ano eleitoral de 2016,
e a aluna fez uma comparação entre a nossa condição de sermos
sujeitos políticos em todo o tempo, principalmente na nossa atua-
ção na sociedade, e a leitura, uma vez que ela está presente a todo
momento nas nossas necessidades básicas do dia a dia, como ler
um bilhete, assinar um documento, locomover-se nos transportes
públicos, usar o caixa eletrônico etc. Apesar de reconhecermos que

99
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

a leitura e a escrita estão associadas aos múltiplos e diversificados


recursos de construção de sentido, manifestadas pelas linguagens
verbal (oral e escrita) e não verbal (visual), percebemos, a partir do
levantamento das concepções de letramentos dos estudantes, uma
valorização dada a escrita como a única possibilidade de introduzir
esses sujeitos nas práticas sociais de leitura e escrita legitimadas
pela sociedade e reforçadas na escola.
Nosso tema da pesquisa - práticas socioculturais de letramentos
na Educação de Jovens e Adultos - originou-se no contexto da prática
docente, em que os desafios cotidianos geraram o interesse pelo
aprofundamento das reflexões acerca das experiências cotidianas
de letramentos dos estudantes da EJA com a escrita. Concebemos
as práticas cotidianas desses sujeitos como “produtos da cultura,
da história e dos discursos” (STREET, 2014, p. 9). Portanto, neste
trabalho, reconhecemos a importância do contexto discursivo em
que esses estudantes estão inseridos, como elemento indispensá-
vel para a compreensão das concepções sobre a escrita por eles
vivenciadas e as quais influenciam o modo como compreendem as
práticas escolares de letramentos.
Em nossa experiência de docência nas fases iniciais da EJA,
II e III fases, percebemos que os estudantes manifestam o desejo
de pertencer à cultura escrita, a fim de circularem com maior pro-
priedade nos espaços letrados pelos quais transitam - a igreja, o
trabalho e a escola, entre outros. Essa percepção foi reforçada ao
longo da pesquisa, pois constatamos que os estudantes valorizam
muito as habilidades necessárias ao domínio autônomo da leitura
e da escrita como estratégia para agirem com desenvoltura nas
situações cotidianas. Eles são sujeitos que buscam inserção social e
não querem mais ser discriminados por não saberem ler e escrever,
já que os que não o sabem são tidos como pessoas menos capazes
na nossa sociedade.
Nesse sentido, tomando como eixo as concepções dos su-
jeitos da pesquisa - embora reconheçamos que a construção de

100
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

sentidos ultrapassa a escrita e se amplia para diferentes modos


de significação - o presente estudo focaliza as interações em que
está presente o signo verbal escrito. Buscamos compreender as
práticas socioculturais de letramentos dos estudantes da Educação
de Jovens e Adultos, a partir de uma investigação sobre os usos e
funções da escrita para esses sujeitos.
Para a análise proposta, projetamos um estudo de caso (YIN,
2001) de natureza qualitativo-interpretativa dessas práticas, recor-
rendo ao campo da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 1996), à
concepção sociointeracionista da linguagem de Bakhtin (1992), aos
Novos Estudos do Letramento (GEE, 2008; STREET, 2014; BARTON,
1994; e BARTON & HAMILTON, 1998) e à perspectiva crítica de Paulo
Freire (2010) e Miguel Arroyo (2017), a fim de compreender as con-
cepções dos estudantes sobre os usos sociais da leitura e escrita.
O estudo foi realizado em uma Escola Municipal da cidade
de Maricá, na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro,
em uma turma multisseriada do primeiro segmento do Ensino
Fundamental da Educação de Jovens e Adultos, composta por 15
estudantes com idade entre 15 e 74 anos, divididos na II e III fases,
todos em processo de alfabetização.
Em sala de aula, realizamos atividades pedagógicas explo-
ratórias envolvendo materiais escritos, a partir dos quais busca-
mos compreender o modo como o grupo pensa a escrita. Para o
aprofundamento da investigação, selecionamos um grupo focal,
composto por três estudantes da turma, com as quais realizamos
entrevistas e observamos eventos de letramentos ocorridos fora
do espaço escolar.
Considerando nossa pesquisa, nosso objetivo geral foi inves-
tigar as práticas socioculturais de letramentos realizadas pelos
estudantes da Educação de Jovens e Adultos fora do espaço escolar,
a partir das concepções dos Novos Estudos do Letramento e dos
pressupostos da Linguística Aplicada, tomando por base a con-
cepção interacionista da linguagem. Nossos objetivos específicos

101
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

eram descrever e analisar os eventos e práticas de letramentos


vivenciados pelos estudantes da EJA, tendo em vista que diferentes
sujeitos e grupos sociais fabricam diferentes conceitos e concep-
ções de letramentos, bem como compreender os significados que
os estudantes da EJA atribuem aos eventos de letramentos dos
quais participam cotidianamente.
Assim, este trabalho justifica-se pela importância de se lançar
um olhar culturalmente sensível para as vivências não escolares de
letramentos dos estudantes da EJA, entendendo-as como práticas
socioculturais manifestadas por diferentes grupos e de diferentes
formas.
Refletindo sobre os usos e significados sociais dos letramentos
na Educação de Jovens e Adultos, definimos as seguintes questões
de pesquisa: Como os estudantes da EJA concebem a leitura de
textos escritos em eventos de letramentos que vivenciam fora da
escola? Como as práticas (concepções) de letramentos dos estu-
dantes da EJA influenciam o processo de escolarização? Por que os
estudantes da EJA não reconhecem suas experiências de leitura e
escrita como válidas e buscam a legitimação na/pela escola?
Buscamos, nas concepções de Paulo Freire, a inspiração para
um ensino comprometido com os ideais de igualdade, liberdade
e justiça - o tripé sobre o qual repousa a cidadania. Para o autor,
a palavra é um instrumento de conhecimento do homem sobre si
mesmo e sobre a situação do mundo. Além disso, em se tratando
da EJA, acreditamos, como Freire, que o “papel do educador não
é o de encher o educando de conhecimentos técnicos ou não,
mas o de proporcionar, por meio da relação dialógica educador-
educando, a organização de um pensamento correto em ambos”
(FREIRE, 2010, p.53).
O ponto inicial para essa reflexão é a identificação das carac-
terísticas mais visíveis desses estudantes. Na verdade, são sujeitos
que, após muito tempo de afastamento, retornam ao sistema
escolar casados, alguns com filhos, trabalhadores – assalariados

102
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ou não – em busca de melhorias profissionais ou pessoais. Outros


retornam por exigência do trabalho, há ainda os que buscam en-
tender o mundo em que vivem, conhecer seus direitos e exercer
a cidadania plena. Em comum entre esses homens e mulheres
existe a certeza de que o estudo, mais do que um instrumento de
redimensionamento social, constitui-se ferramenta indispensável
para a sobrevivência, inclusive no mundo do trabalho.
Buscamos fundamentação nos pressupostos dos New Literacy
Studies1 (Novos Estudos do Letramento), a fim de entender as expe-
riências de letramentos como múltiplas, dotadas de raízes sociais
e ideológicas manifestadas por diferentes grupos. Sendo assim,
baseamo-nos em uma visão mais sociocultural dos letramentos,
entendidos como práticas sociais, propondo uma reflexão sobre
como os estudantes compreendem suas experiências com os usos
sociais da leitura e da escrita e sobre suas práticas de letramentos,
assumindo, assim, a definição de práticas de letramentos trazida
por Street (2012, p. 82):

As práticas de letramentos variam com o contexto


cultural, não há letramento autônomo, monolítico, úni-
co, cujas consequências para indivíduos e sociedades
possam ser inferidas como resultados de suas carac-
terísticas intrínsecas. Como argumentei anteriormente,
em lugar disso há ‘letramentos’, ou melhor, ‘práticas de
letramentos’, cujo caráter e consequências têm de ser
especificados em cada contexto.

Investigamos os desdobramentos das práticas de letramentos


amalgamadas nas identidades dos estudantes da EJA, frente às
quais esses sujeitos se posicionam como representantes de suas
realidades, configurando-se como sujeitos historicizados, o que
implica sensibilidade às mais variadas formas e dinâmicas discur-
sivas promovidas em nossas interações sociais. É nessa perspectiva
1 Esta teoria será mais profundamente discutida em seções posteriores.

103
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

que entendemos, com Street (2014), que “A pesquisa etnográfica,


porém, sugere que os letramentos locais são demasiado substan-
ciais para serem simplesmente ‘acomodados’ em um modelo único,
‘autônomo’” (STREET, 2014, p.60).
As discussões que envolvem as teorias interacionistas da
linguagem, influenciadas por Bakhtin (1992) e inseridas numa
perspectiva sociocultural, ressaltam que tudo o que se realiza
pela linguagem não é desligado de um contexto sócio-histórico e
cultural. Logo, o fenômeno verbal sociointeracionista é o próprio
ambiente da realidade da língua, isso porque nesse ambiente é
que se apresentam as questões sociais e culturais específicas de
homens e mulheres, jovens e crianças, sujeitos complexos, que
produzem interação em diversas atividades sociais.
Alinhados a esses estudiosos, para alcançarmos os objetivos
propostos, procedemos inicialmente à geração de dados na esco-
la. Tendo constituído o corpus, levantamos os traços emergentes
nos dados e os articulamos ao referencial teórico, empreendendo
um aprofundamento nos pressupostos da teoria supracitada e de
abordagens que a pudessem complementar.
Com essa pesquisa, esperamos contribuir para o entendimento
do contexto dos estudantes da EJA, pois consideramos que conhe-
cer a natureza sociocultural dos eventos e práticas de letramentos
desse grupo é importante para que o professor reflita sobre a
própria prática pedagógica. Portanto, é nosso desejo enfatizar a
importância de se considerar a diversidade cultural representada
pelos estudantes nos espaços da Educação de Jovens e Adultos.
Nossa meta é que as atividades escolarizadas sejam ressigni-
ficadas, tomando como referência as concepções e os usos sociais
da escrita vivenciados pelos estudantes, de modo a estimular sua
percepção crítica, de um lado possibilitando-lhes o acesso a co-
nhecimentos historicamente, negados, e, de outro, colaborando
para sua inserção, de forma mais autônoma, nas práticas sociais
do lugar de onde vivem, do mundo do qual fazem parte.

104
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Nesse movimento, compreender os sentidos das práticas so-


cioculturais de letramentos dos estudantes da EJA torna-se para nós
um desafio, uma vez que entender as efetivas práticas de leitura
e escrita desses estudantes pode nos permitir a construção de
práticas escolares que satisfaçam às suas necessidades pessoais e
sociais, respondendo às exigências da vida diária e favorecendo
a reflexão crítica e imaginativa acerca da realidade. Para que isso
aconteça, entendemos que é “(...) necessária uma postura etno-
gráfica não etnocentrista, na compreensão do saber o outro. Isso
exige penetrar na cultura local para entendê-la de dentro” (FREIRE,
2014, p. 183).

O PERCURSO METODOLÓGICO

As concepções dos Novos Estudos do Letramento ajudam-nos


a pensar o nosso tema de estudo - as práticas socioculturais de letra-
mentos na Educação de Jovens e Adultos - partindo do pressuposto
de que diferentes grupos e sujeitos produzem diferentes práticas.
Os usos e significados da leitura e da escrita, materializados nos
eventos de letramentos dos quais os estudantes da EJA participam
fora da escola e suas concepções de letramentos constituíram o
material para a investigação.
Procedemos a uma interpretação qualitativa, para que a in-
vestigação assumisse maior profundidade, uma vez que para a
compreensão das práticas de letramentos, o caráter social deve
ser contemplado. Assim, procuramos apreender os significados
que norteiam as práticas das três estudantes da EJA selecionadas,
para compreendermos os contextos em que se desenvolvem os usos
sociais da leitura e da escrita no grupo selecionado para a pesquisa.
A pesquisa qualitativa indica três caminhos para a investigação
do objeto: a pesquisa documental, o estudo de caso e a etnografia.
Dentre os caminhos apontados, optamos pelo estudo de caso, pois
segundo Arilda Schmidt:

105
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

o estudo de caso tem se tornado a estratégia preferida


quando os pesquisadores procuram responder às ques-
tões “como” e “por quê” certos fenômenos ocorrem,
quando há pouca possibilidade de controle sobre os
eventos estudados e quando o foco de interesse é so-
bre fenômenos atuais, que só poderão ser analisados
dentro de algum contexto de vida real. (1995, p. 26)

Pensamos nosso trabalho no âmbito da pesquisa qualitativa,


uma vez que procedemos uma análise do que os estudantes sa-
bem e o que eles constroem e como usam a leitura e a escrita A
pesquisa apresenta um viés etnográfico2, pois busca uma interação
constante entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados, buscando
a formulação de hipóteses, conceitos, abstrações, teorias e não
sua testagem. Segundo Marli Eliza de André (2012, p.29), algumas
características são importantes para a inclusão de uma pesquisa
na abordagem etnográfica, são elas:

a ênfase no processo, naquilo que está ocorrendo e não


no produto ou nos resultados finais. As perguntas que
geralmente são feitas nesse tipo de pesquisa são as se-
guintes: O que caracteriza esse fenômeno? O que está
acontecendo nesse momento? Como tem evoluído?
a preocupação com o significado, com a maneira pró-
pria com que as pessoas veem a si mesmas, as suas
experiências e o mundo que as cerca. O pesquisador
deve tentar apreender e retratar essa visão pessoal dos
participantes.

o pesquisador aproxima-se de pessoas, situações, lo-


cais, eventos, mantendo com eles um contato direto e
prolongado. Os eventos, as pessoas, as situações são
observados em manifestação natural, o que faz com
2 A expressão “viés etnográfico” está empregada aqui para indicar a adoção de alguns fundamentos
e procedimentos da pesquisa etnográfica, e não de todas as particularidades dela.

106
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

que tal pesquisa seja também conhecida como natu-


ralística ou naturalista. (ANDRÉ, 2012, p. 29)

Assim, para investigar as práticas socioculturais de letramentos


fora do espaço escolar de um grupo de estudantes da EJA, fez-se
necessário estar com esses sujeitos, conversar com eles, procurar
compreender o contexto sociocultural do qual fazem parte, assim
como os saberes, valores e as ideologias que os cercam. Isso pos-
sibilitou uma aproximação maior com os sujeitos da pesquisa que
favoreceu a compreensão de suas concepções.
Optamos por projetar um estudo de caso (YIN, 2001), numa
abordagem de natureza qualitativo-interpretativa que pretende
contribuir para entender as práticas de letramentos dos estudantes
da EJA. Investigamos os eventos de letramentos em que os estu-
dantes tomam parte fora da escola e a compreensão que constro-
em acerca de seu papel como escritores e produtores de textos.
Para Yin (2001) o estudo de caso é uma estratégia de pesquisa
extremamente útil para entender a dinâmica da prática educativa.
De acordo com o autor, cinco são os componentes de um projeto
de pesquisa de estudo de caso, a saber: questões de estudo; pro-
posições; unidade de análise; geração de dados e critérios para
interpretação (YIN, 2001, p. 42).
Realizamos um estudo exploratório inicial, no qual geramos
dados para compreendermos o contexto da pesquisa e planejarmos
o estudo de caso. Isso porque entendemos que a compreensão das
práticas não escolares de letramentos dos estudantes é fundamental
para a construção de um modelo ideológico de letramentos escolar.
Para Yin (2001, p.42), as proposições de estudo são hipóteses
teóricas, as quais direcionam a atenção para a reflexão sobre uma
importante questão teórica, começando a mostrar onde devemos
procurar referências relevantes. Segundo o teórico: “cada propo-
sição destina atenção a alguma coisa que deveria ser examinada
dentro do escopo do estudo” (YIN, 2001, p.42).

107
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A unidade de análise desse estudo de caso, na primeira fase


da pesquisa, será uma turma de EJA do município de Maricá e, na
segunda fase, três estudantes dessa mesma turma. Os dados foram
gerados a partir da observação participante, do diário de campo
da pesquisadora, das atividades pedagógicas exploratórias e de
questionários e entrevistas.
O termo atividades pedagógicas exploratórias foi inspirado
no conceito de Atividades Pedagógicas com Potencial Exploratório
(doravante APPE), da professora Doutora Isabel Moraes Bezerra
(2003), a qual pensa o referido conceito no campo da prática ex-
ploratória e o define como “procedimentos de ensino e atividades
que o professor normalmente utiliza em sua sala de aula. Esses
procedimentos sofrem algumas modificações de maneira a focali-
zar as questões de interesse dos praticantes” (MORAES BEZERRA,
2003, p. 65).
Na análise dos dados gerados, buscamos identificar catego-
rias recorrentes que nos permitiram mapear as concepções dos
estudantes, procurando aplicar os conceitos teóricos seleciona-
dos. Assim, partimos de uma caracterização do que entendemos
por modelo autônomo de letramentos e modelo ideológico de
letramentos, recorrendo a duas categorias de análise, a saber: os
eventos de letramentos e as práticas de letramentos para sua interpre-
tação, como propõe a linha dos Novos Estudos do Letramento à
qual nos afiliamos.
Hamilton (2000) sugere a metáfora do iceberg para ilustrar
os conceitos de eventos de letramentos e práticas de letramentos. O
primeiro seria a ponta do iceberg, atividades que incluem a leitura
e a escrita, enquanto o último, seria o todo - que inclui as ações
e as concepções que as fundam e são nelas fundadas - colocando
os letramentos em uma dimensão múltipla, dêitica, ideológica,
cultural e crítica.
Consideramos que os sujeitos da pesquisa são seres sócio-
históricos e culturais e que a observação de sua participação em

108
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

eventos de letramentos permite-nos compreender suas práticas


sociais de letramentos.
Assim, na segunda fase do estudo de caso, partimos para o
aprofundamento dos dados preliminares da pesquisa e fechamos
o foco sobre as três estudantes voluntárias, realizando encontros
externos à escola, participando de eventos de letramentos e de
gravações de entrevistas individuais, além de nossos próprios
apontamentos como pesquisadores. São três vozes femininas que
escrevem conosco este estudo, uma vez que escolhemos penetrar
em suas realidades para compreendermos melhor o sentido que
atribuem aos eventos de letramentos dos quais participam.
Analisaremos a seguir os dados construídos ao longo do
estudo de caso e buscaremos interpretar os dados emergentes
das atividades pedagógicas exploratórias (APEs) empreendidas
na turma multisseriada dos estudantes da EJA, na observação de
quatro eventos de letramentos e nas entrevistas realizadas com
as três estudantes voluntárias. Durante o processo de realização
da pesquisa, vários aspectos mostraram-se relevantes e foram
merecedores de reflexões.
As reflexões desenvolvidas a partir das observações e dos
registros da pesquisadora foram construídas com o auxílio dos
aportes teóricos que corroboram as concepções ideológicas que
norteiam este estudo.

DADOS GERADOS NAS APES

Na primeira atividade pedagógica exploratória, desenvolvida


com os estudantes da turma multisseriada da EJA, pedimos que
trouxessem materiais de leitura que estivessem presentes em suas
casas. Os estudantes trouxeram vários materiais escritos com os
quais mantêm contato em seu dia a dia, como, por exemplo, a Bí-
blia Sagrada; folhetos com mensagens bíblicas para evangelização;
livro de receita culinária; Guia da cidade de Maricá; livros didáticos

109
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

dos filhos; materiais de estudos dos netos; texto em outro idioma;


jornais, revistas; livros paradidáticos; reportagens; encartes de
supermercado; receituários; calendários. Os materiais recolhidos
pelos estudantes para compartilhar com os colegas e professora em
sala de aula indicaram que, para eles, só se lê o que está escrito,
observação reforçada pelo fato de que durante as apresentações
eles somente se referiram ao escrito, sem menção aos sentidos
construídos pelos outros modos semióticos presentes nesses
materiais. Sendo assim, nas análises a seguir, focalizaremos tão
somente as concepções dos estudantes acerca da escrita.
Como lidamos com materiais de escrita, essa APE constituiu
um evento de letramento escolar em que os textos trazidos fun-
cionaram como reificações da participação dos estudantes em
distintas comunidades. Esses materiais escritos nos permitiram
refletir sobre as distintas práticas de letramentos que esse grupo
corporifica, corroborando, assim, a concepção de que as práticas
de letramentos distinguem-se nas diferentes comunidades (BARTON
& HAMILTON 1998).
Um dado interessante para nossa pesquisa foi trazido por
Terezinha, (74), a estudante trouxe uma mensagem em hebraico
impressa em tecido. Ela relatou que o neto formou-se um Por-
tuguês-Hebraico e dá aulas particulares para muitos estudantes
que querem aprender o idioma para cursar Teologia. A estudante
entregou-nos o escrito e pediu que lêssemos para a turma, convicta
de que saberíamos decodificar o que ali estava escrito.
Percebemos que a estudante não trouxe nenhum texto escrito
do seu uso particular, entretanto procurou em meio aos escritos do
neto textos que configurassem uma certa legitimidade na cultura
escolar. Por isso, inferimos também que a estudante não se assume
plenamente como um sujeito letrado.
A estudante adere à concepção de letramento dominante, des-
crita por Street (2014, p.9) “centrada no sujeito e nas capacidades de
usar apenas o texto escrito”, quando busca por um texto legitimado

110
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

pela escola. A concepção de letramento enraizada nessa prática é a


denominada por Street (2014) de modelo autônomo de letramento,
o qual concebe os letramentos como habilidade neutra, técnica e
universal, a adesão a esse modelo é notória, quando a estudante
pede para que leiamos o texto em outro idioma, atribuindo-nos
uma habilidade de ler e escrever que, em seu entendimento, seria
“universal”: quem sabe ler domina habilidades que lhe permitem ler
todos os textos existentes. O fato de não identificar a existência de
diferentes alfabetos e diferentes línguas escritas pode ser relacionado
aos limites de seus conhecimentos em relação à escrita.
A mensagem em hebraico impressa em tecido sinaliza também
a intenção de garantir legitimidade ao material escrito recolhido
para a apresentação no ambiente escolar. Quando a estudante pede
para que leiamos o que está escrito, percebemos que ela enaltece
os discursos dominantes que vão em direção às funções dos usos
da leitura e da escrita na sociedade letrada à qual pertencemos. É
notável a valorização da cultura letrada que dá acesso a diversas
esferas de circulação do escrito na sociedade. Vejamos abaixo a
foto do material escrito levado pela estudante.
No dia seguinte, à realização da atividade em sala, a estudante
trouxe a tradução feita pelo seu neto e pediu que a lêssemos para
a turma, reforçando a ideia de que a escrita está associada, para
ela, ao domínio de estruturas mais complexas de raciocínio que
ela atribui, entre outras pessoas, ao neto, que “é muito inteligen-
te”. Assim, para ratificar o conhecimento do neto sobre o idioma
hebraico, ela pede a ele que traduza o escrito cujo texto é uma
passagem bíblica (Gênesis 12: 1,2).
O exemplo reforça também a importância do letramento re-
ligioso e de sua participação neste evento marcante, não só para
ela, como também para seus colegas de classe, uma vez que a
leitura de um trecho bíblico em sala de aula trouxe a força sagra-
da da palavra divina para esse espaço, unindo duas instâncias de
letramento altamente valorizadas pelo grupo.

111
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Pudemos perceber a forte presença do material religioso no


cotidiano dos estudantes da turma, como por exemplo, o livro A
Bíblia Sagrada, mensagens bíblicas e uma apostila teórica de um
curso de Teologia. Percebemos uma forte presença do letramento
religioso na realidade dos estudantes da EJA. Ler a Bíblia, acom-
panhar o desenvolvimento dos cultos, estudar a Bíblia individual-
mente ou em grupos, realizar visitas para trabalhos em domicílio
de evangelização são pontuados como ações essenciais para a
inserção religiosa. E, para isso, precisam da leitura e da escrita,
evidentemente.
Passaremos a analisar a segunda atividade pedagógica explo-
ratória, a qual consistiu no levantamento dos materiais escritos
pelos estudantes e contou com o recurso da tecnologia, com o uso
do aplicativo do WhatsApp para receber os materiais fotografados
pelos próprios alunos. Cabe destacar a potencialidade da atividade
proposta, quando permitiu a inserção da tecnologia no ambiente
escolar e também a inserção dos estudantes no mundo dos mul-
tiletramentos, tendo em vista que os sentidos são construídos de
forma cada vez mais multimodal - em que os modos de linguagem
escrita-linguística são parte integrante dos padrões visuais, audi-
tivos, cinéticos e espaciais de significado.
A análise da atividade, que revela a variedade de materiais es-
critos nos espaços por onde os estudantes circulam, demonstra que
eles estão inseridos na cultura escrita, ainda que não o percebam.
Os materiais recolhidos pelos estudantes mostraram o interesse
pelas informações utilitárias do cotidiano, com o destaque dado
a materiais de finalidades práticas, como por exemplo, nomes de
ruas e placas de anúncios.
Os principais gêneros textuais que apareceram nas fotos
trazidas pelos estudantes foram os anúncios publicitários, tanto
institucionalizados quanto informais, de caráter comercial.
Identificamos também a presença da linguagem verbal e não
verbal. Os textos selecionados pelos estudantes apresentam lin-

112
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

guagem simples, são relativamente curtos, usam letras grandes e


em caixa alta, que os tornam mais facilmente legíveis. Percebemos
também a predominância de verbos no imperativo. No tocante
aos aspectos visuais, além do uso de cores, fotografias e imagens,
notamos a presença de logotipos, os quais identificam uma marca
de produto ou serviço, como, por exemplo, o posto de gasolina,
Shell; a empresa de limpeza e manutenção de piscinas, Fiber; e a
lanchonete, O Queijão.
Há, ainda, a presença de placas informais que sinalizam
atividades comerciais, como Lava Jato; anúncios, como a placa
de venda de terrenos em Inoã e a faixa que anuncia a venda de
salgadinhos, docinhos e tortas salgadas. Identificamos também
placas com informações sobre instituições públicas, como o
cinema público da cidade e uma escola municipal, além de ofer-
ta de serviços terapêuticos especializados, como acupuntura,
fisioterapia etc.
A análise das duas atividades pedagógicas exploratórias em-
preendidas indiciou que os estudantes da EJA estão inseridos na
cultura letrada e dela fazem uso, ainda que não se reconheçam
imersos em tal prática. Os exemplos de materiais recolhidos pelos
estudantes demonstram o interesse pelas informações utilitárias
do cotidiano, de finalidades práticas, como ler nomes de ruas e
placas de anúncios.
Percebemos, também, que para os estudantes da EJA, o ato de
ler é restrito à decodificação da palavra escrita, uma vez que eles
não atribuíram valor aos elementos multimodais presentes nos
materiais que trouxeram para compartilhar com a turma.
Dessa forma, percebemos que esses estudantes manifestam
o desejo de pertencer à cultura escrita, a fim de circularem com
maior propriedade nos espaços letrados pelos quais transitam — a
igreja, o trabalho e a escola, percebemos isso pelos gêneros textu-
ais escolhidos por eles, como a Bíblia, mensagens cristãs, livro de
receitas, Guia da cidade de Maricá, jornais, revistas etc.

113
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Constatamos a importância dada pelos estudantes da EJA às


habilidades necessárias ao domínio da leitura e da escrita como
estratégia para agir com desenvoltura nas situações em que a
escrita está presente. Isso nos indicou que esses sujeitos buscam
a inserção social e não querem mais ser discriminados. Portanto,
querem aprender o sistema da escrita e suas funções para escapar
ao estigma, já que os que não sabem ler e escrever são tidos como
pessoas menos capazes em nossa sociedade.
A escolarização, portanto, significa para muitos desses sujeitos
a oportunidade de ter acesso aos bens culturais e à valorização
social resultantes do domínio da leitura e da escrita. Desse modo,
a escola tem um importante papel a cumprir, ao favorecer critica-
mente o acesso a tais tipos de conhecimentos.

DADOS GERADOS NOS EVENTOS DE LETRAMENTO

Acreditamos ser pertinente para esta seção, revisitar os con-


ceitos de eventos de letramento e práticas de letramento, propostos
por Street (2012), porquanto essas definições nos auxiliarão no
momento da análise.
Sendo assim, consideramos como evento de letramento os
episódios dos quais participam os sujeitos, como por exemplo,
verificar horários e tomar o ônibus, folhear uma revista, sentar-se
na barbearia, ler sinais para escolher a estrada, enfim, “podemos
fotografar eventos de letramento, mas não podemos fotografar
práticas de letramento” (STREET, 2012, p.76). Se não podemos fo-
tografar as práticas, podemos extrair delas suas concepções acerca
dos usos da leitura e da escrita, uma vez que as práticas perpas-
sam os eventos de letramentos. Segundo Street (2012, p. 77), “as
práticas de letramento referem-se a essa concepção cultural mais
ampla de modos particulares de pensar sobre a leitura e a escrita
e de realizá-las em contextos culturais.”

114
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Ainda em Street (2012), o teórico ressalta a importância da


utilização do conceito de evento de letramento para a análise do
objeto da pesquisa:

Penso que ‘eventos de letramento’ é um conceito


muito útil porque capacita pesquisadores, e também
praticantes, a focalizar uma situação particular onde as
coisas estão acontecendo e pode-se vê-las enquanto
acontecem. Esse é o clássico evento de letramento
em que podemos observar um evento que envolve
a leitura e/ou a escrita e começamos a delinear suas
características. (STREET, 2012, p. 75)

Como norte para as análises dos eventos de letramentos da


nossa pesquisa, utilizamos o roteiro proposto por Street e Lefstein
(2007, pp. 193-195), o qual era composto pelos seguintes elemen-
tos: cenário do evento; participantes; textos e outros objetos;
atividades, ações e sequências; regras; contextos e interpretação
dos eventos de letramentos.

FLIM - FEIRA LITERÁRIA DE MARICÁ

O evento de letramento observado na primeira fase da pesqui-


sa aconteceu fora do espaço escolar e foi promovido pela Secretaria
Municipal de Educação de Maricá que consistiu na participação
dos estudantes da EJA na III Feira Literária de Maricá, no centro da
cidade. O foco da nossa análise foi no momento da compra dos
livros, durante o evento.
A Secretaria de Educação de Maricá realiza anualmente o
evento, de forma gratuita e aberta a toda a população. A feira
reúne dezenas de expositores com obras literárias e didáticas das
principais editoras do país, na Praça Orlando de Barros Pimentel,
no Centro da cidade. Para estimular a leitura em papel entre os
estudantes da Rede Municipal de Ensino, a prefeitura distribui

115
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

vouchers para todos os 18 mil alunos da rede e para os profissionais


efetivos da rede municipal de educação para aquisição de livros.
Entre os contemplados estão inspetores de alunos, merendeiras,
serventes, orientadores pedagógicos e educacionais, professores
não regentes, diretores e professores regentes.
Além da participação dos estudantes da escola na compra de
livros escolhidos por eles, aconteceu também a apresentação do
Coral da EJA, composto pelos alunos do 1º e do 2º segmentos da
unidade escolar. O Coral apresentou a música É preciso saber viver,
de Roberto e Erasmo Carlos, no evento, dentro do projeto Caça
Talentos que também acontece anualmente, nas escolas da EJA. O
projeto visa à apresentação das muitas competências e habilidades
dos estudantes da EJA.
O projeto Caça Talentos, que a princípio acontecia somente
dentro das escolas no turno da noite, ganhou visibilidade com sua
inclusão como uma das atrações na programação da Feira Literária.
A Secretaria de Educação disponibilizou ônibus escolares para
levar os alunos, acompanhados por seus professores regentes e
de apoio e orientadores das escolas, das unidades escolares até
o evento. As ações aconteceram dentro do turno de cada aluno,
portanto, no caso da EJA, ocorreram à noite. Entretanto, da turma
pesquisada, somente quatro alunos participaram do evento.
Com a adesão de menos de cinquenta por cento dos estudan-
tes da EJA ao evento de letramento, percebemos que, para eles, a
atividade não se relaciona às práticas cotidianas de uso da leitura e
da escrita. Por mais que antes da atividade tivéssemos conversado
sobre a importância cultural do evento e da participação deles, não
conseguimos motivá-los. Muitos alunos da turma, inclusive, doaram
seus vouchers a outros, porque, de antemão, já disseram que não
participariam, aproveitariam o tempo para fazer suas tarefas de
casa ou até mesmo para descansar.
Uma possível explicação para essa situação é o fato de que a
maioria dos estudantes da EJA não entende como aula atividades

116
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

que não sejam realizadas dentro da escola, mais especificamente,


dentro da sala de aula. Mas é preciso ressaltar que, no caso da Feira
Literária de Maricá, a ausência demonstra um dado que já apresen-
tamos nesse trabalho: os estudantes da EJA não se reconhecem
como membros da cultura escrita.
Sobre isso, Gadotti (2007, p.121) afirma que “o contexto cul-
tural do aluno trabalhador deve ser a ponte entre o seu saber e o
que a escola pode proporcionar, evitando, assim, o desinteresse, os
conflitos e a expectativa de fracasso que acabam proporcionando
um alto índice de evasão”. Nesse sentido, Freire (2010) enfatiza que:

Simplesmente, não podemos chegar aos operários,


urbanos ou camponeses, estes de modo geral, imersos
num contexto colonial quase umbilicalmente ligados ao
mundo da natureza de que se sentem transformadores,
para, à maneira da concepção “bancária”, entregar-lhes
“conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom ho-
mem, contido no programa cujo conteúdo nós mesmos
organizamos. (FREIRE, 2010, p.97)

Assim como vemos em Gadotti e Freire, David Barton (1994, p.


129) aponta que os letramentos são “parte do ambiente e ao mesmo
tempo influencia e é influenciado pelo ambiente”, isso quer dizer
que para implicarmos nossos estudantes da EJA no contexto das
práticas socioculturais de letramentos, precisamos envolvê-los no
contexto dessas práticas. Não basta propormos sua participação em
eventos de letramento, sem que eles estejam também engajados
em tais práticas, é preciso a imersão no contexto sócio-histórico
e cultural para criar pertencimento.
O momento que mereceu nossa atenção nesse evento de letra-
mento foi o período da compra de livros. Os alunos que foram ao
evento de letramento ficaram à vontade para adquirir, nas bancas das
livrarias disponíveis na Feira Literária, o que desejaram levar para casa.

