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Apresentação
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Quando o diretor Aderbal Freire-Filho definiu o trabalho de Klauss Vianna como
sendo de um “especialista” não empregou o termo em vão. Klauss Vianna já contava com
cinquenta e sete anos de idade e quarenta de profissão. Havia trabalhado durante duas
décadas com inúmeros diretores e instruído vários atores, não só em cena, como também,
nas suas aulas. Logo, o suporte técnico que ofereceu para a mise en scène de Aderbal,
como notou o próprio diretor, foi insuperável. A publicação deste diálogo, vinte anos
depois, devidamente editado para a seção “Mestres do Século” da Revista Moringa, rende
homenagem póstuma a Aderbal Freire-Filho e Klauss Vianna, dois mestres nos ofícios da
direção e da direção de movimento nas Artes do Espetáculo.
***
Joana Ribeiro da Silva Tavares: - Boa tarde, Aderbal. Poderíamos começar com a sua
formação como diretor?
Aderbal Freire-Filho: - Eu não fiz escola de teatro porque não existiam muitas naquele
tempo. Mas o teatro esteve presente na minha vida. Comecei com 12 ou 13 anos, como
ator no teatro amador e não tinha interesse em direção. Fiz um parêntese entre o fim do
curso colegial e o começo da faculdade, numa tentativa de já me dedicar ao teatro, foi
quando vim para o Rio, com intenção secreta de fazer teatro, mas para poder me
sustentar, andei por outros caminhos. Fiz um curso de técnico em prospecção de petróleo
e fui vendedor de móvel de aço. Gostei da hipótese de entrar no Conservatório Nacional de
Teatro, no começo dos anos 1960, mas acabei tendo que voltar para minha cidade
[Fortaleza/Ceará], para a casa dos meus pais. No tempo do colégio, pertencia a um grupo
de amadores e quando voltei, interrompi para fazer a formação em Direito. Depois de
advogar durante uns anos, vim pela segunda vez para o Rio, decidido a fazer teatro. No
teatro, além de atuar, tinha intenção de escrever e a direção surgiu por acaso. Eu não
cheguei novo no Rio, tinha 29, quase 30 anos. Escrevi uma peça que eu mesmo dirigi,
porque não encontrei quem quisesse dirigi-la. Foi dirigindo que descobri essa forma de
expressão, que mais se ajustou a minha vida. Descobri nesta primeira direção o quanto,
através dessa forma de criação, podia aproximar o que queria dizer de como era capaz de
expressar. Isso foi avassalador de tal forma, que o ator nascente sucumbiu ali, para só
Revista Moringa Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 15 n. 2, jul-dez 2024
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reaparecer agora. Hoje penso que não deveria ter me afastado da atuação e, se tivesse
que reconstruir a minha carreira, quando começasse a dirigir não pararia de atuar nem de
escrever. E voltando ao tema da direção, foi na prática que encontrei os meus caminhos,
que em algum momento pudesse ser chamado de método, através da comparação entre
os meios de preparação com os resultados finais, nascidos desses meios. E da
possibilidade, desde o começo da minha carreira, de trabalhar com atores quase sempre
mais experientes do que eu. Observar os processos de criação e a reflexão sobre os
mesmos me servia muito, dava-me muitas indicações. Certamente li muito do que se
publicou sobre direção, a partir dos anos 1940 e 1950, quando os diretores começaram a
escrever, como os italianos Ruggero Jacobbi, que viveu no Brasil, e o Antonio Giulio
Bragaglia e franceses, como o Jouvet. Lendo fui vendo se algo se destacava neste
processo de aprendizado, uma mistura de observação, com o que me fez ser diretor de
teatro. Vejo que tudo era muito fluente, quando se tratava de descobrir uma gramática para
a cena, uma relação entre a literatura dramática e a poesia cênica. Por isso, considero os
meus espetáculos bem fiéis aos textos, porque nascem deles, apesar de algumas
observações distantes, de críticos alheios considerarem muito pessoal, dizendo que me
afastei do texto original. Tenho certeza que os autores não acharão isso. O que significa,
por um lado, o quanto a recriação cênica é uma poesia nova, uma linguagem própria e, por
outro lado, uma invenção originada do material básico, que é o texto. Não sou aquele mero
reprodutor – pois, se não se encontra a poética da cena, o texto deveria ser simplesmente
lido – nem sou infiel, no sentido de que em toda essa recriação, encontro uma relação
muito profunda. Estou dizendo tudo isso porque minha formação foi a soma da prática, da
observação, da reflexão, da troca com os atores, com uma aptidão e tendência, um
encontro do que seria a minha forma de expressão.
