O_livro_de_Jo
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MESTRE
E foi neste deserto que ocorreu o drama de um tempo ido
agora(... )6.
e, muitas vezes, esse uso é tomado como justo. E quem dá a medida dessa
justiça?
O homem quer ser soberano. Contudo, torna-se um tirano, pois impõe
sua vontade privada sobre a ordem da natureza. Assim, aquele que mediante
o súdito deveria ouvir, grita. Destoando do antigo ideal de governante: aquele
que antes de mais nada serve aos governados. Nesta medida, o mais difícil é
ser governante, pois a este cabe conhecer o princípio (a ordem natural das
coisas) e por ela reger a si e aos outros. Contra os tiranos, mais cedo ou mais
tarde, o povo se impõe. Semelhantemente se dá na relação homem-natureza.
Na realidade, a AIDS é a primeira relação metafórica que vem à cabeça
para a doença do texto. Entretanto, esta (a doença) é a metáfora de todas as
grandes epidemias, particularmente no momento em que se desconhece tanto
o agente causador quanto a cura, ou seja, quando não se tem o porquê.
Assim sendo, na relação homem-natureza, podemos incluir, hoje, não só a
AIDS, mas também uma série de doenças ressurgentes: seja pela pobreza,
seja pela resistência aos medicamentos, referentes dessa metáfora. Esse último
fator (resistência aos medicamentos) é interessante na nossa relação, porque
podemos dizer que estes velhos conhecidos da humanidade (bactérias e
vírus) estão recuperando o seu lugar (resistindo aos medicamentos), a sua
ordem. O que é o corpo humano para uma bactéria ou um vírus? Um mundo,
um cosmos, uma ordenação. Ao serem ingeridos9 pelo organismo humano,
esses microrganismos engendram uma desordem em nosso corpo-cosmos
assim como nós provocamos na terra-corpo 1 °. Na expressão campo/corpo
que encontramos na fala do mestre", podemos ver a relação corpo/terra,
homem/natureza.
Carlos Euclides Marques 231
J
Em meu corpo/campo o Mal
semeou e cultivou com esmero
o grão da doença, a peste, e as
raízes do meu desespero
E nesta minha pele, vejam,
brotam feridas tal como a terra é
rompida pela força da erva
daninha!
Da planta do meu pé ao cume da
minha cabeça
Chagas deitam raízes e florescem
flores malditas
de sangue e de dor
Deus... afasta de mim o Maldito
lavrador! 12
Em tua carne
Verás a Deus! 13
tomarmos apenas o texto adaptado, este não assegura que Jó, assim como
na Bíblia, tenha reencontrado Deus. Na linha de raciocínio que
ver Deus significaria reconhecer sua efemeridade (do homem) no estar no
mundo; ou ainda, na relação soberano-tirano, ser consciente de que seu
domínio sobre a natureza tem limites e se ele não respeitar esses limites, será
trucidado por ela.
Temos, nesta interpretação, a retomada do ideal grego de harmonia' 4
e de princípios trágicos. Para reforçar esta idéia tomemos os apontamentos
de aulas do professor Marcos José Müller l 5:
Por séculos, o Velho Testamento foi interpretado pelos cristãos como alegoria
do Novo Testamento. Desta forma, o sofrimento de Já é um prenúncio do
sofrimento de Cristo que, por sua vez, veio ao mundo para redimir os
"O Livro de Já" 234
homens, purgá-los, poderíamos assim dizer. Ao tomarmos, ainda, os relatos
dos espectadores verificamos que na cena final há uma luz na sala de cirurgia,
incidindo de cima para baixo, diretamente em Já, no momento final: sua
morte. Esta luz pode ser a metáfora de Deus, do conhecimento absoluto.
O que recuperaria um conteúdo mítico, o qual, no texto adaptado,
pelo menos no nosso ponto de vista, não fica muito claro. Esse caráter
místico repõe a religiosidade: o religare, ligar novamente. O que levaria à
outras possibilidades interpretativas.
Cabe frisar que nossa interpretação tem como base, muito mais, o
texto adaptado do que sua representação, a qual não podemos ter o prazer
de assistir, o que talvez ponha nosso texto em contradição à representação.
Porém, em nossa defesa temos a dizer que, partimos da adaptação e, desta
textualidade é que emanam as possibilidades interpretativas, rapidamente
aludidas. Evidentemente, privilegiamos alguns temas como: a morte de Deus
e a relação homem-natureza; além de uma leitura filtrada por olhares gregos
e uma perspectiva existencialista.
Notas
1. "No sofrimento, o conhecimento"; ou ainda "experiência dá sapiência".
2.Cf., p. 29-30.
3.Biblia Sagrada, Introdução, p. 29.
4.Cf.,p. 01.
Cf. p. 29.
Cf., Luis Alberto de Abreu, O Livro de Já, p. 01. Nosso grifo serve para
destacar as passagens que indicam, com mais ênfase, o problema da
temporalidade.
7. Cf., Mito e Realidade, p. 22.
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