117
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Observamos que a escolha dos livros dos alunos que partici-


param dessa atividade foi prioritariamente de livros infantis, com
a justificativa de levar para os filhos lerem em casa, para estimular
a leitura deles. Foram adquiridos livros de histórias em quadrinho,
livros de pintura e contos de fadas, da nossa literatura canônica.
Isso nos mostra a reprodução de um modelo dominante de letra-
mento, com a ideia enraizada nos sujeitos de que deve-se ler os
clássicos, como os contos de fadas e as histórias em quadrinho,
sendo essas as leituras válidas, uma vez que são as legitimadas
pela escola e pela sociedade.
Diante desse quadro, percebemos que os sujeitos sentem-se
na obrigação de desconsiderar suas experiências com a leitura e
a escrita fora do espaço escolar, porque entendem que não são
frutos de conhecimentos validados pela escola e pela sociedade.
Sobre isso, Arroyo (2014, p. 33) nos diz que a escola tornou-se um
lugar “fechado e de não reconhecimento da validade dos saberes,
modos de pensar e de pensar-se, de aprender e de educar-se que
os educandos levam às escolas”.
Constatamos também que essa concepção é reforçada por
estratégias promovidas pela escola que reproduzem o modelo
dominante de letramento, o qual reduz as práticas educacionais de
ensino e aprendizagem aos processos de pedagogização, sobre os
quais Street (2014) trata, excluindo os letramentos não escolares.
Além de reforçar uma ideia salvacionista da escola, desconside-
rando uma perspectiva mais ampla dos letramentos e a multipli-
cidade das práticas letradas de uma determinada comunidade. O
letramento escolar, baseado nas práticas de camadas dominantes
da sociedade, atuaria como uma espécie de elemento salvador,
conforme Arroyo afirma:

Nessa visão se legitima o pensamento educativo e a


diversidade de pedagogias salvadoras dos margina-
lizados. Essa empreitada civilizatória, a escola e até
as pedagogias salvadoras carregam essa identidade:

118
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

oferecer percursos, passagens para sair da ignorância,


da incultura, da pobreza para a civilização, a consciên-
cia política e a ascensão social. (ARROYO, 2014, p. 41)

Há também que ponderarmos a partir da participação dos es-


tudantes nesse evento de letramento, o fato de só terem escolhido
livros para os filhos, colocando-se à margem desse direito que lhes
foi dado: o de participar desse momento como protagonistas, como
sujeitos de direito. Sobre esse histórico de negação dos direitos
dos estudantes da EJA, Arroyo (2017, p. 107) nos afirma que:

Ainda na cultura política e até pedagógica, segrega-


doras da educação escolar, o letramento é precondição
(grifo do autor) para a humanidade e a cidadania:
educação para a cidadania, educação para a humani-
zação. Logo, aqueles que não fizeram esse percurso,
ou os milhões de iletrados e não escolarizados, serão
pensados como ainda não humanos, não cidadãos,
não reconhecíveis como sujeitos de direitos humanos.
De dignidade humana. Seria a explicação política da
dificuldade de vincular EJA e direitos humanos? Não
tem sido a não escolarização a pretensa explicação para
não reconhecer o povo sujeito de direitos humanos? As
mesmas tensões que perpassam os direitos humanos
como linguagem de dignidade humana perpassam
a educação dos jovens-adultos. O reconhecimento
da humanidade, da dignidade humana dos pobres,
negros, dos trabalhadores empobrecidos e oprimidos
tem exigido sua escolarização como precondição (grifo
do autor) para o seu reconhecimento como sujeitos de
direitos humanos. Por aí chegamos à visão abissal que
acompanha a tensa história da EJA: tensão que tem
como raiz a resistência do pensamento social, político
e até pedagógico a vê-los e reconhecê-los como hu-

119
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

manos, cidadãos plenos. “Já” ou “a continuar” vendo-os


como ainda não cidadãos, ainda não humanos plenos
porque não escolarizados. (ARROYO, 2017, p. 107)
[grifos do autor]

Essa concepção idealizada dos letramentos está presente


nos nossos espaços escolares, mascarando ainda para os nossos
estudantes que a escola trará a eles o acesso ao empoderamento
de que precisam para a transformação e ascensão social, desvincu-
lando esses sujeitos das suas histórias e memórias, com seus textos
e contextos de emergências, ratificando o processo de exclusão
social desses indivíduos.
Como aponta Marta Kohl de Oliveira “o pleno domínio da lei-
tura e da escrita e de outras práticas letradas é um pressuposto da
constituição das competências individuais necessárias e valorizadas
nessa sociedade” (OLIVEIRA, 1995, p.148). Por isso, percebemos
que os estudantes da EJA tanto se esforçam para exercer seu direito
de pertencimento na sociedade da qual fazem parte. Nessa pers-
pectiva, as práticas socioculturais de letramentos apresentam-se
como práticas sociais representantes da história de seus sujeitos
e de suas condições de vida.
Partindo desses princípios, constatamos que a escola, muitas
vezes, reproduz práticas em que a escrita é concebida como neutra,
atemporal e objeto universal, desconsiderando a dimensão das
próprias experiências, as habilidades e os conhecimentos dos su-
jeitos da EJA, negando-os uma participação efetiva na comunidade
e uma ampliação das experiências de letramentos para o exercício
da sua cidadania.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa análise demonstra o equívoco da escola, quando privi-


legia o modelo autônomo de letramento que afirma o domínio da
escrita como condição causal para o progresso e para a mobilidade

120
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

social, já que tal ideologia desconsidera a possibilidade desses


sujeitos vivenciarem essas experiências com a escrita fora das
instituições pedagógicas de letramento.
A essa conclusão unimos outra reflexão do professor Miguel
Arroyo (2017) sobre a persistência do pensamento autônomo pre-
sente na nossa sociedade letrada:

Essa persistente história de negação da cidadania e do


conhecimento, ou de justificar a negação da cidadania,
porque não escolarizados, tem condicionado a história
da educação da EJA: sua função limitada a garantir uma
escolarização elementar pobre em conhecimentos para
mantê-los na subcidadania, na condição de sem direi-
tos, ou para avançar para uma inclusão marginal, ainda
sem direito ao conhecimento (ARROYO, 2017, p. 130).

Assim, percebemos que a intenção dessa negação é perpetuar


a ideologia das teorias pedagógicas hegemônicas, abandonando as
narrativas da história das culturas, das ideias e das práticas peda-
gógicas produzidas pelos sujeitos de conhecimentos e de direitos
ao conhecimento socialmente produzido e do qual são produtores.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA: itinerários


pelo direito a uma vida justa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
______. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. 18ª
ed. Campinas, SP: Papirus, 2012. (Série Prática Pedagógica)
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação Verbal.
São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BARTON, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language.
Oxford: Blackwell, 1994.

121
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122
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O PLANEJAMENTO EDUCACIONAL
INDIVIDUALIZADO (PEI) NOS PROCESSOS DE
LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO DO ALUNO COM
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

Marlene Maria de Oliveira de Andrade

INTRODUÇÃO

Para a educação da criança com deficiência intelec-


tual é importante conhecer como ela se desenvolve.
O importante não é a deficiência em si mesma, não a
insuficiência por si mesma, o defeito, e sim a reação
que apresenta a personalidade da criança em processo
de desenvolvimento, em resposta à dificuldade com a
qual tropeça e a qual resulta desta deficiência.
(VIGOTSKI, 1989, p. 104, tradução nossa)1

As pessoas com deficiência intelectual receberam várias deno-


minações ao longo do tempo: idiota (século XIX); debilidade mental
e infraidiota (início do século XX); imbecilidade e retardo mental
(com seus níveis leve, moderado, severo e profundo); déficit inte-
lectual/cognitivo e deficiência mental (final do século XX). O termo
deficiência intelectual é bem recente e começou a ser divulgado/
disseminado a partir de 2010, quando foi adotado pela Associação
Americana de Deficiência Intelectual e Desenvolvimento (AADID),
1 No original: “Para la educación del niño retrasado mental es importante conocer cómo él se
desarrolla, es importante no la deficiencia por sí mesma, no la insuficiencia por si mesma, el
defecto, sino la reacción que se presenta en la personalidade del niño en el processo del desar-
rollo, en respuesta a la dificultad con la que tropieza y la cual resulta de esta deficiência”.

123
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

anteriormente denominada de Associação Americana de Retardo


Mental (PLETSCH, 2012, p. 5-6).
Preconiza a AAIDD (2010) que o novo termo cobre a mesma
população de pessoas que eram elegíveis para a deficiência mental.
E que, apesar da definição de deficiência intelectual ser a mesma
proposta em 2002, a nova nomenclatura pode ser considerada
menos ofensiva para os sujeitos com tal diagnóstico.
O que me motivou inicialmente a realizar esta pesquisa foram
as observações que fiz em minha atuação em turmas de 5º ano
do Ensino Fundamental I, em uma escola pública do município de
Duque de Caxias, região da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro,
nas quais convivi com muitos alunos com histórico de repetência
e, consequentemente, distorção entre idade e série. Nem todos
possuem laudo de algum transtorno comportamental ou cognitivo,
embora a maioria apresente algum tipo de necessidade educativa
especial.
Dentre os estudantes com deficiência intelectual com os quais
convivi em minha experiência profissional, um chamou-me especial-
mente à atenção e, em torno desse sujeito, construí o estudo de
caso analisado em minha dissertação de mestrado. Esse sujeito, a
quem chamaremos de Antônio2, chegou à escola A em 2007, com 6
anos de idade. Desde então, foi matriculado em uma turma regular
e nela permaneceu até concluir o Ensino Fundamental I, em 2014.
Ele cursou o terceiro ano escolar três vezes consecutivas. Somente
a partir do primeiro bimestre de 2010, começou a frequentar a sala
de recursos multifuncionais.
Além da dificuldade de aprendizagem, Antônio possui também
dificuldade na área das habilidades sociais, principalmente em res-
peitar as regras de convivência com o grupo. Arglyle (1981 apud DEL
PRETTE, 2011) define habilidades sociais como um conjunto dos
desempenhos apresentados pelo indivíduo diante das demandas
de uma situação em sentido amplo, incluindo variáveis de cultura.
2 Nome fictício a fim de preservar a identidade do sujeito.

124
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Antônio, durante grande parte da vida escolar, apresentou proble-


mas de comportamento, como podemos observar nos relatos de
alguns dos seus professores:

[...] Seu relacionamento com os colegas tem apresenta-


do traços de instabilidade por conta de seus momentos,
mesmo que isolado, de agressividade.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2007)

Mesmo depois de inúmeras conversas, o aluno ainda


agride os colegas de forma verbal e física, sendo ne-
cessária a intervenção da professora constantemente.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2008)

O aluno demonstra muita dificuldade em relacionar-se


com os outros alunos, mas mantem um ótimo rela-
cionamento com a professora. Quando algum aluno
implica com ele, demonstra muita agressividade, sendo
difícil controlá-lo.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2009)

O aluno apresentou, durante este período, pouco


interesse em participar das atividades propostas.
Também apresentou dificuldade em relacionar-se com
os colegas, pois quando contrariado, demonstra um
comportamento muito agitado, recusando-se em dar
prosseguimento àquilo que estava realizando. Mantém
ótimo relacionamento com a professora.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2010)

125
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Em relação aos conhecimentos escolares, Antônio, atualmente,


tem facilidade em apreender Matemática. Segundo informação da
professora do 5º ano, por muitas vezes ele conseguiu fazer cálculos
que envolviam apenas a conta pela conta, sem ajuda. Faz também
alguns cálculos mentais com operações simples. Consegue dese-
nhar e pintar; tendo aprendido a usar adequadamente o espaço
do caderno. É o que se pode notar nos respectivos excertos que
seguem:

Utiliza estratégias pessoais para identificar números


que envolvem contagem.
Resolve situações problemas e constrói a partir delas
o significado da adição e subtração.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2012)

Gosta de pintar figuras e pinta com capricho.


Sabe contar até 50 com apoio visual.
Faz algumas contas de adição simples até a casa da
dezena.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2012)

Gosta de desenhar e suas pinturas são caprichadas e


têm uma combinação harmônica entre as cores esco-
lhidas por ele.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2012)

Os professores relataram que a grande dificuldade de Antônio


é com a leitura e a escrita. Até o 5º ano, sua escrita espontânea era
formada por não-palavras (texto em anexo B) e se limitava a fazer
cópias das atividades. Essa dificuldade foi registrada em relatórios
pelos professores da sala de recursos multifuncionais:

126
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Ainda apresenta uma escrita na hipótese pré-silábica,


não relaciona a escrita com a fala, reproduz traços
típicos da escrita de forma desordenada.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2011)

Ainda continua apresentando dificuldade de leitura,


escrita e interpretação de pequenos textos.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2012)

Consegue realizar as tarefas que incidem na identifi-


cação das palavras iniciadas por vogal.
Em atividades de ordenação das frases da poesia de
Vinícius de Moraes As borboletas, necessitou de apoio
visual que estava escrito no quadro.
Quando algum tipo de exercício de leitura é inserido
na aula, apresenta lentidão e insegurança.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2013)

Ainda apresenta dificuldade para interpretar situações


de uma historinha e/ou contar em síntese o enredo da
história. Este comportamento também acontece quan-
do se trata de fatos ocorridos com a sua própria vida.
(RELATÓRIO DESCRITIVO DE DESENVOLVIMENTO DO
ALUNO, 2014)

Apesar de todos esses relatos sobre as dificuldades de Antô-


nio com a leitura e a escrita da língua materna, os cadernos dele
dizem outra coisa. Ao analisar esses cadernos, que foram cedidos
pela genitora do aluno, percebi que ele tem bastante organização
espacial, o traçado da letra é perfeito. Quase todas as atividades
realizadas por Antônio na sala de aula, junto com a turma regular,

127
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

foram vistas e corrigidas pelos professores. Estes sinalizaram,


através da correção, que estava tudo bem. É o que fica evidente
da análise dos cadernos.
Cabe aqui destacar que, quando entrevistamos o sujeito fo-
cal, juntamente com a mãe, pedimos a ele que lesse um pequeno
texto. Em princípio, ele ficou apreensivo, depois escolheu algumas
palavras isoladas e fez a leitura. Ficou bastante evidente que ele já
havia memorizado aquelas palavras que selecionou para ler.
Pedimos ainda que escrevesse o seu nome. No primeiro mo-
mento, escreveu o primeiro nome corretamente e os dois sobreno-
mes com omissão de algumas letras; em um segundo momento, na
hora de escrever o sobrenome, o aluno trocou a ordem das letras.
Às vezes, demonstrava ter esquecido o nome da letra. Com isso,
percebemos que ele ainda não sabia nem ler, nem escrever, o que
entra em contradição com seus cadernos, cuja escrita é perfeita
(NOTA DE CAMPO, 10 de setembro de 2015).
A situação de Antônio infelizmente ainda é muito comum.
Acredito que a aquisição da leitura e da escrita da língua materna,
bem como de suas práticas sociais, está ligada à questão de cida-
dania e, consequentemente, à dignidade da pessoa humana. Afinal,
quem não consegue sequer ler a escrita da sua própria língua pode
se sentir um estrangeiro no próprio país, por isso dediquei-me a
pensar a alfabetização e o letramento de pessoas com deficiência
intelectual.

A EDUCAÇÃO INCLUSIVA E O ATENDIMENTO EDUCACIONAL


ESPECIALIZADO

Para a educação da criança com deficiência intelec-


tual é importante conhecer como ela se desenvolve.
O importante não é a deficiência em si mesma, não a
insuficiência por si mesma, o defeito, e sim a reação que
apresenta a personalidade da criança em processo de
desenvolvimento, em resposta à dificuldade com a qual

128
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

tropeça e a qual resulta desta deficiência. (VIGOTSKI,


1989, p. 104, tradução nossa)3

Os anos 80 do século XX foram marcados, no Brasil, por lutas


pela redemocratização - partidos políticos, movimentos sociais,
instituições educacionais, juntamente com trabalhadores mobiliza-
ram em prol da prevalência da democracia no âmbito do Governo
brasileiro e da reabertura democrática. Dentro desse contexto,
finalmente, em 05 de outubro de 1988, uma nova Constituição foi
promulgada.
Como todo texto tem seu contexto, a Constituição Federal
não fugiu a essa regra. Já no primeiro artigo, nossa Lei Maior es-
tabelece que a República Federativa do Brasil “constitui-se em um
Estado Democrático de Direitos” (BRASIL, 1988). Ao assumir essa
condição, o Brasil submete-se à ordem jurídica de modo a proteger
e salvaguardar o direito de todos os cidadãos. Nessa perspectiva,
o Brasil ganha uma Constituição cidadã, onde um rol de direitos
e garantias fundamentais, coletivos, sociais e individuais foram
elencados. Dentre os direitos sociais, foi contemplado o direito à
educação das pessoas com deficiência, previstos no inciso III, art.
208, caput – “o dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de: atendimento educacional especializado
aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular
de ensino” (BRASIL, 1988).
Garantir o direito à educação das pessoas com necessida-
des educacionais especiais preferencialmente na rede regular de
ensino é respeitar o princípio da isonomia ou igualdade previsto
no caput do artigo 5º da Constituição da República Federativa do
Brasil (CRFB). Este artigo estabelece: “todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988). Essa

3 O texto em língua estrangeira é: “Para la edicación del niño retrasado mental es importante
conocer cómo él se desarrolla, es importante no la deficiencia por sí mesma, no la insuficiencia
por si mesma, el defecto, sino la reacción que se presenta en la personalidade del niño en el
processo del desarrollo, en respuesta a la dificultad con la que tropieza y la cual resulta de esta
deficiência”.

129
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

igualdade prevista na CRFB é formal. A escola deve buscar, além


da igualdade formal, a igualdade material, aquela baseada no caso
concreto. Nesse sentido, os alunos com deficiência intelectual têm
os mesmos direitos que os alunos sem deficiência. Além desses
direitos comuns a todos, os estudantes com deficiência intelectual
têm ainda o direito a atendimento educacional diferenciado, para
que, na prática, o direito à educação se efetive. Esse atendimento
diferenciado inclui adaptação curricular e práticas pedagógicas
diferenciadas.
Tais direitos apresentados acima foram reafirmados na lei n.
9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),
considerada por Pedro Demo uma lei ‘pesada’, que “envolve muitos
interesses orçamentários e interfere em instituições públicas e pri-
vadas de grande relevância nacional como escolas e universidades.
Não teria qualquer condição de passar como um texto avançado,
no sentido de ser a ‘lei dos sonhos do educador brasileiro” (DEMO,
1997, p. 10). De acordo com o autor, a LDBEN é uma lei “pesada”
porque, para muito além da dimensão pedagógica, subjazem no
texto interesses políticos, ideológicos, orçamentários, além de
outros que envolvem a iniciativa privada que mantém escolas da
educação básica e instituições de nível superior.
A LDBEN é uma lei especial, regulamenta os artigos da Consti-
tuição Federal que tratam de toda a educação nas esferas estadual,
municipal, federal e do Distrito Federal no âmbito público e priva-
do. Sendo assim, é a mais importante da educação brasileira. Ela
prevê as normas para a ação dos principais agentes responsáveis
pela promoção da educação escolar: professores, alunos, diretores,
autoridades governamentais, entre outros. Tem por objetivo indicar
o caminho para efetivação das políticas públicas educacionais. É
composta por noventa e dois artigos, distribuídos em nove partes,
chamadas de capítulos. Nesta pesquisa serão abordados os artigos
4, inciso III, além dos artigos 58, 59 e 60 que compõem o capítulo
V – Da Educação Especial, articulados com o artigo 208, inciso III
da nossa Lei Maior e a Convenção de Salamanca.

130
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Nessa direção, o artigo 208 caput e inciso III da CRFB estabe-


lecem as determinações que devem nortear a educação inclusiva
– “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante
a garantia de: III – atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de
ensino” (BRASIL, 1988). A partir desse dispositivo constitucional,
a LDBEN prevê no artigo 4º, inciso III a garantia do AEE gratuito
aos “educandos com deficiência, transtornos globais do desenvol-
vimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos
os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular
de ensino” (BRASIL, 1996, redação dada pela Lei n. 12.796/2013).
O Capítulo V da LDBEN dispõe sobre a Educação Especial - o
artigo 58, caput define essa modalidade de educação, a que pú-
blico ela se destina e onde deve ser feita, ressaltando que, deverá
acontecer preferencialmente na rede regular de ensino. Já o pa-
rágrafo primeiro deste artigo regulamenta o apoio especializado
na escola regular:

Entende-se por educação especial, para os efeitos


desta Lei, a modalidade de educação escolar ofereci-
da preferencialmente na rede regular de ensino, para
educandos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.
§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio
especializado, na escola regular, para atender às pecu-
liaridades da clientela de educação especial.
§ 2º O atendimento educacional será feito em classes,
escolas ou serviços especializados, sempre que, em
função das condições específicas dos alunos, não for
possível a sua integração nas classes comuns de ensino
regular (BRASIL, 1996).

131
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Nessa linha, é oportuno esclarecer que o § 2º do artigo em


epígrafe não prevê a substituição do ensino comum pelo especial,
como, equivocadamente, algumas instituições de ensino têm in-
terpretado.
Cada aluno tem a possibilidade de aprender, a partir de suas
aptidões, capacidade e tempo de desenvolvimento. O aluno com
deficiência intelectual incluído na turma comum do ensino regular
necessita de um atendimento educacional diferenciado para que
a inclusão não garanta apenas direito de acesso e permanência,
garanta, principalmente, o direito à aprendizagem. Para que isso
aconteça, é preciso que haja professores com formação adequada,
apoio especializado, Atendimento Educacional Especializado (AEE),
definido como “atendimento necessariamente diferente do ensino
escolar e que é indicado para melhor suprir as necessidades e aten-
der às especificidades dos alunos com deficiência” (SEESP/SEED/
MEC, 2007). Esta questão não escapou da reflexão de Rapoli (2010):

A inclusão escolar impõe uma escola em que todos os


alunos estão inseridos sem quaisquer condições pelas
quais possam ser limitados em seu direito de participar
ativamente do processo escolar, segundo suas capa-
cidades, e sem que nenhuma delas possa ser motivo
para uma diferenciação que os excluirá de suas turmas.
(RAPOLI, 2010, p. 8)

A Conferência Mundial sobre Educação Especial, realizada em


Salamanca, na Espanha, entre 7 e 10 de junho de 1994 definiu,
dentre outros princípios, que “toda criança possui características,
interesses, habilidades e necessidades de aprendizagem que são
únicas e que aquelas com necessidades educacionais especiais
devem ter acesso à escola regular” (UNESCO, 1994, p. 01). Após a
publicação da declaração que consolidou os debates desenvolvidos
nessa conferência, surgiram, em todo o mundo, inúmeras pesquisas
científicas e legislações em torno da educação inclusiva.

132
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Observa-se que a Declaração de Salamanca enfatiza a prática


da escolarização de sujeitos em situação de deficiência nas classes
comuns do ensino regular, desencadeando, dessa forma, a neces-
sidade de otimização do planejamento e adaptação curricular.
Com base nessa Declaração e em consonância com a previsão de
documentos legais, especialmente o que dispõe a Resolução n.
4 de 2 de outubro de 2009 que aponta para a realização de um
trabalho em parceria entre os professores regentes de turmas
comuns e professores do Atendimento Educacional Especializado
(AEE), conforme estabelece o artigo 13 caput, inciso VIII, a saber:

VIII – estabelecer articulação com os professores da


sala de aula comum, visando à disponibilização dos
serviços, dos recursos pedagógicos e de acessibilidade
e das estratégias que promovem a participação dos
alunos nas atividades escolares. (BRASIL, 2009, art. 13)

Assim, com o objetivo de garantir a plena participação no


processo de ensino e aprendizagem dos alunos com deficiência
intelectual, apresentamos o Planejamento Educacional Individu-
alizado (PEI) como um instrumento pedagógico cuja finalidade
é produzir, através do diálogo entre a comunidade escolar e a
família, recursos e estratégias educacionais diferenciadas a serem
utilizadas no processo de escolarização do educando em situação
de deficiência intelectual.

O PLANEJAMENTO EDUCACIONAL INDIVIDUALIZADO (PEI)


COMO PROPOSTA PEDAGÓGICA

O Planejamento Educacional individualizado (PEI) se apresenta


como um instrumento pedagógico promissor no processo de apren-
dizagem e desenvolvimento cognitivo de alunos com deficiência
intelectual incluídos em turmas comuns.

133
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A Associação Americana de Deficiência Intelectual e Desenvol-


vimento (AAIDD) aponta que reconhecer os tipos de apoios que os
indivíduos que apresentam deficiência intelectual necessitam ao
longo do seu desenvolvimento é mais importante do que simples-
mente diagnosticar o nível de deficiência. Os apoios devem ocorrer
de forma regular em ambientes integrados e serem oferecidos no
espaço onde a pessoa vive, estuda e trabalha e se diverte. Eles
podem envolver desde o próprio educando, a família, os atores
escolares, profissionais de saúde ou ajudas técnicas.
Pletsch (2014, p. 12) acredita que “a ideia de flexibilização do
currículo sem o reconhecimento da individualidade humana e da
complexidade do processo de ensino e aprendizagem, é um aspecto
negativo”. Concordamos com a autora porque entendemos também
que as pessoas apreendem de maneiras diferentes umas das ou-
tras. É preciso haver um currículo que considere as idiossincrasias
e práticas pedagógicas que possibilitem o desenvolvimento das
“funções psicológicas superiores”, através de mediação. Currículo
único pressupõe, em termos de aprendizagem, que todo ser hu-
mano é igual. Em nossa prática diária na sala de aula, vemos que
não é bem isso que acontece, principalmente com os alunos com
deficiência intelectual. Esses precisam de um tempo maior para
apreender certos conteúdos e, na maioria das vezes, requerem
atendimento educacional individualizado.
O Planejamento Educacional Individualizado é um instrumento
pedagógico utilizado para singularizar o ensino, deve ser desenvol-
vido por um processo colaborativo, envolvendo a participação da
escola, pais/responsáveis e do próprio aluno. Consiste na previsão de
atividades que devem ser realizadas com o aluno na sala de recursos
multifuncionais para dar suporte às necessidades específicas desse
aluno, considerando seu [...] nível atual de habilidades, conhecimen-
tos e desenvolvimento, idade cronológica, nível de escolarização já
alcançado e objetivos educacionais desejados a curto, médio e longo
prazos. Também são levadas em consideração expectativas familiares
e do próprio sujeito (VIANNA; REDIG, 2012, p. 84).

134
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

As referidas autoras lembram ainda que o PEI tanto individua-


liza como personaliza o ensino para um determinado sujeito, ten-
do como característica ser um planejamento individualizado, que
deve ser periodicamente revisado e avaliado. Nele contém todas
as informações do aluno, tais como seus interesses, suas possibli-
dades, conhecimentos do sujeito, necessidades e prioridades de
aprendizagem (como ensinar, quem vai ensinar e como vai ensinar).
Prevendo recursos, estratégias, conteúdos, profissionais envolvidos,
expectativas, prazos, habilidades.Apesar das diferentes denomina-
ções que o PEI recebe, o objetivo costuma ser o mesmo – conhecer e
individualizar as necessidades educacionais do aluno em situação de
deficiência, para, fazer com que esse educando, através da mediação,
seja um agente ativo no processo de construção do conhecimento.
Neste texto, elegemos a nomenclatura – Planejamento Educacional
Individualizado. Embora a sua aplicação seja relativamente nova nas
escolas brasileiras, desde o início do ano 2000, as Diretrizes do Mi-
nistério da Educação já sinalizavam a necessidade e individualização
do ensino de educandos com necessidades educacionais especiais
incluídos em turma comum, e ainda que esse planejamento deve ser
periodicamente atualizado e ter uma sequência, independentemente
do ano escolar que o aluno esteja cursando (BRASIL, 2000, p. 24).
O PEI surgiu a partir dos pressupostos do Index4. É um ins-
trumento relativamente novo no Brasil, todavia já é amplamente
utilizado nos Estados Unidos, e em países da Europa como Reino
Unido, Itália, França, Espanha e Portugal (VALADÃO, 2010). É com-
posto por três etapas: o planejamento colaborativo, avaliação e
adaptações curriculares. Possui metas de curto, médio, longo prazo
e profissionais envolvidos. Tem que ser constantemente revisado
e avaliado, observando se os objetivos foram alcançados, caso
contrário, é necessário readequá-los. A seguir apresentamos um
quadro com questões que devem existir no PEI.
4 O Index para inclusão é um conjunto de materiais para apoiar a autorrevisão de todos os as-
pectos de uma escola, incluindo atividades no pátio, sala de professores e salas de aulas, nas
comunidades e no entorno da escola. Ele encoraja todos os funcionários, pais/responsáveis e
crianças a contribuírem com um plano de desenvolvimento inclusivo e a colocá-lo em prática
(BOOTH; AINSCOW, 2011, p. 9).

135
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Quadro 1 - Questões para elaboração do PEI

Fonte: (GLAT e PLETSCH, 2012)

Observa-se no quadro acima que, para elaboração do Plane-


jamento individualizado, é necessário saber quais são as possi-
bilidades do aluno, quais conhecimentos ele já construiu, suas
preferências, as prioridades de ensino e aprendizagem e ainda
o tempo, os recursos e os profissionais envolvidos na execução
da proposta. A partir destas questões, as autoras elaboraram o
seguinte modelo de PEI:

Quadro 2- Exemplo de PEI

Fonte:(GLAT e PLETSCH, 2012)

Acreditamos que, além desses componentes apresentados


pelas pesquisadoras, o PEI pode também ser composto de uma
avaliação feita através de um estudo de caso, a partir desse estudo,
traçar um perfil do aluno: “O estudo de caso se faz através de uma
metodologia de resolução de problema que identifica sua nature-
za e busca uma solução (GOMES, POULIN; FIGUEIREDO, 2010, p.
9). Esse estudo deve ser feito pelo professor do AEE, o professor
regente da turma comum onde o aluno está incluído e a equipe
de profissionais que trabalham diretamente com o educando. A
avaliação do aluno feita por meio do estudo de caso engloba os
seguintes ambientes: sala de recursos multifuncionais, sala de aula
e família. As informações obtidas sobre a interação do aluno nesses
espaços levam em consideração os seguintes aspectos: “desenvol-

136
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

vimento intelectual e funcionamento cognitivo; a expressão oral;


o meio ambiente; as aprendizagens escolares; o desenvolvimento
afetivo social e as interações sociais; os comportamentos e atitudes
em situação de aprendizagem e o desenvolvimento psicomotor.”
(GOMES; POULIN; FIGUEIREDO, 2010, p. 10). Essas informações
darão base para o professor do AEE delinear o perfil do aluno e
assim, identificar as dificuldades enfrentadas no contexto escolar.
Convém ressaltar que um dos objetivos desta investigação é a
alfabetização e o letramento do aluno que apresenta deficiência in-
telectual, ou seja, a construção da linguagem escrita e suas práticas
sociais por esse estudante. Assim, acreditamos que o professor do AEE,
antes de elaborar o PEI, pode avaliar o aluno que apresenta deficiência
utilizando as seguintes atividades: avaliação de leitura e escrita do
próprio nome do aluno; leitura de texto memorizado e a produção
espontânea de texto. Nessas avaliações o professor verificará:

As concepções que o aluno apresenta a respeito do seu


nome. Isso indica ao professor como esse aluno está
interagindo com a escrita do próprio nome, mesmo
quando este ainda não produz essa escrita de modo
independente e convencional. Quanto à produção
espontânea de texto, objetiva verificar as hipóteses
de escrita do aluno. O procedimento consiste na
proposição da escrita de uma lista de palavra de um
mesmo grupo semântico (lista de animais, de frutas,
de brinquedos, dentre outras) pelo aluno. A partir
dessa produção o professor pode identificar o nível de
compreensão que o aluno tem do sistema escrito. Já a
avaliação de leitura com base num texto memorizado
tem por objetivo verificar se a criança lê o texto de
memória ou se utiliza outras estratégias para realizar
a leitura e ainda serve para verificar se o aluno localiza
no texto palavras solicitadas pelo professor. (GOMES;
POULIN; FIGUEIREDO, 2010 p. 11-12)

137
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Além disso, segundo os autores, o professor do AEE pode


também propor atividades que possibilitem ao aluno estabelecer
as diferenças entre as características da oralidade e da escrita.
Para tanto, o professor pode organizar situações em que o aluno
seja provocado a se expressar oralmente através de descrição de
imagens, fotos, recontos orais e relatos de experiências.
A maneira como o aluno se relaciona com a construção dos
signos linguísticos tem um papel fundamental no seu desenvolvi-
mento, considerando que a linguagem vai impulsionar o desen-
volvimento acadêmico e social desse educando. A construção da
linguagem é a condição mais importante para o desenvolvimento
mental. É “por meio da linguagem que a criança acumula o co-
nhecimento humano e os conceitos sobre o mundo que a rodeia”
(LEONTIEV, 2005, p. 73). É também “por meio da interação em
atividades linguísticas que a criança se apropria da linguagem”
(LEONTIEV, p. 66).
A elaboração do Plano Educacional Individualizado exige
um trabalho colaborativo em que as ações e as concepções
sobre ensino e aprendizagem sejam compartilhadas por toda
a comunidade escolar e a família do educando. O professor
do AEE deve, em articulação com o professor regente, demais
atores escolares e a família, elaborar esse plano com base nas
informações obtidas sobre o aluno e a “problemática vivenciada
por ele, através do estudo de caso” (GOMES, POULIN; FIGUEI-
REDO, 2010, p. 15).
Além disso, é necessário que os atores escolares envolvidos
na elaboração do PEI vejam esse aluno como um sujeito singular.
E que, ao elaborar os objetivos, considerem as potencialidades, as
dificuldades desse estudante, propondo atividades que “promovam
a vinculação do aluno com o êxito, bem como organize atividades
a partir dos interesses manifestados pelo aluno [...]” (GOMES, POU-
LIN; FIGUEIREDO, 2010, p. 15). Tais atividades vão influenciar no
desenvolvimento e na autonomia do educando diante de situações

138
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

de aprendizagem. Esse planejamento deve ser periodicamente


reavaliado e adaptado, caso necessário.
As adaptações devem ser individualizadas, de acordo com as
peculiaridades e capacidades de cada aluno. O currículo adaptado
para o ensino e aprendizagem de um sujeito com deficiência in-
telectual deve estabelecer situações de aprendizagem que sejam
estimulantes, não atividades mecânicas que não necessitam de
esforço mental. Dessa forma, a adaptação curricular para a o ensino
e aprendizagem de alunos que apresentam deficiência intelectual,
conforme mostrado no quadro acima, passa pelas seguintes etapas:
a definição do que ensinar, como ensinar e o que deve ser ensinado.
São componentes que fundamentam a sua elaboração:

1) descrição do desenvolvimento atual e desempenho


acadêmico do aluno; 2) a especificação dos serviços
especializados necessários e de como eles serão coor-
denados com a frequência na escola e na classe comum,
quando for o caso; 3) uma previsão da participação do
estudante em atividades da classe comum; 4) como
será a avaliação dos alunos, incluindo uma definição de
como será a participação do estudante nas avaliações
padronizadas do poder público; 5) definição do cro-
nograma de estudo, com especificação das atividades
que serão desenvolvidas; 6) especificação de sistemas
de transição necessários para ajudar o jovem a se pre-
parar para deixar a escola; 7) definição das formas de
mensuração do progresso do aluno. (VALADÃO, 2010,
p. 102-103)

Tais fundamentos visam descrever, especificar, prever as ativi-


dades que o aluno fará na sala de recursos multifuncionais e a sua
participação em atividades da classe regular em que ele está inclu-
ído. Esse planejamento deve ter como foco principal as atividades
que estimulem o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem. O

139
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

foco não deve ser as limitações cognitivas do educando em situação


de deficiência intelectual, e sim as suas potencialidades, tendo em
vista que as principais limitações do sujeito com deficiência inte-
lectual são as funções cognitivas, pois interferem no processo de
aquisição de novas informações. Tais funções causam lentidão para
resgatar as informações consolidadas, principalmente, dificuldades
para memorizar (FREITAS, et al., 2016).
As dificuldades de memorização por parte de sujeitos com
deficiência intelectual foram relatadas por professores de Antônio,
sujeito desta investigação, durante a observação participante. Se-
gundo esses professores, Antônio aprendia e esquecia com muita
facilidade. Esquecia inclusive o nome das letras. A cada aula, parecia
ser necessário recomeçar do zero.
De acordo com a neuropsicologia do desenvolvimento, a
capacidade para consolidar ou não informações, envolve alguns
tipos de memórias5:

Dentre os vários tipos de memórias, a que representa a


aprendizagem é a memória de longo prazo. A memória
de longo prazo é assim chamada, pois as informações
que já foram consolidadas são mantidas por longo
tempo e algumas para toda a vida. (FREITAS et al.,
2016, p. 07)

Geralmente, as pessoas em situação de deficiência intelectual


possuem memória a curto prazo. Por isso é que elas não retêm
informações por muito tempo. Segundo Mantoan (1998),
5 Os psicólogos, frequentemente, distinguem três espécies ou aspectos da memória, dependendo
do tempo que se passa entre a apresentação original de algo a ser lembrado e a testagem para
ver o quanto pode ser recuperado. O primeiro aspecto chamado de armazenamento sensorial,
está relacionado à informação do ponto de vista de sua chegada em um órgão receptor, tal
como olho, até que o cérebro tenha feito sua decisão perceptiva, por exemplo, a identificação
de várias letras ou palavras. O segundo aspecto, chamado memória a curto prazo, envolve o
breve período de tempo no qual podemos manter a atenção em algo imediatamente após sua
identificação, por exemplo, lembrar de número de telefone não familiar enquanto discamos.
Finalmente, existe a memória a longo prazo que envolve tudo que sabemos sobre o mundo,
nossa quantidade total de informação não-visual (SMITH, 2003, p. 113 – 113).