J.R.: - E como é a sua visão do corpo do ator? Como diretor, como você solicita o trabalho
do preparador corporal?
A.F.: - Eu acho que são duas coisas, uma é a questão do corpo do ator e a outra é a
necessidade de um especialista para tratar disso. Os especialistas em todos os casos são
fundamentais, por exemplo, sei da importância de tratar bem o fígado, então é bom eu me
cuidar com um especialista em fígado e não entregar o meu fígado para um oculista. Mas
para continuar na analogia de clínico geral, tenho uma disposição e aptidão tão verdadeira,
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que as partes todas que compõem o ofício de um diretor de teatro me dizem respeito. A
que trata do corpo do ator, especialmente, porque hoje, no teatro, existe uma referência de
comparação com o cinema, o teatro filmado, ou seja, o cine-teatro e o teleteatro. Eles
podem destacar o corpo com a câmera, a máquina mostra apenas uma parte do corpo e a
expressão corporal se reduz a essa síntese, de mostrar uma mão pegando um revólver, ou
só o olho, ou só o dedo do pé, ou só o pé. E, como no teatro não tem essa seleção, esse
fechamento, a expressão física total e particular é fundamental. Digamos que mostrar uma
expressão física – presente e viva – e, ao mesmo tempo destacar dessa expressão física
um detalhe que seja eloquente para uma determinada cena ou intenção, é muito
importante e faz parte do meu ofício. Tenho uma relação direta com os atores na questão
corporal, que não abdico em nome de um especialista. Em nenhuma ocasião, nem mesmo
com o Klauss Vianna, digamos que a coreografia, a marcação da peça foi feita por alguém
que não fosse eu. Claro que, frequentemente ou quase sempre, em estreita colaboração
com o ator. A não ser no caso de uma música ou de uma dança que tenha uma
coreografia: a “coreografia das palavras” e “das situações” são de minha total
responsabilidade nos espetáculos que faço e isso com uma cobrança corporal muito
grande. Interesso-me pelo alargamento dessa expressão, pelo seu aproveitamento, sua
busca de tensões físicas, mesmo sem ter uma formação específica como diretor em
preparação corporal. Sou de uma geração que chegou ao teatro quando este estava sendo
negado, dizia-se que ele estava morto. Mas houve um período, nos anos 1960, 1970, que
algo ainda salvava: era o teatro político, uma forma de resistência. Apesar do cinema já ter
tomado seu lugar, ele ainda era o palanque, a tribuna por excelência. Logo nos anos 1970,
quando começa a diminuir a importância do teatro político, que deixou de existir nos anos
1980, os ataques da sua morte eram muito fortes. Não havia uma entrevista em que a
primeira pergunta do repórter não fosse “você acha que o teatro morreu?” ou “o que você
acha da morte do teatro?”. Começaram a surgir movimentos que tentavam mostrar que o
teatro estava vivo, surgiu o teatro da agressão, em que os atores quase diziam: “olha, o
ator de cinema não pode te dar um tapa na cara, nem cuspir em você, nem sentar no teu
colo”, enfim vários teatros de participação com o público. Não que eles tenham perdido o
sentido nem que tenham sido feitos só por isso, mas eles eram o sintoma, de algum modo,
que o teatro queria mostrar a sua vida. Muitas coisas que se fazia antes começaram a ser
consideradas do teatro morto. Uma delas foi a forma física do teatro, que os atores
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tivessem marcações e se dizia: “isso é do teatro morto, isso não existe mais, o ator tem
que ser espontâneo, fazer o que quer, quando ele quiser”. Durante um bom período, nos
anos 1970 e 1980, período em que comecei a dirigir, existia a busca do “espontaneísmo”,
como uma “afirmação de vida”, e mais ainda: a crítica ao “formalismo” como uma
“denúncia de morte”.
