Trajetória Constitucional Brasileira - Daniel Sarmento 1

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DIREITO CONSTITUCIONAL

TEORIA, HISTÓRIA E MÉTODOS DE TRABALHO

CLÁUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO


DANIEL SARMENTO

Belo Horizonte
2012
CAPÍTULO 3

A TRAJETÓRIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

3.1 Introdução
Na acidentada história institucional do Brasil, não faltaram constituições. Foram oito até agora,
editadas respectivamente em 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 19691 e 1988. Mas, se sobram
constituições, faltou-nos constitucionalismo. A maior parte das constituições que tivemos não logrou
limitar de forma eficaz a ação dos governantes em favor dos direitos dos governados. Muitas delas
foram pouco mais que fachadas, que visavam a emprestar uma aparência de legitimidade ao regime,
mas que não subordinaram efetivamente o exercício do poder, que se desenvolvia quase sempre às
suas margens.2 No nosso conturbado processo político, abundam os golpes e desvios em relação às
constituições vigentes, com ou sem rompimento formal com elas. O autoritarismo, a confusão entre o
público e o privado, a exclusão social e a violação dos direitos mais básicos de amplos segmentos
da população são patologias crônicas da trajetória nacional, que têm persistido renitentemente, a
despeito da retórica das nossas constituições.
Tais problemas não devem ser debitados à qualidade dos textos constitucionais que tivemos. A
maior parte estava em sintonia com as tendências do constitucionalismo da época em que vigoraram.
A questão maior foi a falta de efetividade destas constituições, cujos comandos não condicionavam,
de fato, a ação dos detentores dos poderes político, econômico e social.3 Infelizmente, na nossa
trajetória institucional, entre a realidade e o texto constitucional, tem mediado quase sempre uma
distância enorme.4
É verdade que esse hiato vem diminuindo desde a promulgação da Constituição de 1988. Desde
então, o país tem vivido um período de estabilidade institucional e a Constituição tem começado a
ser levada mais “a sério”. Estamos ainda muito distantes do Estado Democrático de Direito
prometido pelo constituinte de 88, pois a desigualdade e o patrimonialismo antirrepublicano ainda
contaminam profundamente as nossas instituições e relações sociais, mas os avanços em relação ao
passado já são inquestionáveis.
Neste capítulo, será examinada a trajetória constitucional do país. Serão panoramicamente
analisados não apenas os nossos diversos textos constitucionais, mas também o seu contexto
sociopolítico e a sua interação com a realidade empírica subjacente. Pela sua importância, a
Constituição de 88 será objeto de um capítulo próprio.

3.2 A Constituição de 1824


3.2.1 Antecedentes e outorga
Em 1822, D. Pedro I proclama a Independência do Brasil e torna-se o primeiro Imperador do país.
Na época, o Brasil era um país agrário, com uma economia basea da na monocultura latifundiária,
sustentada pela mão de obra escrava. A população era de cerca de 5 milhões de pessoas, dentre as
quais havia aproximadamente 800 mil índios e mais de um milhão de escravos.5
O processo de independência ocorrido no Brasil foi absolutamente distinto do padrão adotado por
outros países da América Latina, que, à mesma época, também se libertavam do jugo de sua antiga
metrópole (Espanha). Naqueles países, os processos de libertação nacional foram mais violentos,
envolvendo conflitos armados de maior monta, e deles decorreu a instauração de regimes
republicanos, tendo à frente integrantes da elite local. Contudo, deles não resultou unidade, mas a
fragmentação do antigo domínio espanhol numa multiplicidade de países diferentes. Já no Brasil, a
independência resultou em configuração absolutamente distinta: manteve-se a unidade nacional,
adotou-se a monarquia e preservou-se no poder a mesma dinastia que governara o país nos tempos de
Colônia: os Bragança. É certo que também tivemos aqui, muito antes do advento da República,
movimentos de viés republicano, inspirados na Revolução norte-americana e no Iluminismo, como a
Inconfidência Mineira, a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador de
1824.6 Todavia, nenhum destes movimentos vingou, talvez pela escassa penetração desse ideário
mais avançado no tecido social brasileiro.
Quando foi proclamada a independência, o Brasil integrava, desde 1815, o Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarve. Quatorze anos antes da independência, a família real portuguesa, fugindo
de Napoleão, migrara para o Brasil, instalando-se com a sua Corte na cidade do Rio de Janeiro, que,
por algum tempo, se tornou a sede do império português. No período em que a Corte portuguesa
esteve no Brasil, uma série de medidas importantes foram adotadas, como a abertura dos portos
brasileiros às “nações amigas”, a revogação da proibição da instalação de manufaturas no país e da
impressão de jornais e livros, a fundação de escolas e universidades e a criação do Banco do
Brasil.7
Contudo, desde 1817, começara em Portugal a pressão pelo retorno ao país da família real. Em
1820, eclode uma revolução constitucionalista no Porto, que, além de exigir o imediato retorno de D.
João VI, pretendia limitar o absolutismo monárquico em Portugal, bem como restringir a relativa
autonomia obtida pelo Brasil desde 1808, que contrariava os interesses da burguesia lusitana,
reinstituindo em nosso país o regime colonial pretérito.8 Ainda no Brasil, João VI vê-se forçado a
jurar a Constituição a ser elaborada em Lisboa pelas Cortes. Em 1821, pressionado pelos
compatriotas, D. João retorna a Portugal, deixando à frente do governo brasileiro, como príncipe
regente, o seu filho primogênito, Pedro I.
O Brasil chegou a eleger e enviar representantes para as Cortes portuguesas,9 mas esses, ao
chegarem a Lisboa, depararam-se com um ambiente absolutamente refratário às pretensões nacionais,
sem qualquer chance de sucesso nos seus objetivos, que não envolviam ainda a conquista da
independência do país, mas tão somente a garantia de alguma autonomia diante de Portugal.10 As
Cortes hostilizam os representantes brasileiros e passam a exigir também o retorno de Pedro I, que,
no entanto, resolve desacatá-las, permanecendo no país, no famoso episódio do “Fico”. Algumas
medidas draconianas impostas pelas Cortes elevaram a temperatura nas relações entre Brasil e
Portugal e, alguns meses depois, Pedro I, estimulado pelo chamado “partido dos
brasileiros”,11 proclamava a independência.
Meses antes desta proclamação, já estava prevista a realização de eleições para uma Assembleia
Constituinte no Brasil, que haviam sido convocadas por meio de decreto expedido em 3 de junho de
1822.12 As eleições ocorrem após o 7 de setembro e, em maio de 1823, começa a se reunir no Rio de
Janeiro a constituinte. Na abertura dos seus trabalhos, D. Pedro I profere famoso discurso — no qual
já se apresentava como “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil” — em que se
compromete a defender a futura Constituição, desde que essa, nas suas palavras, “fosse digna do
Brasil e de mim”.13
Na fala imperial já se revela não só a ambiguidade do compromisso de Pedro I
com o constitucionalismo, mas também a complexidade do ambiente político ideológico do momento:
superada a era revolucionária na Europa e derrotado o Império Napoleônico, vivia-se um período de
restauração das monarquias. Como não era mais possível o retorno puro e simples ao absolutismo de
outrora, que encontrava limites no enraizamento de algumas conquistas do liberalismo, desenhava-se
uma fórmula compromissória que envolvesse a participação efetiva do monarca no exercício do
poder. Mas, no caso brasileiro, a promessa condicional de D. Pedro deixava claro que a última
palavra seria sua, e ela não tardaria a se fazer ouvida.
Na Assembleia Constituinte, prevalecia o sentimento liberal, que só não se estendia à questão da
escravidão. Os seus trabalhos se encaminhavam para a adoção de uma monarquia constitucional,
pautada no princípio da separação de poderes, com a instituição de rígidos limites ao poder do
Imperador.14 Nesse sentido, foi elaborado projeto por uma comissão composta por 7 integrantes,15 na
qual se sobressaiu a atuação de Antônio Carlos de Andrada — tanto assim que o projeto passou à
história como o Projeto Antonio Carlos. Porém, descontente com os rumos que tomava a constituinte,
com a qual se indispôs em diversas ocasiões, Pedro I, em 12 de novembro de 1823, dissolve aquela
Assembleia, prendendo ou exilando diversos parlamentares. Sem embargo, compromete-se o
Imperador a convocar outra constituinte, perante a qual prometia apresentar um projeto de
Constituição “duplicadamente mais liberal do que a extinta Assembléia acabara de fazer”.16
Pedro I cria uma comissão, composta por dez integrantes, à qual delega a função de elaborar um
novo projeto de Constituição e a batiza de Conselho de Estado. Rapidamente, o Conselho de Estado
cumpre a sua missão, sob a liderança de José Joaquim Carneiro Campos, futuro Marquês de
Caravelas. Afora alguns aperfeiçoamentos redacionais, a principal mudança substantiva introduzida
pelo projeto, em relação ao anterior, da constituinte dissolvida, foi a criação do Poder Moderador,
instituição central e controvertida da nova ordem constitucional a ser implantada no país.
Embora houvesse dissolvido a Assembleia Constituinte de 1823, Pedro I não desejava a pecha de
tirano. Por isso, valeu-se do artifício de submeter o projeto de Constituição ao crivo das câmaras
municipais, pedindo que encaminhassem sugestões. Ao invés disso, quase todas as que se
manifestaram pediram que D. Pedro de imediato jurasse o projeto como a nova Constituição do
Brasil, o que foi feito.17 A mais forte reação contrária partiu de Pernambuco, onde Frei Caneca se
insurgiu contra o projeto, acusando-o de ser “inteiramente mau, pois não garante a independência
do Brasil, ameaça a sua integridade, oprime a liberdade dos povos, ataca a soberania da Nação, e
nos arrasta ao maior dos crimes contra a divindade, qual o perjúrio, e nos é apresentado da maneira
mais coativa e tirânica”.18 Essa oposição culminou na Confe deração do Equador, que tinha a
pretensão de fundar uma república federal englobando diversas províncias do Nordeste, mas que foi
derrotada nas armas antes do final de 1824.
Em 25 de março de 1824 entra em vigor a nova Constituição. Em que pese a existência de
interpretações divergentes,19 a submissão do projeto de Constituição ao crivo das câmaras
municipais não expurgou a primeira das nossas Cartas da mácula da outorga.20 Não nascia bem o
constitucionalismo brasileiro.

3.2.2 Traços essenciais da Constituição de 1824


A ideologia subjacente à Constituição do Império corresponde a uma fórmula de compromisso
entre o liberalismo conservador e o semi-absolutismo. A sua principal influência foi a Constituição
francesa de 1814, outorgada por Luís XVIII no contexto da Restauração. Os traços liberais da Carta
de 1824 se revelam sobretudo na garantia de um amplo elenco de direitos individuais (art. 179). Mas
essa faceta liberal é temperada pelo elitismo conservador da Constituição, que se observa na adoção
de um modelo censitário de direitos políticos (arts. 92 a 96). Nesse ponto, o liberalismo da
Constituição de 1824 aproxima-se do modelo então hegemônico no constitucionalismo europeu, que
ainda não havia incorporado às constituições a sua dimensão democrática. Já o lado semi-absolutista
da Carta tem o seu ápice na previsão do Poder Moderador (arts. 98 a 101), que consistiu numa
deturpação das teorias de Benjamin Constant. Composta por 179 artigos, a Carta Imperial já
inaugurava a tradição brasileira de textos constitucionais extensos e analíticos.
A Constituição de 1824 consagrava como forma de governo a monarquia here ditária (art. 3º),
atribuindo à dinastia de Pedro I a linhagem real da Coroa brasileira (art. 4º). A pessoa do Imperador
era considerada sagrada e inviolável, e o monarca não estava sujeito a qualquer mecanismo de
responsabilização (art. 99). Mantinha-se como religião oficial a católica, embora se permitisse o
culto doméstico e particular de outras crenças (art. 5º). A relação entre a Igreja Católica e o Estado
era regulada pelo regime do padroado, segundo o qual os clérigos eram pagos pelo próprio governo,
o que os equiparava a funcionários públicos. Ao Imperador competia “nomear bispos e prover os
benefícios eclesiásticos” (art. 102, II), assim como conceder ou negar be ne plácito às bulas papais e
decisões emanadas da Santa Fé (art. 102, XIV) para que tivessem validade no território brasileiro.
Ao invés dos tradicionais três poderes, a Constituição de 1824 consagrava quatro: Legislativo,
Judiciário, Executivo e Moderador, sendo este último a principal inovação no desenho institucional
da Carta, decorrente, como ressaltado, de uma leitura enviesada da teoria de Benjamin Constant.
O Poder Legislativo seguia a tradição europeia do bicameralismo de mode ração,21 dividindo-se
em duas casas: a Câmara dos Deputados e o Senado, os quais, em conjunto, formavam a Assembleia
Geral. A Câmara de Deputados era constituída por deputados eleitos para legislaturas de quatro anos
(arts. 14 e 35), enquanto o Senado era composto por senadores vitalícios, designados pelo Imperador
dentre os três nomes mais votados na província em que surgisse a vaga (arts. 40 e 43), sendo os
Príncipes da Casa Imperial senadores por direito próprio a partir dos 25 anos de idade (art. 46).
Observe-se que o Senado não exercia a função de representar os estados. O Brasil não se organizava
de forma federativa. Sua função era a de Câmara conservadora, devendo moderar os excessos da
Câmara dos Deputados. Por essa razão, o ordenamento estabelecia exigências mais rígidas de idade
e renda para a eleição de senadores que para a eleição de deputados.
As eleições eram indiretas: os votantes escolhiam os eleitores (eleição de primeiro grau), que, por
sua vez, elegiam os titulares dos cargos disputados (eleição de segundo grau). Votavam os homens
com mais de 25 anos (21 anos, se casados ou oficiais militares, ou em qualquer idade, se bacharéis
ou clérigos). As mulheres e os escravos não tinham direito ao voto, mas os libertos podiam
participar das eleições de primeiro grau. Havia ainda restrições censitárias para o exercício dos
direitos políticos: 100 mil réis por ano para ser eleitor de primeiro grau, e 200 mil para ser votante
nas eleições de segundo grau.22 Ainda mais rígidas eram as exigências para disputa de cargo eletivo.
Além de todas aquelas demandadas do eleitor, impunha- se, ademais, que, para concorrer a
deputado, o cidadão tivesse renda superior a 400 mil réis anuais e fosse católico (art. 95). Já para o
Senado, era necessária a idade mínima de 40 anos, notável saber e capacidade, além de renda anual
superior a 800 mil réis (art. 95).
Ao Poder Judiciário era prometida independência (art. 151), mas, paradoxalmente, se franqueava
ao Imperador, como atribuição do Poder Moderador, a autoridade de suspender magistrados por
queixas contra eles recebidas (art. 154). Seus integrantes eram juízes de Direito “perpétuos” (art.
153), jurados e juízes de paz. Na cúpula do Judiciário foi prevista a instituição do Supremo Tribunal
de Justiça (art. 164), com competência constitucional circunscrita ao julgamento de recursos de
revista, conflitos de jurisdição e ações penais contra certas autoridades. O Tribunal, que foi
efetivamente instituído em 1829, era composto por dezessete ministros. A Carta de 1824 não
contemplou qualquer mecanismo de controle judicial de constitucionalidade das leis. A única
referência expressa ao controle de constitucionalidade é feita para atribuir a função ao próprio Poder
Legislativo: caberia à Assembleia promover a “guarda da Constituição” (art. 13, IX). A única
possibilidade de controle externo ao Legislativo era o emprego da prerrogativa imperial, inerente ao
Poder Moderador, de interferir nos demais poderes. Não por outra razão, há quem identifique o
Poder Moderador como instituto antecedente do controle judicial da constitucionalidade das leis.23
O Poder Executivo era titularizado pelo Imperador (art. 102), que o exercia com o auxílio dos
Ministros de Estado. Durante o 2º Reinado, porém, cultivou-se o hábito de composição do Conselho
de Ministros a partir das forças políticas que obtivessem a maioria das cadeiras nas eleições para a
Câmara dos Deputados. Por isso, alguns passaram a identificar uma forma particular de
parlamentarismo brasileiro, decorrente do costume. Porém, a Carta de 1824 não tinha nada de
parlamentarista. O Executivo não dependia da confiança do Parlamento e os Ministros respondiam
apenas perante o Imperador. O parlamentarismo não seria compatível com a enorme concentração de
poderes nas mãos do Imperador, decorrente do exercício do Poder Moderador em cumulação com a
chefia do Executivo. A existência, na prática, de um governo de gabinetes, nos moldes do
parlamentarismo, deveu-se a fatores que vão do temperamento do Imperador às condições políticas
concretas verificadas entre nós. Mas não resultou das instituições positivadas na Carta de 1824.
O Poder Moderador, como já salientado, era uma singularidade brasileira. Nem mesmo na França,
pátria de Benjamin Constant, ele chegara a ser experimentado. De acordo com a Carta de 1824, o
Poder Moderador era “a chave de toda a organização Política”, sendo “delegado ao Imperador,
como Chefe Supremo da Nação, para que vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e
harmonia dos mais Poderes Políticos” (art. 98). Dentre as competências que lhe foram atribuídas
pela Carta, destacam-se a nomeação dos senadores (art. 101, I), a aprovação e suspensão das
resoluções dos Conselhos das províncias (inciso IV), a prorrogação ou adiamento da Assembleia
Geral e dissolução da Câmara dos Deputados (inciso V) e a suspensão de magistrados (inciso VIII).
Tamanha era a concentração de poderes ensejada pela instituição do Poder Moderador, que Paulo
Bonavides e Paes de Andrade a caracterizaram, não sem algum exagero, como “a
constitucionalização do absolutismo”.24
Na verdade, o modelo adotado no Brasil não correspondia com fidelidade às teorias de Benjamin
Constant — pensador liberal-conservador, extremamente preocupado com a contenção do arbítrio
dos governantes em prol das liberdades individuais. Para Constant, o Poder Moderador deveria ser
um poder neutro, que agisse sempre de forma imparcial, para manter o equilíbrio e a concórdia
dentre os demais poderes, e garantir o respeito aos direitos individuais. Isto não seria possível se
esse poder neutro fosse atribuído ao titular de qualquer dos outros poderes ditos “ativos”, como
ocorreu na Carta de 1824, em que o Imperador cumulava o Poder Moderador com a chefia do
Executivo.25
Durante o Império, o mais aceso debate constitucional gravitava exatamente em torno do Poder
Moderador. De um lado, figuravam os juristas e políticos conser vadores, como Pimenta
Bueno,26 que não só defendiam tal poder, como também advo gavam a exegese de que os ministros de
Estado não participavam do seu exercício, que se concentrava na figura do Imperador. Com isso,
diante da irresponsabilidade jurídico-política do Imperador, evitava-se qualquer tipo de controle
sobre o Poder Moderador. No outro flanco, alguns autores liberais questionavam a legitimidade da
instituição. Frei Caneca chegou a caracterizá-la como “a chave mestra da opressão da nação
brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”.27 Outros, como Zacarias de Góes
Monteiro, defendiam a corresponsabilidade dos Ministros pelos seus atos, como forma de ensejar
algum tipo de controle sobre aquele poder estatal.28 Para esses, o rei deveria “reinar mas não
governar”.
A forma de Estado adotada foi a unitária. O território nacional foi dividido em províncias (art. 2º),
cujos Presidentes eram nomeados e destituídos livremente pelo Imperador (art. 165). O regime era
bastante centralizado política e administrativamente,29 o que veio a ser abrandado pelo Ato
Adicional de 1834, que atribuiu uma relativa autonomia às províncias, mas foi logo neutralizado pela
Lei de Interpretação do Ato Adicional, editada em 1840, como será adiante analisado. As províncias
contavam também com Conselhos Gerais, compostos por membros eleitos para mandatos de quatro
anos, escolhidos com base nas mesmas regras adotadas para as eleições dos deputados (art. 74). Tais
conselhos, que eram embriões de um Poder Legislativo local, tinham como principal função discutir
e deliberar sobre questões de interesse das províncias, elaborando também projetos normativos para
atendimento de suas necessidades e urgências (art. 81). Não obstante, tais projetos só entravam em
vigor depois de aprovados pelo poder central — a Assembleia Geral —, ou, quando esta não
estivesse reunida, pelo Imperador (arts. 84 a 88).
A Carta de 1824 continha, para a época, um generoso elenco de direitos individuais, espalhados
nos 35 incisos do seu art. 179. Encontraram espaço nesse elenco a legalidade, a liberdade de
expressão e de imprensa, a liberdade de religião, a liberdade profissional, a irretroatividade da lei,
o juiz natural, a vedação da tortura, a pessoalidade da pena, a inviolabilidade do domicílio e o
direito de propriedade, dentre outros. Sem embargo do seu conservadorismo, a Constituição de 1824
já manifestava uma certa “sensibilidade precursora para o social”,30 ao antecipar institutos que
seriam típicos do constitucionalismo do século seguinte: o direito aos “socorros públicos” e à
instrução primária gratuita (art. 179, XXXI e XXXII). Paradoxalmente, apesar de a sociedade e a
economia brasileiras se assentarem sobre a escravidão negra — instituição sobre a qual a
Constituição se silenciara completamente —, afirmou-se também no texto constitucional o princípio
da igualdade. Infelizmente, a efetividade daqueles direitos foi mínima.31 Não é exagero dizer que o
arcabouço jurídico liberal importado da Europa não passou de fachada. Nesse tópico, a Constituição
foi pouco mais que um “pedaço de papel”, no sentido de Ferdinand Lassale.
Outro traço característico da Constituição Imperial foi o seu caráter semirrígido.32 As normas
consideradas substancialmente constitucionais demandavam um processo bastante complexo para
alteração, enquanto as partes restantes da Carta podiam ser modificadas por meio do mesmo
procedimento empregado para a edição da legislação ordinária. De acordo com o art. 178 daquela
Constituição, exigiam alteração por este procedimento especial apenas os preceitos relacionados
“aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos direitos políticos e individuais
dos cidadãos”. Para estes, a proposta de mudança constitucional só poderia ser apresentada depois
de decorridos quatro anos da vigência da Constituição, mediante o apoio de pelo menos um terço dos
deputados (art. 174). A proposição seria lida três vezes, com intervalos de seis dias entre as leituras,
seguindo-se à deliberação sobre a admissibilidade de discussão da matéria. Se admitida, prosseguia-
se por meio do procedimento legislativo ordinário (art. 175), que envolvia a aprovação do projeto
pelas duas casas legislativas por maioria simples, bem como a sanção e promulgação imperial,
visando à edição de uma lei “autorizadora”. Essa lei impunha aos eleitores que, no próximo pleito
eleitoral para deputados, conferissem aos seus mandatários o especial poder para alteração da
Constituição. Na legislatura subsequente, por fim, discutia-se e aprovava-se, se fosse o caso, a
reforma pretendida. Não havia no texto constitucional qualquer limite material ao poder de reforma
da Carta.