140
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

A memória é uma habilidade intelectual que pode ser


melhorada, nas pessoas com deficiência intelectual,
mas não deve ser exercitada mecanicamente. As In-
tervenções que fazem uso de estratégias envolvendo
a retenção e demais capacidades necessárias para a
lembrança e a reconstituição de fatos e objetos são
mais indicadas, e, embora não se consiga nos casos
mais graves um grande aproveitamento dessa faculda-
de intelectual, reter fatos é básico nos comportamentos
autônomos mais elementares. (MANTOAN, 1998, p. 3)

Frente a essa demanda, é necessário que o professor trabalhe


com o educando em situação de deficiência intelectual atividades
que exigem reflexão, e consequentemente estimule o raciocínio
complexo para que esse aluno possa desenvolver e utilizar esponta-
neamente suas estratégias cognitivas e, dessa maneira, melhorar o
funcionamento da memória através do aprendizado. Nesse sentido,
a escola tem um papel fundamental “na construção do ser psicoló-
gico adulto dos indivíduos que vivem em sociedades escolarizadas.
Mas o desempenho desse papel só se dará adequadamente quando
conhecendo o nível de desenvolvimento dos alunos” (OLIVEIRA,
1988, p. 22). De posse dessas informações, a escola deve dirigir
o ensino não para as etapas já alcançadas, e sim para os níveis de
desenvolvimento ainda não atingidos pelos estudantes. No caso
dos educandos com deficiência intelectual, é possível conhecer
melhor os seus níveis de desenvolvimento através da elaboração
de um Planejamento Educacional Individualizado.
A contribuição do PEI para o processo de ensino e aprendi-
zagem desses alunos se dá na medida em que esse instrumento
pedagógico individualiza o currículo, sem deixar de considerar
os objetivos gerais propostos para toda a turma. O PEI contém
atividades direcionadas para cada educando em situação de
deficiência. Essas atividades em conjunto com a mediação do
professor são essenciais para o desenvolvimento desses educan-

141
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

dos, considerando que a aprendizagem “não ocorre de maneira


espontânea e sim a partir da interação e do desenvolvimento de
práticas curriculares planejadas e sistematizadas de forma inten-
cional” (PLETSCH, 2010, p. 187). À luz desses fatos, o desenvolvi-
mento do educando em situação de deficiência intelectual deve
ser motivo de preocupação constante do professor. Nessa linha,
é oportuno citar a contribuição de Vigotski (1998, p. 117), que
afirma: “o ‘bom aprendizado’ é somente aquele que se adiante ao
desenvolvimento”. É importante ressaltar que “embora Vigotski
enfatize o papel da intervenção no desenvolvimento, seu objetivo
é trabalhar com a importância do meio cultural e das relações
entre indivíduos na definição de desenvolvimento da pessoa
humana” (OLIVEIRA, 1988, p. 63).
Um dos objetivos do planejamento individualizado é promo-
ver a autonomia intelectual e social do educando que apresenta
deficiência cognitiva. A qualidade da vida social e profissional
desse sujeito encontra-se em boa parte sobre bases “que são o
desenvolvimento intelectual e as aprendizagens significativas que
teve na escola e fora dela” (FREITAS et al., 2016, p. 8). Por isso, é
de suma importância que as atividades elaboradas a partir do PEI
exijam que o aluno utilize seu raciocínio para a resolução de um
determinado problema.
No PEI, os focos de desenvolvimentos consideram eixos de
ensino e aprendizagem no processo de escolarização, nas habili-
dades sociais e em outras habilidades necessárias para a inclusão
no ambiente de trabalho (GLAT; PLETSCH, 2012a). As autoras
apontam que esse instrumento estabelece uma base de atuação e
intervenção pedagógica de modo contextualizado e de acordo com
os objetivos propostos para turma onde o aluno com deficiência
está incluído. Portanto, é uma alternativa bastante promissora, na
medida em que oferece parâmetros mais claros a serem atingidos
com cada educando, sem deixar de lado os objetivos gerais esta-
belecidos pelas propostas curriculares.

142
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

É importante que esse planejamento individualizado tenha con-


tinuidade, e que, a partir dele, todos os docentes que trabalharem
com o aluno para o qual o PEI foi elaborado, possam fazer registro
da evolução do ensino e aprendizagem desse aluno, assim como a
trajetória escolar dele. A continuidade do PEI possibilita que o aluno
que apresenta deficiência avance em seus conhecimentos acadê-
micos, na medida em que o próximo professor tenha acesso a esse
planejamento, saiba o que o educando já capaz de fazer sozinho, das
atividades que ele só consegue fazer com a ajuda de um mediador. E
dessa maneira, desenvolver não somente as funções elementares, mas,
principalmente as funções psíquicas superiores que são fundamentais
para o desenvolvimento da pessoa com deficiência intelectual.
Desse modo, o PEI pode ajudar os professores no planeja-
mento de ações que possibilitam aos estudantes com deficiência
participar das atividades e desenvolver aprendizagens, ainda que
com adaptações, a partir dos objetivos gerais propostos para a
classe em que esse aluno estiver matriculado. Nessa direção,

[...] as práticas curriculares são implementadas e


recontextualizadas nos determinantes escolares
(espaço-tempo), envolvendo as práticas de seleção e
distribuição dos conhecimentos escolares. São desen-
volvidas por sujeitos, sejam alunos, sejam professores,
todavia não podem ser entendidas como ações indi-
vidualizadas. (MENDES, 2008, p. 169)

Nessa perspectiva, a adoção do PEI como modelo educacional


implica mudança na concepção de currículo e do sistema educa-
cional, de modo geral. Pensar em um currículo individualizado é
romper com os modelos já existentes, considerando que o plano
que será traçado para o educando, não necessariamente seguirá
o conteúdo completo do ano em que o ele está matriculado, po-
dendo ser baseado em metas específicas para aquele estudante
(GLAT; PLETSCH, 2013).

143
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

As referidas autoras lembram que o PEI deve ser articulado com


outras iniciativas. Não deve ser seguido como um programa padrão,
porque não existe só uma maneira de atender as necessidades
educacionais de todos os alunos com deficiência intelectual. Esse
instrumento sozinho não é capaz de preencher todas as lacunas
que a escola demanda para atender os educandos que apresentam
essa deficiência.
Em síntese, acreditamos que “a inexistência de um plano
individualizado pode inviabilizar a inclusão escolar, tendo como
consequência um fraco desempenho dos alunos e pouco avanço
em seu percurso de escolarização” (GLAT; PLETSCH, 2012, p. 21),
o que pode levar ao fracasso, repetência e evasão escolar desses
educandos, por se sentirem incapazes de aprender, trazendo con-
sequências à imagem social e a autoestima dos alunos.
Por fim, cabe ressaltar que, Antônio, sujeito focal da nossa
pesquisa de mestrado, sintetizada no presente artigo, encontra-se
no nível pré- silábico da escrita. Ele ainda não consegue fazer a as-
sociação entre letras e sons, ou seja, ainda não tem a “compreensão
de como as letras se articulam para produzir a escrita e propiciar
a leitura de palavras, frases e textos” (GROSSI, 2004, p. 1-2), por
isso, escreve as letras de maneira aleatória, formando pseudopala-
vras, conforme texto do anexo B. A partir desta produção textual,
identificamos as hipóteses que o aluno faz da escrita.
A guisa de exemplo, apresentamos a seguir a base de um
PEI elaborado com o objetivo de estimular o desenvolvimento de
Antônio. Com base na avaliação diagnóstica, sugerimos que sejam
realizadas na sala de recursos multifuncionais, além das atividades
supracitadas, aquelas que desenvolvam a consciência fonológica
(CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2000), a saber:

1. Síntese silábica – o aluno deve unir as sílabas faladas pelo pro-


fessor/mediador, dizendo que palavra resulta da união. Exemplo: /
pa/ - /to/ - /pato/.

144
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

2. Síntese fonêmica – o educando deve unir os fonemas e dizer a


palavra formada. Exemplo: /a/ - /i/ - /ai/.

3. Rima – o estudante deve avaliar, entre três palavras, quais terminam


com o mesmo som. Exemplo: /pato/ - /gato/ - /pata/.

4. Aliteração – o aluno deve escolher, entre três palavras, as duas


que começam com o mesmo som. Exemplo: /sapo/ - /selo/ - /saco/.

5. Segmentação silábica – o educando deve repetir a palavra sepa-


rando em sílabas. Exemplo: /mala/ - /ma/ - /la/.

Vigotski (1998) define a Zona de Desenvolvimento Proximal


como “a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se
costuma determinar através de solução independente, e o nível
de desenvolvimento potencial, determinado pela solução de pro-
blemas sob a orientação de um adulto ou com a ajuda de colegas
mais capazes” (VIGOTSKI, 1998, p. 112).
Na visão da teoria vigotskiana, toda criança, com auxílio de
outra pessoa, pode fazer muito mais do que faria sozinha, ainda
que se restringindo aos limites estabelecidos pelo nível de seu
desenvolvimento. Assim, a ZDP pode ser um poderoso instrumento
no aprendizado da leitura e da escrita de criança com deficiência
intelectual. Para essa teoria, através do uso da ZDP é possível com-
preender o curso interno do desenvolvimento da criança. Assim,
“dar conta não somente dos ciclos e processos de maturação que
já foram completados, como também daqueles processos que
estão em estado de maturação” (VIGOTSKI, 1998, p. 113), tendo
em vista que as leis gerais de desenvolvimento que atuam nas
crianças “normais” são as mesmas que atuam no desenvolvimento
das crianças com deficiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando em consideração as perspectivas apresentadas neste


artigo, acreditamos que o desenvolvimento de diagnósticos que

145
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

sirvam de base para a elaboração de um PEI adequado às especifici-


dades do sujeito deficiente intelectual no que tange à alfabetização
é uma estratégia importante para que o professor-mediador possa
explorar com maior propriedade sua zona de desenvolvimento
proximal e acompanhá-lo, estimulando-o em seu percurso de
aprendizagem do sistema alfabético e dos usos sociais da língua
escrita, respeitando seu tempo e seus limites a cada etapa.

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148
LETRAMENTOS NOS ANOS FINAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O POTENCIAL DAS TIRAS CÔMICAS COMO


ESTÍMULO À AGENTIVIDADE E À EMPATIA NUMA
PERSPECTIVA CRÍTICA

Carlos Eduardo Ferreira da Silva

INTRODUÇÃO

Novos tempos, novas tecnologias, novos textos, novas lingua-


gens, consequentemente, implicam novas demandas nas esferas
do trabalho, da vida pública e, também, da vida privada. Porém,
nesse cenário contemporâneo, a crença de que o progresso material
traria equidade social fracassou e, desse modo, os avanços e con-
quistas científicas não foram democraticamente compartilhados,
pelo contrário, tem-se ampliado a desigualdade com a manutenção
de relações injustas de poder e a exclusão social de boa parte da
população.
Diante disso, apresento uma discussão sobre o potencial das
tiras cômicas no contexto escolar numa perspectiva crítica, a partir
da pesquisa desenvolvida por Silva (2018) com estudantes do 9º
ano da rede pública de Rio das Ostras/RJ. Baseado no conceito de
letramento como prática social (STREET, 2014) e utilizando como
metodologia a pesquisa-ação socialmente crítica (TRIPP, 1990;
ZEICHNER, 2009), há a discussão sobre a necessidade de uma
abordagem pedagógica culturalmente sensível em oposição a uma
concepção de educação que tem servido à manutenção da exclusão
(ARROYO, 2014; COPE; KALANTZIS, 2000).

151
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Orientado pelos pressupostos dos Multiletramentos e do


Letramento Crítico (COPE, KALANTZIS, 2000, 2012; ROJO, 2012),
aliando-os a concepção dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003;
RAMOS, 2007, 2017, SILVA, 2007), construí uma proposta de en-
sino de língua portuguesa em que a minha prática pedagógica foi
repensada num processo de autoformação docente, possibilitando
que os estudantes negociassem os sentidos nas tiras cômicas,
buscando, principalmente, reconhecer as vozes silenciadas. Assim,
apresentamos, na parte final desse capítulo, algumas cenas de sala
de aula em que o desenvolvimento da agentividade e da empatia
se destaca.

LETRAMENTOS

Com base na perspectiva sócio-histórica e etnográfica de-


senvolvida por Street (1984) e Heath (1983), sigo a concepção
de letramento como prática social. Isso porque a compreensão
das práticas de leitura e de escrita como habilidades universais e
homogêneas, estritamente cognitivas, com foco no processo in-
dividual e vinculadas unicamente à escola sustenta uma acepção
liberal de letramento que não dá conta desse fenômeno como
um todo. O letramento, numa perspectiva crítica, valoriza o con-
texto socioideológico das práticas letradas, compreendendo-as
como uma questão social, política e ideológica, valorizando-se,
assim, o caráter múltiplo do letramento (STREET, 2014; COPE,
2012).
A partir disso, é importante considerar que, em geral, há
o predomínio do modelo autônomo de letramento no currículo
e na prática pedagógica na escola, mantendo-se o discurso de
disciplina e do letramento como questão individual. A inclusão da
perspectiva crítica na prática escolar vislumbra a possibilidade de
professores e formadores de professores teorizarem sobre a sua
prática nos contextos de diferenças culturais, das localidades e das
políticas específicas com que se deparam. Consequentemente, seria

152
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

inevitável perpassar por pressupostos implícitos sobre relações


culturais, identidade, etc.
Sob essa ótica, as práticas de leitura e escrita na escola são
apenas uma possibilidade, em meio a tantos tipos de letramentos
que são elaborados pela sociedade, em paralelo à escola, mas de
relevância equivalente. A questão que se apresenta como urgente,
então, não é só a mudança em relação ao modelo de confinamento
disciplinar ou a produção de aulas diferentes. É preciso redefinir a
escola como um espaço de verdadeiro diálogo e encontro (ARROYO,
2014; FERRAREZI JR, 2014), de produção de pensamento crítico,
e experiências capazes de estimular as vidas que a habitam, res-
peitando os corpos e as subjetividades dos adolescentes de hoje,
com seus próprios sonhos e ambições, seus estilos de vida e suas
realidades cotidianas saturadas de hiperconexão digital e diversi-
dade local (SIBILIA, 2012).
Logo, uma proposta de ensino de Língua Portuguesa que
visa ao desenvolvimento da percepção crítica e da agência para a
mudança social (DINIZ-PEREIRA; ZEICHNER, 2008, p. 11) não pode
desprezar as práticas sociais de leitura e de escrita do grupo social
com o qual está lidando. É sob essa perspectiva que defendo os
pressupostos do letramento crítico e dos multiletramentos como
um caminho que aumente as possibilidades para formação de leitor
crítico, engajado, que aprenda a lidar com a leitura e a escrita em
diferentes lugares e sob diferentes condições, para que, assim,
consiga se orientar no mundo.

MULTILETRAMENTOS E LETRAMENTO CRÍTICO

Não se trata, de modo algum, de restaurar a velha ins-


tituição oitocentista, supostamente boa porque ‘funcio-
nava bem’, tampouco de atualizá-la transformando-a
em mais um nó das redes de conexão para dissolvê-la
fatalmente nessa metamorfose. De que se trata, então?
De reinventá-la como algo impensável. Nada simples,

153
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

sem dúvida, mas é este o tipo de combate pelo qual


vale a pena nos batermos. (SIBILIA, 2012, p. 212)

Não há como não concordar com a autora Paula Sibilia quanto


à necessidade de mudanças no espaço escolar, que envolvem desde
a estrutura física, currículos, políticas educacionais, valorização
profissional, reconhecimentos das resistências dos discentes até
a função social da docência. Visando a essa reinvenção, pelo me-
nos do aprimoramento da prática pedagógica, a pedagogia dos
multiletramentos se apresenta como uma possibilidade plausível
de proporcionar melhores oportunidades educacionais para cada
estudante a partir do letramento crítico adequado aos contextos
de diversidade local e de conexão global.
A concepção de multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2000),
que tem origem no New London Group (NLG), defende uma peda-
gogia em que se incluam os novos letramentos emergentes na
sociedade atual, e, consequentemente, proceda-se a entrada no
currículo da grande diversidade de culturas que caracterizam o
mundo globalizado. O NLG cunhou o termo para dar conta de duas
multiplicidades: “A primeira justificativa envolve a multiplicidade de
canais de comunicação e meios de comunicação; a segunda envolve
a crescente relevância da diversidade cultural e linguística”1 (COPE;
KALANTZIS, 2000, p. 5, tradução nossa).
Tal afirmação nos coloca diante da seguinte questão: como
assegurar que as diferenças culturais, linguísticas e de gênero
não se tornem obstáculos ao sucesso educacional? Claramente, o
senso de cidadania uniforme, monocultural, tem cedido espaço à
fragmentação local, e as comunidades cada vez mais estão se di-
vidindo em grupos ainda mais variados; o acesso a estilos de vida
cada vez diversificados devido às mudanças tecnológicas e às novas
formas de organização do trabalho; narrativas globais invasivas, a

1 O trecho correspondente na tradução é: “The first argument engages with the multiplicity of
communications channels and media; the second with the increasing salience of cultural and
linguistic diversity”.

154
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

mass media e a padronização do consumo têm também alterado a


vida pessoal na sociedade atual.
Uma prática pedagógica na perspectiva dos multiletramentos
propõe um percurso formativo em que os educandos assumem
maior responsabilidade pela sua aprendizagem, como produtores
de conhecimento, reunindo uma variedade de discursos e conheci-
mentos disponíveis. Como consequência dessa agência, os educan-
dos deixam de ser meros consumidores de conhecimento de uma
única fonte. Ao desenvolverem a sua aprendizagem em parceria
com os outros colegas, podem construir um trabalho colaborativo
e compartilhado. Entretanto, além do discente, os professores
precisam assumir um novo posicionamento, tornando-se designers
de ambientes de aprendizagem e não mais os detentores do saber
que transmitem os conteúdos aos educandos.
Além disso, seguir os pressupostos dos letramentos críticos
proporciona a construção de uma proposta em que os estudantes
desenvolvem suas habilidades de modo que leiam criticamente,
percebam a construção social e situada do texto e da linguagem,
e assim, desafiem, se assim desejarem, o status quo (DUBOC, 2015).
Essa abordagem crítica do letramento surgiu sob forte influência
da teoria social crítica e da pedagogia crítica freireana, entenden-
do que as lutas pela posse do conhecimento, pelo status e pelos
recursos materiais são realizadas entre concorrentes em condições
desiguais. Há certos grupos que, ao longo da história, detêm o con-
trole sobre as ideologias, instituições e práticas sociais, inclusive
há práticas pedagógicas que legitimam essas relações de poder.
Porém se essas posições foram construídas social e historicamente,
é possível reconstruí-las de modo mais justo e igualitário e a lingua-
gem é um dos meios para essa reconstrução (MORGAN, 1997, p. 1).
Segundo Hilary Janks (2016), os textos apresentam efeitos so-
ciais elaborados para dar uma “versão” da verdade. Dessa maneira,
a língua pode ser utilizada com diferentes finalidades. Reconhecer
que não existe neutralidade nos textos implica o desenvolvimento

155
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

de possibilidades de saber de onde eles vêm e como são defi-


nidos pelos leitores. Com isso em mente, há a possibilidade de
se entender a posição de quem fala/escreve e de quem ouve/lê,
perguntando-se sobre quem se beneficia dessas posições, quem é
incluído ou excluído, se há outros pontos de vistas para interpretar
o que acontece e que consequências sociais são possíveis a partir
desse posicionamento, quais vozes estão sendo destacadas ou
silenciadas, em suma, quais interesses estão sendo atendidos, e
consequentemente, quais estão sendo desprezados.
Nessa perspectiva, o educando tem oportunidades de questio-
nar, podendo participar ativamente de seu processo educacional,
numa relação dialógica com o professor e com os outros sujeitos
envolvidos nesse processo na sala de aula. O objetivo, assim, é de
reinvenção da sala de aula, transformando-a num ambiente de inte-
ração em que as diferenças sejam evidenciadas positivamente, e as
diversas vozes sejam ouvidas, com seus saberes, suas culturas, suas
identidades, em relações dialógicas entre professor e educandos
e entre os educandos, levando-se em consideração os conflitos e
constrangimentos que envolvem tal processo, e, assim, mantendo-
se o ideal de desenvolvimento da alteridade, do protagonismo, da
agentividade, da empatia e do engajamento social.
Cabe ressaltar que o professor precisa estar ciente de que
não é um indivíduo superior e capaz de emancipar os oprimidos.
Sua percepção precisa ser humilde para que desenvolva práticas
de ensino diferentes, sendo capaz de engajar-se nelas juntamente
com os estudantes de uma forma mais flexível e menos autoritá-
ria (MORGAN, 1997, p. 26). Dessa maneira o letramento crítico
é compreendido como uma atitude que os leitores, ouvintes e
espectadores assumem ao problematizar os sentidos construídos
por eles quando interagem com os textos, questionando, assim,
não só as práticas discursivas de seu entorno, mas as suas próprias
leituras (EDUGAINS, 2009).

156
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O POTENCIAL DO GÊNERO TIRA CÔMICA NO CONTEXTO ESCOLAR

As histórias em quadrinhos (HQ) por muito tempo foram


consideradas um tipo de produção cultural inferior (SILVA, 2018,
p. 61). No meio acadêmico (RAMOS, 2016, p. 17), também havia
resistências em relação ao estudo das produções quadrinísticas.
Porém, a partir da década de 1970 surgiram estudos relevantes,
desmistificando concepções equivocadas e apresentando o po-
tencial comunicativo e ideológico dos quadrinhos. Segundo Viana
(2013, p. 19), as histórias em quadrinhos possuem realmente uma
aparência de grande simplicidade e pouca relação com o processo
social e questões sociais mais profundas, entretanto os quadrinhos
manifestam valores, concepções, sentimentos, sendo um produto
cultural de grande valor.
Uma das considerações mais importantes das novas pesquisas
foi tratar as HQ como um tipo de arte sequencial com linguagem
autônoma. A partir disso, podemos afirmar que “ler quadrinhos
é ler a sua linguagem. Dominá-la, mesmo que em seus conceitos
mais básicos, é condição para a plena compreensão da história e
para a aplicação dos quadrinhos em sala de aula e em pesquisas
científicas sobre o assunto” (RAMOS, 2016, p. 30).
As tiras cômicas compõem o hipergênero quadrinhos, um
campo maior que abrange diferentes gêneros autônomos, como
charges e cartuns. Tais produções se assemelham pela tendência de
serem narrativas, de compartilharem recursos próprios da liguagem
quadrinística e de antecipar ao leitor que se trata de uma história
em quadrinhos. As particularidades delas as tornam um gênero
específico, principalmente entendendo que as tiras cômicas (como
todas as histórias em quadrinhos) são produções sociais e históricas,
manifestando o social em seu universo ficcional (VIANA, 2013, p. 20).
Dessa forma, a partir dos aspectos elencados por Ramos (2007,
p. 288), apresento características mais gerais das tiras cômicas,
apontando mudanças ocorridas desde a sua pesquisa:

157
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

• Predominância do formato tradicional com uma coluna na horizon-


tal – No século XXI, as mídias virtuais oferecem novas possibilidades,;

• Tendência de uso de poucos quadrinhos, dada a limitação do


formato;

• Tendência de uso de imagens desenhadas;

• Personagens fixas ou não;

• Predominância de sequência narrativa, com uso de diálogos;

• Tema abordado pelo viés do humor e da crítica;

• Predomínio de desfecho inesperado, numa espécie de “uma piada


por dia”;

• Tendência a apresentar uma narrativa com começo, meio e fim – ou


ao menos um antes e um depois (ou antecedente e consequente);

• Possibilidade de continuidade temática em outras tiras cômicas.

A partir desses traços, é possível definir que a principal ca-


racterística das tiras cômicas é a criação de situações inesperadas
que leva à produção do humor (RAMOS, 2017, p. 64). Nas tiras
cômicas, assim como nas piadas, há uma espécie de armadilha no
final da narrativa, que apresenta uma situação não prevista, que
surpreende o leitor, e gera o efeito cômico. Silva (2007) defende
que o diferencial das tiras cômicas em relação aos outros gêneros
que se valem da linguagem dos quadrinhos, está na sua tipologia
ao romper com o padrão narrativo, pois “não há preocupação em
narrar uma história, mas sim de estabelecer uma visão crítica sobre
um fato, prevalecendo aí aspectos críticos sem uma sucessão de
fatos com transformação de um evento na vida dos personagens”
(p. 55). A sequência narrativa, nesse sentido, funciona como uma
espécie de argumentação indireta, de modo que os personagens
e o narrador representam vozes sociais.

158
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Levando-se em consideração a concepção de domínio dis-


cursivo, as tiras cômicas se situam no âmbito do humor e nessa
esfera que o leitor participa, interage, buscando reconhecer uma
crítica. Nessa esfera, um conjunto de práticas sociais orientadas
para a produção do efeito risível é mobilizado. Assim, o efeito de
sentido fora do convencional, que rompe com as expectativas do
leitor é produzido e aceito, dentro de uma determinada cultura,
com seus valores, ideologia e percepção de mundo. Dessa maneira,
dessacralizam-se instituições, relativizam-se verdades inquestioná-
veis, colocam-se vozes e discursos em disputa.
A quebra de expectativa, então, está condicionada às inferên-
cias construídas pelo leitor, a partir de seu conhecimento de mun-
do, de suas experiências vividas dentro de seu contexto social. A
surpresa, já esperada pelo leitor, só é efetivada, se, no processo de
interação com as tiras cômicas, ele construir sentidos ao associá-las
aos modelos de representações sociais que já lhe são familiares.
Os quadrinhos inevitavelmente carregam valores, concepções,
sentimentos, e ideologias e, por isso, qualquer produção, por mais
aparentemente distante da realidade que possa parecer, no fundo
é manifestação de algum aspecto social. A argumentação, então,
nesses textos, suscita contradições, um jogo polêmico de ideias
e posições, é nessa arena de disputa de significados que o riso
acontece. Dessa maneira, o dialogismo se configura como uma
estratégia para o estabelecimento do sentido e do humor. Nesse
sentido, até mesmo a posição do enunciador (autor) é polifônica,
pois sua voz se torna um misto de vozes de personagens que en-
tram em diálogo, sob perspectivas aparentemente independentes.
O humor é crítico e é nesse sentido que o leitor é levado a
interagir com o texto, de modo ativo, aderindo às concepções,
aos valores, às ideologias postas e discutidas nele. A compreen-
são das tiras cômicas passa também pelos discursos retomados,
que se opõem ou que confirmam as ideologias presentes. As tiras
cômicas revelam posicionamentos da sociedade de uma forma

159
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

diferente, convocam ao riso, desnudando discursos que se quer


questionar. Os temas, então, são os mais variados, como religião,
etnia, o cotidiano, hierarquia, autoridade, e tantos outros, poden-
do representar as vozes dominantes, em favor da manutenção do
status quo, ou as vozes silenciadas, reprimidas historicamente, num
viés mais progressista.
Os estereótipos também são constituintes das tiras cômicas. As
fisionomias, as deformidades, a caricatura são formas de revelar aos
leitores quem as personagens representam de modo mais rápido,
devido ao formato curto, conforme já discutido anteriormente.
Para reconhecer as vozes refletidas nas tiras é necessário que o
leitor seja capaz de interagir com as várias possibilidades sociais
de significar propostas na articulação das imagens e palavras.
Vale reforçar que o discurso nas tiras cômicas não é neutro,
refletindo posicionamentos, valores naturalizados, as crenças so-
ciais e políticas, os aspectos culturais que repercutem no âmbito
individual. Dessa maneira, as escolhas linguísticas, o uso das es-
tratégias da linguagem dos quadrinhos para os efeitos de humor
carregam significados múltiplos, questionando vozes nas diversas
esferas sociais. Soma-se a isso a variedade linguística, que também
é comumente encontrada nas tiras cômicas. Dependendo das in-
tenções e estratégias de humor, o artista pode mesclar os falares
de toda ordem, como o popular urbano, gírias, termos vulgares,
dialetos sociais, regionais, etc.
É a partir desses aspectos que as tiras cômicas dialogam com
os textos do passado, com as tradições, trazendo à luz novas per-
cepções, num viés humorístico. É nesse lugar do riso, que julga,
avalia e questiona a sociedade, buscando repercutir o seu discurso
no leitor e convencê-lo de seu posicionamento. As mídias virtuais
tornaram esse aspecto mais visível, pois os artistas publicam e,
rapidamente, recebem respostas dos leitores.
Fica evidente que considerar as tiras cômicas um gênero sim-
ples é cometer um equívoco. O processo de construção de sentido

160
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

é complexo e realizado por meio da articulação entre o verbal e o


visual. Essa articulação se configura a partir dos dados contextu-
ais e situacionais de onde circula a produção quadrinística e aos
conhecimentos prévios que se imagina do leitor (RAMOS, 2017, p.
79). Todo esse processo não é dado, mas construído, pois as tiras
cômicas são produtos sociais e históricos (VIANA, 2013, p. 21).
As tiras cômicas nada possuem de neutralidade ou inocência
e, assim, podem reforçar valores dominantes, reproduzindo suas
ideias, ou podem contestá-los, buscando a superação das diver-
sas manifestações de desigualdades. Nos dois casos, o humor se
configura estratégia potente para além do riso, sua função social
básica, desvelar os valores, as ideologias, as vozes, problematizar
questões sociais, políticas, econômicas, culturais. O quadrinista faz
suas escolhas ao produzir, o leitor faz suas escolhas ao ler: qual é o
posicionamento assumido? Quais interesses são atendidos? Quais
vozes são representadas? Quais vozes são silenciadas? Quais são
os limites do fazer graça?
Nessa ótica, pretendi estimular uma leitura que desenvolvesse
a percepção das relações de poder envolvidas, das vozes sociais, e
desafiar as concepções e valores usuais ao explorar múltiplas pers-
pectivas, imaginando aquelas que estão ausentes ou silenciadas.
Como esse gênero, através do riso, busca subverter a ordem ou
reforçá-la, abordando relações de poder presentes no cotidiano,
nas vivências e experiências humanas, a problematização das di-
ferenças, das desigualdades, das injustiças a partir dele pode nos
oferecer condições para desnaturalizar essas questões.