J.R.: - Você considera que houve um boom da expressão corporal na década de 1970?
A.F.: - Sem dúvida na década de 1970, é quando surge no Brasil a “expressão corporal”, a
expressão linguística. Eu me lembro de que viajando nessa época, patrocinado pelo
Serviço Nacional do Teatro, dando oficinas pelo Brasil afora, cheguei às cidades onde me
perguntavam: “nós temos um grupo de expressão corporal e queríamos saber se você
conhece algum texto para montarmos, mas um texto de expressão corporal”, a confusão
era geral. Mas o que estou dizendo não contradiz, pelo contrário, reforça o meu lado
“coreógrafo”. Eu conheço atores excelentes, que necessitam de uma direção total, desde a
coreografia, até a marcação dos seus movimentos. E conheço atores ao contrário, que
odeiam ser marcados, conheço também diretores que são contra a marcação e diretores
que defendem a marcação. Sou um diretor marcador e, para muita gente que me
considera – ou me considerou numa época – um diretor novo, avançado, esta seria uma
declaração retrógrada. Mas sempre fui assim e considero o contrário, que posso combinar
toda uma visão progressista do teatro, com essa visão formalista e tenho grandes amigos
diretores antiformalistas, com quem discuto. Digo isso porque estamos falando do corpo e
seus preparadores. Porque tenho essa função dentro do meu ofício, sou muito cuidadoso
com o trato do corpo, tenha ou não um colaborador especialista. Quando tenho ou não,
nos dois casos que falei, eu faço. Às vezes tenho vontade de assinar nos meus
espetáculos a direção e a coreografia. Tem gente que assina espetáculo como encenação,
eu gosto de assinar direção e mise en scène. Tem crítico que diz que direção e mise en
scène é a mesma coisa, mas não é. Eu posso fazer a mesma mise en scène, com duas
direções diferentes, como fiz num espetáculo aqui e depois na Argentina, em que a mise
en scène foi uma só, mas com direções distintas. Mise en scène é o espetáculo, a
encenação, a escritura cênica. Enquanto dirijo, construo a mise en scène, mas depois
posso fazer de novo esse espetáculo, com outros atores, mantendo a mise en scène, mas
com uma nova direção. A direção é você conduzir o espetáculo e fazer com que os atores
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cumpram aquela mise en scène. Tem diretor que desenha a sua mise en scène antes, em
casa, eu não, construo-a no dia a dia nos ensaios. Por exemplo, fiz três vezes Apareceu a
Margarida86, uma peça com a Marília Pêra. Eu poderia ter feito uma mise en scène e três
direções, mas não, fiz também três mises en scènes, quer dizer, as três Margaridas tinham
três mises en scènes e três direções, porque cada vez, foi uma nova direção.
J.R.: - Esse limite é muito tênue, não? Por que, às vezes, o preparador pode marcar uma
cena e ela ser considerada como uma marcação do diretor?
A.F.: - É, mas eu sou marcador. Quando trabalho com preparadores corporais, o que quero
deles é uma preparação física, corporal dos atores e muitas vezes o aprimoramento das
marcações. Isso ocorreu, sobretudo, com o Klauss Vianna: na Mão na Luva, era perfeita a
execução porque eu marcava uma cena que os atores começavam em cima da mesa e
terminavam em baixo, passando pela cadeira e tal. A marcação, diria que foi minha e não
simplesmente pedir algo e o Klauss ter que se virar para resolver, mas a própria execução
que depois era trabalhada pelo Klauss, como por exemplo, que pé apoiava na mesa. E
como ele fazia isso, nunca mais encontrei igual.
J.R.: - E como foi o seu primeiro contato com o Klauss Vianna, como você o conheceu?
86
Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Marília Pêra e Ivan
Pontes. Estreou em 1973, no Rio de Janeiro.