3.2.3 A vida constitucional sob a égide da Carta de 1824


Em 1831, em meio a intensa crise, D. Pedro I abdica do trono em favor de seu filho Pedro II, então
com cinco anos de idade, retornando a Portugal na tentativa de recuperar a trono daquele país,
usurpado por seu irmão D. Miguel. Inicia-se o período da Regência (1831-1840), um dos mais
conturbados da história nacional, marcado por inúmeros conflitos, movimentos separatistas e
revoltas populares em todo o país, como a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada e a Guerra dos
Farrapos. De acordo com a Constituição, o novo Imperador só alcançaria a maioridade aos 18 anos
(art. 121). Durante a sua menoridade, o país deveria ser governado pelo parente mais próximo, com
mais de 25 anos (art. 122). Na ausência de parentes com idade superior àquela, como ocorria no
caso, a Assembleia Geral deveria eleger uma regência trina (art. 123), o que de fato ocorreu.
Em 1834, é aprovada a primeira e única alteração formal à Carta de 1824: o chamado “Ato
Adicional de 1834”, que substituiu a regência trina pela regência uma. Doravante, o regente passaria
a ser escolhido pelos eleitores para mandato de quatro anos (arts. 26 a 29). Outra mudança
importante introduzida pelo Ato Adicional foi a ampliação da autonomia das províncias, com a
criação das Assembleias Legislativas Provinciais (art. 1º), em substituição aos conselhos gerais. Às
Assembleias foram atribuídos diversos novos poderes, dentre os quais competências legislativas
próprias (art. 10). Ademais, o Ato Adicional extinguiu o Conselho de Estado (art. 32) — órgão de
aconselhamento do Imperador previsto na Carta de 1824, que era mal visto pelos liberais.
O Ato Adicional resultou de um movimento reformista liberal, que encontrou algum eco na Câmara
dos Deputados, e que pugnava por reformas profundas no regime, como a extinção do Poder
Moderador, a instauração de uma monarquia federativa, e o fim da vitaliciedade do
Senado.33 Contudo, não houve espaço político para que a reforma fosse tão longe. Ademais, os
avanços descentralizadores obtidos pelo Ato Adicional não perduraram muito. Em 1840, no contexto
de uma reação conservadora conhecida como “Regresso”, é editada a Lei nº 105 — a chamada Lei
Interpretativa —, que, a pretexto de interpretar o Ato Adicional, alterou-lhe significativamente a
substância, para restringir os poderes das Assembleias Legislativas Provinciais. Outra mudança
promovida pelo Ato Adicional também teve vida curta: em 1841, uma lei ordinária recriaria o
Conselho de Estado.
Em 1840, ocorre o chamado “Golpe da Maioridade”. Pressionada pelo Partido Liberal e
atendendo aos anseios de parte da população, a Assembleia Geral proclama a maioridade de Pedro
II, que tinha então apenas 14 anos, possibilitando a sua ascensão ao trono, apesar da clareza do texto
constitucional, que fixava em 18 anos completos o momento da maioridade. Finda-se aí o período de
regência e tem início o 2º Reinado.
Durante o 2º Reinado, e sobretudo a partir de 1847, constrói-se no país um arremedo de
parlamentarismo.34 Naquele ano, um decreto do Imperador criara o cargo de Presidente do Conselho
de Ministros, e a esse cabia a formação do gabinete. De temperamento conciliador, Pedro II adotou o
hábito de nomear aquela autoridade a partir de indicação feita pelo partido que obtivesse maioria nas
últimas eleições para a Câmara. Para se manter na função, o gabinete deveria gozar da confiança não
só do Imperador, como também da Câmara dos Deputados. Porém, algumas vezes em que a Câmara
deixou de apoiar o gabinete de sua escolha, Pedro II valeu-se da sua autoridade de titular do Poder
Moderador para dissolvê-la e convocar novas eleições legislativas. Como o Imperador e o governo
tinham grande peso nessas eleições, Pedro II acabava conseguindo manter o gabinete de sua
preferência.35 Tal mecanismo ensejou grande rotatividade no governo. Houve, no total, 36 gabinetes
durante o 2º Reinado, propiciando intensa alternância no poder entre os dois grandes partidos
imperiais — o Liberal e o Conservador —, sem que de tal alternância resultasse maior instabilidade
política.
Em relação ao quadro partidário, teoricamente, o Partido Liberal seria mais identificado com a
descentralização e limitação dos poderes imperiais, e o conservador mais inclinado às teses
opostas.36 Contudo, na prática, as diferenças decorriam muito mais de disputas de grupos por poder e
recursos do que de orientações programáticas. Ficou conhecida a frase do político pernambucano
Holanda Cavalcanti, de que “nada se assemelha mais a um Saquarema do que um Luzia no poder”
(“Saquarema” era a alcunha dos conservadores e “Luzia” a dos liberais).
Durante todo o Império, pouca penetração teve na vida do país o ideário constitucionalista. É certo
que, durante o 2º Reinado, não houve maiores arroubos autoritários por parte do Imperador. Sem
embargo, o liberalismo da Constituição mal arranhava a epiderme das nossas relações políticas e
sociais. O constitucionalismo liberal era, como assinalou Roberto Schwartz, uma ideia fora de
lugar,37 importada da Inglaterra e da França, mas que não se aclimatara bem à atmosfera cultural
brasileira, influenciada pela herança antiliberal da colonização portuguesa.38 Sob o verniz da
Constituição, mantinha-se e se alimentava o patrimonialismo, o desprezo pelos direitos fundamentais
e — maior das chagas da história nacional — a escravidão.
A escravidão, apesar de sequer mencionada no texto constitucional, era a instituição central da
sociedade e da economia do país. As paulatinas limitações à escra vidão e a sua posterior — e tardia
— abolição, foram as mais importantes mu danças ocorridas no país durante o 2º Reinado. O fim da
escravidão foi impulsionado pelo movimento abolicionista, que, ao longo da segunda metade do
século XIX, foi fincando raízes na consciência de setores da população; pelo aumento da imigração,
que aportava nova mão de obra para a nossa agricultura, diminuindo o custo econômico da abolição
do trabalho escravo; e também pelas pressões inglesas, motivadas não só por razões humanitárias,
como também por interesses comerciais.
Em 1826, cedendo às pressões inglesas, o Brasil celebra com aquele país um tratado, que entraria
em vigor em 1830, pelo qual se comprometia a encerrar o tráfico negreiro, reservando-se à Inglaterra
o poder de inspecionar em alto-mar os navios suspeitos do comércio de escravos. Em 1831, é
editada uma primeira lei nacional para dar cumprimento àquele tratado, proibindo o tráfico,
instituindo severas penas para os traficantes e declarando livres os escravos que chegassem ao país
após a sua edição. A lei não teve nenhuma eficácia: era “para inglês ver” (vem daí essa expressão).
A Inglaterra reagiu contra a continuidade do tráfico de escravos, decretando o Bill Aberdeen, que
autorizava a marinha inglesa a atacar e apreender os navios negreiros e a julgar em seus tribunais os
responsáveis. Em 1850, nova lei brasileira proscreve o tráfico — a Lei Eusébio de Queiroz — esta
com maior eficácia, reduzindo drasticamente o fluxo de africanos para o país. Em 1871, é editada a
Lei do Ventre Livre, declarando libertos os filhos de escravas nascidos após a sua promulgação. Em
1885, a tentativa dos conservadores de arrefecer os ímpetos abolicionistas por meio de concessões
pontuais dava mais um passo com a Lei Saraiva-Cotegipe, também conhecida como Lei dos
Sexagenários, que estabeleceu a liberdade dos escravos com mais de 60 anos. O fim da escravidão
institucionalizada só ocorreria com a Lei Áurea, promulgada pela Princesa Isabel em 13 de maio de
1888. Com ela, o Brasil tornava-se o último país do Ocidente a abolir oficialmente a escravatura.
Contudo, isto não foi suficiente para a inclusão social da população afrodescendente. A falta de
condições materiais dos ex-escravos, a discriminação que sofriam, e a inexistência de qualquer
política pública voltada a remediar esta terrível situação, criada por mais de três séculos e meio de
cativeiro, geraram um sistema social profundamente injusto, cujas consequências ainda não foram
extirpadas. A lógica da escravidão penetrou profundamente a nossa cultura e sociabilidade, e, do seu
veneno, ainda não conseguimos nos livrar. Infelizmente, cumpriu-se o vaticínio de Joaquim Nabuco:
“a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.39
O 2º Reinado aproximava-se do fim, com crises nas relações do Imperador com o clero e com o
Exército, e perda de suporte do regime na maior parte dos segmentos sociais, inclusive na elite rural,
que, com a abolição, deixara de apoiá-lo. Em 15 de novembro de 1889, a Carta Imperial é revogada
pelo Decreto nº 1, que proclama a República. Apesar das virtudes pessoais de D. Pedro II,
reconhecidas por amplos setores da sociedade brasileira, nossa primeira experiência constitucional
legou ao constitucionalismo uma marca que apenas recentemente começaria a ser enfrentada: a franca
incoerência entre as proclamações constitucionais e a realidade social brasileira.

3.3 A Constituição de 1891


3.3.1 Antecedentes e Assembleia Constituinte
Por ocasião queda da monarquia, em novembro de 1889, as bases de susten tação do regime
monárquico estavam profundamente desgastadas. Concorreram para a crise do regime monárquico
sobretudo após a “questão religiosa”,40 a “questão militar”41 e a emancipação dos escravos sem
indenização ao ex-proprietários. O movimento republicano vinha ganhando corpo no país, desde o
começo da década de 1870.42 Pedro II estava muito envelhecido, e a opinião pública tinha aversão ao
seu genro estrangeiro, o Conde D’Eu, visto como possível futuro governante.
Na campanha republicana, aliaram-se políticos civis, de diversas inclinações ideológicas, e
militares, numa união precaríssima, condenada a desfazer-se pouco depois da proclamação da
República. Adeptos do federalismo que antes apoiavam a monarquia, como Ruy Barbosa e Joaquim
Nabuco, também aderiram ao movimento republicano, justificando a adesão pela dificuldade de
implantação da federação no regime monárquico. Havia, basicamente, três linhas no movimento
republicano do final do 2º Reinado. Uma, de viés liberal e urbano, associava a República à garantia
dos direitos individuais, à federação e ao fim do regime escravista. Outra vertente, originária do
Estado de São Paulo, ligava-se à burguesia cafeeira e adotava uma perspectiva conservadora,
interessando-se pela autonomia das províncias, mas não pela defesa dos direitos individuais ou pelo
fim da escravidão. A terceira linha era positivista, influenciada pelas ideias filosóficas de Auguste
Comte, que defendia uma ditadura republicana como a forma ideal de governo para a época, e tinha
grande penetração nos nossos meios militares, bem como entre os políticos do Rio Grande do Sul.
Foram os militares, sob a chefia de Deodoro da Fonseca,43 que promoveram o movimento que
resultou na Proclamação da República. Neste movimento, praticamente não houve participação
popular. O povo não passou de mero expectador atônito dos acontecimentos de novembro de
1889.44 Sem embargo, parece um exagero equiparar o advento da República a um mero
pronunciamento militar, como sugerem alguns autores, 45 haja vista as várias outras forças que lhe
deram suporte, bem como a sua correlação com fenômenos mais profundos que se desenrolavam na
sociedade, na cultura e na economia do país.46
Proclamada a República, o Imperador e a família real foram exilados, partindo imediatamente
para a Europa. Não houve conflito armado na instauração do novo regime, cuja formalização se deu
por meio do Decreto nº 1, que instituiu o governo provisório, chefiado pelo próprio Deodoro, e
composto tanto por militares — Benjamin Constant e Eduardo Wandenkolk —, como por civis —
Ruy Barbosa, Quintino Bocaiúva e Aristides Lobo. Tal decreto definiu o caráter republicano e
federal do Estado, e atribuiu às antigas províncias a condição de Estados federais (art. 2º). Tendo em
vista a dissolução do Legislativo então decretada, o país passaria a ser regido autocraticamente pelo
governo provisório até as eleições para a Assembleia Constituinte.
Em 3 de dezembro de 1889, é editado o Decreto nº 29, nomeando uma comissão de cinco juristas
para elaboração de anteprojeto de Constituição, composta por Saldanha Marinho, Américo
Brasiliense, Santos Werneck, Rangel Pestana e Magalhães de Castro. Depois da sua elaboração, o
anteprojeto foi encaminhado para revisão a Ruy Barbosa, que o alterou significativamente,
conferindo-lhe a sua fisionomia definitiva. O texto, apesar de mais analítico, era fortemente inspirado
na Constituição norte-americana, da qual o jurista baiano era profundo admirador. Da Carta norte-
americana, Ruy importaria o modelo de federalismo dual, ainda que mais centralizado aqui, o
presidencialismo e o controle jurisdicional de constitucio nalidade das leis. O Anteprojeto foi
publicado como o Decreto nº 510, que vigorou como Constituição Provisória, até o final da
Assembleia Constituinte. Tal Decreto convocava a eleição para a constituinte, direta e sem restrições
censitárias, a ocorrer em 15 de setembro de 1890. Finalmente, em 15 de novembro de 1890, no
primeiro aniversário da Proclamação da República, instalava-se a Assembleia Constituinte. Eram
205 deputados e 63 senadores, compondo um corpo legislativo formado por muitos bacharéis e
militares.47
Na Constituinte, partiu-se do texto da Constituição Provisória então em vigor, que foi tomado
como projeto. Foi escolhida uma comissão de 21 parlamentares, um de cada Estado da federação
então existente, para proferir parecer sobre ele. A Comissão pouco inovou no texto que lhe fora
apresentado.48 As principais mudanças sugeridas e depois aprovadas pelo Plenário foram a adoção
de eleições diretas para Presidente da República e para o Senado, a ampliação das competências
tributárias e processuais dos Estados e a transferência para estes das terras devolutas. O tema mais
polêmico durante os trabalhos da constituinte foi a federação,49 em torno do qual se defrontaram um
grupo ultrafederalista, em que militavam Julio de Castilhos, Campos Salles e Epitácio Pessoa, que
pretendia ampliar a autonomia estadual, e outro favorável a um federalismo mais centralizado, em
que despontavam Ruy Barbosa50 e Amaro Cavalcanti. Questões que seriam centrais para a vida
constitucional do país no período vindouro, como o estado de sítio, sequer foram debatidas. Em 24
de fevereiro de 1891 era promulgada a Constituição de 1891.

3.3.2 Traços essenciais da Constituição de 1891


A Constituição de 1891 era a encarnação, em texto legal, do liberalismo republicano e moderado
que havia se desenvolvido nos EUA. Importaram-se dos Estados Unidos as instituições e os valores
do liberalismo, para uma sociedade que nada tinha de liberal: o exemplo acabado do “idealismo na
Constituição”.51 O pensamento de Ruy Barbosa se impusera quase integralmente na Constituinte,
diante de outras correntes de pensamento, como o positivismo, que tinha então grande força na
sociedade brasileira.52 A influência norte-americana foi sentida até na mudança do nome do país, que
passou a se chamar oficialmente de “Estados Unidos do Brasil”. O texto aprovado em 1891 é o mais
enxuto de todas as constituições que tivemos: 90 artigos no corpo permanente, acrescidos de 9
dispositivos nas disposições transitórias.
Do ponto de vista da partilha espacial de poder, adotou-se, como já destacado, o federalismo,
inspirado no modelo norte-americano. A federação era concebida como “união perpétua e
indissolúvel das suas antigas Províncias” (art. 1º). Cada uma delas passava a constituir um Estado,
dotado de autonomia política e financeira, e com poder para elaborar a sua constituição e as suas leis
(art. 63). Os Estados deveriam prover as necessidades dos seus governos com os recursos que
arrecadavam. Suas competências eram as remanescentes (art. 65, §2º), pois a Constituição fixava
expressamente apenas aquelas atribuídas à União. O modelo de federalismo era o dual, também
vigente nos Estados Unidos, de pronunciada separação entre as esferas federal e estadual, com
reduzido espaço para a cooperação entre elas. A autonomia dos municípios foi garantida no texto
constitucional (art. 68), mas não se lhes conferiu a estatura de entidade federativa.
O sistema de governo escolhido foi o presidencialista, mais uma vez decalcado do
constitucionalismo americano. O Poder Legislativo era bicameral, composto de Câmara de
Deputados e Senado. No bicameralismo federativo esposado, a Câmara representava o povo, tendo
cada Estado um número de deputados proporcional à sua população (art. 28, §1º), enquanto o
Senado, que era presidido pelo Vice-Presidente da República, representava os Estados (art. 30),
sendo composto por três senadores de cada unidade da federação. Deputados e senadores eram
eleitos diretamente, sendo o mandato daqueles de 3 anos, e o destes últimos de 9 anos. No Senado,
haveria renovação a cada triênio de um terço da representação.
O Poder Executivo era exercido pelo Presidente da República, que, em conse quência do regime
presidencialista, cumulava as funções de Chefe de Estado e de Chefe de Governo. O seu substituto ou
sucessor era o Vice-Presidente, eleito simul taneamente, mas sem a necessidade de integrar a mesma
chapa partidária (art. 41, §1º). Presidente e Vice eram eleitos por sufrágio direto e universal e
maioria absoluta de votos, para mandatos de 4 anos, vedada a reeleição para o período
imediatamente subsequente (arts. 43 e 47). Não havendo quem alcançasse a maioria absoluta,
realizar-se-ia no Congresso nova eleição, entre os dois candidatos mais votados (art. 47, §2º).
Excepcionalmente, os primeiros Presidente e Vice-Presidente seriam eleitos indiretamente pela
própria Constituinte (art. 1º, Disposições Transitórias).
O Poder Judiciário também foi organizado pela Constituição em bases federativas, com uma
Justiça Federal e outra Estadual. Na cúpula de todo o sistema, o Supremo Tribunal Federal, que fora
criado um ano antes, pelo Decreto nº 510, com inspiração na Suprema Corte norte-americana. O
Tribunal era composto por quinze juízes escolhidos pelo Presidente e aprovados pelo Senado entre
cidadãos de notável saber e reputação ilibada (art. 56). Note-se que o texto constitucional aludia ao
“notável saber”, não exigindo expressamente que esse fosse jurídico, o que, no governo de Floriano
Peixoto, chegou a dar margem a escolhas pelo Presidente de pessoas sem formação em
Direito.53 Outro ponto importante foi a previsão do controle de constitucionalidade das leis, que
acabara de ser instituído pelo Decreto nº 848 do Governo Provisório, e passou a ter assento
constitucional. O modelo adotado foi o norte-americano, do controle difuso e concreto: todos os
juízes e tribunais exerciam o controle e podiam deixar de aplicar leis e outros atos normativos a
casos concretos que lhes fossem submetidos, quando as normas contrariassem a Constituição.
Comentando o art. 59, §1º, da Constituição de 1891, Ruy Barbosa sintetizava o “princípio
fundamental” que informa o modelo: “a autoridade, reconhecida expressamente no texto
constitucional, a todos os tribunais, federais, ou locais, de discutir a constitucionalidade das leis da
União, e aplicá-las, ou desaplicá-las, segundo esse critério”.54
Os direitos políticos foram concedidos aos cidadãos brasileiros maiores de 21 anos, excluindo-se
os analfabetos, os mendigos, os praças militares e os integrantes de ordens religiosas que
impusessem renúncia à liberdade individual (art. 70). Manteve- se a abolição do voto censitário, que
já fora determinada pelo Decreto nº 200-A do Governo Provisório. 55 Não houve qualquer referência
restritiva expressa às mulheres no texto constitucional, mas a discriminação de gênero era tão
enraizada que sequer se discutia se elas podiam ou não votar ou se candidatar: nem precisava ser
dito que as mulheres não tinham direitos políticos, pois isto seria “natural”.
No plano dos direitos individuais, a Constituição revelou a sua inspiração liberal. O art. 72
incorporou um vasto elenco de liberdades públicas, como as de religião, de expressão, de
associação, de reunião, de locomoção e profissional. Naturalmente, a propriedade foi garantida “em
toda a sua plenitude” (§17). Diversas garantias penais e processuais foram previstas, como a ampla
defesa, o juiz natural, a pessoalidade da pena, e a proibição das sanções de banimento, galés e de
morte, salvo, no último caso, em tempo de guerra. Foi constitucionalizado o habeas corpus, cabível
“sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por
ilegalidade ou abuso de poder” (§22). Como o texto não circunscrevera o remédio à tutela de
liberdade de locomoção, abriu-se espaço para desenvolvimento no STF da chamada “doutrina
brasileira do habeas corpus”,56 impulsionada pelo magistério e pela corajosa atuação advocatícia de
Ruy Barbosa,57 ampliando essa garantia constitucional para diversas outras situações em que se
configurasse a arbitrariedade estatal, mas não estivesse envolvido o direito de ir e vir.58
O elenco de direitos fundamentais endossava, ainda, importantes bandeiras republicanas ao abolir
os privilégios de nascimento, foros de nobreza e ordens honoríficas (art. 72, §2º) e constitucionalizar
a separação entre Estado e Igreja (art. 72, §3º) — que já fora determinada antes pelo Decreto nº 119-
A do Governo Provisório —, estabelecendo o caráter secular dos cemitérios e a laicidade do ensino
público. Porém, diferentemente da Carta do Império — neste ponto, à frente do seu tempo — a
Constituição de 1891 não demonstrou nenhuma sensibilidade para o social, estatuindo apenas
direitos individuais defensivos, voltados à limitação do arbítrio estatal, sem qualquer abertura para
os direitos de natureza positiva.
Em relação aos mecanismos de reforma, a Constituição de 1891 era rígida. O art. 90 da Carta
estabelecia o procedimento para as alterações constitucionais: considerava-se proposta a reforma
constitucional quando (a) fosse apresentada por pelo menos um quarto dos membros da Câmara ou
do Senado, e fosse aceita, em três discussões, por dois terços dos votos em ambas as casas; ou (b)
quando a mudança fosse solicitada por dois terços das Assembleias Legislativas dos Estados, que
decidiriam por maioria, no decurso de um ano. Aceita a proposta, seria ela aprovada se obtivesse, no
ano seguinte, a anuência de, no mínimo, dois terços dos votos nas duas casas do Legislativo Federal.
Ademais, tal Constituição consagrava limites materiais para o poder de reforma: vedava qualquer
projeto tendente a abolir “a forma republicana federativa, ou a igualdade de representação dos
Estados no Senado” (art. 90, §4º).
Em suma, tratava-se de uma Constituição perfeitamente liberal, bastante com pro metida, no seu
texto, com o Estado de Direito. Na prática, porém, a vida cons ti tu cional na República Velha esteve
muito distante do liberalismo, marcada pelo coronelismo, pela fraude eleitoral e pelo arbítrio dos
governos.

3.3.3 A República Velha sob a Constituição de 1891


Sob a perspectiva do constitucionalismo, a República começa muito mal. A Assem bleia
Constituinte elegera para o primeiro mandato Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto,
respectivamente como Presidente e Vice-Presidente da República. 59 Deodoro imediatamente entra
em choque com o Congresso e decreta o seu fechamento ainda no ano de 1891, prometendo novas
eleições e uma futura revisão da Constituição recém-aprovada, visando a fortalecer a União e o
Poder Executivo. Instala-se uma crise política e militar, que leva Deodoro à renúncia, ainda antes da
metade do seu período presidencial. De acordo com a Constituição, quando isto ocorresse, novas
eleições deveriam ser convocadas (art. 42). Contudo, valendo-se de uma interpretação capciosa da
Carta de 1891, Floriano mantém-se no poder até o final do mandato.60
O autoritarismo foi o traço essencial do Governo Floriano, que violou direitos fundamentais,
perseguiu opositores, censurou a imprensa e ignorou a Constituição. Foi um período conturbado, com
graves incidentes políticos e militares, como a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul e a
Revolta da Armada. A decretação do estado de sítio e a intervenção federal foram rotineiras, sem
observância dos seus limites constitucionais, com prisão e desterro de opositores, inclusive
parlamentares. O Presidente atritou-se com o Supremo Tribunal Federal, recusou-se a cumprir
decisões judiciais e chegou até a inviabilizar o funcionamento da Corte, ao não nomear ministros
para composição do seu quorum mínimo de funcionamento.61
Em 1894, elege-se para a Presidência o civil paulista Prudente de Morais, um porta-voz dos
interesses da burguesia cafeicultora, pondo termo à fase militar do regime. Durante este período,
rebenta no sertão da Bahia a Guerra de Canudos, movimento popular messiânico e antimoderno, que
impõe vexames ao Exército e termina no massacre de miseráveis. Prudente de Morais é sucedido por
outro paulista, Campos Salles, que consolida o modelo republicano civil e oligárquico, que
perduraria por toda a República Velha, instaurando a chamada “Política dos Governadores”. Essa
consistia num arranjo político informal, pelo qual o governo central dava apoio aos grupos
dominantes na política local, que, em contrapartida, respaldavam integralmente o Presidente.62
Este contexto alimentou o coronelismo:63 os chefes políticos locais no meio rural eram quase
senhores feudais nas suas terras, e a sua vontade era, na prática, a lei.64 Inclusive porque, pelos
arranjos políticos costumeiros da época, os agentes da lei — juízes, delegados etc. — eram
indicados pelos próprios coronéis. Neste quadro, os direitos individuais proclamados pela
Constituição não passavam de ficção. Sob o ângulo eleitoral, os coronéis controlavam “rebanhos” de
eleitores que deles dependiam, fenômeno potencializado pela inexistência do voto secreto no Brasil,
que retirava a liberdade do eleitor: era o voto “a bico-de-pena”.
Como se não bastasse, era generalizada a fraude eleitoral em todos os níveis, tornando
praticamente impossível a eleição de candidatos não oficiais. Cabia ao Poder Legislativo a
realização das eleições, apuração dos votos e diplomação dos eleitos, o que dava margem a
inúmeros desvios. No âmbito da União, instalara-se no Congresso órgão chamado “Comissão de
Verificação dos Poderes”, que tinha por incum bência oficializar o resultado das urnas nos pleitos
federais, homologando as eleições. A opacidade do processo de homologação permitia que,
independentemente do número de votos recebidos por um candidato, fosse ele barrado, não tendo a
sua eleição reconhecida. Tratava-se da “degola”, que ensejava um amplo controle do governo sobre
o resultado dos pleitos eleitorais. Era assim que funcionava a “democracia” brasileira: “na base, o
bico-de-pena substituiu a eleição; no alto, a degola ocupou o lugar das apurações”.65
Durante a República Velha, consolidou-se o domínio político dos Estados de São Paulo e Minas
Gerais, conhecido como “política do café com leite”, que envolvia um acordo implícito para a
alternância na Presidência da República entre políticos de São Paulo (produtor de café) e de Minas
(produtor de leite). O extrato social hegemônico era a oligarquia rural, que preponderava num
sistema econômico baseado na agricultura e no latifúndio.
Enquanto vigorou a Constituição de 1891, o predomínio do Poder Executivo era incontestável e se
expressava com frequência na decretação do estado de sítio. Foram ao todo onze decretações, todas
aprovadas por um Legislativo de “obedientes clientes”.66 Apesar de protestos e de algumas
impugnações judiciais, prevaleceu, na prática, a visão conservadora de que o estado sítio era uma
espécie de “interregno constitucional, durante o qual o governo estava livre para agir de forma
plenamente discricionária”.67 Muito frequentes foram também as intervenções federais nos Estados,
decretadas não só em situações de efetiva crise do pacto federativo, como também para asfixiar
eventual oposição ao governo central que, a despeito dos arranjos da política dos governadores,
conseguisse se organizar no âmbito estadual. O Poder Judiciário, que fora formalmente fortalecido
pela Constituição de 1891, com a instituição do controle de constitucionalidade das leis, muitas
vezes não quis, outras não pôde, controlar os abusos do Executivo. Apesar de alguns episódios
pontuais de resistência, o Supremo Tribunal Federal foi, em geral, bastante dócil diante dos
desmandos dos governantes de plantão.68
Durante a sua vigência, a Constituição de 1891 sofreu apenas uma emenda constitucional, em
1926. Aprovada durante a presidência de Arthur Bernardes, a emenda caracterizou-se por seu viés
centralizador e antiliberal. Dentre outras medidas, ela ampliou as hipóteses de intervenção da União
nos Estados; proibiu o controle judicial sobre a decretação do estado sítio ou sobre os atos
praticados na sua vigência, sobre a intervenção nos Estados e sobre posse, legitimidade e perda de
mandatos políticos estaduais ou federais; e limitou o cabimento do habeas corpus aos casos de
constrangimento ou ameaça à liberdade de locomoção, encerrando a doutrina brasileira do habeas
corpus.
Ao longo da década de 1920, as bases políticas, sociais e econômicas do sistema rural-
oligárquico entram em crise. Surge o tenentismo, movimento de oposição ao regime que congregava
setores do jovem oficialato do Exército e se baseava num vago ideário que englobava lutas contra a
fraude eleitoral, o poder das oligarquias e a corrupção do governo. Na mesma época, uma nova
classe média se afirma nos principais centros urbanos, com aspirações e valores divergentes
daqueles das tradicionais elites agrárias que até então governavam o país. Por outro lado, ganha
vulto no país a “questão social”, com o aumento da força política dos trabalhadores nas cidades, que
passaram a se organizar melhor e a reivindicar direitos. Em 1929, a crise econômica mundial,
inaugurada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque, atinge em cheio a o país, gerando desemprego e
recessão. Era esse, em traços largos, o pano de fundo dos acontecimentos de 1930, que viriam a
encerrar a República Velha.
O estopim da Revolução de 1930 foi a sucessão do Presidente Washington Luís. Pela “política dos
governadores”, seria a vez de Minas Gerais indicar o próximo Presidente, mas o acordo fora
rompido por Washington Luís, que lançou o paulista Júlio Prestes como seu candidato. Em reação,
Minas se une ao Rio Grande do Sul e à Paraíba, formando a Aliança Liberal, e lançando a chapa
integrada por Getúlio Vargas, como candidato à Presidência, e João Pessoa, para a Vice-
Presidência. A der rota dessa chapa, em eleição suspeita, e o clima gerado pelo assassinato de João
Pessoa auxiliaram o desencadeamento da Revolução, ocorrido em 3 de outubro de 1930. Depois de
alguns confrontos militares, a Revolução se sagra vitoriosa, e, em poucos dias, Getúlio Vargas
assume o governo. Era o final do regime constitucional instaurado em 1891.
Num balanço geral, pode-se dizer que a Constituição de 1891 teve pouquíssima efetividade. Entre
o país constitucional — liberal e democrático — e o país real — autoritário e oligárquico —,
manteve-se sempre um abismo intransponível.