PROCEDIMENTOS DA PESQUISA

A metodologia empregada foi a pesquisa-ação socialmente


crítica (TRIPP, 1990). Isso porque ela permite uma reflexão sobre
a prática, a implementação de mudanças e a teorização sobre o
aprimoramento, a partir do engajamento em um processo plane-
jado, sistemático e documentado de aperfeiçoamento na prática

161
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

cotidiana. O viés crítico se estabelece quando se agrega as caracte-


rísticas da pesquisa-ação ao compromisso consciente com a crítica
social e com a promoção de mudanças, aspirando à justiça social.
Assim, o que motivou a pesquisa foram as dificuldades
que enfrentava ao negociar os sentidos das tiras cômicas com os
meus alunos, procurando analisar criticamente a diversidade de
discursos e vozes e as relações de poder neles presentes. Reconhe-
ço que inicialmente me alinhava a uma visão mais conservadora
do letramento escolar que, conforme Oliveira (2013, p. 173), tem
munido os estudantes de uma tecnologia, “o acesso à escrita”, em
vez de ajudá-los na construção de um saber, “o acesso ao mundo
da escrita”. Mas o processo de pesquisa evidenciou alguns aspec-
tos importantes para uma prática pedagógica mais significativa e
situada.

O CONTEXTO DA PESQUISA

A presente pesquisa se desenvolveu com uma turma de nono


ano do ensino fundamental, da rede pública de ensino do muni-
cípio de Rio das Ostras/RJ. A escola fica na zona urbana e atende,
atualmente, a estudantes de 6º a 9° anos do Ensino Fundamental.
A maioria dos discentes da unidade escola é de classe média baixa,
havendo alguns educandos envolvidos com o uso e a venda de dro-
gas. Outra característica marcante da escola é receber, ao longo do
ano, estudantes de diversas localidades do país, proporcionando
a convivência de indivíduos com culturas e costumes diversos,
porém a saída de estudantes também é frequente. Segundo relato
dos educandos, esse alto índice migratório é motivado por dois
fatores principais: oportunidades de emprego no setor petrolífero
(levando-se em conta as oscilações econômicas) e fuga da violência
das grandes cidades.
Cabe ainda ressaltar que, se essas entradas e saídas de estu-
dantes realçam ainda mais a diversidade cultural, considerando-se
que os estudantes são oriundos de vários lugares do Brasil, elas

162
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

colocam como desafio a criação de condições democráticas de


aprendizagem. Isso porque, além de os estudantes estarem em
diferentes estágios de aprendizagem, em situações de sofrimento
e em descolamento, é comum que os recém-chegados sofram pre-
conceitos por seu modo de falar, por seu comportamento diferente
e por suas características físicas. Há, geralmente, uma postura
excludente de alguns estudantes já adaptados à escola, em vez de
uma visão mais inclusiva.
Esses dados revelam uma realidade em que os estudantes diver-
giam em relação aos seus gostos pessoais, considerando-se a cultura
local de cada estudante, e, ao mesmo tempo, estavam conectados ao
mundo através da internet, imersos nesse contexto de informação de
textos multimodais. Mesmo nesse ambiente de diversidade, observa-
se a dificuldade dos estudantes de se respeitarem e estabelecerem
relações mais colaborativas, ao invés de se dividirem apenas em
grupos de interesses comuns, estabelecendo-se um clima de animo-
sidade e distanciamento. Além disso, ao realizarmos leituras de tiras
cômicas nos livros didáticos, muitos educandos apresentaram posi-
cionamentos mais conservadores ou da classe dominante, da qual
não fazem parte, e mostram-se acostumados a realizar atividades
em que se configura a noção de busca da resposta única, ou seja, a
“certa”, sem se explorar múltiplos sentidos possíveis.

PRÁTICA DESENVOLVIDA

A formulação do quadro 01 a seguir foi antecedida por uma


reflexão sobre os pontos negativos e positivos de atividades
aplicadas ao longo da pesquisa juntamente com a análise do con-
texto e especificidades da turma. Assim, a proposta pedagógica
buscou atender às necessidades do grupo, além de favorecer uma
aprendizagem colaborativa, dividindo-a em cinco etapas. Nessa
exposição, apresentaremos apenas a aplicação de três etapas: o
momento 01, o momento 02 e o momento 03. Para conhecer a
proposta completa, conferir Silva (2018).

163
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Quadro 01: Sequência de atividades com as tiras cômicas

Fonte: quadro elaborado pelo autor.

CENAS DE SALA DE AULA

Nessa seção apresento alguns fragmentos dos momentos da


prática desenvolvida em sala de aula.

Momento 01: compartilhando a proposta


Essa etapa teve início com o pedido aos educandos para que
levassem tiras cômicas na aula seguinte, para que iniciássemos o
projeto. Os estudantes questionaram o porquê dessa solicitação e
expliquei que seria para que pudéssemos ler, compartilhar, identi-
ficar elementos do gênero, as suas finalidades, onde circulam. Eles
ainda não se mostravam satisfeitos com essa resposta, e a pergunta
de um deles elucidou a razão dos questionamentos, como nesse
trecho de diálogo1 anotado por mim no diário de pesquisa.

Diálogo 1
[Estudante 1] – Não é para ficar fazendo exercício não, né?
[Professor] – Como assim?
[Estudante 1] – Ah, ficar respondendo um monte de exercício chato!
[Professor] – Ah, agora entendi o seu questionamento... Não vamos
fazer um monte de exercício. Vamos fazer algumas atividades sim,

164
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

mas de outro tipo... A minha ideia é conversar com vocês sobre as


tiras, entendermos algumas coisas juntos, saber que conhecimen-
tos vocês já tem sobre o gênero, quais tiras vocês leem. Mas tudo
oralmente... Vocês acham que assim é melhor?
[Estudante 2] – Ah... Só quero ver professor!
[Estudante 3] – Tem sempre uma coisa de gramática nisso, e tem de
ficar escrevendo, escrevendo...
[Professor] – Gente, nessa primeira etapa, a ideia é que seja mais
conversa. Na verdade, espero que seja em todas... Mas em alguns
momentos precisaremos pontuar algumas coisas de modo escrito.
Conto com a participação de vocês para conseguirmos fazer da
melhor maneira.

Após esse diálogo, os estudantes passaram a se questionar


sobre qual levariam e se precisava ser impresso. Como já man-
tínhamos um grupo de conversa no whatsapp, combinamos que,
quem quisesse, poderia enviar a sua tira pelo grupo ou levar
impressa para sala de aula. Dessa primeira conversa, destaco o
crescente interesse dos estudantes pela atividade. Estudantes que
participavam pouco em outras aulas solicitavam a fala, e faziam
comentários também sobre os memes, de como eram engraçados
e que as tiras cômicas também eram muito divertidas. Depois de
ouvi-los, encerrei a discussão, propondo que continuássemos na
próxima aula com as tiras selecionadas por eles.
Pouco após o encerramento da aula nesse dia, os estudantes
passaram a compartilhar no grupo de whatsapp da turma algumas
tiras. Inicialmente, estudante 5 queria saber se a que ele escolheu
servia. Após isso, outros estudantes passaram a compartilhar e a
comentar as tiras também. Algumas dessas tiras eram bastante
ofensivas ou de cunho sexual, porém, sem que eu tivesse feito
quaisquer restrições, nenhuma dessas foi levada para a sala de
aula pelos educandos. Alguns, no próprio grupo, já afirmaram que
escolheram outras produções, mas que tinham também encontrado
essas outras durante a pesquisa.

165
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Na aula seguinte, sentados em semicírculos, os estudantes


espontaneamente foram compartilhando as tiras levadas uns com
os outros. Por cerca de 20 minutos houve bastante interação e
entusiasmo com as leituras realizadas. A partir disso, perguntei se
alguém queria discutir a tira que trouxe. O estudante 10 se dispôs
a comentar a sua tira (Figura 01) a seguir:

Figura 01 – Tira Monalisa de Pijamas (Raquel Gompy)

Fonte: GOMPY, Raquel. Blog Monalisa de Pijamas. 2010. Disponível em:<http://www.


monalisadepijamas.com.br/tiras/monalisa-de-pijamas-em-quadrinhos-tira-13>. Acesso
em: 10 nov. 2017

O estudante 10 afirmou que considerou engraçado o fato de


“estar todo mundo querendo controlar todo mundo”. A estudante
11 afirmou que precisava daquele livro que ensina a adestrar os
pais, provocando o riso e a aprovação dos colegas. Questionei por
que a relação com os pais não era tão fácil, qual era o problema,
desencadeando no diálogo a seguir:

Diálogo 2
[Professor] – Por que vocês acham que a relação com os pais nem
sempre é fácil?
[Estudante 11] – Professor, eles só querem mandar. Eu tô no celular, e
minha mãe pede para guardar, mas ela fica o tempo todo no celular.
Por que ela pode?
[Estudante 9] – É assim mesmo. Eu tenho que arrumar a casa, fazer
um monte de coisas, mas quando eu quero sair, ainda sou criança
pra isso. Celular, nem fala, maior saco isso...
[Estudante 12] – Minha mãe reclama, mas não muito. Deixa de boa
eu mexer.

166
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

[Estudante 13] – Lá em casa é uma implicância também, não posso


pegar o celular que minha diz: ‘Larga esse celular, e arruma alguma
coisa para fazer!’. Um saco!
[Estudante 1] – Minha mãe fica o dia todo fora trabalhando, não
tenho esse problema.
[Professor] – A tira nos dá a possibilidade de pensar que as relações
humanas de qualquer tipo, entre pai e mãe com filhos e filhas, entre
o casal, demonstram relações de poder. Isso se reflete na sociedade
também, na vida fora de casa. Como [estudante 10] disse, “há uma
tentativa de controlar comportamentos, modo de ser, de agir...”. É
importante que vocês façam essa leitura nos textos, nos discursos...
Então, vocês acham que esse texto pode ter o interesse de criticar
como nos relacionamos?
[Estudante 14] – Professor, esse texto pode ser um aviso para aqueles
que não percebem que o mundo é assim.

A discussão sobre a tira se estendeu um pouco mais, mas,


após concluirmos essa temática, direcionei a conversa para o
conhecimento dos estudantes sobre as tiras. Eles destacaram o
humor como elemento fundamental do gênero, além de também
afirmarem que precisavam ser “curtos e rápidos”, mostrando co-
nhecimento em relação à estrutura. Em relação à presença das tiras
cômicas no livro didático, aconteceu o seguinte diálogo:

Diálogo 3
[Estudante 1] – Professor, de boa, hein? Mas o livro às vezes mata
o texto. Olha aqui o livro, olha essa... [Folheando livro, ele abriu na
página 84]. Olha aqui, tá perguntando qual é a oração... Essa parada
de subordinada faz perder a graça.
[Professor] – Entendo o seu questionamento e é importante. Real-
mente, essa é a dificuldade não só do livro, mas também do professor.
Quando você lê a tira em outro ambiente, você tem os seus objetivos,
mas na escola esses objetivos se alteram. Nunca vai ser igual. Mas
você não acha melhor falar de oração subordinada assim? [Nesse
momento, houve alguns risos na turma]. Ué, por que vocês riram?
[Estudante 16] – Pô, professor, melhor seria não falar disso... Ninguém
entende esse negócio de subordinada.
[Estudante 1] – Professor, eu até entendo um pouco, mas é chato,

167
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ler tiras para isso... Mas, na moral, é melhor lendo tiras.


[Professor] – Acredito que podemos nos aproximar dos usos que
fazemos fora da escola. Mas acho importante aproveitar esses textos
que vocês gostam para que vocês desenvolvam as habilidades de
leitura de vocês. Como falei, não vai ser igual, o objetivo aqui na
escola é outro, mas, ao rir, podemos criticar, reconhecer as vozes
representadas, refletir sobre os implícitos construídos e construir
sentidos, concordando ou discordando. Se os exercícios gramaticais,
e no livro didático puderem ser a partir também das tiras e de forma
contextualizada para vocês entenderem, acho que é muito melhor.
[Estudante 17] – Professor, hoje tá legal, a gente está falando bas-
tante. Mas no final, a gente vai ficar respondendo um monte de
pergunta chata igual a do livro?
[Professor] – Estou preparando as atividades e fazendo essas son-
dagens para que as atividades sejam mais significativas para vocês.
Como vocês acham que seria interessante?
[Estudante 12] – Eu gosto de debater. É bem legal e a gente escreve
menos.
[Estudante 11] – Gosto de debater não. Só dá briga. Cada um tem
sua opinião e pronto.
[Estudante 14] – Eu adoro irritar os outros nos debates.
[Professor] – A gente pode fazer atividades de discussão em grupos
menores. Podemos reconstruir tiras... Mas lembrando, estamos na
escola, o nosso objetivo é a aprendizagem. Então as nossas leituras
podem ser para rir, mas vamos ampliar? Vamos criticar também?
Vamos desafiar os sentidos e valores usuais? Por exemplo: por que
o pobre é visto de um certo jeito? Por que a mulher é vista de um
certo jeito? Será que os representa mesmo ou não? A participação
de vocês é essencial, as leituras que vocês trazem são importantes.
Vamos entender como funciona o discurso e que vozes represen-
tam? Elas representam vocês? Vocês discordam e por quê? Os textos
seguem que interesses? Podemos rir com as tiras, mas podemos
ampliar a nossa visão de mundo também. O que acham?

A turma ficou em silêncio ao ouvir essas palavras, perguntei se


concordavam ou não. O estudante 18, que não havia participado
até esse momento, falou o seguinte: “Aí faz sentido, professor”. Os
outros estudantes, logo após, disseram concordar. Nesse primei-
ro momento, ainda tivemos outras interações mais é importante

168
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

destacar o engajamento dos estudantes nas atividades e de como


envolvê-los na busca pelos textos possibilitou maior participação,
além de discussões bastante significativas.

Momento 02: aspectos comunicativos


Nessa etapa, o aspecto comunicativo foi valorizado aliando-o
à percepção das ideologias envolvidas na construção dos perso-
nagens e das histórias. A partir da discussão “fazer rir” e “fazer
refletir”, os estudantes dividiram-se em grupos para analisarem
duas tiras de assuntos afins, mas com pontos de vista divergentes.
Rapidamente os estudantes se organizaram e fizemos a distribuição
das duas tiras por grupo. Depois de alguns minutos de conversa
entre eles, a proposta era a discussão do grupo com o professor
sobre as concepções em torno do texto, as vozes representadas ou
silenciadas, o objetivo comunicativo, a ideologia presente. Destaco
uma das discussões em que o tema “Suicídio” foi trabalhado.
O grupo, composto pelos estudantes 26, estudante 13, estu-
dante 6, estudante 15, estudante 8, estudante 22 e estudante 4 me
chamou para conciliar um impasse na discussão deles. Eles haviam
recebido as seguintes tiras (Figuras 2 e 3):

Figura 2 – Tira “Continue vivo” (Raquel Segal)

Fonte: SEGAL, Raquel. Fanpage Aquele eita. Disponível em:<https://www.facebook.


com/AqueleEita/photos. Acesso em: 10 nov. 2017. É importante destacar que a tira faz
parte da campanha “Setembro Amarelo”, que tem como objetivo a prevenção contra o
suicídio. (Cf.: cvv.org.br)

169
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Figura 3 – Tira “Rafael, o pensador 2”

Fonte: MARÇAL, Rafael. Blog Vacilândia. 2012. Disponível em:< http://vacilandia.com/


tag/suicida/>. Acesso em: 10 nov. 2017

O grupo havia identificado que o suicídio é tratado nas duas


tiras, mas com abordagens diferentes. Sobre a tira “Continue vivo”
(Figura 2), o grupo afirmou que havia a defesa pela liberdade de
viver. Já a segunda (Figura 3), o grupo considerou que se tratava de
uma reclamação em relação à impossibilidade do personagem de
fazer piadas sem que algum grupo social se queixasse. Disseram
ainda que a tira (figura 2) não tinha humor, mas era importante para
esclarecer sobre a questão do suicídio, e a tira (figura 3) foi consi-
derada muito engraçada, fazendo com que gostassem mais dessa.
A razão de chamarem o professor foi por conta da dificuldade,
segundo eles, do estudante 26 em compreender a tira “Continue
Vivo”. O diálogo que se desenvolveu foi o seguinte:

Diálogo 4
[Estudante 26] - Entendi nada, professor, muito difícil. O que ele quer
dizer aqui? Por que alguém deixaria de fazer essas coisas?
[Professor] – Bom. Você de repente não conseguiu associar as in-
formações ao seu conhecimento prévio e fazer inferências. Veja a
imagem, está em que cor? Está fazendo referência a quê? Essa tira foi
publicada no mês do setembro amarelo... Sabe o que isso significa?
Os desenhos em cada quadro se referem a quê? A que atividades?
[Estudante 26] - Professor, sei lá! Ele fez isso para alguém não se
matar?
[Professor] - O que a tira, então orienta? (Antes de fazer a pergun-
ta, falei do setembro amarelo, sobre a campanha de prevenção e
esclarecimento sobre o tema.)

170
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

[Estudante 26] - Então essa tira é para quem quer se matar? Então
é só dizer isso para a pessoa que ela não se mata?
[Professor] - O que você acha?
[Estudante 26] - Acho que não!
[Professor] - Então essa tira só pode ser lida por quem quer se matar?
[Estudante 26] - Não, eu não quero me matar e estou lendo.
[Professor] - Então, quando você lê, o que sente?
[Estudante 26] - Dizer isso para a pessoa. Essas coisas tão simples?
Dá certo?
[Professor] - Acho que só isso não. Acho que não é só isso. Mas per-
cebe como a pessoa deixa de dar valor para as coisas mais simples?
Será que isso é fácil? Como essa pessoa deve estar se sentindo?
Tenta se colocar no lugar dessa pessoa...
[Estudante 13] – (gritando) - Nossa, professor! Que triste! Como
essa pessoa está sofrendo! Que dor! Que tristeza! Poxa, [Estudante
26], é muito triste!
[Professor] - Sim, deve ser terrível!
[Estudante 26] - Sim, ela não está assim à toa, a gente tem que ajudar
quem se sente assim.
[Professor] - A segunda tira ajuda alguém que está passando por
isso? O posicionamento da tira dá voz a pessoas com esse problema,
defendendo a ajuda?
[Estudante 13] - Não, professor! É pesadão! Que horrível! Ele não
está nem aí.
[Estudante 26] - Professor, eu tinha rido. Agora estou achando bem
egoísta, que horrível. Mas tem muita coisa assim que eu leio e rio.
[Professor] - Vale tudo para fazer rir?
[Estudante 26] - Sei lá, professor, é muito difícil. Mas acho que não...
Muitos textos que leio são assim...
[Professor] – Sim... Nas redes sociais, no meio virtual em geral têm
vários textos assim. E quando não procuramos, enviam para gente.
Muitos textos contendo inverdades. Precisamos ler e buscar os
interesses por trás do que está dito. Como o texto nos posiciona?
Nessa tira (2), como você, leitor, é posicionado?
[Estudante 26] – Ele quer que eu concorde. Que diga que tá tudo
chato. Ele é egoísta. Só pensa nele e quer que pense igual.

Inicialmente, os estudantes estavam preocupados em res-


ponder a proposta, mas, com o debate gerado, suas expectativas

171
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

mudaram e o diálogo se ampliou para uma reflexão sobre como


ajudar pessoas que passam por situações parecidas. Discutiram,
também, sobre como poderiam ajudar amigos que passam por ou-
tros tipos de problemas psicológicos e também voltaram a discutir
sobre bullying. Importante destacar que nesse grupo a interação foi
produtiva, os estudantes se posicionaram, ouviram uns aos outros,
buscaram construir os sentidos juntos.

Momento final: avaliação formativa


Nessa etapa pedi aos estudantes algumas atividades, mas sem
a intenção de fazer uma classificação objetiva, pelo contrário, as
atividades foram propostas com o objetivo de perceber alguns
efeitos da prática implementada. Busquei, assim, o retorno dos
estudantes, para compreender a receptividade, algumas reações
e expectativas atendidas ou não. Cabe ressaltar que eu disse aos
estudantes que eles não precisavam se identificar nas atividades,
só se quisessem fazer isso, assim, poderiam expor livremente
suas opiniões. Mas praticamente todos os estudantes presentes
afirmaram que faziam questão de se identificar, e até mesmo os
três estudantes que não responderam fizeram isso. Assim, seguem
abaixo algumas das respostas dos estudantes a partir das quais
pude refletir sobre mudanças, acertos e erros:

Resposta da estudante 3: “Foi genial a forma como trabalhamos,


e aprendi várias coisas com as tiras que não sabia. O modo como
as imagens ‘falam’ é divertido, foi incrível desenvolver opiniões
sobre isso.”

A percepção de que as imagens são também construções


ideológicas fez com que a estudante 3 participasse ativamente do
projeto. Esse apontamento é relevante, pois essa estudante geral-
mente não se sentia motivada nas aulas. Conhecer os interesses
dela (como a produção de fanfics), as temáticas que a motivam,
possibilitou implementar uma abordagem mais contextualizada
não só no projeto com as tiras cômicas, mas em todas as aulas.

172
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Resposta da estudante 24: “Ótimo. Deveria ser ‘realizados’ em


outros lugares, mostrar o mundo como as pessoas se sentem, que
devemos ter um limite, que podemos magoar os outros...”

Essa estudante era a que mais sofria com as brincadeiras


ofensivas dos colegas de turma. Era comum eu ter de intervir, já
que as hostilidades eram muito frequentes, levando ao descon-
trole emocional da estudante. Mas, ao longo do projeto, ficou
evidente o quanto ela conseguiu superar a sua dificuldade de
se posicionar, o quanto a agressividade da turma diminuiu, pois
passaram a demonstrar mais constrangimento em relação às
atitudes anteriores.

Figura 6 - Resposta do estudante 14: “É um caminho interessante


para interagir com nós alunos e ainda descobrir nossos meios de
pensar, 1 pesquisa interessante que acabou aproximando a turma”.

O estudante 14 também reclamava bastante de que a escola


era monótona, e de que eles ficavam presos, sem fazer ativi-
dades interessantes. Ele chegou à turma no ano de 2017, mas
logo se tornou uma liderança por sua facilidade de argumentar
e ridicularizar alguns dos colegas da turma. A relação também
não era amistosa com os professores, pouco interagia nas
aulas, restringindo-se a conversas paralelas ou ao uso de seu
smartphone. Na descrição das atividades anteriores, é possível
identificar a mudança de atitude do estudante e sua constante
interação tanto nos grupos maiores como nos menores, realizan-
do as atividades de maneira colaborativa. Por conta da pesquisa
mantivemos muitas conversas e percebi que ele passou a me
consultar diante de quaisquer dúvidas.
Ao final da última aula do projeto, o estudante 14 me procu-
rou e estabelecemos uma conversa que revela um pouco do que
foi conseguido ao longo do projeto. Segue um trecho do diálogo
que tivemos.

173
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Diálogo 21
[Estudante 14] – Quais são os objetivos da sua pesquisa mesmo?
[Professor] – São alguns objetivos e, sobre o meu aprimoramento
pessoal, a ampliação do potencial crítico de vocês utilizando as tiras
cômicas, melhorar a relação entre os alunos e de vocês comigo...
[Estudante 14] – Professor, você acha que conseguiu alcançar seu
objetivo?
[Professor] – Acredito que alguns sim... Não quer dizer que foi tudo
perfeito, tivemos problemas com datas, com o uso dessa sala de
multimeios...
[Estudante 14] – E nós? Você acha que sim? Que melhorou?
[Professor] – Posso falar de você, por exemplo? Como você era antes
comigo? Nem falava comigo...
[Estudante 14] – Ah, professor, não era com você. Não gostava de
algumas aulas. Escola é um saco.
[Professor] – Mas viu como agora você está mais próximo? Senta
até mais perto de mim na sala...
[Estudante 14] – Ih, professor, é mesmo...
[Professor] – Reparou como você participou muito de cada etapa
e brigou menos?
[Estudante 14] – Ih, é mesmo (pausa)... Você não fez tantas coisas
diferentes, mas parece mais legal agora, dá vontade de falar, parti-
cipar... Tá ‘mó’legal!
[Professor] – Viu como muita coisa deu certo? Vocês analisaram di-
versas tiras, leram também outros textos, vocês desafiaram sentidos
já construídos, criaram outros...
[Estudante 14] – E está todo mundo muito mais amigo agora...

Para os estudantes, a proximidade com a realidade deles, a


possibilidade de serem ouvidos e terem suas opiniões respeita-
das proporcionaram momentos de interação que fortaleceram
amizades. Observei que as diferenças se tornaram oportunidades
de ouvir, de se posicionar, de se desenvolver, de conhecer novas
perspectivas, de entender o outro, de aprender, de conversar sobre
temas delicados de forma mais empática e sensível.

174
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O potencial das tiras cômicas no ensino-aprendizagem a par-


tir de uma perspectiva crítica é enorme. Assim, num contexto de
diferenças e de desigualdade, pude desenvolver juntamente com
os educandos uma proposta pedagógica baseada no Letramento
Crítico, privilegiando momentos de diálogo, de interação, para a
construção de sentidos, além do desenvolvimento da percepção
crítica, da empatia e da agência para a mudança social.
O envolvimento dos estudantes aconteceu de forma satisfa-
tória, quando entenderam que não leriam apenas para responder
questionários ou realizar atividades descontextualizadas. Ao leva-
rem os textos, os educandos tiveram mais facilidade de desafiar
suas perspectivas e discursos, buscando perceber as vozes presen-
tes e ausentes e quais os representavam. A negociação de sentidos
foi intensa com os colegas, com outros textos e com o professor,
além de reconstruírem textos. Notadamente, eles puderam ampliar
seus horizontes de leitura, envolvidos em situações que permitiram
ricas reflexões e ações.
O papel do professor também foi ressignificado. Isso porque,
para a criação de um ambiente de aprendizagem mais democrá-
tico, culturalmente sensível, inclusivo e colaborativo, foi neces-
sário assumir uma postura mais propositiva e menos impositiva,
valorizando acordos, e buscando negociar os sentidos do texto,
e, principalmente, ouvir os estudantes. Assim, pude criticar-me,
para exercer, não só num plano teórico ou ideal, mas na prática
diária, uma postura mais democrática e dialógica, respeitando os
discursos que circulam em sala de aula para que a formação crítica
do leitor de fato fosse possível.
O gênero discursivo em sala de aula se transforma, mas a apro-
ximação com o contexto de uso facilitou as discussões, principal-
mente, quando estavam nos grupos menores. Os estudantes riram,
refletiram, opinaram, ouviram, reconstruíram os textos. Houve,

175
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

assim, o envolvimento dos educandos em atividades de letramento


escolar significativas, buscando entender as ideologias presentes,
as vozes silenciadas, percebendo-se representados ou não, ou seja,
perceberam-se construtores de sentidos, sujeitos históricos, bus-
cando melhores fontes de informação e outras versões disponíveis.

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177
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O LUGAR ONDE VIVO: SÓ MATO, BARRO E


TIRO?!: UMA EXPERIÊNCIA DE LETRAMENTO CRÍTICO
NO NONO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

Izabelle Cristina Siqueira Vieira Abboud

INTRODUÇÃO

Nesse capítulo, proponho-me a discorrer sobre uma experiên-


cia marcante de reconhecimento e materialização do letramento
crítico nas aulas de língua portuguesa, em uma pesquisa-ação
desenvolvida por mim enquanto mestranda do PROFLETRAS (Mes-
trado Profissional em Letras) e docente na Escola Municipal Genésio
da Costa Cotrim, da Rede Municipal de Itaboraí (E.M.G.C.C.), no
Rio de Janeiro, no ano letivo de 2016.
É preciso reconhecer, a princípio, que o desenvolvimento
de um trabalho nessa perspectiva, que visa ampliar a relação dos
discentes com a linguagem e com o mundo que o cerca não é uma
tarefa neutra, tampouco fácil. Contudo, ao assumir uma postura
crítica no fazer pedagógico é possível estar mais atento às espe-
cificidades desses sujeitos, a sua historicidade, assim como aos
letramentos valorizados por eles. Dessa forma, é possível, como
afirma Jordão (2016, p.41) trilhar novos caminhos “de aprendiza-
gens e satisfação mútuas”.
A princípio, irei expor algumas considerações a respeito do
ensino- aprendizagem da leitura no nono ano do Ensino funda-
mental, salientando que as expectativas e a realidade pesquisada

179
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

encontravam-se muito destoantes. Em seguida, tecerei algumas


considerações sobre o letramento crítico, doravante LC, e de como
essa abordagem pode contribuir para ambiente escolar e para o
desenvolvimento da consciência crítica e do engajamento social
dos sujeitos envolvidos.
Após essas considerações, descreverei a metodologia privi-
legiada, a pesquisa-ação1, apresentando suas características e a
materialização dessas no contexto escolar investigado. Logo após,
compartilharei alguns importantes dados a respeito da localidade
pesquisada, dos sujeitos investigados e de suas relações com práti-
cas de letramento escolares e sociais, para enfim, apresentar uma
experiência de letramento crítico no nono ano do ensino funda-
mental que compôs o ciclo denominado “Ensaio de intervenção no
Mestrado Profissional, no qual os sujeitos envolvidos exercitaram
um olhar mais aprofundado e crítico a respeito dos seus pares, dos
textos selecionados e de algumas estratégias de leituras.

O ENSINO-APRENDIZAGEM DA LEITURA NO NONO ANO DO


ENSINO FUNDAMENTAL: EXPECTATIVAS X REALIDADE.

No que se refere ao exercício crítico e pedagógico de práticas


de leitura com alunos concluintes do ensino fundamental espera-
se, que esses sujeitos já sejam capazes de:

• Compreender o sentido nas mensagens orais e escritas de que é


destinatário direto ou indireto, desenvolvendo sensibilidade para
reconhecer a intencionalidade implícita e conteúdos discriminató-
rios ou persuasivos, especialmente nas mensagens veiculadas pelos
meios de comunicação;

• Ler autonomamente diferentes textos dos gêneros previstos para


o ciclo, sabendo identificar aqueles que respondem às suas necessi-
dades imediatas e selecionar estratégias adequadas para abordá-los;

1 “O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

180
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

• Utilizar a linguagem para expressar sentimentos, experiências


e ideias, acolhendo, interpretando e considerando os das outras
pessoas e respeitando os diferentes modos de falar;
(BRASIL, 1998, p. 79-80)

Presume-se, como vemos nos documentos oficiais, que por


já terem participado de diversas interações com a leitura e com
a escrita venham apresentar um maior interesse, autonomia e
iniciativa nessas práticas. Da mesma forma, que façam uso de di-
ferentes estratégias e procedimentos de compreensão do texto e
que tenham maior intimidade com a leitura e com a escrita.
Nos anos em que foi desenvolvida a pesquisa-ação com os
grupos de formandos, obtive acesso aos resultados das Provas
Brasil de 2013, na qual a rede municipal de Itaboraí estava aquém
dos índices esperados, com o índice do IDEB2 inferior ao esperado
(3,3 para a média de 4,4) e, na mesma situação, estava a E.M.G.C.C.
com IDEB 3,2, bem como índices de aprendizado (4,55) e fluxo
(0,70) preocupantes.
Esses dados alertam para o fato de que os alunos dessa insti-
tuição ainda não alcançaram o desempenho esperado como mínimo
na avaliação da Prova Brasil3 em direção à meta nacional de IDEB,
e que para isso seria preciso percorrer um longo caminho. Já em
sala de aula, no desenvolvimento de algumas atividades prelimi-
nares de leitura e de interpretação de textos, notei muitos alunos
aguardando a leitura do professor e a explicação sistemática dos
enunciados antes de realizarem qualquer tarefa; não se sentindo
seguros com as suas interpretações; em muitas ocasiões não res-
2 O IDEB foi criado pelo Inep em 2007. Em uma escala de zero a dez, sintetiza dois conceitos
igualmente importantes para a qualidade da educação: aprovação e média de desempenho dos
estudantes em língua portuguesa e matemática. O indicador é calculado a partir dos dados sobre
aprovação escolar, obtidos no censo escolar e médias de desempenho nas avaliações do Inep:
o Saeb e a Prova Brasil (língua português-matemática).
3 Na Prova Brasil, o resultado do aluno é apresentado em pontos, numa escala (escala SAEB).
Discussões promovidas pelo comitê científico do movimento Todos Pela Educação, composto
por diversos especialistas em educação, indicaram a pontuação a partir da qual se pode consi-
derar que o aluno demonstrou o domínio da competência avaliada. Decidiu-se que, de acordo
com o número de pontos obtidos na Prova Brasil, os alunos serão distribuídos em 4 níveis em
uma escala de proficiência: insuficiente, básico, proficiente e avançado. Os níveis considerados
satisfatórios são o proficiente e o avançado.

181
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

pondendo aos comandos dos enunciados de interpretação de texto


de forma satisfatória; assim como não expressando relações de suas
leituras com outras já realizadas ou seus conhecimentos prévios.
Ao perceber que, para tais educandos, o domínio efetivo da
leitura e da escrita representava uma oportunidade ímpar “de
domínio do discurso nas diversas situações comunicativas”, nas
quais, muitas vezes, suas vozes e opiniões eram excluídas, consi-
derei que o investimento na perspectiva do LC poderia contribuir
para o desenvolvimento da consciência crítica e do engajamento
social deles.
Da mesma forma, esse exercício enseja a participação efetiva
desses jovens no mundo da escrita, promovendo outras possibili-
dades de participação social no exercício de sua cidadania (BRASIL,
1998), uma vez que, em tal abordagem, as práticas de leitura e da
escrita desenvolvidas convidam os alunos a reconhecerem a leitura
e os processos de significação textual como valiosos contributos
para sua formação cidadã, crítica e engajada.