87
Hoje é Dia de Rock, de José Vicente. Direção de Rubens Corrêa. Com Rubens Corrêa, Isabel Ribeiro, Ivan
de Albuquerque e grande elenco. Rio de Janeiro, Teatro Ipanema, 1971. Klauss Vianna recebeu o Prêmio
Molière (1972), na categoria especial, por seu trabalho de “Expressão Corporal” nesta montagem, e pelo
conjunto de sua obra no teatro.
88
O Exercício, de Lewis John Carlino. Direção de Klauss Vianna. Com Marília Pêra e Gracindo Júnior. Rio de
Janeiro, Teatro Glória, 1977. Klauss Vianna recebeu o Prêmio Mambembe, na categoria de Direção.
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J.R.: - Como surgiu a montagem de Mão na Luva, de Vianinha89? E como foi o contato com
a Maria Lúcia, a viúva do Vianinha?
A.F.: - A ideia da peça era minha e a ideia de fazer um espetáculo era do Marco Nanini. Eu
tinha feito o Corpo a Corpo90, em 1975. Corpo a Corpo foi uma peça conhecida de
Vianinha, montada em São Paulo, com direção do Antunes Filho e com o Juca de Oliveira,
sendo que em 1975, eu montei aqui no Rio, com o Gracindo Júnior. Foi a primeira peça do
Vianinha montada no Rio e em São Paulo, depois que ele morreu. Montei Moço em Estado
de Sítio91, uma peça dele, que também tinha desaparecido e que fora lida para os amigos
e oferecida para a Ítala Nandi. E um grupo de jovens atores, recém-formados, me procurou
com essa peça, que não conhecia. Eles tinham feito uma primeira montagem e queriam
continuar em 1981, com Moço em Estado de Sítio, que me encantou. Com esse
espetáculo o Vianinha ganhou um Molière póstumo, eu ganhei o de direção e conheci a
Maria Lúcia, que me prometeu mostrar um texto inédito do Vianinha. Com certeza, as
primeiras pessoas que revistaram as gavetas dele não deram importância, porque o texto
se chamava Corpo a Corpo e acharam que era o outro texto, já conhecido. Quando a
primeira pessoa leu, provavelmente o Antônio Mercado, deu o título de Mão na Luva. E a
Maria Lúcia me disse: “eu só dei para o Mercado, para a Fernanda e agora para você”.
Fiquei deslumbrado, e disse que ia montar. Uma última palavra sobre o Mão na Luva é ser
uma peça anterior à Corpo a Corpo, pois quando o Vianinha escreveu esta última,
lembrou-se daquele título, dado a peça que não tinha mostrado a ninguém e como estava
esquecida não o interessava mais, ele poderia reutilizar o título de Corpo a Corpo. Apesar
de o título Corpo a Corpo ser mais adequado do que Mão na Luva, pois esta última é a
representação da relação de um casal corpo a corpo, alma a alma, dos personagens se
debatendo entre si. O Antônio Mercado buscou o título Mão na Luva da expressão92
utilizada pelo Vianinha. Quando o Nanini falou que estava pensando em fazer uma peça,
89
Vianinha / Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974). Autor e ator. Integrou o Teatro de Arena. Fundou o Centro
Popular de Cultura da UNE e o Grupo Opinião. Escreveu entre outras, as peças: Chapetuba Futebol Clube;
Papa Highirte e Rasga Coração. Filho do dramaturgo Oduvaldo Vianna (1892-1972).
90
Corpo a Corpo, de Vianinha. Com: Daisy Poli e Gracindo Júnior. Rio de Janeiro, 1975.
91
Moço em Estado de Sítio, de Vianinha. Direção: Aderbal Freire-Filho. Com: Carmen Gadelha, Fred
Gouveia, Alfredo Ebasco, Zezé Polessa, entre outros. Rio de Janeiro, Teatro do Sesc Tijuca, 1981-1982.
92
“Você é feito tomar banho de cascata. Sabe o que quer, sabe o que te querem, junta os dois juntos. Você é
mão na luva”. (Vianna Filho, 1984, p. 127, grifo nosso).