3.4 A Constituição de 1934


3.4.1 Antecedentes e Assembleia Constituinte
Em 11 de novembro de 1930, Getúlio Vargas edita o Decreto nº 19.398 em vigor até aprovação da
Constituição de 1934, institucionalizando e regulamentando o Governo Provisório por ele chefiado,
que perduraria até 1934.69 De acordo com o Decreto, o Governo Provisório exerceria
“discricionariamente, em toda a sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo,
como também do Poder Legislativo” até a aprovação de nova Constituição (art. 1º). Confirmou-se no
Decreto a dissolução do Congresso, das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais de todo o
país e se atribuiu ao Governo Provisório o poder de designar interventores nos Estados (art. 11), os
quais, por seu turno, nomeariam prefeitos para todos os municípios (art. 11, §4º). As garantias
constitucionais foram suspensas, excluindo-se do Poder Judiciário a apreciação dos atos do Governo
Provisório e dos interventores federais (art. 5º). Em suma, estruturava-se ali, ainda que
provisoriamente, um governo de exceção.
Durante o Governo Provisório, diversas medidas relevantes foram adotadas. Foi editado um
Código Eleitoral, criando a Justiça Eleitoral e o voto secreto, esten dendo o direito de voto às
mulheres, instituindo a representação classista e adotando o sistema proporcional nas eleições, em
substituição ao sistema distrital que antes vigorava.70 Foram criados os Ministérios da Educação, da
Saúde e do Trabalho, In dústria e Comércio, que desenhavam um perfil mais social e interventor do
Estado brasileiro. As primeiras regras de proteção ao trabalhador urbano foram editadas, bem como
normas de inspiração nacionalista, que ampliaram a intervenção do Estado sobre a economia, por
meio de medidas como a nacionalização do subsolo, das águas, jazidas minerais e fontes
energéticas.71
À época, o ambiente constitucional externo era de crise do liberalismo. Nos Estados Unidos, o
modelo do absenteísmo estatal estava sendo abandonado, com as políticas intervencionistas do
Presidente Roosevelt, conhecidas como o New Deal. Na Europa, a crise do liberalismo era ainda
mais profunda, atingindo não só a sua dimensão econômica, mas também a sua faceta política. Na
Itália, os fascistas governavam desde 1922. Ao longo da década de 30, na Espanha e em Portugal, os
governos autoritários de direita, de Franco e de Salazar, subiriam ao poder. Na Alemanha, o nazismo
começava a mostrar a sua brutalidade. O constitucionalismo social procurava conciliar respeito aos
direitos individuais e a democracia com a promoção da igualdade material por meio de direitos
sociais e da intervenção do Estado na economia. Seu exemplo mais conhecido foi a Constituição
alemã de Weimar de 1919. 72 Porém, tal Constituição — principal influência estrangeira na
elaboração da nossa Constituição de 193473 — sucumbiria no início da década de 1930, após a
ascensão dos nazistas ao poder.74
No cenário interno, forças heterogêneas disputavam espaço político no âmbito do Governo
Provisório. De um lado, os tenentistas, agora no poder, não desejavam eleições imediatas, nem
tampouco assembleia constituinte. Preferiam prolongar por algum tempo o Governo Provisório, para
viabilizar as mudanças sociais que queriam ver implantadas. Na outra banda, segmentos mais
liberais, que também exerciam influência no governo, desejavam a imediata reconstitucionalização
do país.75
A reconstitucionalização demorou mais do que o tempo necessário à estabilização da nova ordem.
Tal demora foi uma das causas da malograda Revolução Constitucionalista de São Paulo, que
eclodiu em julho de 1932. A chamada Revolução Constitucionalista foi inspirada por vários
interesses e correntes de pensamento heterogêneos. Se, de um lado, havia realmente setores imbuídos
do ideário constitucionalista, que lutavam pela bandeira legítima do fim do regime de exceção, do
outro havia também elementos da antiga oligarquia rural, perdedores na Revolução de 1930, que
pretendiam um retorno ao status quo anterior. Sobre o movimento pairava, ainda, a sombra do
separatismo, alimentada por um sentimento de superioridade de São Paulo em relação ao resto do
país, que alguns setores da sociedade paulista cultivavam. Militarmente o movimento fracassou em
poucos meses. Mas evidenciou que não seria mais possível continuar postergando a elaboração da
nova Constituição, de cuja edição ele foi um catalisador.
O primeiro passo para a Constituinte, porém, fora dado ainda antes que eclo disse a Revolução
Constitucionalista. Em 14 de maio de 1932, o Governo Provisório editou o Decreto nº 21.402, que
fixou o dia 3 de maio de 1933 para as eleições da Assembleia, e criou comissão para elaboração de
anteprojeto de Constituição. Em 1º de novembro de 1932, foi editado o Decreto nº 22.040,
regulamentando o funciona mento de tal comissão. De acordo com ele, uma subcomissão ficaria
encarregada de elaborar o anteprojeto, que depois seria encaminhado para apreciação da comissão.
A subcomissão, que, por reunir-se no Palácio do Itamaraty, ficou conhecida como Comissão do
Itamaraty, era presidida por Afrânio Mello Franco. O seu perfil ideo lógico era heterogêneo: havia
liberais, como Afrânio Mello Franco e Carlos Maximiliano; integrantes mais próximos ao
pensamento social de esquerda, como João Mangabeira e José Américo de Almeida, e pensadores
que aderiam a um autori tarismo nacionalista de direita, como Oliveira Vianna.
Em 5 de abril de 1933, outro Decreto é editado — o Decreto nº 22.621 —, dispondo sobre a
convocação da Assembleia Nacional Constituinte, seus componentes e regimento interno. Ele
determinava que a constituinte seria composta por 254 deputados. Destes, 214 seriam eleitos pelo
sistema proporcional e os outros 40 seriam representantes classistas, eleitos pelos sindicatos
legalmente reconhecidos e por associações de profissionais liberais e de funcionários
públicos.76 Finalmente, em 19 de agosto de 1933 foi editado o Decreto nº 23.102, que fixou em 15 de
novembro do mesmo ano a data de instalação da Assembleia Constituinte, o que de fato ocorreu.
Os trabalhos da constituinte partiram do texto elaborado pela Comissão Itamaraty. Apesar do
disposto no Decreto nº 22.040, decidiu-se não submeter os tra balhos do grupo à comissão geral
prevista naquele ato normativo, para poupar tempo. A Assembleia Constituinte, diferentemente de
outras que tivemos na história do país, não cumulou suas funções com a atividade legislativa
ordinária. Ela ocupou-se apenas da elaboração da Constituição e da eleição indireta do Presidente
da Repú blica, dissolvendo-se logo em seguida.77
Instalada a constituinte, formou-se uma Comissão Constitucional para apreciar o anteprojeto da
Comissão Itamaraty, composta por 26 membros — um de cada Estado, um do Distrito Federal, um do
Território do Acre, e quatro representantes classistas — presidida pelo jurista Carlos Maximiliano.
Em março de 1934, essa “Comissão dos 26” apresentou o parecer e o substitutivo ao anteprojeto da
Comissão Itamaraty. Sobre tal substitutivo trabalhou a Assembleia Constituinte até 16 de julho de
1934, data da promulgação da nova Constituição.
No dia seguinte à promulgação, realiza-se eleição indireta para a Presidência da República, em
que Getúlio Vargas se sagra vencedor. As próximas eleições deveriam ser diretas, como previa a
nova Constituição. Mas não viriam a ocorrer, em razão do golpe do Estado Novo.

3.4.2 A Constituição de 1934: principais características


A Constituição de 1934 inaugurou o constitucionalismo social no Brasil. Rompendo com o modelo
liberal anterior, ela incorporou uma série de temas que não eram objeto de atenção nas constituições
pretéritas, voltando-se à disciplina da ordem econômica, das relações de trabalho, da família, da
educação e da cultura. A partir dela, pelo menos sob o ângulo jurídico, a questão social não poderia
mais ser tratada no Brasil como “caso de polícia”, como se dizia na República Velha. Tratava-se de
uma Constituição extensa, composta por 187 artigos no seu corpo permanente, somados a outros 26
nas disposições transitórias. Do ponto de vista institucional, ela manteve o federalismo, a separação
de poderes e o regime presidencialista. Contudo, houve mudanças significativas no desenho das
instituições.
No que tange ao federalismo, a Constituição de 1934 consagrou um modelo cooperativo, inspirado
na Constituição de Weimar. Nesse modelo, além das competências privativas da União e dos
Estados, foram também previstas competências concorrentes (art. 10), que demandavam a articulação
de iniciativas e esforços entre os poderes central e estadual. Os Estados foram autorizados a editar
leis para suplementar as normas federais em certas matérias (art. 5º, §3º). Por outro lado, houve uma
tendência centralizadora, que se evidencia pela ampliação da competência privativa da União — por
exemplo, o Direito Processual, que, na Constituição de 1891, era da competência legislativa dos
Estados, agora passara à esfera normativa da União.
No que tange ao Poder Executivo, foi suprimida a figura do Vice-Presidente. O Presidente
continuaria a ser eleito para mandatos de 4 anos, vedada a reeleição para o período subsequente (art.
52). As eleições ocorreriam por sufrágio universal direto e secreto. Mas, como se sabe, não chegou a
haver qualquer eleição presidencial sob a égide daquela Constituição, salvo a indireta de Getúlio
Vargas, realizada pela própria Constituinte.
No Poder Legislativo, houve mudanças profundas. Pela Constituição, ele seria composto pela
Câmara dos Deputados, “com a colaboração do Senado Federal” (art. 22). Portanto, o Senado
deixara de ser um órgão do Legislativo, que se tornava unicameral. Pela Constituição de 1934, o
Senado teria como funções “promover a coordenação entre os poderes federais entre si, manter a
continuidade administra tiva, velar pela Constituição, colaborar na feitura das leis e praticar os
demais atos de sua competência” (art. 88). Doravante, os senadores não participariam mais do
processo legislativo, salvo em determinados temas definidos pela própria Constituição, como estado
de sítio, sistema eleitoral, organização judiciária federal e tributos e tarifas (art. 91). O Senado seria
composto por dois representantes de cada Estado e do Distrito Federal, eleitos por sufrágio direto e
universal para mandatos de oito anos (art. 89), realizando-se a cada quatro anos eleições para
renovação de metade dos seus membros (art. 89, §1º).
Na Câmara dos Deputados havia dois tipos de representantes, ambos com man datos de quatro
anos: os representantes do povo, eleitos por sufrágio universal e direto, pelo sistema proporcional; e
os representantes das profissões,78 em total equivalente a um quinto da representação popular (art.
23), eleitos indiretamente pelas associações profissionais, que eram divididas em quatro grupos:
lavoura e pecuária; indústria, comércio e transportes; profissões liberais e funcionários públicos
(art. 23, §3º). Com exceção dessa última categoria, a representação profissional seria paritária, pois
para cada representante de associação de empregados haveria também um representante de
associação de empregadores (art. 23, §5º).
No âmbito do Poder Judiciário foi mantida a estrutura federativa prevista na Constituição de 1891.
A Justiça Eleitoral, instituída dois anos antes pelo Governo Provisório, ganhou assento constitucional
(arts. 82 e 83). O Supremo Tribunal Fe deral passou a ser chamado de Corte Suprema e a sua
composição foi fixada em 11 ministros, 79 número que poderia ser elevado até 16, por lei de
iniciativa do próprio Tribunal. Embora tenha previsto a criação da Justiça do Trabalho, voltada para
“dirimir questões entre trabalhadores e empregados, regidos pela legislação social” (art. 122), a
Constituição de 1934 não a inseriu no âmbito do Poder Judiciário, inscrevendo-a na esfera do
Executivo.
Foi mantido o regime de controle de constitucionalidade da Constituição anterior, com três
inovações relevantes: a instituição do princípio da reserva de ple nário, segundo o qual “só pela
maioria absoluta dos votos da totalidade dos seus juízes, poderão os tribunais declarar a
inconstitucionalidade de lei ou de ato do poder público” (art. 179); a previsão da competência do
Senado para suspender a exe cução das normas declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário
(art. 91, inciso IV) — mecanismo importante para aclimatar ao sistema jurídico brasileiro, em que os
precedentes judiciais não eram vinculantes, o controle difuso de constitucionalidade, importado dos
Estados Unidos, país em que sempre houve a vinculação aos precedentes —; e a criação de um
mecanismo de controle preventivo obrigatório de constitu cionalidade das leis federais que
decretavam a intervenção da União nos Estados, nos casos de violação dos chamados princípios
constitucionais sensíveis, previstos no art. 7º da Constituição. Essa última inovação será o embrião a
partir do qual, mais a frente, desenvolver-se-á no Brasil o controle concentrado e abstrato de
constitucionalidade.80
O sistema de direitos fundamentais sofreu sensíveis alterações, que revelam o caráter social da
Constituição de 1934. A Constituição estatuía um amplo elenco de direitos e garantias individuais,
que incluía as tradicionais liberdades civis, e no qual figuraram, pela primeira vez no Brasil, o
mandado de segurança (art. 113,
nº 33) e a ação popular (art. 113, nº 38). O direito de propriedade foi garantido. Porém, não mais
poderia “ser exercido contra o interesse social ou coletivo” (art. 113, XVII): chega ao nosso Direito
a ideia de função social da propriedade.81
A maior novidade no campo dos direitos foi a previsão de direitos sociais. Esses não estavam
arrolados na declaração de direitos, mas nos títulos que cuidavam da “ordem econômica e social”, e
da “família, da educação e da cultura”. Merece destaque o elenco de direitos trabalhistas,
estabelecido no art. 121 da Constituição, dentre os quais figuravam o salário mínimo, o limite de oito
horas da jornada de trabalho, o repouso semanal remunerado, as férias anuais remuneradas e a
indenização por dispensa sem justa causa. O texto constitucional ainda previa o amparo aos
desvalidos, à maternidade e à infância, o socorro à família numerosa e o combate à mortalidade
infantil (art. 138); bem como em ensino primário gratuito, de frequência obrigatória, e em tendência à
gratuidade do ensino posterior ao primário, visando a torná-lo mais acessível (art. 150, Parágrafo
único, alíneas “a” e “b”). Enfim, na ordem jurídica brasileira depois da Constituição de 1934, os
direitos fundamentais não poderiam mais ser concebidos exclusivamente como direitos de defesa,
que limitavam a ação do Estado. Agora, ao lado desses direitos negativos, surgiam direitos
positivos, que reclamavam a atuação dos poderes públicos em seu favor, e não o absenteísmo estatal.
Ademais, os direitos voltavam-se também para as relações entre particulares, como era o caso dos
direitos trabalhistas, que visavam a proteger os trabalhadores da exploração pelos seus patrões,
diante do reconhecimento da intrínseca desigualdade de poder existente entre eles.
A Constituição de 1934 também inaugura no Brasil a disciplina constitucional da
economia,82 consagrando, de forma ampla, a possibilidade de intervenção do Estado na seara
econômica.83 O nacionalismo era um traço marcante no regime então estabelecido, que consagrou
medidas como a nacionalização das minas, riquezas do subsolo, águas e fontes de energia
hidrelétrica, tornando a sua exploração dependente de concessão federal (art. 119); e ainda criou
diversas restrições para o exercício de atividades econômicas e profissionais por pessoas e
empresas estrangeiras (arts. 119, §1º; 131; 132; 133; 135 e 136).
No que tange aos seus mecanismos de reforma, a Constituição de 1934 era rígida e contemplava
dois procedimentos diferentes, a partir da distinção que estabelecia entre revisão e emenda (art.
178). A revisão, que demandava um procedimento mais complexo, ocorreria sempre que as
modificações pretendessem alterar a estrutura política do Estado ou a competência dos poderes da
soberania; nos demais casos, haveria emenda. Na emenda, o procedimento começaria com proposta
formulada pela quarta parte dos deputados ou senadores; ou por mais da metade das Assembleias
Legislativas, no decurso de dois anos, cada uma delas manifestando-se pela maioria dos seus
membros. Daí, a emenda precisaria ser aprovada pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal, durante dois anos consecutivos, a não ser que obtivesse dois terços dos votos em
ambas as casas, hipótese em que passaria a valer imediatamente. Já no caso de revisão, o
procedimento começaria por iniciativa de dois quintos da Câmara ou do Senado; ou de dois terços
das Assembleias Legislativas, por meio de deliberação por maioria absoluta em cada uma delas.
Então, Câmara e Senado deveriam aceitar a revisão por maioria de votos, elaborando um
anteprojeto. Para a sua aprovação, o anteprojeto teria de ser submetido, na legislatura seguinte, a três
discussões e votações em cada uma das casas, em duas sessões legislativas. Não haveria reforma da
Constituição durante o estado de sítio (art. 178, §4º), nem seriam admitidos projetos tendentes a
abolir a forma republicana federativa (art. 178, §5º).

3.4.3 A curta vida da Constituição de 1934


Foi curtíssima a vida da Constituição de 1934: promulgada em julho de 1934, ela vigorou apenas
até novembro de 1937, quando foi outorgada a Carta do Estado Novo. Os componentes liberais e
democráticos da Constituição de 1934 não resistiram à radicalização do regime e do clima social da
época.
Na República Velha, não havia partidos políticos de expressão nacional. Os primeiros se afirmam
durante o governo de Vargas, posicionando-se nos extremos do espectro ideológico: à direita, a
Ação Integralista Brasileira, de inspiração nitidamente fascista; à esquerda, a Aliança Nacional
Libertadora, que era integrada por pessoas ligadas ao Partido Comunista, então na ilegalidade, e por
alguns tenentistas. Em comum, apenas a rejeição à democracia liberal. Tais partidos se
antagonizavam no cenário político e conseguiam, em alguma medida, mobilizar as massas,
provocando grandes manifestações populares, fenômeno até então inédito no Brasil, em que a
política sempre havia sido predominantemente elitista, com reduzido envolvimento popular.84
Em 11 de julho de 1935, invocando a Lei de Segurança Nacional recém-editada, que proibia a
existência de partidos que visassem “à subversão, pela ameaça ou violência, da ordem política
nacional”, o Governo dissolve a Aliança Nacional Libertadora, adotando como pretexto um discurso
de Luís Carlos Prestes, seu Presidente de honra, que clamara pela derrubada do “governo odioso” de
Vargas. Meses depois, eclode a Intentona Comunista, rebelião militar armada, que atingiu as cidades
de Natal, Recife e Rio de Janeiro. A partir de então, “as instituições políticas de 1934 só
conservariam aparência de vida”.85
Abre-se uma fase de autoritarismo ascendente. O Congresso, cedendo a pressões do
governo,86 aprova, em 18 de dezembro de 1935, três emendas constitucionais. A primeira e mais
importante permitia à Câmara, com a colaboração do Senado, autorizar o Presidente a “declarar a
comoção intestina grave (...) equiparada ao estado de guerra, em qualquer parte do território
nacional”. As emendas 2 e 3, por sua vez, autorizavam o Poder Executivo, por decreto, a punir,
respectivamente, servidores militares e civis envolvidos em “movimento subversivo das instituições
sociais”. Em 21 de março de 1936 o Governo declara a comoção intestina grave, inicialmente por 90
dias, prazo depois prorrogado sucessivamente por mais três vezes.87 Durante esse período, estiveram
suspensas em todo país as garantias constitucionais. Houve prisões políticas, censura e perseguição
de opositores.
A partir do final de 1936 começam a se articular as candidaturas para a eleição presidencial,
marcada para janeiro de 1938. De um lado, Armando Salles de Oliveira, um liberal que expressava
os interesses da burguesia paulista, insatisfeita com a Revolução de 1930. Do outro, José Américo de
Almeida, político paraibano, ligado ao tenentismo, que deveria ser o candidato da situação, embora
Vargas evitasse manifestar apoio à sua candidatura. Ainda disputava o pleito Plínio Salgado, líder da
Ação Integralista Brasileira. A Constituição de 1934 não admitia a reeleição, mas crescia em
segmentos da sociedade, alimentada pelo Governo, a aspiração de que Getúlio Vargas se mantivesse
no poder: era o “continuísmo”. A Constituição tornara-se um obstáculo para os planos políticos de
Vargas.
Nesse ambiente, o governo lança mão de um estratagema ardiloso, valendo-se da ameaça
comunista para romper com a ordem constitucional. Em 30 de setembro de 1937, o General Góes
Monteiro divulga um suposto plano comunista para tomada do poder, que ficou conhecido como
Plano Cohen. Tratava-se de uma farsa, utilizada para levar o Congresso a aprovar a declaração do
estado de guerra. Nesse ínterim, a ideia do golpe se fortalece nos meios militares e entre os políticos
próximos a Getúlio Vargas. O desfecho não tardaria: em 10 de novembro de 1937, tropas da Polícia
Militar, com o apoio do Exército, cercam o Congresso e impedem o ingresso de par lamentares nas
suas instalações. Na mesma noite, Vargas divulga, em comunicação radiofônica, uma “Proclamação
ao Povo Brasileiro”, em que justifica a ruptura com a Constituição e a outorga da nova Carta: as
medidas seriam necessárias em razão da “profunda infiltração comunista” e da inaptidão da
Constituição de 1934 para assegurar a paz, a segurança e o bem-estar da Nação. Não houve
resistência armada. O golpe de Estado de 1937 ocorreu sem derramamento de sangue.

3.5 A Constituição de 1937


3.5.1 A outorga da Carta
A Carta de 1937 foi outorgada em 10 de novembro daquele ano. O seu texto foi redigido pelo
jurista Francisco Campos, ex-Ministro da Educação, que acabara de assumir a pasta da Justiça do
Governo Vargas — um intelectual de forte inclinação autoritária, que chegava às raias do
fascismo.88 Esse autoritarismo89 foi a marca distintiva da Constituição, que, diferentemente da que a
antecedeu, não fez concessões à democracia liberal.
No preâmbulo da Constituição, firmado por Getúlio Vargas, sua outorga era justificada pelo
perigo comunista e pela suposta ameaça de uma guerra civil. Falava-se na “extremação de conflitos
ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência,
colocando a Nação sob a funesta iminência de guerra civil”, e na “infiltração comunista, que se torna
cada dia mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente”. Afirmou-se que no
regime anterior, “não dispunha o Estado dos meios normais de preservação e defesa da paz, da
segurança e do bem-estar do povo”. Invocou-se o apoio das Forças Armadas e da opinião nacional,
“justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que
se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e militares”.
Porém, as justificativas não tinham lastro na realidade. Nem o Brasil encontrava-se na iminência
de uma guerra civil, nem a ameaça de tomada de poder pelos comunistas era séria. As agitações por
que passava o país podiam ser enfrentadas sem o rompimento da ordem constitucional.90 Todavia,
sem a ruptura, Vargas não teria como manter-se à frente do governo.
Para compensar a outorga, a Constituição prometia, no seu art. 187, a con vocação de um
plebiscito nacional para aprová-la, que seria regulamentado por Decreto do Presidente. Contudo, o
plebiscito jamais foi convocado, o que levou alguns juristas à afirmação de que, juridicamente, a
Carta de 37 não teve valor. 91 O próprio Francisco Campos, em texto de 1945, publicado já depois
que ele se afastara do governo, afirmou que Constituição de 1937 não teria passado de “documento
de valor puramente histórico”, que “entrou para o imenso material que, tendo ou podendo ter sido
jurídico, deixou de ser ou não chegou a ser jurídico, por não haver adquirido ou haver perdido a sua
vigência”.92
Na verdade, a Constituição de 1937 não teve maior importância prática, pois não forneceu
parâmetros jurídicos para a ação do Estado. Até 1945, o país viveu sob estado de emergência, com o
Congresso fechado, numa genuína ditadura. Ainda assim, analisaremos abaixo, sucintamente, os
traços principais da Carta de 37.