LETRAMENTO CRÍTICO: CONTRIBUIÇÕES PARA O AMBIENTE


ESCOLAR E PARA O ENSINO DE LEITURA

O letramento crítico traz em si, pelo aspecto ideológico que o


compõe, uma grande e importante expansão do termo letramen-
to. Comber (2001), Duboc (2016), Green (1997), Jordão (2016) e
o compreendem como uma perspectiva educacional ampla, que
inclui novas posturas, intelectuais ou emocionais, que, por sua
vez, aprofundam o entendimento das ideias e das informações
referentes à linguagem e a diversas outras áreas curriculares.
Essa perspectiva é resultado de duas concepções histórico-
filosóficas críticas, a teoria crítica da educação e a pedagogia crítica
desenvolvida por Paulo Freire, que comungam de uma preocupação:
levar os sujeitos a movimentos de conscientização, emancipação e
transformação social. Embora não utilizasse o termo letramento,

182
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Paulo Freire foi um dos pioneiros a apontar a leitura e a escrita


como instrumentos libertadores. Já no final da década de 1960, o
autor inaugura diversos trabalhos (livros, artigos e publicações de
seu método) que buscam superar as visões tradicionais de aquisição
da escrita, da leitura, e, sobretudo, da educação.
Nesse sentido, a visão de alfabetização já ultrapassa uma noção
parcial de letramento, para ele era uma ampla prática discursiva
que:
[...] possibilitaria uma leitura crítica da realidade,
constitui-se como um importante instrumento de res-
gate da cidadania e reforça o engajamento do cidadão
nos movimentos sociais que lutam pela melhoria da
qualidade de vida e pela transformação social. (FREIRE,
1991, p. 68)

Como se vê, em Freire, o sentido de se aprender a escrita re-


sulta na possibilidade de inclusão, de participação e de intervenção
política do indivíduo na sociedade. Tal aprendizagem é sempre uma
relação dialógica, afetiva, pedagógica e, especialmente, histórica
e socialmente contextualizada.
O LC, no que lhe concerne, herda algumas dessas definições
e também as reconfigura no ambiente escolar, principalmente, no
que tange às relações existentes propostas por Freire. Nele, os
aprendizes passam a ser considerados como portadores de conhe-
cimentos, portanto, suas vozes, atitudes e percepções passam a
incorporar a rotina de diálogo em sala de aula.
A construção do conhecimento (e não extração) ocorre de for-
ma reflexiva e coletiva, abrindo-se espaço para o conflito e para o
questionamento. A esse respeito, Souza (2011, p. 133) observa que
a tarefa do letramento crítico é a de desenvolver uma percepção
e o entendimento acerca do outro, uma “consciência do não-eu”
(FREIRE, 2005), através da aprendizagem de uma escuta respeitosa.
A perspectiva do letramento crítico, por considerar todos esses

183
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

constitutivos no processo de significação textual, foi escolhida


como base para contribuir no ensino reflexivo da língua materna,
especificamente no trabalho pedagógico com a leitura.
Nessa perspectiva, passa-se a considerar outros contextos:
sociais, históricos, políticos, culturais, das relações de poder ex-
plícitas e veladas. Nas palavras de Janks (2016, p. 23), os textos,
nessa abordagem, são discursos, “representações parciais do
mundo” que refletem determinados pontos de vista e escolhas, e,
que, necessitam ser problematizados.
Vale destacar que o exercício reflexivo com o texto não se dá
de maneira fixa, tampouco de forma linear, mas sim de forma ampla
e dialógica. Diferentemente da simples atividade de leitura crítica,
no letramento crítico as diferentes percepções de um mesmo texto
não são excluídas, mas oportunizam o debate acerca de diversos
aspectos presentes no texto e também fora dele. O letramento
crítico, portanto, abre espaço para leituras múltiplas e contestáveis.
Janks em seu ensaio Panorama sobre o Letramento crítico afirma que:

[...] saber que textos não são neutros nos conclama


a desenvolver caminhos para ver de onde eles vêm e
reconhecer como são designados por nós, os leitores.
[...] nosso trabalho como ouvintes ou leitores é entender
a posição de quem fala ou escreve e decidir se eles se
mantêm ou não na mesma postura. É relevante fazer
algumas perguntas críticas: quem se beneficia e para
quem a posição ofertada é desvantajosa? Quem inclui?
Quem exclui [...] essas questões não são mais do que
variações da pergunta-chave para o letramento crítico:
quais interesses estão sendo atendidos? (JANKS, 2016,
p. 21)

Conforme afirma Janks, o aluno é levado a refletir criticamente


sobre aspectos pouco explorados no ambiente escolar, é convidado

184
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

a desfazer e a desconstruir o texto não para estudar seus constitu-


tivos gramaticais, prática representativa nas salas de aula, mas para
reconhecer as escolhas feitas na sua construção e para entender
as que foram ocultadas, para compreender as convenções que
orientaram determinado comportamento linguístico ali exposto.
Tal prática o auxilia a compreender que a leitura é uma atividade
ampla e a reconhecer a educação como uma forma política de
manutenção e/ou modificação da realidade Foucault (1970, p.123
apud JANKS, 2016, p. 35).
Dessa forma, essa abordagem visa a possibilitar a entrada e
o uso de outros textos, ainda que não legitimados pela cultura
dominante e a praticar a leitura como um movimento democrático
de respeito e de reconhecimento dos saberes e da realidade dos
discentes.

LETRAMENTO CRÍTICO E O DESENVOLVIMENTO DE ESTRATÉGIAS


SITUADAS DE LEITURA

Em nosso cotidiano, estamos envolvidos em diferentes eventos


de letramentos, ou seja, em diversas situações/atividades/episódios
nos quais “acessamos e usamos a escrita” (TERRA, 2009, p.48). Da
mesma forma, em algumas dessas interações, nas práticas de letra-
mento, há preconcepções ideológicas atreladas, que nos auxiliam
a compreender “tanto os comportamentos exercidos, quanto à
conceituação social e cultural que confere significado aos usos da
leitura e/ou da escrita”, Street (2014, p.18).
Nesses diferentes usos da leitura/escrita para diferentes ob-
jetivos, fazemos o uso (inconsciente, na maioria dos casos4) de
diferentes estratégias para construirmos significados. No L.C., tais
procedimentos são desenvolvidos considerando a sua natureza si-
4 Segundo Solé (1998, p.41; p.72), os processos envolvidos na leitura de um texto estão em sua
maioria inconscientes para o leitor, especialmente, para aqueles iniciantes ou não proficientes.
Segundo a autora, afora, quando nos deparamos com algum problema ou obstáculo que nos
impede a compreensão, não nos atentamos a dedicar a nossa atenção/tempo a questionar/usar
possíveis estratégias para resolver tal dificuldade. Essa atenção especial é denominada pela
autora de “estado estratégico”.

185
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

tuada, ou seja, inscritos em um modelo ideológico de letramento,


que também inscreve o leitor no texto e em contextos mais amplos.
Devido a esses fatores, não seria possível falar de fórmulas para o
alcance efetivo de tal tarefa.
Contudo, há caminhos já percorridos por alguns estudiosos
que apontam para uma atividade de significação do texto bastante
eficaz. Nos PCN, por exemplo, a leitura competente5 se dá num amplo
trabalho pedagógico com a linguagem, que engloba a utilização de
diferentes estratégias, tais como: “seleção, antecipação, inferência
e verificação de sentidos” (BRASIL, 1998, p. 69). Tal sequência con-
sidera a atividade de leitura como um processo, no qual hipóteses
são constantemente construídas.
Ainda nesse documento, há a sugestão de diferentes modos de
leitura a serem realizados: “leitura integral, inspecional, de revisão
e item a item” (p. 55), ou seja, apoia-se a diversidade, afirmando
ainda que todas essas e outras tarefas com o texto devem “possi-
bilitar ao aluno incorporar atitudes de confronto e posicionamento
crítico” (p. 57). Percebe-se, entretanto, que, por diversos motivos,
um trabalho mais demorado com o texto e esse exercício não tem
sido consolidado nas salas de aula.
Tecendo diálogos com a abordagem de Solé (1998), situada em
uma perspectiva cognitiva/construtivista da leitura e do ensino, é
possível repensar algumas dessas atitudes equivocadas adotadas
em sala de aula, assim como atentar para o desenvolvimento des-
sas e de outras estratégias a serem exploradas. A autora critica,
por exemplo, uma atividade que é utilizada de forma recorrente,
quando não exclusiva, em sala de aula: a formulação de perguntas
logo após o texto lido. Esse exercício é uma forma comum de o
docente obter um “balanço do que foi lido”, porém, como sinali-
zado por Solé, apresenta muitos problemas, uma vez que “não se
intervém no processo que conduz a esse resultado, não se incide
na evolução da leitura para proporcionar guias e diretrizes que
5 Nos PCN (1998), a leitura competente relaciona-se à capacidade de utilizar a leitura (e diferentes
estratégias de leitura) em favor de suas necessidades.

186
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

permitam compreendê-la, em suma – e mesmo que possa parecer


exagerado–, não se ensina a compreender” (SOLÉ, 1998, p. 35).
O uso da sequência leitura-perguntas é criticado pela autora
por representar uma preocupação na avaliação da compreensão
leitora e também por não ensinar como proceder no processo da
leitura. O uso de perguntas é uma estratégia de suma importância,
entretanto essa abordagem monótona e acrítica deve ser substi-
tuída, como propõe Solé (1998, p. 48) por outra, que considere
dentre outros aspectos, os diversos momentos nos quais podemos
construir os significados no/do texto, ou seja, o antes, o durante e
o momento após a leitura.
Na busca pela materialização do ensino da leitura nessa pers-
pectiva, a autora aposta nesta seleção6: definição de objetivos da
leitura para “compreender os propósitos implícitos e explícitos” (p.
73) do texto; atualização de conhecimentos prévios, isto é, questionar-
se: “O que sei sobre o conteúdo do texto? Que outras coisas sei
que possam me ajudar: sobre o autor, o gênero, o tipo de texto...?”
(p. 74); previsão: “analisar os índices textuais: títulos, ilustrações,
cabeçalhos e as experiências e conhecimentos para entrever sobre
o conteúdo do texto” (p. 107); inferência: interrogar-se no sentido
de “formular hipóteses e antecipações prévias” (p. 24) sobre o texto
para “encontrar evidências ou rejeitá-las” (p. 23); autointerrogação:
uma atividade metacognitiva a respeito do texto (p. 74) e resumo: a
atividade de recapitular e ampliar os conhecimentos construídos.
Tal escolha, portanto, constitui-se como um importante recur-
so para o ensino-aprendizagem da leitura, sobretudo, nos aspectos
metacognitivos envolvidos, pois envolveria:

[...] uma autodireção: a existência de um objetivo e a


consciência de que o objetivo existe – e autocontrole
– isto é, a supervisão e avaliação do próprio compor-
tamento em função dos objetivos que o guiam e da
6 Solé (1998) propõe que elas sejam trabalhadas de forma conectada, sem desconsiderar que a
cada contexto e seleção textual possam ser repensadas.

187
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

possibilidade de modificá-lo em caso de necessidade.


(SOLÉ, 1998, p. 69)

Outra estratégia, muito salientada pela autora que também


dialoga com a proposta de desenvolvimento do L.C. é “promover
as perguntas dos alunos sobre o texto”. Oportunizar espaço e voz
aos discentes para externarem dúvidas e apontamentos, que,
por si, revelam um pouco dos objetivos próprios e das hipóteses
geradas pelos próprios alunos, significa, também, propiciar que o
aluno “autodirecione sua leitura de maneira eficaz” (SOLÉ, 1998,
p. 113). Dessa forma, salienta Solé, as responsabilidades e as ações
no processo de ensino-aprendizagem são divididas, levando-os à
demonstração da “importância do leitor e do seu papel ativo du-
rante a leitura e de tudo que contribui para ela (conhecimentos,
expectativas, perguntas etc.)” (SOLÉ, 1998, p. 113).
Esses procedimentos de uso geral, segundo a autora, pode-
riam, posteriormente, ser incorporados a situações de leituras
múltiplas. Nesse sentido, vemos que, na abordagem do L.C., há
também esse incentivo a uma postura crítica e filosófica. Nela, a
proposição (por parte dos docentes e discentes) de questões deve
ser muito exercitada no sentido de juntos desvelarem discursos,
perspectivas, versões privilegiadas e ignoradas, assim como inclu-
írem os aspectos contextuais e ideológicos na significação textual.
O professor é, nesse contexto, o elemento colaborador do
aluno em um processo gradativo de construção de sentidos do
texto, “questionando, sugerindo, provocando reações, exigindo
explicações sobre as informações ausentes no texto, refutando,
polemizando, concordando e negociando sentidos mediante as
pistas deixadas no texto” (MOURA; MARTINS, 2012, p. 90).
O uso consciente de tais estratégias, que visam a proporcionar
maior organização das ideias, mais verbalizações e a demonstração
de leitura inferencial por parte dos discentes envolvidos, adaptado
à perspectiva adotada, poderá ajudar os alunos a questionarem situ-

188
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ações que antes não levavam em consideração, a notarem aspectos


que costumavam ignorar (JANKS, 2016, p. 22). Tal conhecimento
pode contribuir para que esses discentes se coloquem cada vez
mais em sua capacidade de agência, que consiste, segundo Hilary
Janks, no “poder de se colocar em ação” (2016, p.22). Isso é, se-
gundo essa autora, “fazer letramento crítico”.

PROCEDIMENTOS, CAMPO E SUJEITOS DA PESQUISA

No artigo Pesquisa-ação: uma introdução metodológica, David


Tripp (2005) ressalta que esse tipo de investigação é uma prática
reflexiva que considera tanto a natureza, quanto o contexto e a
busca de uma ação interventiva sobre determinada questão. É,
portanto sinônimo de problematizar (p. 447). Nessa concepção, o
professor assume uma posição ativa e comprometida não só com
o reconhecimento de uma realidade, mas com a intervenção e com
o anúncio dessa transformação (FREIRE, 1996, p. 29).
O enfoque qualitativo que respalda esse tipo de pesquisa é de
suma importância para a compreensão e intervenção sobre essa
realidade educacional, porque nele pontuamos os processos de-
senvolvidos, “os significados, os motivos, as aspirações, as crenças
e os valores assim como as atitudes” (MINAYO, 2015, p.21) desses
sujeitos.
Tais aspectos resultam em uma “teoria-prática”, assim como
desenvolvem uma aprendizagem “a respeito da situação de trabalho
de campo, de atividade docente e da aprendizagem dos alunos”
(TRIPP, 2000, p.459). Considerada um processo cíclico, essa pes-
quisa desenvolve-se em etapas que devem ser constantemente
retomadas, conforme aponta o quadro a seguir:

189
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Quadro 1- Ciclo básico da investigação-ação

Fonte: TRIPP, 2000, p.446.

Ao longo de um trimestre, desenvolvi uma investigação nesse


contexto educacional levantando informações acerca das condições
socioeconômicas dos discentes e de seus familiares, a fim de reco-
nhecer a estrutura social da sala de aula. O grupo de entrevistados
investigados, 32 jovens (em sua maioria meninas), na faixa etária de
13 a 25 anos de idade, moradores da comunidade Reta Nova, atual-
mente Bairro Esperança, que apresenta um alto índice de ocorrências
criminais, estavam imersos, diariamente, em uma cultura de medo,
violência, descaso, quando não, de resignação e de muita apatia.
Apresentavam-se, ainda, carentes de segurança e de toda es-
trutura básica desde a regularização fundiária, do esgoto, da água
encanada, da pavimentação até a oferta mínima de serviços públi-
cos, atividades culturais e desportivas. Atrelados e aliados a esses
fatores sociais, encontram-se nesse grupo, de forma recorrente e
expressiva, a indisciplina e a repetência, conforme se avançam os
anos de escolaridade.
Posteriormente a essa investigação diagnóstica, os dados reco-
lhidos foram analisados e compartilhados com o grupo pesquisado
para, a partir de então, iniciarmos as leituras em sala. Nessa fase, os

190
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

discentes sugeriam temáticas e textos que pudessem ser discutidos,


aproveitando a participação do grupo em um concurso de redação,
exercitamos, assim, as propostas do Letramento Crítico nas aulas
de Língua Portuguesa e o uso consciente de algumas estratégias
situadas de leitura, compartilhando os sentidos dos textos sobre
a Cidade onde vivem.

O LUGAR ONDE VIVO: SÓ MATO, MATO E TIRO?!

No segundo trimestre de 2016, a Rede Municipal de Itaboraí


se inscreveu na 5ª edição Olimpíada de Língua Portuguesa7, nós,
professores da E.M.G.C.C., iniciamos um intenso trabalho de refle-
xão sobre a temática do concurso: “O lugar onde vivo” e também
sobre como trabalhar os gêneros textuais requeridos em cada sé-
rie. Apesar de a plataforma deste concurso disponibilizar muitos
materiais de apoio, inclusive cursos de formação, deparava-me
com alguns desafios.
O primeiro, o fato de ser a única professora de Língua Por-
tuguesa das únicas duas turmas de 9º ano desta escola e, dessa
forma, não ter com quem dialogar/discutir sobre descobertas e
desventuras. O segundo, mais inquietador, a difícil tarefa de levá-los
a reconhecerem e a produzirem crônicas (gênero não tão fácil de
ser definido/ apreendido), sobre o complexo cenário onde vivem:
era preciso levá-los a aceitar tal tarefa e incitá-los a realizarem ou-
tras leituras, que ultrapassem o que se expõe em demasia naquela
realidade: a violência e o descaso. Após a proposta em sala de aula,
muitos alunos compartilhavam de discursos não muito otimistas
a respeito da tarefa, afirmando que “na Reta Nova só havia mato,
barro e tiro”, “que nada havia para ser contado”, “que dali nenhuma
história renderia”, etc.

7 A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro é um concurso de produção de textos


de iniciativa do Ministério da Educação e da Fundação Itaú Social, com coordenação técnica do
Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). O público
participante são alunos de escolas públicas de todo o país, do 5º ano do Ensino Fundamental ao
3º ano do Ensino Médio. Mais informações sobre o concurso estão disponíveis em: < https://
www.escrevendoofuturo.org.br/concurso>.Acesso em: 27 dez.2016.

191
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Percebi que o debate a princípio não resultaria em negocia-


ções e também que estes discursos não revelavam uma atitude de
resistência, mas de aparente autodesvalia. A observação da própria
sala de aula e da dinâmica de interação entre esses alunos levantou
um possível caminho para um diálogo maior. Percebi, por exemplo,
que a fotografia, um ponto de grande interesse e aceitação entre
esse público, era a linguagem utilizada por eles para revelarem
suas identidades, gostos, percepções e que poderíamos pensar
em capturar cenas que pudessem ser, posteriormente, exploradas
em textos verbais.
Observando o comportamento de alguns desses alunos no
facebook, constatei que as selfies e a preocupação com a imagem
transbordavam em seus perfis. Um desses alunos havia comparti-
lhado naquela mesma semana um interessante ensaio fotográfico
de pontos turísticos mundialmente conhecidos. As fotografias
retratavam diferentes ângulos, uma enfocava apenas a beleza do
cenário e a outra não excluía o entorno das paisagens. Conforme
observamos no exemplo abaixo:

Figuras 1 e 2 - O Cristo em dois ângulos.

Fonte:<https://www.institutodeengenharia.org.br/site/2014/03/24/curiosidade-16-
lugares-famosos-mostrados-com-o-seu-verdadeiro-entorno>

A partir dessa postagem, que foi levada para a sala de aula,


novas discussões se iniciaram. Ao utilizar algumas das perguntas
críticas em diferentes momentos da leitura, tais como “Quais
aspectos estão sendo retratados nas fotos?”, “Qual está sendo

192
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

destacado?”, “E ocultado?”. “Qual o possível interesse do fotógrafo


ao focar em tais ângulos?, “Como essas imagens dialogam entre
si?”, dentre outras.
Na análise crítica das imagens, os alunos descreviam o talento
do fotógrafo, alguns atribuíam à beleza das primeiras fotografias
a utilização do photoshop, mas tais observações trouxeram para
reflexão um aspecto que antes não havia sido aceito pelo grupo:
o fato de que a realidade pode ser observada através de diferentes
olhares, pontos de vistas, percepções e que também o fato de que
a composição destas paisagens se constrói na complementação/
valorização desses dois lados (bonitos e feios).
Na sequência, fomos ao pátio da escola, cada um com seus
celulares para tentarmos capturar algumas cenas. Colegas de classe
em poses, funcionários trabalhando, crianças brincando no inter-
valo, e a terceira cena abaixo, tão forte quanto poética:

Figuras 2, 4 e 5: Fotos tiradas pelos alunos.

Fonte: Acervo pessoal.

Essa flor fotografada pelo aluno, cujas pétalas ainda não se


abriram, segue resistente, sobrevivendo no terreno duro da qua-
dra da escola. A cena remete-nos ao poema drummondiano: “a
flor e a náusea8”, no qual eu-lírico, apesar de transitar por “ruas
e períodos cinzentos”, não abandona as atitudes de resistência,
contemplação e reflexão crítica acerca da realidade que o cerca. A
8 Texto publicado no livro A rosa do povo, em 1945. Disponível em: < http://www.germinalite-
ratura.com.br/cda.htm >. Acesso em: 20 fev.2017.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

flor destacada no poema, também prematura, cujas pétalas e cores


ainda são desconhecidas, representa a resiliência, a esperança na
luta e a força diante de tantas dificuldades. Essas e muitas outras
cenas inusitadas foram registradas e, posteriormente, discutidas
em sala de aula, buscando desvendar “as cifras e os códigos sob
a pele das palavras” 9usadas pelos alunos em seus discursos,
procurando compreender a motivação para suas escolhas e os
valores atribuídos a elas. Dessa forma, os discentes foram reco-
nhecendo que talvez não fosse tão difícil concretizar a tarefa de
desnaturalizarem seus olhares a respeito do local onde vivem: a
comunidade da Reta Nova.
Apesar de apresentarem ótimas fotos, os discentes não esta-
vam satisfeitos com o desenho revelado e sugeriram também uti-
lizarem efeitos em suas fotografias. Ensinaram-me pacientemente,
a utilizar dois aplicativos: o retrica e o prisma10. Vale destacar que, a
maioria deles já dominava esses dispositivos com muita proprieda-
de, eles eram capazes de descrever as funcionalidades do aplicativo,
suas vantagens, desvantagens e diferenças, a forma de baixá-los
no celular, etc. Aprendi ainda como inserir temas e colagens, a
trabalhar com alguns filtros de fotografia, surpreendendo-me com
a possibilidade de “transformar” essas imagens em “pinturas”
que imitavam algumas obras de Picasso e Van Gogh e além disso
podendo criar tantos outros efeitos.
Claramente notei que esses meninos e meninas possuíam
muitos conhecimentos sistematizados sobre esse assunto, compar-
tilhados entre si, os quais, infelizmente, nem sempre fazem parte
das coleções culturais11 valorizadas, nem ao menos requisitadas
no ambiente escolar. Ao invés de proibir o uso dessas novas ferra-
mentas e ignorar esses letramentos (multiletramentos), a escola
precisa reconhecê-los como aliados da prática educativa que:

9 “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade.


10 Aplicativos para tratamento e criação de efeitos em fotografias, disponíveis gratuitamente para
Android.
11 Garcia Canclini (2008[1989], apud ROJO, 2012, p.13).

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

[...] no mínimo diluem e no máximo permitem fratu-


rar ou subverter / transgredir as relações de poder
preestabelecidas, em especial as relações de controle
unidirecional da comunicação e da informação (da pro-
dução cultural, portanto) e da propriedade dos ‘bens
culturais imateriais’ (ideias, textos, discursos, imagens,
sonoridades)”. (ROJO, 2012, p.24)

A produção escrita a partir da cena retratada, contudo, não


fluía com tamanha desenvoltura e interesse. Mesmo após siste-
matização e exemplificação, com a utilização do material cedido
pelo programa do concurso12, a dificuldade era latente. A escrita
das crônicas tendia à produção de diários, paráfrases de letras de
música e memórias literárias, até.
Disponibilizados no site do programa Escrevendo o Futuro13
estavam os textos dos semifinalistas das últimas edições do con-
curso. Imprimimos a relação de títulos das crônicas selecionadas
no ano de 2014 e cada aluno escolheu uma para ler em casa. Iniciei
a atividade compartilhando a leitura da crônica “O viaduto”14, que
havia me chamado a atenção naquela relação e também analisamos
uma fotografia15 que complementava o assunto tratado. Exploramos
a leitura em voz alta e verbalização dos sentidos desses textos,
distribuímos os papéis expostos na história, contemplamos as
conexões entre o título, imagem e texto verbal, assim como os di-
ferentes momentos da leitura, levantando hipóteses às observações
feitas para juntos refletirmos sobre um triste retrato: a desigual-
dade social, tão presente nos grandes centros, como o descrito
pela estudante premiada, quanto vivenciada por esses discentes.

12 Cadernos de textos e DVDS enviados às escolas e residências dos professores participantes.


Após sistematização, os alunos leram algumas crônicas neste caderno: “Sobre a Crônica”, de
Ivan Ângelo, “A última crônica” de Fernando Sabino e ainda: “E o noivo estava de tênis” e
“Acho que tou” de Luís Fernando Veríssimo.
13 Disponível em: https://www.escrevendoofuturo.org.br/ acesso em 21.05.2016.
14 Texto da aluna Andressa Silvino Cardozo Bezerra, da Escola Estadual Prefeito Domingos de
Souza, em Guaratinguetá, São Paulo.
15 Fotografia de um viaduto, autoria de Caique Silva, disponível em: < http://caradafoto.com.br/
que-lugar-feio-pra-tirar-foto/>. Acesso em 21 mai.2016.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Além disso, nos colocamos no papel de avaliadores para per-


ceber melhor o gênero e as exigências dessa produção textual.
Entreguei-lhes as crônicas escolhidas para eles realizarem uma
primeira leitura, silenciosa, a fim de tirarem dúvidas ou se fosse o
caso, escolherem outros títulos.
Nos outros encontros, cada aluno partilhava as leituras re-
alizadas em casa no tempo de até 05 minutos. Nesse momento,
os alunos ampliaram muitos conhecimentos: perceberam que a
escrita desse gênero tornava-se mais clara, que as temáticas lidas
envolviam eventos de seus cotidianos como festas locais e feiras,
que poderiam utilizar a mistura de cores, sabores e impressões
pessoais, dando um toque de estilo nessa escrita e, que o conteúdo
era o que se destacava. O tempo do relato, muitas das vezes pela
empolgação e participação da turma, nem era respeitado.
Vale destacar que poucos alunos deixaram de realizar essa
atividade oral, muitos inclusive se destacavam à frente da turma,
não apenas lendo trechos, mais recontando, com fluência o que
haviam percebido. Contudo, muitos desses mesmos alunos não
desenvolviam ainda a atividade escrita com a mesma desenvoltura,
apresentando respostas insuficientes e monossilábicas a maioria
das perguntas.
Quando questionados, justificaram que se sentiam mais à
vontade na explanação. Foi uma grande oportunidade de refletir
acerca da relação entre motivação e desempenho, de buscar mais
leituras sobre o tipo de pergunta a desenvolver, sobretudo para a
abordagem do Letramento Crítico, da necessidade de reconhecer
o que instiga o interesse desses jovens.
Finalizamos essa parte, assistindo a um vídeo16 com os semifi-
nalistas do programa, que receberam, junto a seus professores, uma
viagem para Porto Alegre- R.S. No local, esse grupo participou de
oficinas para melhorarem seus textos. Neste, o uso de imagens e a

16 Oficina Regional 2014 – Crônica. Disponível em: < https://www.youtube.com/


watch?v=lXnRXizj78Q, >. Acesso em 27 dez.2016

196
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

importância da pesquisa no processo de construção e reconstrução


das crônicas foram extremamente destacados pelos participantes.
Logo após, já com os alunos mais empolgados�, construímos
coletivamente algumas perguntas e convidamos três antigos fun-
cionários da escola para serem entrevistados: o inspetor e duas
funcionárias de serviços gerais, na tentativa de revelarem histórias
de Itaboraí ou da Reta Nova. Os alunos ouviram atentamente às
entrevistas e levaram essas anotações para casa, para iniciarem um
processo de pesquisa e construção de suas crônicas.
Os rascunhos que se apresentavam nas aulas seguintes, por
sua vez, já se diferenciavam dos anteriores, trazendo riquíssimas
observações, já apontavam, por exemplo, a descrição de eventos
que marcariam a cidade e algumas transformações ocorridas em
Itaboraí, como observamos nessas transcrições:

A cada encontro um tempo era reservado para a produção das


crônicas, os alunos se ajudavam, acolhiam dicas, contudo muitos
deles foram desanimando nas etapas de reescrita. Os textos con-
cluídos foram lidos e selecionados, por meio de uma votação com
alunos da turma e com outros docentes, logo após foram enviados
à Comissão Julgadora Escolar, a equipe diretiva. Interessante desta-
car que os alunos que não estavam mais no circuito de produção,
torciam e incentivavam os demais a não desistirem. Todos os textos

197
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

foram expostos na escola, mas apenas uma crônica da aluna da


turma 902: “A grande mudança”, foi escolhida para ser enviada às
Comissões de Avaliação Estadual e Municipal.
Apesar de não ter logrado êxito nas etapas posteriores do con-
curso, toda a turma e a escola torceu para que essa narrativa fosse
reconhecida. Tivemos ainda duas outras alunas desta instituição,
também moradores de comunidades do entorno escolar, que nas
categorias poema e memória literária abordaram lindamente em
seus textos o lado urbano e rural de Itaboraí e foram classificadas
nas etapas seguintes do concurso.
As atividades desenvolvidas, portanto, geraram textos que
foram expostos não só no ambiente escolar, mas também nas
redes sociais, como as produções das alunas do 6º e 8º anos do
Ensino Fundamental� indicadas. A valorização desse contexto de
Itaboraí nas produções textuais e o reconhecimento de uma au-
toimagem mais positiva e também mais valorizada da E.M.G.C.C.
proporcionaram uma experiência marcante a todos os envolvidos:
descobertas, aprendizagens e destaque: dessa vez pela autoria em
belos episódios.

RESULTADOS

Nesse primeiro contato com o L.C., percebo que no esforço de


compreensão e de exercício desta perspectiva até então desconhe-
cida, produzimos coletivamente algumas práticas de letramento
mais inclusivas, mais democráticas e mais significativas em sala
de aula.
Um dos grandes desafios enfrentados foi o de desenvolver
nesse grupo a percepção de que eles também eram sujeitos de
muitas histórias e que essas eram compostas de aspectos positivos
e negativos, e não de apenas um lado. Para isso, “vislumbramos
nos alunos a inteligência que lhes era própria e trabalhamos com
ela como parceira” (JORDÃO, 2016, p. 43), convidando-os a com-

198
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

preenderem que os sentidos do texto não estavam prontos e que


havia espaço em sala de aula para que todos falassem, ouvissem,
verbalizassem suas dúvidas, exercitassem a crítica, problematizas-
sem os sentidos dos textos sem serem punidos por isso.
Foi preciso buscar mais conhecimento a respeito da história da
instituição pesquisada, dos avanços e declínios da cidade de Itabo-
raí, da constituição do bairro Reta Nova/ Esperança e dos sujeitos
que ali residiam para entender melhor o lugar de fala desses sujei-
tos, suas atitudes e resistências. Nesse processo de reconhecimento
e de tensões entre diferentes contextos: cognitivos, sociais, histó-
ricos, políticos etc., consegui convidar os alunos a enxergarem a si
mesmos e aos outros do contexto escolar de forma mais completa
e menos preconceituosa e a participarem de diferentes eventos
de letramento, nos quais pudessem explorar outras perspectivas,
alcançar outros espaços, leitores e públicos. Nessa interação, os
formandos conseguiram desenvolver um diálogo maior com os
textos lidos, uma compreensão maior das estratégias de leitura e
uma melhora significativa nas relações interpessoais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de materialização do letramento crítico nas au-


las de língua portuguesa, ainda que novo e desafiador foi muito
relevante para mim enquanto pesquisadora e para os discentes.
Percebi o quão rico e proveitoso foi o contato/a interação com essa
abordagem, pois me senti impulsionada a pensar criticamente o
meu contexto local de atuação e minha práxis, a fim de transformá-
los positivamente.
Essa experiência no PROFLETRAS aproximou-me de meus
alunos formandos, na medida em que pude “habitar livremente
meu lugar de jovem pesquisadora” (NÓVOA, 2014), e nele conhecer
mais a mim, ao meu objeto de pesquisa, a minha escrita, e, em
cada uma dessas descobertas, reconhecer limites e novas possibi-
lidades de ação.

199
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Nesse lugar pude, ainda, a despeito de todas as dificuldades


e desafios, reafirmar uma esperança-desejo que motiva muitas das
escolhas feitas até aqui, inclusive, meu investimento na profissão e
área. Pude vivenciar a sala de aula e a leitura como locais profícuos
para o diálogo, para a formação e para o aperfeiçoamento de nossas
(minhas e de meus alunos) práticas, assim como para a abertura e
ampliação de horizontes, experiências e aprendizagens, cada vez
mais críticas e mais significativas.

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em: 14 out. 2018.
______. Socially Critical Action Research. Theory Into Practice, v. 29, n. 3, p.
158- 166, Summer, 1990. Disponível em: <https://www.researchgate.net/
profile/David_Tripp/ publication/233434327>. Acesso em: 22 out. 2016.