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disse-lhe que tinha uma peça sensacional e lhe ofereci, pois sabia que ele poderia fazer
muito bem. Ele se encantou e começamos a procurar uma atriz.
A.F.: - Convidamos os dois juntos. Lemos com algumas atrizes, como a Regina Duarte e a
Renata Sorrah, que se lembrou da Juliana, por causa de Lágrimas Amargas de Petra von
Kant93. A Juliana já era minha conhecida, nós dois éramos professores da CAL. Fomos
chamar a Juliana e as pessoas diziam: “mas a Juliana não fala”, até hoje a gente brinca
com isso quando a encontro, ela diz: “mas será que eu falo”, porque na peça da Fernanda,
ela não falava. E o Nanini, quando estávamos formando a equipe, disse que seria ótimo
trabalhar com o Klauss Vianna. Foi ele que entusiasticamente chamou o Klauss Vianna e
eu aceitei. E começamos a trabalhar com o Klauss, que tinha umas coisas maravilhosas.
No início, divido o ensaio em dois tempos, sejam quais forem os processos, mas se
alguma coisa é comum a todos os processos, é o “tempo de conhecimento” e o “tempo de
expressar o conhecer”. Primeiro tentamos conhecer, juntar os materiais em torno da peça,
das circunstâncias e depois, começa-se a expressar os personagens, pode juntar,
misturar, mas essas duas etapas existem em todos os processos. Nessa primeira fase,
que no nosso caso era bem definida com o Klauss, ele fazia dezenas de exercícios e a
gente estabeleceu uma ética de trabalho, em que todos fariam tudo, desde o cara que
fazia a música, os dois atores, eu94 e o cenógrafo, o Marcio Colaferro. O Marcos Leite fez a
direção musical, que no primeiro momento seria o João [Bomba]95. Aliás, o João a gente
conheceu através do Klauss Vianna, ele tocava nas aulas do Klauss. O Marcio, Letícia
Moura, a moça da produção executiva, todo mundo fazia aula com o Klauss. Um dos
incentivadores deve ter sido o Nanini, que adora essa fase dos ensaios, a fase de brincar.
Isto pode ter começado no dia em que ele [Klauss] me chamou para fazer a aula, e veio
outro e o Nanini se empolgou. Chego a achar que se houve a visita de algum repórter ele
93
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Fassbinder. Direção de Celso Nunes. Com: Fernanda
Montenegro, Renata Sorrah, Juliana Carneiro da Cunha, entre outros. Rio de Janeiro, Teatro dos Quatro,
1982.
94
Aderbal Freire-Filho (Aderbal Júnior) assinou na ficha técnica as funções de: Diretor e Iluminador.
95
A entrevistadora segura um papel com a ficha técnica impressa e lê o nome de João Bomba na função de:
“Trilha Sonora”. Aventa-se a possibilidade de João Bomba ser outra assinatura para João de Bruçó,
músico/percussionista que tocava nas aulas de Klauss Vianna na década de 1980 em São Paulo.
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também foi obrigado a fazer aula, porque isso virou um comportamento, nós
trabalhávamos assim, todos os dias.
J.R.: - E você se lembra sobre o que o Klauss Vianna trabalhava? Ele dava um
aquecimento?
A.F.: - [Ele] dava também uns exercícios e umas improvisações físicas. Lembro-me de
uma brincadeira com o Klauss Vianna, em especial, porque ele falava muito contra as
preparações físicas que tensionavam e de um tipo de relaxamento e de como era comum
se trabalhar ao contrário, fazendo no corpo um tipo de tensão que só prendia, ao invés de
soltar. Lembro-me que na época conhecia bem essas teses dele, porque tínhamos uma
brincadeira na qual eu dizia assim: “Klauss, ando de saco cheio de teatro, penso em deixar
isso e treinar um time de futebol e você vai ser o preparador físico, nós vamos revolucionar
o futebol, pois você vai ser contra todas essas preparações, com a qual os jogadores
vivem contundidos”. Ele dizia claro, mostrava e reforçava como seria útil para o atleta. Eu
dizia que seria ótimo os atletas fazerem os exercícios, dançando. Seria revolucionário,
especialmente a partir das técnicas de preparação física estabelecidas por ele.