3.5.2 Traços fundamentais da Carta de 1937


A Constituição de 1937 previu um modelo de Estado autoritário e corporativista. As suas
principais influências foram as Constituição da Polônia de 1935,93 elaborada durante o governo do
Marechal Pilsudsky — fato que valeu à Carta de 37 o apelido de “Polaca” —, e a Constituição
portuguesa de 1933, que vigorou durante o Estado Novo português, de Salazar. Ela continha 187
artigos: 174 no seu corpo permanente, e 13 nas “disposições transitórias e finais”. Foram esses
últimos os que, na prática, valeram.
A Carta de 1937 dissolveu o Poder Legislativo não apenas da União, como também dos Estados e
Municípios (art. 178). As novas eleições só ocorreriam depois da realização de plebiscito previsto
para que o povo brasileiro se manifestasse pela confirmação ou não da Carta, o que, como já dito,
nunca ocorreu. Enquanto não fosse eleito o novo Parlamento, caberia ao Presidente da República
expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União (art. 180). E o
Presidente tinha ainda o poder de confirmar ou não o mandato dos governadores dos Estados então
em exercício, nomeando interventores nos casos de não confirmação (art. 176, caput e Parágrafo
único). No âmbito dos Estados, caberia aos governadores confirmados ou aos interventores a outorga
das constituições estaduais. Até que as novas Assembleias Legislativas se reunissem, o Executivo
desempenharia todas as suas funções (art. 181). Foi decretado estado de emergência por tempo
indeterminado no país (art. 186), o que implicou a suspensão de inúmeras garantias constitucionais.
No seu corpo permanente, mantinha a Carta o regime federativo da Constituição de 1934, inclusive
com a mesma divisão política e territorial (art. 3º). Previram-se competências privativas da União
(arts. 15, 16 e 20) e competências exclusivas dos Estados (arts. 21 e 23), aos quais também se
facultava suplementar a legislação federal, suprindo-lhes as eventuais lacunas e atendendo aos
interesses locais. Contudo, nada disso saiu do papel, pois prevaleceu durante a vigência da Carta a
centralização unitária,94 sobretudo pela nomeação dos interventores pelo governo federal.
A Carta de 37 manteve nominalmente os três Poderes tradicionais: Execu tivo, Legislativo e
Judiciário. Não havia, porém, a preocupação com o equilíbrio e a harmonia entre eles. Isso não
apenas na prática política ditatorial, senão também no próprio texto constitucional, que definia o
Presidente da República como “autoridade suprema do Estado”, a quem competia a coordenação dos
órgãos representativos, a direção da política interna e externa, a promoção e orientação da política
legislativa de interesse nacional, além da superintendência da administração do país (art. 73). Dentre
as suas competências e prerrogativas estavam as de declarar estado de guerra ou de emergência (art.
74, alínea “k” e art. 166); dissolver a Câmara dos Deputados quando essa não aprovasse as medidas
tomadas durante aqueles períodos (art. 76, alínea “b”, e art. 167, Parágrafo único); designar dez
membros do Conselho Federal (art. 50); adiar, prorrogar e convocar o Parlamento (art. 75, alínea
“e”); e indicar um dos candidatos nas eleições à Presidência (art. 75, alínea “a”).
O mandato presidencial seria de seis anos (art. 80), sendo as eleições indiretas, realizadas por um
colégio eleitoral composto por (a) eleitores designados pelas Câmaras Municipais, em número
proporcional à população dos Estados, até o máximo de 25 por Estado; (b) cinquenta eleitores,
designados pelo Conselho da Economia Nacional, dentre empregadores e empregados em número
igual; e (c) vinte e cinco eleitores, designados pela Câmara dos Deputados e outros vinte e cinco
designados pelo Conselho Federal, dentre cidadãos de notória reputação (art. 82). Mas se o
Presidente indicasse candidato, haveria eleição direta entre este e aquele escolhido pelo colégio
eleitoral (art. 84, Parágrafo único).
O Poder Legislativo seria exercido pelo Parlamento Nacional com a colaboração do Conselho da
Economia Nacional e do Presidente da República (art. 38). O Parlamento compunha-se de duas
Casas: a Câmara dos Deputados e o Conselho Federal. A Câmara seria formada por deputados,
eleitos para mandatos de quatro anos (art. 39, §2º), mediante sufrágio indireto, em que figurariam
como eleitores em cada Estado os vereadores e dez cidadãos eleitos diretamente em cada Município
(arts. 46 e 47). O número de deputados por Estado seria proporcional à respectiva população, com
um mínimo de três e máximo de dez (art. 49).
O Conselho Federal compor-se-ia de um representante por Estado, além de outros dez indicados
pelo Presidente da República, todos apontados para mandatos de seis anos (art. 50). Os
representantes dos Estados seriam eleitos pelas respectivas Assembleias Legislativas, ressalvado o
direito do Governador de vetar o nome escolhido (art. 50, Parágrafo único). O presidente do
Conselho seria um Ministro de Estado, também apontado pelo Chefe do Executivo (art. 56).
Já o Conselho de Economia Nacional seria integrado por representantes dos vários ramos da
produção nacional designados pelas associações profissionais ou sindicatos reconhecidos em lei,
garantida a igualdade de representação entre empregadores e empregados (art. 57, caput). Tal órgão,
além de ter poderes deliberativos sobre assuntos de assistência e contratação coletiva de trabalho,
emitiria pareceres sobre os projetos que interessassem diretamente à produção nacional (art. 61).
O Poder Judiciário tinha sua estrutura extremamente simplificada, por meio da mutilação de
diversos dos seus órgãos. A Constituição não aludia à Justiça Eleitoral e suprimia a Justiça Federal
de 1º e 2º graus. A Justiça do Trabalho, embora prevista (art. 139), continuava fora do Poder
Judiciário. Havia alusão à possibilidade de criação, por lei, de uma justiça voltada ao julgamento
dos crimes contra “a segurança do Estado e estrutura das instituições” (art. 172), o que veio a
ocorrer com a edição de decreto-lei, em 1938, que instituiu o Tribunal de Segurança Nacional. Na
cúpula do Judiciário, mantinha-se o Supremo Tribunal Federal, composto por 11 Ministros
nomeados pelo Presidente e aprovados pelo Conselho Federal, mas esse número poderia ser
ampliado até 16, por proposta do próprio STF (arts. 97 e 98).95 Preservava-se o controle difuso de
constitucionalidade, mas com uma heterodoxa inovação: permitia-se, no caso de declaração de
inconstitucionalidade de uma lei, que o Presidente a submetesse de novo ao Parlamento. Se esse
confirmasse a norma, por dois terços dos membros de cada uma das casas, ficaria sem efeito a
declaração de inconstitucionalidade (art. 96, Parágrafo único).96
Quanto à alteração das suas disposições, a Carta de 1937 previa dois caminhos diferentes: o que
era deflagrado por iniciativa do Presidente da República e o que decorria de iniciativa da Câmara
dos Deputados (art. 174). No primeiro caso, as mudanças podiam ser aprovadas por maioria simples
no Legislativo. Se o Parlamento rejeitasse a proposta, o Presidente poderia convocar um plebiscito
para que o povo decidisse definitivamente sobre a questão. Quando a iniciativa fosse da Câmara, o
quorum de aprovação seria de maioria absoluta. Nesse caso, aprovada a emenda, ela seria
encaminhada ao Presidente, que, se discordasse, poderia devolvê-la à Câmara, para que fosse
submetida à nova deliberação nas duas casas na próxima legislatura. Se a medida ainda assim fosse
aprovada, era facultado ao Presidente convocar um plebiscito para que desse a última palavra sobre
a proposta. Não havia, em nenhuma das hipóteses, qualquer limite material expresso ao poder de
reforma.
Como o Parlamento não funcionou durante o Estado Novo, o Presidente da República arvorou-se à
condição de constituinte derivado, modificando unilateralmente a Carta de 1937, por meio da edição
de “leis constitucionais”. Portanto, na prática, a Carta de 1937 funcionou como uma Constituição
flexível, pois não havia qualquer diferença entre o processo de edição de normas infraconstitucionais
e o de alteração da Constituição: em ambos os casos, bastava a manifestação singular da vontade do
Presidente, que governava com poderes ditatoriais.
A Constituição de 1937 também estabelecia um catálogo de direitos (art. 122). O texto
constitucional deixava muito a desejar nessa matéria, incorporando limitações de má inspiração,
como a admissibilidade de pena de morte em diversas situações que tangenciavam o crime político
(art. 13), e a previsão de censura prévia da imprensa e de outros meios de comunicação (art. 15,
alínea “a”). Contudo, se os direitos previstos tivessem sido respeitados, o regime teria sido muito
menos autoritário do que foi. Dentre os direitos individuais consagrados constavam as liberdades
públicas tradicionais. A Carta não contemplou a proteção do direito adquirido, do ato jurídico
perfeito e da coisa julgada, nem tampouco o mandado de segurança e a ação popular, que figuravam
na Constituição de 1934.
Manteve-se, da Carta de 1934, a previsão de direitos trabalhistas (art. 137). Mas aqui, mais uma
vez, o viés autoritário do regime se revelou, com a proibição da greve e do lock-out, reputados como
“recursos anti-sociais (...) incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional” (art.
139). A Constituição de 1937 também cuidou da família, da educação, da cultura, e da ordem
econômica. Nessa última parte, seguiu a linha intervencionista e nacionalista da Constituição de
1934, e aprofundou os seus traços corporativistas (art. 140).
Em síntese, a filosofia geral da Carta de 1937 baseava-se numa rejeição às técnicas da democracia
liberal,97 como o sufrágio direto, desprezado porque se entendia que o povo não tinha interesse e não
estava preparado para participar da tomada de decisões na sociedade de massas; e a separação de
poderes, pois se considerava que o desenvolvimento e a modernização nacionais deveriam ser
perseguidos por um governo forte, capitaneado por um Presidente em contato direto com as massas,
sem os entraves da política parlamentar e partidária. Apesar disso, ela impunha limites significativos
ao exercício do poder que, se houvessem sido observados, teriam conferido uma fisionomia distinta
ao regime. O que teve lugar durante o período foi, porém, a manifestação do poder sem a
observância de limites jurídicos.

3.5.3 A Constituição de 1937 na vida nacional


Como já salientado, a Constituição de 1937 não desempenhou papel impor tante durante o Estado
Novo, até porque a maior parte das instituições de que cuidou jamais saiu do papel.
Do ponto de vista da repartição espacial de poder, o Brasil foi um autêntico Estado unitário.
Vargas nomeou interventores para todos os Estados, com exceção de Minas Gerais, e esses,
naturalmente, curvavam-se diante do poder central. As relações entre a União e os Estados não se
regeram minimamente pela Constituição, mas sobretudo pelo Decreto-Lei nº 1.202/39, conhecido
como “Código dos Interventores”.98
Sob o ângulo da repartição horizontal de poder, o governo cumulou as funções do Executivo e do
Legislativo, legislando amplamente por intermédio de decretos-lei, com base no art. 180 da Carta. O
Judiciário não refreou as arbitrariedades do regime. Até 1945, o país esteve sob estado de
emergência, com suspensão de diversas garantias constitucionais, e, de acordo com o art. 170 da
Constituição, os atos praticados pelo governo em virtude do estado de emergência eram imunes ao
controle jurisdicional. Ademais, pairava sobre o Judiciário o temor de que o governo, valendo-se
dos seus poderes de exceção, previstos no art. 177 do texto constitucional,99 aposentasse
compulsoriamente os magistrados, o que lhes retirava em boa parte a independência para agir em
contrariedade ao regime.
No campo dos direitos fundamentais, abundaram as violações. Houve perseguição generalizada a
opositores, com prisões, exílios e tortura, sobretudo de comunistas,100 mas também de
integralistas101 e liberais. A censura sobre a imprensa era institucionalizada, acompanhada de uma
onipresente propaganda do regime, sob a égide do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),
pautada pelo ufanismo e pelo culto à personalidade de Getúlio.102 Os partidos políticos foram
proibidos, bem como as associações civis que promovessem propaganda política, com a edição do
Decreto-Lei nº 37, de 2 de novembro de 1937. Não havia sequer partido da situação: diferentemente
de outros governos autoritários, que tornavam a sua agremiação o partido único nacional, o Estado
Novo aboliu completamente a atividade partidária.
É verdade que ocorreram avanços no campo dos direitos sociais, com a continuidade e o
aprofundamento das conquistas iniciadas a partir da Revolução de 1930,103 que proporcionaram
significativa melhora na qualidade de vida dos mais pobres — sobretudo do trabalhador urbano —
em comparação com os padrões oligárquicos e excludentes da República Velha. Neste campo,
merece destaque, pela sua grande relevância, a edição da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT,
em 1943.
O advento do Estado Social não seguiu, no Brasil, o caminho percorrido na Europa Ocidental, em
que, num primeiro momento, foram assegurados concreta mente os direitos individuais e políticos,
ditos de 1ª geração, e depois, como conquista decorrente de pressões sociais e eleitorais, vieram os
direitos sociais, considerados de 2ª geração.104 Na verdade, a consagração dos direitos sociais na
Era Vargas pautou-se por uma lógica diferente. Embora, obviamente, os novos direitos
correspondessem às aspirações e aos interesses do povo, especialmente dos trabalhadores urbanos,
sua concessão resultou mais do impulso governamental do que da reivindicação organizada da
cidadania.105 O contexto era de “cidadania regulada”.106
Em regra, os direitos sociais não eram assegurados em bases universalistas, para todos os
cidadãos, mas sim aos pertencentes a determinadas categorias profissionais ou econômicas que eram
objeto de regulação estatal. O direito a saúde, por exemplo, só era efetivamente garantido para os
trabalhadores que mantinham relação formal de emprego. Esta lógica combinava-se com o modelo de
sindicalismo oficial então adotado, caracterizado pela subordinação do sindicato ao Estado, com o
controle governamental das atividades e reivindicações dos trabalhadores, dentro do arcabouço
jurídico do corporativismo.107
Durante o Estado Novo, amplia-se a intervenção do Estado na economia, com a criação de novos
órgãos e empresas estatais. O nacionalismo econômico, subjacente à Constituição de 1937, era
perseguido por meio de políticas voltadas ao fortalecimento da indústria nacional, implementadas no
contexto de uma sociedade que se urbanizava e modernizava. Aumenta o tamanho do Estado e a
administração pública se profissionaliza, com a introdução de novas práticas voltadas à
racionalidade e à eficiência do serviço público, sob a liderança do Departamento Administrativo do
Serviço Público (DASP).
A Carta de 1937 sofreu 21 modificações, formalizadas por meio das chamadas “leis
constitucionais”, editadas unilateralmente pelo Executivo, tendo em vista o não- funcionamento do
Parlamento. As primeiras dez foram impostas durante o governo Vargas, e as onze subsequentes, que
já apontavam para a liberalização do regime, foram editadas por José Linhares, depois da deposição
de Getúlio, num intervalo de menos de três meses.
A Revolução de 1930 modernizou o país, fixando as bases do Brasil contemporâneo. O seu legado
mais importante foi a garantia de muitos dos direitos sociais que, até hoje, são titularizados pelos
trabalhadores. O Estado Novo e a Constituição de 1937, porém, corromperam muito do legado moral
da Revolução de 1930. A dimensão democratizante da criação da justiça eleitoral, com a respectiva
moralização das eleições foi em grande parte corroída pelo autoritarismo do Estado Novo e de sua
malsinada Carta Política. Mesmo a efetividade dos direitos sociais no Estado Novo teve pouca
relação com a Carta de 37, decorrendo muito mais da vasta legislação editada na época, bem como
dos desígnios e inclinações ideológicas de Getúlio Vargas e do contexto social propício à sua
instituição
A II Guerra Mundial foi definitiva para o fim do Estado Novo. O Brasil, depois de adotar uma
posição inicial ambígua, acabou cerrando fileiras com os aliados. Assim, o país rompeu relações
com as potências do Eixo em 1941, e, em 1942, entrou na guerra, vindo a participar efetivamente de
campanhas na Itália no ano de 1944. Ao final da guerra, era flagrante a contradição: o país, que
combatera na Europa contra o totalitarismo, mantinha-se internamente uma ditadura. Além disso,
setores da socie dade e da imprensa começavam a se mobilizar, exigindo a liberalização do
regime.108
Neste quadro, o próprio Vargas toma iniciativas no sentido da distensão polí tica, no afã de evitar
o naufrágio do regime que parecia se avizinhar. Em 28 de fevereiro de 1945, edita a Lei
Constitucional nº 9, acompanhada de uma lista de consideranda, nas quais afirma que estavam
criadas “as condições necessárias para que entre em funcionamento o sistema dos órgãos
representativos previstos na Constituição”; que as eleições diretas eram preferíveis às indiretas; e
que “a eleição de um Parlamento dotado de poderes especiais, para, no curso de uma legislatura,
votar, se o entender conveniente, a reforma da Constituição, supre, com vantagem o plebiscito de que
trata o art. 187 desta última”. A norma em questão modifica a Constituição, para instituir as eleições
diretas para o Legislativo e o Executivo federais e estaduais, e prevê a edição de lei, no prazo de
180 dias, para fixar as datas dos pleitos eleitorais para Presidente, Governador dos Estados,
Parlamento e Assembleias Legislativas. Em abril de 1945, o governo decreta anistia para os presos
políticos, e, em maio, edita o Decreto-Lei nº 7.586, marcando as eleições federais para o dia 2 de
dezembro do mesmo ano. No mesmo decreto-lei, autoriza-se a formação de partidos políticos, que
deveriam ter, obrigatoriamente, atuação em âmbito nacional.109
Dos inúmeros partidos que surgiram naquele momento, três se destacavam: a UDN, que agrupava a
oposição liberal ao Estado Novo; o PSD, com fortes bases rurais, formado a partir dos interventores
nomeados por Getúlio, que apoiava o Pre sidente; e o PTB, também varguista, que representava o
trabalhismo, formado por elementos ligados aos sindicatos. Além desses, também desempenhava
papel relevante no quadro partidário o PCB, que fora fundado em 1922, mas que, afora breves
períodos nos anos 20, estivera até então na ilegalidade, para a qual em breve retornaria. Arti
cularam-se, nesse ínterim, as candidaturas à Presidência: apresentaram-se ao pleito o Brigadeiro
Eduardo Gomes, pela UDN; o General Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD; e Yedo Fiúza, pelo PCB.
Porém, surge um movimento em favor da continuidade de Getúlio no poder. Um grupo defendia o
adiamento das eleições, e a realização de uma assembleia constituinte, com Vargas no poder. Outro
advogava que o Presidente se lançasse candidato às novas eleições. Eram todos chamados de
“queremistas”. Vargas adotava uma posição dúbia sobre o movimento, pois não o encorajava
explicitamente, mas tampouco o desautorizava. A repercussão popular da iniciativa gerava dúvidas
sobre o desenlace do processo eleitoral.
Este contexto, e algumas medidas polêmicas de Getúlio, precipitaram a sua derrubada pelas
Forças Armadas. Em 29 de outubro, os militares, sob a liderança do General Góes Monteiro, dão um
golpe de Estado, depondo o Presidente, que não esboça reação e se retira para sua fazenda em São
Borja. Assume o governo o então Presidente do STF, José Linhares, que edita leis constitucionais
removendo algumas das disposições mais autoritárias da Carta de 37,110 e toma as medidas
necessárias para a convocação da Constituinte. Em 31 de janeiro de 1946, ele transmite o poder ao
novo Presidente eleito, Eurico Gaspar Dutra, escolhido em um pleito regular, com o apoio de Vargas.

3.6 A Constituição de 1946


3.6.1 Antecedentes e Assembleia Constituinte
A Assembleia Constituinte de 1946 foi contemporânea de uma importante “onda” de
constitucionalismo global, que se seguiu ao fim da II Guerra Mundial. Mais ou menos na mesma
época, vários estados elaboraram constituições que hoje são referência mundial, como a Itália
(1947), a Alemanha (1948) e a Índia (1949), e outros aprovaram textos que acabariam não resistindo
ao tempo, como a França (1946).111 Depois da derrota dos nazistas e fascistas, as ideias de
democracia e de res peito aos direitos humanos voltavam à moda, após a fase de desprestígio que
haviam atravessado nas décadas de 1920 e 1930. O fenômeno também alcançara o cenário brasileiro.
Parcelas expressivas da opinião pública tinham passado a clamar pela redemocratização e
reconstitucionalização do país.
A Lei Constitucional nº 9, editada por Vargas, não previa a convocação de Assembleia
Constituinte, mas sim a eleição do Parlamento com poderes para alterar a Carta de 37. Porém,
respondendo a uma consulta formulada pela OAB, o Tribunal Superior Eleitoral, que voltara a
funcionar, declarou, por meio da Resolução
nº 215/45, que “o Parlamento Nacional, que será reeleito a 2 de dezembro, terá poderes constituintes,
isto é: apenas sujeito aos limites que ele mesmo prescrever”.112
Com base nessa orientação, José Linhares aprova a Lei Constitucional nº 13, com dois artigos. O
primeiro estabelecia que os parlamentares eleitos em 2 de novembro de 1945 reunir-se-iam “no
Distrito Federal, sessenta dias após as eleições, em Assembléia Constituinte, para votar, com
poderes ilimitados, a Constituição do Brasil”. O segundo dizia que, promulgada a Constituição, a
Câmara dos Deputados e o Senado Federal passariam a funcionar como Legislativo ordinário. A Lei
Constitucional
nº 15, igualmente ditada por Linhares, também tratou da Constituinte. Ela reiterou os seus poderes
ilimitados, mas ressalvou a sua obrigação de respeitar o resultado das eleições presidenciais que
ocorreriam antes da sua instalação. Determinou, ainda, que, enquanto não fosse promulgada a nova
Constituição, o Presidente cumularia os poderes do Executivo com os da legislatura ordinária.
Pelo resultado das eleições, a maior bancada na Constituinte seria a do PSD, com 54% dos
representantes. Depois vinha a UDN, com 26%, o PTB, com 7,5%, e o PCB, com 4,7%. Os outros
7,3% estavam dispersos dentre vários partidos menores.113 Getúlio Vargas concorre a deputado
federal por 9 Estados e a senador por outros 5, como facultava a legislação eleitoral da época, e se
elege deputado em 5, e senador em 2, optando pela vaga do Rio Grande do Sul no Senado, a que se
candidatara pelo PSD.114 Porém, ele praticamente não participou dos trabalhos da Constituinte.
Em 2 de fevereiro de 1945, instalou-se a Assembleia Constituinte, que funcionaria de forma
exclusiva. Até a promulgação da nova Constituição, o Presidente Dutra desempenharia também as
funções legislativas, nos termos estabelecidos pela Lei Constitucional nº 15.115
Na Assembleia, formou-se uma Comissão da Constituição, encarregada de elaborar o projeto,
composta por 37 membros, de forma proporcional às respectivas bancadas.116 Esta Comissão
dividiu-se em 10 subcomissões temáticas. O ponto de partida de seus trabalhos foi o texto da
Constituição de 1934. A Comissão elaborou o chamado “projeto primitivo”, que foi submetido ao
Plenário, no qual recebeu inúmeras emendas. Daí, o texto voltou à Comissão de Constituição e às
subcomissões, que, com base nas emendas aprovadas, redigiu o denominado “projeto revisto”, o
qual, mais uma vez, foi apreciado pelo plenário, com apresentação de destaques. O “projeto revisto”
retornou em seguida para a Comissão de Constituição, para os últimos retoques.117 Em 18 de
setembro, esse texto seria solenemente aprovado e promulgado como a nova Constituição do país.