201
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

MEMÓRIA E IDENTIDADE NA ESCRITA DE


ESTUDANTES DA EJA

Cristiane Melo Alves

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento deste trabalho é fruto das reflexões que,


ao longo dos anos, venho realizando no meu percurso profissional
como professora de língua portuguesa nas fases finais da modalidade
de Educação de Jovens e Adultos (EJA) na rede pública de ensino.
Refletir de forma crítica sobre minha prática docente, sobre a histó-
ria de vida dos sujeitos envolvidos na modalidade, possibilitou-me
pensar em práticas pedagógicas mais voltadas aos sujeitos da EJA.
Segundo as Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens
e Adultos (BRASIL, 2000), para compreender o perfil do educan-
do dessa modalidade é preciso conhecer sua história, cultura e
costumes, compreendendo-o como sujeito que tem diferentes
experiências de vida.
Com base nessa perspectiva, propus com a turma da Educação
de Jovens e Adultos o planejamento de um projeto pedagógico
centrado na produção do gênero relato pessoal, que permitiu a
narração das trajetórias de vida dos sujeitos participantes e a ela-
boração da identidade na escrita de suas memórias. Como Candau
afirma, sem lembranças, o sujeito é aniquilado (CANDAU, 2016,
p.17). A memória sempre traz à tona aspectos relevantes que pas-
saram em nossa vida. Ela assinala o contorno da nossa existência,
ela fortalece a nossa identidade.

203
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

É possível entender melhor os comportamentos humanos e


suas relações sociais, quando se faz uma intrínseca relação entre
memória e identidade. Segundo Candau (2016) memória e identi-
dade se entrecruzam indissociáveis: “não há busca identitária sem
memória, e inversamente a busca memorial é sempre acompanhada
de um sentimento de identidade” (CANDAU, 2016, p.19).
Assim sendo, os objetivos norteadores dessa pesquisa foram
demonstrar que o discurso dos sujeitos da EJA, em relatos pessoais,
é instrumento de construção de suas identidades e proporcionar
o desenvolvimento da produção escrita através do gênero relato
pessoal. Esses objetivos mais amplos se desdobraram nos seguintes
objetivos específicos: fazer a análise de um corpus de dez relatos
produzidos pelos alunos; analisar os relatos pelos critérios da
composição temática, estrutura composicional e estilo.
O relato pessoal foi escolhido por ser um gênero próximo do
aluno, que, ao se utilizar da memória, faz um resgate das expe-
riências de vida, unindo a produção oral e escrita. Desse modo,
procurei desenvolver práticas pedagógicas que atendessem aos
anseios dos alunos, com vista a contribuir com os profissionais de
todas as disciplinas, pois acredito que, como Paulo Freire (1979,
p.67), “se a educação sozinha não muda o mundo, sem ela tampou-
co, o mundo muda”. Busquei então, práticas que aproveitassem e
valorizassem as experiências dos alunos, para, assim, possibilitar
o desenvolvimento integral do aluno.

CONTEXTUALIZANDO O CAMPO E DO CENÁRIO DA PESQUISA

A turma em que o projeto foi realizado foi a fase VII da EJA


do horário noturno, com 20 alunos matriculados com idade
entre 15 a 50 anos. Dos 20 alunos, 19 frequentaram as aulas,
mas apenas 10 participaram ativamente de todas as fases do
projeto. Desses 10 alunos, apenas um aluno era menor de idade,
tendo 15 anos.

204
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O campo da pesquisa é o CIEP Municipalizado 465 Dr. Amílcar


Pereira da Silva do município de Quissamã, que atende anualmente
uma média de 1.000 alunos distribuídos do 6° ao 9° ano de esco-
laridade e a Educação de Jovens e Adultos. A escola apresenta em
seu Projeto Político Pedagógico (PPP) o lema “Construindo Sonhos”
e enfrenta o seguinte desafio no contexto educacional: reduzir as
taxas e indicadores, distorção e aproveitamento, ensino e apren-
dizagem. A sua missão é a de

oferecer uma educação pautada nos valores éticos,


morais, políticos e sociais formando, assim, cidadãos
críticos conscientes de seus direitos e deveres, capazes
de interagir e transformar a realidade para uma vida
digna em sociedade”. E ainda tem como visão de futuro:
ser uma escola de referência em educação, que respeite
o indivíduo, suas diferenças e limitações, que trate o
aluno como agente de sua própria aprendizagem, ca-
paz de interagir, superar dificuldades e transformar a
realidade para uma vida digna em sociedade. (PROJETO
POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2015)

Quissamã fica localizada ao Norte Fluminense do estado do


Rio de Janeiro a 212 km da capital, encontra-se em área estratégica
na rota do petróleo e gás, na Bacia de Campos. Faz limites com os
municípios de Macaé, Carapebus, Conceição de Macabu e Campos
dos Goytacazes. É uma cidade pequena, típica de interior. Segundo
o IBGE (2016), apresenta uma população de, aproximadamente,
23.000 habitantes, variada de descendentes de escravos e índios
Goytacazes, e de pessoas de outra s localidades. A cidade vive,
basicamente, dos royalties do petróleo da Bacia de Campos e da
agricultura.
Iniciei o trabalho com o gênero textual relato pessoal com
meus alunos da fase VII da Educação de Jovens e Adultos em me-
ados do semestre letivo, com uma atividade proposta pelo livro

205
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

didático utilizado na escola. O livro trazia relatos de pessoas que


visitaram a Avenida Paulista em São Paulo e que publicaram seus
textos no Museu da Pessoa. Até o presente momento, desconhe-
cíamos a existência de um museu virtual que procurava preservar
as histórias de vida das pessoas para que essas histórias nunca
morressem e pudessem ser perpetuadas de geração a geração. Foi
uma descoberta mútua e uma surpresa para toda a classe.
Na ocasião, cada aluno teve a oportunidade de contar seus
relatos de experiência e de vida. Foram relatos marcantes, tristes
e alegres, uma espécie de desabafo feito por alguns. A partir de
então, surgiu a ideia de publicarmos no site do Museu os relatos
que seriam produzidos ao longo do bimestre e, assim, criarmos
nosso acervo. A ideia foi bem recebida pelos alunos, visto que a
maioria já é adulta e com muita experiência de vida. Dessa forma,
o projeto “QUEM SOU EU?” surgiu pelo/para o aluno da EJA.
Enquanto fazia a leitura do livro “Pedagogia dos sonhos pos-
síveis”, organizado por Ana Maria Araújo Freire, esposa de Paulo
Freire, muito me chamou a atenção algumas frases proferidas por
ele: “para mim é impossível existir sem sonho” e “mudar é difícil,
mas é possível e urgente” (FREIRE, 2016, p.65). Então, naquele mo-
mento, tive o sonho de levar meus alunos a conhecerem o Museu
da Pessoa como a realização da culminância do nosso projeto. Eles
abraçaram o sonho e sonharam junto comigo. Assim, corroboro as
palavras de Freire: “o fato é que meus sonhos permanecem vivos
[...]. Sem sonhos não há vida, sem sonho não há seres humanos,
sem sonhos não há existência humana” (FREIRE, 2016, p. 49).
O Museu da Pessoa é um museu virtual colaborativo que foi
fundado em São Paulo em 1991 pela historiadora Karen Worcman.
A sede fica localizada em São Paulo na Rua Natingui, 1.100, Vila Ma-
dalena. Ele foi criado para ser uma “rede internacional de histórias
de vida”. O Museu registra, preserva, transforma em informação
e conhecimento “histórias de vida de toda e qualquer pessoa da
sociedade”. Segundo a fundadora do Museu, Worcman, “o objetivo

206
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

do Museu é constituir um espaço de registro, preservação e disse-


minação de histórias de vida” (WORCMAN, 2011, p. 79).
Durante uma das atividades em sala de aula, aproveitei para
levantar os conhecimentos prévios da turma sobre museu. Pergun-
tei se conheciam algum museu ou se tinham vontade de ir a algum.
Alguns alunos relataram que o único museu que conheciam era a
“A casa Rosa”, nome popular dado ao Museu Casa Quissamã, por
ser um casarão rosa. Outros alunos, mesmo sempre residindo na
cidade, nunca haviam visitado o museu local.
A ideia que a maioria fazia de um museu era a de um espaço
para “guardar” objetos antigos. Então, propus aos alunos que vi-
sitássemos o museu virtual através do seu site. Dessa forma, levei
os alunos para a sala de vídeo a fim de que pudessem ler e assistir
aos relatos publicados. Meu objetivo era despertar ainda mais o
interesse dos alunos em partilhar suas histórias de vida e de buscar
inspiração através da escuta do outro.

As narrativas, organizadas em uma base digital, servi-


riam para contribuir com a criação de diferentes pers-
pectivas da nossa sociedade. Conhecer – por meio da
escuta ou da leitura – um grupo de histórias de vida
é uma maneira de expandir nossa visão do mundo,
pois elas são uma peça de informação única, que nos
mostra como as diferentes pessoas criam suas próprias
realidades. (MIRANDA, D. et al.,2017)

Com essa atividade pude levantar a seguinte questão: somos


seres socialmente históricos, dotados de experiências, e o princi-
pal objetivo de criar um acervo de memórias de vida é que nossa
fala pode ajudar o outro, e a escuta do outro nos ajudar. Ouvir e
falar são dois caminhos indispensáveis. Falar sobre si é fundamen-
tal para a expressividade e a autoestima e, ao ouvirmos o outro,
olhamos para nós mesmos. Danilo Miranda afirma que “a partir

207
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

do entendimento da importância do lugar da fala e da escuta, da


compreensão de que somos, essencialmente, seres sociais é que as
narrativas dos eus são capazes de gerar outros em nós” (MIRANDA,
D. et al., 2017).

LETRAMENTO(S), MEMÓRIA E IDENTIDADE

As profundas mudanças sociais e econômicas que ocorreram


ao longo das últimas décadas promoveram transformações teóricas
e pedagógicas no campo educacional, fomentando, assim, a discus-
são sobre o conceito de letramento, visto por alguns teóricos como
sinônimo de alfabetização. Mediante tantas discussões, dúvidas e
críticas essa singularidade foi perdendo força para um conceito
de letramento mais amplo, que abarcasse as práticas sociais e as
perspectivas transculturais (STREET, 2014).
Nesse sentido, tomei como base neste projeto uma perspectiva
mais contemporânea de letramentos, uma visão mais ampla que
abarca perspectivas transculturais. Fugirei do modelo “autônomo”
do letramento tradicional, apregoado por longos anos e restrito à
linguagem verbal escrita, visto que os alunos inseridos na EJA hoje
são sujeitos pós-modernos que participam de vários eventos de
letramentos em seu ambiente escolar, como fora dele. De acordo
com essa visão contemporânea está o teórico Bryan Street, trago
o posicionamento de Monte Mór (2010) sobre o mesmo:

Dentre os teóricos comprometidos com tais estudos,


destaca-se a figura de Street (1984, 1995, 2003), em
particular, a sua distinção entre o modelo autônomo
e o modelo ideológico de letramento. Segundo Street
(1995), o modelo autônomo de letramento constitui a
compreensão da leitura e da escrita como um conjunto
monolítico de habilidades a serem adquiridas de for-
ma isolada do contexto ideológico e cultural do qual
os sujeitos fazem parte. Em oposição a essa acepção

208
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

liberal de letramento (liberal porque o entende como


processo individual e estritamente cognitivo), o mo-
delo ideológico proposto por Street (op.cit.) passa a
compreender as práticas de letramento como práticas
situadas em um determinado contexto sociocultural.
(MONTE MÓR, 2010, p.5)

Street (2014) afirma que o letramento não deve ficar associado


apenas às noções educacionais de ensino e de aprendizagem, pre-
so ao que os alunos realizam na escola. A isso o estudioso chama
de pedagogização do letramento. Para ele, o letramento adquire
novos usos e significados, ou seja, existem múltiplos letramentos
praticados pela sociedade, seja em casa, na igreja, no trabalho, em
grupos de amigos, em uma cooperativa etc., são os letramentos
sociais. O que não se deve pensar é um único tipo definidor de
letramento.

O letramento está de tal modo encaixado nessas ins-


tituições na sociedade contemporânea que, às vezes,
é difícil nos desvencilharmos delas e reconhecer que,
na maior parte a história e em grandes setores da
sociedade contemporânea, as práticas letradas per-
manecem encaixadas em outras instituições sociais.
(STREET, 2014, p. 122)

Sendo assim, é na teoria de Street (2014) que se enxerga uma


nova visão de letramento, ou melhor, dos letramentos. É nessa visão
que esta pesquisa se baseia, porque entendo que os letramentos
acontecem também fora do espaço escolar, acontecem nos locais
onde o sujeito se insere na comunidade. Essa visão de letramen-
tos é a tendência atual com visão ampla como prática social, com
caráter múltiplo no processo de leitura e de escrita. Aqui, não se
fala em um único letramento, limitado ao saber escolar, mas em
múltiplos, inseridos no contexto social.

209
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Ao falar em Educação de Jovens e Adultos, a voz mais forte que


se tem é a de Paulo Freire, nome importante para a historicidade
dessa modalidade no país. Freire lutou, incansavelmente, pelo fim
da educação elitista e por uma educação democrática e libertadora,
já que ele pregava que o conhecer pode interferir na realidade.
Freire afirmava que o professor deveria estabelecer um diálogo
inicial com os alunos a fim de conhecer suas realidades. Para isso,
deveria fazer um estudo crítico da realidade imediata desses alunos.
Por meio desse exame, a educação se converteria para transformar
a estrutura social e, assim, diminuir a desigualdade social.
No trabalho com Jovens e adultos, o trabalho com a produção
de textos memorialísticos torna-se um caminho interessante, já
que as narrativas de vida permitem a elaboração da experiência e
o entendimento mais crítico da realidade imediata dos educandos,
além de possibilitar reflexões sobre a identidade desses sujeitos.
Nesse tempo chamado de pós-moderno, muitas questões
têm sido levantadas sobre a questão memorialística, ou a perda
da memória como referência de identidade, a busca identitária do
homem e sua autoafirmação na sociedade.
A palavra memória do latim memoris é a faculdade de reter e
de recuperar informações disponíveis no cérebro e, ao contrário
do que muitos pensam, segundo Huerga (2009), a memória não é
um repositório que guarda tudo o que aconteceu no passado tal
como os computadores. Segundo o Dicionário Houaiss da língua
portuguesa, memória é “aquilo que ocorre ao espírito como re-
sultado de experiências já vividas; lembranças. Reminiscências.”
É fato que, como seres sociais, sentimos necessidade e von-
tade de compartilhar fatos decorrentes do nosso dia a dia, da nos-
sa vivência, para as pessoas que nos cercam essa questão dialógica
com o outro faz parte do homem. Relatamos fatos que podem
ser alegres, tristes ou até mesmo trágicos. Nesse sentido, segundo
Candau (2016) “todo aquele que recorda domestica o passado e,
sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua marca em uma

210
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

espécie de selo memorial que atua como significante de identidade”


(2016, p.74). A verdade é que estamos a todo instante relatando
sobre algo com alguém, por ser tão corriqueiro, muitas vezes não
percebemos que fazemos o uso da memória para reconstruir um
passado e (re)afirmar nosso presente. Susana Huerga (2009) faz
a seguinte ponderação:

É necessário destacar que a recuperação dos eventos


retidos na memória, coletiva e/ou individual, não se
faz por um passe de mágica e nem serão resgatados
na íntegra. Trata-se de entender que a memória é um
“espaço” de disputa entre lembranças e esquecimentos,
voluntária ou construída. (HUERGA, 2009, p. 45)

De acordo com Huerga (2009) não nos lembramos de forma


integral de todos os fatos que vivenciamos, recuperar todos os
eventos retidos na memória individual e coletiva é improvável,
porque o esquecimento entra em disputa com as lembranças.
Segundo Candau (2016), a memória é, acima de tudo, uma
construção continuamente atualizada do passado. Para o autor, a
única faculdade de memória atestada é a individual, que diz respeito
a tudo aquilo que se passou na vida da pessoa, em seu ambiente
familiar, escolar, no trabalho ou mesmo na sua intimidade. Ele
enfatiza a relevância dessa memória ao afirmar que quem perde a
memória perde a identidade, já que:

Sem memória o sujeito se esvazia, vive unicamente o


momento presente, perde suas capacidades conceituais
e cognitivas. Sua identidade desaparece. Não produz
mais sucedâneo de pensamento, um pensamento sem
duração, sem a lembrança de sua gênese que é a con-
dição necessária para a consciência e o conhecimento
de si. (CANDAU, 2016, p. 59 – 60)

211
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Guardamos na memória as lembranças e são essas que formam


nossos hábitos e costumes. Sendo assim, entende-se que a memória
é crucial na construção da identidade individual. A perda da me-
mória é, portanto, uma perda de identidade (CANDAU, 2016, p.59).
A identidade é um conceito complexo e polêmico que envolve
vários outros conceitos (cultura, gênero, etnia, raça etc.), ela pode
significar muitas e diferentes coisas dependendo da cultura e do
tempo, principalmente, no tempo chamado de pós-moderno, em
que muitas questões têm sido levantadas sobre a busca identitária
do homem e sua autoafirmação na sociedade.
Uma das grandes indagações do ser humano diante da crise
identitária é “Quem sou eu?”. Essa dúvida é mediante as transforma-
ções da sociedade que vêm acontecendo em larga escala. O homem
pós-moderno pensa que é preciso responder a essa pergunta de
forma que atenda à expectativa do outro, deixando a questão da
autonomia do ser e assumir as “identidades” instáveis. De acordo
com o exposto, trago o dizer de Freire (2016):

/.../ nós podemos ser e somos responsáveis e podemos


ter um papel fundamental no processo do nosso de-
senvolvimento assumindo nossa identidade e mesmo
lutar contra os elementos externos que poderiam nos
privar de ser quem nós somos.(...) Esta é a questão da
autonomia do ser, uma questão absolutamente impor-
tante. (FREIRE, p. 87, 2016)

Hoje, responder a pergunta “Quem sou eu?” não é fácil. Hall


afirma que “a identidade é realmente algo formado, ao longo do
tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato...”
(HALL, 2015, p. 24). Essas transformações estão abalando a ideia
de que temos nós mesmos como sujeitos integrados. Segundo
Hall (2015, p. 10) essa perda de um sentido de si é chamada de
descentralização do sujeito. Sendo assim, o ser de hoje pode não

212
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ser o mesmo amanhã. Hall (2015) afirma que a identidade ple-


namente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia
(HALL, 2015, p. 12).

O sujeito assume identidades em diferentes momentos,


identidades que não são unificadas ao redor de um “eu”
coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que
nossas identificações estão sendo constantemente
deslocadas. (HALL, 2015, p.12)

Hall (2015) aponta que as identidades que se estabilizaram no


mundo atual, pós-moderno, estão entrando em declínio, com isso,
fazem surgir “novas identidades”. O homem busca se autoafirmar
enquanto sujeito, enquanto pessoa dotada de um reconhecimento
diante da sociedade em que vive, para isso ele busca construir sua
identidade utilizando a memória, ou seja, as lembranças guardadas
de cada época de sua vida. Sendo assim, a memória atua na rea-
propriação do seu passado para chegar a sua individualidade. Em
relação à essas questões, Candau (2016) assevera que:   

De fato, memória e identidade se entrecruzam indisso-


ciáveis, se reforçam mutuamente desde o momento de
sua emergência até sua inevitável dissolução. Não há
busca identitária sem memória e, inversamente, a busca
memorial será sempre acompanhada de um sentimento
de identidade, pelo menos individualmente. (CANDAU,
2016, p. 19)  

É certo que as questões relativas à identidade vêm sendo dis-


cutidas de forma mais abrangente, uma das questões relacionadas
a toda essa discussão deve-se à globalização, que tem mudado
a maneira como as pessoas vêm se relacionando. Com o avanço
tecnológico algumas distâncias de comunicação foram diminuídas

213
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

e outras distanciadas. O ser humano viu sua vida exposta através


das redes sociais. A vida global faz com que as pessoas estejam
conectadas a todo instante, levando assim, a uma diluição de seus
costumes, hábitos e valores. É como se o ser humano se perdesse.
Se a sociedade pós-moderna respondesse a pergunta “Quem sou
eu?”, a resposta seria “uma sociedade plural com sujeitos indivi-
dualizados”. Hall (2015) aponta que essa individualização sempre
existiu, mas era vivida de forma diferente. Hoje, “as transformações
associadas à modernidade libertaram o indivíduo de eus apoios
estáveis nas tradições e culturas” (HALL, 2015, p.18).
Segundo Hall (2015) essas mudanças da identidade ocorridas
na “modernidade tardia” (segunda metade do século XX) não foram
apenas uma desagregação do sujeito, mas sim um deslocamento
ocasionado por diversas rupturas do sujeito com os vários conhe-
cimentos adquiridos.
A globalização levantou outra questão relacionada ao caráter
da modernidade tardia: o impacto sobre a sua identidade cultural.
Hall (2015) aponta que a principal diferença entre a sociedade
tradicional e as modernas está na mudança constante, rápida e
permanente dessas. Já nas sociedades tradicionais as experiências
perpetuam de gerações.
Danilo Miranda (2017) conceitua identidade “como uma
construção social que se dá na relação do eu com o outro, num
processo que envolve a percepção e o reconhecimento da diferen-
ça” (MIRANDA et al., 2017). Ou seja, segundo o autor a identidade
está em construção permanente, sofrendo as alterações do seu
eu com o outro. Zigmunt Bauman (2001) assevera que as trans-
formações têm sido tão amplas e profundas, que essas mudanças
estão transformando as nossas identidades pessoais, abalando a
ideia que temos nós próprios como sujeitos integrantes. No final
do século XX e início do XXI, essas transformações se deram em
todos os âmbitos da sociedade e da vida das pessoas, o que pode
ser apontado como mudanças estruturais.

214
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL NA EJA A PARTIR DO GÊ-


NERO DISCURSIVO RELATO PESSOAL

A tarefa de se trabalhar com a produção textual nas turmas


da EJA tendo em vista uma perspectiva dos letramentos sociais e
de uma concepção social de leitura e escrita envolve não apenas
o desenvolvimento de uma competência ou habilidade, mas tam-
bém, e, principalmente, o desenvolvimento de uma prática social
e discursiva. Mas, isso ainda é um grande desafio para a escola.
Lerner (2002) aponta:

O desafio é – por outro lado – orientar as ações


para a formação e escritores, de pessoas que saibam
comunicar-se por escrito com os demais e com elas
mesmas, em vez de continuar “fabricando” sujeitos
ágrafos, para quem a escrita é tão estranha, que se
recorre a ela somente em última instância e depois
de haver esgotado todos os meios para escapar de tal
obrigação. (LERNER, p. 28, 2002)

Produzir textos é um processo que envolve diferentes eta-


pas: planejar, escrever, revisar e reescrever. Sendo assim, cabe ao
professor criar condições e situações para que os alunos possam
apropriar-se de características discursivas dos diversos gêneros
realizando todas as etapas da produção de um texto.
Para Faraco, Moura e Júnior (2013) “Relatar é uma experiência
comunicativa de mão dupla: relatando um fato, somos capazes de
compreendê-lo melhor e possibilitamos que outras pessoas tenham
acesso a uma experiência vivida por nós e a entendam (FARACO,
MOURA e JUNIOR, 2013, p. 198)
A finalidade do gênero relato pessoal é relatar, seja oral ou
por escrito, episódios que foram marcantes na vida de quem es-
creve, experiências de vida guardadas em sua memória, além de

215
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

permitir ao educando o fortalecimento de sua identidade, como


afirma Aragão,

(...) o relato pessoal ainda se utiliza de uma estrutura


que permite ao educando o fortalecimento de sua
identidade através da operação com reflexões sobre
seu próprio universo, propiciando ao sujeito voltar-se
para si buscando a compreensão sobre seu eu. Este
gênero além de tratar das questões individuais do su-
jeito também integra este mesmo ser através da troca
de experiência apresentada nas exposições escritas ou
orais. (ARAGÃO, p.13, 2016)

A escolha do gênero relato pessoal como eixo da intervenção


realizada no segundo ciclo da pesquisa-ação deve-se à constatação
da necessidade de trabalhar, de forma sistemática, as dificuldades
que os alunos apresentam com relação à produção escrita, a partir
de um gênero que lhes possibilite resgatar valores para afirmação
de suas identidades individuais e coletivas.
O gênero relato pessoal é um campo aberto que permite à
pessoa rememorar o seu passado, revivê-lo no presente e projetar
seu futuro com as experiências que adquiriu ao longo dos tempos.
O relato é escrito para resgatar uma lembrança, uma circunstância
que ficou marcada na memória. Para Oliveira (No prelo.), “relato
de memória, se caracteriza pela partilha da experiência pessoal e
pela recuperação dos eventos passados que são recontados pelo
indivíduo a leitores-testemunhas.”
Trabalhar com o gênero relato pessoal é permitir que o aluno
registre experiências, sentimentos e situações vividas, valorizando a
escrita como modo de registro. Nesse sentido, Candau afirma que

De fato, o ato de memória que se dá a ver nas narrati-


vas de vida ou nas autobiografias coloca em evidência

216
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

essa aptidão especificamente humana que consiste


em dominar o próprio passado para inventariar não o
vivido (...), mas o que fica do vivido. O narrador parece
colocar em ordem e tornar coerente os acontecimen-
tos de sua vida que julga significativos no momento
mesmo da narrativa: restituições, ajustes, invenções,
modificações, simplificações, sublimações, esquemati-
zações, esquecimentos, censuras, resistência, não ditos,
recusas, “vida sonhada”, ancoragem, interpretações
e reinterpretações constituem a trama desse ato de
memória que é sempre uma excelente ilustração das
estratégias identitárias que operam em toda a narrativa.
(CANDAU, 2016, p. 71)

O gênero relato apresenta predominância do tipo narrativo, ou


seja, apresenta os elementos do narrar: personagens, o narrador
é o próprio protagonista, o tempo e o espaço bem definidos, foco
narrativo em primeira pessoa, ou seja, a linguagem é pessoal e sub-
jetiva, podendo apresentar trechos descritivos. Esse se diferencia da
narrativa de ficção por narrar fatos vividos e não fatos inventados.
O autor do relato seleciona o que lhe é mais importante, ou que
tenha marcado mais a sua vida.

Gráfico 1 — Síntese descritiva do gênero relato

217
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Trazer esse gênero para dentro da sala de aula como objeto


de ensino cumpre a função de valorizar a história de vida de cada
sujeito, dando voz aos sujeitos anônimos, muitas vezes, excluídos
das próprias atividades escolares.
Os gêneros do discurso, segundo Bakhtin (2011), são tipos
relativamente estáveis de enunciados compostos por três elemen-
tos: conteúdo temático, construção composicional e estilo, sendo
determinados segundo cada esfera de comunicação:

Esses mecanismos refletem as condições específicas e


as finalidades de cada referido campo não só por seu
conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou
seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos
e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua
construção composicional. Todos esses três elementos
– o conteúdo temático, o estilo, a construção compo-
sicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pelas es-
pecificidades de determinado campo da comunicação.
(BAKHTIN, 2011, p. 262)

Em vista disso, organizei a proposta de análise do gênero


relato, considerando o conteúdo temático, a construção compo-
sicional, o estilo e o contexto da produção.
Para a proposta de intervenção foi pedido aos alunos que
produzissem relatos pessoais para serem publicados no Museu
da Pessoa, com vistas a ampliar a prática da escrita. No entanto, a
proposta acabou tomando dimensões maiores, e, além dos relatos
pessoais, também produzimos um breve documentário com todas
as atividades que aconteceram durante a realização do projeto.
O gênero relato pessoal permite que o aluno seja um autor-
narrador-personagem da narrativa, porque seu compromisso
com a escrita do texto está com a veracidade dos fatos relatados.

218
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Trazer esse gênero para o espaço escolar, como objeto de ensino,


valoriza as histórias de vida anônimas, dando voz aos sujeitos da
modalidade da EJA. Sendo assim, eles têm a possibilidade de se
reconhecerem como sujeitos histórico-sociais, podem se perceber
como sujeitos integrantes da sua história.
Durante o projeto, algumas atividades pedagógicas de produ-
ção textual foram propostas à turma com o objetivo de incentivar
a escrita e de levá-los a escrever com mais autonomia. Todas as
propostas são do gênero relatar. O aluno contando sua trajetória
de vida abre um caminho para o conhecimento do alunado da EJA
e, dessa forma, favorece um melhor planejamento por parte do
professor.

RESULTADOS E ANÁLISE DE ALGUMAS PRODUÇÕES

Os relatos pessoais analisados nesta pesquisa foram escritos


individualmente, algumas vezes durante a aula, outras em casa.
Assim, criou-se a oportunidade para cada um narrar por escrito e
oralmente um pouco da sua história, os relatos completos estão
no. No entanto, a construção ganhou mais sentido quando cons-
truída e compartilhada coletivamente, nos momentos em que eu
procurei motivar toda a turma a redigir seus textos. O momento
de compartilhar as experiências por meio das atividades fez com
que os alunos quebrassem o silêncio e contassem o que se passou
em suas vidas.
Em todos os relatos, constata-se que os alunos estão inseridos
dentro de uma coletividade. Eles fazem frequentemente alusão à
família, pois nunca estão sozinhos, mas em companhia dos pais,
irmãos, amigos próximos. Isso pode ser constatado nos excertos
que se seguem:

Eu não tive estudo, fui trabalhar com oito anos de idade


para sobreviver. Meus pais tiveram muitos filhos, com
isso, eu me casei muito nova. Não tinha muita escolha.

219
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Tenho seis filhos vivos e dois mortos. Vivi com um ma-


rido que não me dava valor, vivíamos brigando e tive
que me separar. (Aluna Em)

Minha mãe passou por muitas lutas para conseguir


criar a mim e minha irmã mais nova. Na época que meu
pai morreu, ela não trabalhava, dependia da ajuda das
pessoas mais próximas para sobreviver. Mesmo com
todas as dificuldades vividas na época, em momento
algum minha mãe nos abandonou. (Aluna Dz.)

É a partir das relações sociais que os alunos se identificam em


seus relatos pessoais memorialísticos, fazendo uma breve descrição
da sua família, mencionando a quantidade de irmãos, seu relaciona-
mento com os pais, contando como viviam e expondo as precárias
condições de vida. Observa-se, nos excertos a seguir, o destaque
às adversidades vividas na infância e a ênfase nos laços familiares:

Minha mãe passou por muitas lutas para conseguir


criar a mim e minha irmã mais nova. Na época que
meu pai morreu, ela não trabalhava, dependia da ajuda
das pessoas mais próximas para sobreviver. (Aluna Dz.)

Eu morava com minha família em uma casinha de barro,


no lugar tinha apenas mato. Às vezes minha avó saia
bem cedo de casa para pegar água no rio para tomar-
mos banho. (Aluna S.)

Nasci em uma família muito pobre e muito sofrida,


a gente não tinha muita coisa para comer, mas não
passávamos fome. (Aluna F.)

A influência na formação inicial da identidade dos alunos é,


sem dúvida, de seus pais/responsáveis, como pode ser observado

220
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

nas atitudes e comportamentos que dizem ter assumido por conta


dos exemplos dos pais. Em seus relatos, eles descrevem o percurso
da construção da identidade a partir das referências familiares e
destacam como os valores incorporados nessa convivência contri-
buíram para sua formação, como podemos ler em:

Não tenho medo de encarar serviço pesado, pois


com toda essa dificuldade, graças a Deus, estou aqui,
aprendi isso com minha mãe. (Aluna R)
Quando eu era pequena, mesmo com toda situação
difícil, eu era feliz com minha família, morávamos nesta
época em Carapebus, município ao Norte do Rio de
Janeiro. Pouco tempo depois, nos mudamos para Quis-
samã, também ao Norte do Rio de Janeiro. (Aluna S.)

A memória mantém uma estreita vinculação com os sentimen-


tos e emoções. De acordo com Candau, “a memória é a identidade
em ação, mas pode, ao contrário, ameaçar, perturbar e mesmo ar-
ruinar o sentimento de identidade...” (CANDAU, 2016, p. 18). Essa
afirmação pode ser comprovada através dos trechos dos relatos
destacados abaixo, que misturam a emoção ligada às experiências
de sofrimento vivenciadas e ao desejo de não se lembrarem daquilo
que não conseguem esquecer. Aqui, o casamento e o nascimento
dos filhos, situações bastante determinantes para a identidade
feminina, são marcados negativamente na memória:

Muitas vezes eu não gosto de lembrar de ter casado


tão nova, de não ter aproveitado a oportunidade de
terminar meus estudos, às vezes eu pensava que tudo
isso ser lindo... (Aluna N.)

Quando me casei e tive filhos a vida ficou mais difícil


ainda, agora sofríamos eu e meus filhos juntos... (Aluna
Mr.)

221
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Dentre as lembranças inesquecíveis, muitas são aquelas que


remetem às situações ligadas a problemas, tristezas e dificuldades
vividas na infância e decorrentes da pobreza, como se observa nos
excertos abaixo.

Eu, muito nova, tive que ajudar meus pais nas planta-
ções de feijão, milho, abóbora, cana entre outras coisas.
Ajudava na limpeza da roça, para assim fazermos nossas
plantações. Eu ficava um pouco cansada com isso, mas
tudo o que fiz para ajudá-los, tudo o que passei me fez
ser a mulher que sou. (Aluna R.)

Minha infância não foi muito feliz, sofri muito em toda


minha vida. Foi muito difícil para mim, porque fui para o
Rio de Janeiro com nove anos de idade, fui trabalhar na
casa de minha irmã. Sofri muito nas mãos dela. (Aluna M.)

Com relação à representação da escola, pode-se perceber


que alguns relatos evidenciam os motivos que os impediram de
dar continuidade aos estudos, impelindo-os à evasão escolar. Tais
momentos contrastam com aqueles que apontam a alegria de
poder voltar a estudar após tantos anos fora do ambiente escolar.

Depois eu fui trabalhar em casa de família e, aos 22


anos eu me casei, tenho uma linda filha de dezessete
anos. Este ano eu parei e pensei o melhor para minha
vida, então resolvi voltar a estudar. Estou adorando e
aprendendo muito... (Aluna Dn.)