A.F.: - Foi curto, mas demorou porque a gente se empolgou tanto, que durante o processo
de ensaio de Mão na Luva, nos transformamos, num certo sentido, em um ideal de
“Movimento” e de “Companhia”. Lembro-me que ensaiávamos no frio, na academia de uma
professora de balé de São Paulo, que ainda está viva, me surpreendi dia desses ao
encontrá-la, pois já era muito velha em 1984, fui ver um espetáculo do Zé Celso onde ela
atuava como atriz, era a Renée Gumiel96. Você falou dos meus processos, nessa época
ainda “fugia com o circo”, nome que induz a uma sedução para liberar os desejos. Pois a
ideia de “fugir com o circo” remete a sonhos juvenis, é o circo que passa pela cidade e a
moça ou o rapaz querem ir embora com ele. Usava esse nome para jogos de liberação de
desejos. Lembro-me que no processo de trabalho usávamos vários panos coloridos, que
as pessoas pegavam e tomávamos uma situação da peça ou do personagem e a partir
dessa situação, o ator fugia com o circo e na sua fuga levava os outros. Lembro-me do
96
Renée Gumiel / Annie Amélie Gumiel (1913 – 2006): Bailarina, coreógrafa e atriz. Uma das pioneiras da
dança moderna no Brasil.
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Klauss Vianna fazendo isso como participante. Houve um longo período de trabalhos
prévios, da descoberta dos atores, dos personagens, da peça e dos desejos. Era mais ou
menos isso que fazíamos na época, era “fugir com o circo”.
A.F.: - Depois, já no fim da década de 1980. Era o processo de trabalhar o ator, para que
ele “viva” e “mostre”, até por analogia com o cinema. Eu costumo dizer que no cinema o
ator vive e a câmera mostra, enquanto no teatro o ator vive e ele mesmo mostra. Trabalhar
no ator a combinação do boneco e do bonequeiro, que é ate hoje a minha linha de
pesquisa. O que me permite fazer nas peças cenas de inteira concentração e em seguida,
pegar uma cadeira e colocá-la em outro lugar, cantar uma música, mudar de roupa, enfim,
o ator não se perde na relação do personagem com o contador da história.
A.F.: - Esse é bem anterior. Se pensar em fases, foi na montagem da Morte de Danton97
em 1977, toda trabalhada com construção de “campos magnéticos”. Gostaria de voltar
todos esses processos, porque todos têm uma história e um sentido. Eu estou sempre me
prometendo [escrevê-los]. Nessa época, trabalhava muito as energias que existem entre
todos os seres e como elas existiriam no palco entre os atores, podendo provocar
diferentes tropismos, de atração e repulsão. Nós mantínhamos distâncias iguais,
trabalhando muito com os círculos e os núcleos, reproduzindo a estrutura cósmica e
atômica.
J.R.: - Isso tem muito a ver com o Klauss Vianna, pois ele falava em “energia”. Como cada
corpo seria um microcosmo, uma reprodução de todo o Universo98.
A.F.: - Talvez por isso a gente tenha se entendido tanto, porque foi o auge do meu trabalho
de corpo. Foi sobre este assunto que alguns críticos debocharam, dizendo que: “o Aderbal
faz órbitas e núcleos, andando em círculos”. Lembro-me do Flávio Marinho e do Gilberto
97
A Morte de Danton, de Georg Büchner. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Antônio Araujo, Bete
Mendes, Marco Antônio Palmeira e grande elenco. Rio de Janeiro, Galeria do Metrô da Glória, 1977.
98
“O fato de cada pessoa ser em síntese, o próprio mundo, um microcosmo, permite que ela encontre
respostas para suas dúvidas, paixões e ansiedades quando mergulha com coragem e técnica no seu
universo interior.” (Vianna, 1990, p. 104).
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Braga criticando isso, em 1977, ano em que trabalhei profundamente na Morte de Danton.