3.6.2 Traços essenciais da Constituição de 1946


A Constituição de 1946 buscou conciliar liberalismo político e democracia com o Estado Social.
Desprovida de grandes pretensões inovadoras, ela se afastou do autoritarismo da Carta de 37,
acolhendo as fórmulas e instituições do liberalismo democrático — como separação de poderes e
pluripartidarismo — sem, no entanto, abdicar dos direitos trabalhistas e da intervenção do Estado na
ordem econômica. Tratava-se de uma Constituição analítica, como é da tradição brasileira, com 222
artigos no seu corpo permanente, e outros 36 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
No plano da organização territorial do poder, buscou-se restaurar o federalismo, asfixiado durante
o Estado Novo. O federalismo seria bidimensional, congregando União e Estados, mas se assegurou
ampla autonomia para os municípios, por meio da eleição de prefeitos e vereadores, e do
reconhecimento da sua autoadministração, do seu poder tributário próprio e da sua competência para
organização dos serviços públicos locais (art. 28). A Constituição consagrou um extenso rol de
competências da União (arts. 5º, 15 e 16), atribuindo as remanescentes aos Estados (art. 18, §1º),
que, em certas matérias, também poderiam legislar de forma complementar ou supletiva em relação
às normas federais (art. 6º).
Quanto à estrutura do poder político, adotou-se um modelo tradicional de separação de poderes.
Em reação contra os abusos do regime pretérito, o constituinte preocupou-se em restituir a dignidade
ao Legislativo e ao Judiciário. Instituiu um sistema rígido de separação de poderes, vedando tanto o
exercício cumulativo de funções, como a sua delegação (art. 36, §§1º e 2º). Esta rigidez excessiva
revelar-se-ia, com o tempo, um dos problemas da Constituição. Notadamente no que toca ao pro
cesso de elaboração legislativa, a proibição das delegações para o Executivo, numa sociedade de
massas, cada vez mais complexa, gerou um descompasso entre a capacidade técnica do Congresso
em produzir normas na velocidade necessária, e as demandas da vida social, sobretudo na esfera
econômica.118
O Poder Legislativo foi estruturado de forma bicameral, com Câmara dos Deputados e Senado. A
Câmara era composta por deputados eleitos nos Estados, Distrito Federal e Territórios, pelo sistema
proporcional, para mandatos de quatro anos (arts. 56 e 57). Cada Território teria um deputado, e os
Estados e Distrito Federal elegeriam um número de representantes proporcional à sua população, não
inferior a sete, sendo o número máximo fixado por lei (art. 58, caput e §1º). O Senado, por seu turno,
seria composto por três senadores eleitos por cada Estado pelo sistema majoritário, para mandatos
de oito anos (art. 60, caput e §§1º e 2º). A cada quatro anos ocorreria renovação parcial do quadro
de senadores, com eleições, alternadamente, na proporção de um ou dois terços (art. 60, §3º). Não se
cogitou de representação classista em nenhuma das casas.
Quanto ao Poder Executivo, manteve-se o presidencialismo e restabeleceu-se a figura do Vice-
Presidente, que estivera ausente das Constituições de 1934 e 1937 (art. 79). Presidente e Vice seriam
eleitos diretamente para mandatos de cinco anos (art.82). As eleições para os dois cargos eram
simultâneas, mas não se exigia que ambos integrassem a mesma chapa, o que acabaria gerando crises
institucionais no futuro. Proibiu-se a reeleição presidencial para o período imediatamente
subsequente (art. 139, I, alínea “a”).
Ao Poder Judiciário foi integrada a Justiça do Trabalho (art. 94, V), que antes se inseria na alçada
do Executivo. A Justiça Eleitoral voltou à Constituição (art. 94, IV), e se instituiu um Tribunal
Federal de 2ª instância — o Tribunal Federal de Recursos (arts. 103 a 105). A Constituição não
previu a existência da Justiça Federal de 1º grau, que só será recriada durante o governo militar. Na
cúpula do Judiciário, permanecia o Supremo Tribunal Federal, com 11 Ministros, indicados pelo
Presidente e aprovados pelo Senado (arts. 98 e 99). As garantias da magistratura — vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos — foram prestigiadas (art. 95). Foi mantido o
sistema difuso de controle de constitucionalidade. Não mais havia a possibilidade, contemplada na
Carta de 37, de revisão das decisões judiciais por órgãos políticos.
Em relação aos direitos individuais, houve poucas mudanças em relação à Constituição de 1934.
Tais direitos foram positivados no extenso rol do art. 141, em que figuravam as liberdades públicas
tradicionais, como a liberdade de expressão — agora sem a previsão de censura prévia como na
Carta de 37 —, a liberdade de religião, a liberdade profissional, a liberdade de associação e a
liberdade de reunião, assim como os direitos de natureza processual. O mesmo ocorre com os
remédios constitucionais do habeas corpus, do mandado de segurança e da ação popular. Volta à
Constituição a garantia do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico per feito. Em
inovação relevante, consagra-se o direito à inafastabilidade da prestação jurisdicional. Foram
vedadas as penas de morte, de banimento, de confisco e de caráter perpétuo, ressalvada, quanto à
primeira, a legislação militar em caso de guerra externa.
No campo dos direitos políticos, assegurou-se o sufrágio universal direto e secreto. O voto passou
a ser obrigatório para homens e mulheres alfabetizados.119 Pela primeira vez, os partidos políticos
receberam menção no texto constitucional, no dispositivo que vedou a organização, registro e
funcionamento daqueles “cujo pro grama ou ação contrarie o regime democrático, baseado na
pluralidade de partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem” (art. 141, §13º).120
Os direitos trabalhistas continuaram protegidos em sede constitucional (art. 157). Surge, como
novidade, o direito à “participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa”
(inciso IV). Contudo, o novo direito permaneceria letra-morta, pois a sua eficácia estava
condicionada à edição de lei regulamentadora, que não chegou ser elaborada. Em relação à greve —
que foi um dos temas mais polêmicos durante a constituinte —, adotou-se um típico “compromisso
dilatório”: a Constituição reconheceu o direito, mas determinou que o seu exercício seria regulado
por lei (art. 158).121 A mesma técnica seria empregada em relação aos sindicatos, outro tema que
suscitou intensas controvérsias na Assembleia Constituinte: foi assegurada a liberdade da associação
profissional ou sindical, mas caberia à lei disciplinar “a sua forma de constituição, a sua
representação legal nas convenções coletivas de tra balho e o exercício de funções delegadas pelo
poder público”. Manteve-se, assim, o espaço para a subsistência do modelo viciado de sindicalismo
oficial que existia no país desde a Revolução de 1930.122
Na ordem econômica e social, permanece a linha geral intervencionista e nacionalista. A
propriedade estava condicionada ao “bem-estar social” (art. 147). A União poderia, mediante lei
especial, não só intervir no domínio econômico, como também “monopolizar determinada indústria
ou atividade” (art. 146). Diversas foram as restrições impostas às atividades econômicas de pessoas
e do capital estrangeiro em áreas reputadas estratégicas. Contudo, a questão agrária não foi
equacionada. A Constituição, seguindo a linha das que a antecederam, exigia pagamento de
indenização prévia em dinheiro para qualquer tipo de desapropriação, o que praticamente
inviabilizava a realização da reforma agrária nos marcos constitucionais.123
A Constituição dedicou um título à família, à educação e à cultura. No que tange à família, a
influência conservadora da Igreja Católica se manifestou pela previsão do caráter indissolúvel do
casamento (art. 163). Na linha do Estado Social, proclamou-se a obrigação do Estado de dar
assistência à maternidade, à infância, à adolescência e às famílias de prole numerosa (art. 164); de
garantir o direito à educação, sendo gratuito a obrigatório o ensino primário (art. 168, I e II); e de
amparar a cultura (art. 174).
No que concerne à mudança dos seus dispositivos, a Constituição de 1946 era rígida. De acordo
com o seu art. 217, a emenda poderia ser proposta por um quarto dos deputados federais ou
senadores, ou mais da metade das Assembleias Legislativas, manifestando-se cada uma delas pela
maioria dos seus membros. Ela seria aprovada se obtivesse votação de maioria absoluta nas duas
casas em duas discussões, durante duas sessões legislativas ordinárias consecutivas. Porém, se a
emenda obtivesse em ambas as casas, por duas votações, a maioria de dois terços, poderia ser
aprovada imediatamente, dentro da mesma sessão legislativa. Como limite circunstancial, foi
proibida a reforma da Constituição durante o estado de sítio. Adotaram-se, como cláusulas pétreas, a
Federação e a República.

3.6.3 A Constituição de 1946 na realidade nacional


A Constituição de 1946 vigorou formalmente por mais de 20 anos, sendo der rogada em janeiro de
1967 por nova Carta. Houve, sob a sua égide, momentos de democracia e estabilidade institucional, e
outros, extremamente conturbados, em que a Constituição teve pouca importância. O primeiro
momento se estende de 1946 até setembro de 1961, quando, no contexto de séria crise política, foi
aprovada a Emenda nº 4, que instituiu o parlamentarismo. O segundo momento vai de 1961 até o
golpe militar de 1964, e passa pela volta ao presidencialismo, com a edição da Emenda nº 6, em
janeiro de 1963. E o terceiro momento corresponde ao período em que a Constituição conviveu com
o arbítrio militar, estendendo-se de abril de 1964 até a sua revogação, em janeiro de 1967.
Na primeira fase, o Brasil experimentou, pela primeira vez na sua história, uma vida política
razoavelmente democrática, com eleições livres e regulares e relativo respeito às liberdades
públicas, apesar das diversas turbulências políticas por que passou. O mandato de Dutra transcorre
sem maiores incidentes constitucionais,124 e, em 1950, elege-se Getúlio Vargas, derrotando o
candidato da UDN, Brigadeiro Eduardo Gomes.
No seu governo, Vargas aprofunda o seu projeto de trabalhismo e nacionalismo econômico,
sofrendo implacável oposição de setores da sociedade civil, das Forças Armadas e da alta
burguesia.125 Em 4 de agosto de 1954, um atentado frustrado contra o líder oposicionista e jornalista
Carlos Lacerda — que vinha movendo ferina campanha contra Getúlio — acaba vitimando o major
da Aeronáutica Rubem Vaz. Investigação paralela do homicídio conduzida pela Aeronáutica aponta o
chefe da guarda pessoal do Presidente, Gregório Fortunato, como mandante do crime. Reagindo à
forte pressão castrense e de parcela da opinião pública em favor da sua renúncia, e pressentindo a
iminência de golpe militar caso não se afastasse, Getúlio Vargas se suicida, em 24 de agosto de
1954, provocando enorme comoção social.
Assume o governo o Vice-Presidente, Café Filho, para completar o seu mandato. Em 3 de outubro
de 1955 ocorrem novas eleições para a Presidência, com a vi tó ria de Juscelino Kubitschek,
candidato pelo PSD, e do Vice João Goulart, do PTB, que concorrera pela mesma chapa. As forças
anti-varguistas passam a conspirar aberta mente para impedir a posse dos eleitos, nos quais
enxergavam a continuidade da linha “populista” de Vargas. O argumento “jurídico” de que se valiam
estas forças era o de que Juscelino não havia obtido a maioria absoluta dos votos — o que não tinha
nenhuma procedência, pois a Constituição de 1946 não exigia esta maioria qualificada para a eleição
presidencial (art. 81). Nesse ínterim, Café Filho sofre um ataque cardíaco, afastando-se do governo e
sendo substituído pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz — que, pela Constituição,
era o próximo na linha de substituição do Presidente (art. 79, §1º). Porém, rumores indicavam que
Carlos Luz participava das conspirações para impedir a posse de Juscelino. Neste contexto, o
Marechal Lott, ex-Ministro da Guerra, desfecha um golpe preventivo para assegurar a ascensão ao
governo do Presidente eleito,126 afastando Carlos Luz do poder. O Congresso apoia a manobra
militar, e vota o nome de Nereu Ramos, Vice-Presidente do Senado, para encerrar o mandato, até o
empossamento dos eleitos.
A esta altura, Café Filho, já restabelecido, tenta reassumir o seu posto, sendo impedido pelo
Congresso, que aprova também a decretação de estado de sítio. Con tra o ato do Congresso que
decretara o seu impedimento, Café Filho impetra um man dado de segurança no STF. A Corte, em
curiosa solução, decide, por maioria de votos, suspender o mandado de segurança até que cessasse o
estado de sítio, evitando imiscuir-se na controvérsia político-militar, apesar da sua inequívoca
dimensão jurídico-constitucional.127
Juscelino Kubitschek é empossado, e seu governo, marcado pelo desenvolvimentismo e pela
transferência da capital para Brasília,128 transcorre sem rompimento da legalidade constitucional,
apesar da ocorrência de dois levantes militares,129 sem maiores consequências. Ele é sucedido por
Jânio Quadros, escolhido nas eleições presidenciais de 3 de outubro de 1960. Líder carismático
independente em ascensão meteórica, Jânio fora candidato pelo pequeno PTN (Partido Trabalhista
Nacional), com forte apoio da UDN. Eleito a partir de um discurso conservador e moralista, derrotou
o Marechal Lott, que concorrera por coligação formada pelo PTB, PSD e PSB. Recorde-se que a
Constituição de 1946 permitia a eleição de Presidente e de Vice-Presidente pertencentes a chapas
distintas, e, assim, João Goulart venceu o pleito para a Vice-Presidência, derrotando Milton Campos
— o candidato da chapa de Jânio.
Em 25 de agosto de 1961, com apenas sete meses de governo, Jânio Quadros, de personalidade
excêntrica, renuncia, motivado por razões que até hoje não foram plenamente
esclarecidas.130 Naquela ocasião, João Goulart estava em viagem oficial à China de Mao Tse Tung, e
logo se articula um movimento de “veto militar” à sua posse como Presidente. Jango havia sido
Ministro do Trabalho de Getúlio, e era associado, por amplos segmentos das Forças Armadas, ao
“populismo” e ao “sindicalismo”, que abominavam. Nesse ínterim, assume a Presidência da
República temporariamente o Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. O “veto
militar” a Goulart não será inteiramente bem sucedido, em razão da chamada “Campanha da
Legalidade”, liderada pelo então Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que contava
com a adesão do 3º Exército, sediado naquele Estado. Rapidamente, costura-se uma solução de
compromisso, que resultou na aprovação às pressas da Emenda Constitucional nº 4, promulgada em 2
de setembro de 1961, que instituiu o regime parlamentarista de governo no Brasil. Inicia-se uma
segunda fase de vigência da Constituição de 1964.
De acordo com a Emenda nº 4, denominada de “Ato Adicional”, o Executivo passaria a ser
exercido pelo Presidente e pelo Conselho de Ministros, sendo este último o responsável pela direção
da política do Governo e da administração federal (art. 1º). O Presidente da República passaria a ser
eleito indiretamente pelo Congresso Nacional (art. 2º). Caberia a ele exercer as funções de Chefe de
Estado, dentre as quais designar o Presidente do Conselho de Ministros, e, por indicação deste, os
demais Ministros de Estado (art. 3º, I). O nome do Presidente do Conselho de Ministros teria de ser
submetido à Câmara dos Deputados, que o aprovaria por maioria absoluta de votos, podendo o
Presidente da República, em caso de recusa, indicar, sucessivamente, mais dois nomes. Após a
terceira recusa, a escolha passaria ao Senado Federal, que não poderia designar nenhum dos nomes
recusados pela Câmara. Durante todo o tempo, o Conselho de Ministros dependeria da confiança da
Câmara dos Deputados (art. 11). Essa, por iniciativa de 50 deputados, poderia aprovar, por maioria
absoluta, moção de desconfiança contra o Conselho de Ministros, ou de censura contra qualquer de
seus membros, o que levaria à sua exoneração coletiva ou individual (art. 12). Diante de três moções
de desconfiança sucessivas, o Presidente da República poderia dissolver a Câmara dos Deputados,
convocando novas eleições. Entrementes, ele poderia nomear um Conselho de Ministros provisório.
Ao Presidente do Conselho de Ministros foram atribuídas as funções inerentes à chefia de Governo
(art. 18). A Emenda nº 4 previu, ainda, que lei, aprovada por maioria absoluta de votos,
complementaria a organização do sistema parlamentar131 (art. 22), e que tal lei poderia “dispor sobre
a realização do plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta do sistema
presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo
do atual período presidencial” (art. 25).
O parlamentarismo perduraria por apenas 14 meses, de setembro de 1961 até janeiro de 1963.
Nesse período, sucederam-se no cargo diversos Presidentes do Conselho de Ministros:132 Tancredo
Neves, Auro Moura Andrade, Francisco Brochado Rocha e Hermes Lima. O sistema não estava
funcionando bem,133 e João Goulart trabalhava intensamente para recuperar a plenitude dos poderes
presidenciais. Até mesmo alguns dos seus adversários defendiam a volta do presidencialismo, por
entenderam necessária no Brasil a presença de um Executivo forte. Em 16 de setembro, é editada a
Lei Complementar nº 2, convocando o plebiscito para 6 de janeiro de 1963 — antecipando-se,
portanto, à data prevista na Emenda nº 4. Realizado o plebiscito, a vontade das urnas surgiu
inequívoca: 76,97% do eleitorado manifestou-se pelo retorno do presidencialismo.134 A mudança é
formalizada por meio da Emenda Constitucional nº 6, de 23 de janeiro de 1963.
Vencida essa batalha, João Goulart aproxima-se cada vez mais da esquerda, prometendo Reformas
de Base — inclusive a tão necessária reforma agrária — e apro vando restrições ao capital
estrangeiro. O ambiente era turbulento e polarizado. Militares, setores do empresariado,
proprietários rurais e segmentos da classe média, com apoio da grande mídia e do governo norte-
americano, inquietavam-se contra o que viam como a radicalização do regime e tramavam a
deposição do Presidente. Do outro lado, insuflado por sindicalistas e por outros líderes da esquerda,
que queriam reformas imediatas, Jango adotava um discurso cada vez mais contundente. No país,
sucediam-se greves — algumas em apoio às reformas, que sofriam resistência no Congresso —,
ocupações de terras por camponeses, bem como manifestações populares de ambos os lados da
contenda política. A situação econômica também era grave, com a inflação cada vez mais alta. Em 13
de março de 1964, Goulart promove um gigantesco “Comício das Reformas” no Rio de Janeiro, de
enorme repercussão, em que anuncia dois novos decretos, nacionalizando refinarias privadas de
petróleo e sujeitando à desapropriação terras improdutivas localizadas nas margens de estradas e
ferrovias. Poucos dias depois, o Presidente anistia marinheiros, punidos por terem se reunido para
reivindicar melhores salários e a possibilidade de concorrerem em eleições. Em 30 de março, Jango
comparece para discursar em assembleia de sargentos no Automóvel Clube do Brasil. A atitude,
vista como estímulo à quebra da hierarquia na caserna, foi apresentada como a gota d’água para a
deflagração do golpe militar, que já vinha sendo gestado há tempos e envolvia uma rede bastante
mais ampla de interesses.
Em 31 de março de 1964, ocorre o golpe militar, com a simples movimentação de tropas, sem
confrontos armados efetivos. Em 1º de abril, antes mesmo que João Goulart saísse do pais, o
Presidente do Senado, Auro Moura Andrade, declara vaga a Presidência da República, que é
formalmente assumida pelo Presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Esse a ocuparia por poucos
dias, sendo logo substituído pelo General Humberto Castelo Branco. Era o início da ditadura militar
e da terceira fase de vigência da Constituição de 1946.135
A formalização do golpe deu-se por meio do Ato Institucional nº 1 (AI-1), editado em 9 de abril
de 1964, e assinado pelos comandantes das Forças Armadas. O redator do texto seria, uma vez mais,
Francisco Campos, com o auxílio do jurista conservador Carlos Medeiros da Silva.136 No seu
preâmbulo, o Ato Institucional apresentava-se como emanação do poder constituinte originário,
proveniente da “Revolução vitoriosa”. Ele não buscava fundamento de validade na Constituição de
1946. Era apenas por uma concessão dos militares, protagonistas da tal “Revolução vitoriosa”, que a
Constituição continuaria a valer naquilo que não contrastasse com o Ato Institucional editado. Vale a
pena conferir algumas passagens significativas do referido preâmbulo:
A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução.
Esta é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se
legitima por si mesma. (...) Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas, sem que
nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas
e ao apoio inequívoco da Nação, representam o povo e em seu nome exercem o Poder Cons tituinte, de que o povo é o único
titular. (...)
Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-
nos a modificá-la, apenas na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de
restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja
purulência já se havia infiltrado, não só na cúpula do governo, como nas suas dependências administrativas.
O AI-1 determinou a realização de eleição indireta para a escolha do próximo Presidente e Vice-
Presidente da República, a ocorrer no Congresso em dois dias da data da sua edição (art. 2º). Os
mandatos dos eleitos encerrar-se-iam, em tese, em 31 de janeiro de 1966. Em 11 de janeiro, o
Congresso, já expurgado de boa parte dos parlamentares oposicionistas, limitou-se a homologar o
nome de Castelo Branco, imposto pelos militares.
Ademais, o AI-1 facilitou a aprovação de emendas constitucionais encaminhadas pelo Presidente:
agora, elas teriam de ser apreciadas em 30 dias a contar do seu recebimento, sendo aprovadas por
maioria absoluta nas duas casas, em duas votações (art. 3º). Ele também ampliou os poderes
presidenciais no processo legislativo (arts. 4º e 5º), e conferiu ao Presidente o poder de decretar
estado de sítio, submetendo -o à apreciação do Congresso em 48 horas.137 Foram suspensas, por seis
meses, as garantias de vitaliciedade e estabilidade (art. 7º), permitindo-se, naquele interregno, a
demissão, dispensa, aposentadoria compulsória, reforma ou transferência para a reserva de
servidores civis e militares e magistrados que tivessem atentado contra “a segurança do país, o
regime democrático e a probidade da administração pública” (art. 7º, §1º), o que seria apurado por
meio de investigação sumária, sem possibilidade de apreciação judicial daqueles atos, salvo quanto
às suas formalidades extrínsecas.138 Os Comandantes das Forças Armadas, e o Presidente, após a sua
eleição, foram autorizados a suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos e a cassar mandatos
legislativos federais, estaduais ou municipais, excluindo-se qualquer controle judicial sobre tais atos
(art. 10).
Com base nesses poderes excepcionais concedidos pelo AI-1, o governo passa a perseguir os
adversários do regime, realizando tortura139 e prisões arbitrárias. A repressão atinge fortemente o
movimento estudantil, os sindicatos e os militantes sociais do meio rural, sobretudo do Nordeste,
associados à bandeira da reforma agrária. No Congresso, cinquenta parlamentares tiveram o seu
mandato cassado, o que também ocorreu com vários políticos de expressão nacional, como Leonel
Brizola, Miguel Arraes, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek.140
O AI-1 não havia alterado o cronograma das eleições para Governador, que ocorrem em outubro
de 1965, com vitórias da oposição em Estados importantes, como a Guanabara e Minas Gerais. O
resultado das urnas assustou os militares e forneceu argumento para que a “linha-dura” insistisse na
edição de novos atos institucionais.141
Assim, em 5 de novembro de 1965, Castelo Branco edita o AI-2, que afirmava, em seu preâmbulo,
também representar exercício do poder constituinte originário, uma vez que a “Revolução” não se
esgotara. Dentre as diversas mudanças que introduziu, destaca-se a extinção dos partidos políticos
então existentes (art. 18). No novo sistema que seria instituído, a formação de um partido dependeria
de iniciativa de, no mínimo, 120 deputados e 20 senadores (art. 1º do Ato Complementar nº 4/1965).
Na prática, isto só permitia a existência de dois partidos: um da situação e outro representando a
oposição consentida. Naquele modelo, foram instituídos a ARENA, partido do governo, e o MDB,
que lhe fazia oposição, nos estreitos limites que o regime tolerava. Apesar do seu caráter
discricionário, o governo militar preocupava-se em manter alguma aparência democrática, e por isso
não chegou ao ponto de abolir os partidos políticos, como fizera Vargas em 1938, ou de decretar o
unipartidarismo.
Além disso, o AI-2 tornou permanente a eleição indireta para a Presidência (art. 9º); autorizou o
Presidente a baixar atos complementares dos atos institucionais, bem como a editar decretos-leis em
matéria de segurança nacional (art. 30); e deu-lhe ainda o poder de determinar o recesso do
Congresso, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, situação em que o Executivo
correspondente legislaria por meio de decretos-leis (art. 31). Ademais, ele ampliou a composição do
STF para 16 ministros — o que permitiu ao governo construir uma maioria mais confortável na Corte
—; instituiu a Justiça Federal de 1º grau, e transferiu para a Justiça Militar a competência para
julgamento dos crimes contra a segurança nacional, dentre outras medidas.
Já o AI-3, editado por Presidente Castelo Branco em 7 de fevereiro de 1966, estendeu as eleições
indiretas também para os pleitos para governador de Estado. Com isso, reduzia-se o risco de
derrotas eleitorais para a oposição.
Naquele período, além dos Atos Institucionais também foram editadas diversas emendas à
Constituição, gerando um sistema constitucional altamente confuso, para dizer o mínimo, em que
pouco sobrara do texto originário da Constituição de 46. Até a promulgação da Constituição de 1967,
o regime militar aprovaria mais 14 emendas: da Emenda nº 7 até a Emenda nº 20. Dentre elas, cabe
destacar a Emenda nº 9/64, que reduziu o período presidencial para quatro anos (art. 82) e prorrogou
o mandato de Castelo Branco para até 15 de março de 1967; a Emenda nº 10/64, que autorizou a
desapropriação para fins de reforma agrária com pagamento em títulos da dívida pública; a Emenda
nº 16/65, que instituiu “a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza
normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República” (art. 1º);142 e a
Emenda nº 18/65, que promoveu ampla reforma tributária.
Em 1967, a Constituição tinha se tornado uma verdadeira colcha de retalhos. Surge a ideia de
elaborar outra Constituição, que institucionalizasse de forma definitiva o regime. Para convocar a
nova Assembleia Constituinte, Castelo Branco valer-se- ia, mais uma vez, de Ato Institucional: o AI-
4, decretado em 7 de dezembro de 1966.

3.7 A Constituição de 1967


3.7.1 Antecedentes e Assembleia Constituinte
Os militares que governavam o país não formavam um bloco monolítico, ideologicamente
homogêneo. Havia, grosso modo, dois grupos principais. De um lado, os da “linha-dura”, que
queriam a radicalização do regime e a intensificação da perseguição aos opositores, não se
importando em manter o poder indefinidamente com as Forças Armadas. Do outro, os “moderados”,
que pretendiam devolver o poder mais rapidamente aos civis, depois de expurgarem da vida política
os elementos considerados mais “perigosos”, e rechaçavam alguns “excessos” cometidos pelos
primeiros no combate à oposição e à esquerda, como a tortura e o homicídio. Nenhum dos grupos
demonstrava grande apreço pela democracia e pelos direitos humanos, mas o segundo era menos
radical e mais preocupado em manter as aparências do regime. Durante todo o período militar, tais
grupos disputariam a hegemonia — no mais das vezes, nos bastidores da caserna, mas, em alguns
momentos, de forma mais visível — e diversos acontecimentos da história constitucional da época
resultaram de oscilações no pêndulo do poder entre essas duas correntes.
Este foi o caso do nascimento e da morte da Constituição de 1967. A sua elaboração refletiu o
propósito do grupo moderado — hegemônico durante o governo de Castelo Branco, que era um dos
seus maiores líderes — de reconstitucionalizar o país. Tratava-se de uma reconstitucionalização
muito limitada, eis que a Constituição de 1967 continha traços autoritários, e seria aprovada por uma
Constituinte tutelada pelos militares. Ainda assim, o objetivo era o de institucionalizar alguns limites
para o exercício do poder, para, se tudo corresse bem, devolvê-lo depois aos civis mais
“confiáveis”. Porém, após a aprovação da Constituição, a balança se inverteu durante o governo de
Costa e Silva — um integrante da “linha-dura” —, e, ainda mais, depois do AI-5, em 1968, e da
assunção do Executivo por Junta Militar, em 1969. A Constituição duraria pouco mais de dois anos e
meio: promulgada em janeiro de 1967, seria substituída por outro texto outorgado em outubro de
1969 pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
O AI-4, editado por Castelo Branco em 7 de fevereiro de 1966, convocara o Congresso para se
reunir extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 até 24 de janeiro de 1967, com vistas a
discutir, votar e promulgar projeto da Constituição que seria apresentado pelo Presidente (art.
1º, caput e §1º). Naquele interregno, o Congresso também deliberaria sobre matérias que lhe fossem
submetidas pelo Executivo (art. 1º, §2º) e o Senado continuaria a praticar os atos da sua competência
privativa (art. 1º, §3º).
Tal Ato Institucional disciplinava detalhadamente o funcionamento da Constituinte. O Presidente
do Senado deveria designar os integrantes de uma Comissão Mista, composta por onze deputados e
onze senadores, indicados pelas lideranças dos partidos, observando-se a respectiva
proporcionalidade (art. 2º). Àquela Comissão, que escolheria seu Presidente, Vice-Presidente e
Relator, caberia dar parecer sobre o projeto, concluindo pela sua aprovação ou rejeição (art. 3º). Em
seguida, o projeto seria votado em sessão conjunta das duas casas do Congresso, no prazo de quatro
dias (art. 4º). Depois da aprovação, poderiam ser apresentadas emendas perante a Comissão, com
apoio de pelo menos um quarto dos membros de qualquer das casas legislativas (arts. 5º e 6º). Tais
emendas seriam submetidas à discussão do plenário do Congresso, devendo ser aprovadas por
maioria absoluta em cada casa (art. 7º). Em 24 de janeiro, a Constituição teria de ser
impreterivelmente promulgada. Caso o processo de apreciação das emendas não tivesse se ultimado
até 21 de janeiro, promulgar-se-ia o texto do projeto do governo, aprovado antes da fase de
apresentação de emendas (art. 8º).143
Sem dúvida, o prazo estabelecido era absolutamente insuficiente para que o Congresso deliberasse
sobre a nova Constituição.144 Somando-se isto ao ambiente político existente, de ameaça permanente
ao mandato dos parlamentares constituintes, bem como a prévia cassação de boa parte dos
oposicionistas, pode-se concluir que a Assembleia Constituinte em questão não era muito mais do
que uma fachada de que se valeu o regime para evitar a outorga pura e simples da nova Constituição.
Na verdade, não houve uma efetiva Assembleia Constituinte, livre e soberana, mas pouco mais que
um procedimento para homologação e legitimação do texto que saíra do forno do regime militar.145
Para elaboração do projeto de Constituição, o Executivo, por meio do Decreto nº 58.198, de 15 de
abril de 1966, nomeara comissão de juristas, integrada por Levi Carneiro (Presidente), Themístocles
Cavalcanti, Orozimbo Nonato e Miguel Seabra Fagundes (este último acabou se afastando).146 Ocorre
que o governo não concordou com o resultado do trabalho da comissão de juristas, considerado
excessivamente liberal. Assim, o projeto foi encaminhado a Carlos Medeiros da Silva, então
Ministro da Justiça, que o reviu integralmente, conferindo-lhe uma fisionomia mais autoritária. Este
novo projeto, depois de revisto pelo Presidente, foi encaminhado pelo governo à Assembleia
Constituinte.
Na Assembleia Constituinte, instalada em 12 de dezembro de 1966, o projeto seria aprovado por
Comissão Mista por treze votos a oito. Os representantes do MDB na comissão votaram contra o
projeto, acusando-o de autoritário.147 Em seguida, o projeto foi aprovado pelo plenário, e, na fase
subsequente, recebeu número significativo de emendas, algumas das quais foram acolhidas pelas
duas casas, mas nada que alterasse de forma mais substantiva o texto encaminhado pelo governo. Os
prazos previstos no AI-4 foram rigorosamente cumpridos, e assim, em 24 de janeiro de 1967,
promulgou-se formalmente a nova Constituição Federal, que entrou em vigor em 15 de março do
mesmo ano (art. 189) — mesmo dia da posse do Presidente Costa e Silva.148