Quando eu era jovem e solteira não deu para eu termi-


nar meus estudos, não existia ônibus escolar, eu tinha
que caminhar a pé, a escola era longe da minha casa.
Hoje, tudo é diferente, têm vários ônibus escolares,
ninguém precisa mais andar a pé.

222
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Agradeço a Deus porque tive a oportunidade de voltar


a estudar... (Aluna R.)

Em alguns relatos, os alunos deixam transparecer as dificulda-


des do relacionamento familiar, assinalando, por exemplo, a falta
de afetividade, de carinho e a ausência da figura paterna. Como se
trata de jovens e de adultos, muitas alunas narraram a condição
de maus-tratos que viveram em seus casamentos.

Vivi com um marido que não me dava valor, vivíamos


brigando e tive que me separar. (Aluna Em.)
Quando me casei e tive filhos a vida ficou mais difícil
ainda, agora sofríamos eu e meus filhos juntos... A
maioria das vezes que os via sendo espancados pelo
pai, eu tentava socorrê-los, então, sobrava para mim. Eu
apanhava junto, como não tinha força para combater
com ele, com isso todos sofriam. (Aluna Mr.)

Hoje eu amo a minha madrasta e agradeço por ela


ter tido paciência em me criar. Mas, o meu grande de-
sejo era de ter conhecido a minha mãezinha querida.
(Aluna Dn)

Por outro lado, outros alunos afirmam que, mesmo tendo


tido uma infância pobre, sofrida, com dificuldades, foram felizes
em seus relacionamentos familiares e em suas vivências infantis.

Eu tive uma infância um pouco difícil, porém feliz.


Lembro-me que eu, meus e amigos nos juntávamos e
brincávamos daquelas brincadeiras antigas, que não
vemos mais: pique – esconde, queimado, pega-pega.
Era muita diversão... (Aluna Mr.)

223
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Quando eu era pequena, mesmo com toda situação


difícil, eu era feliz com minha família... (Aluna S.)

Nas produções dos estudantes, podemos observar como eles


acionaram seus conhecimentos sobre o gênero relato pessoal a
partir dos três aspectos que Bakhtin aponta como caracterizado-
res dos gêneros do discurso: o conteúdo temático, a construção
composicional e o estilo.

a) conteúdo temático: aos alunos foi pedido que buscassem na me-


mória lembranças e fatos que marcaram suas vidas, fatos vividos na
infância ou não, não, necessariamente, em uma ordem cronológica.
Nesse momento da produção, o estudante se articula como sujeito
social e histórico “de fato, o jogo da memória que vem fundar a
identidade é necessariamente feito de lembranças e esquecimentos
(...)” (CANDAU, 2016, p. 18).

b) construção composicional: é a estrutura formal do texto, a manei-


ra de apresentação e organização. Foi solicitado que o texto fosse
construído em prosa. A construção composicional apresenta uma
sequência narrativa temporal, na qual o narrador conta em forma de
memórias histórias ocorridas no passado. Assim como as narrativas, o
gênero relato apresenta os elementos: personagens, tempo, espaço,
narrador e enredo. Quanto ao estilo, o léxico escolhido pelo autor
permite identificar os recursos estilísticos e linguísticos utilizados
para descrever os locais e suas emoções e sentimentos.

c) estilo: os alunos puderam demonstrar seu estilo; pressupõe que o


foco narrativo da escrita fosse em primeira pessoa, verbos no tempo
pretérito perfeito ou imperfeito, marcadores temporais e espaciais.

d) contexto da produção: o estudante saber o espaço de circulação


do relato é fundamental para o processo de escrita, para usar a
linguagem e os recursos linguísticos apropriados. Se o estudante
pensar que a circulação da produção será apenas na sala de aula,
isso poderá interferir no resultado. Dessa forma, desde o início, os
alunos sabiam que iriam escrever o relato para ser publicado no
site do Museu da Pessoa. Priorizou-se a publicação na internet, um

224
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

suporte de grande potencial, que pode ser acessada de qualquer


lugar e que permite um amplo grupo de leitores, assim como pos-
sibilita que os alunos possam ter conhecimento de outras histórias
de vida e se identificarem.

No que concerne ao conteúdo temático, a aluna Dz, por


exemplo, no texto “Minha travessura”, relembra uma peraltice
cometida pelo narrador-personagem durante sua infância na casa
de sua avó, em que escondeu um cacho de bananas da avó para
poder se “vingar” pelo fato dela ter omitido que tinha bananas
maduras para comer.

A minha avó paterna morava num bairro pequeno


chamado Prosperidade, afastada do Centro de Quis-
samã. Ela era legal, mas era muito faladeira e gostava
de colher bananas. Sempre que pedíamos a ela dizia
que não tinha.
(...)
Na hora do almoço eu perguntei a minha avó se tinha
banana para comer com a comida, ela respondeu que
as bananas estavam verdes. Como eu era muito levada,
não acreditei.
Ao terminar o almoço, peguei um saco e chamei minha
irmã e fomos até a roça da minha avó, onde ela tinha
uma plantação de bananas. Era uma distância pequena
até a casa dela.

Em um tom mais triste, o texto “Minha história” da aluna Dn,


relembra perdas sofridas na infância que não se apagam de sua
memória. São lembranças fortes em que o narrador em primeira
pessoa deixa bem claras suas emoções e sentimentos.

Minha história é um pouco triste... Não conheci mi-


nha mãe, com um mês de vida ela morreu e deixou

225
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

nove filhos comigo, eu era a caçula da casa. Quando


completei doze anos de idade, meu pai também veio
a falecer. Esses fatos foram os que mais marcaram a
minha vida até hoje...

Com relação à estrutura composicional, observamos que os


elementos da narrativa estão bem marcados nos relatos produzi-
dos pelos estudantes. Logo no início do relato, a Aluna Dz já nos
apresenta a personagem secundária, sua avó, com algumas carac-
terísticas pessoais. O espaço e o tempo são bem definidos. O texto
apresenta todos os elementos da narrativa (personagens, espaço,
tempo, narrador). A dinâmica da narrativa é construída através de
ações contadas com detalhes pelo narrador. A sequência temporal
é marcada em cada início de parágrafo com marcadores temporais:
adjuntos adverbiais, locuções adverbiais:

A minha avó paterna morava num bairro pequeno


chamado Prosperidade, afastada do Centro de Quis-
samã. Ela era legal, mas era muito faladeira e gostava
de colher bananas. Sempre que pedíamos a ela dizia
que não tinha.

A aluna F apresenta, em seu relato, o espaço da narrativa que


mais guardou na memória: a casa da sua avó, que ficava em um sítio. O
narrador- personagem deixa claro que a avó foi uma figura importante
em sua vida, pois ela lembra das coisas que sua avó fazia para ela.

A parte que eu mais gostava era da casa da minha avó


ela tinha um sítio e lá tinha muita coisa boa que até hoje
eu sinto saudades. Tinha: café, milho, banana, pinha,
fava, manga, abacaxi. Tinha uma horta que a gente fez.
Eu adorava quando a minha avó cozinhava a batata
doce, ela colocava um pouco de açúcar e ficava aquela
calda maravilhosa. E o leite com café, que delícia! E
quando ela fazia broa no fogão de lenha...

226
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Quanto ao estilo, a aluna Dz usa um discurso muito particular


para revelar detalhes das características pessoais da avó, a mais car-
rancuda, do avô, o mais amoroso e dela mesma, travessa e levada.

(..). Ela era legal, mas era muito faladeira (..)


(..)Como eu era muito levada, (..)
(..)”. O meu avô começou a rir e acabei ganhando aquele
abraço do meu avô que me amava muito. (..)

Ainda quanto ao estilo, o texto da maioria dos alunos não


apresenta muitos recursos expressivos, são concisos e com poucos
ou quase nenhum elemento coesivo. A aluna En constrói seus perí-
odos com frases enfáticas e curtas, como nestes exemplos: Eu não
tive estudo, fui trabalhar com oito anos de idade para sobreviver.
(...); Hoje sou avó de vários netos. (...)
Como procuramos demonstrar ao longo do artigo, conhecer
e compreender a história dos alunos da Educação de Jovens e
Adultos e suas importantes transformações se faz necessário como
um importante instrumento de mudança e resistência no espaço
político pedagógico da escola. Nesse sentido, o relato pessoal
foi escolhido por ser um gênero que permite a reflexão sobre a
identidade, assim, a história de vida dos estudantes tornou-se o
tema central do trabalho. As experiências realizadas demonstraram
que possibilitar ao aluno inserir sua história de vida na prática de
relatos ajudou a romper barreiras no processo da produção escrita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A modalidade de Jovens e Adultos enfrenta diversos problemas,


além da falta de recursos e políticas públicas voltadas para a modali-
dade, ainda se têm alunos e professores que chegam à escola à noite
e precisam vencer o cansaço e a desmotivação. Como professora
da EJA há doze anos, vi turmas iniciarem cheias e se esvaziarem
ao longo do ano. Muitas eram as causas da evasão, dentre elas

227
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

afirmações como “não sei escrever”, “não consigo acompanhar as


aulas”. Por muito tempo, acreditei que a ineficiência e as queixas
dos alunos eram resultados apenas da falta de interesse e vontade
deles. Hoje, após a pesquisa, sei o quanto o desenvolvimento de
eventos de letramento voltados para o público dessa modalidade e
baseados em seus conhecimentos resulta em sucesso e motivação.
A escolha do gênero relato pessoal como objeto de ensino
teve um grande impacto na intervenção realizada, pois, além de
aprimorar as capacidades linguísticas, proporcionando melhoria na
prática da escrita, os estudantes puderam refletir sobre os aconte-
cimentos de suas vidas, presentes em suas memórias. Através de
suas escritas puderam dar expressão a si mesmos, compartilhando
suas lembranças e experiências, e, desse modo, sentiram-se moti-
vados a escrever. Passando a serem autores de suas produções, que
ultrapassaram o contexto escolar, uma vez que os relatos foram
publicados no site do Museu da Pessoa, perceberam, pela prática
que os textos assumem funções sociais diferentes.
Nesse sentido, a expectativa criada pelos alunos com a ideia
de terem seus textos publicados no site e a criação do documentá-
rio fez com que os eles se empenhassem, tendo uma participação
bastante positiva ao longo do desenvolvimento do projeto. Eu,
enquanto professora e pesquisadora, aproprio-me das palavras
de Paulo Freire quando diz que “educando, me vi sendo educada.”
Esta pesquisa contribuiu imensamente para a minha prática
pedagógica. Em vista disso, acredito que será de relevância para
o trabalho docente de professores de língua portuguesa que se
interessam pelos estudos da produção textual, assim como para os
profissionais da educação repensarem as práticas voltadas para os
alunos da Educação de Jovens e Adultos, entendendo a importância
de atrelar teoria à prática para realizar um trabalho que contribua
efetivamente para a aprendizagem dos alunos.

228
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

REFERÊNCIAS

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de Sergipe, São Cristóvão, 2016.
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CANDAU, J. Memória e Identidade. 1 ed. 3ª reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2016.
FARACO, C. E.; MOURA, F. M.; JUNIOR, J. H. M.. Língua Portuguesa –
linguagem e interação. 2. Ed. – São Paulo: Ática, 2013.
FREIRE, P. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
______. Pedagogia da solidariedade. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
HALL, S.A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu
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no complexo temático: uma cartografia para além da representação. Porto
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Quissamã. <https://
cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/quissama/panorama> acesso em 04/02/2017.
LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário.
Tradução de Ernani Terra. Porto Alegre: Artmed, 2002.
MIRANDA, D. et. al. Quem sou eu? São Paulo: Sesc Vila Mariana, 2017.
MONTE MÓR, W. Caderno de Orientações Didáticas para EJA: línguas
estrangeiras. São Paulo: SME/DOT/EJA, 2010. Disponível em:http://
portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Projetos/BibliPed/Documentos/
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textos escritos por adolescentes aprisionados. No prelo.
STREET, B. Letramentos sociais abordagens críticas do letramento no
desenvolvimento, na etnografia e na educação/ Brian V. Street. Tradução de
Marcos Bagno. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

229
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

WORCMAN, Karen. Museu da Pessoa: o que fazer com as dúvidas?. Revista


Universidade de São Paulo – Brasil. São Paulo, v.5, n.10 (2011). Disponível
em https://www.revistas.usp.br/oralidades/article/view/107247. Acesso
em setembro de 2017.

230
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

O GÊNERO CONTO E O ENSINO DE GRAMÁTICA:


UMA ABORDAGEM CRÍTICA

Marcela Martins de Melo Fraguas

INTRODUÇÃO

Nesta pesquisa, problematizei o ensino de língua portuguesa


no que concerne à apropriação dos conhecimentos linguísticos,
gramaticais e de gêneros textuais. O ensino do gênero por si só,
desconectado dos três elementos apontados por Bakhtin (2011)
como indispensáveis ao todo do enunciado – conteúdo temático,
o estilo e a construção composicional – não é significativo ao alu-
no. Com base nisso, a proposta de intervenção aqui apresentada
objetivou buscar estratégias para que o gênero textual conto fosse
abordado de modo que não fosse utilizado como pretexto para o
ensino de gramática normativa, centrado apenas na metalingua-
gem, para interpretações de textos de respostas literais e pouco
reflexivas ou para a reprodução do gênero por parte do aluno em
atividades de produção textual. Ademais, a percepção de que, ao
trabalhar os gêneros textuais em sala de aula, os alunos apenas
reproduziam os modelos dos gêneros apresentados, mas não conse-
guiam interpretar nem produzir textos de forma satisfatória, ainda
que conhecessem o gênero e o tivessem exercitado exaustivamente
nas aulas, foi a motivação para esta problematização e mudança
de concepção de ensino.
Sempre busquei em minha prática docente entender os mo-
tivos pelos quais os estudantes avançam os anos escolares sem

231
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

desenvolverem suas habilidades no que tange à aprendizagem de


língua portuguesa. Na tentativa de responder a esse questiona-
mento e a fim de propiciar aprendizagem significativa aos alunos
tenho trabalhado, ao longo dos anos, ajustando os materiais aos
quais tenho acesso e outros materiais pesquisados e produzidos
por mim aos gêneros textuais e conteúdos estabelecidos como
aprendizagem mínima pelos programas curriculares direcionados
às escolas onde trabalho.
Entendo que a aprendizagem é significativa quando os conhe-
cimentos de língua, de gênero e de discurso são considerados nas
aulas com vistas a aprimorar os domínios de leitura e de escrita
bem como ampliar o repertório linguístico do aluno. No recorte
aqui apresentado, escolhi trabalhar com o gênero textual conto,
pois este é tomado pelo currículo da rede estadual como eixo
para o ensino de língua portuguesa do 2º bimestre do nono ano
do ensino fundamental.
Muito é dito a respeito do fracasso escolar, das dificuldades
enfrentadas para o ensino e a respeito do insucesso nas avaliações
internas e externas. De fato, muitos são os fatores que contribuem
para os resultados insatisfatórios apresentados pela escola; con-
tudo, preferi fazer o movimento contrário, ao enfatizar, por meio
das estratégias adotadas, o que pode ser feito para a ampliação do
repertório linguístico discente, e posteriormente, para a mudança
gradativa do atual cenário educacional.
Assim, desde meu ingresso no curso de Mestrado Profissional
em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da Facul-
dade de Formação de Professores (UERJ/FFP), tenho me dedicado
a refletir sobre o ensino de língua e de gêneros textuais e a buscar
formação nesse sentido, a fim de melhorar minha prática e de con-
duzir minhas aulas de forma que o estudo do gênero e o estudo
da língua delas façam parte sem que o ensino de um exclua ou se
sobreponha ao ensino do outro.

232
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Foram selecionados para o trabalho em sala de aula os seguin-


tes contos: Tentação (1999), de Clarice Lispector, Conto de fadas
para mulheres modernas (2008), de Luís Fernando Veríssimo, e
Para que ninguém a quisesse (1986), de Marina Colasanti. Através
deles, pude trabalhar, além das questões linguísticas, outros temas,
tais como o sentimento de exclusão e de inferioridade gerado pe-
las diferenças, a mudança de posição e de postura da mulher na
sociedade e a violência contra a mulher. Por fim, a opção por esse
gênero textual proporcionou a reflexão sobre a fuga da realidade
por meio da linguagem, dado que o conto é um texto ficcional,
e, ao mesmo tempo, a possibilidade de fazer da sala de aula um
espaço para a discussão a respeito de fatos recorrentes além dela.
Os resultados da pesquisa evidenciam que um dos entraves
para a aprendizagem está no modo como os gêneros são apre-
sentados aos alunos, uma vez que os contextos de produção e
de recepção, as intenções explícitas e implícitas na produção de
texto, bem como os conteúdos de natureza gramatical, dos quais
os produtores de qualquer discurso se valem para proferi-lo, são
negligenciados nas aulas ou pouco explorados pelos professores
de língua.

O CONTEXTO DA PESQUISA-AÇÃO E A OPÇÃO PELO NONO


ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

Desde outubro de 2007, trabalho como professora estatutária


na rede estadual, atuando com as disciplinas de língua portugue-
sa e de produção de texto em turmas do ensino fundamental. O
Colégio Estadual Santos Dias, onde a pesquisa-ação foi realizada,
está localizado no bairro de Neves, município de São Gonçalo, e, na
ocasião, funcionava nos três turnos, de forma a atender a alunos do
6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio regular
e do novo ensino de jovens e adultos. Atualmente, o 3º turno não
existe mais e a escola funciona apenas na modalidade regular. Nela,
estudam não só adolescentes e adultos da própria comunidade,

233
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

mas também de outras comunidades vizinhas, principalmente de


uma comunidade carente bastante conhecida na região por conta
da violência que a assola.
Optei pelo trabalho com o nono ano, pois, dentre os outros
anos escolares, os gêneros propostos pelo Currículo destinados a
essa etapa de escolaridade foram os que melhor possibilitaram o
agrupamento de gêneros, necessário à ação que pretendia realizar.
Além disso, priorizei repensar o ensino de língua para essa etapa de
ensino, tendo em vista que é o último ano do ensino fundamental.
Espera-se que um aluno do nono ano tenha desenvoltura com
a linguagem que lhe permita realizar, ao menos, interpretações de
textos simples, sem grandes níveis de complexidade. Entretanto,
a fragmentação no ensino de língua, que se estende ao longo dos
anos escolares do ensino fundamental, faz com que os alunos
cheguem a essa fase escolar com dificuldades de compreensão e,
principalmente de produção, de textos narrativos, e, a meu ver,
despreparados para ler, compreender e escrever textos de domi-
nâncias textuais mais complexas, como a dissertativa, por exemplo.
A opção pelo trabalho com o nono ano foi motivada pelo desejo
de promover um ensino de língua que possibilitasse a esses alunos
superar suas dificuldades no tocante às competências de linguagem
para que isso não se estenda aos anos subsequentes.
Assim, o trabalho de intervenção aconteceu na turma 901 no
turno da manhã. As aulas nesta turma realizavam-se semanalmente,
com carga horária de quatro tempos de 50 minutos, distribuídos
nos dois primeiros tempos de terça-feira e nos dois primeiros tem-
pos de quarta-feira. O registro das aulas teve início em 03 de maio
de 2016 e durou pouco mais de dois meses. Na turma, estavam
inscritos 33 alunos, porém apenas 29 frequentam as aulas.
Cabe ressaltar que, dentro de uma abordagem qualitativa, a
pesquisa-ação foi o método que norteou o trabalho de pesquisa, já
que meu olhar esteve voltado às respostas possíveis aos problemas
no ensino que resultam em defasagem de aprendizagem por parte

234
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

de meus alunos. David Tripp define em seu artigo que a “pesquisa-


ação é uma forma de investigação-ação que utiliza técnicas de
pesquisa consagradas para informar a ação que se decide tomar
para melhorar a prática” (TRIPP, 2005, p. 5).
Na mesma direção, Bortoni-Ricardo (2008) enfatiza a rele-
vância do professor-pesquisador para os estudos educacionais,
tendo em vista que este se distingue de outros pesquisadores por
refletir sobre a própria prática e buscar desenvolver seus aspectos
positivos, a fim de superar as próprias deficiências. A autora afirma
que “o professor pesquisador não se vê apenas como um usuário
de conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas se
propõe também a produzir conhecimentos sobre seus problemas
profissionais, de forma a melhorar sua prática” (BORTONI- RICAR-
DO, 2008, p.46).
Dessa forma, dentro de um contexto em que se apresentam
as dificuldades dos alunos frente às reflexões sobre a língua, en-
tendo que as estratégias adotadas por mim atuaram como ação, na
medida em que se propuseram a ressignificar o ensino de gêneros
textuais, com base em uma mudança de foco para um ensino que
propiciou a apropriação linguística através da leitura de textos e
da reflexão sobre a língua.

ENSINO DE GÊNEROS TEXTUAIS E DE GRAMÁTICA: ALGUMAS


CONSIDERAÇÕES

Em comunhão com o trabalho voltado para o estudo dos gêne-


ros textuais como objeto de ensino, defendido pela chamada Escola
de Genebra, a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro
(SEEDUC) desenvolveu um currículo no qual os estudos de leitura,
uso da língua e de produção textual estão intrinsecamente ligados
ao trabalho com gêneros textuais. Entretanto, minha experiência
em sala de aula, a observação do ambiente escolar e a escuta das
insatisfações de outros colegas de diferentes áreas em relação aos
problemas referentes à leitura, que se refletem também na escrita,

235
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

mostram que, apesar de um modelo de currículo que propõe o


desenvolvimento de habilidades e competências, a abordagem que
se faz de um texto em sala de aula ainda é bastante voltada para o
conteúdo por si só. Sendo assim, o aluno não desenvolve as com-
petências e habilidades necessárias para se tornar um leitor crítico
para além da sala de aula e vai levar essa dificuldade ao longo de
sua vida escolar. Talvez por esse motivo, são encontrados alunos
no ensino médio que não conseguem realizar de forma satisfatória
a interpretação de textos simples.
Na tentativa de repensar o ensino de língua, aspectos de
conhecimento linguístico, importantes ao aprendizado, foram
negligenciados. No que tange ao trabalho em torno dos gêneros
textuais, o conhecimento das estruturas da língua que compõem
os enunciados. Estes, por sua vez, constituem o texto, que é posto
em segundo plano, quando trabalhado, nas aulas de língua portu-
guesa, já que o seu ensino está ainda muito ligado à classificação
de termos e não à sua função. Entendo que tanto a compreensão
do texto, quanto a sua situação de produção, conteúdo temático,
o gênero que o materializa e as marcas linguísticas que o consti-
tuem são de igual importância para que o aluno consiga atingir às
competências de oralidade, de leitura e de escrita.
O indivíduo só é capaz de adaptar e utilizar a linguagem em
todas as situações quando de fato conhece o funcionamento de
sua língua. Nessa direção, cabe ressaltar que, ao chegar à escola,
o aluno já se utiliza da linguagem nas inúmeras situações de seu
cotidiano, e que, para tal, ele não precisa da escola. Nesse contexto,
o que caberia à escola?
À escola cabe sistematizar o conhecimento que o aluno já pos-
sui, a fim de que ele adquira outros, para, como disse, ampliar seu
repertório. Para isso, precisam ser pensados o léxico, a gramática
constitutiva dos textos, a produção dos enunciados e as condições
de produção. Na ansiedade em fazer com que o aluno se aproprie
dos gêneros textuais, as aulas de língua portuguesa e de produ-

236
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ção textual acabam esquivando-se de ensinar a língua, ensinando


apenas, quando o fazem, a composição do gênero e sua estrutura.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
somente nos anos 80, com as pesquisas da Linguística, os avan-
ços na área de Educação e da Psicologia de aprendizagem foram
notados e as discussões tornaram-se mais coesas. O documento
elenca uma série de críticas ao ensino que emergiram dessas novas
reflexões: a desconsideração dos interesses do aluno, excessiva
escolarização das atividades de leitura e de produção de texto, uso
do texto como expediente para tratar valores morais e pretexto
para ensinar os aspectos gramaticais, a valorização da gramática
normativa, das regras e o preconceito contra a “variedade não
padrão”, ensino mecânico e descontextualizado de fragmentos e
de frases soltas, apresentação de uma gramática tradicional faci-
litada (BRASIL, 1998, p. 18). E destaca que as práticas de ensino
no segundo segmento do ensino fundamental devem considerar
a leitura como atividade de compreensão e não de decodificação,
que o objetivo de atividades que primem pelo desenvolvimento da
oralidade e da escrita é o da interlocução efetiva e não a produção
de textos para serem objeto de correção e, por fim, que o ensino
deve levar o aluno a pensar a linguagem, a fim de adaptá-la às
situações e aos propósitos comunicativos.
Tendo em vista que mais de uma década nos distancia da data
de elaboração do documento, ressalto que urge repensar não só
os conteúdos a serem ensinados, mas, principalmente, como serão
ensinados de maneira concreta, a fim de gradualmente garantirem
o progresso do aluno. Destaco que, até o momento desta pesquisa,
estão em discussão os novos conhecimentos aos quais, segundo
a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os estudantes de todo
país têm direito de ter acesso e de se apropriar1.
A respeito de repensar não só os conteúdos a serem ensinados,
mas também o modo com o qual serão ensinados é pertinente o

1 Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/base/o-que, acesso em: 10/11/2015.

237
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

exposto por Miguel G. Arroyo (2013, p. 24) quando diz que, ao


sairmos da universidade, nosso referente é a matéria que vamos
lecionar, mas ao chegarmos à sala de aula nosso referente passa a
ser o aluno, o sujeito com o qual lidamos.
Dessa forma, é de extrema necessidade pensar em como
transformar os conteúdos dos currículos em matéria de ensino
significativo. Muito tem se falado em ensino contextualizado,
em realidade do aluno, mas o que mais se vê, ainda nas escolas,
são professores de língua portuguesa e de produção textual
tentando ajustar os conteúdos estabelecidos nos currículos aos
livros didáticos, que desconhecem a realidade das salas de aula,
e ambos cada vez mais distantes do contexto social e cultural
do educando, e, ainda, o ensino da gramática, os mecanismos de
coesão, de coerência, os recursos expressivos, e tantos outros
de ordem estrutural, necessários à boa leitura dos textos, dando
lugar à reprodução descontextualizada e fragmentária dos gêne-
ros textuais por si só.
O professor tem se distanciado cada vez mais da seleção de
conteúdos e da preparação de atividades que visem à ampliação
do conhecimento e à reflexão, para atender às exigências dos cur-
rículos e das avaliações externas, que não condizem, na maioria
das vezes, com a realidade encontrada em sala de aula e com as
expectativas e necessidades das turmas.
Com base nas reflexões de Bakhtin (2011) acerca de gêneros
discursivos, os PCN estabelecem a noção de gênero como objeto
de ensino da escola, uma vez que estes seriam a materialização
dos discursos sob a forma de textos. Sobre o processo de ensino-
aprendizagem, destacam que as situações de aprendizado devem
acontecer em contextos nos quais as situações enunciativas, não só
da sala de aula, sejam recriadas, considerando-se as modificações
no conteúdo que a transposição didática pressupõe. Ao professor
cabe planejar e aplicar atividades que orientem a reflexão por parte
do aluno. Tais atividades devem, de acordo com os Parâmetros,

238
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

considerar não apenas a relevância social do gênero, mas também


o fato de que estes se inscrevem sob diferentes formas.
Ensinar gramática é um desafio a ser enfrentado pelos profes-
sores nas aulas de língua portuguesa. Como assinala Luiz Carlos
Travaglia, a ação de dar aulas de uma língua aos falantes dessa
língua requer a seguinte pergunta: “para que se dá aulas de Portu-
guês a falantes nativos de Português?” (TRAVAGLIA, 2008, p.17).
Em tese, só se utiliza aquilo que se conhece; logo, se falamos por-
tuguês conhecemos ou deveríamos conhecer a nossa língua. Nesse
sentido, a necessidade de se ensinar a língua, sobretudo em sua
modalidade escrita e formal, considerando que o aluno já chega à
escola fazendo uso da modalidade falada e informal, é urgente. O
educando precisa conhecer as regras que a descrevem e também
ser apresentado a outras possibilidades de uso, diferentes das que
ele já domina, de modo a ampliar sua competência comunicativa.
Observa-se que, na tentativa de promover um ensino de língua
com foco na interação, o estudo de normas foi apagado das aulas de
língua, bem como tem sido evitada a referência às nomenclaturas
gramaticais. Os professores parecem evitar o ensino da gramática
porque não conseguiram passar do estudo isolado da oração para
o estudo do texto. Uma grande dificuldade é a ultrapassagem dos
padrões transmissivos estabelecidos historicamente para adotar
uma perspectiva que concilie o aprendizado da metalinguagem a
uma perspectiva epilinguística.
Em relação ao ensino de língua, ao longo dos últimos anos,
vejo que, em minhas aulas, ora privilegiei o estudo da gramática
normativa e a metalinguagem, através de exercícios em que o tex-
to era tido como recurso para o reconhecimento das categorias
gramaticais e de classificação de termos, ora a interpretação de
textos. Hoje, após leituras e discussões a respeito do assunto feitas,
principalmente no âmbito do Mestrado Profissional em Letras da
UERJ/FFP, entendo que a aprendizagem se dá de forma produtiva
quando discussões a respeito da língua emergem das atividades que

239
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

têm o texto como ponto de partida, sem que o estudo das questões
gramaticais seja apagado do processo ou que seja feito em aulas
que não contemplem também a leitura e interpretação de textos
e a produção textual. Reconheço que o professor deve dedicar
momentos da aula ao ensino das regras, ao reconhecimento das
categorias e de seus respectivos nomes. Entretanto, não acredito
que o aluno se aproprie desse conhecimento, se não utilizá-lo de
maneiras distintas nas aulas de língua portuguesa.
Não se pode querer que o aluno domine os temas gramaticais
e deles faça uso, no sentido de utilizar as regras adequadas ao
contexto de produção, se o trabalho em torno dos gêneros textuais
ficar restrito às interpretações textuais semânticas. É necessário
explorar os sentidos dos vocábulos, as escolhas fonológicas, mor-
fológicas, sintáticas e lexicais, refletir com a turma sobre o grau de
formalidade empregado e exigido pelo gênero, pensar acerca da
esfera comunicativa, na qual o texto se materializa, nas intenções
discursivas implícitas no texto, entre outros aspectos.
Organizar as aulas em torno da aprendizagem dos elementos
estruturais e gramaticais não é garantia de que o aluno ampliará
seu repertório e suas competências linguísticas; entretanto, tais
elementos não podem ser ignorados, pois o texto não é um emara-
nhado de palavras soltas. Do mesmo modo, entendo que privilegiar
apenas os aspectos semânticos do texto também não conferirá a
base de que o aluno precisa para se expressar por meio da lingua-
gem, sobretudo nas situações mais monitoradas de comunicação.
Irandé Antunes discorre acerca do fato de o ensino de língua
ser sinônimo de inclusão social. Para a autora, tudo o que é explo-
rado pela escola sobre língua, linguagem, gramática, texto, leitura,
escrita, literatura é decisivo para que o aluno responda com êxito
às diferentes demandas políticas e sociais (ANTUNES, 2014, p. 11).
Na mesma perspectiva, Travaglia (2004) defende a concepção de
gramática como ensino plural, com o qual os usuários da língua
ganhariam qualidade de vida, pois saberiam usar a linguagem a

240
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

seu favor, colocando-se como sujeitos nas relações sociais. Para o


autor, o ensino de gramática influencia a vida das pessoas, já que
atua para que a competência comunicativa seja desenvolvida, dando
mais recursos para que o usuário possa ajustar o seu discurso às
diversas situações.
A comunicação só é efetivada se, ao produzirem textos
(linguísticos ou não), houver efeito de sentido entre os in-
terlocutores. Travaglia (2008) pondera acerca de todo texto
linguístico ser constituído por recursos da língua (fonemas,
palavras, sintagmas, orações, etc.) a partir das opções feitas pelo
produtor do texto. Todas essas escolhas visam à comunicação,
já que “todo texto mobiliza recursos para a consecução de uma
intenção comunicativa” (TRAVAGLIA, 2008, p. 24). Um sujeito
será considerado bom usuário da língua quando souber utilizar
os recursos de que a língua dispõe a fim de articular seu discur-
so a sua intenção na interação. É, pois, a escola a responsável
pela formação linguística do sujeito. Ao ingressar na instituição
escolar, o falante já utiliza linguisticamente a modalidade oral.
O objetivo da escola, no que tange ao ensino de língua, é o
letramento do educando.
Bakhtin discorre a respeito da diferença que há entre os enun-
ciados, gêneros do discurso e as unidades significativas da língua
desprovidas de endereçamento. A partir do momento em que uma
palavra ou oração é endereçada, torna-se um enunciado comple-
to. O estudioso explicita que “a língua como sistema possui uma
imensa reserva de recursos puramente linguísticos para exprimir
o direcionamento formal: recursos lexicais, morfológicos (os res-
pectivos casos, pronomes, formas pessoais dos verbos), sintáticos
(diversos padrões e modificações das orações)” e que a escolha
desses recursos é feita pelo falante e influenciada pela atitude
responsiva do ouvinte (BAKHTIN, 2011, p. 306). A expressão do
direcionamento real sob o qual os recursos linguísticos/ gramaticais
nunca se esgotam é o enunciado concreto.

241
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Ensinar língua portuguesa a partir de gêneros textuais possibi-


lita a reflexão acerca das intenções linguísticas que regem a escolha
de determinados recursos gramaticais. A mera classificação de
termos não daria essa dimensão ao usuário da língua, pois, como
assinalou Bakhtin, se não há endereçamento, não há enunciado. Se
o professor desconsiderar o texto como uma unidade discursiva,
o estilo constituinte dos enunciados será apagado das aulas em
prol de análises de frases retiradas de sua esfera de produção. Os
recursos linguísticos a serem utilizados no discurso, oral ou escrito,
culto ou popular, são inesgotáveis e estão a serviço da intenciona-
lidade do falante, da resposta do interlocutor; todavia, a escola,
ao ensinar a gramática desvinculada do texto, faz parecer que as
categorias gramaticais são conteúdos a serem aprendidos apenas
com finalidade avaliativa e classificatória.