Os atores ensaiavam, fazendo essas experiências e eu ficava com um ator de fora quando
achava que estava muito carregado, que tinha uma energia muito forte, dizia para ele se
sentar, trocar essa energia e se constatava que ali tinha sido criado um grande campo
magnético.
J.R.: - E aquilo que você estava falando, que durante os ensaios você concebia uma ideia,
por exemplo, a questão da mesa, começar uma cena em cima e terminar em baixo da
mesa, e depois o Klauss Vianna trabalhava isso no detalhe. Isso aconteceu em geral, com
todo o espetáculo? Tinha marcação circular? Você tinha um desenho?
A.F.: - Em todo o espetáculo. Aliás, faz parte de um estigma que a crítica faz comigo.
Agora no Homem Que Viu o Disco Voador99, o Marcos Ribas de Farias fez uma crítica
elogiadíssima, me colocou no céu, dizendo que era o meu melhor espetáculo desde Mão
na Luva e se encontrou comigo, dizendo: “adorei, você leu a minha crítica? Está tudo seu
lá, até as suas marcações circulares”. E enfatizou as marcações circulares, que às vezes
foram tão criticadas. Lembro-me de dizer para o ator, quando estou fazendo uma peça,
dando margem ao espontaneísmo, mesmo contra as minhas convicções, se o ator começa
a circular: “se você fizer isso os críticos vão dizer que eu te disse para fazer”. Porque não
consigo, não fazer marcação circular. Na verdade, tudo isso se justificava um pouco.
J.R.: - Tinha uma valsa? Recordando, houve vários críticos que falavam de “valsa”.
A.F.: - A peça terminava com eles dançando, não era exatamente uma dança, era mais um
“sentido” de dança. Nós começávamos, com o cenário de um tablado completamente
vazio, que ia se montando ao longo da peça. Por exemplo, quando digo que tomo a
responsabilidade de marcar, de construir a coreografia do espetáculo, também a tenho de
montar o cenário. [Mão na Luva] começava com o tablado, depois entrava uma cadeira,
outra cadeira, para logo em seguida uma mesa, uma janela, depois saía isso, mudava-se
de lugar, mais um espelho, enfim, era uma construção e desconstrução de cenário e ao
mesmo tempo íamos construindo a dança, que dependia de uma relação com o texto.
Como eu tinha um excelente preparador corporal, claro que a gente dialogava, mas,
99
O Homem Que Viu O Disco Voador, de Flávio Márcio, direção de Aderbal Freire-Filho. Com Paulo Betti,
Vera Fajardo, Paulo Giardini, entre outros. Rio de Janeiro, Casa da Gávea, 2001.
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sobretudo, a participação do Klauss Vianna era essencial para o aprimoramento dos
movimentos. Os movimentos pareciam fluir naturalmente porque às vezes estava tudo nu e
era uma praia com detalhes de como ela se sentava ao pé dele, com um movimento
preciso, quase de dança e a própria dança final, com os dois em torno da mesa dançando
a valsa. Tudo isso era marcação dessa mise en scène, mas tudo era retrabalhado pelo
Klauss, com um trabalho técnico primoroso e certamente, muitas vezes, com a
contribuição de movimentos novos.
J.R.: - Depois da estreia em São Paulo, como foi a temporada de Mão na Luva três meses
depois, quando veio para o Gláucio Gill, no Rio de Janeiro?