3.7.2 Traços gerais da Constituição de 1967


Um dos traços característicos da Constituição de 1967 foi a concentração do poder, tanto no
sentido vertical — centralização no pacto federativo —, como no horizontal — hipertrofia do
Executivo.149 Sem embargo, houve preocupação com a preservação de uma fachada liberal, que se
verifica, por exemplo, no extenso capítulo de direitos e garantias individuais, inserido no art. 150.
Tratava-se, por outro lado, de mais um texto constitucional analítico, composto por 189 artigos.
No que tange à partilha espacial do poder, manteve-se o federalismo bidimensional, ainda que
com reduzido nível de descentralização política. A Constituição enunciou as competências da União
(art. 8º), cabendo ao Estado as remanescentes (art. 13, §1º), bem como a possibilidade de legislar
supletivamente sobre determinados temas inseridos na competência federal (art. 8º, §2º). A
autonomia dos Municípios, embora formalmente consagrada (art. 16), foi esvaziada com a previsão
de escolha dos prefeitos das capitais e das estâncias hidrominerais pelo Governador do Estado, com
prévia aprovação da Assembleia Legislativa; e a dos prefeitos dos Municípios declarados de
interesse da segurança nacional pelo Presidente da República (art. 16, §1º). O federalismo foi
também fragilizado pela fórmula de repartição das competências e das receitas tributárias, que
concentrou os recursos na União, induzindo os Estados à vassalagem política.150
O Poder Executivo foi fortalecido, com a atribuição de competência para a edição de decretos
com força de lei, em matéria de segurança nacional ou finanças públicas (art. 58). Estes decretos,
que acabaram sendo usados para quase tudo, tinham vigência imediata, mas o Congresso podia
aprová-los ou rejeitá-los em 60 dias, vedada a apresentação de emendas. A ausência de deliberação
implicava aprovação por decurso de prazo. Também no processo de elaboração das leis,
estabeleceu-se que a não apreciação de projetos do Executivo em determinados prazos importava em
aprovação por decurso de prazo. Portanto, ampliou-se o poder do Presidente no processo legislativo,
às expensas do Congresso Nacional.
O mandato do Presidente seria de quatro anos (art. 77, §3º). As eleições presidenciais eram
indiretas, por maioria absoluta, realizadas por colégio eleitoral formado pelo Congresso Nacional e
por delegados das Assembleias Legislativas (arts. 76, caput e §1º, e 77, §1º). Cada Assembleia
Legislativa indicava três delegados, e mais um por cada quinhentos mil eleitores inscritos no Estado
(art. 76, §2º). O Vice-Presidente, que exercia também a função de Presidente do Congresso Nacional,
era eleito pela mesma chapa do Presidente da República (art. 79, §§1º e 2º). Não havia a
possibilidade de reeleição do Presidente para o mandato consecutivo (art. 146, alínea “a”).
O Poder Legislativo seguia o modelo bicameral, composto pela Câmara dos Deputados e pelo
Senado (art. 29). Na Câmara, os deputados federais eram eleitos por sufrágio direto e universal, pelo
sistema proporcional, para mandatos de quatro anos (art. 41, caput e §1º). O número de deputados
por Estado seria fixado em lei, “em proporção que não exceda de um para cada trezentos mil
habitantes, até vinte e cinco deputados, e, além deste limite, um para cada milhão de habitantes” (art.
41, §2º), respeitado o número mínimo de sete deputados por Estado (art. 41, §4º). Tratava-se de
fórmula que favorecia os Estados menos populosos, onde a ARENA costumava ter desempenho
superior ao MDB. Já o Senado Federal era composto por três representantes de cada Estado, eleitos
diretamente, pelo sistema majoritário, para mandatos de oito anos, renovando-se a representação a
cada quatro anos, alternadamente, por um ou dois terços (art. 43, caput e §1º).
Quanto ao Poder Judiciário, não houve mudanças significativas em relação à Constituição de
1946, com as alterações impostas pelo AI-2. As garantias da magistratura foram preservadas (art.
108), mas foram conservadas as cláusulas que excluíam da apreciação judicial os atos praticados
pelo “Comando Supremo da Revolução”, dentre os quais os expedidos por força dos atos
institucionais (art. 173). A sistemática de controle de constitucionalidade, com as mudanças
introduzidas pela Emenda nº 16/65, foi mantida.
Como antes ressaltado, o capítulo dos direitos e garantias individuais era ge ne roso, ainda que
insincero. No art. 150 da Carta de 1967 estão presentes todos os direitos consagrados na
Constituição de 1946, com outros acréscimos importantes — mas que não tiveram nenhuma
efetividade — como a imposição de “respeito à integridade física e moral do detento e presidiário”
(§14º). O mesmo pode ser dito a propósito dos direitos sociais (arts. 158, 167, §4º e 169). Também
na ordem econômica não houve grandes inovações, mantendo-se a linha intervencionista e
nacionalista que vinha pautando as constituições brasileiras desde 1934.
A Constituição de 1967 era rígida, ainda que não fosse tão difícil a sua alteração. As propostas de
emenda podiam ser apresentadas pelo Presidente da República, por um quarto dos membros da
Câmara ou do Senado, ou por mais da metade das Assembleias Legislativas dos Estados,
manifestando-se cada uma delas pela maioria dos seus membros (art. 50, incisos I a III e §§3º e 4º).
As emendas eram aprovadas pelo quorum de maioria absoluta, em duas votações sucessivas em cada
casa do Congresso (art. 51). Não se admitia proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a
República (art. 50, §1º), nem tampouco se aceitava a mudança da Constituição durante o estado de
sítio (art. 50, §2º). Porém, tais regras sobre a reforma constitucional não tiveram qualquer eficácia.
Quando o regime quis alterar a Carta de 67, fê-lo sem nenhuma cerimônia, recorrendo ao odioso
expediente da edição de atos institucionais: foram impostos outros 12 atos institucionais até o
advento da Constituição de 1969, além de inúmeros atos complementares, que também repercutiram
sobre a Carta.

3.7.3 A Constituição de 1967 e o recrudescimento da Ditadura Militar


Costa e Silva era próximo à corrente “linha-dura” das Forças Armadas. Naturalmente, não morria
de amores pela Constituição de 1967 que, mesmo não primando pela democracia, impunha relevantes
limitações ao seu poder discricionário. Durante o seu governo, houve o endurecimento no regime.
Mas, do outro lado, se articularam reações contra a ditadura provenientes de vários flancos:
oposição do movimento estudantil, promovendo protestos e manifestações de grande porte; greves de
trabalhadores; reações de setores da Igreja Católica. Nesta época, surge também a resistência armada
ao governo militar.151
A linha-dura queria recrudescer ainda mais a ditadura e pressionava o Presidente a fazê-lo. O
pretexto para a ação foi um discurso sem maior importância, proferido pelo então Deputado Márcio
Moreira Alves no Congresso, que propunha um boicote à parada do Sete de Setembro, e ainda
sugeria, ironicamente, que as mulheres fizessem uma greve de sexo contra os militares enquanto
durasse a repressão, como na peça Lisístrata, do grego Aristófanes. Os militares reagiram com
indignação e o Presidente solicitou à Câmara autorização para processar o parlamentar, por crime
contra a segurança nacional.152 Porém, a Câmara agiu com independência, rejeitando o pedido, em
votação realizada no dia 12 de dezembro de 1968.153
A reação foi imediata: no dia 13 de dezembro, foi convocada uma reunião do Conselho de
Segurança Nacional, em que se aprovou a decretação do AI-5. Das 23 autoridades presentes, todas
se manifestaram favoravelmente à medida draconiana, com exceção do Vice-Presidente Pedro
Aleixo, que sugeriu uma alternativa mais “suave”: a decretação do estado de sítio. No mesmo dia, o
AI-5 foi editado, juntamente com o Ato Complementar nº 38, que colocava o Congresso em recesso,
por tempo indeterminado.
De todos os atos institucionais editados durante o período militar, o AI-5 foi certamente o mais
duro. Ele permitiu que o Presidente decretasse o recesso do Congresso, das Assembleias
Legislativas e das Câmaras de Vereadores, que só voltariam a funcionar quando convocados por ele
próprio, transferindo-se, nesse ínterim, toda a atividade legislativa para o Poder Executivo
correspondente (art. 2º, caput e §1º). Autorizou o Presidente a decretar livremente a intervenção nos
Estados e Municípios, “sem as limitações previstas na Constituição” (art. 3º). Possibilitou a
suspensão dos direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de dez anos, bem como a cassação
de mandatos eletivos federais, estaduais ou municipais (art.4º). Determinou que a suspensão dos
direitos políticos também implicava a proibição de atividades ou manifestações sobre assunto
político, e podia ainda envolver a imposição de restrições à liberdade de locomoção (art. 5º).
Suspendeu as garantias da magistratura, e possibilitou ao Presidente a demissão, remoção,
aposentadoria ou colocação em disponibilidade de magistrados, assim como de servidores ou
empregados públicos, bem como a demissão, reforma ou transferência para a reserva de militares
(art. 6º). Autorizou que o Presidente suspendesse as liberdades de reunião e de associação, e que
instituísse a censura (art. 9º). Suspendeu o habeas corpus para os crimes políticos, contra a
segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular (art. 10), e excluiu a
apreciação judicial de todos os atos praticados em seu nome (art. 11). Tratava-se da cristalização,
em documento jurídico, da ditadura nua e crua. Embora a Constituição de 1967 tenha sido
formalmente mantida (art. 1º), dali para frente ela não teria mais qualquer força para limitar o poder.
Com base no AI-5, abriu-se um amplo ciclo de cassações de mandatos e expurgos no
funcionalismo, que atingiu em cheio as universidades. Três Ministros do STF foram cassados —
Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima —, e outros dois deixariam a Corte em
solidariedade aos colegas. A censura aos meios de comunicação se institucionalizou, atingindo
também a atividade artística. Nada mais podia ser publicado ou veiculado que pudesse desagradar
ao governo, ou que ameaçasse a moral tradicional e conservadora, de que os militares se faziam
porta-vozes. Embora não houvesse no AI-5 nenhuma autorização legal para tortura, desaparecimento
forçado de pessoas ou assassinatos, tais práticas tornaram-se os métodos corriqueiros de trabalho
das forças de repressão.154 Na feliz expressão de Elio Gaspari, se até o AI-5 a ditadura era
“envergonhada”, depois dele ela se tornou “escancarada”.155
Com a edição do AI-5, desfez-se a expectativa de que a Constituição pudesse institucionalizar o
regime. Tornara-se claro que o governo militar só seguiria a Constituição se e quando isso lhe
conviesse. Quando não lhe interessasse cumpri-la, bastava editar um novo ato institucional. E, de
fato, seriam editados outros doze atos institucionais até a outorga da Constituição de 1969 — do AI-6
ao AI-17 —, impondo medidas diversas, como a mudança do número de Ministros do STF de 11
para 16 (AI-6) e a suspensão de eleições (AI-7).
Em agosto de 1969, o Presidente Costa e Silva sofre um derrame que o deixa paralisado. Era
necessário substituí-lo, mas os ministros militares não cogitavam em seguir as regras do jogo, que
indicavam a sua sucessão pelo Vice-Presidente Pedro Aleixo, que, além de civil, deixara de ser
confiável, ao votar contra a decretação do AI-5. A solução veio por meio da decretação do AI-12,
que investiu os Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica — respectivamente, Augusto
Rademaker, Aurélio Lyra Tavares e Márcio de Souza e Mello — na Chefia do Executivo, “enquanto
durar o impedimento temporário do Presidente da República” (art. 1º). Desfechava-se um verdadeiro
golpe dentro do golpe.156
Dias depois, a Junta Militar decretou outros dois truculentos atos institucionais: o AI-13,
possibilitando o banimento de brasileiro que se tornasse “inconveniente, nocivo ou perigoso à
Segurança Nacional”; e o AI-14, estendendo a possibilidade de aplicação da pena de morte à guerra
“psicológica adversa” (?), “revolucionária ou subversiva”.157 Em 14 de outubro de 1969, é editado o
AI-16, declarando a vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República e marcando
eleições indiretas para escolha dos sucessores para o dia 25 do mesmo mês. Até lá, a Junta Militar
continuou à frente do governo.
O Congresso, que estava de recesso desde a decretação do AI-5, foi convocado às pressas para
referendar o nome do General Emílio Garrastazu Médici — mais um da “linha dura” — que os
militares já haviam escolhido.158 Antes disso, porém, os três Ministros militares outorgaram, em 17
de outubro de 1969, a Constituição de 1969.

3.8 A Constituição de 1969


3.8.1 Outorga, natureza e principais inovações
A Constituição de 1969 foi outorgada pela Junta Militar que governava o Brasil, sob a forma de
emenda constitucional: era a Emenda Constitucional nº1. Invocou- se, como fundamento jurídico da
outorga, o AI-5 e o AI-16. O primeiro estabelecia, no seu art. 2º, §1º, que, enquanto o Congresso
estivesse em recesso, o Presidente poderia legislar sobre todas as matérias; e o segundo dispunha, no
seu art. 3º, que, até a posse do novo Presidente da República, a Chefia do Executivo seria exercida
pelos Ministros militares. Para justificar a medida, afirmou-se, nos consideranda da Carta
outorgada, que, tendo em vista os referidos atos institucionais, “a elaboração de emendas à
Constituição, compreendida no processo legislativo (art. 49, I), está na atribuição do Poder
Executivo Federal”.
Naqueles consideranda, foi inserida uma lista dos preceitos da Constituição de 1967 que “salvo
emendas de redação, continuam inalterados”. Em seguida, re produziu-se integralmente o novo texto
constitucional, já com todas as mudanças incorporadas, que foram inúmeras.159 Até o nome oficial do
país foi alterado, de “Brasil”, para o mais pomposo “República Federativa do Brasil”, que se
mantém até hoje.
Discute-se se o texto em questão consubstanciou nova Constituição, ou se, ao contrário,
representou simples emenda constitucional, como pareciam crer os seus autores. A segunda posição
foi sustentada por alguns juristas mais próximos ao regime militar, 160 mas a primeira é amplamente
majoritária em doutrina.161 Entendemos que não se tratou de simples emenda, mas de Constituição —
se é que merece esse nome uma norma editada de forma tão ilegítima.162 Isto não apenas pela
extensão das mudanças promovidas, como também pelo seu fundamento de validade. É que as
emendas, como emanação de um poder constituinte derivado, têm o seu fundamento na própria
Constituição que modificam. Porém, a assim chamada Emenda
nº 1 não foi outorgada com fundamento na Constituição de 1967, mas sim com base no suposto poder
constituinte originário da “Revolução vitoriosa”, que se corporificava, mas não se exauria, nos atos
institucionais editados pelos militares.
Seria enfadonho e desnecessário expor aqui o sistema e as principais instituições da Carta de
1969, que coincidem, no geral, com as da Constituição de 1967, explicadas no item anterior. Assim,
far-se-á apenas um breve registro das principais mudanças promovidas pela nova Carta, que
continha, quando da sua outorga, 201 artigos.163
Houve modificações importantes no que concerne ao funcionamento dos poderes. O mandato
presidencial foi ampliado de quatro para cinco anos (art. 75, §3º).164 O Vice-Presidente deixou de
cumular sua função com a de Presidente do Congresso, como ocorria na Constituição de 1967.
Doravante, o Congresso seria presidido pelo Presidente do Senado Federal. Os poderes
presidenciais foram reforçados, com a ampliação da competência do Presidente (art. 81, V), bem
como das hipóteses de sua iniciativa privativa no processo legislativo (art. 57, IV a VI). Na mesma
linha, aumentou-se o campo de incidência do decreto-lei, estabelecendo-se, ainda, que a sua rejeição
pelo Congresso não importava em nulidade dos atos praticados durante a sua vigência (art. 55, II e III
e Parágrafo único).
No âmbito do Legislativo, houve uma sensível redução do número de depu tados federais, com a
adoção de novos critérios adotados para definição do quanti tativo de parlamentares por Estado. As
variações do número de deputados por Es tado passaram a ser determinadas em razão da diferença
nos respectivos eleitorados, e não mais daquela entre o tamanho das populações (art. 39). A
diminuição na repre sentação também ocorreu nas Assembleias Legislativas, cujo número de
deputados estaduais passou a ser atrelado à representação do Estado na Câmara de Deputados (art.
13, §6º). Houve, também, restrição à imunidade parlamentar material, que passou a excluir os crimes
contra a honra ou contra a segurança nacional (art. 32): os militares não queriam passar de novo
pelos “dissabores” de outro caso como o do Deputado Moreira Alves. Instituiu-se, ainda, a hipótese
de perda de mandato por infidelidade partidária (art. 35, V).165
Quanto ao Judiciário, a Carta de 1969 fixou em onze o número de Ministros do STF (art. 118),
mantendo a redução que fora estabelecida pelo AI-6. O Ministério Público, que, na Constituição de
1967, estivera inserido no capítulo do Poder Judi ciário, passou a constar da parte que tratava do
Poder Executivo (arts. 94 a 96).
No campo dos direitos fundamentais, houve claros retrocessos. Autorizou-se o legislador a
condicionar o ingresso do cidadão em juízo à prévia exaustão das vias administrativas (art. 160,
§4º); criou-se nova restrição à liberdade de expressão, pela proibição de “publicações e
exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes” (art. 160, §8º); e incorporou-se à
Constituição a possibilidade, estabelecida no AI-14, de imposição de pena de morte em outros casos
além do de guerra externa (art. 160, §11). Ademais, ampliou-se o prazo máximo do estado de sítio,
afora casos de guerra, de 60 para 180 dias (art. 156), e diminuiu-se o quorum para o afastamento das
imunidades parlamentares durante o seu interregno, de 2/3 para maioria absoluta dos membros da
casa legislativa respectiva (art. 157, Parágrafo único).
Foi dificultado o processo de mudança da Constituição. Retirou-se o poder de iniciativa das
Assembleias Legislativas, e a iniciativa de deputados e senadores agora só poderia ser deflagrada
por 1/3 dos membros de cada casa (art. 47), e não por 1/4 deles, como ocorria na Constituição de
1967. Por outro lado, o quorum para aprovação das emendas foi elevado, de maioria absoluta para
2/3 em cada casa (art. 48).
A Carta de 1969 manteve expressamente o AI-5, bem como seus atos complementares (art. 182).
Porém, deixou entreaberta a porta de saída do regime de exceção, ao permitir que o Presidente,
ouvido o Conselho de Segurança Nacional, revogasse aquele malsinado Ato Institucional ou qualquer
dos seus dispositivos (art. 182, Parágrafo único). Embora, como regra, tenha-se previsto a realização
de eleições diretas para o cargo de Governador do Estado (art. 13 §2º), estabeleceu-se que seriam
indiretos os pleitos para aquele cargo que ocorreriam em 1970, sendo as Assembleias Legislativas
os colégios eleitorais (art. 189).