O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA ANÁLISE CRÍTICA

Na apresentação do documento curricular, a Secretaria de


Educação enfatiza que os descritores propostos pelo Currículo
Mínimo estão alinhados às necessidades de ensino presentes nas
Diretrizes e nos Parâmetros Curriculares Nacionais e às matrizes de
referência dos exames nacionais e estaduais. Dessa forma, o Currí-
culo se inscreve, no plano do discurso, como um ponto de partida
mínimo a ser ampliado segundo as demandas de cada sala de aula.
As análises aqui expostas foram pautadas nas concepções de
Joaquim Dolz e Bernard Schneuwly, que, junto a outros estudio-
sos da Universidade de Genebra, repensaram o ensino de língua
materna na Suíça francófona. O interacionismo sociodiscursivo
reconhece o aluno como um indivíduo inserido em uma sociedade
e prioriza o fato de que ele utiliza a língua para atuar, interagir,
compreender e interpretar, modificando e deixando-se modificar
por meio da linguagem.
A respeito dos objetivos do currículo, Dolz e Schneuwly (2004,
p. 37) reforçam que este deve fornecer, em cada um dos níveis de

242
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

ensino, informações concretas aos professores acerca das práticas


de linguagem a serem abordadas em sala e enfatizam que a pro-
gressão, componente curricular que diz respeito à organização
temporal do ensino, com vistas a garantir aprendizagem satisfató-
ria, é um problema de enorme complexidade e de difícil solução.
Os autores utilizam a expressão programa escolar em oposição à
noção de currículo, pois acreditam que esta supõe uma centração
mais exclusiva sobre a matéria a ensinar (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004,
p. 36). Dessa forma, em tese, a progressão recortaria as estruturas
internas dos conteúdos, segundo as necessidades dos alunos, ao
passo que o currículo os definiria genericamente, em função das
expectativas em torno das capacidades do aprendiz e das experi-
ências a ele necessárias. Ou seja, os conteúdos disciplinares seriam
definidos de acordo com o que se julga fundamental ensinar em
cada ano escolar, e com base no que se acreditaria que o aluno é
capaz de aprender.
O Currículo Mínimo do Estado do Rio de Janeiro (2012) es-
tabelece para cada bimestre os gêneros textuais que nortearão
o ensino das competências e habilidades de leitura, de uso da
língua e de produção textual. A cada uma dessas competências e
habilidades, são explicitados os descritores, isto é, os conteúdos
que delinearão os planejamentos das aulas destinadas ao ensino
de língua materna. Ao pensar a organização do Currículo Mínimo
segundo as ponderações dos estudiosos de Genebra, percebo que
as informações dadas sobre os conteúdos são pouco explícitas para
os docentes e tampouco contemplam os alunos que não estão no
nível de aprendizagem suposto pelo ano escolar. Por exemplo, um
dos descritores para o primeiro bimestre do sexto ano com vistas
ao desenvolvimento da competência e habilidade de leitura dos
gêneros bilhete e mensagem instantânea (e-mail, post, torpedo) é
“reconhecer o impacto desses gêneros nas relações sociais”. Não
está clara qual orientação o professor deve seguir para atender a
esse descritor, o que se torna ainda mais difícil, se for considerado
que no sexto ano o aluno ainda não tem maturidade e domínio de

243
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

leitura para fazer inferências textuais mais complexas, ainda que


se trate de gêneros com os quais tenha algum contato cotidiano.
Na verdade, essa assunção também é questionável, já que a prática
de enviar e de receber e-mails geralmente não faz parte do dia a
dia de um aluno dessa faixa etária.
É ingênuo imaginar que no curto espaço de tempo de um bimes-
tre, em que o professor precisa, seguindo as orientações do Currículo
Mínimo, trabalhar mais de um gênero, seja possível tornar o aluno tão
habilidoso com a linguagem a ponto de produzir, por exemplo, um
manual ou uma regra de jogo (descritor de produção textual do quarto
bimestre, sétimo ano). A questão se torna ainda de maior complexi-
dade ao se observar o fato de que o descritor orienta que os alunos
devem “produzir e reproduzir, por escrito, receitas, regras e manuais”.
Ora, se o aluno reproduz uma receita, uma regra ou um manual, não
há um trabalho de produção textual que exija dele habilidade com a
linguagem, mas uma ação em que pouca reflexão é necessária, já que
para reproduzir basta ao aluno assumir a função de copista. Assim,
não julgo didático e apropriado pedir ao aluno que produza textos de
todos os gêneros estudados, uma vez que nem todos os estudantes
possuem habilidades para produzir textos de alguns gêneros e que
nem mesmo o professor de língua portuguesa necessariamente as
possui. Esse é o caso, particularmente, da produção de um poema ou
de uma canção, gêneros que, em sua composição, envolvem outras
aptidões além das linguísticas.
Quando considero a diversidade de gêneros existentes, reco-
nheço que a construção de uma progressão centrada nos gêneros
textuais é de fato inviável, como é visto no Currículo Mínimo do Es-
tado do Rio de Janeiro, tendo em vista que a descrição dos gêneros
deve ser feita sempre “a posteriori”, pois seu caráter multiforme,
maleável e “espontâneo” dificulta sua sistematização imediata.
Por essa razão, os teóricos genebrinos entendem que os gêneros
devem constituir a base do trabalho escolar, pois sem eles não há
comunicação, mas não podem fornecer os princípios necessários
à construção de uma progressão.

244
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Portanto, dada a insuficiência didática das tipologias do


discurso elaboradas em linguística e psicologia, para resolver os
entraves no tocante à construção das progressões, os estudiosos
de Genebra optam pela organização da progressão, atendendo ao
enfoque de agrupamentos de gêneros (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004,
p.49), de modo que, a partir do conhecimento possível das espe-
cificidades dos gêneros a serem objeto de ensino, sejam definidas
as capacidades de linguagem globais em relação às tipologias
existentes. A organização do Currículo Mínimo do nono ano do
ensino fundamental se apresenta da seguinte maneira:

• primeiro bimestre – carta (pessoal, do leitor ou formal) e curricu-


lum vitae;

• segundo bimestre – crônica e conto;

• terceiro e quarto bimestres – romance.

Entendo, com vistas a essa organização, que o foco do pro-


cesso de ensino-aprendizagem está na apropriação da narrativa, já
que a maior parte dos gêneros propostos pertence a essa tipologia
textual. No entanto, no primeiro bimestre, o Currículo propõe o
ensino de língua a partir da apropriação de gêneros com predomi-
nância do tipo relato, tais como a carta pessoal e curriculum vitae,
e do tipo argumentativo, no caso da carta do leitor ou formal.
Assim, cabe ao professor, ao longo do ano, ensinar três tipos
textuais diferentes, divididos em sete gêneros distintos (conside-
ro os diferentes tipos de carta como gêneros a serem ensinados
separadamente, dadas as suas especificidades), e, em apenas um
bimestre, criar estratégias para que o aluno se aproprie de gê-
neros de três tipologias, ao passo que nos bimestres seguintes a
dominância dos gêneros é a mesma, narrativa, e nos últimos dois
bimestres os gêneros se repetem. Dessa forma, minha primeira
ressalva em relação à organização curricular diz respeito à má
distribuição dos gêneros a serem objetos de ensino, haja vista que

245
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

o professor dispõe de pouco tempo para criar situações didáticas


que permitam ao aluno se apropriar de dominâncias linguísticas
de bastante complexidade, como a argumentativa, por exemplo,
enquanto gêneros de mesma dominância tipológica se repetem ao
longo de dois bimestres.
Segundo Dolz e Schneuwly, de um ponto de vista curricular
cada agrupamento deveria ser trabalhado em todos os níveis de
escolaridade, por meio de um ou outro gênero que o constituem
(2004, p.53). Consideradas as diferenças de organização escolar
no ensino oficial brasileiro e na Suíça francófona, talvez não seja
possível a retomada de todos os agrupamentos em todos os anos
escolares, mas, ainda assim, a diversificação dos gêneros trabalha-
dos ajustada pelos agrupamentos possibilitaria ao aluno um contato
muito maior com diferentes gêneros e tipos textuais.
Com base nessa reflexão, é possível afirmar que a maneira com
a qual o currículo foi organizado promove o ensino fragmentado,
pois não é possível reconhecer uma lógica dominante aparente para
a disposição dos gêneros nos eixos. Se ela existe, deveria ser expli-
citada com transparência ao professor. Esses problemas poderiam
ser minimizados com adoção do enfoque espiral dos conteúdos,
no qual aspectos constituintes dos tipos textuais seriam retomados
ao longo do processo de ensino-aprendizagem, permitindo que
objetivos semelhantes fossem abordados com níveis de complexi-
dade cada vez maiores ao longo da escolaridade e que um mesmo
gênero fosse abordado diversas vezes, com graus diferentes de
aprofundamento (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 54). Contudo, esta
análise do documento curricular estadual assinala que o enfoque
dos gêneros no Currículo Mínimo é feito de maneira linear e não
favorece o aprofundamento dos estudos linguísticos.
No tocante ao ensino de gêneros textuais, penso que seria
mais apropriado ao trabalho em sala de aula que fossem abor-
dados, ao longo de um ano escolar, variados gêneros da mesma
tipologia textual, tendo em vista que o professor disporia de mais

246
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

tempo para realizar a progressão de que falam os pesquisadores


da Escola de Genebra.

O CONTO NA SALA DE AULA: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO

Os registros a seguir são os “resultados” das intervenções


feitas por mim em uma turma de 9º ano do ensino fundamental,
na qual atuei como professora regente de língua portuguesa, do
Colégio Estadual Santos Dias, durante o 2º bimestre escolar do
ano de 2016. Deste ponto em diante, usarei a palavra aula para
me reportar às intervenções, por entender que a mudança no fazer
pedagógico deve ser compreendida como uma realidade contínua
e não como um momento de intervenção isolado, e, mais ainda,
que a “intervenção” não começou somente no momento em que
novas estratégias e posturas foram adotadas, mas, principalmente
quando busquei teorias que melhor fundamentassem meu exer-
cício, na interação com os colegas e professores do programa de
mestrado, nas reuniões de orientação, nas quais foram discutidos
textos, ideias e métodos de ensino, e, por fim, no momento em
que, finalmente, decidi “abrir os olhos” para a necessidade de mu-
dança em minha atividade docente e para a reflexão crítica acerca
dos programas curriculares aos quais tinha acesso.
Cabe ressaltar que as aulas foram conduzidas com base nas
estratégias de leitura apresentadas por Isabel Solé (1998), para
quem o trabalho com a leitura é desenvolvido em três etapas de
atividades com o texto: o antes, o durante e o depois da leitura.
Para cada momento, a autora explicita as estratégias que devem
ser adotadas para a compreensão leitora. Assim, meu olhar esteve
voltado para a realização de atividades de discussão oral, leitura
e escrita que, seguindo as estratégias de Solé, contribuíssem à
formação de interlocutores, leitores e escritores críticos e autô-
nomos. O desenvolvimento da competência leitora é progressivo
e depende do domínio de estratégias/habilidades que devem ser
explicitamente ensinadas ao longo do ensino fundamental. O tra-

247
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

balho pedagógico centrado nos gêneros textuais é fundamental,


considerando-se que, para ler com proficiência a pluralidade de
textos em circulação, é necessário ao leitor ser capaz de acionar
diferentes repertórios e mobilizar as estratégias apropriadas a cada
gênero. Meu intuito foi o de estender tais estratégias de leitura à
apropriação dos domínios de oralidade, gramática e escrita.
As aulas destinadas ao ensino do gênero conto tiveram início
a partir de uma atividade cujo objetivo era o de investigar o que
os alunos sabiam e o que não sabiam sobre esse gênero textual.
Para tal, elaborei uma ficha de respostas, tomando como partida
as fichas das sequências didáticas produzidas pelos estudiosos
de Genebra.2 O material foi construído com dezoito afirmativas,
que variavam entre corretas e incorretas, a respeito do gênero em
questão. Orientei os alunos a escreverem C para as sentenças com
as quais estivessem de acordo, D para as discordâncias, e N quando
não soubessem a resposta. Expliquei a atividade, ressaltando que,
apesar da utilização de uma folha a ser recolhida ao final da aula,
aquela não seria uma tarefa avaliativa, no sentido de quantificar
o desempenho. Entretanto, pude perceber que dar uma folha e
pedir que respondam é concebido de forma muito significativa
como avaliação. O modelo de aula em que o professor passa um
exercício no quadro, eles respondem no caderno e em seguida o
professor corrige é tão rotineiro que qualquer prática que fuja a
esse modelo soa para a turma como uma avaliação a ser pontuada.
Esse modelo de ensino espelha uma avaliação da compreensão
leitora e não uma estratégia para ampliá-la.
Ao longo do segundo bimestre de 2016, li com os alunos da
turma 901 os contos Tentação, de Clarice Lispector, Conto de fadas
para mulheres modernas, de Luis Fernando Verissimo, e Para que
ninguém a quisesse, de Marina Colasanti. Estabelecemos para as
aulas uma “rotina de leitura” apoiada nos três diferentes momentos
de leitura do texto apresentados por Isabel Solé (1998). Antes da
2 DOLZ, Joaquim, NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. S’exprimer en français:
Séquences didactiques pour l’oral et pour l’écrit. Vol. 1: 1ère, 2e. Disponível em: http://archive-
ouverte.unige.ch/unige:34882. Acesso em: 30/09/2015.

248
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

leitura, sempre pedia aos alunos que não mexessem em telefones


celulares e que não conversassem, a fim de que nada desviasse a
atenção da tarefa que pretendia, junto a eles, realizar. Em seguida,
explicitava os objetivos da leitura e utilizava as proposições da
ficha diagnóstica para que percebessem que o propósito inicial
era o de verificar, através da análise dos elementos constituintes
do conto, por que os textos lidos pertenciam a este gênero. De
fato, os objetivos iniciais desdobravam-se em outros, ao passo que
a turma compreendia o texto, as categorias gramaticais que a ele
davam forma etc.
Quando mencionei o título do texto de Lispector, ouvi risos
e brincadeiras, o que indicou que fizeram uma interpretação “ma-
liciosa” do título. Gostei muito desse primeiro contato da turma
com o texto, pois vi que a multiplicidade de sentidos da palavra
tentação serviu como motivação e fez com que se interessassem
pelo que seria lido. A respeito da leitura motivadora, Solé expõe
“que uma atividade de leitura será motivadora para alguém se o
conteúdo estiver ligado aos interesses da pessoa que tem que
ler e, naturalmente, se a tarefa em si corresponde a um objetivo”
(SOLÉ, 1998, p. 43).
Assim, as aulas seguiam o mesmo roteiro, que mudava apenas
em virtude do conteúdo temático dos três textos. O momento ini-
cial era destinado à ativação de conhecimentos prévios, por meio
de conversa informal com os alunos sobre os títulos dos contos,
com fins de gerar motivação para a leitura. As respostas dadas pelos
estudantes nessas conversas informais eram escritas no quadro.
Em seguida, a primeira leitura era realizada em voz alta por
mim. Cabe destacar que a rotina de leitura nas aulas pressupunha
que lêssemos o mesmo texto várias vezes e que essa prática não
se tornou enfadonha aos alunos, pois, cada vez que voltávamos
ao texto, tínhamos um objetivo diferente. A primeira leitura, nor-
malmente, tinha como finalidade verificar se as hipóteses levan-
tadas no início confirmavam-se ou não. Na sequência, pedia que

249
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

realizassem nova leitura silenciosa e que selecionassem as palavras


desconhecidas. Essas palavras eram listadas no quadro e partíamos
para uma terceira leitura, na qual tentávamos recuperar o sentido
dessas palavras pelo contexto ou com o auxílio de um dicionário.
Durante a leitura dos contos fazíamos algumas outras leituras
pausadas a fim de que, enquanto mediadora do processo de ensino,
conduzisse a discussão para os conteúdos que julgava relevantes
que aprendessem. Algumas aulas eram destinadas aos aspectos
composicionais e nessas aulas reforçava, utilizando exemplos do
texto que estávamos lendo, os aspectos da estrutura da narrativa e
dos elementos que a compõem, mostrando-lhes sempre como eram
inseridos nos textos do gênero conto. Outras aulas eram reserva-
das às análises linguísticas, de natureza morfológica e sintática.
Para tal, estudamos coesão referencial com ênfase nos pronomes
pessoais e demonstrativos, o efeito de sentido produzido pelo uso
de determinados adjetivos, advérbios e conjunções e também os
tempos e modos verbais, importantes para a construção e progres-
são da narrativa. Além disso, analisamos a estrutura das orações,
visto que a colocação dos termos, a ordem em que apareciam, a
opção por determinada função sintática também contribuía para
a construção de sentido da narrativa.
Após as aulas, a fim de sistematizar a leitura, pedia-lhes que
realizassem diferenciadas atividades. Nesta etapa, o conteúdo
temático dos textos já havia sido discutido nos momentos iniciais
de leitura e principalmente durante a leitura, pois, ao pensar as
questões gramaticais, tinha o cuidado de mostrar-lhes a necessi-
dade do conhecimento linguístico para a compreensão e para a
interpretação dos textos. Não raro, as discussões sobre o gênero
ou sobre a língua eram interrompidas pelas reflexões emergentes
do conteúdo temático dos contos. Assim, com vistas a verificar
se realizaram a leitura de forma produtiva, solicitei-lhes que resu-
missem os contos oralmente, que conversassem sobre o texto em
grupos, utilizando o celular como ferramenta para o registro, que
elaborassem perguntas sobre os textos etc.

250
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Acerca do resumo, Solé diz que “o resumo exige a identificação


das ideias principais e das relações que o leitor estabelece entre
elas, de acordo com seus objetivos de leitura e conhecimentos
prévios” (SOLÉ, 1998, p. 147). Só é capaz de resumir aquele que
tem compreensão do que foi lido. Daí a importância de todo o
trabalho prévio de entendimento do texto. A autora salienta que
resumir é uma questão relativa às exigências do texto e às escolhas
de cada leitor, rechaçando a importância que é dada à unicidade
de respostas. Na mesma direção, discorre a respeito da formulação
de perguntas e de respostas orais e escritas, na escola, com fins
avaliativos, como checagem acerca do que o aluno aprendeu. A
autora defende que tal prática apresenta alguns problemas que
podem ser sanados, a partir do momento em que o aluno também
aprende a formular perguntas e respostas, já que “o leitor capaz de
formular perguntas pertinentes sobre o texto está mais capacitado
para regular seu processo de leitura e, portanto, poderá torná-lo
mais eficaz” (SOLÉ, 1998, p.155).
A leitura do conto Para que ninguém a quisesse, de Marina
Colasanti, motivou, em sala, discussão acerca das várias formas
de violência contra mulher. Desde a leitura do texto Conto de
fadas para mulheres modernas, de Luis Fernando Verissimo, as
questões referentes ao papel da mulher na sociedade tornaram-se
interessantes aos alunos. No período de tempo em que a leitura
do conto de Colasanti aconteceu, circulava nas redes sociais um
vídeo íntimo, cujo conteúdo colocava em discussão a questão do
estupro. O assunto era muito comentado nos corredores e nas salas
de aula da escola, pois, entre si, os alunos discutiam se as imagens
vistas na filmagem eram suficientes para uma acusação acerca de
ter havido estupro.
Em conversa com uma colega de trabalho, também de língua
portuguesa, que relatava não conseguir dar aula, pois os alunos só
falavam sobre esse assunto, decidimos debater o tema. Aproveitan-
do o ensejo do conto, discutimos, conforme dito anteriormente,
as várias formas de violência contra a mulher. Falamos também

251
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

sobre preconceito linguístico, pois, em alguns momentos do de-


bate, percebi risos por parte de alguns alunos, quando um colega,
ao se posicionar, dizia “estrupo”. Estendemos o assunto, pois os
alunos relataram que nas redes sociais circulavam algumas piadas
em relação à escrita da palavra estupro em desacordo com a norma
padrão, menosprezando essa escrita.
Como fechamento do bimestre, realizamos o café literário e
a confecção de um mural cujo título escolhido foi “Belos, ousados
e do ler”. Alguns alunos levaram contos de temáticas variadas e,
durante o café, leram para seus colegas. Essa atividade, além da
socialização, serviu-me como um momento para avaliação diag-
nóstica, já que me permitiu observar se entenderam a composição
do gênero, tendo em vista que, nas semanas que antecederam o
café, os estudantes tiveram preocupação em tirar dúvidas acerca
do fato de os textos por eles escolhidos pertencerem ao gênero
conto, e não a outro gênero de base narrativa.
A proposta do mural foi criar um livro que os outros alunos da
escola puderam ler, manusear e com o qual interagiram. O trabalho
foi construído com fotos, nas quais os alunos da turma apareciam
com um livro e com algumas palavras que rimavam com a palavra
ler, como aprender, vencer, ser, entre outras. Essas ações, segundo
eles, são possíveis através da leitura. A ideia foi encerrar o semes-
tre com uma atividade dinâmica, na qual eles socializassem mais,
pois, para fazer o mural, precisaram se ajudar, e, principalmente,
colaborar entre si para criar estratégias que pudessem chamar a
atenção da escola para a questão da leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconheço, a partir das reflexões feitas anteriormente, que


os domínios da leitura e da escrita são os objetivos da escola no
que tange ao ensino de língua materna nas salas de aula de ensino
fundamental. Contudo, conforme já assinalei, apesar de meus es-
forços para que os discentes se apropriassem de modo satisfatório

252
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

e autônomo da linguagem, percebi que as dificuldades trazidas


por eles a cada ano escolar, no que diz respeito à interpretação, à
compreensão e à produção de textos, pareciam se distanciar cada
vez mais de minhas expectativas e também das expectativas da
escola e dos documentos oficiais que norteiam o ensino de língua.
Dessa forma, conforme mencionado, desde que ingressei no
Programa de Mestrado Profissionalizante em Letras da UERJ/FFP,
tenho pensado em diferentes estratégias de ensino, que, em al-
guns aspectos, muito se distanciaram das práticas às quais estava
habituada ao longo dos dez anos de trabalho docente. A fim de
contribuir para a aprendizagem significativa dos alunos da rede
estadual, busquei reflexão crítica e embasada a respeito de minha
prática e concluí que a intervenção que foi pedida pelo programa de
mestrado, como forma de ação direta na sala de aula com vistas a
melhorar os domínios linguísticos dos alunos do ensino fundamen-
tal, começaria em mim, na mudança de olhar para minha prática.
Tendo em vista os desafios impostos hoje ao professor, foi
defendida por mim a necessidade de sua formação, especialmente
no que concerne às concepções de linguagem subjacentes à or-
ganização curricular e às práticas de ensino. Não raro, diante de
novas propostas curriculares que implicam diferentes abordagens
do ensino, o professor de língua materna se vê sem referências
acerca do que e como ensinar. Acredito que, por esse motivo,
muitos profissionais da rede estadual acabaram se distanciando do
ensino de gramática, já que as orientações curriculares recebidas
põem foco na apropriação dos gêneros textuais e parecem não
recomendar o ensino gramatical.
Buscando fundamentar as críticas apresentadas, retomei as
teorias que deveriam fundamentar uma proposta de ensino de
língua centrada em gêneros textuais. Assim, demonstrei que a
apropriação do gênero pelo aluno deve perpassar os três elementos
apregoados por Bakhtin como indissoluvelmente ligados ao todo
do enunciado: o conteúdo temático, o estilo e a construção compo-

253
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

sicional (BAKHTIN, 2011, p. 262). No que se refere à incorporação


dessa teoria à proposta de intervenção, adotei em minhas aulas
estratégias diversificadas, a fim de que a leitura e a interpretação
dos contos selecionados contemplassem a discussão dos três ele-
mentos que compõem o gênero. Entendo que, concebidas dessa
forma, as aulas de língua portuguesa são significativas para o aluno
e podem levá-lo de fato a ampliar seu repertório linguístico e a se
apropriar dos domínios de linguagem no que tange às competências
de leitura e de escrita.
Entendo que meus alunos não chegam à escola como tábulas
rasas sobre as quais conteúdos são depositados; por isso, as es-
tratégias de leitura defendidas por Solé (1998) foram apropriadas
a este trabalho, tendo em vista que, no primeiro contato com tex-
to, foi priorizada a ativação de conhecimentos prévios da turma.
Considero que, a partir das discussões feitas acerca dos contos
Tentação (1999), de Clarice Lispector, Conto de fadas para mulheres
modernas (2008), de Luís Fernando Veríssimo e Para que ninguém
a quisesse (1986), de Marina Colasanti, meus alunos tiveram a
oportunidade de revisar seus conhecimentos e de ampliá-los.
Durante a seleção dos contos, tive preocupação em procurar
temas que motivassem a participação dos alunos nas aulas. Adotei
diferentes estratégias no percurso, a fim de que os que participa-
vam menos das discussões pudessem ser incluídos no processo.
No tocante ao ensino de gramática, priorizei que entendessem
alguns aspectos. Primeiramente, a necessidade de conhecimento
da língua materna, os elementos que a descrevem e os termos que
nomeiam tecnicamente esses elementos. Embora a verificação de
aprendizagem não tenha incidido sobre a cobrança das nomencla-
turas, ao longo de todas as discussões, procurei discorrer sobre
os termos usando a metalinguagem gramatical. Em segundo lugar,
enfatizei o reconhecimento de que as categorias gramaticais e lin-
guísticas constroem os textos e configuram seus sentidos, uma vez
que a clareza e os significados dos textos são obtidos através da

254
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

seleção de vocabulário, dos elementos de referenciação e da opção


por determinados temas, como o uso de modos e tempos verbais,
entre outros. Nesse aspecto, considerei que a língua portuguesa
oferece uma riqueza de possibilidades ao usuário e é importante
que este tenha acesso a um repertório textual amplo, que lhe per-
mita alcançar desenvoltura para usufruir dessa pluralidade.
Acerca da apropriação do conto, minhas estratégias estiveram
voltadas para a percepção dos elementos que o compõem. Con-
sidero que a aprendizagem de meus alunos, nesse sentido, tenha
atingido ao objetivo. Entretanto, ressalto que o entendimento da
composição de um texto é complexo, principalmente tratando-se
de textos literários, como o conto, em que figura a multiplicidade
de significações.
Por fim, ratifico que esta pesquisa não priorizou a obtenção
de resultados imediatos, já que esses são contínuos e graduais.
Mesmo porque seria ingênuo acreditar que, em pouco mais de dois
meses de aulas nas quais situações para reflexão sobre a língua e
sobre o gênero conto fossem criadas, os entraves na compreensão
leitora dos alunos seriam sanados. Sabemos que, na escola, nem
todos aprendem ao mesmo tempo e ao mesmo modo. Sendo assim,
destaco que a principal mudança obtida se deu no modo como as
aulas de língua portuguesa passaram a ser concebidas por mim, a
partir da pesquisa-ação desenvolvida, que me impulsionou a adotar
novos procedimentos para ensinar a meus alunos, desencadeando
um processo contínuo, visto que cada aluno é único e cada sala de
aula apresenta um desafio a ser problematizado por mim de modo
a possibilitar a aprendizagem do educando.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Gramática contextualizada: limpando “o pó das ideias


simples”. São Paulo: Parábola editorial, 2014.
ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2013.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,


2011.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: introdução à
pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola, 2008.
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quatro ciclos do ensino
fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e progressão em
expressão oral e escrita – elementos para reflexões sobre uma experiência
Suíça (Francófona). In: SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. et alii. Gêneros orais e
escritos na escola. Trad. e Org. R. Rojo e G. S. Cordeiro. Campinas: Mercados
das Letras, 2004, p. 35- 59.
RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Educação. Currículo Mínimo:
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, 2012.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6 ed. Porto alegre: Artes médicas, 1998.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática: ensino plural. 2 ed. São Paulo: Cortez,
2004.
______. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática.
12 ed. São Paulo: Cortez, 2008.
TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Trad. L.L.de
Oliveira. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, set./
dez. 2005.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

SOBRE OS AUTORES

Aline Salucci Nunes é doutoranda em Linguística pela Universidade do


Estado do Rio de Janeiro. Possui mestrado em Letras pelo Mestrado
Profissional em Letras da Faculdade de Formação de Professores da Uni-
versidade do Estado Rio de Janeiro (2016) e Especialização em Língua
Portuguesa pela mesma Universidade - UERJ/FFP (2009), além de Espe-
cialização em Tradução da Língua Inglesa pelo Instituto Superior Anísio
Teixeira (2009). Atualmente, atua como docente na Secretaria Municipal
de Educação de Itaboraí e na Secretaria Municipal de Educação de Tanguá,
ministrando a disciplina de Língua Portuguesa.

Carlos Eduardo Ferreira da Silva possui graduação em Letras pela Uni-


versidade Federal Fluminense - UFF (2007), Mestrado em Letras pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ - FFP (2018). Atualmente
é professor efetivo da rede pública de ensino de Araruama e de Rio das
Ostras. Integram seu interesse de pesquisa temas como: letramento
crítico, pedagogias críticas, tiras cômicas, gêneros discursivos, leitura.

Cristiane Melo Alves é Mestra em Letras pelo Programa de Mestrado Pro-


fissional em Letras Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade
de Formação de Professores (2016), Especialista em Ensino de Leitura
e Produção Textual pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
- UFRRJ (2015) e Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, 2005). Possui graduação em Letras
- Língua Portuguesa/Literatura pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ (2004). Atualmente é professora dos municípios de Macaé e
Quissamã. Sua linha de pesquisa está voltada para os Letramentos numa
perspectiva sociocultural e para questões de Memória e Identidade, com
ênfase na Educação de Jovens e Adultos.

257
letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Gabriela Medela da Silva é Mestre em Letras pelo Programa de Mes-


trado Profissional em Letras Universidade do Estado do Rio de Janeiro
- Faculdade de Formação de Professores (2016). Possui Especialização
em Educação Básica (2016) e Graduação em Letras (2013) pela mesma
universidade. Atua na prefeitura Municipal de Niterói ministrando aulas
para os alunos dos ciclos iniciais do ensino fundamental e da Educação
Infantil. Desenvolveu pesquisa de mestrado sobre a necessidade de uma
reinvenção da alfabetização na escola pública.

Izabelle Cristina Siqueira Vieira Abboud possui graduação em Letras -


Português e Inglês pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009).
Especialização em Gestão Supervisão e Orientação Educacional pelo
Instituto Superior de Ciências Humanas e Sociais Anísio Teixeira (2014).
Especialização em Docência do Ensino Básico de Língua Portuguesa pelo
Programa de Residência Docente do Colégio Pedro II. (2015), Mestrado
Profissional da UERJ- PROFLETRAS (2018). É professora de língua portu-
guesa, literatura e produção textual da Rede Estadual de Ensino do Rio
de Janeiro SEEDUC- RJ e da Prefeitura Municipal de Itaboraí desde 2010.
Desenvolve pesquisa nas áreas de leitura e estratégias situadas de leitura,
na perspectiva do Letramento Crítico.

Marcela Martins de Melo Fraguas é doutoranda em Língua Portuguesa


pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui Mestrado em
Língua Portuguesa pelo Mestrado Profissional em Letras da Faculdade
de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ/FFP (2016) e Especialização em Língua Portuguesa pela
mesma Universidade - UERJ/FFP (2008). Graduada em Letras - Português/
Literaturas pela Universidade Estácio de Sá (2005). Atualmente, atua
como docente na Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Itaboraí
e na Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, ministrando
as disciplinas de Língua Portuguesa e de Literatura. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase no ensino de gramática e de gêneros
textuais na educação básica.

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letramentos no ensino de língua portuguesa: experiência, agência e crítica

Marcia Lisbôa Costa de Oliveira é Doutora em Letras (FL - UFRJ, 2002)


com Pós-Doutorado em Letras Modernas (FFLCH- USP, 2017). É professora
adjunta do Departamento de Letras da FFP/UERJ, atuando no Mestrado
Profissional em Letras - PROFLETRAS/FFP-UERJ e no Programa de Pós-gra-
duação em Letras e Linguística - PPLIN- FP/UERJ. Pesquisa principalmente os
seguintes temas: leitura e formação de leitores, letramentos na perspectiva
sociocultural crítica, formação de professores e desigualdades sociais.

Marlene Maria de Oliveira de Andrade possui graduação plena em Le-


tras (Português - Literaturas) pela UFRJ (1999); graduada em Direito pela
Universidade Cândido Mendes (2010); Especialista em Direito Público;
Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas (UFRJ/ 2014); Mestre
em Letras pela UERJ (2016).

Vanessa Teixeira Ribeiro é graduada em Letras (Português-Literaturas),


mestre em Estudos Linguísticos pela Faculdade de Formação de Profes-
sores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atua há dezoito
anos como professora dos anos iniciais da rede pública do município
de Maricá e há dez anos dedica-se à alfabetização de jovens e adultos.
Desde 2008 trabalha com Língua Portuguesa e Produção Textual com as
turmas de Ensino Médio da rede particular de ensino.

Walkyria Monte Mór possui graduação em Letras Inglês-Português, mestrado


em Filosofia da Educação (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e
doutorado em Linguagem e Educação (Universidade de São Paulo). É pro-
fessora Livre-Docente da Universidade de São Paulo. Realizou pesquisa de
pós-doutorado na Universidade de Manitoba (Canadá, 2007) e é pesquisadora
adjunta do Center for Globalization and Cultural Studies desta universida-
de. Co-coordena o Projeto Nacional de Letramentos: Linguagem, Cultura,
Educação e Tecnologia (2015-2019) e co-coordenou o Projeto Nacional de
Formação de Professores “Novos letramentos, multiletramentos e línguas
estrangeiras” (2009-2015), cadastrados no Diretório dos Grupos de Pesquisa
do CNPq. Suas pesquisas recentes concentram-se em Linguagem e Educação,
Letramentos (Novos Letramentos, Multiletramentos, Letramentos Críticos),
Crítica e Construção de Sentidos, Pedagogia Crítica, Formação de Professores.

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