A.F.: - Em São Paulo foi um fracasso, a primeira crítica do Edélcio Mostaço, na Folha, nos
destruiu, no dia seguinte à estreia, na qual finaliza dizendo que “não era teatro”. O curioso,
é que a peça teve críticas tão boas em São Paulo, ganhou todos os prêmios. O Edélcio, no
fim do ano, escreveu na resenha anual o seguinte: “o espetáculo mais premiado do ano foi
Mão na Luva, que certamente não entendi, porque vi a estreia e achei que não era um bom
espetáculo, mas foi avassaladora a opinião contrária à minha, de todos os críticos, tão
grande o número de prêmios que a peça ganhou que certamente estava equivocado”. Ele
fez uma crítica interessante, tanto que, muitos anos depois o conheci e tive simpatia por
ele, por essa autocrítica. Nós achávamos que tínhamos feito o melhor, esse trabalho foi
feito a partir da nossa convivência por três ou quatro meses, fazíamos tudo juntos,
saíamos, comíamos e vivíamos. Estreamos e no dia seguinte sai essa crítica, ficamos
arrasados. A partir daí, a peça nunca mais se recuperou em São Paulo e mesmo apesar
das boas críticas, o público não comparecia. Não tínhamos dinheiro, não sabíamos o que
fazer. Lembro-me que o diretor da Brastemp viu a peça, ele era fã do Nanini, saímos para
jantar e ele nos ofereceu um patrocínio: “a partir de amanhã pago os anúncios dessa peça
e também o lançamento dela no Rio, se vocês forem”. A partir do dia seguinte me ligaram
para ir para a agência desse Mauro Salles. Fizemos uns anúncios com críticas que saíram
em São Paulo, e eu vim para o Rio, negociar com o pessoal do Manhas e Manias, que
ocupava o Gláucio Gill. Estreamos aqui com o teatro lotado e assim continuou todos os
dias. Foi uma loucura.
J.R.: - Vocês viajaram para o Uruguai quando encerraram a temporada no Rio de Janeiro?
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A.F.: - Fomos em 1985 para o Uruguai e ganhamos o Prêmio Florencio de melhor
espetáculo estrangeiro, sabe com quem concorremos? Com um espetáculo sueco com a
Bibi Andersson. Esse Prêmio é antigo e muito importante, pois é uma homenagem ao
Florencio Sánchez, que é o Arthur Azevedo do Uruguai e da Argentina. Ele já foi montado
aqui, e é o criador do teatro Rio Platense, na passagem do século. O sistema era de
escolher os três melhores espetáculos estrangeiros, pois havia muitos espetáculos
argentinos, poucos brasileiros e alguns europeus. Existe ainda o festival internacional,
porém neste concorremos com a peça Os Credores, do Strindberg com um grupo sueco
com a Bibi Andersson, além de um espetáculo argentino e ganhamos. Terminou a
temporada no Rio e devíamos viajar, mas o Nanini e a Juliana não puderam ir. A produção
era minha, do Nanini e do Marcio Colaferro, quando viemos para o Rio de Janeiro
estávamos completamente duros, pensamos em vender os nossos carros. A Juliana
emprestou-nos, pois tinha algum dinheiro guardado. Fizemos questão de fazer tudo certo,
com nota promissória, pegamos o dinheiro para o lançamento no Rio, um mês depois já
pudemos pagar a Juliana e não vendemos os carros, foi o sucesso que nos salvou. A
Brastemp entrou só com a mídia e a Juliana patrocinou-nos. Na época da viagem, assumi
a produção, associando-me com o Oscar José e o Cláudio Marzo, ensaiei o Cláudio e a
Suzana Vieira para o mesmo espetáculo, com o mesmo cenário, com a mesma mise en
scène e viajamos.
J.R.: - E finalizando, o que você diria que ficou do Klauss Vianna, quando você pensa nele
hoje, ao que te remete?
A.F.: - Você me perguntou que memória tenho dele, eu diria que de um Mestre, essa
sensação de sabedoria, o que ele propunha ou dizia, a gente via como resultava, que de
fato ele tinha um saber especial e conseguia nos passar, ele dizia: “faça assim”, e a gente
sentia. Essa ideia de Mestre, de sábio, todas essas ideias, essas pessoas que têm um
conhecimento, que é da sua especialidade e por extensão da vida, eu associo muito ao
Klauss Vianna.
J.R.: - Queria agradecer a Aderbal e a última pergunta é se posso usar o seu depoimento
na minha dissertação de Mestrado.
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Referências
TAVARES, Joana Ribeiro da Silva. Klauss Vianna, do coreógrafo ao diretor. São Paulo,
Annablume, 2010.
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Mão na luva. In: O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho.
Seleção de Yan Michalski. São Paulo: Global, 1985.
VIANNA, Klauss. A dança. São Paulo: Siciliano, 1990.
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