3.8.2 A Constituição de 1969 na vida nacional


É possível dividir em três momentos o período de vigência da Carta de 69: o primeiro, que
corresponde aos “anos de chumbo”, abrange o governo Médici; o segundo, em que se inicia um lento
processo de distensão do regime, ocorre durante os governos de Geisel e Figueiredo; e o terceiro,
que começa com a derrota da ARENA nas eleições indiretas para a Presidência da República e a
escolha de um Presidente civil, transcorre durante o governo de José Sarney, já finda a ditadura
militar. Neste subitem, serão examinados os dois primeiros momentos. O terceiro será analisado no
próximo capítulo, que versa sobre a elaboração da Constituição de 88.
Médici era um militar da “linha-dura”. Seu governo correspondeu ao auge da repressão durante a
ditadura. A tortura generalizou-se e saiu do controle até das lideranças do regime e da hierarquia
militar.166 A guerrilha foi derrotada 167 e os focos de oposição ao governo, quase completamente
asfixiados. Prosseguiu, implacável, a censura aos meios de comunicação e às artes. Em razão de uma
conjuntura externa favorável, o Brasil experimentou uma fase de grande crescimento da economia.
No entanto, tal crescimento não resultou em melhoria nas condições de vida da maior parte da
população brasileira. Era seguido o receituário conservador de “primeiro crescer o bolo, para
depois reparti-lo”. Como se sabe, a partilha do bolo não chegou a ocorrer. 168 Naquele período,
capitalizando o “milagre econômico” e a conquista do tricampeonato mundial na Copa do Mundo de
1970, o governo valeu-se intensamente de propaganda ufanista para estigmatizar os seus opositores,
sintetizada no lema Brasil: ame-o ou deixe-o.
Durante o governo Médici, a Constituição de 1969 seria emendada duas vezes. A primeira
alteração — chamada de Emenda nº 2 (a própria Constituição era tratada como Emenda nº 1) foi
promulgada em 9 de maio de 1972 e previa eleições indiretas para os governadores dos Estados em
1974. Já a Emenda nº 3, de 15 de junho de 1972, possibilitaria a posse de parlamentares federais nos
cargos de Ministro de Estado, Secretário de Estado ou Prefeito de Capital, sem perda dos
respectivos mandatos.
Em 15 de janeiro de 1974, o Colégio Eleitoral escolhe o General Ernesto Geisel para a
substituição de Médici.169 Diferentemente do seu antecessor, Geisel não era partidário da “linha-
dura”: no arco ideológico do regime militar, ele pertencia ao grupo moderado. 170 Geisel deu início a
um processo de abertura “lenta, gradual e segura” do regime. Em 1974, ocorreram eleições
parlamentares em clima de relativa liberdade e com ótimos resultados para a oposição, que venceu
no Senado, nas vagas que estavam em disputa, e perdeu por pouco na Câmara dos Deputados,
conseguindo formar bancada suficiente para barrar as propostas de emenda constitucional do
governo. No início de 1976, o Presidente entra em confronto com a linha-dura militar, depois de dois
casos emblemáticos de tortura e homicídio praticados pelas forças de repressão em São Paulo.171 Os
enfrentamentos com a linha-dura se estendem ao ano de 1977, quando Geisel demite o seu Ministro
do Exército, Silvio Frota, que planejava sucedê-lo, e chegou a tramar um golpe para derrubá-lo do
poder.
É certo que houve também recuos e retrocessos na distensão do regime. O processo de abertura
era feito de “sístoles e diástoles”, como afirmava uma das maiores lideranças do regime.172 Dentre as
“sístoles”, a mais séria foi o famigerado “Pacote de Abril”, imposto por Geisel em 1977.
Temendo novas derrotas eleitorais, e sem base parlamentar suficiente para aprovar reformas na
Constituição, o Presidente, em 1º de abril de 1977, invocando os poderes do AI-5, decreta o recesso
do Congresso Nacional, do qual se aproveita para editar unilateralmente as Emendas Constitucionais
nº 7 e nº 8. A Emenda nº 7 alterou diversos dispositivos constitucionais atinentes ao Poder
Judiciário. Dentre outras mudanças, criou a ação avocatória — que permitia ao STF, a pedido do
Procurador-Geral da República, avocar qualquer causa em trâmite no país, quando houvesse
“imediato risco de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas” (art. 119, I,
alínea “o”) — bem como o Conselho Nacional de Justiça, órgão composto por sete Ministros do
Supremo, com competência disciplinar sobre todo os órgãos judiciais (art. 120). Já a Emenda nº 8,
dentre outras medidas, perenizou as eleições indiretas para governadores de Estado (art. 13,
§2º);173 estabeleceu números mínimos e máximos de deputados federais por unidade federativa (art.
39, §2º), de modo a fortalecer a representação parlamentar dos Estados menos populosos, em que a
ARENA era mais forte; determinou que 1/3 dos senadores seriam eleitos indiretamente nos Estados
(art. 41, §2º);174 facilitou a aprovação de emenda à Constituição, reduzindo o quorum de 2/3 para a
maioria absoluta dos congressistas (art. 48); e ampliou a mandato presidencial, de cinco para seis
anos (art. 75, §3º) — norma que não se aplicaria ao próprio Presidente Geisel.
Apesar disso, o processo de abertura continuou. Naquele período, outro fenômeno extremamente
importante foi a reorganização da sociedade civil, que tinha no combate ao regime militar um ponto
de convergência.175 Instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ABI (Associação
Brasileira de Imprensa) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) intensificaram a sua
atividade reivindicatória em prol da democratização do país e do respeito aos direitos humanos.
Paralelamente a isto, surgia no Brasil um novo sindicalismo, muito mais combativo e independente
do que aquele que vicejara na Era Vargas. 176 Ele se articulou sobretudo na região do ABC paulista,
promovendo grandes greves nos anos de 1978 e 1979. Mas, na contramão de tal processo, e em
reação a ele, bolsões da direita radical nas Forças Armadas, insatisfeitos com a abertura, passaram a
promover atos terroristas a partir do final dos anos 70. Antes de encerrar o seu mandato, Ernesto
Geisel propôs e o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 11, revogando os atos
institucionais e complementares.177
O escolhido pelos militares para a sucessão de Geisel foi o General João Batista de Figueiredo,
que tomou posse em 15 de março de 1979.178 No seu mandato, ele deu continuidade ao processo de
abertura do país,179 aprovando a Lei de Anistia, que permitiu a volta ao país de centenas de pessoas
que haviam se exilado ou fugido para o exterior, dentre as quais os mais importantes líderes da
esquerda, bem como a libertação de inúmeros presos políticos.180 Na mesma época, foi aprovada a
Lei Orgânica dos Partidos Políticos, possibilitando a reorganização partidária sob bases mais
pluralistas e democráticas. Ela encerrou o bipartidarismo brasileiro, permitindo a formação de
alguns dos principais partidos que ainda hoje ocupam o cenário político nacional, como o PT, o
PMDB, o PDT e o PTB. Na base de sustentação do governo, a ARENA foi sucedida pelo PDS.
Durante o mandato de Figueiredo, intensificou-se o terrorismo de direita, com a explosão de
bombas e realização de sequestros. O incidente mais sério foi a tentativa de explosão de bomba no
Riocentro, em 30 de abril de 1981, durante um festival de música que contava com a presença de
milhares de pessoas. A bomba acabou explodindo no automóvel em que estavam os militares que a
transportavam, que foram as únicas vítimas do atentado frustrado. O governo permitiu que se
abafasse a apuração do caso, feita por meio de um inquérito farsesco instaurado pelo Exército, que
confirmou a absurda versão oficial dos fatos, isentando os militares de toda a responsabilidade no
episódio, e pondo a culpa na esquerda.181
Em 1980, fora editada a Emenda Constitucional nº 15, restabelecendo eleições diretas para o
cargo de Governador de Estado. Assim, em 1982 ocorreram eleições gerais, em que a oposição
ganhou o governo de nove Estados, dentre os quais São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e
ampliou bastante a sua representação no Congresso. No ano seguinte, se inicia o que talvez tenha sido
o maior movimento popular na história do país: a campanha pelas eleições presidenciais diretas. Em
1983, o Deputado Dante de Oliveira encabeçara proposta de emenda constitucional reinstituindo as
eleições diretas para a Presidência, já incidentes na sucessão do Presidente Figueiredo. A missão era
praticamente impossível, pois, desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 22/82, o quorum
necessário para aprovar mudanças na Constituição voltara a ser o de 2/3 dos membros de cada casa.
No entanto, houve uma imensa mobilização popular, liderada por políticos da oposição e artistas de
renome, que terminou em gigantescos comícios no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Em lamentável recaída autoritária, Figueiredo impôs estado de emergência em Brasília para
impedir manifestações populares no dia da votação. No dia 25 de abril, a emenda é derrotada na
Câmara dos Deputados: eram necessários 320 votos para aprová-la, num total de 479 congressistas,
mas ela só obteve 298. Apesar da derrota, houve um grande saldo positivo na campanha das Diretas
Já, no sentido de engajamento cívico da população e de fortalecimento da sociedade civil.
Plantaram-se ali algumas das sementes que germinariam, poucos anos depois, na Assembleia
Constituinte de 87/88.
As eleições presidenciais de 1985 foram mais uma vez indiretas, mas, daquela vez, os militares
não tiveram mais o controle sobre o processo. O PDS, que ainda tinha maioria no Colégio Eleitoral,
em disputada convenção realizada num ambiente de intensos conflitos internos, escolheu como
candidato o Deputado Paulo Maluf, sobre o qual pesavam graves acusações de corrupção e
improbidade. As oposições lançam o nome de Tancredo Neves, político mineiro experiente e
moderado. No PDS, houve uma importante defecção. Um expressivo número de políticos do partido
não aceitara a candidatura de Maluf, criando a Frente Liberal — que mais tarde daria origem ao PFL
—, a qual passou a apoiar o nome de Tancredo nas eleições indiretas, fornecendo-lhe o candidato a
Vice-Presidente: o maranhense José Sarney. Apesar das eleições serem indiretas, houve grande
pressão popular em favor da candidatura de Tancredo. Em 15 de janeiro de 1985, reuniu-se o
Colégio Eleitoral, e o resultado foi uma arrasadora vitória da chapa encabeçada por Tancredo
Neves, que recebeu 480 votos, contra 180 dados a Maluf.
Em trágica fatalidade, Tancredo Neves adoeceu gravemente, vindo a falecer antes de tomar posse.
Em contexto de grande comoção popular pela perda, a Presidência foi assumida por José Sarney.
Figueiredo, contrariado, resolve não transmitir o cargo para o sucessor e, literalmente, sai do
governo pela porta dos fundos do Palácio do Planalto. Terminava melancolicamente o regime militar.
1 Há controvérsia sobre se o documento de 1969 consubstanciou nova constituição ou mera alteração à Carta de 1967, como será analisado a seguir. A posição que
sustentamos é a de que se tratou de uma nova cons tituição. Veja-se, a propósito, o item 3.8 deste capítulo.
2 Cf. COM PARATO, Fábio Konder. Prefácio. In: FAORO, Raymundo. A República inacabada, p. 19.
3 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 4. ed., p. 7-9.
4 Como registraram Paulo Bonavides e Paes de Andrade, “o problema constitucional do Brasil (...) passa por uma enorme contradição entre a constituição formal e a
constituição material” (História constitucional do Brasil, p. 9).
5 Cf. CARVALHO, José M urilo de. A cidadania no Brasil: um longo caminho, p. 19. Boris Fausto apresenta nú meros um pouco diversos: sem fazer alusão aos índios,
fala em cerca de 3.600.000 pessoas, dentre os quais cerca de 1.100.000 escravos (História do Brasil, p. 137).
6 Cf. BONAVIDES, Paulo. A Constituição do Império e as nascentes do constitucionalismo brasileiro. In: BONAVIDES, Paulo et al. As constituições brasileiras:
notícia, história e análise crítica, p. 9-11.
7 Cf. GOM ES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enga naram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do
Brasil; e IGLESIAS, Francisco. Trajetória política do Brasil 1500-1964, p. 97-105.
8 Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 268-272.
9 O Brasil elegeu uma bancada de aproximadamente 70 deputados para as Cortes, dos quais apenas 50 exer ceram de fato os seus mandatos. De Portugal, participaram
130 deputados.
10 Cf. CERQUEIRA, M arcelo. A Constituição na história: origem e reforma, p. 251-254.
11 No cenário político brasileiro da época, havia três grupos principais. Um era conhecido como “partido” por tuguês, formado basicamente por comerciantes ligados
aos monopólios portugueses, pugnava pela manu tenção dos laços com Portugal e o retorno ao regime colonial. Outro era o “partido” brasileiro, em que predo
minavam proprietários rurais e elementos que se beneficiavam da autonomia adquirida pelo país e do comércio exterior. Havia, ainda, um grupo “radical”, composto
sobretudo por profissionais urbanos, como jornalistas, médicos, professores e padres, que postulava a implantação de um regime republicano no país. Cf. LOPEZ,
Adriana; M OTA, Carlos Guilherme. História do Brasil: uma interpretação, p. 332.
12 Nas palavras de Emília Viotti da Costa, a convocação da Assembleia Constituinte antes do 7 de setembro, “não era ainda uma proclamação formal de Independência,
pois o texto da convocação ressalvava a união com ‘a grande família portuguesa’, na realidade difícil de ser mantida depois de todos os atos de desrespeito às ordens
das Cortes” (Da Monarquia à República: momentos decisivos, p. 53).
13 De acordo com Raymundo Faoro, a expressão fora copiada literalmente do preâmbulo da Constituição francesa de 1814, outorgada por Luís XVIII, na tentativa de
restabelecer a tradição monárquica do país (Os donos do poder, p. 288).
14 De acordo com Caio Prado Jr., o projeto de 1823 correspondia plenamente aos anseios da classe hegemônica, representada pelos proprietários rurais. O caráter
conservador do liberalismo esposado pelo projeto se re vela na sua opção pelo voto censitário bem como no reconhecimento dos contratos (?!) entre senhores e
escravos. Cf. PRADO JUNIOR, Caio. Evolução política do Brasil: colônia e império, p. 57.
15 Compunham a comissão Antônio Carlos de Andrada, Antônio Luiz Pereira da Cunha, Pedro de Araújo Lima, José Ricardo da Costa Aguiar, M anuel Ferreira
Câmara, Francisco M oniz Tavares e José Bonifácio de Andrada e Silva.
16 Cf. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 75.
17 Nas palavras de Francisco Iglesias, “De posse do documento [o projeto de Constituição], o governo adotou forma inteligente para disfarçar a outorga. Remeteu
cópias às municipalidades, com o pedido de sugestões. Poucas atenderam; a matéria era complexa e as Câmaras, em sua quase totalidade, não tinham quem pudesse
ler, estudar ou sugerir algo” (Trajetória política do Brasil 1500-1964, p. 138).
18 CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Voto sobre o Juramento do Projeto de Constituição Oferecido por Pedro II. In: M ELLO, Evaldo Cabral de
(Org.). Caneca Frei Joaquim do Amor Divino, p. 566.
19 Cf. CAETANO, M arcello. Direito constitucional, 2. ed., p. 500.
20 Afonso Arinos de M ello Franco sustenta que a aprovação do Ato Adicional de 1834 pela Câmara dos Depu tados retirou da Carta de 1824 o seu caráter de texto
outorgado (Direito constitucional: teoria da Cons tituição: as Constituições do Brasil, p. 119). Não concordamos com esta interpretação, seja porque não houve na
ocasião deliberação parlamentar sobre todo o texto da Constituição, seja porque a aprovação de mudança superveniente não tem o condão de legitimar o texto
originário da Carta.
21 Aconselhava M ontesquieu que o Poder Legislativo fosse formado por duas casas distintas e independentes entre si, na qual uma estivesse voltada para a
representação do povo, e a outra para a representação do corpo de “pessoas dignificadas pelo nascimento, pelas riquezas ou pelas honrarias”. Esta formação do
corpo legislativo levaria a moderação do poder, pois “sendo composto por duas partes, uma paralisará a outra por sua mútua faculdade de impedir” (O espírito das
leis, p. 123).
22 A Constituição não condicionou o direito de voto à alfabetização, mas, entre 1824 e 1842, a legislação exigia que a cédula eleitoral fosse assinada, o que limitou na
prática o voto dos analfabetos. Porém, entre 1842 e 1881, os analfabetos puderam votar livremente. Cf. NICOLAU, Jairo M arconi. A história do voto no Brasil, p.
11.
23 Cf. LYNCH, Christian Edward Cyrill. A voz do Leviatã pela boca de Behemoth: o estado de exceção, o poder moderador e o controle normativo de
constitucionalidade como meios de expressão da unidade da soberania popular. In: M ACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de (Org.). Direito e política: Anais do
II Con gresso Brasileiro.
24 Cf. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 96.
25 Nas palavras do autor francês, “o vício de quase todas as Constituições foi não ter criado um poder neutro, mas ter posto num dos poderes ativos a soma total da
autoridade de que tal poder deve ser investido. Quando esta soma de autoridade viu-se reunida ao poder legislativo (...) houve uma arbitrariedade e tirania sem fim
(...). Quando a mesma soma de autoridade se viu reunida no poder executivo, houve despotismo” (CONSTANT, Benjamin. Princípios de Política. In:
CONSTANT, Benjamin. Escritos sobre a política, p. 20).
26 Nas palavras de José Antônio Pimenta Bueno, o Poder M oderador “é a suprema inspeção da Nação, é o alto direito que ela tem e que não pode exercer por si
mesma, de examinar o como os diversos poderes políticos, que ela criou ou confiou a seus mandatários são exercidos. É a faculdade que ela possui de fazer com que
cada um deles se conserve em sua órbita, e concorra harmoniosamente com outros para o fim social, o bem-estar nacional: é quem mantém seu equilíbrio, impede
seus abusos, conserva-os na direção de sua alta missão; é enfim a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente de todas as instituições
fundamentais da nação” (Direito público brasileiro e a análise da Constituição do Império. In: KUGELM AS, Eduardo (Org.). José Antônio Pimenta Bueno,
Marquês de São Vicente, p. 280). Ainda de acordo com o jurista, “os ministros de Estado não são agentes, nem intervêm no exercício deste último poder [o
M oderador] (...) assinando tais atos seu nome não aparece senão para autenticar o reconhecimento, a veracidade da firma imperial, não são pois responsáveis por
eles” (p. 292).
27 CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Voto sobre o Juramento do Projeto de Constituição Oferecido por Pedro II. In: M ELLO, Evaldo Cabral de
(Org.). Caneca Frei Joaquim do Amor Divino, p. 561.
28 Segundo Zacarias de Góes e Vasconcelos, “diz o bom senso que declarar (em país livre) irresponsável uma pessoa, a quem se confiam tão transcendentes funções,
implicaria grave absurdo, se a sua inviolabilidade não fosse protegida pela responsabilidade de funcionários, sem os quais nada se pudesse levar a efeito” (Da
natureza e limites do poder moderador. In: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (Org.). Zacarias de Góes e Vasconcelos, p. 78).
29 Cf. CARVALHO, José M urilo de. Federalismo e centralização no império brasileiro: história e argumento. In: CARVALHO, José M urilo de. Pontos e bordados:
ensaios de história e política, p. 155-188.
30 A expressão é de BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 100.
31 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 9-12; e COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos
decisivos, p. 61.
32 A semi-rigidez também era uma ideia colhida da obra de Benjamin Constant. Aliás, o art. 178 da Carta foi praticamente copiado de texto do pensador francês, para
quem, “tudo o que não se refere aos limites e às atribuições respectivas dos poderes, aos direitos políticos e aos direitos individuais não faz parte da Cons tituição,
mas pode ser modificado pelo concurso do rei e das duas câmaras” (Princípios de Política. In: CONSTANT, Benjamin. Escritos sobre a política, p. 295).
33 Cf. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 109-119.
34 Cf. FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 179-180.
35 Como observou com ironia um observador privilegiado deste processo — o Senador Nabuco de Araújo —, “o Poder M oderador chama quem quer para organizar o
ministério; o ministério faz a eleição; a eleição faz a maioria. Eis aqui o sistema representativo em nosso país” (apud GRAHAM , Richard. Clientelismo e política no
Brasil do século XIX, p. 114).
36 Cf. M OTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros, p. 23-44.
37 Cf. SCHWARTZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: SCHWARTZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, p. 11-31.
38 Sobre esta herança, consulte-se a obra clássica de FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 1-240.
39 NABUCO, Joaquim. Minha formação, p. 49.
40 A “questão religiosa” ocorreu durante a década de 1870 e foi deflagrada quando bispos da Igreja Católica começaram a excluir maçons de suas dioceses e a interditar
templos dirigidos por padres ligados à maço naria. A maçonaria tinha forte influência no governo — o Presidente do Conselho de M inistros à época era o Visconde
do Rio Branco, um grão-mestre maçom. D. Pedro II mandou prender os bispos, que tendo em vista o regime do padroado então vigente, eram considerados agentes
do Estado. O fato gerou reações até do Papa Pio IX, que defendia a supremacia da Igreja sobre o “poder temporal”. Porém, em 1875 foi dada ao caso uma solução
que atendeu aos interesses da Igreja: os bispos punidos foram anistiados e caiu o gabinete do Visconde de Rio Branco.
41 A “questão militar” dizia respeito a diversos acontecimentos ocorridos na década de 1880, que geraram tensões entre o Exército brasileiro e políticos monarquistas,
especialmente aqueles ligados ao Partido Conservador. O seu estopim foi a punição do coronel Antônio de Sena M adureira, por defender publicamente a abolição
da escravidão, haja vista a proibição de que os militares se manifestassem sobre questões políticas. As reações contra essa e outras punições infligidas a militares do
Exército geraram na Força grande unidade e acirrou sentimentos negativos contra a monarquia e o poder civil, que já vinham se disseminando desde o fim da Guerra
do Paraguai.
42 Ocorreu em 1870, por exemplo, o lançamento do importante M anifesto Republicano, que teve Quintino Bocaiúva como principal redator.
43 José M urilo de Carvalho noticia que, logo após a proclamação, iniciou-se uma disputa historiográfica, mas revestida de claro conteúdo político, sobre quem teria sido
o protagonista daquele processo, na qual havia três grupos: uma corrente ligada à velha-guarda militar, que apontava a liderança de Deodoro; outra, próxima dos
positivistas, militares ou não, que destacava o papel de Benjamim Constant (não o filósofo francês, mas o militar e professor brasileiro); e a terceira, relacionada aos
civis liberais, que sustentava a liderança de Quintino Bocaiúva. Cf. CARVALHO, José M urilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, p.
35-54.
44 Cf. CARVALHO, José M urilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. Inclusive, passou à história a insuspeita afirmação do republicano
histórico e integrante do Governo Provisório, Aristides Lobo, sobre a proclamação da República: “O povo assistiu a tudo aquilo bestializado, atônito, surpreso,
sem conhecer o que significava. M uitos acreditavam, sinceramente, estar vendo uma parada”.
45 Esta parece ser a posição de BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 13.
46 Cf. CERQUEIRA, M arcelo. A Constituição na história: origem e reforma, p. 301-302; e COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos, p.
449-492.
47 Cf. IGLESIAS, Francisco. Trajetória política do Brasil 1500-1964, p. 199.
48 Cf. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 224-225; e FRANCO, Afonso Arinos de M ello. Curso de direito
constitucional brasileiro, p. 130.
49 Cf. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 226-227; LYNCH, Christian Edward Cyril; SOUZA NETO, Cláudio Pereira
de. O constitucionalismo da inefetividade: a Constituição de 1891 no cativeiro do Estado de Sítio. In: ROCHA, Cléa Carpi da (Org.). As Constituições brasileiras:
notícia, história e análise crítica, p. 35-42.
50 Tornou-se conhecida a crítica de Ruy aos excessos dos ultrafederalistas, que, durante a constituinte, queriam implantar no Brasil uma federação ainda mais
descentralizada que a norte-americana: “Ontem, de federação, não tínhamos nada. Hoje, não há federação que nos baste” (BARBOSA, Ruy. O habeas-corpus. In:
BARRETO, Vicente (Org.). O liberalismo e a Constituição: textos selecionados de Ruy Barbosa, p. 188).
51 A expressão é de Oliveira Vianna, em obra clássica, em que critica a inadaptação das Constituições brasileiras de 1824 e de 1891 à realidade e cultura brasileira. Cf.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. O idealismo na Constituição.
52 Contudo, os positivistas obtiveram outras vitórias importantes no nascimento da República, como na escolha da bandeira brasileira, desenhada por Décio Villares e
adotada por Decreto do Governo Provisório de 19 de novembro de 1889, contendo o polêmico mote de Augusto Comte — “Ordem e Progresso”. Veja-se, a
propósito, CARVALHO, José M urilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, p. 109-128.
53 O propósito evidente era de desprestigiar a Corte, mas as nomeações não foram aprovadas pelo Senado. Veja-se, a propósito, COSTA, Emília Viotti. O Supremo
Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 32.
54 BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira: colligidos e ordenados por Homero Pires, v. 1, p. 133.
55 Cf. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto, p. 225.
56 A obra histórica de referência sobre a doutrina brasileira do habeas corpus é de RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal.
57 Cf. BARBOSA, Ruy. O habeas-corpus. In: BARRETO, Vicente (Org.). O liberalismo e a Constituição: textos sele cionados de Ruy Barbosa, p. 134-138.
58 Ao julgar habeas corpus em que o então senador Ruy Barbosa era simultaneamente autor e paciente, decidiu o STF, por exemplo, que “as imunidades parlamentares
estabelecidas no art. 19 da Constituição da República, asseguram ao senador da República, publicar os seus discursos proferidos no Parlamento pela imprensa,
onde, quando e como lhe convier” (HC nº 3.536, Rel. M in. Oliveira Ribeiro. Julg. 6.5.1914).
59 Eles não compunham a mesma chapa, o que era possível no regime da Constituição de 1891, e representavam segmentos diferentes das Forças Armadas: Deodoro, a
velha-guarda, e Floriano, os jovens militares radicais e positivistas.
60 A tese de Floriano Peixoto era de que, no primeiro mandato presidencial, não incidiria a regra geral, prevista no art. 42 da Constituição, mas sim o estabelecido no art.
1º, §2º, das Disposições Transitórias, segundo o qual “o Presidente e o Vice-Presidente, eleitos, na forma deste artigo, ocuparão a Presidência e a Vice-Presidência
durante o primeiro período presidencial”.
61 Cf. VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política, p. 74. Conta-se, ainda, que rea gindo diante de habeas corpus concedido pela Corte,
Floriano teria ameaçado: “eles concedam a ordem, mas depois procurem saber quem dará habeas corpus aos ministros do Supremo Tribunal Federal”. Cf.
SAM PAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional, p. 356.
62 Na síntese de Francisco Iglesias, “o Presidente da República estabelece acordos com os presidentes dos Es tados (...) de modo a obter total apoio de todos os seus
atos: os presidentes dos estados apoiariam o da República, bem como levariam os deputados obedientes às suas ordens (e então havia quase unanimidade entre
Executivo e a representação parlamentar de cada unidade federativa, pois havia praticamente um só partido). Em troca desse apoio, que garantia ao governo livre
ação, o presidente da República apoiava toda a política dos Estados, o que significava sobretudo a nomeação dos funcionários em cada local feita por indicação dos
chefes regionais: Justiça, polícia, escola e mais atividades eram assim escolhas de gente de confiança absoluta do presidente de estado. Este, por sua vez, compunha-
se com os chefes municipais, usando o mesmo artifício: apoio irrestrito em troca de apoio, ou melhor, favores” (Trajetória política do Brasil 1500-1964, p. 208).
63 Sobre o coronelismo, veja-se a obra clássica de LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil.
64 Cf. CARVALHO, José M urilo de. A cidadania no Brasil: um longo caminho, p. 56-57.
65 FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 628.
66 A expressão é de Christian Edward Lynch e Cláudio Pereira de Souza Neto (O constitucionalismo da ine fe tividade: a Constituição de 1891 no cativeiro do estado
de sítio. In: ROCHA, Cléa Carpi da (Org.). As Cons tituições brasileiras: notícia, história e análise crítica, p. 47).
67 LYNCH, Christian Edward Cyril; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O constitucionalismo da inefetividade: a Constituição de 1891 no cativeiro do estado de
sítio. In: ROCHA, Cléa Carpi da (Org.). As Constituições brasileiras: notícia, história e análise crítica, p. 47.
68 É conhecida — e provavelmente exagerada — a crítica de João M angabeira ao STF: “O órgão que, desde 1892 até 1937, mais falhou à República, não foi o Congresso
Nacional. Foi o Supremo Tribunal. (...) O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do
Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de terror, quando exa tamente mais necessitada estava ela da lealdade, da
fidelidade e da coragem dos seus defensores” (Ruy: o estadista da República, p. 70).
69 Para Afonso Arinos de M ello Franco, este Decreto foi “uma Constituição Provisória, e como tal deve ser encarado pela História de nosso Direito Constitucional”
(Curso de direito constitucional, p. 172).
70 Cf. PORTO, Walter Costa. O voto no Brasil: da Colônia à 6ª República, p. 260.
71 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição de democracia de massas no Brasil: instabilidade constitucional e direitos sociais na Era Vargas. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de; SARM ENTO, Daniel (Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicicialização e direitos sociais em espécie, p. 32.
72 Sobre os debates constitucionais na República de Weimar, veja-se: JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (Ed.). Weimar: a jurisprudence of crisis;
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção per manente: atualidade de Weimar.
73 Sobre a influência da Constituição de Weimar sobre a Constituição brasileira de 1934, veja-se: GUEDES, M arco Aurélio Peri. Estado e ordem econômica e social: a
experiência constitucional da República de Weimar e a Constituição brasileira de 1934.
74 O ato final da derrocada da Constituição de Weimar deu-se com a aprovação pelo Parlamento do Ato de Habi litação, em 1933, que conferiu ao governo — leia-se, a
Hitler — o poder de alterar unilateralmente a Constituição como lhe conviesse.
75 Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 27-31.
76 Cf. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 277.
77 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 290.
78 A representação profissional foi um dos temas mais debatidos durante a Assembleia Constituinte. Tratava-se de uma bandeira do tenentismo, inspirada na
experiência corporativista de vários países europeus, que não era aceita pelos nossos liberais. A ideia não foi acolhida pela Comissão Itamaraty, mas acabou
abraçada durante a Constituinte. É praticamente consensual que a representação profissional funcionou muito mal no país, no reduzido espaço de tempo em que foi
adotada, dentre outras razões pela manipulação gover namental nas escolhas dos representantes. Sobre o tema, cf. TAVARES, Ana Lucia Lyra. A Constituição de
1934 e a representação profissional.
79 O Governo Provisório, desde 1931, já havia reduzido o número de M inistros de 16 para 11. Na época, Getúlio Vargas aposentou compulsoriamente 6 M inistros,
nomeando outros dois para a Corte. Cf. COSTA, Emília Viotti. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 70.
80 Cf. M ENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, p. 176-178.
81 Aqui também foi marcante a influência da Constituição de Weimar, que consagrou a célebre fórmula de se gundo a qual “a propriedade obriga e o seu uso e exercício
devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social” (art. 153).
82 A afirmação deve ser temperada. Não há dúvida que as constituições anteriores também incidiam sobre a economia, quando, por exemplo, asseguravam o direito de
propriedade. A novidade da Constituição de 1934 estava em dedicar-se explicitamente ao tema, consagrando um extenso título sobre a “Ordem Econômica e
Social”, que continha diversos preceitos disciplinando a economia e buscando de alguma maneira dirigir o mercado, para fins de promoção de finalidades
predeterminadas politicamente.
83 A rigor, em matéria econômica a Constituição basicamente absorveu mudanças que já haviam sido decretadas durante o Governo Provisório. Cf. BERCOVICI,
Gilberto. Tentativa de instituição de democracia de massas no Brasil: instabilidade constitucional e direitos sociais na Era Vargas. In: SOUZA NETO, Cláudio
Pereira de; SARM ENTO, Daniel (Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie, p. 32.
84 Cf. M OTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros, p. 66.
85 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 21.
86 De acordo com M arcelo Cerqueira, naquele momento “a oposição foi calada pelo arbítrio e senadores e de putados presos e desconsideradas as suas imunidades
parlamentares” (Cartas constitucionais: Império, República e autoritarismo, p. 66).
87 Cf. CAETANO, M arcello. Direito constitucional, 2. ed., p. 563.
88 A tônica fascista do pensamento constitucional de Francisco Campos está muito clara em discurso que proferiu em 1935, intitulado “A Política e Nosso Tempo”,
como se percebe no seguinte trecho: “As massas encontram-se sob a fascinação da personalidade carismática. Esta é o centro da integração política. Quanto mais
volumosas e ativas as massas, tanto mais a integração política só se torna possível mediante o ditado de uma vontade pessoal. O regime político das massas é a
ditadura. A única forma natural de expressão da vontade das massas é o plebiscito, isto é, o voto-aclamação, apelo, antes do que escolha. Não o voto demo crático,
expressão relativista e cética de preferência, de simpatia, do pode ser que sim pode ser que não, mas a forma unívoca, que não admite alternativas, e que traduz a
atitude da vontade mobilizada para a guerra. (...) Há uma relação de contraponto entre a massa e César. (...) Essa relação entre o cesarismo e a vida, no quadro das
massas, é, hoje, fenômeno comum. Não há, a estas horas, país que não esteja à procura de um homem, isto é, de um líder carismático ou marcado pelo destino para
dar às aspirações da massa uma ex pressão simbólica, imprimindo a unidade de uma vontade dura e poderosa ao caos de angústia e de medo que compõe
o pathos ou a demonia das representações coletivas. Não há hoje um povo que não clame por um César” (CAM POS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura,
seu conteúdo ideológico).
89 Na linguagem coloquial, muitas vezes se confunde o autoritarismo com o totalitarismo, que, contudo, são fenômenos diversos. Como esclareceu Karl Loewenstein —
ao que consta, o precursor desta distinção, ela borada exatamente em estudo sobre a Era Vargas citado na nota abaixo — o Estado autoritário é “uma organização
política na qual o único detentor do poder — uma só pessoa, uma assembléia, um comitê, uma junta ou um partido — monopoliza o poder político sem que seja
possível aos destinatários do poder uma participação real na formação da vontade estatal (...).O termo autoritário se refere mais à estrutura governamental que à
ordem social”. Já o termo totalitário “faz referência a toda ordem socio-econômica e moral da dinâmica estatal; o conceito, portanto, aponta mais a uma
conformação da vida do que ao aparato governamental” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, p. 76, 78). A ditadura Vargas foi um caso típico de
Estado autoritário, mas não de totalitarismo, já que não tinha a pretensão de conformar integralmente a vida das pessoas, ao contrário de regimes como o nazista e o
stalinista, que se qualificam como totalitários. Sobre o totalitarismo, veja-se a obra clássica de ARENDT, Hannah. The origins of totalitarianism.
90 No mesmo sentido, LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas, p. 37-38.
91 Cf. FRANCO, Afonso Arinos de M ello. Curso de direito constitucional brasileiro, p. 208-209; M ARTINS, Waldemar Ferreira. História do direito constitucional
brasileiro, p. 108-109; CERQUEIRA, M arcelo. Cartas cons titu cionais: Império, República e autoritarismo, p. 79.
92 Apud M ARTINS, Waldemar Ferreira. História do direito constitucional brasileiro, p. 109.
93 M arcelo Cerqueira realizou comparação sistemática entre a Carta de 1937 e a Constituição polonesa de 1935 em seu livro Cartas constitucionais: Império, República
e autoritarismo, p. 71-77.
94 Cf. SILVA, José Afonso da. A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1937. In: BONAVIDES, Paulo
et al. As Constituições brasileiras: notícia, história e análise crítica, p. 82-83; HORTA, Raul M achado. Autonomia do Estado no direito constitucional
brasileiro. In: HORTA, Raul M achado. Estudos de direito constitucional,
p. 498-502.
95 A Carta baixou a idade da aposentadoria compulsória dos juízes de 75 para 68 anos, o que acarretou a saída imediata de 5 ministros — Edmundo Lins, Presidente da
Corte, Hermenegildo Barros, Ataulfo de Paiva, Candido M ota e Carlos M aximiliano (cf. RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal,
p. 40-41) —, logo substituídos por Vargas, propiciando uma maioria confortável para o governo no âmbito do STF, que não ofereceu maior resistência diante dos
abusos perpetrados durante o Estado Novo.
96 Como o Legislativo esteve fechado durante o Estado Novo, o próprio Presidente chegou a editar um decreto-lei (DL nº 1.564/1939) cassando decisão do STF que
exercera o controle de constitucionalidade sobre outro decreto-lei do regime, invocando o art. 180 da Carta, que lhe permitia desempenhar as funções do Parlamento
enquanto esse não se reunisse. Houve protestos no STF, mas, naturalmente, a posição do governo prevaleceu. Cf. LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas, p.
115-120.
97 Cf. CAM POS, Francisco. Diretrizes do Estado Nacional. In: CAM POS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico, p. 39 et seq.
98 Cf. FRANCO, Afonso Arinos de M ello. Curso de direito constitucional brasileiro, p. 214. As linhas gerais desta importante norma foram analisadas por
LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas, p. 61-70.
99 O art. 177 permitia ao Governo, no prazo de 60 dias contados da data da Constituição, a aposentadoria ou reforma de servidores civis e militares, “no interesse do
serviço público ou por conveniência do regime”. Essa faculdade foi prorrogada, por tempo indeterminado, pela Lei Constitucional nº 2, de 16 de maio de 1938.
Havia ampla discussão doutrinária sobre a incidência desta norma sobre os juízes, tendo em vista a garantia constitucional da vitaliciedade da magistratura (art. 91,
alínea “a”), que foi sanada pela Lei Constitucional nº 8/42, que “esclareceu” a sua aplicabilidade também sobre os membros do Poder Judiciário.
100 Dois episódios marcantes, lembrados pela História e pela literatura nacional, foram a prisão arbitrária de Graciliano Ramos, considerado simpatizante do
comunismo, e a deportação de Olga Benário, ativista comu nista judia e companheira de Luís Carlos Prestes, entregue, grávida, aos nazistas, vindo a morrer em
campo de concentração. Veja-se a propósito, respectivamente, RAM OS, Graciliano. Memórias do cárcere; e M ORAIS, Fernando. Olga.
101 Os integralistas inicialmente apoiavam o governo Vargas. M as, depois da dissolução dos partidos e de per ceberem que não teriam espaço no governo, partiram
para o confronto. A repressão volta-se contra eles após um malsucedido atentado que promoveram em maio de 1938 contra a residência do Presidente da
República, que ficou conhecido como o “putsch integralista”.
102 Cf. D’ARAÚJO, M aria Celina. O Estado Novo, p. 34-38.
103 Saliente-se que os direitos sociais não nasceram no Brasil com a Revolução de 1930. Nas últimas duas décadas da República Velha, já haviam sido editadas no Brasil
as primeiras normas de proteção ao trabalhador e de previdência social. Porém, não há dúvida de que houve uma expansão e aprofundamento destes di reitos após a
Revolução. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição de democracia de massas no Brasil: instabilidade constitucional e direitos sociais na Era Vargas. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARM ENTO, Daniel (Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie, p. 48-49; GOM ES,
Ângela M aria de Castro. A invenção do trabalhismo no Brasil, p. 19-146.
104 Esta visão convencional das gerações dos direitos, em que primeiro surgem os individuais e políticos e depois os sociais foi desenvolvida em obra clássica de
M ARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. O trabalho de M arshall era sobre a Inglaterra, mas sua concepção passou a ser repetida como uma narrativa
universal, mesmo em contextos em que ela não retrata bem a realidade histórica, como o brasileiro.
105 Cf. CARVALHO, José M urilo de. A cidadania no Brasil: um longo caminho, p. 110-126; LUCA, Tânia Regina de. Direitos sociais no Brasil. In: PINSKY, Jayme;
PINSKY, Carla Bassanezi. História da cidadania, p. 469-493.
106 A ideia de “cidadania regulada” foi desenvolvida por SANTOS, Wanderlei Guilherme dos. Cidadania e jus tiça: a política social na ordem brasileira.
107 Sobre o sindicalismo no Estado Novo, veja-se: VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil,
p. 199-242.
108 Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 72-73.
109 Cf. M OTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros, p. 83.
110 A Lei Constitucional nº 12 revogou o art. 177 da Constituição, que dava ao governo o poder de aposentar ou reformar discricionariamente servidores civis ou
militares; a Lei Constitucional nº 14 extinguiu o Tribunal de Segurança Nacional; a Lei Constitucional nº 16 revogou o art. 186 da Carta, que declarara estado de
emergência por prazo indeterminado; e a Lei Constitucional nº 18 extinguiu a faculdade de cassação política das decisões dos tribunais no controle de
constitucionalidade.
111 Segundo Afonso Arinos de M ello Franco, entre 1946 e 1949, 16 países de fora das Américas editaram novas constituições. Em nosso continente, houve textos
novos ou mudanças substanciais entre 1945 e 1949 em outros 12. Estes 28 países representavam, à época, cerca de um terço das nações do mundo. Cf. FRANCO,
Afonso Arinos de M ello. Curso de direito constitucional brasileiro, v. 2, p. 223-224.
112 Cf. PORTO, Walter Costa. O voto no Brasil: da Colônia à 6ª República, p. 283.
113 Cf. COM PARATO, Fábio Konder. A Constituição brasileira de 1946: um interregno agitado entre dois autoritarismos. In: BONAVIDES, Paulo et al. As
Constituições brasileiras: notícia, história e análise crítica,
p. 101.
114 Cf. FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 399.
115 Este sistema foi objeto de intensa controvérsia política e jurídica no âmbito da Assembleia Constituinte. Veja-se, sobre os debates então travados, BONAVIDES,
Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, p. 369-380.
116 Cf. FRANCO, Afonso Arinos de M ello. Curso de direito constitucional brasileiro, p. 232-233.
117 Cf. FRANCO, Afonso Arinos de M ello. Curso de direito constitucional brasileiro, p. 234-235.
118 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 26-27.
119 Desde 1932, as mulheres tinham direito de voto, mas ele era obrigatório apenas para os homens e para mulheres que exercessem profissão pública remunerada. Com
a Constituição de 1946, o voto passa a ser obrigatório também para as mulheres.
120 Paradoxalmente, tal preceito, inserido no elenco dos direitos individuais, serviria de base para decisão do TSE, proferida em 1947, que colocaria o PCB de novo na
ilegalidade, cassando o mandato dos seus deputados.
121 Entendeu-se, na época, que fora recepcionado o Decreto-Lei nº 9.070/46, editado por Dutra, que vedada a greve numa extensa gama de atividades, consideradas
fundamentais, e ainda permitia que outras fossem assim consideradas por ato do M inistro do Trabalho. Cf. COM PARATO, Fábio Konder. A Constituição
brasileira de 1946: um interregno agitado entre dois autoritarismos. In: BONAVIDES, Paulo et al. As Cons tituições brasileiras: notícia, história e análise crítica, p.
102-103.
122 Cf. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil, p. 268.
123 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição de democracia de massas no Brasil: instabilidade cons titucional e direitos sociais na Era Vargas. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de; SARM ENTO, Daniel (Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicicialização e direitos sociais em espécie, p. 46-48; e COM PARATO,
Fábio Konder. A Constituição brasileira de 1946: um interregno agitado entre dois autoritarismos. In: BONAVIDES, Paulo et al. As Constituições brasileiras:
notícia, história e análise crítica, p. 105-107.
124 O principal incidente neste período foi o fechamento do PCB, decretado pelo TSE.
125 Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 110-180.
126 SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 188-198.
127 M andado de Segurança nº 3.557. O caso foi amplamente analisado em RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal, p. 165-235, t. IV,
onde se encontram reproduzidos todos os votos dos ministros do STF. Dentre estes, cabe destacar, pela defesa da Constituição, o voto do M inistro Ribeiro da
Costa, que concedera a ordem; bem como, pela visão realista sobre os limites da capacidade da Constituição formal para limitar os “fatores reais de poder”, o voto
do M inistro Nelson Hungria, que denegara o writ. Deste último, colhem-se os seguintes excertos: “Afastado o ‘manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da
verdade’, a resolução do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em que se acha o Sr. Café Filho, de reassumir a presidência da
República, em face da imposição dos tanques e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal (...).
Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contra-insurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo
Supremo Tribunal Federal, posto que esse não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar a insurreição. Aqui
está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dispõe da espada de Alexandre”.
128 A transferência da capital para o “planalto central da República” já estava prevista desde a Constituição de 1891 (art. 3º), sendo reiterada pela Constituição de 1934
(art. 4º das Disposição Transitórias), e determinada, mais uma vez, pela Constituição de 1946, no art. 4º do Ato das Disposições Transitórias. Cf. CAETANO,
M arcello. Direito constitucional, 2. ed., p. 584-585.
129 Foram os levantes de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959).
130 Especula-se que o seu objetivo era o de continuar como Presidente, assumindo novos poderes, fora das limitações impostas pela Constituição. De acordo com essa
tese, Jânio esperava com o apoio popular — que provavelmente superestimava —, bem como com o temor difundido entre as Forças Armadas e setores
importantes da opinião pública de um governo esquerdista do seu sucessor legal, o Vice-Presidente João Goulart.
131 Surgia aí, no ordenamento brasileiro, a figura da lei complementar, posteriormente regulada pelas Cons tituições de 1967, 1969 e 1988.
132 Houve uma indicação do Presidente recusada pela Câmara dos Deputados: o jurista Santiago Dantas, es colhido após a renúncia de Tancredo Neves.
133 Como assinalou Francisco Iglesias, não se deve enxergar no malogro desta breve experiência parlamentarista a sua inviabilidade no Brasil. Nas suas palavras, “a fase
parlamentarista não deve ser encarada como expe riência séria, pois resultou de um expediente para evitar guerra civil, não da convicção da superioridade do sistema
de tanto êxito em várias nações e aqui mesmo praticado durante o Império — um parlamentarismo que é antes um arremedo do verdadeiro sistema que se praticava
em outras nações” (Trajetória política do Brasil 1500-1964, p. 288).
134 Foram cerca de 2 milhões de votos a favor do parlamentarismo e quase 9,5 milhões pelo retorno do pre sidencialismo. Cf. PORTO, Walter Costa. O voto no Brasil:
da Colônia à 6ª República, 2. ed., p. 308.
135 Veja-se, sobre este período, GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada, p. 45-125.
136 Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 48.
137 De acordo com o art. 206 da Constituição de 1946, este poder era até então do Congresso, e a decretação do estado de sítio fazia-se por lei.
138 De acordo com Boris Fausto, foram atingidos 49 juízes, e cerca de 1.400 servidores civis e de 1.200 militares (História do Brasil, p. 467-468).
139 Cf. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada, p. 129-151.
140 Cf. FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 467.
141 Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 99.
142 Tal representação corresponde hoje à Ação Direta de Inconstitucionalidade. A sua introdução tornou o sistema de jurisdição constitucional brasileiro misto, pois
temos aqui, desde então, tanto o controle abstrato e concentrado, exercitado pelo STF sobre as normas em tese, como o controle difuso e concreto, à disposição de
qualquer juiz e tribunal no exame das lides a eles submetidas. Pode parecer paradoxal que um governo de exceção tenha querido instituir novo mecanismo de
controle de constitucionalidade, que, afinal, representa instrumento de fiscalização do respeito aos limites do exercício do poder político. M as não havia paradoxo
algum. É que “o diabo morava nos detalhes”: a representação de inconstitucionalidade só podia ser promovida pelo Procurador Geral da República, que, à época,
era funcionário de confiança, escolhido e exonerado livremente pelo Presidente. Assim, não havia qualquer risco de que as suas ações viessem a contrariar os
interesses do regime. Por outro lado, como as decisões na representação de inconstitucionalidade possuíam eficácia erga omnes, tal ação, na prática, diminuía os
poderes dos juízes e tribunais ordinários na jurisdição constitucional, transferindo-os para o STF, que, pela sua composição política, era tido como mais confiável
pelo governo. Além disso, pela representação era possível o controle dos atos normativos dos Estados, que podiam eventualmente ser governados pela oposição.
143 Como ressaltou M arcelo Cerqueira, o procedimento previsto continha uma óbvia inversão, já que “primeiro, o projeto seria aprovado em globo; e segundo, as
emendas seria então discutidas” (A Constituição na história: origem e reforma, p. 359). Evidentemente, a inversão não fora inocente. Por meio dela, seria possível,
se houvesse algum atraso na análise das emendas, promulgar como Constituição o texto intacto do projeto do governo, e ainda alegar que ele fora aprovado pelo
Congresso.
144 A explicação oficial dada à exiguidade desde prazo era o fato de que Castelo Branco, cujo mandato encerrar-se-ia em 15 de março de 1967, queria transmitir o cargo
ao seu sucessor eleito, Costa e Silva, já com a nova Constituição aprovada.
145 Nas palavras de Paulo Bonavides e Paes de Andrade, “não houve propriamente uma tarefa constituinte, mas uma farsa constituinte” (História constitucional do
Brasil, p. 432).
146 Cf. CERQUEIRA, M arcelo. A Constituição na história: origem e reforma, p. 359.
147 Cf. PORTO, Walter Costa. O voto no Brasil: da Colônia à 6ª República, p. 314.
148 O General Arthur da Costa e Silva foi eleito em 3 de outubro de 1966 pelo Congresso Nacional, em eleição com chapa única, e o seu candidato a Vice era o
Deputado Pedro Aleixo. O M DB resolvera não participar do processo, para não lhe emprestar legitimidade.
149 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 36.
150 Cf. CAVALCANTI; Themístocles Brandão; BRITO, Luiz Navarro de; BALEEIRO, Aliomar. Constituição bra sileira: 1967, p. 50.
151 Anteriormente, já tinha havido um foco de resistência armada no campo, na Serra do Caparaó, em 1966, que fora desbaratado pelo Exército em janeiro de 1967.
152 A autorização era necessária em razão da imunidade formal conferida aos parlamentares pelo art. 34, §1º, da Constituição de 1967.
153 Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 160-167.
154 Sobre a tortura no regime militar, veja-se o dossiê: ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais.
155 A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada são os títulos dos dois primeiros volumes da série de cinco livros intitulada As Ilusões Armadas, em que Elio
Gaspari cobre o período que vai das vésperas do golpe militar até a posse do Presidente João Batista de Figueiredo, em março de 1979. Na abertura do volume A
Ditadura Escancarada, registra o autor: “Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da
repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade. A ditadura envergonhada foi substituída por um regime a um só tempo anárquico
nos quartéis e violento nas prisões. Foram os Anos de Chumbo” (GASPARI, Elio. A ditadura escancarada,
p. 13).
156 Cf. BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição brasileira de 1988: o Estado a que chegamos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARM ENTO,
Daniel; BINENBOJM , Gustavo (Org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988, p. 30.
157 O AI-13 e o AI-14 foram editados no contexto da reação dos militares contra o sequestro do Embaixador norte-americano Charles Elbrick, realizado no Rio de
Janeiro, por militantes da ALN e do M R-8, em que se obteve sua troca por quinze presos políticos. Os primeiros banidos foram, exatamente, esses prisioneiros
trocados pelo Embaixador. Já a pena de morte, prevista no AI-14, nunca chegou a ser aplicada. As forças da ditadura preferiam matar suas vítimas
“informalmente”, em execuções sumárias ou em sessões de tortura.
158 Fora disputada nos bastidores militares a escolha do novo Presidente, provocando algumas tensões. Daí a edição do AI-17, dando ao Presidente o poder de
“transferir para a reserva, por período determinado, os militares que hajam atentado, ou venham a atentar, comprovadamente, contra a coesão das Forças Armadas,
divorciando-se, por motivos de caráter conjuntural ou objetivos políticos de ordem pessoal ou de grupo, dos princípios basilares e das finalidades precípuas de sua
destinação constitucional” (art. 1º). Veja-se, a propósito: SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 197-203.
159 De acordo com Paulino Jacques, o novo texto realizara “cerca de 120 modificações de fundo e 180 de forma na Constituição de 1967” (A Constituição explicada, p.
23).
160 Veja-se, por exemplo: FERREIRA FILHO, M anoel Gonçalves. O poder constituinte, p. 72-74.
161 Nas palavras de José Afonso da Silva, “Teórica e tecnicamente, não se trata de emenda, mas de nova constituição. A emenda só serviu como mecanismo de outorga,
uma vez que, verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado” (Curso de direito constitucional positivo, 5. ed., p. 78). Na mesma linha, M ELLO
FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada, p. 12.
162 Veja-se, sobre este debate, o Capítulo 6, que trata do Poder Constituinte.
163 Ao longo do tempo, outros foram sendo acrescentados à Carta de 69, de modo que, por ocasião da sua revogação pela Constituição de 1988, ela continha 217
artigos.
164 Em 1977, a Emenda Constitucional nº 8 ampliaria mais uma vez este mandato, desta vez para seis anos.
165 Depois do episódio envolvendo a negativa do Congresso em conceder autorização para processar o depu tado M árcio M oreira Alves, em que vários deputados da
ARENA votaram contra o governo, o regime quis se assegurar do pleno controle sobre a sua base parlamentar.
166 Cf. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada, p. 17-44.
167 Sobre a luta armada de resistência à ditadura militar no Brasil, veja-se: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada; ROLLEM BERG, Denise. Esquerdas revo lucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). Brasil
Republicano: o tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, p. 45-90.
168 Cf. FURTADO, Celso. O Brasil pós-“milagre”; TAVARES, M aria da Conceição; ASSIS, José Carlos. O grande salto para o caos: a economia política e a
política econômica do regime autoritário.
169 Desta vez, o M DB, que havia boicotado as eleições de Castelo Branco, Costa e Silva e M édici, lançou a candidatura de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima
Sobrinho (Vice). Evidentemente, o partido não almejava vencer as eleições, o que se afigurava impossível, mas ganhar um espaço para denunciar a ilegitimidade
daquele processo eleitoral, que apenas homologava o nome imposto pelos militares. Nas palavras de Carlos Chagas, Ulysses era “um anti candidato, para denunciar
a anti eleição, imposta pela anti Constituição” (A guerra das estrelas, p. 220). O placar do Colégio Eleitoral seria avassalador: 400 votos para Geisel contra apenas
76 para Ulysses.
170 Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, p. 315-322.
171 Em outubro de 1975, o jornalista Wladimir Herzog, Diretor de Jornalismo da TV Cultura, havia sido torturado e assassinado nas dependências do DOI-CODI de
São Paulo, tendo-se simulado o seu suicídio por enforcamento. Em circunstâncias semelhantes, as forças de repressão em São Paulo mataram também o sindicalista
M anuel Fiel Filho, em janeiro de 1976. Em resposta, o Presidente demitiu o Comandante o 2º Exército responsável pela área, General Ednardo D’Avila, sinalizando
para a linha-dura que não aceitaria mais acontecimentos daquele tipo.
172 A expressão é de Golbery do Couto e Silva, uma das mais poderosas autoridades durante o regime militar, que também compunha o grupo dos
“moderados”. Sístoles são as contrações dos músculos do coração, e diástoles os movimentos de distensão desses mesmos músculos.
173 A Carta de 69 tinha previsto eleições diretas para governador, mas excepcionara as eleições de 1970 (art. 189), e, posteriormente, a Emenda Constitucional nº 2
também havia consagrado eleições indiretas para o mesmo cargo nos pleitos de 1974.
174 Tais senadores passariam a ser conhecidos como “biônicos”.
175 Cf. CARVALHO, José M urilo de. A cidadania no Brasil: um longo caminho, p. 178-190.
176 Cf. M ATTOS, M arcelo Badaró. O sindicalismo brasileiro após 1930, p. 60-70.
177 A Emenda nº 11 continha também uma novidade polêmica, que foi muito criticada pela oposição: introduzia a figura do “estado de emergência”, similar ao estado de
sítio, que implicava a suspensão de diversas ga ran tias constitucionais, e podia ser decretado pelo Presidente para “impedir ou impelir atividades sub versivas”
(art. 158).
178 Nas eleições indiretas, o M DB — mais uma vez, sem nenhuma chance de vitória — lançou como candidato o General Euler Bentes M onteiro, que recebeu 225
votos, contra 355 dados à Figueiredo. Cf. PORTO, Walter Costa. O voto no Brasil: da Colônia à 6ª República, p. 326.
179 Cf. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves (Org.). Brasil Republicano: o tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, p. 245-282.
180 A Lei de Anistia envolveu aspecto que hoje é objeto de intensa controvérsia tanto política como jurídica. Apesar da ambiguidade do seu texto, ela foi editada
visando a anistiar “os dois lados”, ou seja, a proteger também os responsáveis por graves violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura. Nos últimos
tempos, esta dimensão da Lei de Anistia vem sendo justamente criticada, sob a alegação de que, ao assegurar a impunidade dos crimes da ditadura, ela violaria
gravemente os direitos humanos. Este aspecto da Lei de Anistia foi impugnado no STF por meio da ADPF nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, mas a
Corte considerou que ele não ofenderia a Constituição de 1988 (Rel. M in. Eros Grau. DJe, 6 ago. 2010). Não obstante, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, seguindo a sua pacífica e reiterada jurisprudência na matéria, decidiu, no caso Gomes Lund v. Brasil, julgado em 14.12.2010, que a anistia às graves
violações de direitos humanos cometidas no regime militar brasileiro afronta a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
181 O episódio provocou o pedido de demissão de Golbery do Couto e Silva, eminência parda do governo Figueiredo e integrante do grupo dos “moderados”, que não
aceitou o tratamento dado à questão pelo Pre sidente, em sintonia, neste ponto, com a “linha-dura” militar. Cf. SKIDM ORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo,
p. 442-452.

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